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<p>Pai Cido de Osun Eyin CANDOMBLE A do segredo com a colaboração de Rodnei William Eugênio ARX</p><p>APRESENTAÇÃO, II NOTA SOBRE o AUTOR, 24 parte 1 a do mundo a dos 29 I. CRIAÇÃO E RECRIAÇÃO DO MUNDO, Olodumaré e os deuses da criação, 33 / A criação da Terra, 34 / Transgressão e recriação do mundo: os nascimentos de Exu, / mundo em quatro partes, 41 2. ÁGUA: A ENERGIA FEMININA QUE COMANDA o MUNDO, 44 A importância da água, 44 / Orixas da água, 45 3. TERRA: A MANTENEDORA DA VIDA, 47 A importância da terra, 47 / da terra. 48 4. FOGO: o PODER DA TRANSFORMAÇÃO, 50 A importância do fogo, 50 / do fogo, 52 5. AR: A ESSÊNCIA DA VIDA, 53 A importância do ar, 53 / do ar, 54 parte 2 a do 55 6. CULTO A NA ÁFRICA, 57 Ancestral divinizado, 57 / Os deuses e suas cidades, 59 7. A FORMAÇÃO DO NO BRASIL, 61 negro e a escravidão, 61 / Sincretismo, 63 / Os primeiros terreiros, 64 8. PERSPECTIVAS PARA o FUTURO, 67 no século 67 / Legislação e 70 / Lei n° 7.716, de 5/1/1989. 74</p><p>parte 3 as forças da natureza, 77 9. PRINCÍPIO DE TODAS AS COISAS, 79 Origem e história, 79 / Domínios de Exu, 83 / Rituais específicos Características dos filhos de Exu, 86 / Aspectos gerais, 87 IO. OGUM: o DEUS MAIS CULTUADO NA ÁFRICA E NO BRASIL, 88 Origem e história, 88 / Domínios de Ogum, 92 / Rituais específi Características dos filhos de Ogum, 95 / Aspectos gerais, 97 II. o SENHOR DA HUMANIDADE, 98 Origem e história, 98 / Domínios de 104 / Rituais Características dos filhos de 106 / Aspectos gerais, 12. OSSAIM: o SENHOR DE TODAS AS PLANTAS SELVAGENS, 108 Origem e história, 108 / Domínios de Ossaim, / Rituais Características dos filhos de Ossaim, 114 / Aspectos gerais, 115 13. OBALUAIE/OMOLU: CAÇADOR NEGRO QUE SE VESTE DE Origem e história, 116 / Domínios de 121 / E Rituais específicos, 122 / Características dos filhos de Aspectos gerais, 125 que ainda OXUMARÉ: A UNIDADE ELEMENTAR ENTRE CÉU E TERRA, 126 Origem e história, / Domínios de Oxumaré, 129 / Rituais Tomando como Características dos filhos de Oxumaré, / Aspectos gerais, 133 demais aspecto 15. NANA BURUKU: A PODEROSA DONA DOS CAURIS, 134 Origem e história, 134 / Domínios de Nanã Buruku, 139 segredo, mist Rituais específicos, 140 / Características dos filhos de Nanã, 141 começa de dent Aspectos gerais, 143 16. OXUM: A BELA DEUSA SENSUAL DO AMOR E DA FECUNDIDADE, Trata-se de um Origem e história, 144 / Domínios de Oxum, 150 / Rituais mais Características dos filhos de Oxum, / Aspectos gerais, 155 / configurar se C 17. LOGUN EDÉ: o MENINO CAÇADOR, 156 Origem e história, 156 / Domínios de Logun Edé, / Rituais informações qu Características dos filhos de Logun Edé, 162 / Aspectos gerais, 163 conhecimento 18. VENTO DA MORTE VENTO DA VIDA, 164 Origem e história, 164 / Domínios de 172 / Rituais queiram Características dos filhos de Oiá, 174 / Aspectos gerais, 175 19. A GUERREIRA MAIS VALENTE, 176 Origem e história, 176 / Domínios de Obá, / Rituais especific Características dos filhos de Obá, / Aspectos gerais, 183 20. A VIRGEM DA MATA VIRGEM, Origem e 184 / Domínios de Ewá, 188 / Rituais Características dos filhos de Ewá, / Aspectos gerais, 191 21. MÃE DE TODOS os FILHOS, 192 Origem e história, / Domínios de 197 / Rituais Características dos filhos de 200 / Aspectos gerais, 201</p><p>22. XANGO: o REI POR EXCELÊNCIA, 202 Origem e história, 202 / Domínios de Xangô, 214 / Rituais específicos, 215 / Características dos filhos de 218 / Aspectos gerais, 219 23. IROKO: o GUARDIÃO DA ANCESTRALIDADE, 220 Origem e história, 220 / Domínios de Iroko, 223 / Rituais específicos, 223 / Características dos filhos de Iroko, 224 / Aspectos gerais, 225 24. IBEJI: ORIXÁS E CRIANÇAS, 226 Origem e história, 226 25. IFÁ: o PROFETA DO CULTO A 230 Origem e história, 231 / Os poemas de Ifá, 235 26. o CÉU QUE NOS PROTEGE, 240 Origem e história, 240 / Domínios de 245 / Rituais 246 / Características dos filhos de 248 / Aspectos gerais, 249 27. OXAGUIA: A GUERRA PELA PAZ, 250 Origem e história, 250 / Domínios de 253 / Rituais específicos, 254 / Características dos filhos de 255 / Aspectos 257 28. OUTROS ODUDUA, ORANIAN, OTIN, APAOKA, ONILÉ, OLOKUM, 258 Odudua, 258 / Oranian, 259 / 260 / Otin, 260 / Apaoká, 260 / 261 / Olokum, 261 29. NOSSO PAI ANCESTRAL, 262 Origem e história, 263 30. AS SENHORAS DO PÁSSARO DA NOITE, 268 Origem e história, 268 parte 4 axé: a 273 3 I. SIGNIFICADO DO SANGUE, 275 Sacrifícios, 275 / Sangue vermelho, 277 / Sangue preto, 278 / Sangue branco, 278 32. RITUAIS DE INICIAÇÃO E DE PASSAGEM, 279 Bori, 279 / Feitura, 282 / Obrigação de sete anos, 284 / Axexê, 285 33. ORÁCULOS, 290 Obi, 290 / Merindilogun, 291 34. A MORTE NO CANDOMBLÉ, 294 35. COMIDAS DE SANTO, 296 CONSIDERAÇÕES FINAIS, 301 GLOSSÁRIO, 303 BIBLIOGRAFIA, 311 ÍNDICE REMISSIVO, 313</p><p>apresentação Candomblé, religião afro-brasileira, fruto da diáspora africana, ga- nha visibilidade somente a partir do século XIX na Bahia. Em São Pau- lo, porém, até meados do século XX, os cultos afro-brasileiros perma- neceram nas sombras. Era subterrâneo, repleto de silêncio e não ditos. Na entrada do século XXI essa expressão religiosa encontra-se envolta em mistérios, especialmente em terras paulistas. É nesse sentido que o livro a panela do segredo, de Pai Cido de Ösun Eyin, organizado por Rodnei William ganha incontestável importância, além de ser um texto rico, bem-escrito, que ao tratar os mitos enfoca com maes- tria os elementos da natureza: água, terra, fogo e ar. Os rituais também foram capturados pelo autor. Nesse sentido, trava- se entre o mito e o rito o diálogo fundamental para a compreensão do Candomblé. Mas Pai Cido vai além ao contextualizar a religião dos orixas. Em suas palavras "a compreensão da história do negro no Brasil é fundamental para explicar o surgimento do Candomblé..." Em minhas palavras "não se entenderia a nem em sua realidade, nem em seu conceito, se quiséssemos explicá-la isoladamente". A religião não constitui nenhu- ma comunidade separada, mas é parte do povo que a criou. Por isso existe um diálogo baseado em símbolos entre a religião e o povo. É</p><p>nesse sentido que o livro Candomblé: a panela do segredo é gria. Na verdade, vem preencher uma grande lacuna, pois são sacerdotes que são autores. Os sacerdotes-autores são, non pessoas que vêm do povo que criou essa expressão religiosa. É Pai Cido, que cria e recria diariamente o Candomblé. Eu não pertenço ao povo criador, mas estou aqui porque do povo-de-santo: "No Candomblé você não escolhe, você é TERESINH Professora-doutora do Programa de Pós-Graduação em da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 12</p><p>Candomblé sobrevive até porque não quer convencer as pessoas sobre uma verdade absoluta, ao contrário da maioria das PIERRE VERGER Quem ousaria construir sua casa sobre as águas? Só aqueles que acredi- tam em Oxum; só os que sabem que não há alicerce mais seguro do que amor. Quem é capaz de destruir o que o amor construiu? Este livro é uma prova de amor a Oxum e a todos os pois trans- mite uma mensagem de amor forjada a partir de uma história de amor vivida no seio de uma comunidade. Amor recíproco entre um pai e seus filhos, entre um sacerdote e seus deuses; amor sincero, capaz de superar as adversidades, de aceitar os defeitos, de amar. A casa de Oxum é a casa do amor, na qual todos são bem-vindos: ho- mens e mulheres em busca de alento, de compreensão, de uma família; pessoas de coração aberto, prontas para receber e para doar melhor de si; pobres e ricos em busca de lições de humildade, prontos para amar e ser amados. Este livro é uma compilação de histórias de amor: histórias que ouvi- mos e contamos, que lemos e transmitimos, histórias que vivemos. Re- latos de amor aos deuses que amamos e ao povo que amamos feitos por</p><p>pessoas que os amam também: Aninha, Menininha, Senhora Nezinho, Bamboxê, Massi, Caetana, Cotinha, Boba Cleusa, Olga, Bida, Roxa, Luís, Cidália, Vavá, Deuzuita, Oiá Niqué, Pérsio, Rosinha, Ana, Nicinha, Vina, Diniz, Regina, Stella, Cantu, Isabel, Wanda, Gilber Alvinho, Carmem, Beata, Didi, Manodê, Roxinho, C Agenor, Meruca e tantos outros que passaram seus saberes viva a memória de nossa Outros também existem que amam esse povo e esses amor discreto, mas verdadeiro: Carneiro, Bastide, Verger, Au E Lima, Elbein, Ziegler, Lody, Concone, Consorte, Risério, Braga, Lepine, Moura, Trindade, Portugal, Abimbo tantos outros que em suas obras