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psicanálise dos transtornos alimentares

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<p>Sumário</p><p>“O	bêbado	e	o	equilibrista”</p><p>Aline	Eugênia	Camargo</p><p>O	estatuto	do	corpo	e	a	anorexia	nervosa</p><p>Ana	Paula	Gonzaga</p><p>A	relevância	da	interação	da	equipe	multidisciplinar	fora	das</p><p>instituições</p><p>Ana	Tereza	Arantes	De	Almeida	Alonso</p><p>Corpo	e	virtualidade</p><p>Camila	Deneno	Perez</p><p>Patricia	Gipsztejn	Jacobsohn</p><p>Bulimia:	o	objeto	“necessário”</p><p>Camila	Peixoto	Farias</p><p>Marta	Rezende	Cardoso</p><p>Notas	sobre	o	abandono	do	tratamento</p><p>Flávia	Machado	Seidinger-Leibovitz</p><p>Carla	Maria	Vieira</p><p>Larissa	Rodrigues</p><p>Relação	mãe-filha</p><p>Christiane	Baldin	Adami-Lauand</p><p>Fabiana	Elias	Goulart	de	Andrade	Moura</p><p>Rosane	Pilot	Pessa</p><p>As	marcas	no	corpo</p><p>Cybelle	Weinberg</p><p>Cinderelas	contemporâneas</p><p>Fabiana	Maria	Gama	Pereira</p><p>Elisa	Gan</p><p>Considerações	psicanalíticas	sobre	a	compulsão	alimentar</p><p>Fernanda	Kalil</p><p>Revisitando	a	técnica	psicanalítica	no	atendimento	a	pacientes	com</p><p>transtornos	alimentares</p><p>Gabriela	Malzyner</p><p>Anorexia</p><p>Jaqueline	Pinto	Cardoso</p><p>Que	conversa	é	essa?</p><p>Marina	Fibe	De	Cicco</p><p>A	anorexia	e	a	bulimia	em	Freud</p><p>Maria	Helena	Fernandes</p><p>Dos	transtornos	alimentares	aos	transtornos	dismórficos	corporais</p><p>Marina	Ramalho	Miranda</p><p>Entrelaces	psíquicos	entre	mães	e	filhas</p><p>Marina	F.	R.	Ribeiro</p><p>Sobre	o	exercício	da	clínica	dos	transtornos	alimentares</p><p>Patricia	Gipsztejn	Jacobsohn</p><p>A	construção	simbólica	em	pacientes	com	fome	de	estórias</p><p>Talita	Azambuja	Nacif</p><p>Thais	Fonseca	de	Andrade</p><p>Autores</p><p>Apresentação</p><p>“O	método	psicanalítico	tem	sido	alvo	de	questionamentos	e	discussão	no	que	diz</p><p>respeito	à	sua	atualidade	como	prática	terapêutica	que	se	mostre	eficaz	na	escuta	e</p><p>contenção	 das	 formas	 de	 sofrimento	 e	 gozo	 assumidas	 pelas	 subjetividades</p><p>contemporâneas.”</p><p>Com	estas	palavras,	o	saudoso	Prof.	Homero	Vettorazzo	Filho	iniciou	o	texto	da</p><p>contracapa	do	primeiro	volume	do	Psicanálise	de	Transtornos	Alimentares,	em	2010,	no</p><p>qual	 afirmou	“que	 a	 atualidade	 e	 a	 vitalidade	da	Psicanálise	 dependem	de	que	os</p><p>psicanalistas	 tenham	 sua	 experiência	 clínica	 como	 espaço	 para	 levantar</p><p>interrogantes	 que	 lhes	 permitam	 questionar	 e	 revisar	 as	 teorias	 psicanalíticas,</p><p>separando	 elementos	 fecundos	 e	 insaturados	 de	 conceitos	 repetidos	 como</p><p>convicções	estéreis”.</p><p>Este	segundo	volume	vem	comprovar	que	a	Psicanálise	pode	ser	viva,	frutífera	e</p><p>servir	de	base	para	novas	pesquisas,	quando	trabalhada	em	um	grupo	de	estudos	e</p><p>atendimento,	nos	moldes	da	CEPPAN.</p><p>Com	muito	orgulho,	 podemos	 afirmar	 que	um	dos	nossos	objetivos	 iniciais,	 a</p><p>divulgação	de	conhecimentos	 adquiridos	 sobre	os	 transtornos	alimentares,	 tem	se</p><p>mantido	 e	 consolidado	 nos	 últimos	 anos,	 abrindo	 espaços	 de	 interlocução	 com</p><p>profissionais	envolvidos	com	essa	temática.</p><p>Agradecemos,	 aqui,	 a	 esses	 profissionais	 que	 aceitaram	 nosso	 convite	 para</p><p>participar	desta	publicação,	compartilhando	conosco	sua	experiência	clínica	e	suas</p><p>pesquisas	metapsicológicas.	Com	eles,	nós	da	CEPPAN	nos	sentimos	fortalecidos</p><p>para	 continuar	 no	 caminho	 da	 compreensão	 e	 da	 sustentação	 da	 Psicanálise	 no</p><p>campo	dos	transtornos	alimentares.</p><p>–	Cybelle	Weinberg</p><p>Coordenadora	da	CEPPAN</p><p>“O	BÊBADO	E	O	EQUILIBRISTA”</p><p>Atuações	e	comportamentos	autocalmantes	no	devir</p><p>dos	quadros	de	transtornos	alimentares</p><p>Aline	Eugênia	Camargo</p><p>Sobre	os	deslocamentos	dos	sintomas	alimentares</p><p>No	dia	a	dia	da	clínica,	é	comum	nos	depararmos	com	os	ecos	de	problemáticas</p><p>alimentares	 vividas	 por	 nossos	 pacientes	 no	 passado,	 frequentemente	 na</p><p>adolescência,	 às	 vezes	 também	 na	 infância.	 Muitos	 relatos	 revelam	 sintomas	 de</p><p>anorexia	 ou	 de	 bulimia	 propriamente	 ditas,	 ou	 mesmo	 de	 outras	 manifestações</p><p>sintomáticas	 ligadas	à	 inibição	ou	aos	excessos	no	campo	alimentar.	Tais	ecos	nos</p><p>trazem	informações	de	uma	época	em	que	corpo,	comportamento	e	relação	com	o</p><p>outro	 faziam	 parte	 de	 uma	mesma	 unidade.	 Embora	 superada	 ao	 longo	 da	 vida,</p><p>essa	 sintomática	deixa	 suas	marcas	 em	uma	história	de	 traumatismos	precoces.	A</p><p>presença	 desses	 traumatismos	 e	 seus	 efeitos	 sobre	 o	 psiquismo	 pode	 ser</p><p>reconhecida	na	vida	do	sujeito	muitos	anos	depois,	manifestando-se	clinicamente	de</p><p>diferentes	formas.</p><p>Podemos	 acompanhar	 no	 processo	 analítico	 o	 deslocamento	 dos	 sintomas</p><p>quando	estes	se	constituem	em	expressões	simbólicas	dos	conflitos,	que,	como	nos</p><p>sonhos,	 revelam	 movimentos	 de	 elaboração.	 Quando	 isso	 não	 acontece,</p><p>observamos	 na	 análise	 uma	 série	 infindável	 de	 atuações,	 as	 quais,	 no	 entanto,</p><p>podem	 ir	 adquirindo	um	aspecto	de	mudança,	 construindo	uma	 trilha	 elaborativa</p><p>que	respeita	o	caminho,	ainda	a	ser	percorrido,	da	ação	ao	pensamento.	A	clínica,	tal</p><p>como	 se	 apresenta	 na	 atualidade,	 tem	 nos	 ensinado	 e	 desafiado	 a	 seguir</p><p>investigando	na	direção	de	uma	maior	compreensão	desses	processos	que	remetem</p><p>à	 dimensão	 do	 arcaico,	 daquilo	 que	 se	 encontra	 aquém	 do	 universo	 da</p><p>representação,	 bem	 como	 o	 caminho	 desses	 processos	 psíquicos	 ao	 longo	 da</p><p>análise.</p><p>A	diversidade	de	manifestações	sintomáticas	encontrada	na	clínica	atual,	em	suas</p><p>muitas	possibilidades	de	composição,	nos	 remete	à	 investigação	do	campo	que	 se</p><p>estende	 para	 além	 da	 neurose,	 nas	 patologias	 ligadas	 às	 falhas	 estruturais	 na</p><p>formação	do	psiquismo.	Dessa	condição	resultam	funcionamentos	psíquicos,	como</p><p>as	 neuroses	 mal	 focalizadas,	 funcionamentos	 nos	 quais	 convivem	 diversos</p><p>mecanismos	psíquicos	em	arranjos	pouco	estáveis,	que	se	alteram	ao	longo	da	vida</p><p>em	 face	 das	 experiências	 e	 em	 virtude	 dos	 laços	 afetivos.	 Entendemos	 esse</p><p>funcionamento	como	o	resultado	de	um	equilíbrio	que,	embora	alcançado,	constitui</p><p>um	arranjo	precário,	metaforizado	na	dupla	 formada	pelo	bêbado	e	o	equilibrista.</p><p>Escutar	 na	 clínica	 esses	 ecos	 e	 acompanhar	 seu	 percurso	 e	 suas	 transformações</p><p>pode	 ser	 muito	 esclarecedor,	 auxiliando	 nas	 difíceis	 trilhas	 que	 o	 analista	 tem	 a</p><p>percorrer	no	corpo	a	corpo	de	determinados	casos.</p><p>Encontramos,	 na	 literatura	 sobre	 transtornos	 alimentares,	 o	 tema	 de	 que	 no</p><p>devir	 desses	 casos,	 ao	 longo	 da	 análise	 ou	 pelo	 conjunto	 de	 tratamentos	 a	 eles</p><p>dedicados,	 os	 sintomas	 da	 problemática	 alimentar	 saem	 de	 foco.	 Desse	 modo,</p><p>abrem	 espaço	 para	 a	 estruturação	 psíquica	 por	 trás	 deles,	 suas	 organizações	 e</p><p>desorganizações,	bem	como	seus	arranjos	defensivos	com	os	quais	o	sujeito	agora</p><p>tem	de	 se	deparar.	O	desenrolar	desses	elementos	 revela	uma	busca	do	equilíbrio</p><p>pela	ação	e	pelas	sensações	vividas	no	corpo,	ou	seja,	pelo	embate	em	um	registro</p><p>corporal	(JEAMMET,	1999).</p><p>É	 nesse	 sentido	 que	 apresentamos	 um	 caso	 no	 qual	 vemos	 a	 possibilidade	 de</p><p>relacionar	vários	aspectos	desse	vasto	campo	que	envolve	a	vida	contemporânea	e</p><p>seus	 excessos,	 em	 que	 um	 sintoma	 de	 transtorno	 alimentar	 na	 adolescência</p><p>repercute	no	momento	atual.	No	trabalho	de	análise,	consideramos	fundamental	a</p><p>compreensão	de	como	a	reedição	de	elementos	arcaicos	da	constituição	psíquica	em</p><p>suas	reorganizações	no	momento	da	puberdade	e	adolescência	 influi	na	formação</p><p>posterior	dos	sintomas.</p><p>Lembramos	a	importância	para	a	psicanálise	da	investigação	por	meio	dos	casos</p><p>clínicos	e	de	como	o	estudo	de	caso</p><p>pode	ser	revelador	da	subjetividade	e	das	manifestações	 idiossincráticas	do	viver	e</p><p>do	adoecer	[…]	constituindo	um	campo	de	observação	particular	que	permite	tanto</p><p>a	 construção,	 verificação	 e	 transformação	 da	 teoria	 como	 o	 desenvolvimento	 de</p><p>dispositivos	 terapêuticos	 específicos	 para	 o	 tratamento	 com	 cada	 paciente</p><p>(SOARES	et	al.,	2015,	p.	11).</p><p>A	análise	se	processa	em	meio	às	atuações	da	paciente	com	relação	a	uma	busca</p><p>de	mudança,	que	envolvia	trabalho,	estilo	de	vida	na	direção	de	maior	prazer	e	de</p><p>uma	 rotina	 mais	 “saudável”.	 Acompanhamos	 as	 idas	 e	 vindas	 dos	 excessos,	 as</p><p>angústias	decorrentes	destes,	e	os	deslocamentos	de	certo	comportamento	aditivo,</p><p>bem	como	a	passagem	para	comportamentos	de	risco.</p><p>Maria	procura	análise	por	dificuldades	no	 trabalho.	Relata	que	 tudo	o	mais	vai</p><p>bem:	 casamento,	 relações	 familiares,	 amizades,</p><p>hierarquia	 saudável	 entre	 pais	 e	 filhos	para	 ideais,	 valores	 e</p><p>convicções	 serem	 recebidos	 em	 alto	 grau	 e	 assim	 sustentarem	 uma	 “voz”	 ativa,</p><p>forte,	atuante	e	norteadora.</p><p>Salvador	Minuchin	 (1995)	 estuda	 as	 famílias	 e	 suas	 estruturas	 e	defende	que	 a</p><p>família	exerce	o	lugar	de	“matriz	de	identidade”.	Apresenta	a	ideia	de	que	a	forma</p><p>como	uma	pessoa	interage,	se	relaciona	e	se	comporta	está	intimamente	articulada</p><p>ao	modo	como	a	família	se	estrutura.</p><p>O	 benefício	 transferencial	 no	 tratamento	 dos	 transtornos</p><p>alimentares	 em	 um	 processo	 de	 análise	 como	 parte	 integrada	 a</p><p>uma	equipe	multidisciplinar</p><p>Foi	 em	 1905	 que	 Freud	 se	 deparou	 com	 a	 potente	 força	 da	 transferência,</p><p>necessitando	pensar	sobre	a	interrupção	do	processo	analítico	de	Dora.	Ele	se	deu</p><p>conta	 de	 que	 o	 paciente	 irá	 reviver	 emoções	 na	 intimidade	 da	 relação	 analítica	 –</p><p>transferencialmente	projetados	na	relação	e	na	figura	do	analista	–,	sem	idade,	sem</p><p>lugar	e	sem	tempo.</p><p>O	 setting	 terapêutico,	 como	 pensa	 Balint	 (2014),	 tem	 como	 função	 primordial</p><p>garantir	 um	 espaço	 protegido	 de	 urgências	 de	 tempo,	 estímulos	 e	 isento	 de</p><p>julgamento	crítico.	“[…]	Penso	que	o	analista	deve	fazer	uma	aposta	no	tempo	e	na</p><p>relação,	 e	 aguentar	 esperar	 que	 o	 paciente,	 sustentado	 por	 uma	 relação	 analítica</p><p>confiável	 e	 não	 invasiva,	 encontre	 uma	 forma	 de	 recolocar-se	 no	 caminho	 do</p><p>desenvolvimento.”	(p.	137).</p><p>É	 nessa	 relação	 que	 considera	 que	 o	 tempo	 interno	 é	 diferente	 do	 tempo</p><p>externo,	que	não	atende	a	uma	linearidade,	que	se	estabelece	a	plenitude	da	relação</p><p>entre	paciente	e	analista.</p><p>Figueiredo	 (2002)	 nos	 diz	 que	 “a	 figura	 do	 analista	 inserida	 numa	 das</p><p>constelações	 psíquicas	 que	 o	 paciente	 organizou	 ao	 longo	 de	 suas	 experiências</p><p>emocionais	 aciona,	 a	 um	 só	 tempo	 transferência	 e	 resistência,	 alavancando	 a</p><p>dinâmica	do	tratamento”	(p.2).</p><p>Este	lugar	da	intimidade	tem	como	comandante	qualquer	pensamento,	devaneio</p><p>ou	 sonho,	 porém,	 na	 clínica	 dos	 transtornos	 alimentares,	 essa	 potencialidade	 é</p><p>extremamente	precária.</p><p>O	benefício	de	uma	análise	como	parte	integrada	a	uma	equipe	multidisciplinar</p><p>ocorre	antes	mesmo	da	chegada	em	nossos	consultórios	e	ao	 longo	das	primeiras</p><p>entrevistas,	 em	 que	 a	 equipe	 será	 responsável	 por	 informar	 a	 necessidade</p><p>indispensável	do	processo	e	esclarecer	algumas	dúvidas	tanto	do	paciente	como	de</p><p>seus	 familiares,	 fornecendo,	 desse	 modo,	 o	 amparo	 necessário	 para	 a	 busca	 da</p><p>terapia.	Muitas	vezes	é	 somente	com	esse	 firme	sustentar	da	extrema	necessidade</p><p>do	 processo	 psicoterapêutico,	 encontro	 após	 encontro,	 com	 o	 ritmo	 das	 idas	 e</p><p>vindas,	 que	 a	 relação	 analítica	 pode	 se	 estabelecer,	 fortalecer	 e	 atingir	 na</p><p>transferência	 todo	 o	 potencial	 do	 trabalho.	O	 resultante	 é	 a	 construção	 do	 setting</p><p>terapêutico	 simbólico	 capaz	 de	 oferecer	 tal	 espaço	 de	 intimidade	 para	 que	 o</p><p>paciente	–	dentro	de	seu	percurso	autoral	da	construção	de	sua	própria	narrativa	–</p><p>possa	vir	a	ser.</p><p>Para	podermos	nos	dedicar	ao	“mergulho	simbólico”	em	direção	à	construção</p><p>dos	 aspectos	 psíquicos,	 precisaremos	 contar	 com	 o	 psiquiatra	 e	 o	 nutricionista</p><p>atentos	 ao	 que	 é	 mais	 concreto,	 como	 o	 peso	 que	 a	 balança	 marca	 semanal	 ou</p><p>quinzenalmente,	 o	 IMC,	 as	 taxas	 sanguíneas	 (anemia,	 falta	 de	 ferro),	 o	 sinal</p><p>vermelho	do	ritmo	cardíaco,	a	falta	de	ar,	a	necessidade	ou	não	da	medicação	para</p><p>lidar	com	comorbidades,	como	depressão,	ansiedade,	falta	de	sono,	impulsividade…</p><p>Outra	 questão	 é	 a	 falta	 do	 “contorno	 primordial”	 e	 do	 “tamanho	 simbólico”</p><p>daquele	 sujeito,	 questões	 que	 assolam	 seu	 psiquismo.	 A	 meu	 ver,	 a	 equipe</p><p>constituída,	 constante	 e	 atuante	 promove	 simbolicamente	 uma	 vivência	 de</p><p>contorno,	 uma	 borda,	 o	 traçado	 que	 indicará	 –	 principalmente	 em	 momentos</p><p>extremos	–	o	limite,	o	risco,	a	direção	a	seguir.	Outro	dia,	em	uma	reunião	com	a</p><p>equipe	clínica,	uma	paciente	disse:	“Eu	não	quero,	não	vai	ser	fácil,	mas,	por	outro</p><p>lado,	 vejo	 vocês	 como	 meu	 paraquedas	 reserva,	 que,	 quando	 eu	 não	 consigo</p><p>sozinha,	não	vão	deixar	eu	me	esborrachar”.	Assim,	a	equipe	será	responsável	por</p><p>acionar	alertas	vermelhos	para	a	paciente	e	para	a	família	que,	 imersos	em	formas</p><p>de	se	relacionar	por	anos	a	fio,	não	conseguem	apreender	os	aspectos	de	exclusão,</p><p>controle,	onipotência	e	fusionalidade	que	operam	nas	relações.</p><p>A	 relação	 analítica,	 como	 sabemos,	 tem	 como	 material	 de	 trabalho	 as</p><p>resistências,	 atuações	 e	 outros	 funcionamentos	 psíquicos,	 mas,	 no	 que	 tange	 a</p><p>dinâmica	 familiar,	 será	 no	 contato	 com	 o	 psiquiatra	 e	 o	 nutricionista	 que	 esta</p><p>questão	será	trabalhada.	O	posicionamento	do	terapeuta	deve	salvaguardar	a	relação</p><p>do	 sujeito	 com	 o	 corpo	 psíquico	 que,	 ainda	 sem	 a	 intensidade	 dos	 contornos	 e</p><p>limites	 psíquicos	 necessários	 para	 o	 amparar,	 escancara	 a	 carência	 nutricional</p><p>psíquica	mediante	 um	 intenso	 vazio	 ou	 um	 esparramar	 que	 transborda	 e	 conduz</p><p>aquilo	 que	 poderia	 vir	 a	 ser	 um	 pensamento,	 para	 o	 ralo.	 A	 voz	 “fraca”	 ou</p><p>desorganizada,	mas	 única	 possível,	 precisa,	 de	 quietude	 e	 silêncio	 de	 atuações	 da</p><p>família	 para	 poder	 ser	 “ouvida”,	 fertilizando	 devaneios,	 explicitando	 fantasmas	 e</p><p>seguindo	na	direção	de	provocar	questionamentos	no	sujeito,	para	que	ele	possa	se</p><p>implicar	consigo	mesmo.</p><p>O	 setting	 terapêutico	 deve	 ser	 resguardado	 de	 invasões	 e	 transbordamentos</p><p>concretos	 dos	 familiares.	 Quando	 estamos	 diante	 do	 convite	 à	 fusionalidade,</p><p>qualquer	 familiar	 sendo	 a	 voz	 do	 paciente	 é	 prejudicial	 para	 esses	 “passos”	 com</p><p>traços	ainda	tão	primitivos.</p><p>Gurfinkel	(2010,	p.	78-79),	afirma	que</p><p>Neste	ponto	passamos	a	falar	da	transferência	e	seu	complexo	interjogo,	pensamos</p><p>que	o	contexto	clínico	do	enquadre	pode	ser	entendido	como	um	importante	ritual</p><p>que	regula	a	aproximação	entre	o	sujeito	e	seu	analista.	Enquanto	a	representação</p><p>dos	braços	da	mãe,	ele	pode	auxiliar	na	contenção	da	pulsionalidade	e	da	tendência</p><p>ao	ato	ou	da	impulsividade,	por	meio	de	uma	presença	do	outro	que	possa	“cuidar”,</p><p>regulando	o	excesso	de	excitação	que	assola	o	sujeito.</p><p>Essa	 constância	 se	 repete	 na	 análise,	 e	 estamos	 diante	 da	 possibilidade	 de</p><p>reeditar,	 na	 transferência,	 aquelas	 primeiras	 vivências	 que	 falamos	 no	 início,	 a</p><p>conquista	de	reviver	essa	dependência	e	esse	olhar	libidinizador.</p><p>Nosso	 manejo	 clínico	 deve	 atentar	 para	 a	 problemática	 da	 intensidade	 de</p><p>investimento	referida	anteriormente	no	texto,	nem	de	mais,	nem	de	menos,	a	justa</p><p>medida	entre	aridez	e	excesso	extremos	como	destruidores.	Ponto	que	corresponde</p><p>com	 nossa	 postura	 como	 analistas,	 a	 necessidade	 de	 sermos	 mais	 ativos,	 mais</p><p>tolerantes	com	o	não	saber,	e	jamais	atropelando	a	construção	do	saber	sobre	eles</p><p>mesmos.	 Esses	 pacientes	 nos	 apresentam	 um	 vazio	 simbólico	 e,	 muitas	 vezes,</p><p>escassa	possibilidade	de	associação.</p><p>Outra	questão	potencial	no	tratamento	multidisciplinar	é	a	vivência	do	paciente</p><p>nos	 diferentes	 espaços,	 a	 experiência	 emocional	 de	 ser	 “olhado”	 e	 “cuidado”,	 se</p><p>“olhar”,	se	“pensar”	e	se	“cuidar”	dentro	de	cada	especificidade	profissional.	Será</p><p>nessa	 diversidade	 de	 vivências	 que	 pode	 ocorrer	 uma	 ampliação	 de	 seus</p><p>investimentos	tão	restritos.	Aqui	menciono	que	a	carta	da	paciente	para	seu	corpo</p><p>citada	 neste	 capítulo	 “nasceu”	 de	 uma	 reflexão	 entre	 ela	 e	 a	 nutricionista	 e,</p><p>explicitando	 a	 riqueza	 transferencial	 e	 o	 bom	 uso	 desses	 diferentes	 espaços,	 foi</p><p>trazida	pela	paciente	para	seu	espaço	analítico	e	alimentou	suas	associações.</p><p>Dessa	forma,	cada	profissional	em	determinado	momento	do	tratamento	poderá</p><p>–	 como	 em	 uma	 dança	 das	 cadeiras	 –	 receber	 diferentes	 projeções</p><p>predominantemente.	 Teremos	 fúria	 narcísica,	 temores,	 competição,	 controle,</p><p>movimentos	 de	 reparação,	 prazer,	 desprazer,	 conquista,	 fracasso,	 dar-se	 conta	 da</p><p>falta,</p><p>do	 desejo	 (amoroso	 e	 destrutivo),	 de	 necessidade…	 transitando	 por	 este</p><p>tripé/equipe,	 o	 que	 traz	 grande	 riqueza	 para	 a	 associação,	 necessária	 para	 a</p><p>elaboração	em	análise.</p><p>No	tratamento	desses	pacientes,	muitas	vezes	o	investimento	se	dá	na	intenção</p><p>de	repetir	a	relação	fusional	na	terapia	e	com	cada	um	dos	integrantes	da	equipe,	de</p><p>excluir	 um	 ou	 mais	 espaços/profissionais,	 como	 representantes	 simbólicos	 da</p><p>exclusão	 do	 terceiro	 e	 da	 dificuldade	 diante	 de	 tal	 forma	 de	 se	 relacionar.	 Uma</p><p>equipe	 experiente,	 com	um	discurso	 e	uma	 forma	de	pensar	 atentos	 aos	mesmos</p><p>pontos,	 que	 convive	 com	 as	 diferenças	 de	 cada	 área	 de	 atuação	 e	 que	 não	 exclui</p><p>ninguém,	legitima	esse	formato	de	triangulação	relacional	que,	em	si,	marca	a	falta,	a</p><p>necessidade	 e	 explicita	 a	 não	 onipotência,	 abrindo	 as	 portas	 para	 maiores</p><p>possibilidades	de	maturidade.</p><p>Jeammet	(2008,	p.	47)	alerta	para	um	“risco”	que	habita	simbolicamente	a	forma</p><p>com	 que	 esses	 pacientes	 se	 relacionam,	 em	 que	 a	 instituição	 teria	 uma	 função</p><p>protetora.</p><p>A	Abordagem	institucional	oferece	mediações	que	tornam	o	contato	objetal	menos</p><p>perigoso	e	mais	suportável	do	que	uma	relação	dual	na	qual	ela	corre	o	risco	de	ser</p><p>imediatamente	 captada	 pelo	 outro	 em	 razão	 do	 mesmo	 sobreinvestimento	 que</p><p>fazem	desta	relação.</p><p>O	analista	também	cumprirá	um	papel	importante	junto	à	equipe	falando	sobre</p><p>as	movimentações	psíquicas	e	defesas	atuantes,	 favorecendo	o	entendimento,	para</p><p>elaboração	também	dos	profissionais.	Estes	terão	que	tolerar	projeções	e	atuações</p><p>defensivas	maciças	em	um	constante	alternar	dos	lugares	com	que	cada	profissional</p><p>está	 indentificado	naquele	momento	nas	projeções	simbólicas	daquele	paciente.	A</p><p>transferência	é	viva	e	atinge	toda	a	equipe!</p><p>Notas:</p><p>1	.Agradeço	à	Cybelle	Weinberg	pela	leitura.</p><p>Referências</p><p>AULAGNIER,	P.	A	violência	 da	 interpretação	 –	 do	 pictograma	 ao	 enunciado.	 São	Paulo:</p><p>Escuta,	1979.</p><p>______.	Um	intérprete	em	busca	de	sentido	–	I	e	II.	São	Paulo:	Escuta,	1990.</p><p>BALINT,	 M.	A	 falha	 básica:	 aspectos	 terapêuticos	 da	 regressão.	 São	 Paulo:	 Zagodoni,</p><p>2014.</p><p>BILYC,	 B.	 et	 al.	 Peculiaridade	 no	 tratamento	 da	 anorexia	 e	 bulimia	 nervosa	 na</p><p>adolescência.	A	experiência	do	Protad.	São	Paulo,	Revista	Psiquiatria	Clínica,	31	 (4),</p><p>2004.</p><p>BLEICHMAR,	S.	A	fundação	do	 inconsciente:	destinos	da	pulsão,	destinos	do	 sujeito.	Porto</p><p>Alegre:	Artes	Médicas,	1994.</p><p>_______.	Do	motivo	de	consulta	à	razão	de	análise:	e	outros	ensaios	psicanalíticos.	São	Paulo:</p><p>Zagodoni,	2015.</p><p>BOURDIEU,	P.	Economia	das	trocas	simbólicas.	São	Paulo:	Perspectiva,	1974.</p><p>BRUSSET,	 B.	 Anorexia	 mental	 e	 bulimia	 do	 ponto	 de	 vista	 de	 sua	 gênese.	 In:</p><p>URRIBARRI,	R.	(org.)	Anorexia	e	bulimia.	São	Paulo:	Escuta,	2008.</p><p>FIGUEIREDO,	L.	C.	Transferência,	 contratransferência	 e	 outras	 coisinhas	mais.	 Trabalho</p><p>apresentado	na	Formação	Freudiana.	Rio	de	Janeiro,	2002.</p><p>FREUD,	 S.	 [1895]	 Projeto	 para	 uma	 psicologia	 científica.	 In:	 Publicações	 pré-</p><p>psicanalíticas	 e	 esboços	 inéditos.	 Edição	 Standard	 Brasileira	 das	 Obras	 Psicológicas</p><p>Completas	de	Sigmund	Freud.	Rio	de	Janeiro:	Imago,	1996.	v.	1.</p><p>GARFINKEL,	 P.	 E.;	 &	 GARNER,	 D.	 M.	 Anorexia	 nervosa:	 A	 Multidimensional</p><p>Perspective.	 Brunner/	 Mazel,	 Nova	 York,	 1982.	 [	 Links:</p><p>http://ijp.sagepub.com/content/11/3/263.short	]</p><p>GURFINKEL,	 A.	 C.	 Depressividade	 e	 manejo	 clínico	 no	 tratamento	 das</p><p>problemáticas	 alimentares.	 In:	 GONZAGA,	 A.	 P.;.	 WEINBERG,	 C.	 (orgs.)</p><p>Psicanálise	de	transtornos	alimentares.	São	Paulo:	Primavera,	2010.</p><p>JEAMMET,	Ph.;	CORCOS,	M.	Novas	problemáticas	da	adolescência:	evolução	e	manejo	da</p><p>dependência.	São	Paulo:	Casa	do	Psicólogo,	2005.</p><p>JEAMMET,	 Ph.	 A	 abordagem	 psicanalítica	 dos	 transtornos	 das	 condutas</p><p>alimentares.	In:	URRIBARRI,	R.	(org.)	Anorexia	e	bulimia.	São	Paulo:	Escuta,	2008.</p><p>LAPLANCHE,	 J.	 El	 extravio	 biologizante	 de	 la	 sexualidad	 en	 Freud.	 Buenos	 Aires:</p><p>Amorrortu,	1999.</p><p>LOCK,	 J.;	 LE	 GRANGE,	 D.;	 AGRAS,	 S.	 W.;	 DARE,	 C.	 Treatment	 Manual	 for</p><p>Anorexia	Nervosa:	A	Family-Based	Approach.	Nova	York:	The	Guilford	Press,	2001.</p><p>McDOUGALL,	J.	Teatros	do	corpo.	Rio	de	Janeiro:	Martins	Fontes,	2000.</p><p>MINUCHIN,	S.	A	cura	da	família.	Rio	de	Janeiro:	Artes	Médicas,	1995.</p><p>STEINHAUSEN,	H.	 C.	 The	 outcome	 of 	 Anorexia	 nervosa	 in	 the	 20th	 century.</p><p>American	Journal	of 	Psychiatry.	August	2002,	159	(8):	1284-1293.</p><p>TURKIEWICZ,	G.	et	al.	Feasibility,	acceptability,	and	effectiveness	of 	family-based</p><p>treatment	 for	 adolescent	 anorexia	 nervosa:	 an	 observational	 study	 conducted	 in</p><p>Brazil.	Revista	Brasileira	Psiquiatria,	June	2010,	32.</p><p>WEINBERG,	 C.	 (org.)	 Transtornos	 alimentares	 na	 infância	 e	 adolescência:	 uma	 visão</p><p>multidisciplinar.	São	Paulo:	Sá	Editora,	2008.</p><p>http://ijp.sagepub.com/content/11/3/263.short</p><p>CORPO	E	VIRTUALIDADE</p><p>Os	transtornos	alimentares	na	tecnocultura</p><p>Camila	Deneno	Perez</p><p>Patricia	Gipsztejn	Jacobsohn</p><p>Os	 adolescentes	 de	 hoje	 têm	 crescido	 submersos	 na	 era	 da	 tecnocultura.	 As</p><p>redes	 sociais,	os	grupos	virtuais,	 a	conectividade	digital	 e	 tantos	outros	elementos</p><p>têm	 atualmente	 participação	 ativa	 em	 nosso	 trabalho	 cotidiano,	 influenciando	 o</p><p>exercício	de	nossa	clínica	e	invadindo	o	setting	analítico.	Precisamos	considerar	que</p><p>essas	 mudanças	 certamente	 impactam	 a	 estruturação	 psíquica	 e	 a	 construção</p><p>identitária.</p><p>Na	clínica	dos	transtornos	alimentares,	as	questões	relativas	à	internet	têm	cada</p><p>vez	mais	força	e	aparecem,	inclusive,	como	motivo	de	grande	preocupação	entre	as</p><p>equipes.	 As	 webpages	 pró-anorexia	 e	 pró-bulimia,	 mesmo	 após	 tantos	 anos,</p><p>continuam	 a	 ser	 acessadas.	 Temos	 acompanhado	 o	 advento	 dos	 fenômenos	mais</p><p>modernos,	 como	 as	 blogueiras	 fitness,	 os	 perfis	 escabrosos	 e	 assombrosos	 do</p><p>Instagram,	o	SnapChat	e	YouTube	e	o	Tumblr	 (de	menos	sucesso	no	Brasil,	mas</p><p>que,	ainda	assim,	ecoa	na	clínica	dos	transtornos	alimentares).	Os	grupos	de	jovens</p><p>do	 WhatsApp	 também	 têm	 tido	 significativa	 participação,	 já	 que	 há	 uma	 troca</p><p>constante	 de	 imagens,	 dietas,	 dicas,	 fotos	 de	 seus	 pratos	 de	 refeições	 (em	 alguns</p><p>casos,	vemos	mais	o	prato	mesmo,	a	comida	é	bem	pouca).</p><p>As	 questões	 que	 se	 colocam,	 então,	 são:	 O	 que	 sustenta	 analiticamente	 a</p><p>virtualidade	e	o	transtorno	alimentar?	Que	intersecções	e	relações	existem?	E	indo</p><p>ainda	mais	longe,	qual	seria	o	impacto	da	virtualidade	no	corpo?</p><p>Não	 é	 preciso	 muito	 esforço	 para	 perceber	 como	 a	 imposição	 de	 um	 corpo</p><p>magro	 encontra-se	 crescente	 e	 pulverizada	 em	 nossa	 sociedade.	 Raramente</p><p>conhecemos	pessoas	que	se	sentem	bem	com	o	próprio	corpo,	e	é	uma	tarefa	cada</p><p>vez	 mais	 árdua	 escapar	 de	 conversas	 sobre	 dietas	 e	 técnicas	 “mágicas”	 para</p><p>emagrecer.	 O	 ciberespaço	 vem	 se	 tornando	 um	 meio	 rápido	 e	 eficiente	 de</p><p>disseminação	desses	ideais.</p><p>Em	meio	 a	 este	 contexto,	 é	 importante	 que	 fique	 claro	 desde	 o	 início,	 como</p><p>elucida	Weinberg	 (2001,	p.	156),	que	“fica	anoréxica	ou	bulímica	quem	pode,	não</p><p>quem	 quer”.	 Em	 outras	 palavras,	 apesar	 de	 a	 preocupação	 com	 o	 peso	 e	 a</p><p>insatisfação	com	o	corpo	atingirem	a	maioria	das	pessoas,	o	 transtorno	alimentar</p><p>precisa	de	algo	mais	para	se	desenvolver.	Não	é	nosso	objetivo	aqui	refletir	sobre	a</p><p>etiologia	 dos	 transtornos	 alimentares,	 mas	 sim,	 sobre	 o	 entrecruzamento	 da</p><p>anorexia	a	da	bulimia	com	o	campo	virtual.	Mesmo	assim,	é	 importante	dizer	que</p><p>não	são	patologias	suscitadas	somente	pela	cultura	do	culto	ao	corpo	e	da	magreza</p><p>excessiva.	 Embora	 isso	 possa	 desencadear	 o	 processo,	 é	 preciso	 que	 haja	 um</p><p>encontro	 do	 ideal	 veiculado	 pelo	 meio	 social	 com	 determinado	 funcionamento</p><p>psíquico.1</p><p>Não	 se	 trata,	 também,	 de	 demonizar	 a	 internet.	 Como	 bem	 explicita	 Lemma</p><p>(2015),	 do	ponto	de	vista	psíquico,	os	problemas	 surgem	quando	não	 se	pensa	o</p><p>virtual	como	sendo	um	alargamento	do	real,	mas	sim,	como	uma	alternativa	ao	real.</p><p>Segundo	 a</p><p>autora,	 os	 avanços	 tecnológicos	 podem	 ser	 usados	 para	 promover	 o</p><p>desenvolvimento	psíquico,	criando	oportunidades	para	ampliação	da	aprendizagem</p><p>e	da	criatividade,	e	também	podem	auxiliar	nos	processos	de	desenvolvimento.	Por</p><p>outro	 lado,	 podem	 servir	 para	 evitar	 vivências	 psíquicas	 desagradáveis	 ou</p><p>aterrorizadoras.	Isso	depende	do	uso	que	cada	sujeito	faz	das	novas	tecnologias.</p><p>Recentemente,	 a	Revista	Veja	 publicou	 uma	 extensa	 reportagem	 sobre	 o	 jogo</p><p>Minecraft.	 Afirma	 que	 o	 jogo	 estimula	 a	 criatividade,	 exercita	 o	 raciocínio,</p><p>desenvolve	o	aprendizado,	estreita	o	relacionamento	entre	pais	e	filhos	–	que	jogam,</p><p>pesquisam	 e	 conversam	 sobre	 a	 atividade.	 A	 reportagem	mostra	 ainda	 como	 os</p><p>jogadores	aficionados	vão	para	além	do	jogo:	ainda	no	plano	virtual,	compartilham</p><p>vídeos	 no	YouTube,	 escrevem	 textos	 e	 discutem	 em	 fóruns	 da	web,	mas	 também</p><p>expandem	 seus	 limites	 para	 o	 mundo	 real,	 frequentando	 eventos	 de	 games,	 por</p><p>exemplo.	“O	fenômeno	se	estabelece	exatamente	no	lance	de	expansão	do	universo</p><p>virtual,	que	define	um	‘além	da	tela’	para	a	experiência”	(p.	81).</p><p>Os	transtornos	alimentares	no	ciberespaço</p><p>Já	há	alguns	anos	assistimos	à	proliferação	dos	blogs	e	páginas	de	internet	pró-</p><p>anorexia	 e	 pró-bulimia.	 São	 criados	 e	 acessados	 por	 jovens	 adolescentes,</p><p>principalmente	 do	 sexo	 feminino	 (o	 que	 coincide,	 não	 por	 acaso,	 com	 a	 maior</p><p>prevalência	 dos	 transtornos	 alimentares).	 Como	 publicamos	 anteriormente</p><p>(JACOBSOHN,	2010,	p.	5),	é	um	nicho	estruturado	dentro	da	rede,	uma	tribo	com</p><p>identidade	 própria:	 possuem	 siglas	 específicas,	 como	 Ana	 e	 Mia	 (diminutivos	 de</p><p>Anorexia	e	Bulimia,	que	tomam	forma	humana	e	são	tratadas	como	amigas	a	quem</p><p>se	deve	devoção),	LF	(low	food	ou	pouca	comida),	NF	(no	 food	ou	jejum),	LF	e	NF</p><p>coletivos	(semanas,	quinzenas	ou	mesmo	meses	previamente	estipulados,	nos	quais,</p><p>juntos,	 os	 jovens	 promovem	 uma	 restrição	 alimentar	 severa	 ou	 mesmo	 jejum)	 e</p><p>miar	 (diminutivo	 “carinhoso”	 de	 vomitar).	 Existe	 também	 a	 “literatura	 do</p><p>movimento”:	a	carta	da	Ana	e	da	Mia;	nada	mais	são	do	que	cartas	que	 incitam	a</p><p>Anorexia	e	a	Bulimia.</p><p>A	 linguagem	 nessas	 páginas	 é	 cibernética,	 muitas	 vezes	 difícil	 de	 entender,</p><p>quando	não	se	tem	muita	familiaridade	com	esse	tipo	de	escrita	abreviada.	Frases	de</p><p>efeito	(como	starving	 for	perfection	ou	one	minute	on	 the	 lips	 forever	on	 the	hips),	 fórmulas</p><p>malucas,	 receitas	 mirabolantes,	 mandamentos	 e	 conselhos	 terríveis	 é	 o	 que	 se</p><p>encontra.	Nomes	de	remédios	anorexígenos	e	laxantes	são	também	muito	comuns.</p><p>Tudo	 isso	misturado	 à	 presença	 de	 ídolos	 teens.	 Fotos	 de	 celebridades	 esquálidas</p><p>fazem	 parte	 desse	 universo	 e	 são	 utilizadas	 como	 “thinspiration”	 (inspiração	 de</p><p>magreza).	Há	 inclusive	 fotos	nitidamente	manipuladas	 (por	Photoshop)	de	Gisele</p><p>Bündchen,	que	é	a	máxima	das	chamadas	weborexics.	Victoria	Beckham	e	Angelina</p><p>Jolie	 (que	 tem	 tatuada	 no	 corpo	 a	 frase	 quod	 me	 nutrit,	 me	 destruit2)	 são	 presenças</p><p>unânimes.	 Encontram-se	 também	 músicas	 próprias	 (as	 chamadas	 EDsongs).</p><p>“Dicas”	e	“truques”	de	como	esconder	de	pais,	familiares	e	amigos	o	transtorno,	de</p><p>como	 vomitar,	 do	 que	 comer	 ou	 não	 comer,	 de	 como	 rebater	 acusações	 de	 que</p><p>estão	doentes	completam	o	cenário	caótico.</p><p>Quais	motivos	 levariam	 os	 jovens	 a	 se	 interessar	 por	 blogs	 e	 comunidades	 de</p><p>Facebook	 pró-anorexia	 e	 pró-bulimia,	 ou	 a	 seguir	 via	 Instagram	 as	 tão	 famosas</p><p>blogueiras	 fitness?	Percebemos	o	quão	 restritos	em	conteúdo	são	esses	 espaços.	O</p><p>que	se	acha	são	dicas	de	exercício	físico,	de	como	perder	peso,	de	como	manter	um</p><p>padrão	estético	e	um	corpo	que	não	pertence	ao	sujeito	que	lê.	Sem	contar	o	perigo</p><p>em	seguir	uma	“orientação	dietética”	ou	uma	atividade	física	proposta	por	alguém</p><p>sem	 formação	 específica	 e	 de	 modo	 generalizado	 (como	 se	 servisse	 a	 qualquer</p><p>pessoa).</p><p>O	que	as	blogueiras	 fitness	pretendem	mostrar	é	como	a	vida	delas	é	realmente</p><p>“maravida”	 (como	 fala	 uma	 delas).	 É	 tudo	 esteticamente	 tão	 perfeito	 quanto</p><p>ilusório	(a	começar	pelos	corpos	extremamente	emagrecidos	e	pouco	saudáveis	–	e</p><p>o	 que	 é	 pior	 –	 travestidos	 de	 saudáveis).	 Angústias,	 mal-estares,	 inquietações	 ou</p><p>reclamações	 não	 têm	 espaço.	 Importante	 mencionar	 também	 a	 quantidade</p><p>interminável	 de	 propagandas	 não	 explícitas.	Uma	dessas	 blogueiras,	 por	 exemplo,</p><p>postou	há	pouco	sua	mesa	de	café	da	manhã.	Um	olhar	desatento,	pouco	treinado</p><p>ou	 ingênuo	 (tal	 qual	 pode	 ser	 o	 olhar	 dos	 jovens)	 não	 percebe	 as	 hashtags	 de</p><p>publicidade	da	toalha,	das	louças	e	até	do	bolo	orgânico.	Há,	portanto,	como	grande</p><p>atrativo,	 um	 convite	 a	 um	mundo	no	 qual	 é	 possível	 só	 se	 viver	 o	 que	 é	 bom	 e,</p><p>principalmente,	só	o	que	é	belo.</p><p>Pensamos	que	outro	motivo	de	sucesso	de	tais	páginas	–	especialmente	os	blogs</p><p>e	 as	 comunidades	 de	 Facebook	 pró-anorexia	 e	 pró-bulimia	 –	 seria	 a	 sensação	 de</p><p>acolhimento,	apoio	e	pertencimento	que	os	jovens	relatam	ao	acessar	tais	espaços.</p><p>Como	se	encontrassem	ecos	de	comportamentos,	sentimentos	e	ideias,	bem	como</p><p>um	 local	 que	 permite	 certa	 troca,	 proporcionando	 quase	 que	 uma	 rede	 de	 apoio</p><p>mútuo.</p><p>Encontramos	 um	 exemplo	 disso	 em	 um	 blog,	 em	 uma	 entrevista	 que	 sua</p><p>administradora	 realiza	 com	 a	 administradora	 de	 outro	 blog	 sobre	 seu	 percurso</p><p>como	blogueira	de	uma	página	pró-anorexia:</p><p>[Administradora	do	blog]:	 […]	O	que	 te	motivou	 a	 criar	o	blog?	 Já	 tinha	ouvido</p><p>falar	deles?</p><p>[Blogueira	entrevistada]:	Não	sei	o	motivo,	a	verdade	mesmo,	acho	que	foi	carência.</p><p>A	necessidade	de	falar	do	meu	problema	com	alguém	que	não	iria	me	julgar	e	sim</p><p>me	apoiar	e	me	ajudar.	Não	sei	como,	ou	onde,	mas	achei	o	blog	“X”	e	então	criei	o</p><p>blog	para	poder	seguí-la	[…].</p><p>Outra	característica	frequente	em	páginas	pró-anorexia	e	pró-bulimia	é	a	defesa</p><p>da	anorexia	e	da	bulimia	como	estilos	de	vida,	não	como	doença.</p><p>O	 que	 ocorre	 é	 que	 essas	 páginas	 acabam	 por	 perpetuar	 e	 reforçar	 condutas</p><p>inadequadas	e	perigosas.	