registram as histórias de seus deuses. O que senão o amor motivaria tal escolha? Quantos que por amor dedicaram sua arte a essa gente ses: Jorge Amado e sua literatura, Carybé e seus desenhos Caetano, Gil, Roberto Mendes, Vinícius e suas poesias e Nunes, Bethânia, Gal e suas vozes. Tantos exemplos de amor, de dedicação, de entrega. vida, de amor à vida e de respeito ao outro. Foi por amor entregaram suas vidas e tantos outros a sua obra e a sua an amor que cada um deu o melhor de si e ajudou a trar a história de um povo e sua fé. Foi o amor que história: o amor pela vida, que muitas vezes fez calar os in pois a necessidade de sobreviver e perpetuar era mais forte rantia de que os deuses que traziam em seus corações tamb nuariam vivos. É, portanto, o amor que inspira este livro, e, por ser um amor profundo, a Oxum ele é dedicado e também a todos Oxum e a todos que Oxum ama. Este livro é para as pessoas 14</p><p>dignos e que justamente por isso vêem com dignidade o esforço do trabalho; é para todos que sabem que as relações e os laços que nos unem devem estar baseados na cooperação e não na competição; é para aquele que abraça o meu orixá como se seu fosse; para os que ouvem a minha história e se reconhecem; para aqueles que amam e respeitam; para todos que eu amo! Que este trabalho seja visto com os olhos do bem, do amor e da dignidade! Salve Oxum!!! PAI CIDO EYIN senhor de 15</p><p>Religião E ste livr os que ainda Tomando com demais aspecto o Pai de segredo, mist Guere), precursor do Candomblé de São Paulo. começa de den Trata se de mais configurar informações conhecimento queiram apren Pai Cido de Eyin</p><p>nota SOBRE o autor Se você não puder ser uma árvore frondosa No alto de uma montanha Seja um pequeno arbusto na beira do rio Mas seja melhor arbusto que você puder ser. D. MALLOCK Mais do que um babalorixá Pai Cido de Eyin antes, um grande defensor da cultura afro-brasileira. Interessado na valoriza- ção do negro e na conservação de suas tradições, especialmente as reli- giosas, tem se dedicado, nos últimos anos, ao estudo e à interpretação de toda a teogonia do Candomblé - religião que professa como inicia- do desde 1974, mas que conheceu muito antes, na Bahia, onde nasceu em IO de agosto de 1949. A ilha Madre de Deus, vizinha de Salvador, é a terra natal de Pai Cido, que é o quarto filho de uma família de nove irmãos. Seu pai, o senhor Alcides Reis, um marinheiro, morreu de tuberculose em fadando sua mãe, dona Zilah Reis, e seus irmãos a uma vida modesta, cheia de humilhações e dificuldades. Em virtude do falecimento de dois irmãos, num trágico acidente de ônibus em 1964, mudou-se com a família para a cidade de Candeias, onde começou a trabalhar como balconista num café-e-leite. Pai Cido caminhava cerca de três horas para ir e voltar do emprego. Foi nesse café que passou a sentir as primeiras manifestações espirituais.</p><p>No entanto, a primeira manifestação realmente forte quando já não trabalhava mais lá, num momento de desespero. Pai começou a ter os sintomas e as reações da doença que matara seu mas não estava fisicamente. Diante disso, voltou para Madre de Deus e hospedou-se na casa de uma tia, sem saber que esta era uma médium de transporte, como classificam os espíritas. Assim, foi identi- ficado o problema com o egum (egun) do senhor Alcides e Pai Cide curou-se quase que imediatamente. A tia, no entanto, teve de procurar ajuda espiritual para se curar. Dona Zilah casou-se novamente e deu à luz mais dois filhos. Com o padrasto, a família mudou-se para um sítio na cidade de Alagoinhas Porém, tempos depois, a mãe separou-se e enfrentou, com os E uma vida de sacrifícios. Para sobreviver, Pai Cido colhia jacas, abacates e outras frutas do que aind sítio, colocava-as em uma mula emprestada do vizinho e, junto com irmão, que sempre ficava meio de longe, ia à cidade para vendê-las. Com o dinheiro fazia a despesa do dia e levava para a mãe. Tudo isso até on conseguir um emprego como cortador de carne num armazém do mer- de cado, onde ficou alguns anos. A família mudou-se do sítio para a cida- de. Dona Zilah, por transferência de uma amiga, conseguiu uma banca Trata de no mercado e Pai Cido deixou o armazém para trabalhar com a mãe mais expres Nessa ocasião, as manifestações espirituais voltaram e, psicologicamente configurar desestruturado, Pai Cido procurou ajuda, mas nada parecia dar certo. Sem perspectivas, decidiu vir a São Paulo para trabalhar e procurar um médico. Chegou à cidade no dia 24 de dezembro de 1973, hospe- queiram dando-se na casa de amigos. No dia 4 de janeiro de 1974, conseguiu emprego como servente de obra no prédio-esqueleto do Anhembi, pas- sando a residir no mesmo Foi ai que encontrou uma abelha de ouro com olhos de rubi, a qual mais tarde ofereceu ao seu ibá Oxum (igbà Meses depois, saiu da obra e com o dinheiro da rescisão iniciou-se no Residiu na casa de em que foi iniciado até conseguir emprego no almoxarifado de uma firma. Então, mudou-se para uma casa pequena começando, a pedido de Oxum, sua trajetória como 18</p><p>Engana-se, no entanto, quem pensa que a partir os sacrifícios acabaram, pois apesar de hoje gozar do maior prestígio entre os adeptos da religião, Pai Cido enfrentou inúmeras dificuldades até se estabelecer como sacerdote respeitado e consolidar o seu templo como uma impor- tante referência do Candomblé de São Paulo. Tornar-se babalorixá foi, acima de tudo, uma missão imposta por Oxum e no ano de 1977, naquela pequena casa de apenas um quarto, sala e cozinha, Pai Cido iniciou suas atividades. Construiu uma ria no quarto: de um lado dormia e do outro guardava o seu Oxum. Como trabalhava fora, só nas horas vagas realizava suas obrigações. Em outubro do mesmo ano recolheu sua primeira cus- teando as despesas da feitura com o dinheiro do seu fundo de garantia. Até hoje Pai Cido guarda o quelê (kele), pano-da-costa e outros ape- trechos dessa primeira Para realizar os toques, Pai Cido retirava os móveis da sala e os colocava no Muitas pessoas testemunharam essa fase de sua vida religiosa, entre elas a falecida Mãe Teresa (Oxum Márcio de Oxumaré e a amiga de sempre que até hoje frequenta sua casa de Candomblé. Naquela época, as dificuldades eram muito maiores para tocar uma casa religiosa, preconceito era muito pior. Pai Cido chegou a ser ma de um abaixo-assinado e ao final do contrato de locação foi obriga- do a se mudar, pois a imobiliária negou-se a renovar o contrato de um pai-de-santo. Com o crescimento das atividades, foi para uma casa maior e com um aluguel bem mais alto. Apesar de contar com a ajuda de algumas pessoas, precisou voltar a trabalhar fora, continuando em sua trajetória de sacrifícios e dificuldades constantes. Pai Cido casou-se em 1978 e no ano seguinte nasceu sua filha Gabriela. Acabou se separando da esposa em 1982. Nesse meio tempo iniciou novos iaôs. Porém, quando venceu o contrato de aluguel, devido ao valor muito alto, mudou-se para uma casa muito pequena e simples, com apenas um cômodo e cozinha, onde não tinha condições nem de receber seus clientes, nem de guardar o seu próprio ibá, sendo obrigado 19</p><p>a deixar de tocar Candomblé. Nessa fase de extremo sacrifício, série de dificuldades se sucederam. Pai Cido passou a jogar em domicílio e conseguiu com um terreno em Franco da Rocha, no qual pretendia estabelecer seu No entanto, as coisas tomaram outros rumos quando uma ofereceu uma casa na Vila Prudente (Zona Leste de São Paulo), passou a morar e a atender seus clientes, mas ainda sem tocar blé, atendendo também em domicílio. Como não pagava pela moradia, alugou uma outra casa no Jar Iguatemi (periferia da Zona Leste), voltando a tocar seu Candomb Em 1981, completando os sete anos de iniciação, recebeu cargo, (oye), de sacerdote com seu saudoso babalorixá, Pai Bobó de do do Axé Oxumaré da Bahia. Sem Pai Cido fazia um grande sacrifício para locomover da Vila ao Jardim Iguatemi, até que um cliente indicou a várias pessoas, entre as quais estava um grupo de japonese proprietários de imobiliária, que conseguiu uma casa bastante onde poderia morar e tocar o O terreno em Franco da Rocha era mantido por medida de ção e, quando venceu contrato desta nova casa, Pai Cido estava dido a mudar-se para lá, mas o mesmo grupo de japoneses uma outra casa e, por meio de um acordo, Pai Cido comprou a dade, estabelecendo definitivamente seu templo de Candomblé. A casa era bastante humilde, bem pobre, muito