Os	 transtornos	alimentares	expostos	de	 forma	positiva	e</p><p>saudável	 retardam	 o	 diagnóstico	 e	 dificultam	 o	 acesso	 ao	 tratamento	 por</p><p>desconsiderar	seu	aspecto	patológico,	o	que	vai	totalmente	na	mão	inversa	do	que</p><p>se	preconiza,	 já	que	é	amplamente	sabido	que	o	diagnóstico	precoce	favorece	um</p><p>melhor	prognóstico.</p><p>Vamos	percebendo,	então,	 tanto	pelas	concepções	de	 saúde	apresentadas	pelas</p><p>blogueiras	 fitness,	 como	 pelas	 páginas	 que	 defendem	 explicitamente	 práticas</p><p>anoréxicas	e	bulímicas	como	estilos	de	vida,	que	há	uma	confusão	entre	o	que	é	ser</p><p>saudável	 e	 equilibrado	 atualmente.	 A	 nutricionista	 Erica	 Romano	 aborda	 este</p><p>assunto	 no	 blog	 do	 GENTA	 (Grupo	 Especializado	 em	 Nutrição	 e	 Transtornos</p><p>Alimentares	e	Obesidade).3	O	que	a	autora	tem	observado	é	que	uma	mesa	cheia	de</p><p>coisas	gostosas	vira	uma	ameaça,	não	um	momento	de	prazer.	Do	mesmo	modo,</p><p>sentar-se	com	a	família	e	amigos	para	compartilhar	uma	refeição	causa	estresse,	não</p><p>tranquilidade.</p><p>Diante	 da	 cultura	 com	 a	 qual	 nos	 deparamos,	 e	 que	 nos	 atravessa,	 cabe</p><p>questionar	se	vale	a	pena	abrir	mão	desses	ricos	momentos	que	nos	nutrem	o	corpo</p><p>e	 a	 alma	 em	 nome	 de	 uma	 “vida	 saudável”.	 Parece	 saudável	 alguém	 sentir	 tanta</p><p>culpa	e	tanta	preocupação	diante	do	alimento	e	de	situações	em	que	há	uma	ampla</p><p>variedade	de	sabores?</p><p>A	 que	 servem	 estes	 espaços	 virtuais	 e	 o	 que	 nos	 dizem	 sobre</p><p>anorexia	e	bulimia?</p><p>Podemos	pensar	que	a	virtualidade	leva	o	corpo	a	assumir	alguns	aspectos:</p><p>1	 Assepsia	 –	 via	 de	 regra,	 o	 corpo	 virtual	 é	 total	 e</p><p>completamente	 asséptico,	 sempre	 belo.	 É	 livre	 de	 sujeiras,</p><p>secreções	ou	fluidos.	É	quase	um	corpo	mítico,	mas	que	ganha</p><p>um	status	de	matéria,	numa	negação	do	corpo	real.</p><p>2	O	corpo	ganha	uma	continuidade	de	ser,	ou	seja,	é	perene,</p><p>não	 se	 esgota	 e	 se	 alonga	 no	 tempo.	 É	 livre	 de	 distâncias</p><p>geográficas,	 limitações,	 ausências	 ou	 morte.	 É</p><p>um	 corpo</p><p>eternamente	plugado,	que	nunca	se	desliga.	Não	há,	portanto,</p><p>angústias	de	separação	de	nenhuma	ordem.</p><p>3	 O	 corpo	 é	 a-histórico	 na	 rede.	 A	 história	 do	 sujeito	 é</p><p>desimplicada.	 Depende,	 talvez,	 da	 “identidade	 virtual”,	 mas</p><p>esta	 pode	 começar	 de	 qualquer	 ponto,	 sem	 uma	 ocorrência</p><p>histórica,	 sem	 filiação,	 sem	 vínculos	 (não	 por	 acaso,	 os</p><p>corajosos	virtuais	são	tão	presentes).	Com	isso,	rompem-se	as</p><p>relações	de	dependência,	relações	hierárquicas	ou	de	simetria.</p><p>4	 É	 o	 corpo	 da	 demanda	 imediata.	 O	 imediatismo,	 a</p><p>comunicação	 segundo	 a	 segundo,	 as	 soluções	 rápidas	 e</p><p>mágicas	 põem	 fim	 ao	 trabalho	 psíquico	 de	 tolerar	 as	 falhas,</p><p>lacunas,	 os	 buracos,	 espera,	 frustração.	 Em	 outras	 palavras,</p><p>não	há	espaço	para	o	desenvolvimento	do	pensar	e,	com	isso,</p><p>claro,	há	um	prejuízo	da	capacidade	simbólica.</p><p>5	É	certo	que	nossa	 realidade	externa	altera	nossa	percepção</p><p>da	realidade	 interna	e	vice-versa,	num	fluxo	contínuo.	Muitas</p><p>vezes,	 porém,	 o	 ser	 virtual	 acredita	 que	 sua	 realidade	 interna</p><p>pode	ser	projetada	no	mundo	virtual,	no	qual	atuam	fantasias.</p><p>Ou	seja,	não	há	diferenciação	entre	o	que	pode	ser	imaginado</p><p>e	atuado.	Mundo	interno	e	externo	confundem-se	com	real	e</p><p>virtual,	 numa	 clara	 confusão	 de	 fronteiras	 simbólicas,	 de</p><p>dentro	e	fora.</p><p>6	Não	há	assunção	da	alteridade	no	corpo	virtual.	O	outro	é</p><p>um	 eterno	 conhecido.	E,	 com	 isso,	 o	 controle	 onipotente	 se</p><p>faz	presente.</p><p>As	características	expostas	sobre	o	corpo	virtual	assemelham-se	às	características</p><p>de	 dinâmicas	 psíquicas	 de	 pacientes	 com	 transtornos	 alimentares:	 o	 controle</p><p>onipotente,	 a	 falta	 de	 delimitação	 dentro-fora,	 a	 dificuldade	 de	 lidar	 com	 a</p><p>separação	do	corpo	materno,	a	dificuldade	de	crescer.	Segundo	Fernandes	(2010),	é</p><p>como	se	o	corpo	não	exercesse	 a	 função	de	colocar	 limites	 entre	o	eu	e	o	outro.</p><p>Pensando	 nisso,	 podemos	 começar	 a	 conjecturar	 a	 que	 servem	 esses	 espaços</p><p>virtuais,	considerando	que	provocam/permitem	uma	relação	outra	com	o	próprio</p><p>corpo	e	com	o	corpo	do	outro.</p><p>Lemos	 (2007),	apoiando-se	em	Recalcati	 (2003),	diz	que	o	virtual	pode	ser	um</p><p>meio	de	livrar-se	de	uma	demanda	asfixiante.	Zalcberg	(2003)	situa	a	problemática</p><p>anoréxica	 exatamente	 na	 recusa	 de	 responder	 à	 demanda,	 qual	 seja,	 suposta</p><p>demanda	de	uma	mãe	que	alimentaria	em	demasia.	Segundo	a	autora,	a	anoréxica</p><p>alimenta-se	 do	 “nada”	 como	 uma	 forma	 de	 inserir	 a	 falta	 em	 uma	 mãe	 que	 se</p><p>apresenta	 como	plena,	de	modo	a	não	dar	 espaço	para	que	 a	 filha	possa	 surgir	 e</p><p>desejar.</p><p>Nessa	 dinâmica,	 vamos	 entendendo	 o	 quão	 importante	 é,	 para	 essas	meninas,</p><p>controlar	 o	 próprio	 corpo	 e	 a	 fome,	 já	 que	 há	 uma	 invasão	 que	 é	 da	 ordem	 do</p><p>incontrolável	e,	por	isso	mesmo,	escapa	a	seu	comando.	Podemos	pensar	no	campo</p><p>virtual	 como	 um	 facilitador	 no	 que	 diz	 respeito	 a	 tal	 caráter	 controlador.	 Isso</p><p>porque,	nas	 relações	on-line,	 é	possível	 responder	o	que	e	quando	bem	entender,</p><p>desconectar-se	 quando	 quiser,	 bem	 como	 tornar-se	 uma	 personagem	 que	 não</p><p>detém	necessidades	 fisiológicas	 inerentes	ao	corpo	humano.	Quer	dizer,	podemos</p><p>pensar	em	uma	tentativa	onipotente	de	nada	precisar	e	de	tudo	controlar,	que	pode</p><p>“ganhar	corpo”	a	partir	do	uso	da	internet,	justamente	porque,	uma	vez	imerso	no</p><p>mundo	cibernético,	“perde-se”	o	corpo	real,	material,	imperfeito	e	falho.</p><p>A	importância	do	controle	aparece	com	força	neste	trecho	da	entrevista	de	um</p><p>blog	pró-anorexia:</p><p>[Administradora	 do	 blog]:	 […]	 Você	 citou	 uma	 palavra	 bastante	 importante:</p><p>controle.	Todas	nós	queremos	ter	controle,	você	tem?</p><p>[Blogueira	entrevistada]:	Depende,	às	vezes	sim,	às	vezes	não,	e	por	isto	que	estou</p><p>nesta:	pela	busca	constante	de	controle	do	meu	corpo.	É	por	isto	que	todas	estamos</p><p>nesta.</p><p>Fava	 e	 Perez	 (2011,	 p.	 357),	 citando	 Fucks	 (2003),	 ressaltam	 que	 a	 conduta</p><p>anoréxica	 revela	 um	 ideal	 ascético,	 cuja	 meta	 é	 “anular	 o	 corpo	 pulsional	 e</p><p>sexuado”.	Não	é	à	toa	que	a	anorexia	e	a	bulimia	surgem,	na	maioria	das	vezes,	na</p><p>adolescência,	 quando	 o	 corpo,	 já	 não	 mais	 de	 criança,	 vai	 anunciando	 as	 curvas</p><p>características	de	um	corpo	de	mulher.	Nesse	período,	também	acontece	a	menarca,</p><p>o	 que	 convoca	 fantasias	 referentes	 a	 novas	 possibilidades	 e	 ao	 encontro	 com	 a</p><p>sexualidade.</p><p>O	 susto	 frente	 às	mudanças	 ocasionadas	 pela	 puberdade	 não	 acontece	 apenas</p><p>pelas	diversas	sensações	que	despertam	no	corpo,	mas	também	pelo	olhar	do	outro</p><p>que	 se	 apresenta	 diferente	 (WEINBERG,	 2001).	 Em	 triagem	 da	 CEPPAN,	 uma</p><p>garota	nos	conta	que	quis	perder	peso	pela	primeira	vez	aos	14	anos,	quando	sentia</p><p>que	os	amigos	olhavam	para	suas	coxas,	que	já	não	eram	mais	tão	finas	como	antes.</p><p>Ela	 vai	 buscando	 então	 fugir	 deste	 olhar,	 “apagar	 do	 corpo	 todos	 os	 sinais	 de</p><p>feminilidade”	(WEINBERG,	2001,	p.	153),	retornar	a	uma	silhueta	 infantil.	Para	a</p><p>autora,	 assim	estaria	 concretizado	o	 sonho	de	 ser	 a	 eterna	criança	da	mãe,	 sonho</p><p>este	tão	ambivalente	e	conflituoso.</p><p>A	 anorexia	 se	 torna,	 portanto,	 uma	 saída	 para	 que,	 ao	mesmo	 tempo	 em	 que</p><p>permanecem	 frágeis	 e	 necessitando	 de	 cuidados,	 apresentem	 uma	 determinação</p><p>impressionante	de	recusar	o	alimento	em	tentativa	de	assumir	tanto	o	controle	de	si</p><p>como	uma	 identidade	própria.	Daí	 o	 sucesso	das	 páginas	 pró-ana	 e	 pró-mia,	 que</p><p>têm	códigos,	linguagem	e	regras	específicas	que	unem	os	que	frequentam	em	torno</p><p>dessa	 temática.	 Além	 disso,	 é	 muito	 comum	 notarmos	 imagens	 de	 florzinhas,</p><p>bonecas,	estrelas	e	corações	decorando	essas	páginas,	dando	indícios	de	que	há	algo</p><p>de	infantil	muito	presente	nessas	meninas.</p><p>Ilustramos	 esse	 paradoxo	 que	 aparece	 na	 anorexia	 com	 a	 citação	 a	 seguir,</p><p>retirada	de	um	blog,	que	revela	que	a	busca	de	poder	sobre	si,	por	essas	vias,	leva	a</p><p>um	caminho	que	desemboca	em	maior	dependência:</p><p>A	Ana,	quando	faço	tudo	que	ela	manda	e	tudo	que	lhe	convém,	por	mais	que	doa,</p><p>eu	me	sinto	mais	no	controle	e	mais	forte.	Mais	bonita,	e	feliz	[…].	Ela	é	exigente,</p><p>ela	vai	tomar	conta	de	você	24	horas	por	dia,	a	chegar	em	um	ponto	que	você	não</p><p>estará	mais	no	controle	da	sua	mente	[…].</p><p>Outro	 aspecto	 que	 nos	 chama	 a	 atenção	 é	 o	 modo	 indiscriminado	 como	 as</p><p>meninas	se	nomeiam	como	Anas	e	Mias	nos	espaços	virtuais.	Para	Lemos	(2007),</p><p>este	comportamento	indica	que,	ao	mesmo	tempo	em	que	se	tem	uma	identidade	a</p><p>partir	da	anorexia	e	da	bulimia,	parece	tratar-se	de	uma	identidade	que	produz	um</p><p>achatamento	da	singularidade.	Ou	seja,	vamos	percebendo	que	também	no	campo</p><p>virtual	coloca-se	o	conflito	entre	diferenciar-se	e	manter	a	dependência,	assim	como</p><p>a	 dificuldade	 de	 discriminar	 o	 eu	 e	 o	 outro.	 Além	 disso,	 receitas,	 fórmulas,</p><p>mandamentos	 e	 conselhos	 são	 compartilhados	 no	 formato	 de	 um	 manual	 a	 ser</p><p>seguido,	 revelando	 a	 importância	 da	 imitação	 às	 pacientes	 com	 transtornos</p><p>alimentares.</p><p>Em	relação	a	esse	aspecto,	Weinberg	(2007)	aponta	que	uma	característica	muito</p><p>encontrada	em	jovens	com	transtornos	alimentares	é	o	comportamento	imitativo.	A</p><p>psicanalista	Hilde	Bruch	até	cunhou	a	expressão	“me	too	anorexia”	para	designar	esse</p><p>comportamento,	 decorrente	 de	 déficits	 básicos	 do	 sentido	 de	 si	 mesmo,	 da</p><p>identidade	 e	 do	 funcionamento	 autônomo.	 Diz	 Weinberg	 (2007,	 p.	 78):	 “A</p><p>anoréxica,	 para	Bruch,	 seria	 como	uma	 lousa	 em	branco,	 a	 ser	preenchida	 com	a</p><p>personalidade	de	cada	nova	pessoa	com	quem	se	envolve,	com	aquilo	que	a	amiga</p><p>gosta	 ou	 quer	 fazer.	 Tanto	 que,	 para	 essa	 autora,	 esse	 tipo	 de	 comportamento</p><p>imitativo	poderia	ser	o	responsável	pelo	rápido	aumento	da	incidência	da	Anorexia</p><p>nos	últimos	anos”.	Esses	jovens,	cujo	espelhamento	constitui	uma	forma	arcaica	de</p><p>identificação,	 facilmente	 copiam	 comportamentos,	 dietas,	 e	 padrões	 de	 outros,</p><p>sempre	marcados	 por	 um	 ideal	 externo.	 Aliás,	 em	 um	 dos	 blogs	 que	 acessamos,</p><p>assim	que	 a	 página	 abriu,	 surgiu	 um	 pop	up	 que	 dizia:	 “Seja	 bem-vindo	 e	 copie	 à</p><p>vontade”.</p><p>Fazendo	 essas	 articulações,	 é	 inevitável	 pensarmos	 em	 questões	 como:	 Que</p><p>modelos	 de	 identificação	 estamos	 oferecendo	 a	 essas	 meninas?	 Que	 espaços	 de</p><p>escuta	 disponibilizamos	 a	 quem	 tanto	 precisa	 falar	 e	 muitas	 vezes	 tem	 a	 fala</p><p>censurada	e	sancionada?	De	que	formas	podemos	evitar	que	páginas	tão	perigosas</p><p>continuem	a	atrair	mais	e	mais	gente	na	rede?</p><p>Encerramos	 com	 um	 último	 exemplo	 que	 encontramos	 em	 um	 blog	 pró-</p><p>anorexia	 e	 pró-bulimia	 e	 que,	 em	 vez	 de	 finalizar,	 explicita	 a	 importância	 de</p><p>ampliarmos	o	debate.</p><p>Me	chamo	Lua,	sou	Ana	e	Mia	a	bastante	tempo.	Procuro	algo	que	nem	eu	mesma</p><p>sei	 se	 é	 real.	Tento	viver	da	maneira	que	posso,	mesmo	que	por	muitas	 vezes	 eu</p><p>tenha	desistido	de	viver.	Talvez	no	meio	dessa	busca,	 eu	 consigo	me	encontrar	 e</p><p>talvez	encontrar	a	tal	felicidade	de	que	todos	falam	[…]</p><p>Observações	finais	–	o	que	fazer	com	isso?</p><p>Após	 nos	 debruçarmos	 sobre	 o	 campo	 exposto,	 que	 entrecruza	 o	 corpo,	 a</p><p>virtualidade	 e	 os	 transtornos	 alimentares,	 e	 considerando	 a	 ampla	 gama	 de</p><p>possibilidades	e	o	 imensurável	alcance	da	 internet,	defendemos	que	o	ciberespaço</p><p>pode	sim	ser	usado	como	um	meio	de	prevenção	e	apoio,	proporcionando	lugares</p><p>de	troca	e	de	acolhimento	a	favor	da	vida.	Pode	funcionar	inclusive	como	um	local</p><p>de	 compartilhamento	 de	 experiências	 –	 não	 apenas	 as	 boas	 e	 belas	 –	 e</p><p>ressignificação	do	que	foi	vivido,	de	modo	a	abrir	espaço	a	outras	possibilidades	e</p><p>caminhos	diversos.</p><p>Para	 que	 tal	 uso	 seja	 viável,	 porém,	 é	 extremamente	 relevante	 que	 os</p><p>adolescentes	 possam	 desenvolver	 um	 pensamento	 crítico,	 construindo	 um	 olhar</p><p>criterioso	 em	 relação	 ao	 que	 é	 exposto	 como	 verdade	 no	 mundo	 virtual.	 Uma</p><p>possibilidade	 é	 fomentarmos	 a	 discussão	 em	 escolas,	 clubes	 e	 academias,	 onde	 a</p><p>temática	 do	 corpo	 e	 de	 padrões	 veiculados	 pela	 internet	 possa	 ser	 abordada</p><p>incluindo	toda	complexidade	e	contradição	que	envolve	e	desperta.</p><p>Importante	 ressaltar	 que,	 quando	 falamos	 sobre	 transtornos	 alimentares	 no</p><p>sentido	preventivo,	os	comportamentos	purgativos	e	restritivos	típicos	da	anorexia	e</p><p>da	bulimia,	bem	como	os	blogs,	websites	e	comunidades	pró-anorexia	e	bulimia	não</p><p>devem	 ser	 expostos,	 uma	 vez	 que,	 quem	 tem	 certa	 predisposição,	 muito</p><p>provavelmente	os	usará	não	como	exemplo	negativo,	mas	como	uma	cartilha	a	ser</p><p>seguida.	Uma	 blogueira	 nos	 dá	 um	 claro	 exemplo	 disso,	 quando	 escreve	 sobre	 o</p><p>início	 de	 seus	 transtornos	 alimentares,	 resgatando	 uma	 abordagem	 televisiva	 que</p><p>podia	muito	bem	ser	vista	como	preventiva,	mas	que	teve	o	efeito	contrário:</p><p>Eu	me	lembro	de	que	quando	eu	era	pequena,	minha	mãe	assistia	uma	novela	que</p><p>havia	uma	menina	que	tinha	bulimia.	E	ai,	meu	irmão	uma	vez	forçou	o	vomito	para</p><p>não	ir	ao	colégio	e	tive	a	ideia	de	fazer	o	mesmo,	mas	só	que	para	emagrecer.</p><p>Cabe	aos	profissionais	que	trabalham	com	transtornos	alimentares	a	criação	de</p><p>páginas,	blogs	e	perfis	que	informem	e	exponham	a	questão	de	forma	adequada,	de</p><p>modo	a	oferecer	ajuda.	Sabemos	da	dificuldade	de	se	praticar	 isso.	Primeiramente</p><p>pela	 dificuldade	 dos	 profissionais	 de	 usar	 linguagem	 simples	 e	 compreensível	 aos</p><p>leigos.	 Há	 o	 medo	 de	 ser	 mal-entendido,	 e	 do	 uso	 que	 o	 leitor	 possa	 fazer	 da</p><p>informação.	Também	porque,	como	já	mencionado,	devemos	tomar	cuidado	com	a</p><p>exposição	da	anorexia	e	da	bulimia.	Apesar	disso,	estamos	certas	de	que	precisamos</p><p>de	 formas	 criativas,	 inteligentes	 e	 lúdicas	 ao	 tratar	 de	 pacientes	 com	 tais</p><p>problemáticas	e,	principalmente,	das	formas	saudáveis	de	se	alimentar	e	da	relação</p><p>com	o	corpo.	Assim,	podemos	oferecer	informações	acerca	do	comer	com	prazer,</p><p>sem	culpa,	conectado	com	sensações	internas	(como	fome	e	saciedade),	 longe	das</p><p>dietas	da	moda.</p><p>Além	disso,	podemos	fornecer	subsídios	para	que	a	comunidade	em	geral	passe</p><p>a	reconhecer	como	belo	o	corpo	em	suas	diversas	formas	e	diferenças,	bem	como</p><p>instrumentalizar	 a	 população,	 especialmente	 profissionais	 que	 trabalham	 com</p><p>jovens,	para	que	atentem	às	dificuldades	que	envolvem	alimentação	e	autoimagem,</p><p>aos	modelos	que	os	adolescentes	almejam	seguir	e	às	páginas	virtuais	que	os	atraem.</p><p>Lembrando	que	muito	mais	interessante	do	que	restringir	e	vigiar,	é	ofertar	outras</p><p>possibilidades	de	acesso	cultural,	relacional,	virtual	e	alimentar.</p><p>Notas:</p><p>1.	 Cybelle	 Weinberg,	 ao	 estudar	 as	 santas	 da	 Idade	 Média,	 conclui	 que	 a	 anorexia	 não	 é	 uma	 “doença	 da</p><p>modernidade”,	 já	estava	presente	de	outras	formas	em	diferentes	séculos	e	culturas.	A	autora	percebe	que</p><p>mulheres	 que	 jejuavam	 e	 que	 foram	 santificadas	 pela	 Igreja	 Católica	 tinham	 comportamentos	 muito</p><p>semelhantes	às	anoréxicas	no	que	diz	respeito	a	restrições,	perfeccionismo	e	luta	contra	as	necessidades	do</p><p>corpo.	 Para	 saber	 mais:	 WEINBERG,	 C.;	 CORDAS,	 T.	Do	 altar	 às	 passarelas:	 da	 anorexia	 santa	 à	 anorexia</p><p>nervosa.	São	Paulo:	Annablume,	2006.</p><p>2.	A	frase,	escrita	em	latim,	significa:	“aquilo	que	me	nutre	também	me	destrói”.</p><p>3.	O	endereço	do	blog	é:	http://gentabrasil.blogspot.com.br	e	o	nome	do	texto	citado	é	Final	do	ano,	festas,</p><p>família,	amigos	e…	Comida,	publicado	em	12	de	janeiro	de	2015.</p><p>Referências</p><p>FAVA,	 M.	 V.;	 PERES,	 R.	 S.	 Do	 vazio	 mental	 ao	 vazio	 corporal:	 um	 olhar</p><p>psicanalítico	 sobre	 as	 comunidades	 virtuais	 pró-anorexia.	Paideia	 on-line.	Ribeirão</p><p>Preto,	21(50):	353-361,	2011.</p><p>FERNANDES,	 M.	 H.	 O	 corpo	 recusado	 na	 anorexia	 e	 o	 corpo	 estranho	 na</p><p>bulimia.	 In:	 GONZAGA,	 A.	 P.;	 WEINBERG,	 C.	 (org.)	 Psicanálise	 de	 transtornos</p><p>alimentares.	São	Paulo:	Primavera,	2010.</p><p>JACOBSOHN,	 P.	 G.	 A	 morte	 como	 mote:	 websites	 pró-anorexia	 e	 bulimia.	 In:</p><p>Cadernos	da	Ceppan,	7,	Outubro	de	2010.</p><p>LEMMA,	A.	A	psicanálise	em	tempos	de	tecnocultura.	Algumas	reflexões	sobre	o</p><p>destino	 do	 corpo	 no	 espaço	 virtual.	 In:	Revista	 Brasileira	 de	 Psicanálise,	 49(1):67-84,</p><p>2015.</p><p>LEMOS,	J.	Maldita	comida!:	Um	estudo	sobre	comunidades	virtuais	de	anoréxicas	e</p><p>bulímicas.	Cogito	on-line.	8:21-25,	2007.</p><p>LOPES,	C.	M.	Uma	investigação	sobre	os	sintomas	bulímico	e	anoréxico	nas	redes</p><p>sociais.	Cadernos	de	Psicanálise	–	CPRJ.	Rio	de	Janeiro,	37(32):105-116,	2015.</p><p>Minecraft.	Uma	história	sem-fim.	Revista	Veja,	2465(7):76-85,	ano	49,	17	fev	2016.</p><p>WEINBERG,	 C.	 Vítimas	 da	 fome.	 In:	 WEINBERG,	 C.	 (org.)	 Geração	 Delivery:</p><p>adolescer	no	mundo	atual.	São	Paulo:	Sá,	2001.</p><p>_________.	As	meninas-roseira.	Revista	Mente	e	Cérebro,	ano	XIV,	171,	Edi	2007.</p><p>WEINBERG,	C;	CORDAS,	T.	A.	Do	altar	 às	 passarelas:	 da	anorexia	 santa	à	anorexia</p><p>nervosa.	São	Paulo:	Annablume,	2006.</p><p>ZALCBERG,	M.	A	relação	mãe	e	filha.	Rio	de	Janeiro:	Elsevier,	2003.</p><p>BULIMIA:	O	OBJETO	“NECESSÁRIO”</p><p>Camila	Peixoto	Farias</p><p>Marta	Rezende	Cardoso</p><p>O	 objetivo	 deste	 capítulo	 é	 investigar	 a	 organização	 pulsional	 subjacente	 à</p><p>bulimia,	tendo	em	vista	a	sua	articulação	com	a	dimensão	de	alteridade.	Vamos	nos</p><p>dedicar	 à	 análise	 da	 impossibilidade	 de	 perda	 do	 objeto	 nessa	 patologia,</p><p>privilegiando	a	questão	do	modo	de	 relação	objetal	 aí	 estabelecido.	André	Green,</p><p>autor	 que	 nos	 serve	 em	 nossa	 reflexão	 como	 principal	 referência,	 nos	 fornece</p><p>valiosos	elementos	para	analisarmos	a	singularidade	da	relação	entre	ego	e	objeto	na</p><p>bulimia,	 principalmente	 no	 que	 se	 refere	 ao	 processo	 de	 internalização	 e,</p><p>igualmente,	à	dimensão	pulsional,	elementos	fundamentais	de	nossa	análise.</p><p>Green	(1986)	dirige	sua	atenção	para	a	importância	do	trabalho	de	luto	na	vida</p><p>psíquica.	Enfatiza	como	a	questão	relativa	ao	objeto	se	articula	estreitamente	à	da</p><p>negatividade,	termo	que,	nesse	contexto,	indica	a	possibilidade	interna	de	perda	do</p><p>objeto,	 quer	 dizer,	 de	o	 ego	poder	promover	o	 seu	 “apagamento”	no	 interior	 do</p><p>psiquismo.	 Este	 processo	 nomeado	 pelo	 autor	 como	 “trabalho	 do	 negativo”</p><p>concerne	ao	trabalho	de	internalização,	de	simbolização	do	objeto	primário.</p><p>O	trabalho	do	negativo	engendra	um	movimento	estruturante,	permitindo</p><p>que	o</p><p>objeto	 interno,	 próprio	 ao	 registro	 primário,	 sofra	 um	processo	 de	 negativização.</p><p>Este	processo	implica,	dentre	outros	aspectos,	a	possibilidade	de	vir	a	ser	recalcado</p><p>e	transformado	em	representação	psíquica.	Porém,	vale	destacar	que	o	trabalho	do</p><p>negativo	não	se	ancora	apenas	no	mecanismo	do	recalcamento;	ele	está	vinculado	a</p><p>todas	as	formas	de	“dizer	não”	ao	objeto	(GREEN,	1986).</p><p>Se	 esse	 trabalho	 for	 realizado	 com	 sucesso,	 o	 objeto	 primário	 virá	 a	 ser</p><p>internalizado,	efetivando,	desse	modo,	uma	adequada	diferenciação	entre	o	eu	e	o</p><p>outro,	 e,	 em	 seu	 desdobramento,	 entre	 mundo	 interno	 e	 mundo	 externo.	 A</p><p>internalização	 do	 objeto	 pressupõe,	 portanto,	 que	 este	 pôde	 ser	 perdido,</p><p>“esquecido”,	 dando	 passagem	 a	 outros	 fenômenos,	 conforme	 esclarecem</p><p>Figueiredo	&	Cintra	 (2004,	p.	17):	 “[...]	na	 atenuação	de	 sua	presença	 [do	objeto]</p><p>para	dar	 lugar,	de	um	lado,	à	representação	e,	de	outro	e	mais	profundamente,	ao</p><p>vazio	internalizado	na	forma	de	uma	estrutura”.</p><p>Na	 contracorrente	 desse	 encaminhamento,	 encontramos,	 segundo	 os	 termos</p><p>utilizados	 por	 esses	 autores,	 o	 “objeto	 absolutamente	 necessário”.	 “Este	 não	 é</p><p>introjetado	 como	 ‘objeto	 interno’,	mas	 tal	 como	 ocorre	 no	 luto,	 como	 elemento</p><p>estrutural	 e	 estruturante	 do	 psiquismo”	 (op.	 cit.).	 Tendo	 caráter	 estruturante,	 o</p><p>“objeto	 absolutamente	necessário”	possui	 funções	 importantes	do	ponto	de	 vista</p><p>da	dinâmica	das	pulsões,	pois	ele	é	o	responsável	tanto	por	despertá-las,	como	por</p><p>contê-las,	ligá-las.</p><p>De	acordo	com	essa	visão,	o	objeto	primário	possui	dupla	função:	a	de	excitar	e</p><p>também	a	de	aplacar	a	excitação	que	ele	mesmo	veio	despertar.</p><p>O	“objeto	absolutamente	necessário”	deve,	entretanto,	desaparecer	como	objeto</p><p>no	 interior	 do	 psiquismo,	 e	 ser	 internalizado	 como	 função	 estruturante	 de</p><p>estimulação	 e	 de	 contenção	 da	 pulsão,	 reaparecendo	 como	 “diferença”,	 como</p><p>objeto	distanciado,	sendo	fonte	de	atração	e,	ao	mesmo	tempo,	de	repulsão.	Assim</p><p>se	caracteriza	“um	processo	bem-sucedido	de	constituição	do	psiquismo”	(op.	cit.).</p><p>O	 trabalho	 do	 negativo	 cumpre	 a	 sua	 tarefa	 quando	 transforma	 o	 objeto</p><p>primário	em	uma	“presença	ausente”,	que	permanecerá	sempre	presente,	não	mais</p><p>como	 objeto,	mas	 como	 elemento	 estruturante	 da	 vida	 psíquica.	 Isso	 indica	 que,</p><p>como	tal,	o	objeto	primordial	será	para	sempre	perdido,	o	que	permite	justamente	a</p><p>inauguração	da	busca	por	novos	objetos,	novas	ligações,	abrindo	assim	espaço	para</p><p>a	 necessária	 contingência	 que	 marca	 o	 objeto	 da	 pulsão.	 Dessa	 forma,	 o	 sujeito</p><p>torna-se	 capaz,	 ele	 próprio,	 de	 gerir	 sua	 força	 pulsional,	 de	 contê-la	 e	 dirigi-la</p><p>mediante	investimento	libidinal	a	novos	objetos.</p><p>Se	 o	 trabalho	 do	 negativo	 falhar,	 o	 objeto	 tenderá	 a	 permanecer	 no	 espaço</p><p>psíquico	 como	 presença	 absoluta,	 externa	 à	 cadeia	 representacional,	 fora	 do</p><p>território	 do	 recalcado,	 e	 seus	 efeitos	 traduzindo-se	 sob	 a	 forma	 de	 constante</p><p>ameaça	ao	funcionamento	psíquico.	Quando	o	objeto	(e	suas	funções)	não	pode	ser</p><p>internalizado	em	seu	viés	estruturante,	passa	a	habitar	o	espaço	interno	de	maneira</p><p>não	 integrada;	 em	 vez	 de	 contribuir	 para	 a	 contenção	 e	 a	 simbolização	 da	 força</p><p>pulsional,	ao	não	permitir	a	sua	ligação	no	aparelho	psíquico,	deixa	o	ego	exposto	à</p><p>invasão	de	um	excesso	pulsional.</p><p>Nesse	 caso,	 segundo	 Figueiredo	 &	 Cintra,	 apoiados,	 por	 sua	 vez,	 nas</p><p>contribuições	de	André	Green,	o	objeto	não	só	deixa	de	conter	a	força	pulsional,</p><p>como	realiza	uma	espécie	de	coalescência	com	ela,	tornando-a	ainda	mais	excessiva.</p><p>O	 efeito	 da	 “insistência”	 do	 objeto	 primário	 na	 constituição	 psíquica	 faz-se</p><p>perceber	nas	situações	clínicas	nas	quais	supomos	que	ele	não	tenha	desempenhado</p><p>suas	 funções	 básicas,	 ou	 seja,	 quando	 não	 se	 deixou	 “esquecer”.	 “É	 quando	 os</p><p>objetos	fracassam	ou	produzem	efeitos	‘extraordinários’	que	mais	somos	obrigados</p><p>a	 reconhecer	 seu	papel	constitutivo”	 (op.	cit.,	p.	15-16).	O	objeto	não	é	apenas	o</p><p>fundador	e	o	organizador	da	vida	psíquica:	em	determinados	casos,	ele	também	se</p><p>mostra	determinante	em	sua	desestruturação.</p><p>O	 trabalho	do	negativo	dá-se,	 em	alguns	 casos,	 sob	 a	modalidade	daquilo	que</p><p>Green	 (1986)	 denominou	 exclusão	 radical.	 O	 objeto	 passa	 a	 ocupar	 o	 espaço</p><p>psíquico:	ele	não	é	recalcado,	tampouco	se	submete	ao	domínio	do	ego.	Fica	deste</p><p>excluído,	 na	 qualidade	 de	 objeto	 externo	 internalizado,	 mas	 não	 integrado.</p><p>Permanece	no	interior	do	psiquismo	como	núcleo	de	exterioridade.	Isso	nos	remete</p><p>ao	 que	Cardoso	 (2010)	 considera	 constituir	 uma	 “alteridade	 radical”,	 cuja	 origem</p><p>reside	na	intrusão	de	elementos	vindos	do	outro	e	que	passam	a	habitar	o	mundo</p><p>interno,	 mas	 que,	 não	 tendo	 sido	 elaborados,	 nele	 se	 encravam	 como	 marcas</p><p>externas	interiorizadas,	porém	não	integradas.</p><p>É	preciso	perceber	que	o	 traumático	não	diz	 respeito	 apenas	 a	uma	dimensão</p><p>econômica	 e	 dinâmica,	 mas,	 ao	 mesmo	 tempo,	 à	 forma	 como	 o	 objeto	 passa	 a</p><p>habitar	o	espaço	 interno,	ao	 impasse	que	a	relação	com	o	outro	produziu	no	ego.</p><p>Uma	 vez	 que	 “são	 os	 objetos	 primários	 que,	 interceptando	 essa	 pulsionalidade,</p><p>podem	 conduzi-la	 às	 ligações	 ou,	 por	 sua	 ausência	 ou	 por	 suas	 insuficiências,</p><p>podem	 provocar	 e	 disparar	 as	 forças	 de	 descargas	 e	 do	 desligamento”</p><p>(FIGUEIREDO,	2003,	p.	152).</p><p>A	 intrusão	 do	 objeto	 fragiliza	 a	 constituição	 dos	 limites	 entre	 o	 eu	 e	 o	 outro.</p><p>Com	 sua	 presença	 maciça	 e	 contínua,	 o	 objeto	 deixa	 de	 cumprir	 seu	 papel,</p><p>dificultando	 a	 criação	 de	 um	 espaço	 fronteiriço	 entre	 o	 eu	 e	 o	 outro,	 espaço	 da</p><p>conflitualidade.	Desse	modo,	o	objeto	não	é	efetivamente	“perdido”,	interiorizado,</p><p>e	sua	perda	não	é	passível	de	simbolização.	Os	investimentos	libidinais	tendem	aqui</p><p>a	 se	 fixar	 no	 objeto	 primário,	 este	 permanecendo,	 conforme	 indicamos</p><p>anteriormente,	 como	 um	 “objeto	 absolutamente	 necessário”.	 Vemo-nos	 assim</p><p>diante	 do	 fracasso	 do	 trabalho	 do	 negativo,	 da	 impossibilidade	 de	 “perder”	 o</p><p>objeto,	aspecto	que	consideramos	constituir	o	cerne	da	problemática	da	bulimia.</p><p>A	 crise	bulímica	 confronta-nos	 com	a	 tentativa	do	 ego,	por	meio	do	 apelo	 ao</p><p>ato,	de	reverter	a	situação	de	passividade	à	qual	se	encontra	submetido.	Trata-se	de</p><p>uma	 resposta	 defensiva	 arcaica	 que	 envolve,	 paradoxalmente,	 a	 busca	 por	 um</p><p>mínimo	 distanciamento	 desse	 objeto	 excessivo	 que	 passou	 a	 ocupar	 o	 espaço</p><p>psíquico	do	sujeito.	Porém,	essa	resposta	terá	que	ser	constantemente	repetida,	pois</p><p>o	 fracasso	 do	 trabalho	 do	 negativo	 faz	 com	 que	 o	 objeto	 permaneça	 como	 uma</p><p>presença	insistentemente	intrusiva,	não	sendo	simbolizada.</p><p>Mas	 quais	 seriam	 as	 determinações	 da	 intrusão	 desse	 objeto	 violento	 no</p><p>psiquismo?</p><p>Um	movimento	regressivo</p><p>A	 intrusão	 do	 objeto	 no	 espaço	 psíquico	 instaura	 uma	 lógica	 singular	 de</p><p>funcionamento,	 uma	 vez	 que	 inviabiliza,	 dentre	 outros	 aspectos,	 a	 qualidade	 da</p><p>constituição	 das	 fronteiras	 egoicas.	 Indica	 Jeammet	 (2003)	 que	 os	 investimentos</p><p>libidinais	podem	manter-se	firmemente	fixados	no	objeto	primário,	dificultando	o</p><p>processo	 de	 unificação	 narcísica.	 Esta	 vertente	 da	 questão	 nos	 leva	 a	 explorar	 o</p><p>campo	 do	 autoerotismo,	 tempo	 primordial	 da	 constituição	 subjetiva.	 Para</p><p>analisarmos	esse	tópico,	iremos	nos	deter,	a	seguir,	na	noção	de	apoio.</p><p>A	 noção	 psicanalítica	 de	 apoio	 designa	 a	 relação	 primitiva	 que	 se	 trava	 entre</p><p>pulsões	 de	 autoconservação	 e	 pulsões	 sexuais,	 sendo	 que	 estas	 últimas	 só</p><p>secundariamente	vão	se	tornar	independentes;	para	efetivar	tal	operação,	apoiam-se</p><p>nas	funções	vitais	que	lhe	fornecem	uma	fonte	orgânica,	uma	direção	e	um	objeto</p><p>(LAPLANCHE	&	PONTALIS,	1982/2001).</p><p>Em	 1905,	 em	Os	 Três	 ensaios	 sobre	 a	 teoria	 da	 sexualidade,	 Freud	 postula	 a</p><p>proximidade	existente	entre	a	pulsão	sexual	e	certas	funções	corporais	necessárias	à</p><p>conservação	da</p><p>vida.	Isso	é	exemplificado	por	meio	da	sucção	do	seio	que,	além	de</p><p>fonte	de	alimento,	constitui-se	como	grande	fonte	de	prazer.	A	satisfação	da	zona</p><p>erógena	 está,	 a	 princípio,	 estreitamente	 associada	 à	 satisfação	 da	 necessidade	 do</p><p>alimento.</p><p>Nesse	primeiro	tempo,	a	função	corporal	fornece	à	sexualidade	a	sua	fonte	(um</p><p>objeto),	 permitindo	 que	 um	 prazer	 não	 redutível	 à	 satisfação	 da	 fome	 seja</p><p>experimentado.	No	movimento	do	 apoio,	o	objeto	da	pulsão	de	 autoconservação</p><p>coincide	com	o	da	pulsão	sexual.	Acrescenta	Freud	(1905/2006,	p.	171)	que	“[…]</p><p>em	breve	a	necessidade	de	repetir	a	satisfação	sexual	 irá	separar-se	da	necessidade</p><p>de	nutrição”.	A	sexualidade	tornar-se-á	autônoma	somente	a	partir	do	surgimento</p><p>de	 um	 desdobramento	 autoerótico,	 que	 é	 resultante	 da	 perda	 do	 objeto	 da</p><p>autoconservação.</p><p>Quanto	 a	 esse	 estágio	 da	 vida	psíquica,	 não	podemos,	 no	 entanto,	 descartar	 o</p><p>fato	de	nela	estar	implicada	a	presença	do	objeto,	levando-se	em	conta	a	dimensão</p><p>da	fantasia	“[…]	e	a	suposição	de	um	objeto	externo	interiorizado,	porém	ainda	não</p><p>integrado:	 objeto	 parcial,	 insubstituível,	 ‘objeto	 único’	 (nos	 termos	 de	 Jacques</p><p>André),	fonte	do	pulsional,	em	primeiro	lugar,	do	excesso	pulsional”	(CARDOSO,</p><p>2010,	 p.	 22).	 É	 esse	 objeto	 fantasístico	 que	 se	 tornará	 o	 objeto	 fonte	 da	 pulsão</p><p>sexual.</p><p>O	movimento	 de	 apoio	 sobre	 a	 função	 vital	 e	 os	 deslizamentos	 progressivos</p><p>pelos	quais	se	chega	à	perda	do	objeto	original	possibilitam	a	construção	do	objeto</p><p>da	pulsão	sexual.	Portanto,	o	movimento	de	apoio	ancora	a	própria	constituição	do</p><p>objeto	fonte	da	pulsão,	objeto	do	autoerotismo.	De	acordo	com	o	que	abordamos</p><p>no	 tópico	 anterior,	 o	 objeto	 do	 autoerotismo	 constitui	 o	 “objeto	 absolutamente</p><p>necessário”.	 Por	 intermédio	 do	 trabalho	 do	 negativo,	 ele	 poderá	 tornar-se	 uma</p><p>“presença	ausente”	por	permanecer	no	psiquismo	como	elemento	sempre	presente,</p><p>porém,	não	como	objeto,	mas	como	elemento	estruturante	da	vida	psíquica.</p><p>No	caso	da	bulimia,	não	é	isso	que	ocorre.	O	ego	do	sujeito	permanece	atrelado</p><p>a	 um	objeto	 interno	 “absolutamente	 necessário”	 –	 e	 que	 se	 desloca,	 na	 realidade</p><p>externa,	 à	 dependência	 radical	 de	 um	 objeto	 externo	 –,	 o	 que	 significa	 o</p><p>estabelecimento	de	um	desvio	do	regime	objetal	descontínuo,	insatisfatório,	regime</p><p>pulsional,	rumo	a	um	regime	substancial	contínuo.	Em	sintonia	com	o	que	aponta</p><p>Cardoso	(2010),	consideramos	que	esse	processo	implica	um	“movimento	de	des-</p><p>apoio”	 no	 sentido	 de	 sua	 tendência	 regressiva.	 E	 o	 que	 estaria	 na	 base	 dessa</p><p>tendência?</p><p>Segundo	Laplanche	&	Pontalis	(1982/2001),	o	fato	do	apoio	das	pulsões	sexuais</p><p>incidir	primeiramente	sobre	a	 fonte	e	o	objeto	da	pulsão	de	autoconservação,	e	a</p><p>posterior	 possibilidade	 desta	 se	 tornar	 independente,	 aponta	 precisamente	 para	 a</p><p>diferença	 de	 natureza	 existente	 entre	 as	 duas	 classes	 de	 pulsão.	 Acrescentam	 os</p><p>mencionados	 autores,	 que	 a	 pulsão	 de	 autoconservação	 tem	 seu	 funcionamento</p><p>predeterminado	pelo	aparelho	somático,	seu	objeto	sendo	imediatamente	fixado.	Já</p><p>quanto	 à	 pulsão	 sexual,	 seu	 modo	 de	 satisfação	 diz	 respeito,	 inicialmente,	 a	 um</p><p>ganho	 obtido	 à	margem	da	 pulsão	 de	 autoconservação,	 não	 possuindo,	 portanto,</p><p>um	funcionamento	ou	um	objeto	predeterminado.</p><p>Partindo	 dessa	 diferenciação	 e	 tendo	 como	 foco	 a	 questão	 do	 regime	 de</p><p>funcionamento	 psíquico,	 encontramos	 um	 caminho	 frutífero	 para	 pensarmos	 a</p><p>tendência	 regressiva	 da	 dinâmica	 pulsional	 na	 bulimia.	 Esta	 tendência,	 de	 caráter</p><p>desviante,	envolve	uma	singular	busca	da	satisfação,	quanto	ao	caminho	percorrido</p><p>a	partir	da	reivindicação	pulsional.	Em	vez	da	necessária	contingência	do	objeto	da</p><p>pulsão,	 passando	 de	 objeto-substituto	 em	 objeto-substituto,	 sempre	 em	 busca	 de</p><p>“outra	coisa”,	opera-se	aqui	um	desvio	para	um	“regime	da	substância”,	percurso</p><p>marcado	pelo	imperativo	de	um	sempre	mais,	mais	do	mesmo,	sem	possibilidade	de</p><p>abertura	para	uma	“outra	coisa”	(CARDOSO,	2010).</p><p>Pensamos	que	a	crise	bulímica	se	encontra	submetida	a	esse	regime	quantitativo.</p><p>O	 sujeito	 bulímico	 mantém-se	 fixado	 ao	 objeto	 parcial,	 objeto	 fonte	 da	 pulsão,</p><p>objeto	do	autoerotismo,	operação	 situada	aquém	da	unificação	narcísica.	Trata-se,</p><p>de	fato,	de	um	descaminho	no	registro	do	desejo,	“no	sentido	de	uma	‘perversão’	da</p><p>própria	 via	 pulsional,	 e	 que	 atrela	 o	 sujeito	 a	 uma	 servidão	 ao	 objeto	 fonte	 da</p><p>pulsão”	(op.	cit.,	p.	26).</p><p>Jacques	André	(2008)	permite-nos	aprofundar	ainda	mais	essa	questão,	quando</p><p>sublinha	que,	nos	casos	de	adicção	–	como	na	bulimia	–,	o	registro	do	desejo	estaria</p><p>submetido	 a	 uma	 exigência,	 a	 um	 imperativo,	 vindo	 obstruir	 a	 fluidez	 dos</p><p>investimentos	 libidinais.	 