diferente da construção. mais importante, no entanto, é que, livre do vida de Pai Cido se equilibrou e ele pôde se projetar e se tornar uma figuras mais importantes do Candomblé de São Paulo. Dona Zilah, que havia alguns anos morava com o filho, faleceu 1990. Pai Cido ainda sente a dor desta partida, pois foi a mãe quen sempre apoiou em seus momentos Tendo participado de inúmeros programas em todas as de televisão, em diversos programas de rádio, concedido entrevistas informações aos mais importantes jornais de São Paulo, proferido 20</p><p>inclusive em faculdades de teologia Pai Cido de Eyin tornou-se conhecido do grande público e, por suas sem- pre acertadas e precisas, conquistou o respeito e a admiração de todos. Gravou dois CDs com cantigas de Candomblé: Raízes de Ketu (lan- çado em vinil em 1988) e Candomblé Brasil (lançado em 1999). pri- meiro, segundo informações dos distribuidores, vendeu seguramente mais de mil cópias, projetando Pai Cido em âmbito nacional, e, devido ao seu grande sucesso e ao registro de músicas que preservam um importante patrimônio cultural, foi incluído no acervo do Museu Afro-Brasileiro de Salvador. Já o segundo, uma superprodução, deve seguir o mesmo caminho do Raízes de Ketu. Pai Cido vinha escrevendo uma série de revistas sob o título Orixas: segredo da vida. Foram lançados, com grande sucesso, dois números e o terceiro já estava pronto quando surgiu a oportunidade de fazer um livro. Percebe-se que não faltam experiências a esse sacerdote, que nhece as histórias dos orixás, que pesquisou, que percorreu vários pon- tos do Brasil em busca de conhecimento. Em esteve na África e conheceu várias cidades sagradas, os costumes e a cultura do povo nigeriano; percebeu respeito e a verdadeira adoração que as pessoas dispensam às autoridades religiosas naquele país. Acompanhado por escritor e professor da Universida- de de Obà Femi um amigo que sempre o visitava no Brasil Pai Cido percorreu a cidade de considerada o berço da civilização iorubá e do resto do mundo, onde conheceu a famosa Univer- sidade de Ilé-Ifè, na qual recebeu o diploma comemorativo do Primeiro Congresso de Tradição de Orixá The Orisha Tradition: A World View. Foi também à cidade de Osogbó, onde se encontra principal templo de Oxum e o rio consagrado à deusa. Pai Cido banhou-se nas águas do rio Oxum, conheceu a iá quequerê (iya do templo e doou muitas nairas (moeda da Nigéria) para a realização do festival de Oxum. Visitou, ainda, as cidades de Ilesá, a terra de Logun e Abidjan, que fica na República do Benin (antigo Daome). Sempre vestido com trajes típicos, axó oquê oke), Pai Cido foi ovacionado 21</p><p>pelas ruas de Lagos e de volta ao Brasil chegou a se atrasar formaram-se filas no aeroporto de pessoas que queriam ser pelo eruquerê (erukere) de Pai Cido. Ainda no hotel, foi procur um repórter local que soubera que havia um rei brasileiro vis Nigéria. Pai Cido concedeu a entrevista e explicou que era, na um sacerdote de Na Nigéria, os sacerdotes (babalawo) e babalo são respeitados como chefes de Estado, e Pai Cido foi recon como sacerdote por suas roupas e apetrechos, por sua simpatia rosidade e, principalmente, pelo conhecimento de orixá que monstrar ao longo de sua estada. Trouxe da Nigéria muitos E sagrados, obi, orobô água do rio Oxum, folhas, colares (um, em especial, com mais de dois séculos de existência) e ainda tudo para reforçar o axé de sua casa de Pai Cido de ostenta com orgulho o título de mando com Quini (Oba Ikini), outorgado pelo Omô Dadà (Ilé D nais aspect mais tradicional afoxé de São Paulo. Ele tornou-se o rei do redo, mis 1996 e nesse mesmo ano foi convidado para desfilar na escola de neca de der Mocidade Alegre, uma das maiores de São Paulo. belo samba- ta se de un falava de Oxum em seu refrão e Pai Cido desfilou com trajes de bab is expressi representando o rei de em um dos carros alegóricos, nfigurar se nhado de importantes destaques, entre eles a 'Globeleza' Pai Cido conquistou importantes amigos na Mocidade, e ormações C deixou de desfilar na sua escola do coração e prestigiar o C paulistano a cada ano mais grandioso. eiram A propósito, Pai Cido de Osun está à frente de uma das Candomblé mais bonitas e respeitadas de São Paulo, o Ilé D Eyin, que já se tornou uma referência da religião afro-br haja vista o grande número de pesquisadores, antropólogos, e teólogos, entre outros, que o tem procurado como informante suas dissertações e teses. Por tudo isso, Pai Cido tornou-se grande dentro do conseguiu conquistar; um exemplo de humildade e dedicação, recebeu em sua casa, com a mesma atenção, pessoas simples e 22</p><p>cursos, empresários, políticos, intelectuais, 'socialites', atores, canto- res, artistas plásticos, enfim, pessoas de todos os estratos sociais. Ao longo desses anos, soube manter e fortalecer sua comunidade, contri- buindo, dessa forma, para a preservação desse importante patrimônio cultural afro-brasileiro que é o Candomblé. 23</p><p>A filosofia do Candomble não é uma E ste livr filosofia sim pensamento os que ainda sutil que ainda não foi decifrado. Tomando com demais aspecto ROGER BASTIDE segredo, mist começa de den Trata-se de um mais expressive configurar se C informações q conhecimento queiram apren</p><p>Desde o século XIX, os estudos sobre religiões afro-brasileiras vêm despertan- do o interesse de intelectuais. Muitos antropólogos, sociólogos, etnólogos, psicólogos dedicaram suas disserta- ções e teses ao Candomblé e a outros importantes aspectos da cultura ne- gra preservados no Brasil. Ocorre, contudo, que boa parte desses estu- dos, sobretudo os que não se trans- formaram em livros, ficou restrita à comunidade acadêmica, e muitas ve- zes os principais interessados, isto é, os adeptos da religião, não têm acesso a essas informações ou são desestimulados por sua linguagem extremamente formal. Há muitas publicações sobre Candomblé, in- clusive vários trabalhos de pós-graduação. A religião, entretanto, ressentia-se de uma obra que contemplasse sua teologia, suas concepções de mun- do, sua ética e seus mais importantes fundamentos, e que considerasse a necessidade de uma contribuição prática a sacerdotes, iniciados, simpatizantes e a todos os que quisessem</p><p>saber um pouco mais sobre Candomblé, representando, assumidamente uma visão de dentro para fora. Não se pode negar a importância da contribuição dos pesquisado res, mas a dificuldade em assumir posturas, imposta pelo rigor mico, muitas vezes afasta suas obras do interesse da comunidade religio e mesmo do leigo que busca uma introdução mais voltada ao e ao compromisso com a fé. Felizmente, essa tendência tem mudado são cada vez mais frequentes os trabalhos de intelectuais também inicia dos no Este livro contempla inúmeros assuntos referentes ao Candomb começando pela criação do mundo segundo a tradição dos sando pela história da religião e de seus deuses e concluindo com sobre a organização do culto e sobre a energia que mantém a são entre as forças atuantes no universo, ou seja, os homens, os deuses e a natureza. Todas as histórias que explicam a origem do universo, sua criação recriação, são enumeradas na primeira parte do livro, que descreve não a gênese, mas introduz importantes reflexões a respeito dos elementos natureza, já que no Candomblé é o equilíbrio entre esses elementos concorre para a manutenção da Terra. A história da religião dos na África e no Brasil é exposta segunda parte, que também ressalta as principais diferenças entre o to a orixá na África e Candomblé brasileiro. Vale lembrar que a com- preensão da história do negro no Brasil é fundamental para explicar surgimento do Candomblé como religião e revela a necessidade de retomada do verdadeiro sentido de comunidade, mostrando que o mérito do Candomblé é a reconstituição da família negra, completa mente esfacelada com o processo de A terceira parte é a mais densa, pois reúne as histórias dos deuses africanos, sua relação com as forças vivas da natureza, com os humanos, com os ritos e atividades sociais como a metalurgia, a caça, exercício do poder, a maternidade e tantos outros aspectos da vida Muitos cânticos e oriquis ilustram esta parte do livro, cendo a explanação sobre os feitos e efeitos das magias dos deuses 26</p><p>africanos. A história e a origem, os domínios e os rituais específicos de cada são descritos exaustivamente, bem como as características de seus filhos, configurando, seguramente, uma