Essa	 proposição	 nos	 levou	 a	 pensar	 que	 o	 registro	 do</p><p>desejo	 mantém-se	 atrelado	 a	 um	 modo	 de	 funcionamento	 próximo	 ao	 da</p><p>autoconservação,	funcionando	como	imperativo.</p><p>Sobre	esse	ponto,	Igoin	(1979)	propõe	a	hipótese	segundo	a	qual,	na	bulimia,	a</p><p>pulsão	sexual	não	deixa	de	se	manter	apoiada	no	objeto	da	 função	vital.	Destaca,</p><p>porém,	 que	 a	 questão	 que	 aí	 se	 coloca	 não	 é	 a	 da	 fixação	 ao	 objeto	 da</p><p>autoconservação,	 do	 qual	 a	 sexualidade	 não	 poderia	 se	 libertar,	 mas	 a	 de	 uma</p><p>escolha	de	objeto	sexual	cuja	particularidade	é	a	de	“imitar”	uma	relação	vital.</p><p>Avançando	em	suas	proposições,	sustenta	a	autora	que,	na	bulimia,	tudo	se	passa</p><p>como	se	o	objeto	perdido	(da	autoconservação)	e	o	objeto	a	ser	reencontrado	(da</p><p>sexualidade)	 fossem	 o	 mesmo.	 A	 sexualidade	 não	 teria	 seu	 próprio	 objeto;	 a</p><p>alimentação	 seria	 convocada	 sem	 consideração	 da	 fome,	 perdendo	 seu	 papel	 de</p><p>nutrir,	 impedindo	 que	 a	 saciedade	 seja	 alcançada.	 Portanto,	 a	 função	 alimentar,</p><p>conduta	 neutralizada,	 dessexualizada,	 sublimada,	 fonte	 de	 prazer	 não	 sexual	 –	 ou</p><p>antes,	de	um	sexual	sublimado	–,	torna-se	aqui	também	objeto	da	pulsão	sexual.</p><p>Na	 bulimia,	 o	 registro	 do	 desejo	 funciona	 sob	 o	modelo	 da	 autoconservação,</p><p>indicativo	 de	 coalescência	 entre	 o	 objeto	 da	 sexualidade	 e	 o	 da	 autoconservação.</p><p>Nossa	 conclusão	 é	 que	 nessa	 patologia	 se	 opera	 um	movimento	 de	 “des-apoio”,</p><p>mediante	 uma	 tendência	 regressiva.	 Esta	 ideia	 vem	 descortinar	 um	 rico	 caminho</p><p>para	a	delimitação	de	algumas	diferenças	essenciais	entre	bulimia	e	anorexia.</p><p>Como	assinala	Igoin	(1979),	na	bulimia,	a	sexualidade	tende	a	“imitar”	a	função</p><p>da	autoconservação	da	qual	 justamente	se	diferencia.	Já	na	anorexia,	a	sexualidade</p><p>invade	 tal	 função	 a	 ponto	 de	 torná-la	 inoperante,	 de	 paralisá-la.	 Na	 anorexia,	 a</p><p>sexualidade	 invade	 o	 campo	 da	 autoconservação,	 subvertendo	 seu	 modo	 de</p><p>funcionamento,	 impondo-lhe	 outro,	 regido	 pelas	 pulsões	 sexuais.	 Sob	 essa</p><p>perspectiva,	 o	 caminho	 percorrido	 na	 anorexia	 é,	 de	 certa	 maneira,	 o	 inverso</p><p>daquele	 que	 tem	 lugar	 na	bulimia.	Nesta,	 as	 pulsões	 sexuais	 passam	 justamente	 a</p><p>funcionar	 sob	 um	 modelo	 muito	 próximo	 ao	 da	 autoconservação,	 enquanto	 na</p><p>anorexia	 a	 sexualidade	 invade	 esse	 campo,	 impondo-lhe	 seu	 modo	 de</p><p>funcionamento.</p><p>Cabe,	 entretanto,	 atentarmos	 para	 um	 importante	 matiz	 nessa	 proposta	 de</p><p>diferenciação,	 a	 saber:	 na	 bulimia,	 a	 junção	 entre	 sexualidade	 e	 autoconservação</p><p>mantém-se,	embora	o	funcionamento	da	pulsão	sexual	–	revelando-se	atrelado,	de</p><p>certa	maneira,	ao	da	autoconservação	–	traga	prejuízos	para	ambas,	uma	vez	que	se</p><p>centraliza	 em	 torno	 de	 um	mesmo	 objeto.	 Já	 no	 caso	 da	 anorexia,	 a	 sexualidade</p><p>prejudica	o	funcionamento	do	registro	da	autoconservação,	subvertendo	sua	lógica</p><p>de	funcionamento.</p><p>Tal	 posição	 se	 aproxima	 daquela	 sustentada	 por	 Fernandes	 (2006),	 quando</p><p>sublinha	que	a	disjunção	entre	fome	e	sexualidade,	própria	da	anorexia,	nos	fala	da</p><p>presença	 de	 uma	 espécie	 de	 curto-circuito	 entre	 sexualidade	 e	 função	 nutritiva,</p><p>como	 se	 uma	 “desfusão”	 pulsional	 se	 operasse	 no	 interior	 mesmo</p><p>da	 pulsão	 de</p><p>vida,	conduzindo-a	a	uma	fragmentação.</p><p>Eis	aqui	um	aspecto	significativo	que	esclarece	a	questão	da	diferenciação	entre</p><p>essas	 duas	 patologias,	 tão	 frequentemente	 analisadas	 de	 forma	 associada.	 Uma</p><p>análise	 apurada	 da	 questão	 da	 singularidade	 da	 dinâmica	 pulsional	 permite	 que</p><p>precisemos	algumas	diferenças	marcantes	entre	a	bulimia	e	a	anorexia,	aspecto	com</p><p>direta	 repercussão	 na	 forma	 de	 relação	 que,	 em	 cada	 uma	 delas,	 se	 trava	 com	 o</p><p>objeto	externo,	no	caso,	com	o	objeto	comida.</p><p>No	que	concerne	à	bulimia,	a	 intrusão	no	psiquismo	de	um	objeto	excessivo	e</p><p>violento	 repercute	 diretamente	 na	 relação	 do	 sujeito	 com	 o	 objeto	 externo.	 A</p><p>existência	de	uma	fragilidade	narcísica	conduz	a	arranjos	defensivos	voltados	para	a</p><p>realidade	 externa,	 em	 detrimento	 de	 defesas	 pautadas	 pela	 representação	 e	 pela</p><p>elaboração	 psíquica	 (JEAMMET,	 2003).	 O	 objeto	 externo	 adquire	 natureza</p><p>singular,	de	 caráter	 absoluto	e	 fixo.	No	âmbito	da	dinâmica	pulsional,	 assiste-se	 a</p><p>um	modo	de	 funcionamento	determinado	por	um	 imperativo,	no	sentido	de	uma</p><p>exigência	de	sempre	mais,	sempre	mais,	do	mesmo	objeto.</p><p>Segundo	 Brusset	 (2003),	 o	 que	 ganha	 relevo	 no	 arranjo	 defensivo,	 que	 é</p><p>característico	 da	 bulimia,	 é	 o	 fato	 do	 contato	 com	 o	 objeto	 estar	 a	 serviço	 da</p><p>necessidade	 do	 sujeito	 de	 se	 assegurar	 de	 sua	 presença	 e	 de	 sua	 não	 destruição,</p><p>forma	de	 contato	 que	 torna	 possível	mantê-lo,	 ilusoriamente,	 sob	 domínio.	Além</p><p>disso,	há	a	tendência	a	buscar	sensações	ligadas	à	exterioridade,	em	detrimento	das</p><p>emoções,	das	trocas	afetivas,	da	interioridade.	O	arranjo	relacional	com	o	objeto	é</p><p>substituído	por	uma	alternância	na	busca	de	sensações,	tanto	de	excitação	como	de</p><p>apaziguamento,	 mediante	 uma	 satisfação	 de	 tipo	 direto	 e	 imediato,	 espécie	 de</p><p>réplica	do	modelo	da	satisfação	da	necessidade.</p><p>O	 sujeito	mantém	 um	 contato	 com	 o	 objeto	 supostamente	 garantidor	 de	 sua</p><p>presença	 e	 de	 sua	 não	 destruição,	 tentando	 assim	 garantir	 o	 seu	 estatuto	 de</p><p>extraterritorialidade.	Isso,	em	alguma	medida,	salvaguardaria	seus	 limites	egoicos	e</p><p>sua	 identidade;	 a	 ancoragem	da	 excitação	 sobre	 uma	 atividade	 fisiológica	 e	 sobre</p><p>uma	substância	exógena	autorizaria	o	exercício	de	um	domínio	e	a	aquisição	de	uma</p><p>aparente	independência	em	relação	aos	objetos	investidos	(BRUSSET,	2003).</p><p>Na	bulimia,	esse	modo	de	relação	com	o	objeto	externo	–	objeto	comida	–	por</p><p>meio	de	um	movimento	regressivo	perpetua	uma	situação	de	radical	dependência,</p><p>situação	 inerente	 ao	 início	 da	 vida	 subjetiva	 a	 qual	 não	 encontrou	 uma	 via	 de</p><p>negativação,	 de	 superação,	 remetendo,	 compulsivamente,	 ao	 encontro	 com	 um</p><p>objeto	“absolutamente	necessário”.</p><p>Referências</p><p>ANDRÉ,	J.	Comunicação	oral	em	grupo	de	estudos,	2008.</p><p>BRUSSET,	B.	Psicopatologia	e	metapsicologia	da	adição	bulímica.	In:	BRUSSET,	P.;</p><p>COUVREUR,	C.;	FINE,	A.	(orgs.)	A	Bulimia.	São	Paulo:	Escuta,	2003.	p.	137-172.</p><p>CARDOSO,	M.	 R.	 A	 servidão	 ao	 “outro”	 nos	 estados	 limites.	 In:	 ________	 &</p><p>GARCIA,	C.	A.	Entre	o	eu	e	o	outro:	espaços	fronteiriços.	Curitiba:	Juruá,	2010.	17	–28.</p><p>FERNANDES,	M.	H.	Transtornos	alimentares.	São	Paulo:	Casa	do	Psicólogo,	2006.</p><p>FIGUEIREDO,	L.	C.	Psicanálise:	elementos	para	a	clínica	contemporânea.	São	Paulo:	Escuta,</p><p>2003.</p><p>FIGUEIREDO,	L.	C.	&	CINTRA,	E.	M.	U.	Lendo	André	Green:	o	 trabalho	do</p><p>negativo	e	o	paciente	limite.	In:	CARDOSO,	M.	R.	(org.)	Limites.	São	Paulo:	Escuta,</p><p>2004.	p.	13-58.</p><p>FREUD,	 S.	 [1905]	 Três	 ensaios	 sobre	 a	 teoria	 da	 sexualidade.	 In:	 Edição	 Standard</p><p>Brasileira	das	Obras	Completas	de	Sigmund	Freud.	Rio	de	Janeiro:	Imago,	2006.	v.</p><p>VII.</p><p>GREEN,	A.	El	trabajo	de	lo	negativo.	Buenos	Aires:	Amorrortu,	1986.</p><p>IGOIN,	L.	La	boulimie	et	son	infortune.	Paris:	PUF,	1979.</p><p>JEAMMET,	 P.	 Desregulações	 narcísicas	 e	 objetais	 na	 bulimia.	 In:	 BRUSSET,	 P.;</p><p>COUVREUR,	C.;	FINE,	A.	(orgs.)	In:	A	Bulimia.	São	Paulo:	Escuta,	2003.	p.	103-</p><p>136.</p><p>LAPLANCHE	 J.;	 PONTALIS,	 J.-B.	 Vocabulário	 de	 Psicanálise.	 4.	 ed.	 São	 Paulo:</p><p>Martins	Fontes,	1982/2001.</p><p>NOTAS	SOBRE	O	ABANDONO	DO	TRATAMENTO</p><p>Da	revisão	de	literatura	científica	às	contribuições	da</p><p>psicanálise	aplicada	à	clínica	das	Anorexias	e	Bulimias</p><p>Flávia	Machado	Seidinger-Leibovitz</p><p>Carla	Maria	Vieira</p><p>Larissa	Rodrigues</p><p>Introdução</p><p>O	 abandono	 do	 tratamento	 é	 comum	 nas	 psicoterapias	 e	 nos	 tratamentos</p><p>psiquiátricos	 e,	 em	 geral,	 tem	 como	 principal	 motivo,	 segundo	 pesquisas,	 a</p><p>insatisfação	do	paciente	com	o	tratamento	ou	com	o	terapeuta	(MOHL	et	al.,	1991;</p><p>THERANI	 et	 al,	 1996).	O	problema	 ganha	outros	 contornos	 quando	 se	 trata	 de</p><p>transtornos	alimentares	(TA):	taxas	muito	mais	elevadas	e	maior	gravidade,	o	que	é</p><p>reafirmado	 nos	 estudos	 aqui	 revisados.	 Por	 exemplo,	 o	 abandono	 em	 internação</p><p>para	 anorexia	 nervosa	 (AN)	 é	 ao	 menos	 duas	 vezes	 maior	 que	 em	 outros</p><p>transtornos	psiquiátricos	(KAHN;	PIKE,	2002).	Os	TA	são	considerados	os	mais</p><p>graves	dentre	os	transtornos	psiquiátricos,	pelo	comprometimento	psíquico	e	físico,</p><p>e	 pelo	 alto	 índice	 de	mortalidade,	 inclusive	 por	 suicídio	 (ARCELUS	 et	 al.,	 2011;</p><p>WHO,	2005).</p><p>O	 abandono	 do	 tratamento	 é	 conhecido	 na	 literatura	 científica	 internacional</p><p>pelo	descritor	dropout,	com	taxas	médias	de	50%	na	Anorexia	Nervosa	(AN)	e	30%</p><p>na	Bulimia	Nervosa	(BN).	Em	geral,	pesquisado	em	regime	de	internação,	é	ainda</p><p>mais	elevado	em	tratamento	ambulatorial	para	adultos.	Apesar	de	esforços	desde	a</p><p>primeira	 pesquisa	 sobre	 abandono	 em	 TA	 (VANDEREYCKEN;	 PIERLOOT,</p><p>1983)	 seguem	 existindo	 muitos	 impasses	 e	 aumento	 nas	 taxas	 de	 não	 adesão	 e</p><p>abandono,	 como	 as	 descritas	 entre	 1991	 e	 2006	 (CAMPBELL,	 2009;	 MAHON,</p><p>2000).	Assim,	o	fenômeno	sobre	o	qual	nos	debruçamos	neste	capítulo	justifica-se</p><p>pela	 relevância	 clínica,	 constitui	obstáculo	aos	êxitos	 terapêuticos	e	 fator	de	piora</p><p>do	prognóstico,	 e	 permanece	pouco	 esclarecido	 e	 carente	 de	 estudos	 qualitativos.</p><p>Trataremos	 de	 discutir	 os	 achados	 de	 uma	 revisão	 da	 literatura	 científica	 sobre	 o</p><p>tema1,	à	luz	da	psicanálise	aplicada	à	clínica	das	anorexias	e	bulimias.	Desse	modo,	a</p><p>leitura	implicará	o	exercício	constante	de	operar	com	dois	paradigmas:	de	um	lado,</p><p>o	médico-científico,	 com	 resultados	 obtidos	 pelo	método	 de	 revisão	 de	 literatura</p><p>em	bases	de	dados	internacionais;	e,	de	outro,	o	da	psicanálise,	cujos	fundamentos</p><p>teóricos	 sustentam	 nossa	 prática	 clínica	 em	 ambulatório	 especializado	 da	 rede</p><p>pública2,	 individualmente	 e	 em	 grupo,	 bem	 como	 no	 serviço	 privado,	 em</p><p>consultório.	 A	 partir	 dessa	 perspectiva,	 pousaremos	 diferentes	 olhares	 sobre	 o</p><p>mesmo	fenômeno	para	dialogar	por	meio	da	discussão	dos	achados	da	revisão.</p><p>Notas	da	revisão	bibliográfica	sobre	o	abandono	do	tratamento</p><p>No	 campo	 da	 pesquisa	 –	 O	 tema	 segue	 como	 desafio	 a	 clínicos	 e</p><p>pesquisadores,	com	baixo	impacto	na	clínica	e	resultados	insatisfatórios	na	pesquisa,</p><p>e	 os	 autores	 apontam:	 1)	 declínio	 da	 linha	 hegemônica	 de	 pesquisa	 que	 buscava</p><p>preditores	do	abandono	no	paciente;	2)	problemas	metodológicos,	alguns	específicos	ao</p><p>que	se	convencionou	chamar	TA,	por	exemplo,	relativos	à	classificação	diagnóstica</p><p>e	subtipos,	com	impacto	na	composição	de	amostras	comprometendo	estudos	em</p><p>função	de	 internações,	mortalidade	por	complicações	nutricionais	ou	suicídio,	e	o</p><p>próprio	 abandono	 do	 tratamento	 (WILD	 et	 al.,	 2009;	 SANTONASTASO	 et	 al.,</p><p>2009);	3)	impasses	na	pesquisa	que	conduzem	a	resultados	paradoxais	e	estudos	não</p><p>conclusivos.	 Elementos	 estes	 que	 demandam	 estudos	 qualitativos	 visando	 cernir</p><p>fenômenos	 não	 captados	 por	 tais	 desenhos	 de	 pesquisa	 e	 recortes	 de	 objeto	 no</p><p>paciente	como	único	responsável	pelo	abandono.	Assim,	a	revisão	apontou	que	o</p><p>abandono	 passou	 a	 ser	 visto	 como	 fenômeno	 complexo	 e	 multifacetado,</p><p>necessitando	 ser	 estudado	 em	 suas	 pluridimensionalidade	 e	 profundidade.	 Nesse</p><p>sentido,	 autores</p><p>(CAMPBELL,	 2009;	 WALLIER	 et	 al.,	 2009;	 SLY,	 2009)</p><p>argumentam	pela	 substituição	 do	 termo	 dropout	 por	 término	 prematuro	 do	 tratamento.</p><p>Na	 esteira	 dessas	 considerações,	 interroga-se	 ainda	 pela	 dinâmica	 que	 inclua	 o</p><p>tratamento,	o	funcionamento	da	equipe	–	o	que,	com	a	psicanálise,	poderíamos	ler</p><p>como	fenômenos	transferenciais	e/ou	contratransferenciais,	que	destacamos	como</p><p>fundamental	nos	resultados	encontrados.</p><p>No	 campo	 da	 clínica	 –	 Segundo	 a	 análise	 sobre	 abandono	 específico	 ao</p><p>tratamento	psicológico,	para	TA,	considerando	tipo	de	tratamento,	formato	e	setting,</p><p>o	abandono	não	guarda	relação	direta	com	o	tratamento	ambulatorial	ou	hospitalar</p><p>(MAHON,	 2000).	 Ademais,	 há	 que	 se	 considerar	 a	 não	 padronização	 entre	 os</p><p>estudos,	desde	a	definição	de	abandono	até	a	metodologia	empregada,	sendo	pouco</p><p>legítimo	 compará-los.	 Em	 sua	 maioria,	 são	 estudos	 prospectivos	 baseados	 em</p><p>experiências	 particulares	 em	 contextos	 culturais	 diversos,	 com	enormes	 variações,</p><p>inclusive	 do	 que	 é	 considerado	 abandono.	 Assim,	 as	 porcentagens	 não	 são</p><p>generalizáveis	 e	não	permitem	predizer	o	 fenômeno.	Ressalvas	 feitas,	 as	variações</p><p>das	 taxas	 encontradas	 permitem	 não	 muito	 mais	 que	 inferir	 maior	 índice	 de</p><p>abandono	 em	 regime	 ambulatorial	 que	 em	 internação,	 na	 AN	 e	 BN,	 no	 caso	 de</p><p>adultos.	O	contrário	se	pode	observar	nos	dois	únicos	estudos	encontrados	sobre</p><p>AN	em	adolescentes:	taxa	de	abandono	mais	alta	em	internação	(GODART,	2005)</p><p>que	 em	 regime	 ambulatorial	 (LOCK	 et	 al.,	 2006).	Os	 índices	 em	 internação	 para</p><p>BN	são	menores	quando	comparados	à	AN,	e	o	contrário	é	encontrado	em	regime</p><p>ambulatorial:	 taxas	 maiores	 de	 abandono	 ambulatorial	 na	 BN,	 nos	 estudos	 para</p><p>adultos;	 em	 adolescentes,	 taxa	 igualmente	 reduzida,	 aliás,	 menor	 que	 na	 AN</p><p>(HOSTE	 et	 al.,	 2007).	 Tal	 dado	 permite	 a	 hipótese:	 por	 ser	 menos	 frequente</p><p>internação	 em	 BN,	 tratar-se-ia	 de	 casos	 que,	 quando	 internados,	 representem</p><p>situações	 extremas	 nas	 quais	 outros	 critérios	 de	 gravidade	 ou	 risco	 podem	 estar</p><p>presentes,	gerando	maior	aceitação	e	adesão.	Também	é	possível	que	a	questão	do</p><p>“controle”,	central	nos	TA,	no	caso	da	internação,	sendo	bruscamente	passada	para</p><p>as	 mãos	 do	 outro,	 seja	 menos	 suportada	 pelos	 pacientes	 com	 AN,	 podendo	 ser</p><p>fator	 de	 aumento	 de	 abandono,	 pois	 a	 alimentação,	 nas	 internações,	 fica	 sob	 o</p><p>controle	 da	 equipe,	 o	 que	 não	 costuma	 ser	 suportado	 por	 pacientes	 no	 polo</p><p>anoréxico,	digamos	assim.	Ao	contrário,	no	“polo	bulímico”,	a	dieta	ser	controlada</p><p>pelo	outro	pode	ser	fator	de	alívio,	e	o	controle	dos	episódios	de	compulsão	reduz	a</p><p>necessidade	 da	 purgação,	 tornando	 a	 internação	 mais	 suportável.	 Em	 nossa</p><p>hipótese,	o	controle	excessivo,	presente	na	AN,	ficaria	abalado	pela	 internação;	ao</p><p>contrário,	 o	 controle	 visado,	 que	 vacila	 na	BN	e	 costuma	 ser	 sentido	 como	 falha</p><p>com	o	excesso	de	comida,	seria	restabelecido	pela	internação,	refletindo	em	melhor</p><p>adesão,	logo,	menor	abandono.</p><p>No	 setting	 ambulatorial,	 encontramos	 maiores	 índices	 de	 abandono	 nos</p><p>tratamentos	 da	 BN	 (WALLER,	 1997),	 o	 que	 pode	 ser	 atribuído	 ao	maior	 ajuste</p><p>social	no	caso	das	pessoas	com	BN	do	que	com	AN,	desde	a	doença	aparente	versus</p><p>a	doença	que	se	omite,	fator	acompanhado	da	estimativa	de	que	as	pacientes	com</p><p>BN	 se	 tratem	 menos	 que	 as	 com	 AN.	 Também	 sabemos	 ser	 mais	 frequente	 a</p><p>procura	por	demanda	espontânea	do	próprio	paciente	na	BN,	ao	contrário	da	AN.</p><p>Que	 os	 pacientes	 cheguem	 pela	 demanda	 da	 família	 ou	 outros	 vínculos	 pode</p><p>explicar	 parte	 dos	motivos	 de	maior	 abandono	 ambulatorial	 em	 tratamentos	para</p><p>BN	que	para	AN,	excluindo	interferência	de	terceiros	na	decisão.	No	caso	da	AN,</p><p>mesmo	em	adultos,	ocorreria	o	que	observamos	em	adolescentes:	menor	abandono</p><p>ligado	à	maior	participação	de	familiares.</p><p>Aspectos	do	abandono	do	tratamento	em	anorexia	e	bulimia</p><p>Os	 sintomas	 alimentares	 mais	 severos	 identificados	 nas	 triagens</p><p>(VANDEREYCKEN	 &	 PIERLOOT,	 1983;	 WALLER,	 1997;	 WOODSIDE;</p><p>CARTER	 &	 BLACKMORE,	 2004;	 FASSINO	 et	 al.,	 2003;	 SURGENOR;</p><p>MAGUIRE	&	BEUMONT,	2004)	 apresentam	correlação	com	 tempo	de	duração</p><p>da	doença	em	 tratamento	ambulatorial	para	 adolescentes	com	BN	HOSTE	et	 al.,</p><p>2007)	 e	 também	 internação	 para	 adultos	 com	 AN	 (KAHN;	 PIKE,	 2002;</p><p>WOODSIDE;	 CARTER;	 BLACKMORE,	 2007).	 O	 subtipo	 purgativo	 foi</p><p>encontrado	como	o	aspecto	mais	sustentado	pelas	pesquisas	enquanto	relacionado</p><p>ao	abandono,	e	atribuído	à	impulsividade,	correlato	clínico	que	os	une;	ainda	assim,</p><p>os	resultados	divergem3	em	grau	e,	afirmado	por	alguns,	é	negado	por	outros.</p><p>Abandonar	o	tratamento	é	necessariamente	algo	negativo?</p><p>O	risco	de	abandono	pode	diminuir	na	presença	da	depressão,	o	que	tampouco</p><p>significa,	 nesses	 casos,	 melhor	 prognóstico	 (ZEECK;	 HERZOG,	 2000).	 O</p><p>contrário	 foi	 verificado	 em	 estudos	 sobre	 internações	 para	 anorexia	 em	 adultos.</p><p>Encontrada	 relação	 positiva	 com	 severidade	 dos	 sintomas	 alimentares	 e</p><p>psicopatologia	 psiquiátrica	 (HOSTE,	 2007;	 VANDEREYCKEN;</p><p>VANSTEENKISTE,	 2009);	 de	 modo	 contrário,	 também	 encontrado	 em	 relação</p><p>negativa	(KAHN;	PIKE,	2002;	MAHON,	2001).	Transtornos	tipo	esquizoide	e	de</p><p>evitação	 foram	 encontrados	 nos	 pacientes	mais	 resistentes	 e	menos	 aderentes	 ao</p><p>tratamento,	 grupo	 com	maior	 índice	 de	 abandono.	 Frente	 a	 tais	 achados,	 autores</p><p>questionam	 a	 fidedignidade	 de	 pesquisas	 que	 consideram	 quaisquer	 interrupções</p><p>como	 abandono	 e	 advertem	 para	 o	 fato	 de	 que	 pacientes	 comórbidos	 com</p><p>Transtorno	 de	 Personalidade	 são	 frequentemente	 desligados	 pela	 equipe	 –	 e	 são</p><p>muitas	 vezes	 computados	 como	 abandonos,	 alertando	 sobre	 vieses	 prejudiciais	 à</p><p>construção	 do	 saber	 com	 este	 subgrupo,	 com	 pior	 prognóstico	 dentre	 os	 TA</p><p>(CLINTON;	BJÖRCK;	 SOHLBERG;	NORRING,	 2004;	MARTÍN	MURCIA	 et</p><p>al.,	 2009).	 Ainda,	 há	 o	 questionamento	 se	 é	 positivo	 que	 pacientes	 com	 TA	 e</p><p>depressão	 abandonem	 menos,	 o	 que	 pode	 indicar	 incapacidade	 de	 separação,</p><p>dependência	 do	 outro,	 considerando	 que	 tampouco	 obtêm	 melhoras	 em	 outros</p><p>critérios	–	o	que	relativiza	o	paradigma	do	abandono	como	resistência	do	paciente.</p><p>Na	mesma	direção,	autores	questionam	seu	caráter	negativo	ao	encontrar	correlação</p><p>significativa	com	melhora	global	e	escores	em	escalas	de	depressão,	autoestima	ou</p><p>autoconfiança.	 Portanto,	 recomendam	 mais	 pesquisas	 com	 análise	 qualitativa	 de</p><p>entrevistas	com	pacientes	e	terapeutas	a	fim	de	investigar	a	subjetividade	ligada	ao</p><p>abandono	e	seus	significados.</p><p>Autoimagem	negativa	é	menos	presente	em	pacientes	que	abandonam	(HALMI</p><p>et	 al.,	 2005;	BJÖRCK,	 2008),	 baixa	 autoestima	 (WALLER,	 1997;	HALMI,	 2005),</p><p>propensão	 à	 irritabilidade,	 ódio	 e	 não	 cooperação	 (FASSINO	 et	 al.,	 2003)	 foram</p><p>relacionados	 ao	 abandono	 e	 não	 adesão.	 Nos	 abandonos	 precoces	 encontram-se</p><p>mais	internações	prévias	(KAHN;	PIKE,	2002),	e	o	abandono	em	sua	forma	mais</p><p>tardia	 tende	a	ocorrer	 ao	verem-se	no	 limiar	de	mudanças	 subjetivas	 importantes,</p><p>quando	 tais	 pacientes	 tendem	 a	 recuar	 –	 encontrado	 por	 autores	 de	 estudos	 em</p><p>contextos	culturais	diversos,	por	métodos	distintos.	Aspectos	que	podem	explicar	o</p><p>abandono	 frente	 à	 melhora:	 dificuldade	 em	 ganhar	 peso	 na	 AN	 e	 BN	 como	 os</p><p>aspectos	descritos,	em	geral	medidos	por	escalas:	dificuldade	em	realizar	mudanças,	medo</p><p>do	amadurecimento,	necessidade	de	deter	o	controle,	dilema	central	vivido	por	tais	pacientes</p><p>(VANDEREYCKEN;	 VANSTEENKISTE,	 2009;	 EIVORS,	 2003),	 o	 qual</p><p>solucionam,	 em	 geral,	 ao	 abandonar	 antes,	 não	 permitindo	 à	 equipe	 dar-lhes	 alta</p><p>(BJÖRK,	2009),	logrando	assim	manter	consigo	o	poder,	o	controle	(BELL,	2003;</p><p>EIVORS	 et	 al.,	 2003).	 Trata-se	 da	 inversão	 da	 relação	 de	 potência	 no	 ato	 de</p><p>abandonar	na	iminência	da	alta,	como	quem	retira	da	equipe	esse	poder,	tomando-o</p><p>para	 si.	 O	 fenômeno</p><p>do	 abandono	 é	 compreendido,	 assim,	 como	 tentativa	 de</p><p>resolução	do	dilema	do	“controle	–	eu-o(O)utro”	ao	retirá-lo	das	mãos	da	equipe</p><p>nesse	ato.</p><p>Desde	 Freud,	 sabemos	 do	 custo	 para	 que	 possamos	 abrir	 mão	 dos	 nossos</p><p>sintomas;	especialmente	nesta	clínica,	o	deslocamento	para	o	corpo	cumpre	especial</p><p>função	e,	muitas	vezes,	 identidade,	como	a	metáfora	da	bengala,	que	discutiremos</p><p>mais	 adiante.	 No	 abandono	 tardio,	 a	 psicanálise	 nos	 permite	 a	 interpretação	 da</p><p>esquiva	 frente	 ao	 “risco”	 de	 se	 ver	 totalmente	 sem	 poder	 recorrer	 ao	 comer</p><p>desordenado;	a	ideia	da	alta	explicita	o	desarranjo	daquilo	que	cumpria	função	tão</p><p>cara	à	economia	psíquica.	Esse	recuo	é	também	apontado	pela	literatura	médica	na</p><p>análise	 do	 abandono	 tardio;	 assim,	 a	 psicodinâmica	 estabelecida	 nos	 TA	 é	 fator</p><p>relevante	 nas	 interrupções,	 com	 destaque	 para	 as	 características	 psicológicas	 do</p><p>desamparo	psíquico,	baixa	autoestima,	hostilidade	e	ambivalência.	A	disponibilidade</p><p>da	equipe	para	acolhimento,	manejo	clínico	e	flexibilidade	afirma-se	extremamente</p><p>relevante	e	relacionada	à	adesão	e	à	permanência,	especialmente	nas	AN.</p><p>Família	–	Envolvimento	familiar	no	tratamento	se	relaciona	a	menor	índice	de</p><p>abandono	 (WALLER,	 1997;	LOCK	et	 al.,	 2006)	 e	 pacientes	 que	não	 abandonam</p><p>têm	 famílias	 mais	 estruturadas	 (HOSTE	 et	 al.,	 2007)	 e	 com	menor	 histórico	 de</p><p>psicopatologia	 (VAN	 STRIEN;	 VAN	 DER	 HAM;	 VAN	 ENGELAND,	 1992),</p><p>enquanto	pacientes	que	abandonam	mais	 são	 filhos	de	pais	 separados	 (MAHON,</p><p>2001;	 LOCK	 et	 al.,	 2006;	 DALE	 GRAVE	 et	 al.,	 2008)	 –	 aspecto	 associado	 à</p><p>capacidade	 de	 constituir	 e	 manter	 laços	 (MAHON,	 2000)	 desde	 as	 experiências</p><p>primordiais	 e	 familiares.4	 Ou	 seja,	 a	 capacidade	 de	 manter	 os	 laços,	 inclusive	 na</p><p>relação	terapêutica,	é	diretamente	proporcional	ao	lugar	encontrado	(ou	não)	para	si</p><p>a	partir	dos	Outros	primordiais,	o	Outro	familiar.5</p><p>Remédio	e	veneno	do	abandono:	a	aliança	terapêutica</p><p>No	centro	da	discussão	do	abandono	encontramos,	seja	nos	achados	de	campo</p><p>(SEIDINGER,	 2014),	 seja	 nas	 conclusões	 da	 revisão,	 a	 dificuldade	 nas	 relações</p><p>interpessoais,	intensificada	nas	AN	e	BN,	e	seu	correlato	clínico,	a	aliança	terapêutica.</p><p>A	 ambivalência	 significativamente	 encontrada	 como	 em	 relação	 ao	 abandono	 na</p><p>AN,	os	mecanismos	de	introjeção	e	projeção	da	culpa	relacionados	à	autoimagem	e,</p><p>por	sua	vez,	às	dificuldades	geradas	no	campo	da	relação	interpessoal,	o	que	inclui	o</p><p>terapeuta,	 podem	 desembocar	 no	 abandono.	 O	 mesmo	 se	 dá	 na	 repetição	 das</p><p>dificuldades	 com	 as	 figuras	 parentais	 projetadas	 nessa	 relação	 (CLINTON	 et	 al.,</p><p>2004;	 OLIVEIRA;	 SANTOS,	 2006),	 dinâmica	 que,	 se	 negligenciada,	 pode</p><p>contribuir	com	o	abandono.</p><p>Pacientes	 com	 AN	 em	 psicoterapia	 especializada	 são	 mais	 propensos	 a</p><p>permanecer	em	tratamento	que	aqueles	a	quem	foi	oferecido	somente	 tratamento</p><p>ambulatorial	 de	 rotina,	 apesar	 de	 tratar-se	 de	 grupo	 com	 pior	 prognóstico	 por</p><p>desencadeamento	 precoce,	 longa	 duração	 da	 doença	 e	 história	 de	 insucesso	 no</p><p>tratamento	(EIVORS	et	al.,	2003).	Há	melhor	adesão	e	maior	efetividade	em	obter</p><p>ganho	de	peso	na	terapia	familiar	quando	associada	à	individual	focal	(DARE	et	al.,</p><p>2001),	isto	é:	independentemente	da	abordagem,	será	a	aliança	terapêutica	o</p><p>aspecto	 determinante	 para	 a	 permanência	 e	 o	 sucesso	 do	 tratamento?</p><p>Programas	 de	 autoajuda	 indicam	 melhores	 resultados	 e	 preferência	 quando</p><p>orientados	 se	 comparados	 aos	 não	 orientados	 (PERKINS	 et	 al.,	 2006),	 o	 que</p><p>aponta	 para	 a	 aliança	 terapêutica	 no	 sentido	 de	 que	 ter	 alguém	 na	 posição	 de</p><p>acompanhante	e	orientador	do	paciente	reflete	na	adesão	e	na	permanência.</p><p>Estudo	 de	 caso	 brasileiro	 com	 testes	 projetivos	 confirma	 as	 dificuldades</p><p>interpessoais	na	AN/BN;	por	outro	 lado,	encontra	condições	afetivas	de	vinculação</p><p>com	o	 terapeuta	 e	 reitera	 a	 necessidade	desse	 vínculo,	 bem	como	 a	 relação	 entre</p><p>traços	 psicopatológicos,	 hostilidade	 com	 a	 equipe,	mecanismo	 de	 negação,	 e	 não</p><p>adesão	ao	tratamento	(OLIVEIRA;	SANTOS,	2006).</p><p>Acima	 de	 qualquer	 outra	 variável	 do	 paciente	 ou	 abordagem	 encontram-se</p><p>significativamente	 relacionados	 ao	 abandono	 o	 papel	 da	 aliança	 terapêutica	 e</p><p>diferenças	 entre	 expectativas	 do	 paciente	 e	 da	 equipe	 (CLINTON,	 1996).	Nesse</p><p>sentido,	é	fundamental	que	os	tratamentos	tomem	como	alvo	o	trabalho	com</p><p>a	autoestima	e	não	com	o	controle	do	peso	(DALLE	et	al.,	2008).	Com	outros</p><p>autores,	defendemos	que	não	sejam	negligenciadas	questões	clínicas	e	nutricionais,</p><p>porém,	cabe	destacar	que	se	o	tratamento	colocá-las	em	primeiro	plano	correr-se-á</p><p>o	 sério	 risco	 de	 perder	 de	 vista	 questões	 psíquicas	 subjacentes	 e	motivadoras	 do</p><p>quadro	 alimentar,	 e	 favorecer	 o	 abandono	 por	 insistir	 na	 via	 que	 o	 próprio</p><p>adoecimento	 fechou,	 aumentando	 as	 velhas	 conhecidas:	 resistência	 ao	 tratamento</p><p>nos	 TA	 e	 reação	 terapêutica	 negativa.	 Destacamos	 como	 direção	 do	 tratamento:</p><p>trabalhar	 pela	 localização	 subjetiva	 dos	 fatores	 e	 da	 conjuntura	 do</p><p>desencadeamento,	 junto	 ao	 investimento	 em	 conquistar/construir	 a	 tão	 difícil</p><p>aliança	 terapêutica	 com	 tais	 pacientes,	 tendo	 em	 vista	 suas	 modalidades	 de	 relação</p><p>com	o	Outro.</p><p>De	um	tratamento	preliminar	ao	tratamento	possível	nas	anorexias	e</p><p>bulimias</p><p>A	 partir	 da	 revisão	 de	 literatura	 científica	 no	 campo	 do	 que	 é	 agrupado	 pela</p><p>psiquiatria	como	Transtornos	Alimentares,	é	possível	colher	estratégias	clínicas	para</p><p>a	redução	do	abandono,	como:	discussão	das	expectativas	do	tratamento,	abertura</p><p>para	negociação	de	certas	decisões	deixando	tramitar	“o	controle”	entre	a	equipe	e</p><p>o	paciente,	o	que	à	luz	da	aplicação	da	psicanálise	a	esta	clínica,	podemos	formular</p><p>em	termos	do	holding,	do	acolhimento	que	não	julga,	mas	ampara,	colocando-se	em</p><p>primeiro	 plano	 não	 a	 restauração	 de	 peso	 e	metas	 nutricionais,	 mas	 o	 constante</p><p>investimento	 na	 aliança	 terapêutica	 e	 seu	 manejo	 clínico,	 pois	 o	 alto	 risco	 do</p><p>abandono	como	“solução”	sempre	estará	presente.	Mais	ainda	nos	TA,	o	paciente</p><p>suposto	vinculado	hoje,	pode	ser	o	abandono	amanhã.	Isso	remete	à	discussão	da</p><p>abordagem	 do	 abandono	 como	 responsabilidade	 somente	 do	 paciente;	 faz-se</p><p>necessário	que	a	equipe	escute	o	que	está	em	jogo	para	o	sujeito	do	 inconsciente,</p><p>que	fica	rechaçado	no	deslocamento	para	o	corpo	do	conflito	anoréxico-bulímico.</p><p>Há	 que	 se	 debruçar	 sobre	 cada	 caso	 como	 único,	 e	 ter	 em	 vista	 as	 razões	 que	 a</p><p>clínica	e	a	 literatura	psicanalítica	clássica	nos	ensinaram,	para	amparar	 tais	sujeitos</p><p>nas	 construções	 que	 um	 dia	 lhes	 permitam	 abrir	 mão	 do	 que	 lhes	 é	 mais	 caro.</p><p>Enquanto	 não	 há	 possibilidade	 dessa	 relação	 terapêutica	 que	 permita	 que	 se</p><p>articulem	como	sujeito,	frente	ao	o(O)utro,	abandonar	o	tratamento	pode	ser	mais</p><p>confiável	que	abandonar	a	“muleta”.6</p><p>A	discussão	que	nos	toca	aqui	visa	construir	algum	saber	nos	interstícios,	isto	é,</p><p>nas	lacunas	surdas	entre	as	disciplinas,	que,	apesar	do	esforço	interdisciplinar	(LUZ,</p><p>2006)	são	rapidamente	percebidas	pela	psicodinâmica	de	nossas	pacientes,	pela	qual</p><p>muitas	 vezes	 se	 deixam	 tragar	 mediante	 sua	 ambivalência	 anoréxico-bulímica	 e,</p><p>quando	nos	damos	conta,	lá	se	foi	“a	criança	com	a	água	do	banho”,	como	no	sábio</p><p>dito	 popular.	 Somando-se	 sua	 maestria	 no	 funcionamento	 histérico	 à	 particular</p><p>relação	 de	 horror	 ao	 defeito,	 em	 geral,	 esses	 sujeitos	 ficam	 inconscientemente	 à</p><p>espreita	 das	 falhas,	 no	 tratamento	 ou	 no	 funcionamento	 da	 equipe,	 e	 delas	 se</p><p>nutrem;	 fartam-se	das	 falhas	e	obtêm	o	 jejum	anoréxico	na	 relação	com	a	equipe</p><p>por	intermédio	de	faltar,	não	aderir	e/ou	abandonar,	assim	rechaçando	a	oferta	de</p><p>tratamento.	 Conseguem,	 por	 fim,	 com	 suas	 manobras	 inconscientes,	 inverter	 a</p><p>demanda	 na	 relação	 com	 o	 Outro,	 conforme	 a	 lição	 de	 Lacan	 sobre	 o	 que</p><p>caracteriza	a	anorexia:	ao</p><p>lazer.	 Exercendo	 suas	 atividades</p><p>profissionais	no	mundo	corporativo,	diz	que	o	emprego	“suga”	suas	energias;	conta</p><p>que	 perdeu	 o	 apetite	 e	 emagreceu;	 nota	 que	 seus	 cabelos	 começaram	 a	 cair	 em</p><p>grande	quantidade,	que	ficou	irritadiça	e	dorme	mal.</p><p>Aparece,	 em	primeiro	plano,	uma	problemática	muito	 relevante	que	 remete	 ao</p><p>universo	das	psicopatologias	do	trabalho.	No	âmbito	das	questões	contemporâneas,</p><p>trata-se	 de	 um	 campo	 importante	 de	 investigação,	 e	 a	 psicanálise	 tem	 muito	 a</p><p>contribuir	 na	 compreensão	 dos	 excessos	 no	 trabalho.	 Tal	 problemática	mostra-se</p><p>especialmente	no	universo	corporativo,	em	que	são	frequentes	as	manipulações	das</p><p>relações	 de	 trabalho,	 com	 elementos	 psicológicos	 envolvidos	 na	 exploração	 do</p><p>empregado,	 levando	 a	 certos	 efeitos	 psicopatológicos	 hoje	 bem	 conhecidos</p><p>(DEJOURS,	 2007)	 que	 produzem	 efeitos	 de	 comportamentos	 aditivos	 e	 de</p><p>somatizações.</p><p>Mulher	 jovem,	 bonita,	 muito	 inteligente,	 chega	 demonstrando	 bastante</p><p>familiaridade	com	a	análise.	Se,	por	um	 lado,	 se	mostra	dona	de	 si	 e	 sabedora	do</p><p>que	busca,	por	outro,	transmite	muita	fragilidade,	da	qual	não	se	dá	conta.	Apesar</p><p>de	sua	postura	assertiva,	demonstra	também	uma	posição	passiva,	de	impotência,	de</p><p>certo	modo	vitimizada.	Entende	que	vive	uma	situação	de	exploração	no	trabalho,	o</p><p>que	lhe	provoca	muita	raiva.	Demonstra	clareza	em	sua	compreensão	das	questões</p><p>do	trabalho,	sua	sujeição	e	a	dos	colegas,	algo	que,	segundo	ela,	se	dá	por	meio	de</p><p>promoções	 e	 ganho	monetário	 cuja	 contrapartida	 é	 de	 exigências	 desmedidas	 de</p><p>eficiência	 e	 dedicação	 em	 termos	 de	 carga	 horária.	 Afirma	 sentir-se	 como	 que</p><p>capturada	 e	 escravizada	 por	 forças	muito	 além	das	 suas,	 as	 quais	 a	 submetem	 ao</p><p>fascínio	das	benesses	daquele	trabalho	em	termos	de	poder	aquisitivo	e	status.</p><p>Maria	 declara	 gostar	 de	 seu	 emprego,	mas	 nunca	haver	 se	 sentido	plenamente</p><p>realizada,	 tendo	 escolhido	 sua	 profissão	 por	 motivos	 financeiros.	 Cumpre	 suas</p><p>obrigações	profissionais	da	melhor	forma	possível,	sem	conseguir,	entretanto,	sentir</p><p>muito	 prazer	 ao	 trabalhar.	 Conta	 que	 trabalha	 desde	 os	 19	 anos,	 sempre</p><p>intensamente,	 e	 acha	 que	 escolheu	 a	 profissão	 errada.	 Revela	 gostar	 mesmo	 de</p><p>culinária,	e	que	chegou	a	fazer	cursos	mas	desistiu	da	ideia	quando	percebeu	que	era</p><p>uma	 atividade	 de	muito	 sacrifício	 pelos	 horários	 e	 que	 lhe	 proporcionava	 pouco</p><p>retorno	econômico.</p><p>Teve	várias	experiências	de	terapias,	a	primeira	delas	na	adolescência,	época	em</p><p>que	 apresentava	 bulimia;	 segundo	 ela,	melhorou	 justamente	 quando	 passou	 a	 ter</p><p>uma	 dedicação	 excessiva	 aos	 estudos	 e	 ao	 trabalho	 e	 relaciona	 os	 dois	 fatos.</p><p>Percebe-se,	 assim,	 que	 trazia	 algumas	 interpretações	 prontas	 e,	 algumas	 vezes,</p><p>fechadas.	Acrescenta	que	gosta	muito	de	agradar	aos	outros	e	que	tem	preocupação</p><p>em	não	decepcionar	os	pais.</p><p>Maria	vai	mostrando	certa	compulsão	pelo	 trabalho,	sendo	que	sua	dificuldade</p><p>reside	justamente	no	fato	de	procurar	atender	de	pronto	às	exigências	da	chefia:	no</p><p>intuito	de	agradar,	mergulhava	em	atividades	sem-fim	em	horário	muito	estendido.</p><p>Como	 reação,	 repentinamente	 surgia	 uma	 aversão	 a	 tudo,	 com	 um	 colorido</p><p>persecutório	 e	 uma	 necessidade	 de	 rompimento	 abrupto;	 com	 isso,	 vinham	 os</p><p>pensamentos	 e,	 depois,	 a	 decisão	 de	 se	 demitir.	 Conteúdo	 recorrente	 em	 suas</p><p>sessões,	 a	 necessidade	 imperiosa	 de	 deixar	 o	 emprego	decorria	 do	 sentimento	de</p><p>sua	sobrevivência	física	se	achar	em	risco.</p><p>Acompanhavam	 as	 queixas	 com	 o	 trabalho	 fantasias	 de	 estar	 em	 vias	 de	 ser</p><p>engolida	por	ele,	fantasias	estas	de	forte	conteúdo	oral	que	ela	mesma	relacionava</p><p>com	a	experiência	anterior	com	a	bulimia,	mas	tendo	muita	dificuldade	de	seguir	as</p><p>associações	nesse	sentido	e	de	poder	receber	as	intervenções	da	analista.	Teria	sido</p><p>seu	modo	de	chegar	à	 análise	 trazendo	prontas	 as	 interpretações	e	controlando	o</p><p>que	desejava	“colocar	para	dentro”?</p><p>Vários	 aspectos	 da	 problemática	 de	 Maria	 são	 muitas	 vezes	 encontrados	 nos</p><p>quadros	de	transtornos	alimentares,	polaridades	vítimas/algozes,	um	uso	dissociado</p><p>da	 inteligência	 e	 das	 capacidades	 de	 trabalho	 em	 contrapartida	 com	 a	 precária</p><p>percepção	 de	 seu	 corpo	 e	 de	 seu	 mundo	 interno.	 Os	 investimentos	 libidinais</p><p>apresentam-se	 ora	 como	 investimentos	 maciços	 ora	 como	 desinvestimento,</p><p>transitando	do	passional	 ao	 evitamento,	 “duas	modalidades	 relacionais	 espelhadas</p><p>que	 têm	 em	 comum	 o	 fato	 de	 uma	 ser	 a	 transformação	 no	 contrário	 da	 outra”</p><p>(JEAMMET,	1999,	p.	32).</p><p>É	 importante	 lembrar	 que	 as	 manifestações	 da	 bulimia	 se	 caracterizam	 por</p><p>acessos	de	hiperfagia	frequentemente	seguidos	de	vômitos,	na	busca	de	compensar</p><p>esse	comportamento	e	de	não	ganhar	peso,	tendo	como	pano	de	fundo	um	ideal	de</p><p>magreza,	 já	que	 tanto	na	bulimia	quanto	na	anorexia	mental	há	uma	distorção	da</p><p>imagem	 corporal.	 Sucedem-se	 episódios	 de	 compulsão	 alimentar	 da	 ordem	 da</p><p>impulsão,	de	uma	tendência	sem	freios	e	sem	mediação	psíquica.	Um	dos	aspectos</p><p>que	 caracteriza	 a	 bulimia	 é	 a	 forma	 como	o	 sujeito	 se	 relaciona	 com	o	 alimento,</p><p>como	 este	 é	 ingerido	 (em	 grande	 quantidade,	 de	 modo	 voraz	 e	 às	 escondidas).</p><p>Delineia-se	um	aspecto	anárquico	nessa	ingestão,	pois	não	há	prazer	nem	fome.	Por</p><p>esse	 fator	 e	por	 sua	dinâmica,	 a	bulimia	é	muitas	vezes	 associada	às	 adições.	 “Os</p><p>fatores	 desencadeantes	 desses	 acessos	 são	 diversos,	 mas	 frequentemente</p><p>relacionam-se	com	sentimentos	de	desamparo,	fracasso	e	solidão,	ou	ao	contrário,</p><p>de	excitação	e	prazer.”	(FERNANDES,	2006,	p.	76).	Isso	aparecia	no	caso	de	Maria</p><p>no	aspecto	aditivo.</p><p>Outra	questão	relevante	nos	casos	de	bulimia	é	a	supervalorização	da	aparência</p><p>quanto	à	 imagem	corporal,	mas	 também	do	 lado	material	da	vida,	bem	como	das</p><p>sensações	e	dos	prazeres	imediatos.	Esse	aspecto	associa-se	à	dimensão	do	modo	de</p><p>vida	 contemporâneo,	 no	 qual	 se	 faz	 cada	 vez	 mais	 presente	 o	 individualismo,</p><p>dissolvendo	as	experiências	de	solidariedade,	apoio	mútuo	e	valorização	do	humano</p><p>como	contrapartida	ao	universo	da	materialidade	e	do	consumo.</p><p>Proponho	olhar	o	caso	de	Maria	a	partir	da	perspectiva	de	Jeammet	(1999),	de</p><p>um	 funcionamento	 em	 patchwork,	 uma	 composição,	 estando	 ausente	 uma</p><p>organização	psíquica	dominante,	com	níveis	de	estruturação	sobrepostos,	o	que	faz</p><p>surgir	diferentes	faces	que	se	alternam	ora	em	angústias	arcaicas	ora	em	rearranjos</p><p>relacionais	de	tipo	neurótico.</p><p>Era	possível	 notar	 na	 transferência	 essa	marca	 das	 polaridades:	 algumas	 vezes,</p><p>mostrava	uma	excessiva	familiaridade,	como	se	acreditasse	de	fato	haver	entre	nós</p><p>um	 vínculo	muito	 sólido,	 que	 parecia	 real,	 e,	 outras	 vezes	 se	 comportava	 de	 um</p><p>modo	 distanciado,	 como	 se	 viesse	 para	 a	 análise	 só	 quando	 tinha	 problemas	 a</p><p>resolver.	 Podemos	 pensar	 aí	 em	 uma	 recusa	 a	 estreitar	 o	 vínculo?	 Como	 que</p><p>correndo	 um	 risco	 narcísico	 na	 dificuldade	 de	 administrar	 a	 proximidade	 e	 a</p><p>distância	do	objeto?	Para	realizar	uma	relação	utilitária,	do	tipo	“usar	e	jogar	fora”,</p><p>ou	 comer	 e	 vomitar?	 Era	 como	 se	 para	 ela	 bastasse	 ter	 uma	 analista,	 sendo</p><p>desnecessário	construir	uma	relação	a	partir	das	sessões	e	de	 trabalhar	sobre	seus</p><p>afetos.	Agia	como	se	a	análise	fosse	um	prêt-à-porter,	comprar	e	pronto.</p><p>Casada	 há	 pouco	 tempo,	 ela	 e	 o	 marido	 estavam	 reformando	 o	 apartamento</p><p>recém-adquirido,	 algo	 a	 que	 se	 dedicava	 bastante	 e	 que	 resultava	 dos	 ganhos	 no</p><p>trabalho.	Seus	pais	se	orgulhavam	muito	de	ela,	tão	jovem,	já	ter	comprado	e	estar</p><p>reformando	seu	imóvel	sem	a	ajuda	econômica	deles.	Para	ela	e	sua	família,	o	fator</p><p>econômico	parecia	representar,	ou	melhor,	equivaler,	a	uma	estabilidade	emocional,</p><p>e	a	sintomatologia	por	ela	apresentada	refletia	justamente	a	eventual	ameaça	a	essa</p><p>condição.</p><p>Por	causa	da	reforma	do	apartamento,	ela	e	o	marido	residiam	temporariamente</p><p>em	outro	 local.	Ela	 falava	muito	mal	dessa</p><p>colocar	a	equipe	no	lugar	da	mãe	nutriz,	fazem	equivaler	o</p><p>tratamento	ofertado	ao	alimento.	Produzem,	por	sua	posição	subjetiva,	a	conhecida</p><p>“inversão	na	relação	de	potência	com	o	Outro”	(LACAN,	1995),	obtendo	assim	um</p><p>alívio	por	cavar	uma	falta	nesse	outro	que	lhes	é	maciço,	vivenciado	como	invasivo,</p><p>desde	 a	 alienação	 subjetiva,	 faltando-lhes	 avançar	 na	 operação	 de	 separação	 do</p><p>Outro	materno,	no	qual	o	tratamento	possível	deve	operar.7</p><p>Considerações	finais</p><p>Clínicos	 e	pesquisadores	 levantados	 em	nossa	 revisão	 consideram	o	 abandono</p><p>em	 AN	 e	 BN	 como	 fenômeno	 complexo	 e	 multifacetado.	 São	 necessários	 mais</p><p>estudos	 qualitativos	 pautados	 na	 compreensão	 das	 vivências	 e	 significados	 do</p><p>abandono,	 investigando	 seus	 significados	 e	modalidades	 em	diferentes	 regimes	de</p><p>tratamento,	faixa	etária,	etc.</p><p>A	 busca	 dos	 chamados	 preditores	 do	 abandono	 declinou	 e	 passou-se	 a</p><p>considerar	 setting,	 abordagem,	 grau	 de	 autonomia	 do	 paciente,	 características	 dos</p><p>terapeutas;	 porém,	 é	 válido	 apontar	 que	 subtipo	 purgativo,	 baixa	 escolaridade,</p><p>gravidade	 de	 sintomas	 alimentares	 na	 triagem,	 estrutura	 e	 psicopatologia	 familiar</p><p>são	indicados	por	diversos	estudos	como	fortemente	relacionados	ao	abandono.</p><p>A	motivação	central	para	o	abandono	parece	residir	nas	dificuldades	próprias	à</p><p>psicopatologia	 dos	 transtornos	 alimentares	 no	 campo	 do	 relacionamento</p><p>interpessoal	e	na	diferença	entre	as	expectativas	do	terapeuta	e	do	paciente.	Reitera-</p><p>se	 a	 importância	 fundamental	 da	 construção	 da	 aliança	 terapêutica	 pela	 equipe,</p><p>condição	conhecida	para	qualquer	tratamento,	porém,	ainda	mais	importante	em	se</p><p>tratando	de	pacientes	com	anorexia	nervosa	ou	bulimia,	relação	que	esperamos	ter</p><p>clareado	ao	longo	deste	texto.</p><p>O	abandono	do	tratamento	nos	TA	constitui	face	pouco	explorada,	cujo	método</p><p>se	 encontra	 em	evolução;	 a	 revisão	 compreensiva	dos	 aspectos	 implicados,	 vários</p><p>controversos,	tem	a	expectativa	de	contribuir	para	a	elaboração	de	abordagens	mais</p><p>eficazes,	 bem	 como	 fundamentar	 pesquisa	 qualitativa	 de	 campo	 que	 merece</p><p>continuidade	 com	 foco	 nas	 questões	 do	 apego	 e	 no	 aprofundamento	 da</p><p>compreensão	dos	fenômenos	da	transferência,	em	jogo	no	que	a	psicologia	médica</p><p>chama	 aliança	 terapêutica.	 Assim,	 concluímos	 ao	 apontar	 o	 seu	 manejo	 como</p><p>principal	 ferramenta	 de	 adesão	 e	 permanência	 no	 terreno	 constantemente</p><p>desafiador	do	tratamento	possível	para	as	anorexias	e	bulimias.</p><p>Agradecimentos:	Aos	suportes	financeiros	da	CAPES	e	FAPESP,	e	às	grandes	contribuições	dos	coautores</p><p>da	revisão	de	literatura,	Celso	Garcia	Júnior	e	Professor	Doutor	Egberto	Ribeiro	Turato.	Ao	Instituto	Clínico	de</p><p>Buenos	Aires,	ao	CLIN-a,	aos	queridos	pares	do	LPCq	e	do	GETA,	e	às	pacientes,	que	nos	ensinam	até	quando</p><p>abandonam.</p><p>Notas:</p><p>1.	A	 referida	 revisão	 de	 literatura	 fundamentou	 as	 bases	 da	 pesquisa	 para	 obtenção	 do	 título	 de	mestre	 em</p><p>Ciências	 Médicas/Saúde	 Mental	 na	 FCM-Unicamp	 (SEIDINGER,	 2014);	 bolsa	 CAPes	 e	 Aux.	 Pesquisa</p><p>Fapesp	 2011/20469-8.	 Apresentado:	 15th	World	 Congress	 of 	 Psychiatry,	 Buenos	 Aires,	 2011;	 European</p><p>Psychiatry	Association,	 Viena,	 2011;	 (SEIDINGER;	GARCIA;	 BÖTTCHER-LUIZ;	 TURATO,	 2011).	O</p><p>artigo	de	revisão	no	qual	este	capítulo	se	fundamenta	foi	recentemente	publicado	na	 íntegra	em	periódico</p><p>multidisciplinar	 brasileiro	 (SEIDINGER-LEIBOVITZ;	 RODRIGUES,	 GARCIA-JÚNIOR;	 VIEIRA,</p><p>2016).</p><p>2.	GETA	/UNICAMP	–	Grupo	Interdisciplinar	de	Assistência	e	Estudos	em	Transtornos	Alimentares.</p><p>3.	Os	 seguintes	 estudos	o	encontraram	como:	 forte	preditor,	 e	preditor	modesto,	 em	outros,	não	 se	 revelou</p><p>como	preditor.</p><p>4.	A	partir	da	experiência	clínica,	entendemos	que	o	que	a	literatura	nomeia	“desestruturação	familiar”	pode	se</p><p>dar	 de	 diversos	modos,	 inclusive	 quando	 o	 núcleo	 familiar	 não	 se	 desfaz	 efetivamente,	 porém	 as	 figuras</p><p>parentais	não	sustentam	os	laços,	deixando	de	ocupar	posições	simbólicas	importantes	ao	desenvolvimento</p><p>psíquico	 dos	 filhos	 –	 muitas	 vezes	 está	 lá,	 mas	 é	 rechaçado	 pela	 posição	 subjetiva	 do	 filho,	 que</p><p>inconscientemente	escolhe	não	consentir	com	os	limites,	com	a	Lei,	a	castração.</p><p>5.	Em	outro	estudo,	aprofundamos	a	análise	do	complexo	de	abandono	segundo	Germaine	Guex	(SEIDINGER-</p><p>LEIBOVITZ	et	al.,	2015).</p><p>6.	Menção	às	metáforas	comumente	referidas	por	esses	paciente,	tais	como	“muleta,	bengala”,	verbalizados	no</p><p>sentido	do	sintoma	psíquico,	como	aquilo	que	nos	é	mais	caro,	necessário,	e	do	qual	dependemos,	muito	ou</p><p>pouco,	como	apoio;	em	recuperação,	descrevem	a	sensação	de	encontrar,	ou	recuperar,	as	próprias	pernas.</p><p>Momento	 no	 qual	 testemunhamos	 algum	 distanciamento	 entre	 o	 somático	 e	 o	 psíquico	 que	 constitui	 a</p><p>própria	condição	da	melhora	para	poder	consentir	com	o	alimento,	ou	o	seu	equivalente	nas	 intervenções,</p><p>isto	é:	o	alimento-oferta	que	vem	do	Outro	da	equipe,	espelho	no	qual	podem	reconstruir	ou	construir	uma</p><p>imagem	corporal,	retificar	suas	marcas,	algumas	traumáticas,	outras	que	resistem	à	separação,	propriamente</p><p>dita,	do	Outro	materno.</p><p>7.	 Segundo	 Lacan	 as	 duas	 operações	 de	 constituição	 do	 sujeito	 são	 alienação	 e	 separação	 (LACAN,	 1988;</p><p>LACAN,	1998).</p><p>Referências</p><p>ARCELUS,	J.	et	al.	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In:	Acta</p><p>Psychiatr	Scand.,	111(1):29-37,	2005.</p><p>RELAÇÃO	MÃE-FILHA</p><p>Repercussões	psicológicas	dos	cuidados	maternos</p><p>Christiane	Baldin	Adami-Lauand</p><p>Fabiana	Elias	Goulart	de	Andrade	Moura</p><p>Rosane	Pilot	Pessa</p><p>Introdução</p><p>Os	 transtornos	alimentares	 (TA)	 são	descritos	na	 literatura	 especializada	como</p><p>doenças	mentais,	 cuja	 etiologia	 envolve	 fatores	biológicos,	 genéticos,	psicológicos,</p><p>socioculturais	 e	 familiares	 (MORGAN;	 CLAUDINO,	 2005;	 SICCHIERI	 et	 al.,</p><p>2007).	No	entanto,	a	compreensão	tanto	dos	sintomas	como	de	sua	etiopatogenia</p><p>ainda	apresenta	um	caráter	enigmático	e	desafiador,	uma	vez	que	contrariam	o	mais</p><p>básico	e	primitivo	dos	impulsos	de	vida.</p><p>Diversos	 fatores	 são	 conhecidos	 por	 contribuírem	 para	 a	 predisposição,</p><p>instalação	 e	 a	 manutenção	 dos	 sintomas	 dos	 transtornos	 alimentares,	 com	 a</p><p>influência	 combinada	 da	 dinâmica	 familiar,	 do	 meio	 cultural	 e	 de	 aspectos	 de</p><p>personalidade	 do	 indivíduo	 (OLIVEIRA;	 SANTOS,	 2006;	DUPONT;	CORCOS,</p><p>2008).</p><p>A	construção	do	vínculo	mãe-filha	nos	TA	tem	sido	objeto	de	vários	estudos,	na</p><p>medida	em	que	tal	vínculo	se	apresenta	a	partir	de	relações	simbióticas	e,	ao	mesmo</p><p>tempo,	muito	problemáticas	 e	 conflituosas,	 contribuindo	para	 fixar	um	padrão	de</p><p>relacionamentos	 intensos	 e	 confusos	 do	 ponto	 de	 vista	 do	 processo	 de</p><p>individuação.	 Dessa	 forma,	 o	 conflito	 é	 situado	 em	 fases	 precoces	 do</p><p>desenvolvimento	 psicoafetivo,	 mais	 exatamente	 nos	 primórdios	 da	 relação</p><p>estabelecida	 pela	 dupla	 e	 influenciado	 pelo	 processo	 alimentar,	 que	 constitui	 o</p><p>primeiro	elo	entre	mãe	e	filha.</p><p>Neste	trabalho,	consideramos	que	a	construção	do	vínculo	emocional	centra-se</p><p>em	três	elementos	fundamentais	para	a	organização	e	integração	da	vida	psíquica	do</p><p>indivíduo:	o	binômio	alimentar/ser	alimentado	 (tendo	o	alimento	como	balizador</p><p>da	 relação	mãe-bebê,	veículo	pulsional	e	agente	de	desejo);	 a	condição	que	a	mãe</p><p>terá	de	receber	e	conter	as	necessidades	dessa	criança;	e	a	historicidade	das	relações</p><p>influenciada,	muitas	 vezes,	 pelos	mecanismos	de	 identificação	que	 se	 estabelecem</p><p>entre	as	gerações,	constituindo	uma	herança	transgeracional.</p><p>Esse	conhecimento	torna-se	um	requisito	essencial	não	apenas	do	ponto	de	vista</p><p>do	 valor	 diagnóstico	 que	 possa	 ter,	 como	 também	 de	 seu	 valor	 prognóstico,	 na</p><p>medida	em	que	contribui	com	o	planejamento	da	intervenção	terapêutica.</p><p>A	constituição	do	vínculo</p><p>A	 partir	 de	 observações	 clínicas	 de	 crianças	 pequenas,	 Klein	 (2006)	 buscou</p><p>compreender	 as	 ansiedades	 primitivas	 e	 os	 sentimentos	 de	 culpa	 gerados	 pelos</p><p>impulsos	destrutivos	e	fantasias	agressivas	do	bebê,	dirigidos	primeiramente	ao	seio</p><p>da	mãe,	 como	 representante	de	 seu	mundo	 interno	 e,	 posteriormente,	 ao	mundo</p><p>externo	–	a	mãe	como	objeto	 total.	Essa	autora	buscou	compreender	os	sentidos</p><p>dessas	 manifestações	 do	 inconsciente,	 relacionando-as	 com	 o	 processo	 de</p><p>desenvolvimento	 normal	 e	 também	 com	 as	 psicopatologias	 que	 se	 manifestam</p><p>tanto	na	criança	quanto	no	adulto.</p><p>Na	 concepção	 kleiniana,	 no	 bebê	 satisfeito,	 o	 domínio	 da	 ansiedade	 requer	 o</p><p>controle	da	avidez,	que	se	dá	por	meio	da	subordinação	da	relação	alimentar	a	um</p><p>princípio	de	relação	de	objeto.	O	contato	com	a	realidade	depende	essencialmente</p><p>do	 sentimento	 de	 segurança.	 Se	 a	 criança	 não	 está	 segura	 de	 receber	 amor,	 seu</p><p>pleno	desenvolvimento	poderá	ficar	comprometido.</p><p>Winnicott	(2000)	afirma	que,	no	início	da	vida,	o	bebê	sente	como	se	ele	e	a	mãe</p><p>formassem	uma	unidade	somatopsíquica,	inexistindo	outra	possibilidade	de	arranjo</p><p>mental,	principalmente	em	decorrência	da	extrema	dependência	que	a	criança	tem</p><p>dos	cuidados	maternos.	Uma	mãe	com	disponibilidade	e	preocupação	genuína	com</p><p>os	cuidados	e	as	necessidades	de	 seu	 filho	contribui	para	uma	adaptação	ativa	do</p><p>bebê	ao	ambiente	externo.	Para	superar	esse	estado	inicial	de	dependência	e	atingir</p><p>uma	relativa	independência	é	necessário	que	a	mãe	crie	um	ambiente	de	segurança</p><p>em	que	a	criança	possa	experimentar	diversas	sensações	e	experiências	sem	que	se</p><p>sinta	insegura	ou	ameaçada	em	sua	integridade,	possa	manifestar	suas	tendências	ao</p><p>desenvolvimento	e	experimentar	movimentos	espontâneos	rumo	à	independência.</p><p>Quando	 a	 mãe	 tem	 um	 ambiente	 favorável	 e	 consegue	 dedicar-se	 ao	 bebê	 e</p><p>identificar-se	 com	 ele,	Winnicott	 (1982)	 acredita	 que	 a	 alimentação	 desta	 criança</p><p>constitui-se	uma	das	partes	mais	importantes	da	relação.	Para	ele,	a	mãe	e	o	recém-</p><p>nascido	 estariam	 prontos	 para	 unirem-se	 pelos	 laços	 de	 amor	 e,	 naturalmente,</p><p>conhecerem-se	 e,	 em	 seguida,	 aceitarem	 os	 riscos	 emocionais	 envolvidos	 nessa</p><p>relação.	A	partir	do	momento	que	passam	a	confiar	um	no	outro	e	a	entender-se</p><p>mutuamente,	o	processo	de	alimentação	começa	a	se	desenvolver	por	conta	própria.</p><p>A	relação	harmoniosa	entre	a	mãe	e	o	bebê	proporciona	a	este	último	a	 ilusão</p><p>onipotente	 de	 ter	 criado	 os	 objetos	 que	 atendam	 às	 suas	 necessidades	 no	 exato</p><p>instante	 em	 que	 elas	 surgiram.	Nesse	momento,	 o	 bebê	 é	 incapaz	 de	 perceber	 a</p><p>existência	de	outro	sujeito	e	de	diferenciar	suas	experiências	internas	dos	cuidados</p><p>externos	oferecidos	pela	mãe	ou	pessoa	que	assume	a	função	materna.</p><p>Conforme	o	bebê	se	desenvolve,	é	natural	que	adquira	condição	de	perceber	que</p><p>a	mãe	é	alguém	separado	dele,	e	a	fusão	anterior	começa	a	dar	lugar	a	outra	relação</p><p>rumo	ao	desenvolvimento	da	capacidade	criativa	do	indivíduo.</p><p>Segal	 (1975)	 considera	 que,	 quando	 a	 relação	 é	 fortemente	 perturbada	 pela</p><p>resposta	adversa	da	mãe	ou	pela	inveja	do	bebê	–	normalmente	uma	combinação	de</p><p>ambos	–,	estão	lançadas	as	bases	para	uma	perturbação	psicótica	posterior.</p><p>Bruch	(1973),	uma	das	pioneiras	no	estudo	dos	transtornos	alimentares,	atribui	o</p><p>desenvolvimento	 deficiente	 dessas	 pacientes	 à	 escassez	 de	 respostas</p><p>retroalimentadoras	 apropriadas.	 Por	 exemplo,	 as	 necessidades	 da	 criança	 foram</p><p>respondidas	 pela	 mãe	 de	 modo	 contraditório	 ou	 com	 extrema	 solicitude,</p><p>conduzindo	 a	 filha	 a	 um	 reconhecimento	 ineficaz	 de	 seus	 estados	 internos,	 a</p><p>respostas	 insuficientemente	 diferenciadas	 e	 a	 deficiências	 conceituais	 ou</p><p>perceptuais.	A	criança	não	receberia	um	retorno	confirmatório	de	suas	sensações	e</p><p>sentimentos,	 o	 que	 traria	 grande	 insatisfação	 e	 insegurança	 por	 não	 ter	 clareza</p><p>acerca	 das	 próprias	 necessidades,	 dificultando,	 assim,	 o	 desenvolvimento	 de	 seu</p><p>sentido	de	self.	Seu	sentimento	de	autonomia	estaria	prejudicado	e	ela	se	perceberia</p><p>como	 uma	 mera	 extensão	 da	 mãe.	 Isso	 provocaria,	 mais	 tarde,	 um	 medo	 de	 se</p><p>separar	 do	 convívio	 íntimo	 e	 da	 zona	 de	 influência	 dos	 pais.	 Nessa	 vertente,	 a</p><p>autora	situa	o	problema	que	compromete	o	comportamento	alimentar	na	base	da</p><p>comunicação	mãe-filha,	a	partir	da	má	organização	precoce.</p><p>Os	transtornos	alimentares	e	a	transgeracionalidade</p><p>O	material	 clínico	 dos	 atendimentos	 com	 pacientes	 portadores	 de	 TA	 e	 seus</p><p>familiares	nos	revela	que,	na	dupla	mãe-filha,	os	enredos	de	suas	histórias	misturam-</p><p>se	 e,	 às	 vezes,	 os	 conflitos	 pertencentes	 à	 geração	 anterior	 tendem	 a	 se	 repetir	 a</p><p>cada	geração.	Histórias	rejeitadas	pelas	mães,	guardadas	no	“porão	de	suas	mentes”,</p><p>lutos	 não	 elaborados,	 segredos,	 traumas,	 silêncios	 parecem	 encontrar	 um	 terreno</p><p>fértil	 no	 psiquismo	 de	 suas	 filhas,	 caracterizando	 um	 processo	 de	 transmissão</p><p>psíquica	entre	as	gerações.</p><p>A	 respeito	 dessa	 transmissão,	 Silva	 (2003)	 traz	 que,	 em	 casos	 de	 transtornos</p><p>emocionais	graves,	observa-se	que	o	self	desses	pacientes	é	habitado	por	conteúdos</p><p>inconscientes	que	pertencem	a	outra	geração,	impedindo	o	desenvolvimento	de	um</p><p>psiquismo	próprio.</p><p>Freud	(1976),	em	Introdução	ao	Narcisismo,	já	fornecia	indícios	de	uma	transmissão</p><p>entre	as	gerações	e	através	delas.	Para	o	autor,	a	formação	do	psiquismo	da	geração</p><p>precedente	 sofre	 influência	 do	 narcisismo	 parental,	 tornando-se	 responsável	 pela</p><p>continuidade	da	vida	psíquica	entre	as	gerações.	O	investimento	dos	pais	na	criança</p><p>a	torna	depositária	de	seus	desejos	insatisfeitos	e	projetos	não	realizados,	marcando</p><p>as	condições	do	nascimento	psíquico	dessa	criança.</p><p>Essa	transmissão	 implica	a	 inexistência	do	 limite	e	do	espaço	subjetivo	entre	o</p><p>eu	e	o	outro,	permanecendo	apenas	a	exigência	do	narcisismo.	São	elementos	que	se</p><p>transmitem	através	dos	sujeitos	e	não	entre	eles,	perpetuando	segredos	e	lutos	que</p><p>dificultam	a	transformação	e	a	simbolização	(KAËS,	2001).</p><p>A	 transmissão	 desses	 conteúdos	 pode	 ser	 descrita	 como	 um	 fenômeno</p><p>transgeracional	 resultante	de	uma	herança	psíquica	que	atravessa	gerações	sem	ter</p><p>tido	a	possibilidade	de	transformação,	interrompendo	a	integração	psíquica.</p><p>Para	 Silva	 (2003,	 p.	 184).	 “a	mãe	 está	 presente	 na	 relação	 com	o	bebê	não	 só</p><p>como	mãe,	mas	como	mãe,	avó,	bisavó,	com	toda	sua	história	de	relações,	com	as</p><p>questões	 do	meio	 ambiente	 em	 que	 ela	 viveu	 e	 a	 questão	 cultural,	 compondo	 o</p><p>próprio	cuidado	materno”.</p><p>A	 partir	 dessas	 contribuições,	 pode-se	 pensar	 que	 o	 psiquismo	 se	 origina	 na</p><p>relação	 com	o	 outro,	 sofre	 e	 depende	 do	 ambiente	 a	 sua	 volta.	Winnicott	 (1999)</p><p>articulou	 seu	 referencial	 teórico	 com	 a	 observação	 da	 existência	 dos	 fenômenos</p><p>transgeracionais	 e	 dedicou	 um	 olhar	 especial	 para	 o	 desenvolvimento	 emocional</p><p>sadio	 das	 crianças.	 Desenvolveu	 o	 conceito	 de	 função	 materna	 relacionada	 aos</p><p>cuidados	básicos	da	maternagem.	Estes	compreendem	a	disponibilidade	afetiva	da</p><p>mãe	e	sua	capacidade	de	sintonia	com	as	necessidades	emocionais	do	bebê,	criando</p><p>um	espaço	de	continência	e	acolhimento	às	angústias	do	bebê,	a	fim	de	ajudá-lo	a</p><p>delimitar	os	contornos	do	seu	mundo	psíquico,	no	qual	existe	o	eu	e	o	outro.</p><p>A	construção	do	vínculo	pode	receber	influência	de	conteúdos	emocionais	não</p><p>elaborados,	 denominados	 de	 objetos	 transgeracionais,	 que	 são	 transmitidos	 pelas</p><p>gerações	por	mecanismos	de	 identificação,	em	especial	pela	 identificação	projetiva</p><p>(SILVA,	2003).	Para	a	autora,	a	identificação	projetiva	corresponde	à	comunicação</p><p>de	emoções</p><p>e	identificações	entre	a	mãe	e	o	bebê	e	vice-versa.	Nesse	mecanismo,	o</p><p>objeto	 será	 incorporado	 pelo	 mundo	 psíquico	 sem	 possibilidade	 de	 ser</p><p>transformado	 pela	 transmissão	 e,	 consequentemente,	 paralisa	 e	 interdita	 a</p><p>constituição	de	uma	estrutura	mental	própria	e	autônoma.</p><p>A	história	de	Sofia</p><p>Sofia	 é	 uma	 mãe	 que	 acompanhou	 o	 tratamento	 da	 filha	 no	 Grupo	 de</p><p>Assistência	em	Transtornos	Alimentares	do	Hospital	das	Clínicas	da	Faculdade	de</p><p>Medicina	 de	 Ribeirão	 Preto	 –	 USP	 (GRATA	 –	 HCFMRP/USP),	 que	 estava	 no</p><p>serviço	 há	 cerca	 de	 quatro	 anos.	Os	 dados	 relatados	 a	 seguir	 são	 fragmentos	 de</p><p>dissertações	 de	 mestrado	 realizadas	 pelas	 duas	 primeiras	 autoras,	 orientadas	 pela</p><p>terceira	autora.</p><p>Ela	passou	sua	primeira	infância	na	zona	rural.	Ao	ingressar	na	escola,	mudou-se</p><p>para	a	cidade	e,	quase	no	mesmo	período,	o	pai	abandonou	a	família	por	um	tempo</p><p>e	 depois	 retornou.	 Na	 ausência	 do	 pai,	 a	 avó	materna	 acolheu-os,	 mas	 logo	 em</p><p>seguida	faleceu.	Narra	uma	infância	marcada	por	perdas	de	pessoas	significativas	e</p><p>por	restrições	alimentares	que	ela	atribui	às	dificuldades	financeiras	da	família.	Em</p><p>sua	 adolescência,	 experimenta	 momentos	 de	 fartura	 alimentar	 quando	 passa	 um</p><p>período	 fora	 da	 casa	 dos	 pais,	 porém,	 nessa	 época,	 as	 transformações	 corporais</p><p>típicas	 do	 período	 chamam	 sua	 atenção	 e,	 em	 alguns	 momentos,	 a	 preocupam.</p><p>Tornou-se	adulta	com	o	desejo	de	poder	alimentar-se	com	“coisas	diferentes”,	pois</p><p>o	alimento	fornecido	pela	família	não	 lhe	satisfazia.	Com	o	casamento,	encontrou</p><p>recursos	financeiros	e	afetivos	para	saborear	novos	pratos	e	encanta-se	pelo	poder</p><p>de	conseguir	satisfazer	seus	desejos	alimentares	infantis.</p><p>Casou-se	 aos	 20	 anos	 e	 logo	 engravidou	 de	 seu	 primeiro	 filho.	 Relata	 um</p><p>casamento	difícil,	com	pouca	participação	do	marido.	Assumiu	as	responsabilidades</p><p>da	 casa	 e	 raramente	 recebia	 ajuda	 de	 familiares.	 O	 marido	 fazia	 uso	 de	 bebidas</p><p>alcoólicas	frequentemente,	assim	como	seu	pai,	o	que	a	deixava	muito	descontente.</p><p>Quando	 o	 filho	 contava	 com	 9	 meses,	 engravidou	 novamente	 e	 foi	 orientada	 a</p><p>proceder	o	desmame	da	criança,	o	que	lhe	causou	muito	sofrimento.	A	gravidez	da</p><p>segunda	filha,	apesar	de	desejada,	foi	cercada	de	muitas	contrariedades	e	o	parto	foi</p><p>difícil,	 induzido	e	a	fórceps.	A	filha	era	uma	criança	muito	“boazinha”,	quase	não</p><p>chorava,	 se	 contentava	 com	o	que	 lhe	ofereciam,	mas	 era	muito	 apegada	 a	 Sofia,</p><p>que	 associa	 esse	 apego	 à	 amamentação.	 A	 filha	 mamou	 até	 os	 5	 anos	 e	 só</p><p>interrompeu	após	a	internação	de	Sofia	por	desnutrição.	O	pai	foi	responsável	pelo</p><p>“corte”,	dizendo	que	Sofia	estava	adoecendo	por	querer	amamentar	a	filha.	A	partir</p><p>desse	 dia,	 a	 filha	 recusou	 o	 seio	 e	 não	 suportava	 beber	 nenhum	 tipo	 de	 leite.	O</p><p>ingresso	na	escola	também	foi	difícil,	apesar	do	bom	desempenho	escolar.</p><p>Sofia	teve	seus	filhos	e	manteve-se	magra	até	o	nascimento	de	sua	filha.	Depois,</p><p>diz	 que	 ganhou	 peso,	 o	 que	 lhe	 causou	 desconforto	 e,	 em	 seguida,	 voltou	 a</p><p>emagrecer.	 Conseguia	manter	 na	 despensa	 de	 sua	 casa	 os	 alimentos	 “diferentes”,</p><p>como	 as	 guloseimas,	 os	 embutidos,	 as	 frutas	 e	 os	 doces	 que	 tanto	 desejou	 na</p><p>infância.	Tudo	parecia	caminhar	bem,	mas	em	determinado	momento,	viu-se	diante</p><p>da	impossibilidade	de	alimentar	a	filha,	pois	ela	se	recusava	a	 ingerir	os	alimentos.</p><p>Inicia-se	a	trajetória	na	qual	buscava	nomear	as	condições	de	emagrecimento	e	de</p><p>recusa	alimentar	da	filha.	Sofia	passou	a	dedicar-se	quase	que	integralmente	à	filha,</p><p>afastando-se	muitas	vezes	da	família,	de	amigos	e	de	si	mesma.</p><p>Após	 quatro	 anos	 de	 seguimento	 no	GRATA,	 com	momentos	 que	 oscilaram</p><p>entre	 a	 iminência	 de	 morte	 e	 a	 esperança	 pela	 vida,	 sua	 filha	 encontrava-se	 em</p><p>franca	 recuperação	de	peso	 e	 ensaiava	 uma	nova	 fase	 para	 a	 sua	 vida,	 na	 qual	 se</p><p>abriu	espaço	para	sonhos,	desejos	e	uma	mente	pensante.	Sofia,	por	sua	vez,	ficou</p><p>confusa,	sentia	ter	perdido	sua	função	“pensante”	na	dupla,	o	medo	e	o	desamparo</p><p>invadiam	sua	mente	e,	 seu	corpo	abatido,	 revelava	a	dor	diante	desse	processo	de</p><p>diferenciação	que	começou	a	surgir.</p><p>Algumas	reflexões…</p><p>1	Relação	com	o	alimento</p><p>Em	seus	relatos,	observamos	a	função	emocional	que	o	alimento	assumiu	para</p><p>Sofia.	Ora	o	 alimento	 é	 sentido	 como	perseguidor,	 ameaça	 a	 sua	 integridade,	 ora</p><p>tem	a	função	reparadora,	capaz	de	compensar	a	dor	da	perda	de	pessoas	queridas.</p><p>Sofia	também	revela	o	desejo	por	alimentos	“diferentes”	que	se	apresentavam	a</p><p>ela	com	restrição	durante	sua	 infância,	 justificada	pelas	dificuldades	 financeiras	da</p><p>família.	 Porém,	 estabelece	 um	 compromisso	 consigo	 de	 modificar	 essa	 situação,</p><p>adotando	muitas	vezes	atitudes	semelhantes	a	uma	grande	voracidade	alimentar.</p><p>“Eu	comento	às	vezes	com	minha	 filha	que	eu	morria	de	vontade	de	 ter	uma</p><p>caixa	de	bombom	na	minha	mão,	mas	nunca	tive,	minha	tia	sempre	levava	um	ou</p><p>dois.	Então,	pensava	que,	ao	ter	condições	financeiras,	eu	compraria	uma	caixa	de</p><p>bombom	para	mim	somente.”</p><p>“Então	eu	comprava	tudo	que	eu	tinha	vontade	de	comer,	eu	comprava	e	comia</p><p>mesmo.”</p><p>2	Cuidar	diante	das	dificuldades	em	alimentar</p><p>Quando	Sofia	assumiu	a	 responsabilidade	pelo	preparo	dos	alimentos	para	sua</p><p>família,	 procurou	 evitar	 aquilo	 que	 em	 sua	 infância	 sentiu	 como	 restrição	 e	 falta.</p><p>Surgiram	 tentativas	 de	 organizar	 a	 alimentação	 familiar	 baseadas	 nas	 suas</p><p>frustrações,	 porém	 o	 exagero	 e	 a	 busca	 por	 saciar	 todos	 os	 desejos	 alimentares</p><p>muitas	vezes	dificultavam	essa	organização,	como	citado	na	seguinte	fala:</p><p>“Eu	fazia	direto	bolo,	bolacha,	rosca,	pão,	e	dizia	aos	meus	filhos	que	não	tinha</p><p>condições	financeiras	de	comprar	presentes,	mas	o	que	eles	quisessem	comer	não</p><p>me	importava	em	comprar.	Então,	tudo	o	que	eles	pediam	para	comer,	mesmo	as</p><p>‘besteiras’,	 eu	 permitia,	 pois	 acho	 que	 uma	 criança	 que	 pede	 um	 chocolate	 fica</p><p>sentida	se	não	come,	porque	eu	ficava”.</p><p>Nesse	fragmento	da	história	de	Sofia,	temos	indícios	de	como	ela	construiu	seu</p><p>mundo	 interno	a	partir	das	experiências	alimentares.	As	dificuldades	no	desmame</p><p>dos	 filhos,	 juntamente	 com	 a	 dificuldade	 em	proporcionar	 à	 filha	 a	 tranquilidade</p><p>necessária	para	um	distanciamento	gradual	e	seguro,	influenciaram	a	maneira	como</p><p>ela	oferecia	o	alimento	à	filha.</p><p>“Ela	 foi	 uma	 menina	 assim	 bem	 calma.	 Quando	 nasceu,	 só	 gostava	 de</p><p>amamentar	muito.	Amamentava	bastante,	Nossa	senhora,	o	que	ela	mais	gostava	era</p><p>de	amamentar.	Não	era	muito	de	comer	não.”</p><p>O	 desmame	 é	 um	 período	 difícil	 e	 necessário	 também	 do	 ponto	 de	 vista</p><p>emocional	para	a	criança.	É	um	importante	passo	no	processo	de	individuação	do</p><p>bebê.	 As	 dificuldades	 de	 Sofia	 no	manejo	 do	 desmame	 podem	 nos	 dar	 algumas</p><p>indicações	 de	 como	 a	 filha	 vivenciou	 este	 período.	 A	 ruptura	 abrupta	 pode	 ter</p><p>vindo	 acompanhada	 de	 fantasias	 de	 que	 ela	 fazia	 um	 grande	 mal	 àquele	 seio	 e,</p><p>consequentemente,	 à	 mãe.	 Fantasias	 persecutórias	 dessa	 natureza	 são	 capazes	 de</p><p>conduzir	 a	 criança	 a	 uma	 busca	 incessante	 pela	 confirmação	 de	 que	 não	 foi</p><p>responsável	pela	destruição	da	pessoa	amada.	Esta	pode	ser	uma	busca	para	toda	a</p><p>vida.</p><p>“E	[…]	quando	ela	largou	de	mamar,	ela	perguntou	pro	pai	dela	por	que	que	eu</p><p>tava	 doente;	 eu	 não	 sei	 se	 ele	 falou	 que	 foi	 porque	 ela	mamava	 […].	 Só	 sei	 que</p><p>quando	eu	cheguei	do	hospital	uma	vez,	que	eu	fui	internada	várias	vezes,	quando</p><p>ela	tinha	já	uns	5	anos,	que	ela	ainda	mamava.	Aí	ela	chegou	e	falou	assim:	‘eu	não</p><p>quero	que	a	senhora	fique	doente	mais,	de	hoje	em	diante,	eu	não	vou	mamar	mais’.</p><p>Pequenininha,	 né?	 Então,	 mas	 eu	 acho	 que	 já	 não	 foi	 muito	 bom	 isso,	 né?	 Pra</p><p>cabecinha	dela…	E	ela	pegou	e	já	não	quis	mais.”</p><p>Considerando	 as	 dificuldades	 apresentadas	 por	 Sofia	 no	 que	 diz	 respeito	 a	 se</p><p>entregar	aos	cuidados	com	seu	bebê,	talvez	o	estado	de	“excessivamente	boazinha”</p><p>relatado	possa	ser	uma	resposta	emocional	a	um	sentimento</p><p>intenso	de	desamparo,</p><p>levando	 a	 uma	 desistência	 de	 se	 apresentar	 para	 a	mãe.	 A	 criança	 passa	 então	 a</p><p>alucinar	 o	 cuidado	 e	 não	 mais	 a	 contar	 com	 ele,	 tornando-se	 cada	 vez	 mais</p><p>autônoma,	ou	negando	a	dependência.</p><p>Várias	 manobras	 autísticas1	 protetoras	 podem	 ser	 usadas	 para	 amortecer	 a</p><p>consciência	de	modo	a	evitar	o	sofrimento.	Isso	resulta	no	afastamento	da	realidade.</p><p>A	consciência	do	mundo	exterior	é	inibida	ou	gravemente	distorcida.	Nesses	casos,</p><p>integrações	psicológicas	não	acontecem;	o	comportamento	se	torna	idiossincrático,</p><p>o	bebê	se	isola	das	emoções,	implicando	uma	ausência	de	resposta	ao	seu	ambiente.</p><p>Nesses	estados,	o	bebê	pode	parecer	apático	e	sem	interesse	pelo	meio	em	que	vive.</p><p>Essa	 condição	 é	 ignorada	 com	mais	 facilidade	 do	 que	 outros	 distúrbios,	 como	 o</p><p>choro	excessivo,	a	agitação	e	a	recusa	do	alimento.</p><p>Sofia	 parece	 ter	 tido	 dificuldade	 de	 captar	 as	 necessidades	 de	 seu	 bebê	 e	 de</p><p>supri-las	adequadamente,	fornecendo	a	simplicidade	e	a	monotonia	necessárias	para</p><p>o	 sentimento	 de	 permanência	 de	 sua	 existência.	 Assim,	 tornou-se	 incapaz	 de</p><p>suportar	as	angústias	da	filha,	devolvendo-as	de	forma	processada	de	maneira	que</p><p>possa	promover-lhe	um	estado	de	acalento	frente	a	suas	terríveis	angústias.</p><p>Para	 Sofia,	 maternidade	 e	 culpa	 parecem	 andar	 de	 mãos	 dadas.	 Ela	 relata</p><p>experiências	em	que	considera	que	 falhou	ou	que	não	foi	 suficientemente	boa	no</p><p>que	 diz	 respeito	 aos	 cuidados	 de	 sua	 filha.	 Juntamente	 com	 isso,	 e	 complicando</p><p>ainda	mais	um	quadro	de	muita	angústia	e	sofrimento,	surgiu	um	sentimento	de	que</p><p>foram	 as	 suas	 falhas,	 e	 consequentemente	 ela	 própria,	 a	 responsável	 pelo</p><p>aparecimento	futuro	da	doença	na	filha.</p><p>“Ela	 chegou	 pra	 mim	 e	 falou	 assim:	 ‘Ai,	 você	 nunca	 brincou	 comigo!’	 Ela</p><p>chegou	a	falar	isso	uma	vez.	Eu	nunca	fui	de	brincar	assim	com	menino.	Às	vezes,	a</p><p>gente	 saía,	 mas	 de	 brincar	 não…	 não	 sei	 se	 é	 porque	 a	 gente	 foi	 criado	 assim</p><p>também,	 né?	 Mas	 às	 vezes	 chegava	 tarde	 e…	 vai	 jantar,	 ficava	 lá,	 assistindo</p><p>televisão,	não	dava	muita	atenção,	talvez	eu	também	não	dava,	porque	eu	comecei	a</p><p>trabalhar.	Eu	acho	que	talvez	um	pouco	de	carinho	faltou	sim.	Mais	conversa,	mais</p><p>carinho,	mais	ficar	junto	ali	mesmo,	né?	Talvez	ela,	ela	tenha	falta	disso.”