completa introdução ao rico universo dos orixás.) A quarta parte trata da força vital que tudo consagra, ou seja, fala do axé, uma energia indispensável, sem a qual a existência estaria parali- sada, tudo seria inerte. É em torno dessa força que se erguem as comu- nidades de Candomblé, portanto, a organização dos templos, dos ri- tuais, e tudo mais que ocorra na religião, pressupõe a existência de Este livro espelha a visão de um sacerdote a respeito da religião que professa e dos deuses que cultua. É o relato de experiências vividas e registro de histórias contadas e recontadas no interior de uma comunida- de de Candomblé, ouvidas repetidas vezes e a cada vez com um novo sabor, com novos elementos; são histórias lidas e relidas, e a cada leitura um novo olhar. Este livro é o reflexo de um aprendizado e, felizmente, inacabado, pois os que têm capacidade de aprender é que her- dam futuro, enquanto os que já aprenderam, os que já sabem tudo, descobrem-se preparados para viver em um mundo que não mais existe. A mudança é fundamental para que a tradição se mantenha; des- vendar segredos não significa violar a ética é, antes, a condição para um aprofundamento imprescindível em nossas próprias raízes, com- preendendo a essência da religião que professamos e dos deuses que adoramos. É cada vez mais evidente a necessidade de pensar e refletir a respeito do Candomblé, pois a história dos orixás, por si só, já não esgota a carência de informações que sentem o iniciado e o não-inicia- do. É preciso uma reflexão que de conta de aspectos simples mas extre- mamente relevantes da teogonia e da organização da religião dos Não basta a história do é necessária uma interpretação que res- salte elementos que possam ajudar as pessoas a viver melhor. Em outros termos, é preciso mostrar que a experiência dos orixás pode servir de exemplo para a construção de uma vida mais feliz e próspera. Este livro não pretende esgotar assunto, pois ainda há muito para falar sobre Candomblé. principal objetivo é traçar um panorama da religião, ressaltando fatos interessantes de sua história e de sua 27</p><p>teogonia que possam interessar ao sacerdote e ao neófito, ao leigo e intelectual e a todos os que, independentemente de religi sas, busquem um conhecimento bem fundamentado a respeito da tura afro-brasileira, especialmente no que concerne à As concepções equivocadas que têm vigorado sobre Candomble não condizem com um mundo no qual a informação se difunde de olhos'. é uma religião aberta a todos, na todos os segredos são compartilhados e a reciprocidade fornece o plo de uma vivencia comunitária que pode preencher todas as de uma pessoa. Este livro caminha no sentido de pelo menos tent extirpar uma parcela da ignorância que é fruto de uma hera preconceituosa não apenas em relação ao Candomblé, mas a toda cultura e ao próprio negro como pessoa. 28</p><p>6 parte 1</p><p>a do mundo a dos No princípio era verbo... não bavia nada. E 0 verbo como nada era tudo que havia... E os filhos da evolução, da desordem, foram os elementos e dos elementos foi a vida e a vida foi homem. Então 0 homem chamou nada e 0 verbo de Olorum, senhor de todos os seres espirituais, das entidades divinas e dos ancestrais.</p><p>1. E do mundo A origem do mundo, na tradição considera dois momentos cruciais: a criação e a recriação do uni- verso. Vários orixás têm participação fundamental nesses episódios, mas dois acabam se destacando como deuses da maior importância na combinação de forças que criou o mundo: Exu que é o princi- pio dinâmico da vida, a transforma- ção, e Oxalá ou a criação em sua totalidade. Não é por acaso que Exu é o primei- ro orixá a ser cultuado e Oxalá, o ul- timo. Ao contrário do que muitos po- dem pensar, esse fato não aponta para a rivalidade que de fato existe entre esses deuses, basta lembrar que o ritual em que os orixás são festejados, o xirê se faz a par- tir de um círculo constante, composto por filhos e filhas-de-santo, que gira em sentido anti-horário, pro- vando, uma vez que o círculo não tem começo nem fim, que a distância entre os extremos não existe, ou seja, que o Can-</p><p>domblé não trabalha com conceitos que se mas com complementares, mesmo que aparentemente contraditórios. No Candomblé não existe oposição, não existe contradição, tanto, não existe exclusão. Aquilo que parece contraditório é, na de, complementar, pois o dia se à noite, mas se um não viesse o outro o universo e a vida simplesmente não existiriam. Oxalá cria o mundo, mas Exu recria. O círculo, que em momentos aparece nos ritos do Candomblé, é o símbolo da da manutenção do universo - mostra a necessidade de dinamis de movimentação constante. A roda formada no xirê, em parte da recriação, do agora, do concreto, do provisório, e caminh do (dançando) chega ao eterno, ao permanente, ao transcendente origem, à criação. Uma vez criado, universo não poderia permanecer inerte, A missão - ou o desafio- de Exu foi inserir o movimento, a a transformação no mundo; em outras palavras, coube a Exu organizar caos, pois, transgredindo e restabelecendo a ordem, introduziu a cultur atribuiu significados, deu sentido à desordem. Exu é, portanto, a do mundo em termos representa o universo percebido e do a partir da palavra, do gesto, da ação. Exu nasce com primeiro mem, porque se manifesta na capacidade eminentemente humana de buir significado às coisas. Em as coisas não são por elas, pelos significados que lhe atribuem. Oxalá é o da criação por excelência, embora tenha falhado sua missão de criar o mundo. Seu maior erro foi desprezar Exu, desconsiderar que mundo desprovido do princípio dinâmico da trans formação não faria sentido, não poderia existir. Com a falha de Oxal outro importante entra em cena: Odudua As histórias que narram a criação do mundo revelam-se na tradiçã transmitida oralmente e nos poemas de Ifá, pois se os discípulos de Jesus são os profetas do cristianismo, se Maomé é o profeta do islamismo Ifá é o profeta dos Na tradição dos mundo não é simplesmente criado em seu aspecto físico. A criação do universo envolve o aparecimento 32</p><p>cosmo, dos elementos da natureza, dos deuses e dos homens, que man- têm uma relação constante animada por uma força vital: o axé. O caos nada mais é do que a natureza desprovida de significados, por isso o mundo é criado e recriado, numa gênese que não termina, pois o mundo, assim como o homem, são projetos inacabados e com potencialidades ainda desconhecidas e inesperadas. OLODUMARÉ E os DEUSES DA CRIAÇÃO ou Olorum é o Deus Supre- mo, senhor do orum e do destino. É também o Grande Deus da Criação. No entanto, por não ser uma divindade centralizadora, nunca realiza, mas fornece a força vital, o axé, para que a criação aconteça. É Olorum quem delega o poder potencial de tudo, quem dá origem aos deuses da criação. Antes que fosse criado o mundo, uma massa infinita de ar era tudo o que havia. Essa massa de ar era o próprio Deus Supremo Olorum, que ao mover-se lentamente, ao respirar, deu origem à água. Da relação entre ar e água surgiu Orixalá o maior entre todos os o grande deus do branco (orixá funfun). ar e a água continuaram a mover-se lentamente até que uma parte da matéria solidificou-se formando um montículo de terra lamacenta e avermelhada, ao qual Olodumaré soprou a vida: nasce langui Babá primogênito do universo, a primeira forma dotada de existência individual. Esses mesmos orixás estariam encarregados de criar a Terra e os seres que a habitariam, até que da relação entre ar e terra surge Odudua, mudando os rumos da história. mundo é criado e recriado em vários aspectos, e a Terra (não por acaso a morada dos homens) é sempre centro das narrativas que con- tam a origem e as transformações do universo. Não há uma estabelecida para essas histórias, mas a que narra a criação da Terra e os conflitos entre Oxalá e Exu e a disputa de Oxalá com Odudua pelo título de Orixá da Criação sempre é a primeira a ser mencionada. 