</p><p>Sofia	estabeleceu	seus	vínculos	oferecendo,	em	sua	concepção,	bons	alimentos	à</p><p>sua	família.	Para	ela,	o	ato	de	oferecer	um	alimento	concretamente	à	família	parecia</p><p>ser	um	“bom	jeito”	de	cuidar.</p><p>A	 anorexia	 de	 sua	 filha,	 no	 entanto,	 comprometeu	 essa	 concepção,	 pois	 seu</p><p>alimento/afeto	 é	 recusado	 pela	 filha.	 Sofia	 experimentou	 sentimentos	 de	 culpa	 e</p><p>angústia	diante	da	dificuldade	em	nutrir.	A	fala	a	seguir	elucida	tais	sentimentos:</p><p>“Ela	chorava	demais,	acho	que	sentia	fome;	dizia	que	aquela	comida	ficava	ruim</p><p>[…]	 sem	 sal.	 Ela	 chorava	muito	 e	 falava	 que	 eu	 fazia	 comida	 com	 terra,	 […]	 eu</p><p>ficava	um	pouquinho	nervosa”.</p><p>A	afetividade	e	o	cuidado	que	Sofia	atribuía	ao	preparo	dos	alimentos	tornaram-</p><p>se	incertos,	gerando	insegurança	frente	à	sua	capacidade	de	alimentar	a	família.	Em</p><p>um	mecanismo	de	indiferenciação,	mãe	e	filha	não	conseguiam	ter	o	mesmo	prazer</p><p>em	alimentar-se	 e	 Sofia	 diminuiu	 sua	 ingestão	 alimentar.	Parece	que	Sofia	 perdeu</p><p>sua	capacidade	de	cuidar	do	outro	e	de	 si	diante	da	 recusa	 alimentar	da	 filha.	Os</p><p>relatos	a	seguir	mostram	tal	aspecto:</p><p>“Eu	fazia	comida	mais	temperada,	hoje	em	dia	eu	faço	a	comida,	eu	como,	mas</p><p>não	sinto	que	ela	fica	gostosa”.</p><p>“Com	a	doença	[…]	você	passa	a	ter	um	cuidado	tão	grande	que	hoje	fico	com</p><p>medo	até	de	comer,	não	por	medo	de	engordar,	mas	por	medo	que	a	comida	esteja</p><p>ruim	e	não	sustente”.</p><p>3	Após	quatro	anos	de	atendimento</p><p>Sofia	 vivia	 um	 momento	 de	 ambivalência	 afetiva	 na	 recuperação	 da	 filha.	 A</p><p>necessidade	de	olhar	para	si	como	uma	mente	separada	da	filha	gerava	 incertezas,</p><p>medos	 que	 a	 impediam	 de	 apropriar-se	 da	 recuperação	 da	 filha	 com	 confiança.</p><p>Pensou-se	 que	 a	 possibilidade	 de	 perder	 a	 filha	 pela	 recusa	 do	 alimento,	 objeto</p><p>representante	 de	 afeto	 e	 cuidado,	 mobilizou	 em	 Sofia	 vivências	 e	 emoções	 que</p><p>pareciam	estar	adormecidas	em	sua	mente.</p><p>No	relato	a	seguir,	percebe-se	que	desde	muito	cedo	a	própria	Sofia	tinha	uma</p><p>preocupação	com	peso	e	imagem:</p><p>“Uma	vez,	eu	lembro	que	eu	estava	na	escola	e	minhas	amigas	ficavam	com	peso</p><p>baixo	e	me	falavam	que	eu	estava	gordinha.	Mas	eu	nem	esquentava	a	cabeça	com</p><p>isso,	só	uma	vez	que	uma	colega	brincou	comigo,	me	apertou,	me	chamou	de	gorda</p><p>e	eu	não	gostei.	Depois	comecei	a	trabalhar	e	me	movimentar	mais”.</p><p>Sofia,	durante	os	anos	de	tratamento	da	filha,	 também	revelou	dificuldades	em</p><p>aceitar	qualquer	espaço	de	cuidado	da	sua	cidade	e,	portanto,	de	mais	fácil	acesso</p><p>para	poder	cuidar	de	si.	A	seguinte	fala	nos	confirma	o	aspecto	da	indiscriminação:</p><p>“Mas	 se	 eu	 for	 procurar	 alguém	 pra	 fazer	 terapia	 tem	 que	 ser	 especialista	 em</p><p>transtorno	alimentar.	Como	vou	a	alguém	que	não	sabe	o	que	eu	vivo?”</p><p>Sofia	estava	vivendo	um	período	de	intenso	sofrimento	com	o	desenvolvimento</p><p>psíquico	da	filha	e	com	a	possibilidade	de	suas	mentes	se	separarem.	Ela	dava	sinais</p><p>de	uma	identificação	com	a	doença	da	filha	que	parecia	lhe	sustentar	a	vida.</p><p>Faimberg	(2001)	esclarece	melhor	essa	 identificação	quando	propõe	o	conceito</p><p>de	“identificação	alienada	ou	clivada”,	na	qual	o	narcisismo	dos	pais	em	relação	aos</p><p>filhos	exerce	as	funções	de	apropriação	e	de	intrusão.	Na	função	de	apropriação,	os</p><p>pais	internos	identificam-se	com	o	que	há	de	positivo	em	seus	filhos	e	apropriam-se</p><p>dessa	identidade.	Na	função	de	intrusão,	expulsam	no	filho	o	que	rejeitam	em	si.</p><p>Para	essa	autora,	o	filho	é	odiado	não	só	porque	é	diferente,	mas,	sobretudo,	[…]</p><p>porque	 sua	 história	 será	 comum	 à	 história	 de	 seus	 pais,	 e	 a	 tudo	 o	 que	 eles	 não</p><p>aceitam	em	sua	regulação	narcísica”	(op.	cit.).</p><p>Ela	acrescenta	ainda	que	há	pelo	menos	três	gerações	envolvidas	nesse	tipo	de</p><p>identificação	e,	assim,	os	“pais	não	são	os	únicos	protagonistas	dessa	relação,	mas</p><p>estão,	 por	 sua	 vez,	 inscritos	 inconscientemente	 em	 seu	 próprio	 sistema	 familiar”</p><p>(idem).</p><p>As	falas	de	Sofia	ilustram	esse	aspecto.</p><p>“Para	mim	 tá	muito	difícil,	 tanto	 tempo	 cuidando,	 agora	 ela	 quer	 namorar,	 eu</p><p>não	quero,	mas	tenho	que	aceitar,	tá	difícil.”</p><p>“Ela	 tá	melhor,	quer	 fazer	 faculdade,	 sair,	mas	 fica	de	 segredos,	não	me	conta</p><p>mais	tudo	e	eu	fico	querendo	saber.”</p><p>O	regime	narcísico	das	funções	de	apropriação	e	de	 intrusão	forçam	a	geração</p><p>seguinte	a	uma	adaptação	alienante,	na	qual	há	a	 transmissão	de	uma	história	que</p><p>não	 lhe	pertence,	porém	habita-lhe	a	mente,	 impedindo	qualquer	possibilidade	de</p><p>desejo	e	existência	de	um	mundo	mental	próprio.</p><p>Com	a	evolução	do	quadro	clínico	e	dos	recursos	psíquicos	para	pensar,	a	filha</p><p>de	Sofia	iniciou	outro	momento	da	sua	vida,	no	qual	começava	a	contar	sua	história</p><p>ao	 desenvolver	 um	mundo	mental	 próprio.	 Sofia,	 por	 sua	 vez,	 tentava	 felicitar-se</p><p>por	 isso,	 afinal	 fora	 uma	batalha	pela	 vida	 que	 lutou	desde	o	 início.	Pensa-se,	 no</p><p>entanto,	por	quais	vidas	ela	lutava	já	que	mãe	e	filha	eram	uma	só	mente.</p><p>Sofia	dava	sinais	à	equipe,	até	o	momento	da	 realização	deste	 trabalho,	de	que</p><p>construir	 um	 mundo	 psíquico	 próprio	 lhe	 era	 doloroso,	 lhe	 causava	 medo,</p><p>provavelmente,	porque	teria	que	olhar	para	os	próprios	fantasmas,	suas	dores,	seus</p><p>lutos,	 seus	 segredos	 e	 apropriar-se	 deles	 a	 fim	 de	 transformá-los	 em	 experiência</p><p>criativa.</p><p>Considerações	finais</p><p>Apresentar	uma	finalização	para	este	 texto	parece-nos	uma	tarefa	muito	difícil,</p><p>pois	estamos	diante	de	mentes	em	processo	de	desenvolvimento.	Em	seus	ensaios</p><p>na	busca	pela	subjetivação	e	construção	de	suas	individualidades,	tanto	mãe	quanto</p><p>filha	 apresentam,	 em	 suas	 trajetórias,	 histórias	 marcadas	 por	 descompassos	 e</p><p>angústias,	 mas	 também	 encontramos	 empenho	 e	 dedicação	 de	 ambas.	 Elas	 se</p><p>esforçaram	 para	 iniciar	 um	 novo</p><p>capítulo	 de	 suas	 biografias,	 em	 que	 cada	 uma</p><p>pudesse	 escrever	 a	 própria	 história,	 livres	 de	 identificações	 alienantes	 que</p><p>aprisionavam	suas	mentes,	impedindo	a	construção	de	algo	novo.</p><p>Silva	(2003)	refere	que	os	fenômenos	transgeracionais	estão	presentes	em	todos</p><p>nós;	 eles	 só	 se	 tornam	 sinistros	 quando	 nos	 são	 interditados	 de	 conhecê-los,	 de</p><p>pensá-los,	de	sonhá-los.	Esses	fenômenos	que	não	nos	são	facilmente	acessíveis,	são</p><p>também	 a	matéria-prima	 básica	 para	 o	 trabalho	 dos	 profissionais	 que	 cuidam	 de</p><p>pessoas	 portadoras	 de	 TA	 e	 suas	 famílias,	 por	 uma	 escuta	 atenta	 e	 um	 trabalho</p><p>cuidadoso	que	possam	trazer	à	tona	esses	conteúdos.</p><p>Durante	o	período	em	que	estivemos	próximos	de	sua	história,	Sofia	nos	conta</p><p>que,	 apesar	 das	 dores,	 frustrações	 e	 feridas	 “esquecidas”	 no	porão	 de	 sua	mente,</p><p>neste	 momento,	 empenhava-se,	 ainda	 com	 certa	 resistência,	 para	 procurar	 um</p><p>espaço	terapêutico	que	oferecesse	a	possibilidade	de	ressignificar	suas	experiências</p><p>e,	assim,	construir	outros	enredos	e	caminhos	mais	saudáveis.</p><p>Nota:</p><p>1.Termo	apresentado	por	Tustin	para	designar	um	modo	de	funcionamento	mental	dominado	por	sensações</p><p>não	mentalizadas	e	que	não	adquirem	representação	na	mente.	O	 indivíduo	recolhe-se	no	 interior	de	uma</p><p>“concha	protetora”,	permanecendo	absorto	em	atividades	autossensuais,	bastando-se	com	elas,	de	modo	a	se</p><p>proteger	de	estados	de	grande	vulnerabilidade.</p><p>Referências</p><p>BRUCH,	H.	Eating	desorders:	obesity,	anorexia	nervosa	and	the	person	within.	Nova	York:</p><p>Basic	Books,	1973.</p><p>DUPONT,	M.	E.,	CORCOS,	M.	Psychopathology	in	eating	disorders:	new	trends.</p><p>La	Revue	du	Praticien,	2(58):141-149,	2008.</p><p>FAIMBERG,	H.	A	telescopagem	das	gerações	a	propósito	da	genealogia	de	certas</p><p>identificações.	 In:	 KAËS,	 R.	 et	 al.	Transmissão	 da	 vida	 psíquica	 entre	 as	 gerações.	 São</p><p>Paulo:	Casa	do	Psicólogo,	2001.	p.	71-93.</p><p>FREUD,	 S.	 Introdução	 ao	 narcisismo.	 In:	Obras	 completas.	 Rio	 de	 Janeiro:	 Imago,</p><p>1976.	v.	13.</p><p>KAËS,	 R.	 Introdução	 ao	 conceito	 de	 transmissão	 psíquica	 no	 pensamento	 de</p><p>Freud.	In:	KAËS,	R.	et	al.	Transmissão	da	vida	psíquica	entre	as	gerações.	São	Paulo:	Casa</p><p>do	Psicólogo,	2001.	p.	27-69.</p><p>KLEIN,	M.	Notas	sobre	alguns	mecanismos	esquizoides.	In:______.	Inveja	e	gratidão</p><p>e	outros	trabalhos	(1946-1963).	Rio	de	Janeiro:	Imago,	2006.	p.	17-43.</p><p>MORGAN,	C.	M.;	CLAUDINO,	A.	M.	Epidemiologia	e	etiologia.	In:	MORGAN,</p><p>C.	M.;	CLAUDINO,	A.	M.	(orgs.)	Guia	de	 transtornos	alimentares	 e	obesidade.	Barueri,</p><p>SP:	Manole,	2005.</p><p>OLIVEIRA,	E.	A.;	SANTOS,	M.	A.	Perfil	psicológico	de	pacientes	com	anorexia	e</p><p>bulimia	nervosas:	a	ótica	do	psicodiganóstico.	Rev	Medicina,	3(39):353-360,	2006.</p><p>SEGAL,	H.	Introdução	à	obra	de	Melanie	Klein.	Rio	de	Janeiro:	Imago,	1975.	p.	147.</p><p>SICCHIERI,	 J.	 M.	 F.	 et	 al.	 Avaliação	 nutricional	 de	 portadores	 de	 transtornos</p><p>alimentares:	 resultados	 após	 a	 alta	 hospitalar.	Ciência,	 Cuidado	 e	 Saúde,	 6(1):68-75,</p><p>2007.</p><p>SILVA,	 M.	 C.	 P.	 A	 herança	 psíquica	 na	 clínica	 psicanalítica.	 São	 Paulo:	 Casa	 do</p><p>Psicólogo,	2003.</p><p>WINNICOTT,	 D.	 W.	 O	 desenvolvimento	 da	 capacidade	 de	 se	 preocupar.	 In:</p><p>_____.	O	 ambiente	 e	 os	 processos	 de	 maturação:	 estudos	 sobre	 a	 teoria	 do	 desenvolvimento</p><p>emocional.	Porto	Alegre:	Artes	Médicas,	1982.	p.	70-78.</p><p>________.	 O	 conceito	 de	 indivíduo	 saudável.	 In:	 ______	 Tudo	 começa	 em	 casa.</p><p>Tradução	de	Paulo	Sandler.	São	Paulo:	Martins	Fontes,	1999.	p.	3-22</p><p>_________.	 [1956]	 A	 preocupação	 materna	 primária.	 In:	 ______.	Da	 pediatria	 à</p><p>psicanálise:	 obras	 escolhidas.	 Tradução	 de	 Davy	 Bogomoletz.	 Rio	 de	 Janeiro:	 Imago,</p><p>2000.	p.	399-405.</p><p>AS	MARCAS	NO	CORPO1</p><p>Cybelle	Weinberg</p><p>Prosseguindo	 no	 propósito	 de	 aproximar	 as	 questões	 pertinentes	 ao</p><p>funcionamento	 mental	 próprias	 da	 santidade	 e	 da	 anorexia,	 tema	 que	 vem	 me</p><p>ocupando	 nos	 últimos	 anos,	 pretendo	 tratar	 aqui	 das	 automutilações,	 observadas</p><p>tanto	na	clínica	 como	nos	 relatos	de	Santa	Veronica	Giuliani,	 santa	 jejuadora	que</p><p>viveu	na	Itália	em	fins	do	século	XVII	e	início	do	século	XVIII.</p><p>Para	 tanto,	 tomarei	como	exemplo	quatro	casos	de	adolescentes	com	sintomas</p><p>alimentares	 que	 se	 cortam	 ou	 se	 machucam	 com	 regularidade,	 atendidas	 em</p><p>consultório.</p><p>O	 primeiro	 é	 o	 de	 uma	 garota	 que	 se	 apresenta	 com	 as	 mãos	 terrivelmente</p><p>feridas.	 Sentada	 frente	 à	 analista,	 passa	 toda	 a	 sessão	 enfiando	 um	 clipe	 entre	 as</p><p>unhas	e	a	carne	dos	dedos	até	que	o	sangue	pingue.	E,	aparentemente,	indiferente	à</p><p>dor	e	ao	que	a	sua	ação	possa	provocar	no	outro.</p><p>O	segundo	é	o	de	outra	garota	que	arranca	a	pele	dos	pés	até	que	eles	sangrem.</p><p>Em	certa	ocasião,	essa	garota	 juntou	os	pedaços	de	pele	arrancados,	 fez	com	eles</p><p>uma	flor,	fotografou-a	e	levou	a	foto	para	a	analista.</p><p>No	terceiro	caso,	a	jovem,	quando	acha	que	exagerou	na	comida,	usa	um	estilete</p><p>para	 escrever	 várias	 vezes	 em	 sua	 barriga	 e	 coxas	 as	 palavras	 “gorda”,	 “porca”,</p><p>“nojenta”.	 Em	 seguida,	 se	 fotografa	 e	 posta	 as	 fotos	 na	 internet,	 numa</p><p>autoacusação	pública	gravada	na	própria	pele.</p><p>O	quarto	é	o	de	uma	moça	de	22	anos	que	se	corta	desde	os	13.	Com	uma	gilete,</p><p>faz	cortes	nos	braços	e	há	tanto	tempo	que,	ao	usar	uma	blusa	de	mangas	curtas,</p><p>exibe	 uma	 infinidade	 de	 cicatrizes.	 Diz	 que,	 ao	 se	 cortar,	 gosta	 de	 ver	 o	 sangue</p><p>escorrer,	que	“é	fascinante”.	Sobre	o	sangue	menstrual,	afirma	que	o	odeia,	que	“o</p><p>sangue	 dos	 cortes	 pode	 ser	 estancado	 quando	 quiser”,	 mas	 o	 outro,	 o	 da</p><p>menstruação,	 “escorre	 sem	 controle”.	 Recentemente,	 substituiu	 esses	 cortes	 por</p><p>outro	 tipo	 de	 sangramento:	 com	 uma	 seringa,	 retira	 o	 sangue	 das	 veias	 e	 vai</p><p>depositando-o	 em	 um	 pote	 de	 vidro.	 Em	 seguida,	 joga-o	 no	 lixo,	 descartando	 o</p><p>sangue,	mas	não	a	seringa,	que	é	sempre	a	mesma.	Sobre	esse	ato,	afirma	que	ele</p><p>“diminui	a	tristeza,	dá	um	alívio	imediato,	melhor	que	o	remédio,	que	demora	para</p><p>fazer	efeito.”</p><p>Os	sangramentos	de	Santa	Veronica	Giuliani</p><p>Santa	Veronica	Giuliani	 relembra,	em	seus	escritos,	vários	episódios	encenados</p><p>com	sangue,	desde	aqueles	de	quando	era	muito	pequena,	quando	se	comprazia	em</p><p>ver	 o	 sangue	 escorrer	 de	 um	 dedo	 machucado,	 até	 a	 descrição	 de	 feridas	 que</p><p>jorravam	sangue	ou	cartas	escritas	com	sangue.</p><p>Em	seus	anos	de	convento	–	período	denominado	pelos	seus	biógrafos	como	os</p><p>“anos	 do	 purgatório”	 –,	 tendo	 se	 sentido	 chamada	 a	 sofrer	 pela	 conversão	 dos</p><p>pecadores,	 ofereceu-se	 como	 intermediária	 entre	 eles	 e	Deus,	 tomando	 para	 si	 a</p><p>penitência	 expiatória	 que	 lhes	 cabia.	 E,	 com	 seu	 próprio	 sangue,	 registrou	 sua</p><p>promessa:</p><p>Voltei	a	mim,	encontrei	o	hábito	todo	ensanguentado.	Tinha	ainda	a	pena	na	mão	e</p><p>a	carta	onde	tinha	escrito	a	promessa,	que	me	parecia	começar	assim:	“Meu	Senhor,</p><p>declaro	não	querer	nunca	mais	ofender-vos	voluntariamente,	nem	de	nenhum	outro</p><p>modo;	com	o	vosso	auxílio	espero	fazê-lo.	Agora,	para	sempre,	vos	prometo	amar	e</p><p>o	mesmo	amor	vos	peço,	não	com	palavras,	mas	com	o	próprio	sangue.	Outro	não</p><p>quero	que	vós,	agora	meu	dono	de	tudo.	Este	meu	coração	e	esta	minha	alma	são</p><p>vossos,	 e	 como	 vossa	 esposa	 me	 doo.	 Sim,	 meu	 Senhor,	 sejam	 estes	 dizeres</p><p>confirmados	por	vós	de	querer	me	aceitar	por	vossa	esposa”.	Enquanto	assim	dizia,</p><p>entendi	que	tudo	se	confirmara.</p><p>Havia	outras	coisas	na	promessa,	mas	no	momento	não	me	recordo.	Somente	que</p><p>também	lhe	implorava	a	conversão	dos	pecadores.	Encontrai	essa	carta,	toda	escrita</p><p>com	meu	sangue.	Sentia	muita	dor	na	ferida	que	tinha	feito,	e	lá	estava	bem	gravado</p><p>o	 nome	 de	 Jesus,	 e	 lá	 permanecerá	 para	 sempre	 o	 sinal.	 Seja	 tudo	 pela	 glória	 de</p><p>Deus.</p><p>Este	nome	de	Jesus	fiz	com	canivete,	renovado	por	duas	ou	três	vezes	para	alguma</p><p>solenidade	 e	 também	 agora	 escrevi	 mais	 vezes	 as	 promessas	 com	 meu	 próprio</p><p>sangue.	 Dei	 essas	 promessas	 ao	 confessor,	 e	 parte	 não	 me	 foi	 devolvida,	 assim</p><p>como	muitos	 escritos	 que	 tinha.	 Assim,	 não	me	 recordo	 bem	 de</p><p>tudo:	 somente</p><p>descrevo	o	pouco	que	posso,	em	sinal	de	obediência.</p><p>Recordo	que,	algumas	vezes,	em	algum	recolhimento	ou	visões,	o	Senhor	fazia-me</p><p>entender	 que	 queria	 tomar	 posse	 do	meu	 coração.	 Recebendo	 eu	 essa	 nova,	 não</p><p>queria	 outra	 coisa	 que	 sofrer.	 Estava	 constantemente	 pensando	 na	 paixão	 do</p><p>Senhor.	 Uma	 vez	 pareceu-me	 que	 o	 Senhor	 colocava	 no	 meu	 coração	 alguns</p><p>instrumentos	 da	 sua	 paixão.	 Após	 o	 que	 eu	 sentia	muita	 dor	 no	 coração	 e	mais</p><p>sofrimento	e	dores	pedia	(Il	mio	calvario,	p.	109).</p><p>Em	outra	situação,	relata	sua	confirmação	como	“parceira	da	cruz”:</p><p>Recordo-me	que,	estando	às	vezes	com	aquela	tristeza,	repentinamente	uma	grande</p><p>cruz	me	era	revelada.	Dava-me	terror,	fazia-me	tremer.	Uma	vez,	com	esta	aparição</p><p>tive	mais	medo	que	das	outras	vezes,	mas	me	deu	coragem.	Quis	ir	ao	seu	encontro</p><p>e	abraçá-la,	mas	não	podia.	Veio	em	minha	mente	um	pensamento	de	me	declarar	e</p><p>escrever	ao	Senhor	uma	carta	com	letras	de	sangue.	Assim,	peguei	um	canivete	e	fiz</p><p>uma	cruz	sobre	a	carne	do	lado	do	coração	e	com	o	mesmo	sangre	escrevi	assim:</p><p>“Meu	 querido	 Jesus,	 venho	 com	 letras	 de	 sangue	 confortar-me	 pelo	 vosso	 santo</p><p>querer	e	para	declarar-me	e	confirmar-me	como	vossa	esposa,	parceira	da	cruz.	Se</p><p>bem	 que	 estremeço	 com	 o	 seu	 aparecimento,	 ele	 me	 faz	 também	 reafirmar	 a</p><p>estabelecer	o	quanto	quereis	de	mim,	e	assim	resolvi	escrever-vos	com	meu	próprio</p><p>sangue,	para	implorar-vos	em	graça	por	meu	guia,	meu	apoio,	dai-me	a	cruz.	Meu</p><p>supremo	 Bem,	 bondade	 infinita,	 não	 olheis	mais	 as	minhas	 ingratidões:	 esquecei</p><p>todas.	Agora	para	sempre	me	declaro	vossa	esposa;	e	a	fim	de	que	purifiqueis	e	se</p><p>faça	a	vossa	vontade,	agora	com	 letras	de	sangue,	escrevo-vos	do	mais	 íntimo	do</p><p>coração.	Digo	que	quero	ser	toda	vossa	companheira	da	cruz.	Eu,	pelo	vosso	amor,</p><p>o	quero.	Não	deixeis	nunca	que	no	futuro	eu	me	afaste	disso”.	Dizendo	isso,	ela	se</p><p>revelou	na	minha	frente	como	uma	visão	real.	Assim	voltada	a	ela	disse:</p><p>“Oh!	Cruz	Santa,	fazei-me	sentir	o	vosso	peso,	a	fim	de	que	eu	possa	me	amoldar</p><p>com	meu	Deus	Crucificado.	Oh!	boa	Cruz	vinde	a	mim:	chamo-vos	com	o	coração</p><p>de	Jesus	e	de	Maria,	vinde	a	mim.	Estou	contente	de	abraçar-vos,	se	assim	agrada	ao</p><p>Senhor”.	 Assim,	 voltada	 a	 ela:	 “Meu	 diviníssimo	 Esposo,	 fazei	 de	 mim	 o	 que</p><p>quiseres:	 não	 quero	 outro	 desejo	 que	 o	 Vosso.	 Abaixo	 assino	 com	meu	 próprio</p><p>sangue,	 escrava	do	amor;	para	unir-me	e	 juntar-me	a	 ela,	outra	 ligação	não	quero</p><p>que	o	mesmo	amor	e	por	meio	dele	pego	a	cruz.	Aqui	me	confirmo:	Cristo	confiai-</p><p>me	 vossa	 Cruz.	 Ó	 Cruz	 desejável,	 vinde	 a	 mim.	 Eu	 de	 coração	 vos	 aceito	 para</p><p>cumprir	o	desejo	e	o	querer	do	meu	Deus	e	declaro	que	vós	 sois	 a	 intermediária</p><p>para	 fazer-me	 reencontrar	 o	 meu	 supremo	 Bem,	 o	 esposo	 da	 minha	 alma.	 Meu</p><p>único	tesouro”.</p><p>Assim	 comecei	 a	 dizer:	 “Meu	 Jesus,	 quando	 quereis	 retornar	 a	 este	 coração?</p><p>Intrincar-vos	 com	 ele,	 unir-vos	 de	 todo	 com	 esta	minha	 alma?	Vinde	 agora,	 não</p><p>demoreis	mais;	com	palavras	de	sangue	vos	chamo;	não	encontro	repouso	sem	vós,</p><p>não	estarei	tranquila	até	que	vos	encontre.	Não	demoreis	mais,	vinde,	vinde.	Eu	me</p><p>confirmo	com	o	nome	de	Vossa	esposa,	e	com	meu	próprio	sangue	assino	esposa</p><p>de	 Jesus,	 e	 vos	 prometo	 fidelidade.	Não	 tenho	 poder	 para	 fazer	 nada,	 mas	 com</p><p>vossa	graça	farei	tudo.	Sim,	meu	caro	Esposo	me	declarais	e	entendeis	que	digo	isso</p><p>com	Vossa	voz,	com	Vosso	amor.	Suplico-vos,	não	com	letras	do	meu	sangue,	mas</p><p>com	Vosso	sangue	precioso	que	 tendes	disseminado	em	mim.	Seja	ele	a	voz	para</p><p>me	 aproximar	 de	 Vós,	 meu	 Senhor,	 isto	 é,	 em	 tudo	 e	 por	 tudo,	 amoldar-me	 ao</p><p>Vosso	Santo	querer;	e	por	Vossos	méritos	santíssimos,	peço	a	Vossa	benção	e	me</p><p>subscrevo:	Filha	do	Crucifixo”	(Il	mio	calvario,	p.	139-140).</p><p>Sobre	esta	carta,	comenta	Santa	Veronica:</p><p>Enquanto	escrevia	esta	carta,	recordo-me	de	não	estar	com	os	meus	sentidos.	Disse</p><p>muita	coisa	e	foi	uma	carta	bem	longa,	toda	escrita	com	meu	próprio	sangue:	Agora</p><p>não	me	recordo	bem	de	tudo:	disse	tudo	que	tinha	em	mente	e	me	recordo	que	esta</p><p>carta	me	fez	bem.	Dei-a	ao	confessor	por	obediência	a	ele.	Não	a	recuperei	mais.</p><p>Disse-me	que	a	havia	queimado	como	fazia	com	tudo	que	lhe	dava	por	escrito.	Fiz</p><p>tudo	por	obediência,	no	íntimo	eu	lamentava.</p><p>Cartas	escritas	com	o	meu	próprio	sangue,	da	maneira	como	falei	acima,	não	as	fiz</p><p>mais,	e	como	não	me	lembro	bem	de	todas,	somente	quis	escrever	mais	uma.	Mas</p><p>não	me	 vem	 nem	 a	metade,	 porque	 não	 tenho	 na	memória	 aquilo	 que	 disse.	Às</p><p>vezes	escrevi	também	os	protestos	com	meu	próprio	sangue.	Assim	também,	outras</p><p>vezes,	quando	se	abria	a	ferida,	depois	que	voltava	a	mim,	continuava	sangrando	e</p><p>com	esse	sangue	escrevia	ao	Senhor	e	lhe	pedia	a	conversão	dos	pecadores.	[…]	Na</p><p>união	 daquele	 precioso	 sangue,	 unindo	 a	 dor	 da	 ferida	 e	 o	 sangue	 que	 brota,	 de</p><p>coração	pedi	a	Cristo	o	perdão	pelo	meu	golpe	e	a	graça	de	que	todos	os	pecadores</p><p>se	convertessem	(Il	mio	calvario.	p.	141-142).</p><p>Ainda	sobre	a	união	pelo	sangue,	escreve	em	seu	II	Diário:</p><p>Vamos,	meu	Deus,	percebeste	que	ninguém	se	move.	Que	devo	fazer?	Estou	pronta</p><p>para	tudo!	Quero	amar-vos	por	mim,	por	todos…	Eu	quero	ser	toda	Vossa.	Vamos!</p><p>Tirai	 de	 mim	 todas	 as	 coisas!	 O	 meu	 estudo	 (projeto)	 será	 de	 viver	 crucificada</p><p>convosco.	O	meu	 alimento,	 as	 lágrimas	 e	 os	 lamentos	 dos	 pecados	 cometidos…</p><p>Estou	 aqui	 aos	 vossos	 pés…	 Lavai	 esta	 alma	 com	 Vosso	 precioso	 sangue!</p><p>Conservai-me	unida	com	vossas	Santas	Chagas!	No	vosso	Coração	descanso	(IV	–</p><p>34,	35,	p.	47).</p><p>A	Síndrome	de	Lasthénie	de	Ferjol</p><p>Em	1967,	o	hematólogo	Jean	Bernard	e	colaboradores	chamaram	de	Síndrome	de</p><p>Lasthénie	de	Ferjol	 as	 anemias	 resultantes	 de	hemorragias	 autoprovocadas.	O	nome</p><p>foi	tomado	emprestado	do	romance	de	J.	Barbey	d’Aurevilly	–	Uma	história	sem	nome,</p><p>publicado	 em	 1882	 –,	 que	 conta	 a	 trágica	 experiência	 de	 Lasthénie	 de	 Ferjol</p><p>(CORCOS,	2005;	BIDAUD,	2010).</p><p>Estudos	posteriores	ao	de	Jean	Bernard	mostraram	que	a	síndrome	ocorre	quase</p><p>que	 exclusivamente	 entre	 mulheres	 que	 exercem	 profissões	 médicas	 ou</p><p>paramédicas,	 enfermeiras,	 religiosas	 e	 outras	 profissões	 que	 exigem	 “devoção	 e</p><p>abnegação”.	É	significativa	 sua	presença	em	pacientes	que	sofrem	de	anorexia	ou</p><p>bulimia	 e	 que	 apresentam	uma	 “megalomania	masoquista”	 colorida	 de	 heroísmo:</p><p>continuam	 suas	 atividades	 profissionais	 ou	 escolares	 ainda	 que	 em	 um	 estado	 de</p><p>desnutrição	ou	anemia	avançadas	(CORCOS,	2005,	p.	147).</p><p>A	 relação	 singular	 entre	 a	 baronesa	 de	 Ferjol	 e	 sua	 filha	 Lasthénie	 é	 o	 tema</p><p>central	 dessa	 novela.	 Tendo	 enviuvado	 prematuramente,	Mme.	 de	 Ferjol	 retira-se</p><p>com	sua	 filha	Lasthénie	para	um	 lugar	 isolado,	 compartilhando	com	ela	 todos	os</p><p>momentos	 de	 uma	 vida	 solitária.	 Certo	 dia,	 Mme.	 de	 Ferjol,	 muito	 católica,	 dá</p><p>abrigo	a	um	jovem	capuchinho	que	pedia	hospedagem.	Esse	monge	desconhecido,</p><p>à	noite,	violenta	Lasthénie,	que	sofria	de	sonambulismo.	Grávida	e	sem	saber	quem</p><p>a	violentou,	a	 jovem	passa	a	ser	atormentada	pela	mãe,	que	exige	dela	a	confissão</p><p>do	 nome	 do	 pai	 da	 criança.	 A	 mãe	 ameaça	 arrancar-lhe	 “esse	 nome	 maldito”,</p><p>mesmo	que	 fosse	 necessário	 “ir	 buscá-lo	 no	 fundo	 de	 suas	 entranhas	 com	o	 seu</p><p>filho”.	E	a	mãe	 cumpre	 sua	 ameaça,	 arrancando	a	 criança	do	ventre	de	 sua	 filha.</p><p>Lasthénie	 morre	 dias	 depois,	 “com	 detalhes”,	 enterrando	 dezoito	 alfinetes	 –	 o</p><p>número	de	sua	idade	e	um	a	cada	dia	–,	na	região	do	coração	(apud	BIDAUD,	2010,</p><p>p.	31).</p><p>Relacionando	 o	 drama	 de	 Lasthénie	 com	 o	 que	 ele	 chama	 de	 “clínica	 dos</p><p>sangramentos	provocados”,	Éric	Bidaud	(2010,	p.	30)	afirma:</p><p>Essa	fantasmática	do	sangue,	em	uma	configuração	da	clínica	do	feminino,	nos	leva</p><p>às	pacientes	que,	com	frequência,	são	anoréxicas	e	respondem	à	chamada	síndrome</p><p>de	Lasthénie	de	Ferjol,	devido	à	qual	o	sangue,	metodicamente	autopuncionado	por</p><p>elas,	em	um	ritual	secreto	e	de	uma	terrível	intimidade,	assinala	uma	grave	falha	no</p><p>tocante	 à	 identidade	 de	 onde	 provém	 o	 drama	 de	 um	 rosto	 que	 passa	 a	 ser</p><p>detestado,	de	um	corpo	vivido	como	um	cadáver,	ou	seja,	um	corpo-objeto	do	qual</p><p>o	sujeito	faz	sua	“coisa”,	um	sacrifício	particular.</p><p>Aprofundando-se	na	compreensão	dessa	síndrome,	Bidaud	(2000,	p.	31)	nos	diz:</p><p>Essas	 hemorragias	 autoprovocadas	 são	 difíceis	 de	 evidenciar	 em	 razão	 de	 sua</p><p>variedade	 e	 do	 poder	 de	 dissimulação	 das	 pacientes.	 Embora	 a	 anemia	 seja</p><p>importante,	 é	 muito	 bem	 tolerada,	 sendo	 o	 objeto	 de	 uma	 busca	 desenvolvida</p><p>durante	muito	tempo	em	seu	limite	vital.	Os	sangramentos	podem	ser	externos	(na</p><p>dobra	 interna	do	cotovelo	ou	na	virilha)	ou	 internos	 (nariz,	garganta,	bexiga),	e	o</p><p>sangue	 pode	 ser	 até	 reinjetado,	 em	 um	 circuito	 em	 que	 todos	 os	 limites	 entre	 o</p><p>interno	 e	 o	 externo,	 o	 conteúdo	 e	 o	 continente,	 ficam	 “enlouquecidos”.	 Os</p><p>hematólogos	veem	chegar	aos	hospitais	essas	pacientes	em	uma	“oferenda”	de	sua</p><p>anemia	extrema,	cuidam	delas	por	meio	de	transfusões	até	o	dia	em	que	percebem</p><p>que	se	trata	apenas	de	uma	farsa.	E	ainda	é	necessário	que	eles	levantem	a	suspeita,</p><p>pois	a	paciente	só	revelará	o	segredo	de	sua	prática	em	último	caso.</p><p>Longe	 de	 entender	 as	 automutilações	 que	 vemos	 na	 clínica	 como	 quadros</p><p>idênticos	à	síndrome	de	Ferjol,	concordamos	com	Bidaud	quando	ele	diz	que,	“no</p><p>quadro	clínico	dos	chamados	 sangramentos	provocados,	 a	 síndrome	de	Lasthénie</p><p>de	Ferjol	deve	ser	considerada	como	um	paradigma	limite”.	São	suas	palavras:</p><p>O	 segredo	 sempre	 presente	 nesse	 exercício	 sintomático,	 embora	 nunca</p><p>absolutamente	inviolável,	poderá	conter	formas	de	alívio,	de	escamoteação,	estando</p><p>associado	a	um	desejo	em	gestação	de	 ser	olhado,	de	 ser	 acolhido.	Dito	de	outra</p><p>forma,	 é	 o	 lugar	 do	 sujeito	 do	 sintoma	 em	 sua	 relação	 com	 o	 Outro	 que	 deve</p><p>orientar	 nossa	 atenção.	 Nossa	 hipótese	 é	 que	 as	 marcas	 no	 corpo,	 que	 deixam</p><p>traços,	funcionam	como	um	 inciso	à	escamoteação	do	Outro	como	uma	carta	na</p><p>carne,	 com	 a	 presença	 encarnada	 (no	 sentido	 mais	 próximo	 da	 etimologia	 do</p><p>termo)	do	Outro	materno	(op.	cit.,	p.	34,	grifo	nosso).</p><p>Bidaud	 introduz	 uma	 questão	 importante	 ao	 se	 perguntar	 se	 esse	 agir	 (do	 se</p><p>cortar)	 pode	 ser	 compreendido	 como	 a	 criação	de	 algo,	 de	 um	espaço	 em	que	o</p><p>sujeito	se	lança	na	tentativa	de	fazer	alguma	coisa	com	sua	pele	a	fim	de	sair	de	uma</p><p>associação	com	o	Outro.	Seria,	enfim,	uma	saída,	um	rompimento	com	a	associação</p><p>com	o	Outro	e,	ao	mesmo	tempo,	uma	forma	de	 inscrever	uma	ligação,	por	mais</p><p>rudimentar	 que	 seja,	 com	 esse	 Outro.	 É	 nesse	 sentido,	 diz	 ele,	 “que	 o	 sujeito</p><p>adquire	certa	garantia	de	existência	no	agir”	(p.	35).</p><p>Maurice	Corcos	(2005),	que	também	se	debruçou	sobre	essa	questão,	considera</p><p>que	para	além	da	expiação	mortificante	à	qual	se	submete	o	sujeito	automutilador</p><p>está	o	objeto	materno,	que	é	visado	e	atingido	pelo	fato	da	“escolha”	privilegiada	do</p><p>ataque	corporal.	Este	investimento	procurado	e	provocado	seria	a	permanência	do</p><p>investimento	 na	 perda	 do	 objeto	 ideal.	Numa	 posição	 sacrificante,	 ele	mantém	 o</p><p>objeto	ideal	no	domínio,	não	lidando	com	a	perda.	O	investimento	no	sofrimento</p><p>marcaria	 o	 fim	 da	 luta	 entre	 sujeito	 e	 objeto.	 O	 sofrimento	 vira	 o	 último</p><p>representante	dessa	mãe	frustrante	e	a	voluptuosidade	da	dor	ocupa	o	lugar	da	falta.</p><p>O	sujeito	é	dolorosamente	submetido	ao	outro;	não	elabora	o	luto	originário,	“não</p><p>sabe	do	que	e	por	que	sofre”	(p.	143).</p><p>Concebendo	a	automutilação	como	uma	“melancolia	abortada”	–	um	espetáculo</p><p>que	 anuncia	 e	 ao	 mesmo	 tempo	 barra	 o	 suicídio	 –,	 Corcos	 pensa	 que	 ela	 se</p><p>transforma	 aqui	 numa	 “demonstração”	 endereçada	 ao	 objeto	 primário,	 uma</p><p>proteção	contra	o	suicídio	melancólico,	daquele	que	se	mata	para	matar	esse	objeto.</p><p>Philippe	 Jeammet,	 em	 trabalho	 conjunto	 com	 Corcos	 (2005),	 toma	 as</p><p>automutilações	 na	 adolescência	 como	 uma	 manifestação	 do	 masoquismo,	 “um</p><p>recurso	sempre	possível”.	Sobre	essa	agressividade	voltada	contra	si	mesmo,	dizem</p><p>os	autores:</p><p>A	solução	masoquista	se	impõe	ao	Ego	como	um	compromisso	sempre	possível,	“à</p><p>mão”,	poder-se-ia	dizer,	quando	o	Ego	é	ameaçado	de	 transbordamento.	Há	uma</p><p>dimensão	de	resposta	traumática,	quando	se	põe	em	ação	uma	conduta	masoquista,</p><p>nos	 dois	 extremos	 possíveis:	 os	 traumatismos	 cumulativos	 de	 experiências</p><p>dolorosas	da	 infância	ou	o	 traumatismo	pubertário	da	confrontação	brutal	de	um</p><p>Ego	 vulnerável	 a	 uma	 decepção	 insuportável,	 ou	 na	 emergência	 de	 desejos</p><p>experimentados	 como	 incontroláveis.	Graças	 ao	 recurso	 a	mecanismos	 de	 defesa</p><p>tão	 arcaicos	 quanto	 o	 retorno	 sobre	 si	 e	 a	 transformação	 em	 seu	 contrário,	 a</p><p>conduta	 masoquista	 oferece	 sempre	 ao	 sujeito	 a	 possibilidade	 ou	 a	 ilusão	 de	 se</p><p>liberar	 do	 domínio	 do	 objeto	 e	 de	 retomar	 uma	 posição	 ativa	 de	 controle,</p><p>exatamente	onde	ele	se	sentia	ameaçado	de	transbordamento	e	de	rendição	passiva</p><p>ao	objeto	(p.	83).</p><p>Para	 os	 autores,	 é	 a	 ameaça	 sobre	 a	 identidade	 que	 parece	 ser	 o	motor	 desse</p><p>masoquismo.	E	acrescentam:</p><p>Além	de	seu	retorno	sobre	o	próprio	sujeito,	a	violência	atuada	representa	a	última</p><p>defesa	 do	 Ego	 para	 restaurar	 sua	 identidade	 ameaçada.	 Se	 o	 resultado	 é	 sempre</p><p>aleatório	e	depende	dos	outros,	o	dano	e	o	sofrimento	autoinfligidos	são	garantidos</p><p>e	podem	sempre	escapar	do	poder	do	outro.	Eles	permitem,	além	disso,	lidar	com</p><p>esse	 outro,	 tornando-o	 impotente,	 e	mesmo	 dependente	 da	 boa	 vontade	 daquele</p><p>que	 se	 faz	mal.	 Encontra-se	 como	 sempre	 esse	movimento	 de	 transformação	 da</p><p>decepção	sofrida	em	seu	contrário,	o	poder	de	decepcionar	e	do	retorno	contra	si</p><p>da	violência	dirigida	ao	outro	(p.	84).</p><p>Em	linhas	gerais,	os	autores	citados	parecem	estar	de	acordo	quanto	à	questão</p><p>da	identidade	nas	automutilações.	Essa	posição	vem	ao	encontro	da	clínica,	em	que</p><p>observamos	meninas	 lutando	 ardentemente	para	 adquirir	 um	 lugar	de	 autonomia.</p><p>Mas	que,	impotentes	para	sustentar	a	separação	de	um	objeto	materno	intrusivo	e</p><p>dominador,	fazem	esse	corte	concretamente	em	sua	própria	carne.</p><p>Mutiladas,	escarificadas,	esfoladas	vivas,	essas	pacientes	oferecem	ao	nosso	olhar</p><p>o	 seu	 sofrimento	 encarnado.	Usando	 as	palavras	de	Micheline	Enriquez	 (1999,	p.</p><p>150),	são	pacientes	que	“transformaram	um	corpo	em	sofrimento	em	um	corpo	de</p><p>sofrimento”.</p><p>Também	Santa	Veronica	Giuliani,	com	seus	cortes	e	ferimentos,	exibe	um	corpo</p><p>que	 sofre,	 exigido	 até	 às	 últimas	 consequências.	 Em	 um	 primeiro	 momento,</p><p>podemos	pensar	que,	diferente	do	que	acontece	com	as	pacientes,	os	sangramentos</p><p>de	Santa	Veronica	têm	um	endereçamento:	seu	sangue	é	de	e	para	Cristo.	Nas	jovens</p><p>adolescentes,	 diz	 Bidaud	 (2010,	 p.	 34),	 essas	 cartas	 de	 sofrimento	 “são	 a	 marca</p><p>cicatrizada	de	uma	escrita	 sem	destinatário,	um	apelo	pobre	e	desesperado	de	um</p><p>gesto	de	nomeação	que	não	leva	a	nenhum	lugar”.</p><p>Mas	seriam	mesmo	as	cartas	das	jovens	pacientes	sem	destinatário?	Ou,	como	as</p><p>cartas	para	Cristo,	são	um	pedido	de	amor?	Não	teria	destinatário	a	“flor	de	peles”</p><p>que	a	paciente	entrega,	através	da	foto,	à	sua	analista?	Não	estariam	todas,	santa	e</p><p>pacientes,	vivendo	o	mesmo	calvário	da	 luta	com	o	objeto	 ideal,	amado	e	odiado,</p><p>temido	e	procurado?</p><p>O	sangue	menstrual</p><p>A	 paciente	 tomada	 como	 exemplo	 de	 automutilação	 na	 clínica	 –	 que	 afirma</p><p>odiar	 seu	 sangue	menstrual	–	não	é	 a	única	com	sintomas	de	anorexia	 a	 fazer	 tal</p><p>afirmação.	Outras	 garotas	 dizem	o	mesmo	 e	 algumas	 tomam	medicamentos	 para</p><p>deixar	 de	 menstruar.	 E	 parecem	 se	 alegrar	 com	 a	 amenorreia,	 uma	 das</p><p>consequências	clínicas	da	anorexia.</p><p>Como	podemos	entender	o	significado	dessas	falas,	pensando	além	da	questão</p><p>do	controle	sobre	seu	corpo?</p><p>Sobre	esse	sangue	menstrual,	Bidaud	(op.	cit,	p.	28)	afirma	que:</p><p>O	sangue	das	regras	apresenta	à	jovem	uma	nova	temporalidade:	o	tempo	do	ciclo	e</p><p>da	 fecundação,	 da	 espera	 ou	 da	 ausência	 do	 fluxo	 sanguíneo	 como	 índice	 da</p><p>contenção	do	corpo</p><p>com	relação	a	esse	bebê	que	tomará	todo	seu	valor	imaginário</p><p>e	 simbólico	 de	 objeto	 da	 disposição	 de	 encontro	 com	 o	 outro.	 É	 pela	 “perda</p><p>regrada”	desse	conteúdo,	o	sangue,	que	normalmente	não	deve	sair	do	corpo,	esse</p><p>objeto	em	que	se	concentra	o	mistério	da	vida	e	da	morte,	que	a	jovem	ascende	à</p><p>sua	condição	de	mulher.</p><p>Contestando	essa	condição	e	manipulando	seu	sangue,	conclui	o	autor,	a	jovem</p><p>faz	 dele	 a	 sua	 “coisa”,	 o	 objeto	 de	 seu	 prazer.	 E	 “se	 a	 morte	 é	 o	 limite	 mais</p><p>frequentemente	‘impensado’	do	sujeito,	este	pode	se	tornar,	precisamente,	o	objeto</p><p>de	seu	desafio”,	como	bem	exemplificam	as	garotas	que	tiram	seu	sangue	com	uma</p><p>seringa	ou	as	que	se	cortam	“no	limite”	para	não	sangrar	até	à	morte.</p><p>Segundo	 Corcos,	 uma	 das	 etimologias	 hebraicas	 para	 regras	 é	 “separação”.	 A</p><p>palavra	remete	não	apenas	à	separação	do	esposo	imposta	pela	religião	–	porque	a</p><p>mulher	 é	 “suja	 e	 sagrada”	 durante	 esse	 período	 –,	 mas,	 mais	 originalmente,	 à</p><p>separação	 com	 o	 objeto	 primário,	 a	mãe,	 no	momento	 de	 ascensão	 a	 um	 corpo</p><p>sexualmente	adulto.	E	à	separação	pelo	sujeito	de	um	corpo	próprio	da	infância.	A</p><p>partir	disso,	Corcos	pensa	que	manter	a	amenorreia	é	permanecer	criança	e	recusar</p><p>a	 separação	 e	 a	 rivalidade	 com	 a	mãe	 no	 terreno	 da	maternidade,	 alimentando	 o</p><p>fantasma	de	gravidez,	pois	a	amenorreia	é	ao	mesmo	tempo	o	sinal	da	esterilidade	e</p><p>da	 gravidez.	 O	 fantasma	 corrente	 de	 ser	 estéril,	 na	 anorexia,	 teria	 por	 função</p><p>proteger	de	um	 risco	de	gravidez	permanente,	de	natureza	psíquica	 incestuosa.	E</p><p>quando	se	torna	possível	para	uma	anoréxica	esperar	uma	gravidez,	conclui	Corcos</p><p>(2005,	p.	167),	“isto	não	pode	ocorrer	senão	em	relação	à	história	maternal	(ser	mãe</p><p>na	mesma	idade	que	sua	mãe,	tornar-se	mãe	e	provocar	assim	a	menopausa	de	sua</p><p>própria	 mãe,	 como	 se	 não	 houvesse	 lugar	 para	 duas	 mulheres	 em	 idade	 de</p><p>procriar)”.</p><p>Christopher	 Bollas	 (1998,	 p.	 109)	 ilustra	 bem	 essa	 questão	 do	 sangramento</p><p>autoprovocado	 e	 do	 sangue	 menstrual	 com	 as	 palavras	 de	 uma	 paciente	 de	 um</p><p>hospital	psiquiátrico	aberto:</p><p>O	que	comemoro	quando	me	corto?	Adoro	o	passar	do	tempo,	o	intervalo	entre	a</p><p>incisão	 e	 o	 brotar	 do	 sangue.	 Espero.	 Terei	 cortado	 suficientemente	 fundo	 para</p><p>brotar	o	sangue?	Ou	é	o	corte	de	uma	virgem,	sem	menarca?	Devo	esperar.	Estou</p><p>acostumada	a	estas	esperas.	O	corte	no	meu	corpo	não	sangrou	até	que	eu	fiz	12</p><p>anos;	então	eu	sei	tudo	sobre	como	esperar	pelo	sangrar	de	um	corte.</p><p>Ele	 flui,	derramando-se	sobre	a	minha	pele.	Puro.	Nenhum	óvulo.	Nenhum	bebê</p><p>morto	 aqui.	 Mancha	 alguma	 que	 cheire	 e	 possa	 causar	 problema	 com	 a	 minha</p><p>relação	com	o	outro	corte:	este	sangue	é	puro.</p><p>Nenhuma	relação	com	“seu	outro	corte”,	com	sua	sexualidade,	com	um	corpo</p><p>que	dê	prazer.	É	o	que	a	clínica	nos	confirma.	Jovens	amenorreicas,	com	corpos	de</p><p>menina	 e	 presas	 às	 suas	mães,	 lutam	 pela	 sua	 sobrevivência	 psíquica	 fechando	 a</p><p>boca	para	a	comida	e	cortando	seu	corpo.	Levando	uma	vida	ascética,	nos	lembram</p><p>Veronica	 Giuliani	 que,	 ainda	 menina,	 escolheu	 o	 caminho	 do	 monastério	 e,	 se</p><p>aceitou	o	casamento,	foi	na	condição	de	sofrimento	e	de	esposa	de	Cristo.</p><p>1.	Este	texto	é	a	publicação	do	capítulo	de	mesmo	nome,	com	pequenas	modificações,	da	tese	de	doutorado</p><p>intitulada	Sob	 o	 olhar	 da	 Santa	Madre:	 articulações	 entre	 a	 vida	 de	 Santa	Veronica	Giuliani	 e	 a	 clínica	 da	 anorexia,</p><p>defendida	em	2015,	na	PUC	de	São	Paulo,	sob	a	orientação	do	Prof.	Dr.	Manoel	T.	Berlinck.</p><p>Referências</p><p>BIDAUD,	 E.	 Reflexões	 sobre	 a	 clínica	 dos	 sangramentos	 provocados.	 In:</p><p>GONZAGA,	A.	P.;	WEINBERG,	C.	(orgs.)	Psicanálise	de	 transtornos	alimentares.	São</p><p>Paulo:	Primavera,	2010.</p><p>BOLLAS,	C.	Flagelação.	In:	Sendo	um	personagem.	Rio	de	Janeiro:	Revinter,	1998.</p><p>CORCOS,	M.	Le	corps	insoumis.	Psychopathologie	des	troubles	des	conduits	alimentaires.	Paris:</p><p>Dunod,	2005.</p><p>ENRIQUEZ,	 M.	 Do	 corpo	 em	 sofrimento	 ao	 corpo	 de	 sofrimento.	 In:	 Nas</p><p>encruzilhadas	do	ódio:	paranoia,	masoquismo,	apatia.	São	Paulo:	Escuta,	1991.</p><p>JEAMMET,	P.	&	CORCOS,	M.	Novas	problemáticas	da	adolescência:	evolução	e	manejo	da</p><p>dependência.	São	Paulo:	Casa	do	Psicólogo,	2005.</p><p>Veronica	Giuliani	Diario.	 In:	Um	 tesoro	 nascosto;	 ossia	 Diario	 di	 S.	 Veronica	 Giuliani,</p><p>scritto	 da	 lei	medesima.	Publicato	 e	 corredato	di	note	dal	Pizzicaria,	P.,	 v.	 II	 (1693	–</p><p>1694	–	1695).	Città	di	Castello:	Prato,	1897.</p><p>Veronica	 Giuliani	 Il	 mio	 calvario.	 Diario.	 Città	 di	 Castello:	 Monastero	 delle</p><p>Cappuccine,	1976.</p><p>CINDERELAS	CONTEMPORÂNEAS</p><p>“Fada	madrinha,	eu	quero	entrar	no	tamanho	36!”</p><p>Fabiana	Maria	Gama	Pereira</p><p>Elisa	Gan</p><p>Introdução</p><p>Aquilo	que	permeia	a	corporalidade	é	algo	que	desde	cedo	fascinou	o	homem</p><p>em	diferentes	épocas	e	culturas.	Atualmente,	no	entanto,	a	forma	de	olhar	sobre	o</p><p>que	envolve	a	 imagem	humana	se	modificou	bastante.	Este	texto,	escrito	a	quatro</p><p>mãos,	 foi	 elaborado	 a	 partir	 da	 experiência	 de	 duas	 profissionais	 interessadas	 em</p><p>refletir	 sobre	 o	 corpo	 e	 os	 transtornos	 alimentares.	 Por	 intermédio	 de	 suas</p><p>experiências,	 tanto	 no	 campo	 da	 antropologia	 quanto	 da	 psicanálise,	 foi	 possível</p><p>elaborar	o	tema	de	uma	forma	ampliada,	o	que	nos	pareceu	bastante	enriquecedor.</p><p>Os	corpos	dessas	garotas	que	chegam	aos	nossos	consultórios	nos	 remetem	o</p><p>todo	 tempo	 à	 própria	 finitude	 humana,	 e	 nos	 fazem	 pensar	 no	 inconsciente</p><p>enquanto	 instância	 enigmática,	 sobretudo	 em	 casos	 tão	 complexos	 como	 são	 os</p><p>transtornos	alimentares.	Mas	além	do	psiquismo,	não	se	pode	descartar	o	papel	da</p><p>própria	 cultura	 sob	 o	 adoecer	 dessas	 jovens.	Os	 padrões	 corporais	mostrados	 na</p><p>mídia	 estão	 presentes	 nos	 discursos	 dessas	 meninas	 que	 falam	 de	 personagens</p><p>magros,	 tidos	 como	 os	 “tipos	 ideais”,	 aos	 quais	 se	 identificam	maciçamente.	 Ser</p><p>magra	passa	a	ser	o	objetivo,	e	para	consegui-lo	vale	qualquer	sacrifício.</p><p>Neste	 texto,	 trataremos	 do	 corpo	 num	 sentido	 interdisciplinar,	 indo	 do</p><p>psicanalítico	ao	antropológico,	numa	tentativa	de	estabelecer	uma	reflexão	sobre	os</p><p>padrões	 estéticos	 da	 sociedade	 atual	 e	 a	 relação	 com	 a	 clínica	 dos	 transtornos</p><p>alimentares,	notadamente	da	anorexia.</p><p>Fran,	“Cinderela	punk”</p><p>Punk?</p><p>De	aparência	assustada	e,	ao	mesmo	tempo,	provocadora,	na	cara,	ou	melhor,	no</p><p>septo	nasal	um	piercing	cravado	lhe	dava	um	aspecto	de	“não	estou	pra	brincadeira!”;</p><p>nas	orelhas,	vários	outros	adornos,	ao	ponto	que	quase	não	lhe	sobrava	cavidade,	o</p><p>cabelo	muito	 preto,	 espetado,	 roupas	 igualmente	 negras,	 mas	 de	menina,	 não	 de</p><p>mulher.	Na	época,	Fran	tinha	28	anos.</p><p>Nesse	mesmo	corpo,	várias	 tatuagens	se	esparramavam,	as	visíveis	eram	coisas</p><p>triviais,	estrelinhas	e	corações.	Algum	tempo	depois	verbalizou	ter	criado	coragem</p><p>para	mostrar	aquela	que	seria	a	mais	difícil;	ficava	nas	costas,	era	um	dragão	negro,</p><p>que	 tatuou	para	cobrir	uma	 fada.	A	 tal	 fadinha	 foi	 feita	por	volta	dos	19	anos,	 e,</p><p>agora,	com	quase	30,	não	pegava	bem	desfilar	com	uma	fada	de	asinhas,	surgindo</p><p>então	 o	 impasse	 de	 como	 apagar	 aquilo,	 aquela	 marca	 inocente,	 definitivamente.</p><p>Fran	criou	coragem	e	foi	a	um	estúdio	de	tatuagem	para	exterminar	a	fada.	Depois</p><p>de	 examinar,	 o	 tatuador	 disse	 que	 só	 um	dragão	 poderia	 cobrir	 e	 ela	 concordou,</p><p>mas	 ao	 final	 do	 trabalho,	 achou	 que	 havia	 ficado	 muito	 grande,	 não	 gostou	 do</p><p>resultado,	embora	tenha	se	conformado.</p><p>Essa	 tatuagem,	 de	 certa	 forma,	 fala	 muito	 sobre	 Fran,	 uma	 menina	 frágil,</p><p>disfarçada	 em	 algo	 que	 assusta	 e	 afugenta	 quem	 quer	 se	 aproximar.	 Esse</p><p>movimento	de	 ferocidade	e	voracidade	de	Fran,	 atacando	a	 si	mesma,	 já	que	não</p><p>consegue	conviver	com	sua	enorme	fragilidade,	apontaria	para	a	fragilidade	do	Ego</p><p>frente	a	um	desejo	devorador,	que	ela	tenta	a	todo	custo	manter	enjaulado.</p><p>Queixa</p><p>Casada	 há	 dez	 anos	 com	 o	 primeiro	 e	 único	 namorado,	 que	 conheceu	muito</p><p>jovem,	Fran	 fala	 de	 “falta	 de	 desejo”.	Não	 sente	 vontade	 de	 ter	 relações</p><p>sexuais,</p><p>mas	“faz”	para	satisfazer	a	necessidade	do	marido.	Outra	queixa	é	a	obsessão	por</p><p>dietas,	 passa	 o	 dia	 todo	 pensando	 nas	 calorias	 dos	 alimentos	 ingeridos	 e	 nos</p><p>exercícios	físicos	compensatórios	que	são	realizados	e	de	forma	exagerada.</p><p>Fran	 come	 basicamente	 iogurte,	 proteína	 de	 soja,	 salada	 (sem	 tempero)	 e	 pão</p><p>integral.	Ela	se	impõe	uma	vida	quase	monástica,	ascética,	de	vez	em	quando	vai	a</p><p>algum	restaurante	japonês,	mas	compensa	tudo	na	academia.	Nas	ocasiões	em	que</p><p>toma	 duas	 latinhas	 de	 cerveja,	 são	 quase	 10	 quilômetros	 a	 mais	 de	 corrida.</p><p>Conforme	verbaliza	nas	sessões,	sente-se	muito	mais	feliz	quanto	resiste	à	tentação</p><p>de	 comer	 o	 que	 deseja,	 do	 que	 quando	 sai	 e	 come,	 o	 que	 ela	 nunca	 faz,	 pois	 se</p><p>satisfaz	na	recusa	e	na	autopunição.	Ou	seja,	resistir	é	sempre	melhor	que	desejar.</p><p>A	esse	respeito,	Silva	e	Bastos	(2006,	p.	100)	afirmam	que	“[…]	a	anorexia	seria,</p><p>então,	uma	manobra	de	separação	do	sujeito	em	relação	ao	Outro.	Aí	onde	o	Outro</p><p>parece	sufocar	toda	falta,	a	recusa	surge	como	desejo	[…]”.	Essa	citação	indica	que</p><p>esse	 sintoma	 é	 consequência	 da	 relação	 entre	 o	 sujeito	 e	 o	Outro,	 visto	 que,	 de</p><p>alguma	 maneira,	 o	 sujeito	 busca	 essa	 operação	 de	 separação	 em	 detrimento	 da</p><p>alienação,	a	favor	do	surgimento	de	seu	desejo.	A	recusa,	nesse	caso,	confirma	que</p><p>não	se	trata	de	um	não	comer	ou	de	inapetência	da	ordem	da	necessidade,	mas	sim</p><p>desse	 “nada”	 propulsor	 ao	 desejo.	Nesse	 sentido,	 é	 interessante	 quando	Recalcati</p><p>(2001,	p.	28)	enuncia	a	seguinte	frase:	“É	o	nada	como	escudo	e	como	suporte	do</p><p>desejo”.	 É	 o	 nada	 que	 protege	 o	 sujeito	 do	 Outro	 sufocante	 e	 que,	 ao	 tentar</p><p>preencher	a	falta,	pode	fazer	eclodir	o	desejo.</p><p>Cinderela</p><p>Fran	diz	 que	 sempre	 esteve	 atrás	 da	 genitora,	 apesar	 dela	 –	 a	mãe	–	não	 ligar</p><p>muito	para	a	 filha.	Durante	a	adolescência,	 relata	que	 lhe	 faltavam	roupas	para	as</p><p>festas	de	15	anos	das	amigas.	A	mãe	não	se	preocupava	em	comprar	vestidos	para</p><p>os	bailes	de	debutantes,	 típicos	dessa	época:	“…eu	não	 tenho	vestido	para	aquela</p><p>festa	toda,	não	quero	gastar	um	dinheirão	com	aquela	bobagem,	minha	mãe	poderia</p><p>ter	 me	 comprado	 um	 vestido,	 mas	 também	 pensou	 que	 não	 valeria	 a	 pena	 o</p><p>investimento,	 será	 que	 ela	 me	 achava	 feia?	 Onde	 já	 se	 viu	 me	 chamar	 de</p><p>investimento?	Mas	enfim	tive	que	ir	naquela	breguice”	(sic).1</p><p>A	 mãe	 conseguiu	 um	 vestido	 emprestado,	 que	 ela	 já	 havia	 usado	 em	 outra</p><p>ocasião:	“O	vestido	chegou,	lindo,	azul,	todo	bordado,	eu	ia	parecer	uma	princesa,</p><p>mas	tudo	bem,	vamos	para	o	sacrifício.	Quando	experimentei	disse,	 ‘nesse	vestido</p><p>cabemos	as	duas’,	e	os	sapatos	então,	dois	números	maiores.	Ela	deve	achar	que	sou</p><p>do	 tamanho	 dela”	 (sic).2	 A	 genitora	 parece	 ter	 tido	 só	 os	 cuidados	 básicos	 com</p><p>Fran,	o	afeto	ficou	bastante	comprometido	e	isso	aparece	em	suas	relações,	através</p><p>do	medo	e	do	desejo	de	ser	cuidada.</p><p>Fazendo	 uma	 analogia	 do	 caso	 aqui	 apresentado	 com	 o	 filme	 Cinderela</p><p>(BRANAGH,	2015),	o	que	chama	a	atenção	dos	espectadores	não	é	o	belo	vestido</p><p>de	baile	feito	pela	fada	madrinha,	mas	a	minúscula	cintura	da	protagonista.</p><p>Essa	 ideia	 nos	 convida	 a	 pensar	 em	 outra,	 já	 que	 a	 identidade	 do	 sujeito	 é</p><p>revelada	 pelo	 corpo	 que	 se	 tem,	 e	 hoje	 existe	 a	 possibilidade	 de	 inúmeras</p><p>intervenções.	Se	a	cada	momento	se	tem	um	novo	corpo,	a	 identidade	também	se</p><p>refaz	a	cada	dia.	Assim,	o	sujeito	é	direcionado	a	buscar	o	corpo	da	moda,	e	dessa</p><p>forma,	a	identidade	corporal	é	refém	do	imprevisível.	De	acordo	com	o	que	está	na</p><p>moda,	se	intervém	no	corpo.	É	um	“corpo	novo”	a	cada	dia…</p><p>Hoje,	além	da	moda	das	roupas,	há	também	a	moda	do	corpo.	O	corpo	entrou	e</p><p>está	 em	moda.	 Goldenberg	 (2007)	 propõe	 que	 é	 possível	 pensar	 que	 além	 de	 o</p><p>corpo	 ser	 mais	 importante	 que	 a	 roupa,	 atualmente	 ele	 pode	 ser	 considerado	 a</p><p>própria	 roupa.	 O	 corpo	 pode	 ser	 exibido,	 moldado,	 manipulado,	 trabalhado,</p><p>costurado,	enfeitado,	encolhido,	construído,	produzido,	 imitado.	É	ele	que	entra	e</p><p>sai	de	moda.	Dentre	essas	tantas	possibilidades,	resta	a	cada	um	idealizar	e	escolher</p><p>o	padrão	corporal	que	quer.	Em	se	tratando	de	moda,	é	o	objeto	corpo	e	não	mais</p><p>o	objeto	roupa	que	todos	tentam	alcançar	e	vestir.</p><p>Kehl	 (2004),	 a	 partir	 de	 uma	 composição	musical	 de	Noel	 Rosa,	 denominada</p><p>“Com	 que	 roupa	 eu	 vou?”,	 provoca	 os	 questionamentos:	 “Com	 que	 corpo	 eu</p><p>vou?”,	 “Que	 corpo	 você	 está	 usando	 ultimamente?”.	 Diante	 das	 inúmeras</p><p>possibilidades	que	se	tem,	não	se	decide	apenas	qual	roupa	usar,	mas	também	qual</p><p>corpo	usar,	afinal,	ele	também	entra	e	sai	de	moda!	Por	si	só,	o	corpo	já	transmite</p><p>mensagem	para	o	outro.	Atualmente,	o	 sujeito	 se	direciona	a	partir	do	corpo	que</p><p>tem,	do	corpo	que	se	“in-veste”.</p><p>Início</p><p>Aos	 17	 anos,	 Fran	 resolve	 ir	 para	 São	 Paulo	 estudar,	mas	 não	 consegue	 ficar</p><p>nessa	cidade,	abandona	a	faculdade	no	segundo	ano	e	volta	para	a	casa	dos	pais.3	É</p><p>nessa	época	que	começa	a	fazer	dietas,	quando,	segundo	ela,	estava	oito	kilos	acima</p><p>de	seu	peso.	Aos	poucos,	passa	a	colecionar	tabelas	de	calorias.	Sua	rotina	diária	era</p><p>bastante	dura:	estudava,	trabalhava	e	fazia	sanduíches	para	vender;	conseguiu	perder</p><p>os	oito	kilos	desejados,	mas	isso	nunca	mais	foi	o	suficiente.</p><p>Um	 tempo	 depois,	 quis	 voltar	 a	 fazer	 outro	 curso,	 passando	 a	 viver	 com	 o</p><p>namorado,	com	quem	casou	meses	depois.</p><p>Apesar	 de	 tantas	 conquistas,	 não	 se	 sentia	 feliz.	 A	 faculdade	 só	 lhe	 dava</p><p>problemas,	não	gostava	do	que	estudava.</p><p>Durante	o	curso,	também	conseguiu	um	estágio	muito	almejado	por	todos	numa</p><p>multinacional.	 Aí,	 começou	 a	 ter	 vontade	 de	 morrer,	 chegava	 perto	 da	 janela	 e</p><p>pensava:	se	eu	pular	acaba	tudo…	(sic).	Saiu	do	estágio	após	nove	meses.</p><p>Como	 se	 sabe,	 tornar-se	 adulta	 é	 tarefa	 difícil,	 entrar	 no	mercado	profissional</p><p>marca	 uma	 nova	 etapa	 na	 vida	 das	 pessoas.	 São	 nessas	 fases,	 marcadas	 por</p><p>transições,	que	Fran	parece	não	conseguir	transitar	muito	bem.	A	anorexia	pode	ser</p><p>uma	 forma	de	mantê-la	 sempre	criança,	 sem	corpo	e	 sem	atitude	de	uma	mulher</p><p>adulta.</p><p>Tratamento</p><p>Antes	 de	 começar	 o	 tratamento,	 Fran	 já	 havia	 ido	 a	 um	 psiquiatra	 e	 tomava</p><p>antidepressivo.4	Tomou	esse	medicamento	durante	dois	anos,	quando	começou	seu</p><p>tratamento	 psicanalítico.5	 Quando	 parou	 com	 a	 medicação	 psiquiátrica,	 alguns</p><p>meses	depois,	pela	primeira	vez,	chorou.6</p><p>Fran	 não	 se	 permitia	 ser	 frágil,	 essa	 foi	 uma	 das	 poucas	 sessões	 em	 que	 ela</p><p>manifestou	 o	 desejo	 de	 se	 mostrar.	 Como	 tantas	 outras	 pacientes,	 achou	 que	 o</p><p>remédio	resolveria	seu	sofrimento	mais	rapidamente.	Fran	iniciou	um	processo	de</p><p>mudanças	em	sua	vida,	tanto	exteriores	quanto	interiores.	Retirou	o	piercing	do	septo</p><p>nasal,	 o	 que	 lhe	 conferia	 uma	 imagem	menos	 agressiva.	As	 tatuagens	 e	 piercings</p><p>neste	caso,	 teriam	a	 função	de	anteparo	entre	Fran	e	o	mundo	externo,	à	medida</p><p>que	 ela	 consegue	 contar	 e	 montar	 sua	 própria	 história,	 esses	 acessórios	 vão</p><p>perdendo	 o	 sentido	 inicial.	 Também	 resolveu	 prestar	 um	 novo	 vestibular	 para</p><p>nutrição,	 área	com	que	parecia	mais	 identificada.	Passou	no	vestibular	 e	 começou</p><p>seu	novo	curso.</p><p>Dedicava-se	bastante	aos	estudos,	mas	continuava	avessa	às	pessoas,	parecia	ter</p><p>uma	 fobia	 social,	 sentia-se	 bem	 apenas	 com	 seu	 marido,	 aqui	 denominado	 de</p><p>“Nan”.	O	 rapaz,	 certa	 vez,	 procurou	 a	 psicanalista	 de	 Fran,	marcou	 um	 horário.</p><p>Bonito,	 simpático,	extrovertido,	 relata	que	a	esposa	não	era	assim,	e	que	as	coisas</p><p>pioraram	com	a	separação	dos	pais	dela.</p><p>Fran	 foi	 emagrecendo	 lentamente	 e	 não	 tinha	 a	 percepção	 do	 quanto	 estava</p><p>magra:	“só	porque	os	outros	dizem	que	estou	esquelética,	que	posso	acreditar	que</p><p>realmente	estou”	(sic).</p><p>Ou	seja,	a	imagem	que	ela	tinha	de	si	mesma	não	condizia	com	a	do	seu	corpo</p><p>extremamente	 emagrecido.	 Ela	 se	 olha	 no	 espelho	 e	 a	 imagem	 que	 aparece	 é</p><p>distorcida.	É	diante	do	que	os	outros	lhe	falam</p><p>moradia	provisória,	de	propriedade	de</p><p>um	avô,	 sobre	quem	 logo	comentou	 tratar-se	de	um	alcoolista	que	 transtornou	 a</p><p>vida	de	toda	a	família,	 inclusive	de	sua	mãe.	Conta,	ainda,	que	sua	mãe	enfrentara</p><p>esse	homem	e	 ajudara	 a	 avó	 a	 separar-se	 dele.	Um	 forte	 componente	 familiar	 de</p><p>excesso	no	uso	do	álcool	marca	as	sucessivas	gerações.</p><p>Em	 seu	 discurso,	 aparecia	 um	 temor	 de	 que	 tudo	 desse	 errado,	 que	 fosse</p><p>acontecer	algo	terrível,	ideias	que	se	tornavam	insistentes	e	lhe	perturbavam	o	sono.</p><p>Inesperadamente,	 entremeava	 sua	 fala	 com	 comentários,	 fantasias	 sobre	 situações</p><p>de	muita	carência	e	desamparo,	o	que	contaminava	seus	sentimentos	com	relação	ao</p><p>futuro	 e	 a	 tudo	 que	 parecia	 ser	 tão	 certo	 em	 sua	 vida.	 Começava	 a	 romper	 a</p><p>dissociação	 e	 os	 conteúdos	 afastados	 ameaçavam	 transbordar.	 Não	 vivia	 as</p><p>situações	 contendo	 dois	 lados,	 o	 bem	 e	 o	 mal,	 coisas	 boas	 e	 ruins	 ou	 das	 que</p><p>gostasse	 e	 das	 que	 não	 gostasse.	Havia	 para	 ela	 apenas	 o	 bom	 e	 o	 “podre”	 que</p><p>poderia	estragar	tudo	o	mais.</p><p>Aos	poucos	Maria	vai	se	queixando	de	falta	de	afeto.	Havia,	na	família	de	Maria,</p><p>uma	dinâmica	muito	própria,	segundo	ela,	cada	um	dos	familiares	tinha	o	próprio</p><p>quadro	psicopatológico,	o	que	permitia	vislumbrar	o	percurso	de	terapias	anteriores</p><p>e	 o	 uso,	 muitas	 vezes	 estereotipado,	 que	 ela	 fazia	 delas.	 Relata	 a	 experiência	 de</p><p>terapia	 familiar	 que	 fora	 realizada	 por	 causa	 do	 irmão	 que	 tem	 sérios</p><p>comprometimentos	psíquicos.	E,	assim,	gradativamente,	vai	narrando	e	construindo</p><p>para	 si	 outra	 versão	 dessa	 história	 familiar,	 a	 qual,	 até	 então,	 só	 vinha	 à	 tona	 em</p><p>flashes	bem-humorados,	como	se	não	fosse	algo	a	ser	levado	a	sério.</p><p>Pai	e	mãe	alcoolistas,	 ele	muito	 impulsivo	e	agressivo:	quando	brigava,	deixava</p><p>todos	tremendo	de	medo.	Muito	calado,	um	silêncio	regado	a	boas	doses	diárias	de</p><p>uísque,	até	que	explodia.	A	mãe	fazia	um	contraponto	na	forma	de	um	alcoolismo</p><p>“festivo”,	 em	 um	 movimento	 maníaco	 no	 qual	 “tudo	 é	 festa,	 senão,	 tudo	 vira</p><p>drama”.	 Frente	 aos	 problemas,	 oscilava	 entre	 ignorá-los	 ou	 dramatizar	 demais.</p><p>Maria	 diz	 que	 a	 incomodava	 muito	 nunca	 saber	 o	 que	 esperar	 da	 reação	 deles</p><p>quando	lhes	contava	os	fatos	de	sua	vida,	e	que	passou	a	ter	mais	cuidado	com	isso</p><p>para	se	preservar.</p><p>Não	é	incomum	nos	depararmos	com	essa	modalidade	de	relação	na	qual,	diante</p><p>de	 problemas	 e	 conflitos,	 se	 estabelece	 uma	 defesa	 cerrada	 contra	 a	 percepção</p><p>indesejada.	 É	 um	 mecanismo	 de	 funcionamento	 originado	 quando	 o</p><p>comportamento	 do	 adulto	 incita	 a	 criança	 à	 dissociação	 psíquica,	 ao	 negar	 a</p><p>percepção	da	realidade.	O	irmão,	na	adolescência,	teria	trazido	muitas	preocupações</p><p>aos	pais	com	seu	comportamento,	segundo	ela,	provocando	um	grande	tumulto	na</p><p>família	 –	 novamente	 aparece	 a	 ideia	 de	 um	membro	 da	 família	 que	 estraga	 tudo.</p><p>Maria	nada	mais	desejou	do	que	silenciar	seus	problemas	e	emoções,	de	modo	que</p><p>viveu	 a	 adolescência	 sem	 seus	 pais	 acompanharem	minimamente	 esse	 período	 e</p><p>suas	 dificuldades,	 tal	 como	 a	 experiência	 bulímica	 que,	 por	muito	 tempo,	 passou</p><p>despercebida	deles.	Precisava	sentir-se	o	membro	saudável	do	grupo,	queria	agradar</p><p>ou,	ao	menos,	não	decepcionar	os	pais,	como	o	irmão	fazia.</p><p>Os	deslocamentos	dos	sintomas</p><p>Embora	 o	 tema	 central	 de	 suas	 queixas	 ainda	 fosse	 o	 das	 dificuldades	 nos</p><p>empregos,	 sempre	 geradas	 porque	 os	 excessos	 a	 faziam	 sentir-se	 adoecendo	 e</p><p>esgotada	até	precisar	abandoná-los,	outros	acontecimentos	foram	surgindo.	Parecia</p><p>que	toda	a	voracidade	contida	até	então	emergia	e,	com	ela,	um	comportamento	de</p><p>maior	atuação,	as	paixões	por	trás	dos	sintomas	começando	a	se	revelar,	tal	como	se</p><p>vê	 frequentemente	 nos	 tratamentos	 das	 pacientes	 com	 anorexia,	 que	 quando</p><p>evoluem	e	 rompem	a	dissociação	dos	 afetos	passam	para	 um	comportamento	de</p><p>bulimia.	 “As	 crises	 bulímicas	 representarão	 no	 curso	 de	 uma	 anorexia	 uma</p><p>verdadeira	 solução	 de	 compromisso;	 […]	 significam	 uma	 perda	 de	 controle</p><p>onipotente	dos	impulsos	e	uma	ida	ao	encontro	do	objeto.”	(FUKS,	2006,	p.	44).</p><p>Ainda	que	algumas	dificuldades	alimentares	sempre	aparecessem	como	pano	de</p><p>fundo,	em	geral	na	forma	de	perda	de	apetite	e	temor	de	retomada	de	um	apetite</p><p>voraz,	não	foram	as	questões	alimentares	que	tomaram	o	primeiro	plano	quando	ela</p><p>rompeu	 com	 suas	 defesas	 mais	 dissociadas	 por	 trás	 da	 mulher	 que	 gostava	 de</p><p>agradar,	de	trabalhar,	de	ganhar	dinheiro	etc.	Em	certa	sessão	disse	que	“parecia	um</p><p>robô	 trabalhando,	 feliz	 e	 sorridente”.	 De	 fato,	 nesse	 momento	 apresentava	 um</p><p>sorriso	 artificial,	 como	 que	 plantado	 no	 rosto.	 Ela	 partiu	 para	 uma	 busca</p><p>desenfreada	 de	 prazer,	 que	 foi	 procurar	 no	 sexo,	 em	 drogas,	 e	 especialmente	 na</p><p>bebida	e	em	uma	vida	de	baladas	e	excessos.</p><p>O	marido,	que	até	então	representava	seu	porto	seguro	diante	do	caos	emocional</p><p>de	sua	família,	principalmente	por	sua	estabilidade	afetiva	e	financeira,	passou	a	ser</p><p>sentido	como	frio,	distante,	alguém	com	quem	não	vivia	as	emoções	que	desejava.</p><p>É	 interessante	 notar	 que	 à	 medida	 que	 a	 relação	 do	 casal	 esfriava,	 ambos</p><p>dedicavam-se	 cada	 vez	 mais	 às	 aventuras	 gastronômicas.	 O	 gosto	 de	 Maria	 de</p><p>frequentar	 restaurantes	 caros,	 no	 desejo	 de	 degustar	 comidas	 e	 vinhos	 especiais,</p><p>tinha	 se	 tornado	 frequente	 no	 final	 do	 casamento.	 Podemos	 pensar	 que	 esse</p><p>comportamento	 respondia	 a	 um	 deslocamento	 da	 busca	 de	 prazer,	 retornando	 a</p><p>uma	 dimensão	 oral?	 Interessante	 que,	 neste	 caso,	 o	 excesso	 ficava	 do	 lado	 da</p><p>sofisticação	 e	 não	 da	 dimensão	 grosseira	 e	 brutal	 do	 ataque	 e	 da	 voracidade</p><p>bulímicas.	 Podemos	 pensar	 em	 certa	 solução	 de	 compromisso,	 um	 modo	 de</p><p>preencher	um	vazio	que	se	fazia	presente	nessa	“comilança	de	pouca	quantidade”?1</p><p>A	 paciente	 separou-se	 do	 marido	 e	 passou	 por	 uma	 série	 de	 abandonos	 de</p><p>empregos	sem	conseguir	se	desligar	totalmente	de	um	tipo	de	relação	insatisfatória.</p><p>Ia	 se	delineando	cada	vez	mais	 como	centro	da	 análise	 sua	 insatisfação	com	seus</p><p>investimentos.	Em	todo	caso,	a	meu	ver,	a	cada	desligamento,	a	cada	emprego	que</p><p>largava,	Maria,	 ao	 seu	modo,	 ia	 elaborando	 seu	projeto	de	mudança	de	 vida	 e	 de</p><p>apropriação	 de	 si	 e	 de	 seu	 corpo,	 o	 que	 passava	 por	 um	 contato	maior	 com	 sua</p><p>fragilidade,	voracidade	e	violência.</p><p>Maria	 decidiu	 separar-se,	 depois	 de	 viver	 um	 período	 marcado	 por	 paixões</p><p>desenfreadas.	 Foi	 se	 desligando	 destas	 e	 procurando	 abster-se	 de	 tais</p><p>comportamentos,	na	tentativa	de	afastar-se	de	paixões	e	excessos	considerados	por</p><p>ela	mesma	“não	saudáveis”.	Quando	tudo	fica	controlado	“dentro”,	o	perigo	parece</p><p>retornar	 de	 fora.	 Volta	 então	 o	 tema	 do	 risco.	 Aos	 poucos,	 vai	 sendo	 capaz	 de</p><p>nomear	as	situações	de	risco	e	seu	impulso	em	vivenciá-las.	Em	certa	ocasião,	disse</p><p>que	 “a	 vida	 fica	 sem	 sentido	 sem	 correr	 riscos”.	 Foi	 um	 tema	 importante,	 que</p><p>remeteu	a	questões	existenciais,	e,	com	isso,	seu	modo	de	pensar	em	si	e	na	vida	se</p><p>ampliou.</p><p>Maria	interrompe	também	o	processo	de	análise,	em	função	de	sua	mudança	de</p><p>vida,	muda	de	cidade	e	convive	com	um	segundo	companheiro.	Ela	parece	não	dar</p><p>importância	à	 interrupção	de	nosso	vínculo.	Posteriormente,	me	procura	de	novo,</p><p>vem	em	algumas	 sessões	 espaçadas.	Depois	de	 alguns	meses,	 retorna,	 contando	a</p><p>experiência	 de	 um	 acidente	 que	 sofreu	 praticando	 um	 esporte	 que	 envolvia</p><p>equilíbrio.	 Lembra-se	 de	 algumas	 intervenções	 minhas,	 com	 as	 quais	 procurei</p><p>investigar	e	questionar	uma	possível	atitude	de	risco	em	sua	prática	esportiva,	que,</p><p>na	ocasião,	ela	negara.	Nesse	retorno,	disse	que	queria	pensar	melhor	a	respeito.</p><p>Comportamentos	autocalmantes	e	comportamentos	de	risco</p><p>Maria	frisa	 ter	muito	prazer	nas	atividades	esportivas,	em	especial	por	sentir-se</p><p>fazendo	 algo	 saudável	 em	 um	momento	 que	 se	 afastara	 da	 convivência	 com	 os</p><p>amigos	 partidários	 de</p><p>sobre	seu	corpo	esquelético	que	ela</p><p>pode	acreditar	que	realmente	está	muito	magra.	Esse	corpo	só	ganha	significado	a</p><p>partir	do	que	as	outras	pessoas	lhe	dizem,	a	partir	do	olhar	do	Outro.	É	também	a</p><p>partir	 dessa	 percepção	 corporal	 que	 se	 pode	 conceber	 a	 questão	 da	 morte	 na</p><p>anorexia.	 Segundo	 Fernandes	 (2006),	 as	 anoréxicas,	 ao	 recusarem	 o	 alimento	 e</p><p>levarem	seus	corpos	à	inanição,	não	querem	se	matar,	ou	seja,	a	condição	física	não</p><p>indica	uma	tentativa	de	suicídio.	Talvez	justamente	porque	a	 imagem	corporal	seja</p><p>distorcida,	elas	não	tenham	ideia,	ou	ao	menos,	uma	noção,	de	que	a	inanição	pode</p><p>causar	a	morte.</p><p>Este	 nada	 e	 o	 corpo	 esquelético	 da	 anoréxica	 podem	 ser	 concebidos	 como</p><p>tentativa	 de	 interromper	 sua	 relação	 com	 o	 Outro.	 É	 por	 meio	 do	 corpo</p><p>extremamente	 magro	 que	 busca	 vida	 e	 seu	 desejo,	 já	 que	 este	 é	 praticamente</p><p>inexistente	 diante	 da	 intrusão	 materna.	 Portanto,	 quanto	 mais	 profissionais	 e</p><p>familiares	 insistirem	 na	 alimentação,	 mais	 a	 recusa	 se	 instala,	 demonstrando	 sua</p><p>onipotência	 e	 tentando	 constituir	 seu	 desejo.	 Bellini	 (2000)	 aponta	 dois</p><p>questionamentos	 para	 o	 sujeito	 com	 anorexia,	 um	 pela	 medicina,	 “Por	 que	 não</p><p>come?”,	outro	pela	psicanálise,	“Por	que	não	come	nada?”.	Ou	seja,	não	é	que	não</p><p>se	come	na	anorexia,	mas	o	que	se	come	é	o	nada,	pois	apesar	de	parecer	um	não</p><p>comer,	já	que	não	há	alimentação,	esse	nada	é	dotado	de	significados	para	o	sujeito.</p><p>É	isso	o	que	ele	come.</p><p>Essa	constatação	direciona	para	a	compreensão	do	uso	que	a	anoréxica	faz	do</p><p>próprio	 corpo,	 corpo	 este	 constituído	 através	 da	 relação	 do	 sujeito	 com</p><p>significantes,	 que	 não	 se	 esgotam	no	 corpo	 anatômico.	Na	 atualidade,	 observa-se</p><p>também	 uma	 mudança	 no	 modo	 como	 a	 anorexia	 se	 apresenta.	 Esse	 corpo</p><p>cadavérico,	 a	 partir	 do	 ideal	 do	 corpo	magro	 que	 demarca	 a	 cultura,	 vem	 sendo</p><p>idealizado,	 visto	que	há	quem	 reverencie	 a	 anorexia	 como	modo	e	 estilo	de	vida.</p><p>Afinal,	a	magreza	é	um	ideal	procurado	pela	maioria	das	pessoas.</p><p>O	caso	Fran	e	suas	implicações	socioculturais</p><p>Tomando	como	base	o	caso	descrito,	tentaremos	pensar,	além	da	psicanálise,	na</p><p>relevância	dos	fatores	socioculturais	e	como	eles	se	agregam	aos	sintomas	psíquicos.</p><p>Dessa	forma,	adotaremos	por	base	a	antropologia	do	corpo	como	foco	de	nossas</p><p>análises.	Partimos,	então,	das	seguintes	 indagações:	O	que	o	sintoma	anoréxico	de</p><p>Fran	pode	nos	ensinar?	O	que	comunica	à	 sociedade	atual?	Qual	 a	 implicação	da</p><p>cultura	nos	transtornos	alimentares?</p><p>Fran,	 com	 seu	 corpo	 esquálido,	 é	 o	 exemplo	 de	 uma	 menina	 que	 traz	 no</p><p>biológico	a	marca	escancarada	de	uma	doença	psíquica.	Assim	como	Fran,	muitas</p><p>pacientes	estão	chegando	aos	consultórios	de	médicos,	nutricionistas	e	psicanalistas,</p><p>sofrendo	por	não	conseguirem	alcançar	o	corpo	“perfeito”.	Em	muitos	dos	casos,</p><p>essa	espécie	de	“obsessão”	passa	a	comandar	a	vida	da	pessoa,	podendo	se	tornar</p><p>uma	patologia.</p><p>O	 corpo	 é	 o	 primeiro	 eixo	 da	 relação	 do	 homem	 com	 o	 mundo,	 é	 de	 onde</p><p>nascem	e	se	propagam	as	significações	que	fundamentam	a	existência	individual	e	a</p><p>coletiva.	Pela	corporeidade,	o	homem	faz	do	mundo	extensão	de	sua	experiência	e,</p><p>para	 isso,	 ele	 aprende	 e	 se	 comunica	 por	 meio	 da	 linguagem,	 presente	 nas	 mais</p><p>diversas	 ações	 do	 seu	 cotidiano:	 nos	 gestos,	 nos	 rituais,	 na	 própria	 maneira	 de</p><p>preparar,	manipular	e	comer	os	alimentos,	enfim,	em	cada	ato	há	um	sentido	que</p><p>varia	segundo	o	meio	sociocultural.	Nesse	sentido,	cientistas	sociais	vão	afirmar	que</p><p>a	corporeidade	é	construída,	ou	seja,	vamos	moldando	nosso	corpo	de	acordo	com</p><p>o	meio	que	nos	rodeia.	Aspectos	socioculturais	se	sobrepõem	ao	fisiológico,	como</p><p>apontam	 diversos	 estudos.	 Portanto,	 pode-se	 afirmar	 que	 o	 corpo	 não	 é	 só	 uma</p><p>soma	de	órgãos,	mas	uma	estrutura	simbólica.</p><p>Os	 padrões	 de	 beleza,	 a	 vaidade,	 os	 cuidados	 com	 o	 corpo	 variam	 tanto	 em</p><p>época	quanto	nas	sociedades	e	culturas.	O	ser	humano	sempre	chamou	a	atenção	de</p><p>estudiosos	pela	sua	preocupação	com	a	beleza,	aliás,	o	mito	da	beleza	é	tão	antigo</p><p>quanto	 a	 própria	 história	 da	 civilização	 ocidental.	 Recentemente,	 arqueólogos</p><p>descobriram	 vestígios	 de	 perfumaria	 e	 salões	 de	 beleza	 egípcios	 que	 datam</p><p>aproximadamente	 de	 4.000	 a.C.,	 bem	 como	 a	 existência	 de	 cosméticos,	 que</p><p>atribuem	a	6.000	a.C.,	conforme	assinalou	Diane	Ackerman	(1996,	p.	322-323):</p><p>Os	egípcios	antigos	preferiam	as	sombras	para	as	pálpebras	em	verde	recoberto	por</p><p>um	 brilho	 que	 obtinham	 amassando	 a	 carapaça	 iridescente	 de	 determinados</p><p>besouros;	 delineador	 e	 rímel;	 batom	 azul-preto;	 rouge	 vermelho;	 e	 pés	 e	 mãos</p><p>tingidos	 com	 henna.	 Depilavam	 completamente	 as	 sobrancelhas,	 desenhando</p><p>outras,	 falsas.	 Uma	 mulher	 egípcia	 daquela	 época	 que	 acompanhasse	 a	 moda</p><p>ressaltava	as	veias	de	seus	seios	desenhando-se	em	azul	e	coloriam	os	mamilos	de</p><p>dourado.	 A	 cor	 do	 esmalte	 assinalava	 seu	 status	 social,	 sendo	 o	 mais	 elevado</p><p>representado	pelo	vermelho.	Os	homens	 também	se	permitiam	o	uso	de	porções</p><p>elaboradas	 e	 de	 outros	 embelezamentos,	 o	 que	 não	 era	 feito	 somente	 para	 sair	 à</p><p>noite:	 o	 túmulo	 de	Tutankhamon	 encerra	 entre	 suas	 riquezas	 inúmeros	 jarros	 de</p><p>maquilagem	e	cremes	de	beleza,	para	o	seu	uso	na	vida	após	a	morte.	Os	homens</p><p>romanos	 adoravam	 os	 cosméticos,	 e	 os	 guerreiros	 penteavam	 e	 perfumavam	 os</p><p>cabelos	e	pintavam	as	unhas	antes	de	ir	para	as	batalhas.</p><p>Por	outro	lado,	nos	tratados	de	beleza	do	século	XVI,	há	um	rechaço	por	parte</p><p>de	religiosos	pela	cosmética.	Relacionando	a	brancura	do	corpo	à	limpeza	da	alma,</p><p>na	 Idade	 Média,	 as	 mulheres	 nobres	 empregavam	 severos	 métodos	 para	 perder</p><p>sangue	 e	 ficar	 com	 o	 aspecto	 de	 palidez.	 Sangrias,	 laxantes,	 esfregamento	 das</p><p>extremidades	 do	 corpo,	 ventosas	 na	 nuca	 e	 nos	 ombros,	 escarificações,</p><p>sanguessugas	nas	bochechas,	na	ponta	do	nariz	ou	na	testa,	etc.	Locateli,	em	1664,</p><p>descreve	as	francesas:</p><p>nacen	 con	 esa	 blancura	 que	 conservan	 absteniéndose	 del	 vino,	 bebiendo	 mucha</p><p>leche,	recurriendo	a	sangrías	muy	frecuentes,	a	lavativas	y	también	a	otros	medios:</p><p>por	lo	tanto	no	hay	que	maravillarse	de	que	sus	mejillas	sean	rosadas	y	sus	senos	de</p><p>color	de	lirio	(apud	VIGARELLO,	2005,	p.	78).</p><p>Nessa	época,	o	tema	do	enfeite	evocava	a	prostituta,	que,	quando	era	retratada,</p><p>sempre	levava	a	pele	avermelhada	nas	bochechas,	os	cabelos	soltos,	despenteados	e</p><p>desarrumados.</p><p>Durante	 o	 século	 XVIII,	 as	 mulheres	 nobres	 europeias	 comiam	 biscoito	 de</p><p>arsênico	a	 fim	de	 tornar	a	pele	mais	branca,	pois	 tal	 substância	 inibia	os	glóbulos</p><p>vermelhos	 do	 sangue,	 fazendo	 com	 que	 elas	 desenvolvessem	 uma	 pigmentação</p><p>bastante	apreciada	entre	as	camadas	aristocráticas	da	época.</p><p>Entretanto,	independentemente	da	época	e	do	lugar,	desde	o	momento	em	que</p><p>o	homem	se	socializa,	a	cultura	se	inscreve	no	fisiológico	e,	para	a	antropologia,	no</p><p>corpo	 encontram-se	 implícitos	 diversos	 valores	 e	 significados	 moldados	 pelo</p><p>contexto	sociocultural	ao	qual	o	indivíduo	pertence.</p><p>Conforme	 já	 enfatizou	 Marcel	 Mauss	 (1974),	 carregamos	 na	 nossa	 imagem</p><p>também	 nossa	 cultura,	 sendo	 o	 corpo	 um	 veículo	 de	 comunicação.	 Assim,	 nos</p><p>expressamos	pelas	mais	diversas	formas	de	comportamento	que	possuímos:	desde</p><p>nosso	andar,	nossa	maneira	de	vestir,	de	nos	portar	à	mesa,	inclusive	de	comer.	