33</p><p>A CRIAÇÃO DA TERRA E Olorum decide criar a Terra... Para essa importante missão vocou Oxalá e a ele entregou o saco da existência explica como deveria proceder. Então Oxalá reuniu os demais orixás e seg para cumprir a tarefa. No caminho, encontrou-se com Odudua e o vidou para a missão, mas este recusou-se a acompanhá-lo sem que cumprissem as devidas obrigações rituais, ou seja, a consulta ao de Ifá e a execução dos sacrifícios prescritos. Oxalá continuou a viagem e em seguida encontrou-se com Exu dono dos caminhos, que permitia a comunicação entre o mundo deuses e o mundo dos homens (aiye). Exu perguntou se havia feito as oferendas necessárias e este, altivo e prepotente, sem a menor atenção a Exu, respondeu que não e seguiu adiante. Irado, E prometeu se vingar, não permitindo que Oxalá fosse feliz em sua são. Oxalá seguiu viagem e no caminho começou a sentir muita Ele havia passado por um rio, mas não parou; em uma aldeia lhe ceram leite, mas recusou. A sede foi aumentando e tornou-se insup tável. Deparando-se com uma palmeira, igui opê Obatalá teve dúvida: fincou o seu cajado ritual, opaxorô no onde escorreu uma seiva refrescante - vinho de palma bebeu tanto que acabou perdendo os sentidos e adormecendo. Tendo consultado Ifá, Odudua fez suas oferendas a Exu. babal que consultou mandou que levasse cinco galinhas com cinco dedos cada pé, cinco pombos, um camaleão, dois mil elos de cadeia, en outras coisas. Exu aceitou o sacrifício, retirou uma pena da cabeça cada ave e devolveu a Odudua os elos e todos os animais vivos. também o aconselhou a fazer uma oferenda aos pés de Oloru com duzentos caracóis pois eles possuem o 'sangue branco água que apazigua, o Odudua foi ao encontro de Olorum levando as oferendas. Con não havia partido com os demais orixás para auxiliar Oxalá, o De Supremo, a princípio, recusou-se a aceitar o sacrifício, mas voltou quando Odudua calmamente explicou que só havia cumprido as 34</p><p>de Ifá. Só então Olorum apercebeu-se de que não havia colocado no saco da criação o recipiente que continha a terra e o deu a Odudua, para que o entregasse a Oxalá, mas, ao encontrá-lo completamente embria- gado e desacordado com os outros orixás sem saber o que fazer, Odudua tomou-lhe o saco da criação e voltou para devolvê-lo a Olorum, que, diante disso, o encarregou de criar a Terra. Odudua reuniu os demais orixás e todos juntos seguiram para o lugar determinado por Olorum para a criação do mundo. caminho levava às águas onde Exu, Ogum (Ogún) e Oxóssi costumavam caçar e pescar. Ogum, como desbravador dos caminhos, seguiu na frente. Havia um pilar que ligava o orum ao resto do mundo, ao longo do qual Odudua colocou a cadeia de dois mil elos, deslizando por sobre as águas até o local indicado. Então lançou a terra e mandou que os pombos (eyele) fossem espalhá-la. As galinhas, cujos pés tinham cin- CO dedos, ajudaram a remover e espalhar a terra para todos os lados. Para saber se a terra estava firme, Odudua enviou o camaleão, que pru- dentemente colocou uma pata após a outra e sentiu-se seguro. Aí, sim, Odudua pisou sobre a terra, e foi o pioneiro, e a sua pegada é chamada ntaiyé Seguido pelos demais Odudua fundou a cidade de - o berço da civilização iorubá e do resto do mundo. Quando Oxalá acordou e viu-se sem o saco da criação foi queixar- se a Olorum, que, diante do ocorrido, delegou a ele a importante mis- são de criar todos os seres que habitariam a Terra: árvores, plantas, ervas, animais, aves, pássaros, peixes e todos os tipos humanos. Acom- panhado por Etecó (Eteko), Oluorobô Olofin Oxaguia e todos os outros funfun, Obatalá seguiu em direção ao aiê (aiye), e Odudua, orientado por Orunmilá recebeu-o muito bem, como o Grande Pai. No entanto, o confronto entre Oxalá e Odudua foi inevitável, até que deci- diu intervir e convocou os dois para selar um acordo. Do alto de sua sabedoria, Orunmilá mostrou a importância de ambos na criação do universo e explicou ainda que da convivência har- moniosa entre eles dependia a manutenção do mesmo. Então, Oxalá sentou-se à direita, otum de Orunmilá e Odudua, à esquerda, 35</p><p>ossi e juntos festejaram o equilíbrio entre os dois níveis da exis entre o orum (Oxalá) e o aiê (Odudua), o que permitiu a sobre do universo e a continuação da existência. TRANSGRESSÃO E RECRIAÇÃO DO MUNDO: os NASCIMENTOS DE Exu Exu é o orixa que transgride e restabelece a ordem, o grande res- ponsável pela transformação do universo e por sua recriação. A história revela que Exu nasceu várias vezes e a cada nascimento impunha uma alteração drástica no era como se o destruísse e o criasse nova- mente, deixando marcas profundas, estabelecendo uma nova ordem. Nos primórdios do mundo, o orum não era separado do aiê e homens circulavam livremente pelo espaço dos deuses. Havia um ho- mem que trabalhava no campo, mais exatamente no limite entre o orum e o aiê. Sua esposa era estéril, mas tanto rogou a Oxalá que este concedeu a graça de dar à luz um menino, mas com uma condição: ele jamais deveria ultrapassar os limites da terra, nunca deveria penetrar no mundo dos deuses. O menino foi crescendo, assim como sua curiosidade, e sempre insistia para ir ao campo com o pai, que o ignorava. Muito esperto, o rapaz fez um pequeno furo no saco que o pai carregava todos os dias e lá colocou cinzas. No dia seguinte, só teve o trabalho de seguir o rastro e encontrar o caminho do orum, no qual penetrou, e gritando e desa- fiando os deuses percorreu todos os espaços. Irritado, Oxalá lançou o seu cajado, o opaxorô (o cetro do mistério), e separou definitivamente o orum - espaço dos deuses do aiê - espaço dos homens impondo assim uma nova ordem ao universo. Entre o orum e o aiê formou-se um vão, que foi preenchido pelo sopro de Olorum, dando origem à atmosfera. Sabe-se que nove são os espaços do orum, quatro superiores e quatro inferiores, no espaço cen- tral está localizada a Terra. Embora não tenha sido mencionado, não é difícil imaginar o nome 36</p><p>do transgressor que fez Oxalá separar o orum do É evidente que se trata de Exu, o único capaz alterar toda a estrutura do universo. Orunmilá, senhor do destino e patrono do oráculo de Ifá, dirigiu- se a Oxalá para lhe pedir um filho. Oxalá nem sequer havia criado os seres humanos, mas langui já existia e ficava à esquerda da porta de Oxalá, tomando conta de sua casa. A esposa de Orunmilá, que se cha- mava insistia em ter um filho, e ele tanto rogou a Oxalá que foi concedido tornar-se pai de Exu Ao sair da casa de Oxalá, Orunmilá, conforme foi orientado, colo- cou as mãos em Exu e, de volta ao aiê, deitou-se com sua mulher. De- pois de doze meses deu à luz um menino, que recebeu nome de Elebara o senhor do poder e da transformação. menino já nasceu falando e com uma fome tão intensa que passou a engolir tudo que encontrou pela frente: comeu todos os animais, todas as aves, todos os peixes, enfim, comeu tudo que havia sobre a Terra, inclusive a própria mãe. Voltou-se, então, para Orunmilá e o teria engolido se este não erguesse o seu sabre e passas- se a persegui-lo. Exu fugiu, mas Orunmilá o alcançou e com sua espada dividiu em duzentos e um pedaços. ducentésimo primeiro, para espanto de Orunmilá, regenerou-se por completo em Exu, que continuou fugindo. No segundo céu, foi novamente alcançado e retalhado em duzentos e um pedaços, e ducentésimo primeiro pedaço transformou-se em Exu e continuou fugindo. E assim sucessivamente até que chegaram ao nono céu; já não havia mais para onde fugir. Não restou outra alternativa a Exu a não ser fazer um acordo com Então, Exu devolveu sua mãe e tudo que havia engolido, devol- veu a ordem ao universo, recriando-o. Por isso, todos os seres vivos passaram a ter seu Exu pessoal, seu Bára. Exu passou a ter a poten- cialidade de tudo transformar, ficou encarregado de receber as oferendas e levá-las a quem fosse de direito. A história, portanto, revela a multiplicidade de Exu, seu poder de unir e transformar pela boca, ou seja, pela palavra. Exu contém em si tudo o que existe (e tudo o que existe contém Exu), todos os antago- 37</p><p>nismos, especialmente a multiplicidade e a unidade. Ele tem o poder devolver a ordem ao mundo, de recriá-lo. É Exu quem mantém a coes do universo, ele é a unidade que se multiplica e faz o ato virar A última e talvez a mais importante história que conta o nascime to de Exu envolve muitos e revela aquela que se eternizou con sua verdadeira mãe: Oxum. Um dos mais belos poemas de Ifá conta nascimento de Oxetuá que veio para devolver ao mundo fertilidade, pois "para tudo ser tem que ter (princípio da cia), para vir a ser tem que ter axé (princípio da realização) e para sempre ser tem que ter (princípio da Senhor luto dessas três forças, Exu impediu o fim do mundo e mais uma vez recriou, convertendo-se no grande transportador de oferendas e me sageiro do oráculo de Quando dezesseis, ao mundo para que viessem criar estabelecer