Tais</p><p>práticas	 são	 reguladas	 por	 rituais	 de	 interação	 da	 vida	 cotidiana,	 que	 refletem	 as</p><p>variadas	 formas	 que	 os	 indivíduos	 utilizam	 para	 fazer	 usos	 de	 seus	 corpos.	 Para</p><p>cada	necessidade,	a	cultura	molda	a	maneira	de	satisfazê-la;	a	própria	expressão	dos</p><p>sentimentos	 é,	 para	 o	 autor,	 cultural.	O	homem	deve	 ser	 visto	 como	“Ser	 total”,</p><p>dentro	 de	 um	 tríplice	 viés,	 ou	 seja,	 biopsicossocial,	 sendo	 exatamente	 isso	 que	 o</p><p>diferencia	do	animal.</p><p>Nessa	perspectiva,	é	absolutamente	importante	a	ideia	de	relativismo	da	imagem</p><p>corporal,	 pois	 aquilo	 que	 parece</p><p>sexualmente	 estimulante	 em	 uma	 determinada</p><p>sociedade	pode	exercer	o	efeito	contrário	em	outra.	Como	bem	observa	José	Carlos</p><p>Rodrigues,	em	O	Tabu	do	Corpo	(1975),	há,	na	África	Central,	um	ideal	de	estética</p><p>feminina	que	identifica	a	beleza	com	a	obesidade,	sendo	a	jovem,	na	época	de	sua</p><p>puberdade,	submetida	às	mais	diferentes	técnicas,	capazes	de	fazê-la	engordar.	Aliás,</p><p>o	ideal	estético	baseado	nas	formas	corpulentas	serviu	como	modelo	para	a	pintura</p><p>barroca	e	a	renascentista.	Seu	oposto	parece	impregnar	a	estética	do	último	quartel</p><p>do	 século	passado,	 em	que	predominou,	 sobretudo,	um	 ideal	baseado	nas	 formas</p><p>longilíneas	do	corpo	humano	(CLARK,	1956).</p><p>Durante	a	pesquisa	de	mestrado,	Fabiana	Pereira	(2001)	observou	um	grupo	de</p><p>trinta	mulheres	 da	 classe	 alta	 de	 Recife,	 entre	 15	 e	 30	 anos.	 Eram	mulheres	 que</p><p>aparentemente	 levavam	 uma	 vida	 normal,	 ou	 seja,	 estudavam,	 trabalhavam,</p><p>cuidavam	 dos	 filhos,	 etc.	 No	 entanto,	 uma	 das	 características	 que	 norteou	 o</p><p>discurso	de	 todas	 elas	 foi	 a	excessiva	preocupação	 com	a	 aparência	 e	 com	a</p><p>beleza,	que	se	relacionava,	em	todos	os	casos,	com	a	magreza.	Eram	pessoas	que</p><p>frequentavam	academias	de	ginástica,	spas	e	clínicas	de	rejuvenescimento,	além	de</p><p>serem	 consumidoras	 de	 produtos	 voltados	 para	 o	 embelezamento	 corporal	 e	 o</p><p>emagrecimento.7</p><p>Muitas	delas	 já	 tinham	se	submetido	a	algum	tipo	de	 intervenção	no	corpo	de</p><p>natureza	estética,	como	cirurgia	plástica	ou	lipoaspiração.	Todas	temiam	a	gordura	e</p><p>pareciam	se	influenciar	pelos	padrões	de	beleza	veiculados	na	mídia.	Engordar	era	o</p><p>principal	vilão	que	deveria	ser	evitado	a	qualquer	preço	e	sacrifício.	Certa	vez,	uma</p><p>dessas	mulheres,	aqui	chamada	de	Karina	(22	anos),	contou	que	chegava	a	fazer	mil</p><p>abdominais	por	dia,	e	que	já	tinha	feito	duas	lipoaspirações,	não	descartando	uma</p><p>terceira.	 No	 caso	 de	 Fátima	 (18	 anos),	 entrar	 na	 academia	 passou	 a	 ser	 um</p><p>problema,	pois	 se	 sentia	 gorda	 (não	 revelava	 a	ninguém	 seu	peso,	 por	 vergonha).</p><p>Tinha	 medo	 dos	 espelhos	 que	 refletiam	 corpos	 esculturais;	 já	 no	 seu	 caso	 era</p><p>ameaçador	 se	 ver	 refletida,	 pois	 distorceria	 a	 harmonia	 daqueles	 corpos	 tão	 bem</p><p>disciplinados,	 segundo	 ela.	 Chegou	 a	 dizer	 que	 o	 corpo	 era	 como	 o	 “cartão	 de</p><p>visita”,	então	tinha	que	se	encaixar	direitinho	nos	moldes	da	beleza.</p><p>Nesse	 caso,	 a	 gordura	parece	 se	 associar	 ao	desproporcional,	 ao	que	 excede	o</p><p>limite,	ao	feio,	deformado,	podendo	ser	feita	uma	analogia	da	mesma	(da	gordura)</p><p>com	os	seres	grotescos	da	Idade	Média,	que	eram	marcados	pela	falta	de	definição</p><p>física.8	Sobre	o	grotesco,	não	se	pode	deixar	de	citar	Rabelais,	que,	em	1532,	criou</p><p>os	 personagens	 Gargantua	 e	 Pantagruel.	 O	 livro	 está	 atravessado	 de	 corpos</p><p>disformes,	 despedaçados,	órgãos	 separados	do	 corpo,	 excrementos,	 urinas,	morte,</p><p>nascimento,	etc.</p><p>Assim	 como	 Fran,	 as	 mulheres	 entrevistadas	 pareciam	 influenciadas	 por	 um</p><p>padrão	 estético	 que	 associa	 beleza	 com	magreza.	É	 importante	 observar	 que	nos</p><p>tempos	atuais	somos	diariamente	bombardeados	por	padrões	socialmente	impostos</p><p>por	 intermédio	 de	 uma	 “tirania	 estética	 da	 boa	 forma	 e	 da	 magreza”	 fornecida</p><p>pelos	multimeios,	que	impõem	e	exigem	cuidados	exagerados	com	a	aparência.	As</p><p>revistas	de	moda,	os	blogs,	a	internet,	o	cinema	e	a	televisão	costumam	trazer	à	cena</p><p>a	chamada	“perfeição	corporal”.</p><p>Observar	 uma	 revista	 de	moda,	 por	 exemplo,	 é	 uma	 tarefa	 bastante	 difícil,	 na</p><p>medida	em	que	as	pessoas	que	posam	para	as	fotos	sempre	estão	“impecáveis”,	do</p><p>ponto	 de	 vista	 estético,	 como	 se	 ali	 o	 tempo	 congelasse	 a	 imagem.	 Veículo</p><p>publicitário	 “poderoso”,	 instrumento	 de	 certa	 forma	 ambíguo,	 capaz	 de</p><p>proporcionar	 ao	 mesmo	 tempo	 prazer	 e	 ansiedade.	 As	 mensagens	 trazem</p><p>implicitamente	a	ideia	da	“meritocracia”,	com	conselhos	e	“fórmulas	mágicas”:</p><p>TENHA	O	CORPO	QUE	MERECE!</p><p>NÃO	SE	TEM	UM	CORPO	MARAVILHOSO	SEM	ESFORÇO!</p><p>TIRE	O	MELHOR	PARTIDO	DOS	SEUS	ATRIBUTOS	NATURAIS.</p><p>Dessa	 maneira,	 cada	 um	 sente	 a	 dura	 responsabilidade,	 extremamente</p><p>individualista,	pela	forma	do	corpo:	Você	pode	moldar	totalmente	seu	corpo!</p><p>O	poder	 de	 sedução	 das	mensagens	 que	 são	 veiculadas	 é	 imenso.	Geralmente</p><p>agregada	a	elas,	vem	alguma	foto	que	ilustra	a	“magia”	do	anúncio.	As	fotografias</p><p>são	retocadas	quantas	vezes	forem	necessárias,	até	que	a	 imagem	fique	“perfeita”,</p><p>conforme	 apontou	Wolf 	 (1992,	 p.	 108):	 “Nos	 nossos	 dias,	 os	 leitores	 não	 fazem</p><p>ideia	da	verdadeira	aparência	de	um	rosto	de	uma	mulher	de	60	anos	na	imprensa,</p><p>porque	ele	é	retocado	para	aparentar	45”.</p><p>A	leitora,	muitas	vezes,	se	olha	no	espelho	e	se	compara	ao	que	está	estampado</p><p>na	 foto.	 Por	 toda	 parte	 e	 a	 todo	 instante,	 as	 mulheres	 se	 deparam	 com	 lindos</p><p>rostinhos	e	corpinhos	“sarados”	que	são	utilizados	pela	publicidade	para	venda	de</p><p>seus	produtos.	Os	modelos	que	posam	para	os	anúncios	são,	na	sua	grande	maioria,</p><p>jovens	magérrimas	de	cor	clara.9	É	raro	se	encontrar	modelos	negros,	assim	como</p><p>pessoas	mais	velhas	ou	até	de	meia-idade	que,	quando	aparecem,	geralmente	é	para</p><p>algum	 anúncio	 de	 creme	 contra	 envelhecimento.	 A	 mesma	 rejeição	 se	 aplica	 a</p><p>pessoas	gordas,	a	menos	quando	estas	são	veiculadas	em	publicidade	de	produtos</p><p>dietéticos	ou	plus	size.</p><p>Mesmo	sabendo	que	o	anunciante	é	quem	vai	criar	a	mensagem	com	o	interesse</p><p>de	vender	seu	produto,	dizendo	o	que	a	mulher	deve	usar,	como	deve	se	pentear,	se</p><p>maquiar,	o	que	comer,	percebe-se	que	as	mensagens	veiculadas	nas	revistas,	mesmo</p><p>sendo	banalizadas,	representam,	de	alguma	forma,	a	cultura	na	qual	essas	mulheres</p><p>estão	inseridas,	sendo	isso	um	fator	extremamente	determinante	para	a	expansão	e</p><p>a	 circulação	 desses	 produtos	 e	 serviços	 ligados	 essencialmente	 a	 sua	 aparência</p><p>estética.</p><p>O	espectador,	encantado	com	o	que	assiste,	parece	se	hipnotizar	perante	o	que</p><p>se	passa	diante	de	 seus	olhos,	deixando-se,	 sem	se	dar	conta,	manipular	por	 todo</p><p>aquele	 mundo	 de	 imagens,	 que,	 apesar	 de	 ficcional,	 confunde-se	 com	 a	 própria</p><p>realidade.	 Assim,	 é	 muito	 significativo	 o	 poder	 que	 circula	 na	 dinâmica	 entre</p><p>telespectador,	câmera	e	 imagem,	na	medida	em	que	quando	algo	é	 transmitido	se</p><p>estabelece	 um	 jogo	 intencional	 e	 interacional,	 fazendo	 com	 que	 aquilo	 seja</p><p>absorvido	 imediatamente	 sem	 que	 haja	 uma	 maior	 reflexão.	 Sem	 percebermos,</p><p>somos	submetidos	a	um	império	de	imagens	que	nos	captura	e	nos	coloca	frente	a</p><p>uma	exaltação	de	corpos	magros,	torneados,	sarados,	sem	rugas	ou	flacidez.	Cenas</p><p>que	nos	levam	a	pensar	nas	nossas	próprias	imperfeições	o	tempo	todo.</p><p>Naomi	Wolf 	 (1992)	 argumenta	 que	 existe	 uma	 opressão	 social	 bastante	 forte</p><p>relacionada	 ao	 que	 chamou	 de	 “Mito	 da	 Beleza”.	 Ao	 mesmo	 tempo	 em	 que	 a</p><p>mulher	foi	emergindo	na	esfera	social,	também	foram	crescendo	consideravelmente</p><p>as	 exigências	 aos	 cuidados	 com	 a	 sua	 aparência	 estética.	 Quanto	 mais	 perto	 do</p><p>poder,	maior	é	a	exigência	de	sacrifício	e	preocupação	com	o	físico	feminino.	Esse</p><p>ideal	estético	é	visto	por	Baudrillard	(1995)	como	uma	nova	forma	de	violência	e	de</p><p>sacrifício	para	com	o	próprio	corpo.</p><p>Desse	modo,	o	corpo	passou	a	ser	um	objeto	ameaçador,	sendo	necessário	vigiá-</p><p>lo	 a	 todo	momento,	 principalmente	 numa	 “sociedade	 de	 abundância”.	 A	 grande</p><p>questão	é	que	tudo	isso	tem	implicações	severas,	que	podem	levar	a	extremismos	e</p><p>a	patologias,	como	no	caso	de	Fran,	em	que	a	busca	pela	“perfeição”	faz	com	que</p><p>haja	uma	negação	do	próprio	corpo	e	da	própria	necessidade	de	se	alimentar.</p><p>Recusar	um	corpo	talvez	implique	num	recusar	outras	coisas.	Tal	qual	o	alimento</p><p>que	ela	nega,	há	outros	rechaços	que	estão	envolvidos	nesse	padecer:	o	corpo	que</p><p>desaparece,	assim	como	a	menstruação,	as	curvas	e	outros	atributos	que	remetem	à</p><p>sexualidade	 feminina.	 Sem	 falar	 que	 o	 próprio	 significante	 “comer”	 tem	 uma</p><p>conotação	sexual.</p><p>Podemos	concluir	dizendo	que	se	trata	de	um	sintoma	psíquico,	pois	nem	todas</p><p>as	magras	 são	 anoréxicas.</p><p>No	 entanto,	 não	podemos	negar	o	papel	 da	 cultura	na</p><p>formação	do	sintoma.	A	magreza	passou	a	ser	cultuada,	o	sacrifício	de	atingir	o	tal</p><p>padrão	 de	 beleza	 pode	 levar	 a	 patologia	 ou	 até	mesmo	 a	morte,	 dependendo	 da</p><p>estrutura	 do	 sujeito.	 Fran	 nos	 conta	 sua	 história,	 ela	 é	 a	 autora,	 e	 serve	 para</p><p>refletirmos	 sobre	 as	 questões	 da	 contemporaneidade,	mas	 sem	 perder	 de	 vista	 a</p><p>singularidade	de	cada	indivíduo	portador	de	um	psiquismo	particular.</p><p>Notas:</p><p>1.	Fran	se	refere	à	festa	da	melhor	amiga	que	se	sentiu	obrigada	a	comparecer.</p><p>2.	Ela	conta	isso	e	o	tom	de	sua	voz	não	se	altera,	parece	sempre	conformada.</p><p>3.	Fran	morava	em	Minas	Gerais,	é	natural	de	uma	cidade	do	interior.</p><p>4.	O	antidepressivo	não	era	o	indicado	pelo	médico	como	primeira.opção	e,	sim,	o	mais	barato.</p><p>5.	Ela	tomava	anticoncepcionais	há	quase	dez	anos.</p><p>6.	Segundo	Wolf 	(1992),	o	peso	das	modelos	de	moda	desceu	para	23%	abaixo	do	peso	das	mulheres	normais.</p><p>7.	O	trabalho	de	campo	foi	realizado	nesses	locais,	onde	foi	possível	estabelecer	uma	rede	de	contatos	com	os</p><p>atores	 sociais	 da	 pesquisa.	 Ali	 foram	 realizadas	 entrevistas	 e	 observações	 com	 semiparticipantes	 durante</p><p>cinco	meses.</p><p>8.	Sendo	a	teratologia	a	ciência	que	estudava	as	más	formações	físicas	em	seres	vivos,	homens	ou	animais,	suas</p><p>raízes	remontavam	aos	tempos	em	que	cada	monstro	era	portador	de	um	significado	particular.	Os	monstros</p><p>humanos,	desde	Aristóteles,	se	diferenciavam	em	“monstros	por	excesso”	(gêmeos	siameses	ou	gigantes)	e</p><p>“monstros	por	defeito”	 (anões;	pessoas	de	uma	perna	só;	um	olho,	etc.).	A	 razão	dessas	anomalias	estava</p><p>indicada	 em	 uma	 quantidade	 respectivamente	 excessiva	 ou	 escassa	 de	 espermatozoide	 no	 momento	 da</p><p>inseminação.	Vale	ressaltar	a	esse	respeito	que	na	Antiguidade	clássica,	tanto	gregos	como	romanos	e	hindus,</p><p>exterminavam	seres	deformes,	 afogando,	queimando	ou	colocando-os	em	alguma	 ilha	deserta,	de	maneira</p><p>que,	em	algumas	épocas,	o	disforme	não	se	associava	ao	humano,	mas	ao	diabólico	(PARRA,	2003).</p><p>9.	Segundo	Wolf 	(1992),	o	peso	das	modelos	de	moda	desceu	para	23%	abaixo	do	peso	das	mulheres	normais.</p><p>Referências</p><p>ACKERMAN,	D.	Uma	 história	 natural	 dos	 sentidos.	 Rio	 de	 Janeiro:	 Bertrand	 Brasil,</p><p>1996.</p><p>BAUDRILLARD,	J.	A	sociedade	de	consumo.	Portugal:	Edições	70,	1995.</p><p>BELLINI,	T.	Mais	 além	do	objeto:	 a,	mais	 além	de	A:	 supereu.	 In:	GORALI,	V.</p><p>(org.)	Estudos	de	anorexia	e	bulimia.	Buenos	Aires:	Atuel,	2000.</p><p>BRANAGH,	K.,	Cinderela.	[Filme].	Direção	de	Kenneth	Branagh.	Estados	Unidos:</p><p>Walt	Disney	Studios,	2015.</p><p>CLARK,	A.	The	Nude:	A	Study	of 	Ideal	Art.	Londres:	John	Murray,	1956.</p><p>FERNANDES,	M.	H.	Transtornos	alimentares.	São	Paulo:	Casa	do	Psicólogo,	2006.</p><p>GOLDENBERG,	M.	O	corpo	 como	Capital.	São	Paulo:	Estação	das	Letras	e	Cores,</p><p>2007.</p><p>KEHL,	 M.	 R.	 Com	 que	 corpo	 eu	 vou.	 In:	 BUCCY	 E.;	 KEHL,	 M.	 R.	 (orgs.)</p><p>Videologias.	São	Paulo:	Boitempo,	2004.</p><p>MAUSS,	M.	As	 técnicas	corporais.	 In:	Sociologia	 e	Antropologia.	 São	Paulo:	EDUSP,</p><p>1974.</p><p>PARRA,	DEL	R.	Una	 era	 de	 monstruos:	 representaciones	 de	 lo	 deforme	 en	 el	 siglo	 de	 oro</p><p>español.	Navarra:	Universidad	de	Navarra,	2003.</p><p>PEREIRA,	 F.	Através	 do	 Espelho.	 Um	 ensaio	 etnográfico	 sobre	 as	 representações	 do	 corpo</p><p>feminino	entre	mulheres	de	classe	média	alta	na	cidade	de	Recife.	Mestrado	em	Antropologia</p><p>pela	Universidade	Federal	de	Pernambuco,	Recife,	2001.</p><p>RABELAIS.	Gargantua	et	Pantagruel.	3.	ed.	Paris:	ODEJ,	1966.</p><p>RECALCATI,	M.	Os	dois	¨nada¨	da	anorexia.	Correio:	Revista	da	Escola	Brasileira	de</p><p>Psicanálise,	32,	2001.</p><p>RODRIGUES,	J.	C.	O	tabu	do	corpo.	3.	ed.	Rio	de	Janeiro:	Achiamé,	1975.</p><p>SILVA,	A.	N.;	BASTOS,	A.	Anorexia:	uma	pseudo-separação	frente	a	impasses	na</p><p>alienação	e	na	separação.	Rio	de	Janeiro	Psicologia	Clínica,	v.	18,	2006.</p><p>VIGARELLO,	G.	Historia	de	la	belleza:	el	cuerpo	y	el	arte	de	embellecer	desde	el	renacimiento</p><p>hasta	nuestros	días.	Buenos	Aires:	Nueva	visión,	2005.</p><p>WOLF,	N.	O	Mito	da	Beleza.	Rio	de	Janeiro:	Rocco,	1992.</p><p>CONSIDERAÇÕES	PSICANALÍTICAS	SOBRE	A</p><p>COMPULSÃO	ALIMENTAR</p><p>Fernanda	Kalil</p><p>Sabemos	 que	 todo	 sintoma	 está	 inserido	 em	 um	 tempo,	 espaço	 e	 contexto</p><p>cultural.	 No	 mundo	 contemporâneo,	 o	 excesso,	 a	 rapidez,	 o	 consumo	 e	 o</p><p>individualismo	têm	lugar	privilegiado.	Nas	palavras	de	Ana	Maria	Sigal	(2009),	trata-</p><p>se	 de	 manifestações	 que	 hoje	 aparecem	 na	 clínica	 em	 decorrência	 de	 diversas</p><p>mudanças	 históricas	 que	 produziram	 importantes	 efeitos	 na	 produção	 da</p><p>subjetividade.</p><p>Cito	a	fala	de	uma	paciente:</p><p>Ontem	 foi	mais	 um	 dia	 daqueles;	 comi	 o	 tempo	 todo	 em	 frente	 ao	 computador</p><p>enquanto	trabalhava	exaustivamente.	O	mundo	corporativo	é	assim	e	 logo	eu	não</p><p>vou	ser	a	“loser”!	Saí	da	empresa	acabada,	bebi	todas,	fumei	a	noite	inteira	e	tive	a</p><p>maior	 compulsão	 da	 minha	 vida.	 Comi	 tudo	 o	 que	 via	 na	 minha	 frente,</p><p>desesperadamente,	até	me	empanturrar	e	fui	dormir	triste	e	me	sentindo	fracassada.</p><p>Agora	eu	te	pergunto;	dá	pra	ser	feliz	desse	jeito?</p><p>O	que	ela	nos	diz?	A	medida,	o	ritual,	a	escolha,	o	tempo	não	cabem	mais	no	dia</p><p>a	dia,	“isso	é	coisa	de	loser”.	A	vibe	agora	é	outra:	correr,	consumir,	fazer,	vencer…</p><p>Não	 há	 investimento	 simbólico,	 nada	 se	 escolhe,	 tudo	 se	 incorpora,	 seguindo	 a</p><p>lógica	 do	 consumo	 e	 do	 excesso	 (que	 se	 manifesta	 mediante	 o	 uso	 dos	 mais</p><p>variados	objetos:	 trabalho,	 sexo,	 comida,	 álcool,	 drogas),	 na	busca	desenfreada	de</p><p>tamponar	os	vazios	internos	e	a	falta	fundamental,	marca	da	condição	humana.</p><p>Nesse	 contexto,	 o	 efeito	 manifesto	 é	 o	 sofrimento,	 com	 todas	 as	 roupagens</p><p>sintomáticas	que	invadem	a	nossa	clínica	sob	a	forma	de	demanda.	Não	a	demanda</p><p>de	reposicionamento	subjetivo,	de	articular	palavras,	de	recriar	o	simbólico,	mas	a</p><p>demanda	de	se	livrar	do	mal-estar:	“Não	dá	pra	ser	feliz	desse	jeito”.</p><p>Embora	 as	 compulsões	 retratem	 com	 tanta	 propriedade	 a	 lógica	 de</p><p>funcionamento	 da	 cultura	 pós-moderna,	 não	 se	 pode	 dizer	 que	 a	 compulsão</p><p>alimentar	 seja	 um	 sintoma	 novo,	 é	 possível	 que	 sempre	 tenha	 existido.	 Relatos</p><p>históricos	 comprovam,	por	 exemplo,	 a	 presença	de	 comportamentos	 semelhantes</p><p>na	Roma	antiga,	 com	a	descrição	das	 chamadas	“orgias	 alimentares”	nos	palácios</p><p>romanos.</p><p>No	decorrer	da	história	do	Ocidente,	outros	relatos	apresentaram	quadros	com</p><p>características	 de	 hiperfagia,	 apetite	 voraz	 e	 ingestão	 de	 alimentos	 em	 intervalos</p><p>muito	 curtos,	 típicos	 de	 compulsão	 alimentar.	 No	 entanto,	 a	 tentativa	 de</p><p>compreender	esses	comportamentos	é	 relativamente	moderna	 (BUCARETCHI	&</p><p>WEINBERG,	 2003).	 A	 primeira	 descrição	 científica	 da	 compulsão	 alimentar	 foi</p><p>realizada	por	Stunkard,	em	1959	(BORGES	&	JORGE,	2000).</p><p>A	compulsão	alimentar:	transtorno	ou	sintoma?</p><p>No	 olhar	 da	 psiquiatria,	 compulsões	 alimentares	 regulares	 caracterizam	 um</p><p>“transtorno	 alimentar”.	 O	 recente	 DSM-V	 (Manual	 Diagnóstico	 e	 Estatístico	 de</p><p>Doenças	 Mentais	 –	 5.	 ed.)	 modificou	 os	 critérios	 diagnósticos	 do	 TCAP</p><p>(Transtorno	 da	 Compulsão	 Alimentar	 Periódica),	 descrevendo	 novamente	 esse</p><p>quadro	clínico.</p><p>Trata-se	 de	 um	 comportamento	 caracterizado	 pela	 ingestão	 de	 grande</p><p>quantidade	 de	 alimentos	 com	 sensação	 de	 descontrole,	 normalmente	 em	 curto</p><p>período	de	tempo,	acompanhado	de	sofrimento	psíquico,	porém	agora,	bastando	a</p><p>ocorrência	do	episódio	1	(uma)	vez	por	semana	no	período	de	3	(três)	meses	para</p><p>caracterizar	o	transtorno.</p><p>No	 que	 se	 refere	 ao	 quadro	 clínico,	 o	 paciente	 sente	 uma	 necessidade</p><p>incontrolável	 de	 ingerir	 grande	 quantidade	 de	 alimentos.	 A	 ingestão	 é	 feita	 às</p><p>pressas,	 sem	 preparo,	 ritual	 ou	 escolha;	 só	 há	 descontrole.	 O	 paciente	 torna-se</p><p>dependente	 e	 escravo	 do	 seu	 sintoma,	 envolvido	 num	 processo	 repetitivo	 e</p><p>destrutivo,	aparentemente	sem	solução.</p><p>“Eu	estou	aqui	buscando	tratamento,	mas	sinceramente,	eu	não	acredito	que	possa</p><p>mudar.	 Há	 vinte	 anos	 vivo	 esse	 dilema	 com	 a	 comida	 e,	 até	 hoje,	 apesar	 das</p><p>inúmeras</p><p>tentativas,	nada	mudou.”</p><p>É	justamente	esse	incontrolável,	essa	ausência	de	significação,	esse	enigma,	que</p><p>justifica	a	busca	do	trabalho	em	análise.	O	inconsciente	escapa	a	toda	tentativa	de</p><p>racionalização,	 da	 mudança	 comportamental	 desprovida	 de	 significação	 e	 da</p><p>medicalização	do	sintoma.</p><p>É	assim	que,	a	 todo	momento,	nos	deparamos	com	fracassos	nas	tentativas	de</p><p>inibir	e	represar	o	sintoma	sem	o	tratamento	de	sua	causa	fundamental:</p><p>“Eu	tomava	remédio,	ficava	sem	fome,	mas	corria	para	o	shopping…	Ao	invés	de</p><p>comer	eu	fazia	compras,	gastava	muito	além	do	que	eu	podia	e	voltava	culpada,	era</p><p>outro	tipo	de	sofrimento…”</p><p>“Depois	que	eu	fiz	a	cirurgia	bariátrica	passei	a	vomitar	compulsivamente.	Aqueles</p><p>picos	de	êxtase	e	alívio	passaram	a	ser	o	meu	novo	jeito	de	extravasar…</p><p>Os	casos	de	insucesso	nas	medicações	para	emagrecer	e	“conter”	as	compulsões,</p><p>as	graves	consequências	psicológicas	da	cirurgia	bariátrica	mal	indicada	ou	realizada</p><p>sem	a	preparação	psicológica	do	paciente,	estão	presentes	no	cotidiano	da	cultura	e</p><p>da	 nossa	 clínica,	 surpreendendo	 aqueles	 que	 buscam	 uma	 resposta	 aquém	 da</p><p>subjetivação.</p><p>A	compulsão	alimentar	à	luz	da	psicanálise</p><p>O	diagnóstico	de	“transtorno”	pode	criar	um	viés	negativo	de	categorização,	no</p><p>sentido	de	vitimizar	o	sujeito	que	se	vê	retratado	em	uma	classificação,	mas	também</p><p>pode	trazer	ganhos	secundários	para	o	paciente.	É	nesses	termos	que	ser	“doente”</p><p>ou	 “vítima	 de	 um	 transtorno”	 é	 uma	maneira	 usual	 de	 justificar	 o	mal-estar	 sem</p><p>necessidade	 de	 implicação,	 de	 assumir	 a	 responsabilidade	 pelo	 sofrimento	 que	 o</p><p>acomete.	 Pode	 ser	 mais	 cômodo	 acreditar	 que	 foi	 acometido	 por	 uma	 doença,</p><p>como	 algo	 externo	 de	 que	 se	 é	 vítima,	 do	 que	 ser	 chamado	 para	 entender	 o</p><p>significado	 subjacente	 de	 um	 sintoma,	 sendo	 convocado	 a	 responsabilizar-se	 por</p><p>ele.	Fazer	análise	é	trabalhoso!</p><p>“TEM	QUE	EXISTIR	UM	REMÉDIO	PARA	A	MINHA	DOENÇA.”</p><p>E	é	justamente	numa	cultura	que	hostiliza	a	falta	e	idealiza	a	busca	de	soluções</p><p>mágicas	e	imediatas	para	qualquer	tipo	de	mal-estar,	que	a	medicalização	do	sintoma</p><p>sem	o	comprometimento	do	paciente	é	o	acalento	das	“mentes	desesperadas”;	mas,</p><p>como	toda	mágica,	efêmera	por	sua	própria	natureza,	o	conto	de	fadas	termina,	e,</p><p>na	vida	 real,	o	 final	 é	 infeliz:	medicamentos	que	não	contêm	o	excesso	pulsional,</p><p>discursos	 prontos	 que	 não	 se	 sustentam,	 angústia	 que	 invade.	 Essa	 é	 a	 razão	 de</p><p>existir	da	psicanálise.	A	voracidade	alimentar	fala	em	nome	de	um	sujeito	que	não</p><p>consegue	 se	 fazer	 ouvir,	 que	 não	 tem	 ideia	 do	 que	 se	 passa	 no	 campo	 da</p><p>subjetividade,	e	justamente	por	isso,	mantém	o	sintoma	vivo	e	vigoroso.</p><p>Sobre	as	contribuições	psicanalíticas…</p><p>Freud,	 no	 decorrer	 de	 sua	 obra,	 não	 abordou	 especificamente	 a	 compulsão</p><p>alimentar,	 mas	 deu	 substrato	 metapsicológico	 para	 futuras	 e	 importantes</p><p>construções	 teóricas,	 de	 onde	 retiramos	 elementos	 de	 base	 para	 a	 construção	 de</p><p>uma	psicanálise	da	compulsão	alimentar.</p><p>Karl	 Abraham,	 seu	 fiel	 seguidor,	 desenvolveu	 um	 estudo	 sobre	 as	 fases	 pré-</p><p>genitais	do	desenvolvimento,	descrevendo	o	que	chamou	de	“sentimentos	anormais</p><p>de	 fome”	 na	 neurose,	 formulando	 importantes	 observações	 sobre	 a	 dinâmica</p><p>psíquica	 dos	 pacientes	 com	 compulsão	 alimentar,	 apontando	 a	 relação	 entre	 o</p><p>apego	ao	alimento	e	à	libido	recalcada.</p><p>Em	1924,	Abraham	salientou	a	importância	da	relação	mãe-bebê	com	ênfase	na</p><p>função	alimentar,	confirmada	mais	tarde	por	autores	contemporâneos:</p><p>O	 período	 de	 sucção	 pode	 ser	 uma	 época	 extremamente	 desagradável	 para	 a</p><p>criança.	 Em	 alguns	 casos,	 seu	 mais	 primitivo	 anseio	 de	 prazer	 é	 satisfeito</p><p>imperfeitamente	e	ela	fica	privada	de	desfrutar	o	estágio	de	sugar.	Noutros	casos,	o</p><p>mesmo	período	é	anormalmente	rico	em	prazer.	Sabe-se	bem	como	certas	mães	são</p><p>indulgentes	 para	 com	 o	 anseio	 de	 prazer	 de	 seus	 filhos,	 fazendo-lhes	 todas	 as</p><p>vontades.	[…]	Quer	tenha	a	criança	atravessado	este	primeiro	período	da	vida	sem</p><p>prazer	ou	quer	ela	tenha	obtido	um	excesso	dele,	o	efeito	é	o	mesmo	(p.	165).</p><p>Trata-se	do	que	Maria	Helena	Fernandes	(2006)	denominou	“mãe	de	extremos”,</p><p>aquela	 que,	 intrusiva	 ou	 faltosa,	 não	 possibilitou	 uma	 distância	 adequada	 e</p><p>necessária	ao	processo	de	individuação	da	criança,	impossibilitando	a	introjeção	da</p><p>função	materna.	Em	outras	palavras,	o	 sujeito	permanece	desprotegido	diante	do</p><p>excesso	pulsional,	buscando	o	alimento	como	substituto	dos	objetos	 faltantes	 em</p><p>seu	mundo	interno	(KALIL,	2010).</p><p>Outras	 contribuições	 pós-freudianas	 foram	 também	 indispensáveis	 para</p><p>entender	a	compulsão	alimentar	e	suas	vicissitudes,	como	a	teorização	de	Winnicott</p><p>sobre	a	relação	mãe-bebê,	formulando	o	conceito	de	“mãe	suficientemente	boa”;	a</p><p>distinção	entre	necessidade,	demanda	e	desejo	e	a	elaboração	do	conceito	de	gozo</p><p>por	Lacan;	a	compreensão	da	economia	psíquica	da	adição	de	Joyce	McDougall;	e,</p><p>em	 última	 instância,	 as	 construções	 teóricas	 de	 Hilde	 Bruch,	 Phillipe	 Jeammet	 e</p><p>Bernard	 Brusset	 baseadas	 em	 larga	 experiência	 clínica	 com	 pacientes	 com</p><p>transtornos	 alimentares	 e	 imprescindíveis	 para	 a	 compreensão	 e	 a	 condução	 do</p><p>tratamento	desses	sintomas.</p><p>No	 entanto,	 a	 literatura	 psicanalítica	 ainda	 é	 escassa	 ao	 tratar	 de	 compulsão</p><p>alimentar,	o	que	nos	convida	a	desenvolver	novos	trabalhos	com	a	responsabilidade</p><p>de	criar	maiores	condições	de	compreender	a	compulsão	alimentar	e	de	explicitar	o</p><p>trabalho	clínico	consistente	que	a	psicanálise	realiza	com	esses	pacientes.</p><p>Variações	clínicas	da	compulsão	alimentar</p><p>A	 meu	 ver,	 a	 compulsão	 alimentar	 é	 sintoma,	 podendo	 se	 manifestar	 nos</p><p>diferentes	 quadros	 psicopatológicos.	 Na	 clínica,	 é	 frequente	 a	 apresentação	 da</p><p>compulsão	 alimentar	 enquanto	 sintoma	 neurótico,	 com	 toda	 a	 gama	 de	 conflitos</p><p>ligados	ao	recalcamento,	especialmente	na	histeria,	podendo	também	se	manifestar</p><p>na	neurose	obsessiva.	Nesses	casos,	o	que	varia	é	a	estratégia	psíquica	utilizada	pelo</p><p>sujeito	em	seu	confronto	com	a	castração.</p><p>Pensando	que	a	questão	da	histérica	é	a	dificuldade	com	a	sexualidade	e	que	o</p><p>corpo	é	palco	do	sofrimento	e	da	insatisfação,	o	sintoma	compulsão	alimentar	pode</p><p>ser	um	“prato	cheio”	para	afastar	o	desejo	e	manter	o	descontentamento.</p><p>As	 histéricas	 de	 outrora	 portanto	 caíram	 de	 moda,	 e	 seu	 sofrimento	 de	 hoje	 se</p><p>oferece	 sobre	 outras	 faces,	 outras	 formas	 clínicas	 mais	 discretas,	 menos</p><p>espetaculares,	 talvez,	 que	 as	 da	 antiga	 Salpêtrière.	 O	 histérico	 do	 final	 do	 século</p><p>XIX	 e	 o	 histérico	 moderno	 vivem,	 cada	 qual	 a	 sua	 maneira,	 um	 sofrimento</p><p>diferente	mas	a	explicação	que	a	psicanálise	propõe	para	dar	conta	da	causa	desses</p><p>sofrimentos	essencialmente	não	variou	(NASIO,	1991,	p.	9).</p><p>A	questão	da	sexualidade	feminina,	marca	da	histeria,	faz	do	sintoma	alimentar</p><p>uma	 via	 ideal	 de	 escoamento	 do	 sintoma.	 Sentir-se	 “empanturrada”,	 tornar-se</p><p>“gorda”,	 é	 afastar	 o	 “perigo”	 da	 satisfação	 sexual.	 Embora	 nos	 quadros	 de</p><p>compulsão	 alimentar	 (excluída	 a	 bulimia	 nervosa)	 não	 haja	 distorção	 da	 imagem</p><p>corporal,	a	insatisfação	com	a	imagem	real	está	frequentemente	presente	no	relato</p><p>dessas	pacientes.</p><p>“Parece	que	sem	perceber	eu	faço	força	para	me	tornar	uma	gorda	indesejável.	Não</p><p>vai	ter	outra	saída	caso	eu	continue	tendo	essas	compulsões.”</p><p>“E	foi	justamente	no	dia	de	ir	para	o	motel	com	ele	que	eu	tive	a	maior	das	minhas</p><p>compulsões.	Resultado:	o	sexo	mais	esperado	da	minha	vida	 foi	um	desastre:	não</p><p>consegui	 relaxar	e	 só	sentia	a	minha	barriga	estufada,	 imaginando	que	ele	deveria</p><p>estar	reparando	na	minha	gordura.”</p><p>Na	 neurose	 obsessiva,	 o	 deslocamento	 da	 carga	 afetiva	 separada	 da</p><p>representação	se	instala	no	pensamento.	A	compulsão	alimentar	enquanto	sintoma</p><p>funciona	 como	 uma	 medida	 protetora	 utilizada	 pelo	 sujeito	 para	 lidar	 com	 a</p><p>dificuldade	 perante	 a	 castração.	 Assim,	 a	 compulsão	 se	 apresenta	 como	 um</p><p>mecanismo	 de	 tamponamento</p><p>da	 angústia,	 uma	 forma	 de	 manter	 uma	 posição</p><p>fálica,	de	garantir	a	sensação	de	onipotência:</p><p>“Chegar	em	casa,	sentar	em	frente	à	TV	comendo	o	que	eu	quiser	é	o	momento	do</p><p>dia	 que	 é	 só	meu.	 A	 palavra	 que	 uso	 para	 definir	 o	 que	 eu	 sinto	 com	 qualquer</p><p>tentativa	de	médicos	ou	nutricionistas	de	modificar	minha	alimentação	é	invasão;	eu</p><p>fico	profundamente	irritado.”</p><p>É	 preciso	 diferenciar	 as	 compulsões	 presentes	 como	 sintomas	 comuns	 na</p><p>neurose	das	compulsões	que	identificamos	como	modo	de	subjetivação	próprio	das</p><p>chamadas	 “patologias	 do	 vazio”,	 “patologias	 do	 narcisismo	 ou	 do	 desamparo”</p><p>(HOCHGRAF	 &	 BRASILIANO,	 2004),	 ou	 mesmo	 o	 que	 Gurfinkel	 (2006)</p><p>denominou	 de	 “clínica	 do	 agir”.	 Trata-se	 de	 patologias	 mais	 graves,	 nas	 quais</p><p>acontece	uma	verdadeira	carência	de	elaboração	psíquica	e	falhas	na	simbolização.</p><p>Segundo	 os	 autores	 que	 nomearam	 essas	 patologias	 como	 outra	 categoria</p><p>excluída	 da	 neurose,	 aqui	 as	 questões	 a	 serem	 tratadas	 não	 se	 referem	 ao	 que</p><p>chamamos	de	clínica	do	 recalcamento,	mas	estamos	 falando	de	algo	mais	 arcaico,</p><p>primitivo,	que	nos	leva	a	pensar	nas	particularidades	da	análise	do	narcisismo	ou	nas</p><p>modalidades	da	relação	de	objeto.	É	nesse	contexto	que	muitos	autores	retomam	o</p><p>conceito	 freudiano	 de	 neuroses	 atuais,	 caracterizadas	 pelo	 acúmulo	 de	 uma</p><p>excitação	 sexual	 que	 se	 transforma	 em	 sintoma,	 sem	 mediação	 psíquica</p><p>(LAPLANCHE	&	PONTALIS,	2000).</p><p>A	 diversidade	 de	 terreno	 estrutural	 explica	 a	 variedade	 clínica	 das	 compulsões</p><p>alimentares,	 o	 que	 confirma	 que	 o	 paciente	 precisa	 ser	 considerado	 em	 suas</p><p>particularidades	 e	 modos	 de	 subjetivação.	 Cada	 compulsão	 traz	 em	 si	 uma</p><p>significação,	uma	história,	um	sentido,	ou	no	caso	das	“patologias	do	vazio”,	uma</p><p>ausência	de	sentido	que	precisa	ser	significada.	Isso	repercute	também	na	condução</p><p>do	tratamento.</p><p>O	cotidiano	da	clínica:	a	condução	do	tratamento</p><p>Quando	os	pacientes	chegam	à	análise,	é	comum	que	já	tenham	buscado	outros</p><p>profissionais:	 endocrinologistas,	 nutricionistas	 e	 possivelmente	 investiram	 em</p><p>tentativas	de	dieta	e/ou	reeducação	alimentar	sem	efeito.	São	pacientes	que	chegam</p><p>muito	 mobilizados	 com	 a	 questão	 do	 peso	 e	 das	 calorias,	 identificados	 com	 o</p><p>diagnóstico:	 “Sou	 compulsivo”.	 É	 de	 fundamental	 importância	 que	 possamos</p><p>favorecer	 uma	 desidentificação	 do	 paciente	 com	 essa	 condição	 de	 doente,</p><p>possibilitando	surgir	na	análise	algo	além	da	problemática	alimentar.	A	nossa	escuta</p><p>é	a	escuta	do	sujeito.</p><p>O	 sofrimento	 com	 o	 sintoma	 (egodistonia)	 é	 um	 ponto	 a	 nosso	 favor	 no</p><p>tratamento,	embora	a	demanda	de	soluções	rápidas	própria	da	intolerância	à	espera</p><p>e	a	dificuldade	frente	às	questões	subjetivas	apresentem	possíveis	impasses	com	os</p><p>quais	teremos	que	lidar	na	transferência.</p><p>Na	 condução	 do	 tratamento,	 é	 preciso	 diferenciar	 as	 compulsões	 próprias	 da</p><p>neurose	 (clínica	 do	 recalcamento)	 das	 compulsões	 que	 podemos	 atribuir	 às</p><p>chamadas	“patologias	do	vazio”.</p><p>Na	 neurose,	 trabalhamos	 com	 a	 metaforização,	 acompanhando	 o	 paciente	 na</p><p>elaboração	dos	conflitos	referentes	à	expressão	de	desejos,	sexualidade,	autonomia.</p><p>Trata-se	de	um	caminho	de	atribuição	de	significados.</p><p>Nas	patologias	do	vazio,	precisamos	auxiliar	os	pacientes	a	traduzir	as	sensações</p><p>corporais	 em	estados	emocionais,	 a	dar	 significado	para	 aquilo	que	estão	dizendo</p><p>sem	 saber	 do	 que	 se	 trata,	 possibilitando	 a	 construção	 de	 uma	 representação</p><p>interna,	 criando	 um	 aporte	 simbólico	 onde	 só	 existe	 uma	 descarga	 evacuativa	 de</p><p>tensão	não	representada.	Esses	casos,	caracterizados	por	um	movimento	pulsional</p><p>difícil	de	 tratar	pela	via	da	palavra,	 são	os	que	exigem	uma	especial	habilidade	do</p><p>analista	 na	 escuta	 e	 na	 escolha	 das	 intervenções,	 mas	 que	 também	 convocam</p><p>algumas	 intervenções	 pontuais	 (horário,	 pagamento)	 que	 toquem	 o	 pulsional,</p><p>podendo	operar	mudanças	importantes.</p><p>O	lugar	do	analista	e	a	boa	distância</p><p>Maria	 Helena	 Fernandes	 (2006,	 p.	 261)	 enfatiza	 a	 importância	 da	 função	 de</p><p>paraexcitação	 do	 analista	 em	 sua	 tripla	 dimensão	 de	 proteção,	 mediação	 e</p><p>libidinização:</p><p>Se	 a	 função	 de	 paraexcitação	 materna	 encontrou	 dificuldade	 de	 ser	 introjetada,</p><p>deixando-as	expostas	ao	desamparo	diante	da	ausência	do	objeto,	não	posso	deixar</p><p>de	 insistir	 aqui	 na	 importância	 dessa	 função	 de	 paraexcitação	 do	 analista.	Nesses</p><p>casos,	a	função	mediadora	e	protetora,	assegurada	pela	presença	constante	e	regular</p><p>do	analista,	vem	se	unir	a	essa	função	de	libidinização	assegurada	pela	sua	escuta.</p><p>O	paciente	 precisa	 da	 segurança	 da	 presença	 do	 analista,	 o	 que	 se	 faz	 com	 a</p><p>escuta	 genuína,	 sem	 pressa.	 É	 preciso	 esperar,	 com	 paciência	 e	 sensibilidade,</p><p>dosando	 silêncio	 e	 palavras,	 afinando	 a	 escuta	 com	os	 conteúdos	 que	 surgem	na</p><p>sessão,	sem	a	pretensão	de	adequar	a	teoria	àquilo	que	o	paciente	nos	apresenta.	A</p><p>teoria	possibilita	a	nossa	escuta,	o	caminho	da	análise	é	de	criação.</p><p>É	 preciso	 acrescentar	 que	 estamos	 falando	 de	 casos	 em	 que	 precisamos	 estar</p><p>atentos	ao	perigo	de	manter	o	paciente	no	lugar	de	alienado	ao	saber	de	um	outro</p><p>poderoso	que	possui	as	respostas	a	seu	respeito.	Nas	palavras	de	Cobelo,	Gonzaga</p><p>&	 Weinberg	 (2010,	 p.	 271),	 eventuais	 falhas	 no	 processo	 de	 diferenciação	 e	 de</p><p>formação	da	identidade	que	remontam	a	fases	precoces	do	desenvolvimento	infantil</p><p>“promovem	dificuldades	 importantes	tanto	nas	referências	de	 identidade	como	na</p><p>discriminação	do	que	é	próprio	ao	mundo	interno	ou	externo	[…]”.</p><p>O	 paciente	 tem	 o	 direito	 de	 encontrar	 no	 analista	 um	 outro	 diferente	 daquele</p><p>outro	 de	 sua	 própria	 história,	 e	 o	 analista	 tem	 o	 dever	 de	 se	 apresentar	 diferente</p><p>daquele	 outro	 conhecido,	 excessivamente	 ausente	 ou	 presente,	 incapaz	 de</p><p>possibilitar	a	experiência	da	falta,	adivinho	das	necessidades	de	seu	“pupilo”.	