a Terra. E vieram verdadeiramente As coisas que Nos do orum 05 pilares de fundação que a Terra Para existência de todos os seres humanos E de todos os deuses. E os orixás seguiram as determinações do Deus Supremo: abriran clareiras nas florestas para cultuar orô a coletividade dos ances trais), egum (os (o oráculo) e orixá (os deuses). Oloduman ensinou-os a fazer os assentamentos e as oferendas e como evitariam que a morte prematura, a esterilidade, a infecundidade, a pobreza, as doenças enfim, qualquer tipo de se abatesse sobre a Terra. Embora cumprissem todas as determinações de Olodumaré, cad vez que iam realizar algum ritual, os orixás não convidavam Oxum apenas entregavam a ela os animais sacrificados para que os cozinhasse Insatisfeita, Oxum, uma grande feiticeira, passou a evocar o poder das (axé que tornava tudo inútil. Assim: 38</p><p>Se se predissesse a alguém que ele ela não fosse morrer, essa pessoa não deixava de morrer Se fosse proclamado que uma pessoa não sobreviveria, a pessoa sobrevivia. Se se previsse que uma pessoa daria à luz um filho, A pessoa tornava-se Um doente a quem se dissesse que ficaria curado não seria jamais aliviado de sua doença. Sem compreender que estava acontecendo, os sob co- mando de Orunmilá, decidiram consultar Ifá, e o odu que res- pondeu foi chamado de Oxetuá. A solução seria, então, falar com o próprio Olodumaré. Assim o fez Orunmilá, que, ao chegar ao orum, reencontrou Exu Odara Este já explicava a Olodumaré o que vinha acontecendo, pois o fato de não terem convidado aquela que cons- tituía a décima sétima dentre eles estragava tudo o que empreendiam. Quando Orunmilá voltou ao aiê, foi com os outros convi- dar Oxum para segui-los em todos os rituais. Oxum Ela jamais iria com eles Comegaram a suplicar a Oxum ficaram prostrados um longo tempo. Todos a homenageá-la e a Tanto a Oxum, que ela acabou cedendo, mas com uma condição: que todos os orixás usassem seu poder (axé) para que a criança que carregava em seu ventre fosse do sexo masculino, pois esse filho iria representá-la em todos os ritos. Se nascesse uma meni- na, o mundo pereceria. Nasceu um menino, e os orixás decidiram chamá-lo (o poder o trouxe a nós). Mais tarde, consultando Ifá, Orunmilá verificou os odus da criança: eram oxê e otuá por isso resolveu rebatizá- la com o nome de Oxetuá A partir desse momento, tudo pas- sou a dar certo e a ordem retornou ao mundo. 39</p><p>Uma seca sobreveio à Terra - era tempo de testar poder de Oxetuá. Ifá determinou que se fizesse uma grande oferend que deveria ser entregue no orum. Todos os tentaram levar oferendas ao orum, mas quando lá chegaram as portas não foram aber tas. Decidiram que o décimo sétimo entre eles levaria a oferenda. Oxetuá consultou alguns e quando partiu para fazer oferenda a Exu, como havia sido determinado, encontrou uma que lhe perguntou se havia comido alguma coisa; ele disse que sim. velha senhora recomendou que fizesse a oferenda só no dia seguinte, sem comer nem beber nada. Quando chegou dia seguinte, Oxetuá foi encontrar Exu E the que deveria Exu "Como! Jamais que você viria me avisar antes de Disse ele: "Isso vai cles abrirão a porta!" Seguiram para orum e quando lá chegaram as portas já estavan abertas. Oxetuá fez a oferenda a Olodumaré e recebeu do Deus Supre mo todas as coisas necessárias para a sobrevivência do mundo. E quan- do retornou: Axé se expandia se estendia sobre a Terra. Sêmen convertia-se filbos, homens em seu leito de sofrimento se levantavant todo mundo tornou-se aprazível, tornou-se poderoso. As novas colheitas cram trazidas dos plantios. inhame brotava, milho amadurecia, a chuva continuava a cair, todos os rios transbordavam todo mundo era feliz. 40</p><p>As pessoas, então, cobriram Oxetuá de presentes e riquezas e este, por sua vez, deu tudo o que recebeu a Exu Odara, que havia tanto tempo transportava as oferendas sem que ninguém retribuísse a sua gentileza. Assim, Exu Odara deu a Oxetuá o cargo de ojisè - o portador das oferendas - e só através dele é que qualquer sacrifício chegaria ao poderoso orum. Oxetuá é, sem dúvida, a reencarnação de Exu em forma de odu, visto que muda o destino do mundo. Ele é a síntese do oráculo, pois são dezesseis odus mais um (Oxetuá), ou seja, há um décimo sétimo odu, e é ele que contém todas as possibilidades, todos os caminhos. Foi assim que Exu recriou o mundo: introduzindo forças vitais, transformando, transgredindo, impondo uma nova ordem, devolvendo a fertilidade. E para que as coisas tenham o efeito esperado é preciso contar com o apoio de Exu - o princípio da transformação. Exu, explosão única, origem de tudo! MUNDO EM QUATRO PARTES Para as religiões cristãs, Deus configura-se como uma trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. Muito anterior ao cristianismo, o Candom- blé concebe a origem do universo, a criação do mundo, a manutenção da vida e a própria definição de Deus a partir de pares, sempre dois que, somados ou multiplicados, resultam no número quatro. Parece um pen- samento complexo mas na verdade é elementar. Vejam: A vida só se torna possível a partir da junção de pares, ou seja, homem/mulher, dia/noite etc., e o mais importante par, o próprio universo: Quatro é produto de dois multiplicado por dois, é um número sagrado para a religião dos pois quatro são os pontos cardeais (norte, sul, leste e oeste) quatro são as estações do ano (primavera, verão, outono e inverno); quatro são as fases da lua 41</p><p>(crescente, minguante, nova e cheia); quatro são os elementos da natu reza (água, terra, fogo e ar). No Candomblé, toda a teogonia pode compreendida a partir do número quatro, pois quatro são os deuse primordiais (Olorum, o Deus Supremo, Oxalá, Exu e Odudua), res ponsáveis pela criação do mundo; quatro são as fases da iniciação (ras pagem, obrigações de um ano, três anos e a festa de se divide em quatro partes (ipadé, xirê, e run); e o obi (noz de cola o fruto sagrado dos deve ter quatro gomos. Finalmente, o número dezesseis, ou seja, o produto de quatro ve zes quatro, é, na verdade, o próprio número quatro em sua plenitude por isso dezesseis dezesseis dezesseis búzios no oráculo etc. O número dezesseis representa um ciclo completo, pois expressa par da vida, isto é, a soma entre sete (número relacionado ao pode masculino) e nove (ligado ao poder feminino), portanto remete à per- petuação da vida, ao nascimento. Os são as forças vivas da natureza, onde o homem deve incluído, e por meio dos elementos se manifestam, expressando seu domínios e o seu vasto poder. Observando a história da criação do mundo vemos que foi da rela ção entre os elementos da natureza que surgiram os deuses: o at (Olorum) se movendo originou a água (Oxalá, ou seja, relação entre e água) e uma parte da matéria que se solidificou formou a terra (Exu e Odudua). Portanto, os e os elementos da natureza estão intrin- secamente ligados e só se pode entender as forças que criaram e man- têm o mundo (orixas) compreendendo a sua relação com os quatro elementos da natureza. Do equilíbrio entre os quatro elementos é que surgiram os sere humanos. Ora, não há dúvida de que cada ser guarda em sua essência um parcela de água, outra de terra, uma de fogo e outra de ar. Vejam: da fusão entre a água e a terra formou-se o barro, com o qual Obatalá moldou corpo dos homens, o fogo serviu para assar esses corpos, dando a eles rigidez e cor, e, finalmente, o sopro de Olodumaré foi o ar da vida. Se fosse possível escolher um símbolo para representar o Can- domblé, a cabaça seria o mais indicado, porque está relacionada a todos 42</p><p>os principalmente aos da água, uma vez que é a representação do ventre, evoca a fertilidade e o poder das grandes mães. E na cabaça que se guardam todos os segredos, todos os encantamentos. Na cabaça resi- dimos, pois a Terra é uma grande cabaça, um grande ventre que abriga os seres vivos. A Terra é a grande cabaça que guarda o segredo da vida, que gera a energia dos quatro elementos e permite a dinâmica entre as forças atuantes no universo: os orixás, os homens e a natureza. Cabe ao homem compreender que solo fértil, onde tudo que se planta dá, pode secar; que o chão que dá frutos e flores pode dar ervas daninhas; que a caça (escassa) se dispersa, e a terra da fartura pode se transformar na terra da penúria, da fome, da destruição. homem precisa entender que de sua boa convivência com a natureza depende sua subsistência, por isso não deve matar um animal se não for se ali- mentar dele, não deve arrancar uma folha sem necessidade, não deve abrir caminhos na floresta por onde jamais passará. ser humano pre- cisa entender que a destruição da natureza é a sua própria destruição, pois a sua essência é a natureza: a sua origem e o seu fim. 43</p><p>2. água: a feminina que comanda o mundo Acima de Deus, nada Abaixo de Deus, a água! A DA ÁGUA Como foi visto na história da criação do mundo, a água precede a form e, mais do que isso, sustenta a criação, pois ao chegar no local indicado para criar a Terra, Odudua encontrou uma extensão ilimitada de água. A água parada e lamacenta como a dos pântanos, que Odudua encontro quando veio criar o mundo, lembra a divindade mais antiga do Candom- blé, Buruku Buruku), uma deusa de origem simultânea à cria- ção do mundo, a representante da memória ancestral do povo negro. A água é a força das Grandes Mães, a força da mulher, a origem da vida Falar da água é falar da energia feminina que comanda o mundo. A água j dominava o mundo antes de a Terra ser criada, a mulher já se anunciava como um ser que nasceu para comandar, para brilhar, para ser exaltada reverenciada, e não para ser submissa ao homem. A água é uma feminina, a terra é feminina. O mundo, portanto, pertence à mulher. A Terra é um planeta composto em sua maioria por água, o corpo contém uma parcela muito grande de água (cerca de 60 por cen- to), as frutas possuem água, assim como muitos vegetais. A água é uma fonte de energia imprescindível, sem a qual não existiria vida. Mares, rios, lagos, cachoeiras, chuvas, fontes infinitas de axé, de força vital. A água é sagrada, principalmente por ser um alimento indispensável</p><p>ao corpo e ao espírito. Ela pode ser a das chuvas, que fertilizam o solo e garantem o sustento, mas também as tempestades repentinas, os rios que transbordam causando as enchentes, a destruição, a morte. Um fragmento de um oriqui de lemanjá (Yemoja), a mais eminente deusa das águas, comprova poder desse elemento: (...) se revira quando vem a ventania Gira rodopia em volta da vila. descontente pontes. A comparação de com um rio revolto é perfeita, um exem- plo bastante comum no mundo inteiro, que tem assistido a inúmeras enchentes que arrastam casas, carros, pessoas e tudo mais que encon- tram pela frente. segura a Nem seria necessário ratificar que a natureza se revolta contra ho- mem, e se vinga. Portanto há que se promover o progresso, mas o progresso consciente, que respeita o ser humano e, sobretudo, a natureza. É a água que mantém e renova a energia do orixa e do homem, portanto, nos rituais do Candomblé, esse elemento não pode faltar, seja nas quartinhas, que devem estar sempre cheias, seja nos sacrifícios; aliás, o primeiro sacrifício do Candomblé é verter água sobre a terra para que a vida seja sempre fértil. ORIXÁS DA ÁGUA Vários orixás participam do elemento água, mas Nana Buruku, lemanjá e Oxum são, sem dúvida, suas mais eminentes representantes. Os domí- nios de cada deusa, evidentemente, são distintos, mas juntas elas podem controlar o mundo, relacionadas que estão à fecundidade e à riqueza. Buruku é a mais antiga deusa das águas e do Candomblé. Seus domínios são as águas paradas e lamacentas dos pântanos e lagoas. Também está relacionada à agricultura e às chuvas que fertilizam o solo. 45</p><p>Embora as águas paradas tenham uma aparência morta, guardam suas profundezas o segredo da vida, a síntese de Nanã Buruku, os mis térios do renascimento. é a deusa de todas as águas do mundo, doces ou Na África, é representada por um rio que corre para o mar, mas Brasil converteu-se na rainha do mar, a mãe de todos os homens, pois mar é o grande símbolo de união entre os povos, por isso considerada a grande mãe - a mãe de todos os filhos (iya gbogbo Oxum domina as águas doces dos rios, nascentes e cachoeiras. A gumas de suas qualidades estão relacionadas a lagoas e chuva. É cons derada a mais bela deusa do panteão africano, a mais sensual. também amor e a fertilidade, protegendo as mulheres parturientes. Olokum é a mais bela e rica deusa que a África já conh ceu, a senhora do mar, que guarda todas as riquezas do mundo, a mãe Oloxa na África, é considerada a divindade de un lagoa onde deságuam vários rios. No Brasil, é cultuada com uma qualidade de Averekué é o jeje que habita as espumas do mar e gosta receber orobô como oferenda. E um deus que garante riqueza e ridade que o agradam. é a divindade do rio Yewa, que corre na África paralelamente rio Ogum; em certas histórias é confundida com Erinlé é o deus do rio de mesmo nome, situado na região de Ijesá; é un deus da caça, um caçador de Na região de Ilobu é feito o culto a rio e ao orixa Erinlé, às margens do lugares profundos. No Brasil, é uma di qualidades de caçador. Erinlé teve um filho com Ipondá Logun Edé, que também participa do elemento água. Como do movimento, Oxumaré participa do elemento águ quando ela sobe aos céus em forma de vapor e cai novamente sobre terra em forma de chuva. É o dos ciclos. Obá assim como é, na África, a deusa do de mesmo nome, mas no Brasil passou a ser associada ao elemento fogo Finalmente, vale lembrar que todos os anos em inúmeros Candomble realiza-se a cerimônia das águas de Oxalá. Essa festa marca o início de un novo ciclo, de um novo ano. Oxalá é a água da limpeza e da renovação. 46</p><p>3. a mantenedora da vida A terra não pertence ao homem, 0 homem pertence à terra. Iodas as coisas estão ligadas, assim como sangue nos une a todos. O homem não tecen a rede da vida, é apenas um dos fios dela. O que quer que ele à rede, fará a si mesmo. CHEFE SEATTLE A IMPORTÂNCIA DA TERRA A terra é uma força que vem completar, com o elemento água, a compo- sição do planeta, possibilitando (com os outros elementos essenciais: fogo e ar) a criação e manutenção da vida humana. Pode-se dizer que duas grandes forças femininas dominam este planeta: a água e a terra. Sabe-se que o homem é um animal que se diferencia dos demais por sua capacidade de pensar, por sua racionalidade. No entanto, se mos o ser humano sem essa capacidade, perceberíamos a sua fragilidade diante dos outros animais. Na verdade, o homem não conseguiria se adaptar naturalmente sequer às condições climáticas da Terra, nem po- deria se defender de animais selvagens ou buscar os alimentos necessá- rios à sua subsistência. Ocorre que a natureza foi generosa com os seres humanos, tirou-lhes garras e presas e lhes deu inteligência para utilizar os recursos de que</p><p>dispunham e transformá-los em utensílios e objetos que auxiliaram sua sobrevivência. Assim, homem pôde criar a lança e transformar o predador em caça, pôde transformar galhos, barro e folhas em ou seja, pôde conviver com a natureza e utilizá-la em seu benefício. A terra é a grande mantenedora do homem em sua trajetória, é que fornece os animais e os frutos para a sua alimentação; nela o mem se fixa e estabelece sua tribo, é dela que advêm todos os metais minérios que possibilitam a evolução e o progresso humano. Se a água é a origem - afinal as mães são a origem a terra é continuidade, a manutenção, o sustento, o progresso. Se a água pári, a cria, nutre e abriga, completando a função da água no ciclo da vida. Por tudo que foi dito, fica evidente que o elemento terra relacionado à fertilidade; sendo assim, o culto à terra é fundament para a manutenção da vida. Nos Candomblés de tradição não P dem faltar os assentamentos de ou (este mais cultuado n Candomblés de pois são deuses que representam a terra, melhor, são a própria terra - a morada dos homens que deve preservada, fertilizada e cultivada, para que a vida não pereça, para o mundo não acabe. DA TERRA Embora seja um elemento feminino, a grande maioria dos orix da terra é do sexo masculino. primeiro deles é Exu, a terra da mag do poder, da transformação. Ogum é a terra do avanço, da tecnolog das guerras, da conquista. Oxóssi é a terra da fartura, da caça, da al mentação. Omolu (Omolu), a terra das epidemias, das doenças, das CL ras. Ossaim terra das folhas medicinais e litúrgicas. Oxuma é a terra dos movimentos e dos ciclos. Logun Edé é a terra da riqueza da beleza. A deusa Ewá também participa do elemento terra hábil ra no seio da mata virgem, a terra dos mistérios. Buruku do elemento terra por ser uma deusa das águas paradas e pantanosas da lama, ou seja, da fusão entre terra e água. 48</p><p>Okó é o deus da agricultura; Odudua é o civilizador que, de acordo com a tradição de Ifé, criou a Terra. Na região de Oyó, acredita-se que Oranian cumpriu a importante tarefa de criar a Terra, por isso tornou-se seu patrono. Iroko é um orixá da floresta, das grandes árvores centenárias, especialmente a que leva o seu nome. Babá-Egum e Iyá-Mi Oxorongá não são exatamente orixás, enquadram-se no conceito de ancestral, e justa- mente por isso estão ligados à terra. A terra congraça, certamente, o maior número de Perten- cem ao elemento terra os deuses mais perigosos, que comandam, en- tre outras coisas, a alimentação, as guerras, as doenças, a vida e a morte; é por isso que o culto a esses deuses nunca deve ser esquecido ou negligenciado. 49</p><p>4. FOGO: o poder da transformação O fogo é a noturna dos em expedição, assim como das e que ficam no abrigo sedentário; fogo cria 0 lar, local de proteção e de refúgio; fogo permite sono profundo do homem (...) Até é possível que 0 fogo favorega 0 crescimento e a liberdade do sonho... EDGAR A IMPORTÂNCIA DO FOGO A evolução humana atingiu um estágio muito avançado a partir d momento em que o homem dominou o fogo. É relevante esclarecer todos os elementos da natureza só começam a fazer sentido para homem quando são revertidos em seu benefício. A conquista do fog foi certamente um processo mais complicado, uma vez que o perig que este elemento encerra é muito mais imediato. Sendo assim, os meiros homens que conseguiram dominar o fogo tornaram-se os ma poderosos e quase sempre lhes é atribuído um caráter mágico e sagrad como acontece com os ferreiros em quase todas as culturas. A impressão que se tem é que as coisas só passam a existir quando homem toma conhecimento delas. fogo sempre esteve na natureza: interior da Terra, nas faíscas elétricas dos raios, no sol, mas somente do o homem aprendeu a produzi-lo é que a vida pôde ser transformada</p><p>grande poder do fogo reside na capacidade que possui de trans- formar as coisas, no grande impacto que produz na vida humana. fogo transforma o metal, o alimento, a organização da tribo e o próprio homem, que ao dominá-lo deixa de ser vulnerável, afastando de si todos os perigos da escuridão da noite. Em torno do fogo é que surgiram as primeiras sociedades, pois já não havia necessidade de fugir dos predadores e a tribo poderia se fixar num mesmo local por mais tempo. Além disso, cozinhar os alimentos deu outra qualidade de vida ao ser humano, facilitando não só a mas- tigação e a digestão, mas produzindo modificações, inclusive biológi- cas, e conduzindo o homem a outra etapa da cultura. Quando se fala em fogo, remete-se inevitavelmente aos perigos de lidar com ele, e aqueles que trabalham e dominam um elemento tão perigoso tornam-se portadores de grande poder, inclusive de poderes mágicos. Basta imaginar a relação dos homens nos primórdios da histo- ria com aqueles que sabiam produzir o fogo. Tudo que passa pelo fogo se transforma, o próprio homem, com o advento do fogo, se transformou. Entre os orixás, aqueles que domi- nam o fogo expressam de maneira mais expansiva seu poder. Existem dois tipos de fogo controlado pelos deuses africanos, o primeiro se chama izô e é o fogo no âmbito da natureza, que destrói, que o homem não domina; manifesta-se nas lavas vulcânicas, nos raios, no sol e em outros elementos que simples mortais não ousariam enfrentar. segundo tipo de fogo se chama inã que é o elemento usado em benefício do homem, o fogo que cozinha os alimentos, que ilumina os caminhos, que protege. Os orixás o próprio fogo, pegam um elemento que poderia destruir qualquer um e mostram a utilidade que tem para a vida e sua manutenção. Aquilo que poderia significar a destruição da huma- nidade, se usado com a devida precaução, pode reverter-se no grande elemento da transformação da vida. fogo é a luz no caminho do homem, guiando-o na direção do progresso. 51</p><p>ORIXÁS DO FOGO Por estar relacionado à transformação e ao poder, o fogo ren imediatamente à figura de dois poderosos orixás: Exu e Xangô primeiro está mais diretamente relacionado à transformação, à e à introdução da cultura no mundo humano; há inclusive cantigas que Exu como senhor do fogo Iná). Em sentido Exu é o próprio fogo, representando a grande explosão que origem ao universo. Xangô é do poder, o grande rei da cidade de sempre gostou de desafiar o perigo. Mandou que sua primeira esp fosse buscar um encantamento que lhe possibilitaria soltar f pela boca. lansã atendeu o marido, mas antes também provou do feit e passou a soltar labaredas quando falava. traz o fogo dentro si e consegue dominar fogo da natureza, por isso é saudado como e pai do fogo. entre os seus deve ter sido o primeiro a produ o fogo, a dominar tão precioso segredo, e desse fato advém poder que conquistou. a deusa dos ventos e das tempestades, poderia ser confun da com uma deusa do ar, já que o vento nada mais é do que o ar movimento, e este é uma representação do fogo e o vento é o seu gran propagador. Obá também relaciona-se ao fogo por meio do movimen já que é a deusa das águas revoltas, cujo impacto é fonte de poder energia, gerando inclusive a luz. Ogum, Grande Ferreiro, é o domesticador do fogo, pois ao us lo para forjar os metais, ao fazer desse elemento seu instrumento trabalho, comprova que o homem é capaz de controlar a naturez utilizá-la em benefício de todos. 52</p><p>5. a da vida Entre todos os elementos da natureza, ar é único que não pode ser visto. Ninguém Deus. PAI CIDO A IMPORTÂNCIA DO AR Ar é sinônimo de vida. Uma pessoa pode ficar dias e dias sem comer ou beber água, mas ninguém consegue ficar normalmente muitos minutos sem respirar. sopro é a essência da vida; se não houver ar, a vida também não pode existir. Quando se diz que o ar é a essência da vida, não é apenas à vida humana que se está referindo. Todos os elementos dependem do ar, todos os seres, animais ou vegetais, que vivem na terra ou nas águas precisam de ar. fogo, por exemplo, só se mantém se houver oxigênio; da mesma forma a água e a terra, para que a vida floresça, precisam do ar. ar é invisível, não tem cheiro, não tem gosto, mas ninguém duvida de sua todos senti-lo e que enquanto existência, conseguirem pois conseguem para dentro atmosfera, de sabem si. As é só existirão desco- Deus levar o ar pessoas nhecem, no entanto, que o ar, ou melhor, a o próprio Supremo Olodumaré, e, portanto, todos respiram deus e guardam um</p><p>pouco da essência divina dentro de si. Estar vivo é estar com Deus, é a certeza de que Olodumaré existe, muito embora não possamos vê- Como já vimos, o ar está intimamente ligado à criação, pois foi movimentação de uma intensa massa de ar, que era o próprio Olodum que surgiram os que criaram o mundo e, por conseguinte, os outros elementos da natureza. Quando nos referimos ao planeta T ra, a água torna-se o primeiro elemento, mas o universo inclui out componentes e só a atmosfera preenche o vácuo que se forma entre mundos: o mundo físico, dos homens e o mundo sobrenatur dos deuses (orum). O ar, portanto, é o elemento da totalidade, da criação e da ção da vida. Sem ar a existência não aconteceria, o mundo não surgido e o nada seria o único elemento. Quando a atmosfera, o nada, começou a se mover, a existência aconteceu, a vida surgiu Olodumaré habitou em cada homem, em cada ser; ele permeou todos elementos da natureza e mostrou que a vida só é possível com sua sença, que não deve ser vista, nem tem que ser sentida como mais poderosa das forças, a que mantém os homens com vida. DO AR Todos os deuses da criação estão ligados ao elemento ar. Assim, orixás funfun, já que a atmosfera é a sua origem, são os grand deuses do ar. Entre eles, Oxalufa e Oxaguia são mais conhecidos e cultuados no Brasil, mas há pelo menos 154 orix funfun conhecidos na África, dos quais poucos passaram a ser cultuad no Brasil como qualidades das duas configurações principais de Oxalá Além de Oxalufa e são conhecidos como deuses da cri ção, e portanto funfun, Odudua, Orunmilá, Ajalá, Obatalá, Okin, orixá Babá Babá Epé, Ajaguná, orixá Ijugbè, orixá Akir Baba Igbó, Ifuru, entre outros, que não chegam a constituir orixás ind pendentes, sendo cultuados como qualidades de Oxalá. 54</p><p>00 s parte 2 On oh ANCESTRAL DIVINIZADO de na como de conhecido A experiencia mis- e</p><p>a do candomblé Exu veio da África, das bandas da Nigéria, do Dahomey, de Angola, do Congo, com os demais canto a num navio de ao tempo do comércio JORGE AMADO</p>