Suprir</p><p>com	cuidados	excessivos	vai	na	contramão	do	trabalho	analítico.	É	na	transferência</p><p>que	se	instaura	uma	nova	possibilidade	de	existir	na	relação;	sempre	ressaltando	que</p><p>a	 adequada	 função	 materna	 reeditada	 na	 transferência	 possibilita	 deixar	 espaços</p><p>regulares	para	que	o	sujeito	possa	descobrir-se	desejante,	a	partir	da	falta.	Trata-se</p><p>de	 um	 “fio	 da	 navalha”,	 de	 um	 tom	 degradée	 que	 apenas	 o	 analista	 na	 sua	 escuta,</p><p>amparado	pelo	 seu	 inconsciente	 e	pelo	 trabalho	 realizado	 em	 sua	 análise	 pessoal,</p><p>poderá	mensurar.</p><p>Precisamos	contribuir	para	que	o	paciente	experimente	a	vivência	de	um	vazio</p><p>necessário	 que	 faça	 emergir	 um	 certo	 incômodo,	 uma	 angústia	 necessária,	 que</p><p>possa,	enfim,	ser	relativizada	pela	palavra.	É	a	partir	dessa	nova	experiência	que	o</p><p>sujeito	pode	se	surpreender	com	a	possibilidade	de	adquirir	recursos	para	se	deparar</p><p>com	 o	 “rochedo”,	 e,	 então,	 se	 torne	 apto	 a	 atravessar	 o	 confronto	 com	 as	 suas</p><p>próprias	questões	 subjetivas.	Esse	é	o	cerne	do	nosso	 trabalho,	em	que	a	questão</p><p>começa	e	termina	não	na	comida,	mas	no	sujeito.	A	direção	do	trabalho	em	análise</p><p>é	 assegurar	 ao	 paciente	 o	 reposicionamento	 subjetivo	 e	 uma	 nova	 aliança	 com	 a</p><p>pulsão,	de	forma	que	possa	vivenciar	aquilo	que	é	próprio	da	condição	humana	sem</p><p>se	sentir	radicalmente	desamparado,	ocupando	aquele	lugar	que	ele,	sujeito,	definiu</p><p>como	seu.</p><p>Termino	com	a	fala	de	Helena	(nome	fictício),	uma	paciente	que	chegou	ao	meu</p><p>consultório	diagnosticada	pelo	psiquiatra	como	portadora	de	“transtorno	alimentar</p><p>e	transtorno	bipolar	grave”	(nas	palavras	dela).	A	paciente	se	apresentava	com	um</p><p>relato	vazio	de	afeto	e	discurso,	apenas	preenchido	pela	descrição	de	uma	sequência</p><p>de	atuações,	inclusive	com	grave	risco	de	vida.	Enfim,	Helena	era	só	sofrimento…</p><p>Durante	 o	 primeiro	 tempo	 da	 análise,	 eu	 me	 perguntava	 se	 haveria	 ali	 alguma</p><p>possibilidade	 de	 que	 tamanha	 angústia	 expressa	 em	 atuações	 pudesse	 ser</p><p>relativizada	pela	simbolização	e,	com	tempo,	paciência	e	esforço	para	escutá-la,</p><p>fui</p><p>surpreendida	pela	disposição	de	Helena	para	o	tratamento	e	potencial	associativo:</p><p>“Quando	você	recebe	um	diagnóstico	ou	vários	(rs),	você	se	vitimiza,	como	se	fosse</p><p>acometida	 por	 um	 mal	 que	 não	 depende	 de	 você	 e	 que	 você	 não	 tem</p><p>responsabilidade	sobre	ele.	Foi	assim	que	eu	cheguei	aqui,	né?</p><p>[…]	 Hoje	 eu	 entendo	 que	 as	 minhas	 compulsões	 tinham	 a	 ver	 com	 a	 minha</p><p>dificuldade	de	me	posicionar,	de	saber	de	mim,	das	minhas	vontades,	necessidades	e</p><p>de	fazer	escolhas.	E	por	falar	em	escolha,	tive	uma	festa	nesse	final	de	semana	que</p><p>passou.	Foi	muito	diferente	comer	por	lá,	saboreando,	sentindo	prazer,	sem	sofrer</p><p>nem	me	incomodar.	Estou	te	contando	isso	porque	esse	dia	serviu	como	símbolo</p><p>da	minha	vontade	em	todos	os	âmbitos	da	minha	vida.	A	partir	dessa	medida	que</p><p>encontrei	nas	coisas,	mesmo	sabendo	das	dificuldades	que	eu	preciso	enfrentar	de</p><p>frente,	que	eu	comecei	(acho	que	pela	primeira	vez)	a	sentir	prazer	de	verdade	nas</p><p>coisas	da	vida.”</p><p>E	assim	seguimos	com	o	propósito	do	nosso	trabalho,	o	de	recriar	a	palavra	para</p><p>que	 enfim	o	paciente	 possa	 reencontrar	 um	 sentido	que	 legitime,	 nas	 palavras	 de</p><p>Philippe	Jeammet,	o	apetite	de	viver.</p><p>Referências</p><p>ABRAHAM,	K.	 [1916].	O	primeiro	estágio	pré-genital	da	 libido.	In:	ABRAHAM,</p><p>K.	 Teoria	 Psicanalítica	 da	 Libido:	 sobre	 o	 caráter	 e	 o	 desenvolvimento	 da	 Libido.	 Rio	 de</p><p>Janeiro:	Imago,	1970.	p.	51-80.</p><p>_________.	 (1924).	 A	 influência	 do	 erotismo	 oral	 na	 formação	 do	 caráter.	 In:</p><p>ABRAHAM,	K.	Teoria	Psicanalítica	da	Libido:	sobre	o	caráter	e	o	desenvolvimento	da	Libido.</p><p>Rio	de	Janeiro:	Imago,	1970.	p.	161-173.</p><p>BORGES,	M.	B.	F.;	JORGE,	M.	R.	Evolução	histórica	do	conceito	de	compulsão	alimentar.</p><p>São	Paulo,	Psiquiatria	na	Prática	Médica,	XXXIII(4):113-118,	2000.</p><p>BRUCH,	H.	Eating	disorders:	obesity,	anorexia	nervosa	and	 the	person	within.	Nova	York:</p><p>Basic	Books,	1973.</p><p>BRUSSET,	 B.;	 COUVREUR,	 C.;	 FINE,	 A.	 (orgs.)	A	 bulimia.	 São	 Paulo:	 Escuta,</p><p>2003.</p><p>BUCARETCHI,	H.	A.;	WEINBERG,	C.	Um	breve	histórico	sobre	os	transtornos</p><p>alimentares.	 In:	 BUCARETCHI,	 H.	 A.	 (org.)	Anorexia	 e	 bulimia	 nervosa:	 uma	 visão</p><p>multidisciplinar.	São	Paulo:	Casa	do	Psicólogo,	2003.	p.	19-26.</p><p>COBELO,	 A.	 W.;	 GONZAGA,	 A.	 P.;	 WEINBERG,	 C.	 Contribuições	 da</p><p>psicanálise	 para	 o	 tratamento	 dos	 transtornos	 alimentares.	 In:	 GONZAGA	 &</p><p>WEINBERG	 (orgs.)	 Psicanálise	 de	 transtornos	 alimentares.	 São	 Paulo:	 Primavera</p><p>Editorial,	2010.	p.	167-185.</p><p>FERNANDES,	M.	H.	Transtornos	Alimentares.	São	Paulo:	Casa	do	Psicólogo,	2006</p><p>GURFINKEL,	Décio.	 Teatro	 de	 transferência	 e	 clínica	 do	 agir.	 In	 FUKS,	 Lucía</p><p>Barbero;	 FERRRAZ,	 Flávio	 Carvalho	 (orgs.)	 O	 sintoma	 e	 suas	 faces.	 São	 Paulo:</p><p>Escuta/Fapesp,	2006.	p.	181-195.</p><p>GONZAGA,	A.	P.;	WEINBERG,	C.	Psicanálise	de	 transtornos	alimentares.	São	Paulo:</p><p>Primavera	Editorial,	2010.</p><p>HOCHGRAF,	 Patrícia	 Brunfentrinker;	 BRASILIANO,	 Sílvia.	 A	 compulsão</p><p>alimentar	e	outras	compulsões/dependências	e	adições	nos	transtornos	alimentares.</p><p>In:	ALVARENGA,	Marle;	PHILLIPI,	Sonia	Tucunduva.	Transtornos	alimentares:	uma</p><p>visão	nutricional.	São	Paulo:	Manole,	2004.	p.	83-101.</p><p>KALIL,	 F.	 A	 compulsão	 alimentar	 e	 suas	 implicações	 na	 clínica	 psicanalítica.	 In:</p><p>GONZAGA,	A.	P.;	WEINBERG,	C.	Psicanálise	de	 transtornos	alimentares.	São	Paulo:</p><p>Primavera	Editorial,	2010.	p.	167-185.</p><p>LAPLANCHE,	 Jean;	 PONTALIS,	 Jean-Bertrand.	 Vocabulário	 de	 Psicanálise.	 São</p><p>Paulo:	Martins	Fontes,	2000.</p><p>NASIO,	J.	D.	A	histeria:	teoria	e	clínica	psicanalítica.	Rio	de	Janeiro:	Jorge	Zahar	Editor,</p><p>1991.</p><p>SIGAL,	A.	M.	Escritos	metapsicológicos	e	clínicos.	São	Paulo:	Casa	do	Psicólogo,	2009.</p><p>URRIBARRI,	R.	(org.)	Anorexia	e	bulimia.	São	Paulo:	Escuta,	1999.</p><p>REVISITANDO	A	TÉCNICA	PSICANALÍTICA	NO</p><p>ATENDIMENTO	A	PACIENTES	COM</p><p>TRANSTORNOS	ALIMENTARES</p><p>Gabriela	Malzyner</p><p>A	 psicanálise	 diariamente	 perde	 espaço	 para	 outras	 abordagens	 teóricas	 em</p><p>hospitais,	 escolas,	 consultórios	 particulares,	 etc.	 Recentemente,	 fiz	 uma	 pesquisa1</p><p>on-line	 em	universidades	do	estado	da	Flórida	 (EUA)	para	verificar	 a	 inserção	de</p><p>psicanalistas	nesses	meios	e	pude	constatar	que	não	há	profissionais	na	academia.</p><p>Esse	cenário	é	bastante	comum	a	qualquer	olhar	 atento.	Podemos	nos	 indagar</p><p>sobre	 o	 que	 ocorre	 para	 que	 a	 psicanálise	 perca	 tanto	 terreno.	 Se	 formularmos</p><p>hipóteses	 frente	 a	 esse	 panorama	 assustador,	 talvez	 possamos	 combater	 a	 perda</p><p>desses	espaços	sociais	pelo	psicanalista.</p><p>O	jornalista	Robert	Whitaker,	em	entrevista	recente	ao	El	País,	afirma	que	frente</p><p>à	constatação	de	que	pacientes	esquizofrênicos	evoluem	melhor	em	países	onde	são</p><p>menos	 medicados,	 como	 Índia	 e	 Nigéria,	 do	 que	 em	 nações	 como	 os	 Estados</p><p>Unidos	–	somado	ao	fato	de	que,	em	1955,	havia	355	mil	pessoas	em	hospitais	com</p><p>diagnósticos	psiquiátricos	nos	EUA	e,	em	2007,	o	número	subiu	para	4	milhões	–,	o</p><p>entrevistado	afirma	que	algo	deve	estar	sendo	feito	de	forma	equivocada.</p><p>Para	ele,	a	psiquiatria	moderna,	para	equiparar-se	à	medicina	clássica,	assumiu	a</p><p>posição	 de	 diagnosticar	 e	 medicar	 as	 doenças	 mentais	 como	 se	 pudessem	 ser</p><p>explicadas	 totalmente	 por	 desequilíbrios	 químicos.	 A	 sociedade	 tende	 e	 quer</p><p>acreditar	 que	 os	 medicamentos	 podem	 resolver	 tudo,	 medicando	 de	 adultos</p><p>angustiados	a	crianças	em	período	escolar.</p><p>Não	pretendo	fazer	aqui	uma	revisão	da	história	da	psiquiatria	ou	até	mesmo	da</p><p>psicanálise.2	mas	 sim	abrir	 a	possibilidade	de	pensamento	 e	de	 enfrentamento	do</p><p>panorama	psicanalítico	atual.</p><p>Se	 a	 psiquiatria,	 por	 um	 lado,	 abandonou	 a	 psicanálise	 como	 forma	 de</p><p>compreender	 e	 ler	 os	 fenômenos	 clínicos,	 nós,	 psicanalistas,	 por	 outro,	 adotamos</p><p>uma	 posição	 reclusa	 e	 pouco	 comunicativa.	 A	 resultante	 não	 poderia	 ser	 muito</p><p>diferente	 do	 que	 observamos	 em	 grandes	 cidades:	 um	 aumento	 significativo	 de</p><p>medicações	 psicoativas	 sendo	 utilizadas	 e	 um	 decréscimo	 da	 presença	 de</p><p>psicanalistas	em	hospitais	e	escolas.</p><p>Acrescido	ao	fato	de	que	há	toda	uma	tendência	mundial	de	aquietar	as	dores	da</p><p>vida	 com	 fármacos	 e	 a	de	que	nós,	psicanalistas,	 falamos	muito	pouco	para	 além</p><p>dos	 muros	 de	 nossas	 escolas	 –	 os	 guetos	 psicanalíticos	 nos	 conservam	 numa</p><p>posição	 de	 “intocáveis	 e	 incontestáveis”,	 aumentando	 assim	 o	 espaço	 que	 nos</p><p>distancia	da	comunidade	e	de	outros	profissionais.</p><p>O	 que	 observo,	 na	 prática	 clínica,	 é	 que	 nós,	 psicanalistas,	 temos	 muito	 a</p><p>contribuir	ao	tratamento	e	à	compreensão	das	dores	e	dos	amores	que	acometem	o</p><p>humano.	 Mas,	 para	 tanto,	 temos	 que	 contar	 de	 onde	 falamos	 e	 o	 que</p><p>compreendemos	acerca	dos	fenômenos	clínicos.</p><p>Reconheço	que	me	sinto,	de	alguma	maneira,	privilegiada.	Afinal,	o	trabalho	com</p><p>pacientes	 que	 apresentam	 transtornos	 alimentares	 exige	 esse	 diálogo	 constante	 e</p><p>nos	 obriga	 a	 encontrar	 uma	 linguagem	 comum	 aos	 membros	 de	 uma	 equipe</p><p>multidisciplinar,	 o	 que	 nos	 possibilita	 repensar	 nosso	 fazer	 diário	 e,	 então,	 rever</p><p>nossa	forma	de	trabalho.</p><p>Está	 aí,	 aquilo	 que	 fundamenta	 e	 sustenta	 a	 psicanálise!	 Freud	 era	 um</p><p>pesquisador	 que	 não	 temia	 pensar	 e	 repensar	 a	 teoria	 e	 a	 clínica,	 para	 então</p><p>comunicar	aos	seus	pares	e	para	além	das	sociedades	psicanalíticas	seus	achados.</p><p>O	que	pretendo	neste	breve	capítulo	é	contar	ao	leitor	o	que	pude	aprender	com</p><p>a	 minha	 prática	 clínica,	 bem	 como	 de	 minhas	 colegas	 da	 CEPPAN,3	 no	 que	 se</p><p>refere	 à	 especificidade	 técnica	 dos	 atendimentos	 a	 pacientes	 com	 transtornos</p><p>alimentares	(ou,	como	prefiro	me	referir,	a	pacientes	que	apresentam	problemas	na</p><p>forma	 como	 conduzem	 sua	 vida	 alimentar);	 e	 mostrar	 à	 comunidade	 como	 a</p><p>psicanálise	é	sim	uma	forma	eficaz	e	importante	no	tratamento.</p><p>A	importância	dessa	conversa	não	se	restringe	ao	meio	psicanalítico,	pois,	para</p><p>que	possamos	estar	inseridos	em	equipes,	estas	têm	que	conhecer	e	dialogar	com	a</p><p>nossa	forma	de	compreensão	dos	fenômenos	psicopatológicos.</p><p>Outro	paradigma</p><p>importante	e	de	entrave	entre	o	psicanalista	e	profissionais	da</p><p>área	 da	 saúde	 é	 a	 ideia	 de	 cura.	 A	 cura	 em	 psicanálise	 é	 um	 conceito	 bastante</p><p>complexo,	 afasta-se	 da	 medicina	 na	 medida	 em	 que	 não	 busca	 a	 eliminação	 do</p><p>sintoma.</p><p>Apesar	disso,	a	cura	é	um	elemento	central	na	marcha	do	processo	analítico,	e	é</p><p>exatamente	porque	o	sujeito	que	busca	análise	acredita	que	o	analista	poderá	auxiliá-</p><p>lo	num	processo	de	cura,	que	a	análise	se	inicia.</p><p>Esse	 ponto	 é	 fundamental	 na	 clínica.	 Vemos	 muitas	 meninas	 não	 “se</p><p>engancharem”	num	processo	 analítico,	o	que	 faz	 com	que	vislumbremos	um	mal</p><p>prognóstico	 para	 sua	 conflitiva.	Nos	 ditos	 casos	 de	 transtornos	 alimentares,	 essa</p><p>não	entrada	em	análise	é	comumente	observada.</p><p>Fernandes	(2006)4	–	psicanalista	e	grande	estudiosa	dos	transtornos	alimentares</p><p>–	 afirma	que	para	 falarmos	 em	“cura”	da	 anorexia	 e	 da	bulimia,	 a	 relação	dessas</p><p>jovens	com	elas	mesmas	terá	que	ser	transformada,	mas	para	que	isso	ocorra,	elas</p><p>não	podem	ter	“cristalizado”	essa	forma	de	conduzir	a	vida	psíquica.</p><p>Penso	que	isso	nos	remete	à	questão	pulsional.	Parece	que	a	pulsão	ao	encontrar</p><p>um	caminho	de	satisfação	buscará	esta	forma	específica	até	que	ocorra	um	desvio.</p><p>A	análise	teria	que	ser	capaz	de	promover	esse	corte	na	repetição,	mas	isso	implica</p><p>certa	abertura	e	flexibilidade	da	 libido.	A	transferência	precisa	se	 instalar	para	que</p><p>isso	ocorra,	e	aí	reside	uma	questão	relevante	para	esta	clínica.</p><p>A	 primeira	 dificuldade	 que	 encontramos	 frente	 a	 moças	 que	 apresentam</p><p>problemas	 alimentares	 é	 a	 chegada	 aos	 consultórios.	 Temos	 dados	 que	 apontam</p><p>para	 um	 grande	 número	 de	 desistências	 entre	 o	 chamado	 à	 CEPPAN	 (contato</p><p>telefônico,	via	e-mail,	site,	etc.)	e	a	vinda	à	triagem.</p><p>Os	 números	 da	 instituição	 mostram	 isso	 de	 forma	 evidente.	 Muitas	 meninas</p><p>buscam	atendimento,	mas	uma	proporção	 significativa	delas	não	 consegue	 sequer</p><p>chegar	 à	 triagem	 inicial.	 Parece	 faltar	 crença	 na	 cura…	 Ou	 poderíamos	 nos</p><p>questionar	 de	 que	 cura	 estamos	 falando	 aqui:	 afinal,	 muitas	 dessas	 jovens	 não</p><p>reconhecem	questões	em	si	mesmas.</p><p>A	 CEPPAN	 possuía	 como	 protocolo	 que,	 após	 a	 triagem	 inicial	 –	 realizada</p><p>sempre	por	duas	analistas	–,	o	caso	seria	passado	para	o	grupo,	e	a	analista	que	se</p><p>disponibilizasse	 a	 atender	 aquele	 caso	 específico	 deveria	 aguardar	 o	 contato	 da</p><p>paciente.	Ou	seja,	exigíamos	um	duplo	movimento	por	parte	dessas	garotas.</p><p>Observamos	que	muitas	meninas	se	perdiam	nessa	passagem	–	da	triagem	até	a</p><p>busca	pelo	analista	–,	então	optamos	por	modificar	a	conduta.	Hoje,	após	a	triagem,</p><p>o	analista	designado	a	atender	o	caso	entra	em	contato	com	a	paciente,	eliminando</p><p>assim	o	segundo	movimento	de	busca.</p><p>Pensamos	 inicialmente	 que,	 com	 isso,	 estaríamos	 eliminando	 uma	 “vala”,	 pela</p><p>qual	e	elas	escorriam.	Talvez	o	que	esteja	ocorrendo	nesse	cenário	seja	exatamente	a</p><p>falta	de	esperança	de	que	haja	um	outro	capaz	de	auxiliá-las,	ou,	até	mesmo,	uma</p><p>impossibilidade	de	ver	como	questão	aquilo	que	se	passa	internamente.</p><p>O	que	estou	afirmando	é	que,	de	alguma	maneira,	não	há	a	ideia	de	cura	nesse</p><p>psiquismo.	Talvez	porque	o	que	falte	seja	exatamente	pôr	em	questão	seus	atos:	não</p><p>há	abertura	para	a	dúvida.	Disso	decorre	outra	hipótese:	essas	formas	de	conduta</p><p>alimentar	provavelmente	desempenham	um	papel	fundamental	naquela	organização</p><p>psíquica.</p><p>A	 consequência	 de	 tal	 organização	 pode	 ser	 a	 morte,	 e,	 em	 muitos	 casos,	 é</p><p>exatamente	disso	que	se	trata.</p><p>Nasio	 (1999,	 p.	 167),	 psicanalista	 francês,	 afirma	 que	 “os	 sintomas	 são	 a</p><p>expressão	de	uma	tentativa	de	autocura	do	Eu”.	E	“[…]a	expressão	de	uma	batalha.</p><p>Constituem	 a	 parte	 visível	 de	 um	 combate	 inconsciente	 do	 Eu	 contra	 um</p><p>sofrimento	inconsciente,	intolerável	para	o	Eu,	e	visam	torná-lo	mais	aceitável”.</p><p>A	psicanálise	compreende	o	sintoma	de	uma	maneira	positiva;	ele	exprime	um</p><p>movimento	 do	 Eu	 que	 busca	 se	 desvencilhar	 de	 um	 sofrimento	 insuportável.</p><p>Assim,	 diferentemente	 da	 concepção	 médica	 –	 que,	 em	 muitos	 momentos,	 visa</p><p>suprimir	 o	 sintoma	 –,	 o	 psicanalista	 serve-se	 dele	 como	 via	 indireta,	 a	 fim	 de</p><p>trabalhar	e	dissipar	a	dor	inconsciente.</p><p>Esse	 ponto	 é	 crucial	 quando	 discutimos	 casos	 em	 equipes	 multidisciplinares.</p><p>Para	os	psiquiatras,	uma	jovem	com	transtornos	alimentares	tem	que	rapidamente</p><p>abandonar	sua	sintomatologia,	e	é	dessa	maneira	que	medem	o	grau	de	sucesso	do</p><p>tratamento.</p><p>Um	problema	considerável	com	relação	a	esse	tema	está	ligado	à	noção	de	que</p><p>em	muitos	momentos	elas	são	incapazes	de	pensar	em	um	agravamento	do	quadro</p><p>físico,	como	quando	estão	muito	emagrecidas	e	desnutridas.</p><p>O	embate	é	grande,	pois	vemos	que,	muitas	vezes,	as	intervenções	no	sentido	de</p><p>eliminar	 o	 sintoma	 de	 forma	 rápida	 tendem	 à	 falência	 do	 tratamento,	 ao	mesmo</p><p>tempo	em	que	há	risco	iminente	de	morte.</p><p>Esse	é	um	engodo	desta	clínica!</p><p>Nasio	 (op.	 cit.,	 p.	 169)	 cita	 Freud	 e	 afirma:	 “A	 eliminação	 dos	 sintomas	 de</p><p>sofrimento	não	é	procurada	 (pelo	 terapeuta)	 como	objetivo	particular,	mas,	 sob	a</p><p>condição	de	uma	conduta	rigorosa	da	análise,	ela	ocorre,	por	assim	dizer,	como	um</p><p>benefício	anexo”.</p><p>Podemos	 afirmar	 que	 a	 cura	 não	 é	 a	 meta	 de	 uma	 análise,	 mas	 sim	 uma</p><p>consequência	desta.</p><p>Joyce	McDougall	 (1997)	apresenta	um	pensamento	rico	para	essa	discussão,	ao</p><p>apontar	 para	 a	 problemática	 vivida	 pelo	 analista	 frente	 àquilo	 que	 compreende</p><p>como	melhora,	ou,	até	mesmo,	cura.	Afirma	que,	para	Freud,	a	ideia	de	cura	estaria</p><p>ligada	à	possibilidade	do	sujeito	de	amar	e	trabalhar,	mas	até	mesmo	essa	concepção</p><p>pode	 ser	 questionada.	 Frente	 a	 um	 analisando	 que	 funciona	 de	 forma	 adicta	 em</p><p>relação	 ao	 trabalho,	 o	 analista	 não	 tem	 por	 objetivo	 que	 esse	 sujeito	 trabalhe.	O</p><p>estudo	da	perversão	 aponta	para	 formas	distintas	 de	 compreender	 os	 fenômenos</p><p>psíquicos.	 O	 analista	 não	 pode	 ocupar	 o	 lugar	 de	 um	 “normopata”,	 que	 deseja</p><p>enquadrar	o	sujeito	nos	moldes	do	que	a	sociedade	quer	para	ele.</p><p>McDougall	(op.	cit.,	p.	242)	afirma	ainda	que,	para	Bion,	a	análise	deve	buscar	a</p><p>“verdade”	e	a	“realidade”,	mas	que	até	mesmo	isso	poderia	conduzir</p><p>[…]	ao	perigo	de	impor	valores	de	natureza	moral,	religiosa,	estética	e	política.	Tais</p><p>imposições	 atrapalhariam	nosso	 trabalho	 como	analistas	 e	 imporiam	pressões	 aos</p><p>nossos	pacientes	no	sentido	de	se	sujeitarem	ao	nosso	sistema	de	valores,	em	vez	de</p><p>descobrirem	 seus	 próprios	 sistemas	 e	 de	 assumirem	ou	modificarem	 seus	 valores</p><p>em	consequência	disso.</p><p>A	meu	ver,	o	ponto	discutido	pela	autora	é	de	extrema	relevância	para	a	clínica</p><p>dos	 transtornos	alimentares.	Afinal,	o	 analista	 tem	que	 ser	capaz	de	dialogar	com</p><p>uma	equipe	multidisciplinar	que,	 em	muitos	momentos,	 possui	 como	eixo	 central</p><p>do	 tratamento	 a	 eliminação	do	 sintoma,	 porém	ele	 não	pode	 “embarcar”	 junto	 à</p><p>equipe	nessa	busca.	Se	o	fizer,	corre	o	risco	de	impedir	o	tratamento	e	também	de</p><p>tentar	 adequar	 o	 sujeito	 ao	 desejo	 do	 outro,	 repetindo	 uma	 dinâmica	 bastante</p><p>comum	nas	famílias	dessas	moças.</p><p>Seguindo	 o	 pensamento	 de	 McDougall,	 o	 único	 objetivo	 do	 analista	 é</p><p>compreender	 a	 vivência	 psíquica	 do	 paciente	 e	 comunicá-la,	 com	 a	 esperança	 de</p><p>que	o	sujeito	assuma	plena	responsabilidade	por	suas	escolhas	e	seus	atos.</p><p>Nossa	prática	(assim	como	ética	básica)	concentra-se	em	ajudar	cada	analisando	a</p><p>tornar-se	consciente	de	suas	fantasias	e	conflitos	recalcados,	com	o	resultado	de	que</p><p>conjunto	 de	 valores	 até	 então	 não	 reconhecidos,	 aceitos	 anteriormente	 como</p><p>verdades	básicas,	sejam	trazidos	também	para	a	percepção	consciente	(p.	243).</p><p>A	conduta	clínica</p><p>A	prática	analítica	clássica	nos	remete	à	mobilização	do	paciente,	por	intermédio</p><p>da	 associação	 livre,	 para	 que	 seja	 favorecido	 o	 surgimento	 do	material	 reprimido</p><p>que	até	então	se	encontrava	fora	da	consciência.	Nessa	perspectiva,	o	trabalho	do</p><p>analista	 busca,	 por	 meio	 da	 interpretação,	 revelar</p><p>o	 arranjo	 simbólico	 desses</p><p>elementos,	entrando	em	contato	com	a	sua	conflitiva.</p><p>É	pela	instauração	da	transferência	que	o	analista	é	capaz	de	fazer	seu	trabalho,</p><p>quando	 o	 analisando	 o	 procura	 em	 seu	 consultório/instituição	 e	 lhe	 atribui	 um</p><p>saber	sobre	sua	dor	e	esperança	no	alívio	de	seu	sofrimento.</p><p>Esse	 é	 o	 campo	 predominante	 da	 intervenção	 analítica:	 a	 interpretação	 do</p><p>conteúdo	manifesto	 como	 instrumento	 para	 alcançar	 o	 latente,	mas	 essa	 não	 é	 a</p><p>única	forma	possível.	José	Carlos	Garcia	(2007,	p.	27)	pensa	que:	“[…]ao	lado	dessa</p><p>potencialidade	do	trabalho	analítico	podemos	constatar	uma	outra,	que	diz	respeito</p><p>ao	potencial	para	simbolização	de	demandas	pulsionais	que	não	puderam	até	então</p><p>alcançar	o	nível	do	representado”.</p><p>Segundo	 Silvia	 Alonso	 (2011),	 quando	 o	 analista	 está	 diante	 de	 uma	 situação</p><p>clínica	em	que	não	se	trata	de	desconstruir	o	sintoma	construído	pelo	recalque,	mas</p><p>sim	construir	psiquismo	e	bordas	para	o	eu,	a	forma	de	intervenção	clínica	tem	que</p><p>ser	reavaliada.</p><p>Ainda	segundo	a	autora:</p><p>quando	 se	 trata	 do	 “princípio	 do	 prazer”	 pode-se	 funcionar	 ressignificando	 as</p><p>marcas	 históricas;	 mas	 quando,	 de	 certa	 forma,	 a	 temporalidade	 foi	 “perdida”,</p><p>quando	 não	 há	 passado	 e	 tampouco	 projeto	 de	 futuro,	 é	 preciso	 que	 o	 processo</p><p>analítico	 funcione	 como	 um	 modelo	 de	 história,	 com	 base	 no	 qual	 se	 crie	 a</p><p>possibilidade	de	construir	esse	projeto	(p.	130).</p><p>Muitas	 vezes,	 no	 atendimento	 de	 pacientes	 com	 transtornos	 alimentares,	 o</p><p>analista	se	vê	compelido	a	trabalhar	três	ou	quatro	vezes	na	semana,	como	sugere	a</p><p>técnica	clássica	psicanalítica.	Constatamos,	no	acompanhamento	desses	casos,	que</p><p>há	 uma	 urgência	 iminente,	 mas	 esta	 urgência	 que	 se	 apresenta	 não	 pode	 ser</p><p>respondida	a	ponto	de	aplacar	a	falta.	A	urgência	física	nos	leva	a	oferecer	nutrição,</p><p>mas	em	muitos	momentos	isso	tende	a	ser	rejeitado	pela	própria	dinâmica	presente</p><p>nessas	formas	de	relação	com	o	outro.</p><p>Há	 a	 ilusão	 de	 que	 a	 frequência	 dos	 encontros	 possa	 eliminar	 o	 vazio	 que	 há</p><p>entre	duas	pessoas.	Tenta-se	eliminar	o	vazio	na	análise,	assim	como	essas	meninas</p><p>tentam	eliminá-lo	preenchendo-o	com	a	dor.</p><p>Não	 podemos	 oferecer	 excesso	 de	 alimento	 (sessões)	 a	 uma	 jovem	 com</p><p>anorexia,	 pois	 isso	 acarreta	 um	 profundo	 desconforto	 para	 ela,	 assim	 como</p><p>observamos	que,	frente	a	jovens	bulímicas,	as	sessões	são	tomadas	com	voracidade,</p><p>havendo	pouco	espaço	para	o	silêncio	e	para	o	vazio.	Somos	alimentos	devorados	e</p><p>expelidos	 com	 a	 mesma	 velocidade.	 A	 dinâmica	 que	 observamos	 na	 clínica	 se</p><p>assemelha	em	muitos	aspectos	àquelas	vividas	com	o	alimento	–	ora	devorado,	ora</p><p>devorador.</p><p>Na	clínica	dos	transtornos	alimentares,	a	técnica	psicanalítica	é	fundamental,	mas</p><p>a	 rigidez	 do	 setting	 pode	 ser	 em	 muitos	 momentos	 impeditiva	 ao	 trabalho,	 pela</p><p>dificuldade	e	precariedade	na	forma	com	que	estabelecem	vínculos.</p><p>McDougall	propõe,	por	meio	de	um	pensamento	solidamente	psicanalítico,	que</p><p>todo	 sintoma	 estaria	 ligado	 a	 uma	 tentativa	 de	 sobrevivência	 psíquica;	 assim,	 o</p><p>analista	ao	entrar	em	contato	com	seu	paciente	“[…]	fará	um	esforço	consciente	de</p><p>tratar	 com	 profundo	 respeito	 o	 precário	 equilíbrio	 sintomático	 construído	 pela</p><p>criança	aflita	e	desamparada	que	existe	escondida	dentro	de	cada	adulto”	(op.	cit.,	p.</p><p>259).</p><p>O	analista	não	pode	colocar-se	como	aquele	que	detém	 todo	o	conhecimento,</p><p>precisa	admitir	não	saber	tudo,	abrindo	espaço	para	um	trabalho	multiprofissional,</p><p>com	o	auxílio	de	nutricionistas	e	psiquiatras.</p><p>Cada	analista	tem	que	se	colocar	na	relação	com	o	paciente	de	forma	horizontal,</p><p>evitando	incursões	às	vezes	violentas	na	relação	contratransferencial,	respeitando	o</p><p>equilíbrio	 psíquico	 de	 cada	 sujeito,	 por	 mais	 sintomático	 que	 ele	 possa	 parecer.</p><p>Afinal,	ele	foi	construído	de	forma	criativa	para	dar	conta	da	dor	mental	que	existe</p><p>em	cada	um	de	nós.</p><p>A	 psicanálise	 se	 afasta,	 em	 muitos	 momentos,	 de	 outras	 formas	 de</p><p>conhecimento	 acerca	 do	 humano,	 exatamente	 por	 se	 opor	 a	 uma	 maneira</p><p>“setorizada”	de	compreender	o	sujeito.</p><p>A	psicanálise	 é	ousada!	Ela	ousa	 subverter	 a	ordem	atual	 e	 afirma	que	 somos,</p><p>como	 profissionais,	 capazes	 de	 ouvir	 a	 dor	 humana	 em	 seus	 diferentes	 aspectos,</p><p>cores,	credos,	configurações,	arranjos	e	rearranjos.</p><p>É	exatamente	na	pluralidade	da	nossa	escuta	que	ganhamos	bagagem	para	nosso</p><p>trabalho	 clínico.	 Apenas	 porque	 somos	 afinados	 por	 anos	 de	 análise	 pessoal,</p><p>supervisão	e	 estudo,	 é	que	podemos	nos	permitir	ouvir	dores	 e	 amores	de	 tantas</p><p>vidas	distintas.	Mas	o	trabalho	exige	atenção.</p><p>O	que	proponho,	então,	neste	trabalho,	é	que	os	psicanalistas,	frente	a	pacientes</p><p>que	 apresentam	 condutas	 alimentares	 desarranjadas,	 fiquem	 atentos	 à	 forma	 com</p><p>que	manejam	a	técnica	clínica.</p><p>Assinalo	alguns	pontos	que	me	parecem	relevantes:</p><p>·	Não	devemos	esperar	que	exista	associação	livre	para	que	se	inicie	o	processo</p><p>clínico.	Ela	é	uma	meta	do	trabalho	e	não	ponto	de	partida.</p><p>·	 Por	 sua	 vez,	 o	 desejo	 do	 sujeito	 tem	 que	 estar	 presente.	 Tomar	 em	 análise</p><p>alguém	 que	 é	 incapaz	 de	 reconhecer	 seu	 sofrimento	 pode	 inviabilizar	 o	 trabalho</p><p>clínico.</p><p>·	 Faz-se	 necessário,	 eventualmente,	 apresentar	 recursos	 lúdicos	 e	 ativamente</p><p>buscar	 criar	 formas	 distintas	 para	 a	 comunicação.	 A	 interpretação	 clássica	 nem</p><p>sempre	encontra	espaço	nessas	análises.</p><p>·	O	uso	do	divã	tem	que	ocorrer	com	muita	cautela.	Em	muitos	momentos,	ele</p><p>pode	se	apresentar	mais	como	elemento	persecutório	do	que	como	possibilidade	de</p><p>livre	associar.</p><p>·	O	tempo	de	consulta	deve	ser	mantido	(utilizo	50	minutos	em	minha	prática</p><p>clínica,	mas	não	creio	que	o	ponto	nevrálgico	seja	50,	45	ou	30).	O	 importante	é</p><p>que	o	sujeito	saiba	quanto	tempo	tem	de	consulta	para	que	possa	dosar	o	quanto</p><p>suporta	do	contato	com	o	analista.</p><p>·	O	contrato	 tem	que	ser	verbalizado	de	 forma	clara.	Cada	analista	conduz	de</p><p>acordo	com	aquilo	que	compreende	como	mais	adequado	à	sua	clínica,	mas	o	que</p><p>enfatizo	aqui	é	a	importância	de	ser	falado	e	mantido	o	acordo	contratual.	Isso	traz</p><p>estabilidade	 e	 segurança	 para	 essas	 jovens.	 Um	 contrato	 frouxo	 impossibilita	 o</p><p>trabalho.</p><p>·	A	 atenção	 flutuante	 do	 analista	 é	 fundamental.	Uma	 escuta	 atenta	 e	 sensível</p><p>abre	novas	possibilidades	de	ser.</p><p>·	 Não	 devemos	 oferecer	 excesso	 de	 sessões.	 A	 angústia	 que	 nos	 invade	 ao</p><p>falarmos	 com	 uma	 jovem	 que	 apresenta	 transtorno	 alimentar	 faz	 com	 que</p><p>acreditemos	que	o	 ideal	 seria	encontrá-la	quatro	vezes	na	semana,	mas	 isso	não	é</p><p>verdadeiro.	 Essas	 moças	 não	 suportam	 um	 contato	 tão	 frequente	 e	 podem	 até</p><p>mesmo	 vir	 a	 abandonar	 o	 trabalho,	 caso	 se	 vejam	 pressionadas	 à	 proximidade.</p><p>Apesar	da	gravidade	dos	casos,	oferecemos	apenas	aquilo	que	possa	caber	em	seu</p><p>estômago	e,	na	maioria	das	vezes,	uma	sessão	semanal	é	suficiente	e,	mesmo	assim,</p><p>essas	moças	tendem	a	controlar	o	encontro.</p><p>·	 O	 analista	 tem	 que	 ser	 capaz	 de	 dialogar	 com	 a	 equipe	 multidisciplinar</p><p>envolvida	no	atendimento	do	caso.	É	de	extrema	relevância	que	o	analista	não	se</p><p>coloque	 num	 lugar	 onipotente	 na	 relação	 com	 essas	 jovens,	 reconhecendo	 a</p><p>necessidade	de	um	trabalho	em	equipe.</p><p>Os	pontos	anteriormente	citados	não	encerram	a	discussão	e	a	possibilidade	de</p><p>pensarmos	sobre	a	técnica	psicanalítica	frente	a	clínicas	tão	diversas	e	desafiadoras,</p><p>mas	auxilia	o	trabalho	solitário	de	cada	analista	no	encontro	com	o	outro.	E	como</p><p>nos	diz	o	poeta:</p><p>“Eu	sei:	ninguém	faz	ideia	de	quem	vem	lá,</p><p>De	quem	vem	lá,</p><p>De	quem	vem	lá,</p><p>Ninguém	faz	ideia	de	quem	vem	lá.</p><p>Lenine,	‘Ninguém	faz	ideia’”</p><p>Portanto,	apesar	de	sabermos	da	especificidade	desta	clínica,	não	estamos	livres</p><p>da	 descoberta	 de	 que	 cada	 encontro	 propicia	 a	 dupla	 que	 se	 forma.	 Ressalto	 a</p><p>importância	 crucial	 de	mantermos	 nossa	 escuta	 aberta	 e	 atenta	 às	 dores	 de	 cada</p><p>humano	que	nos	convoca	e	nos	privilegia	com	o	lugar	de	“suposto	saber”.</p><p>Notas:</p><p>1.	 Disponível	 em:	 Psychoanalytic-Friendly	 Graduate	 Programs	 in	 Psychoanalysis	 –</p><p>http://www.apadivisions.org/divisions39/leadership/committees/grad-students-programs.aspx</p><p>2.Para	aqueles	que	se	 interessam	pelo	assunto,	recomendo	o	 livro	do	querido	e	competente	prof.	Dr.	Renato</p><p>Mezan,	O	tronco	e	os	ramos	–	Estudos	de	história	da	psicanálise.	São	Paulo:	Companhia	das	Letras,	2014.</p><p>3.	 CEPPAN:	Clínica	 de	Estudo	 e	 Pesquisa	 em	 psicanálise	 da	 anorexia	 e	 bulimia.	A	Ceppan	 é	 formada	 por</p><p>psicanalistas	 que	 se	 reúnem	 semanalmente,	 com	 o	 objetivo	 de	 estudar,	 pesquisar	 e	 atender	 pessoas	 que</p><p>apresentem	transtornos	alimentares.	O	grupo	foi	fundado	em	2000.	No	ano	de	2015,	defendi	meu	mestrado</p><p>na	PUC-SP,	 intitulado:	Contribuições	 psicanalíticas	 ao	 atendimento	 de	 pacientes	 com	 transtorno	 alimentar:	 revisitando	 a</p><p>técnica.	Neste	 trabalho	apresento	casos	clínicos	da	Ceppan	 (sempre	preservando	a	 identidade	do	sujeito),	 a</p><p>fim	 de	 pensar	 sobre	 a	 técnica	 clássica	 da	 psicanálise	 e	 como	 atua	 um	psicanalista	 frente	 a	 pacientes	 com</p><p>queixas	de	anorexia	e	bulimia.	Trabalho	junto	à	CEPPAN	desde	2005.</p><p>4.	 FERNANDES,	M.	H.	 Transtornos	 alimentares:	 anorexia	 e	 bulimia.	 São	 Paulo:	 Casa	 do	 Psicólogo,	 2006</p><p>(coleção:	Clínica	psicanalítica).</p><p>Referências</p><p>ALONSO,	S.	L.	O	tempo,	a	escuta,	o	feminino.	São	Paulo:	Casa	do	Psicólogo,	2011.	p.</p><p>130.</p><p>FERNANDES,	M.	H.	Transtornos	alimentares:	anorexia	e	bulimia.	São	Paulo:	Casa	do</p><p>Psicólogo,	2006.</p><p>GARCIA,	J.	C.	Desafios	a	técnica	psicanalítica.	São	Paulo:	Casa	do	Psicólogo,	2007.	p.</p><p>27.</p><p>NASIO,	J.	D.	Como	trabalha	um	psicanalista?	São	Paulo:	Jorge	Zahar	Editor,	1999.</p><p>MALZYNER,	 G.	Contribuições	 psicanalíticas	 ao	 atendimento	 de	 pacientes	 com	 transtornos</p><p>alimentares	–	Revisitando	a	técnica.	Mestrado	em	Psicologia	Clínica,	PUC	–	SP,	2015.</p><p>MEZAN,	 R.	 O	 tronco	 e	 os	 ramos.	 Estudos	 de	 história	 da	 psicanálise.	 São	 Paulo:</p><p>Companhia	das	Letras,	2014.</p><p>MCDOUGALL,	J.	As	múltiplas	faces	de	Eros.	São	Paulo:	Martins	Fontes,	1997.</p><p>Psychoanalytic-Friendly	 Graduate	 Programs	 in	 Psychoanalysis.	 Disponível	 em:</p><p>http://www.apadivisions.org/divisions39/leadership/committees/grad-students-</p><p>programs.aspx</p><p>WHITAKE,	 R.	 A	 Psiquiatria	 está	 em	 crise.	 Disponível	 em:</p><p>http://brasil.elpais.com/br…I?id_externo_rsoc=fb_CM.</p><p>ANOREXIA</p><p>A	INEFICÁCIA	DO	BANQUETE	TOTÊMICO1</p><p>Jaqueline	Pinto	Cardoso</p><p>“Nós	não	sentamos	à	mesa	para	comer	–</p><p>lemos	em	Plutarco	–	mas	para	comer	junto.”</p><p>–	MONTANARI,	1998,	p.	108</p><p>Ao	 considerarmos	 a	 anorexia	 como	 uma	 patologia	 do	 consumo	 de	 alimentos,</p><p>levamos	 em	 conta	 a	 existência	 de	 perturbações	 na	 ordem	 da	 oralidade,	 uma</p><p>tentativa	 de	 controlar	 a	 pulsão	 oral	 (MAGTAZ,	 2008;	 MAGTAZ;	 BERLINCK,</p><p>2012).	O	que	está	em	jogo	é	uma	alteração	na	 lei	simbólica	da	comensalidade,	do</p><p>comer	junto,	provocando	“efeitos	de	deformação	no	plano	imaginário,	no	nível	do</p><p>narcisismo	 corpóreo,	 e	 no	 plano	 real,	 em	 uma	 compulsividade	 pulsional	 não</p><p>regulamentada”	 (COSENZA,	2013,	p.	19,	 tradução	nossa).	Podemos	considerar	 a</p><p>anorexia	como	uma	patologia	da	comensalidade,	na	qual	a	lei	que	rege	a	relação	do</p><p>sujeito	com	a	comida	não	é	eficaz,	promovendo	um	gozo	sem	regulação	simbólica.</p><p>Alguns	 historiadores	 (FLANDRIN;	 MONTANARI,	 1998)	 que	 estudam	 a</p><p>história	da	alimentação	nos	trazem	importantes	revelações	sobre	a	humanização	das</p><p>condutas	 alimentares,	 afirmando	 que	 o	 que	 diferencia	 o	 humano	 do	 animal	 em</p><p>relação	 à	 alimentação	 é	 a	 comensalidade,	 o	 cerimonial	 e	 os	 rituais	 que	 cercam	 o</p><p>consumo	 de	 alimentos	 e	 que	 envolvem	 uma	 função	 social.	 A	 comensalidade</p><p>representa	uma	lei	simbólica	que	regulamentava	a	relação	do	sujeito	com	o	alimento</p><p>na	cultura	europeia	ocidental.</p><p>Os	 banquetes	 e	 as	 festas	 dos	 povos	 gregos	 e	 romanos	 assumiam	 uma	 função</p><p>social,	em	que	o	comer	e	o	beber	junto	favoreciam	o	fortalecimento	de	amizades,	a</p><p>solidariedade,	o	reforço	da	relação	entre	senhor	e	vassalo	e	a	boa	convivência:</p><p>[…]	 o	 homem	 civilizado	 come	não	 somente	 (e	menos)	 por	 fome,	 para	 satisfazer</p><p>uma	necessidade	elementar	do	corpo,	mas,	também	(e,	sobretudo)	para	transformar</p><p>essa	 ocasião	 em	 um	 momento	 de	 sociabilidade,	 em	 um	 ato	 carregado	 de	 forte</p><p>conteúdo	social	e	de	grande	poder	de	comunicação	(FLANDRIN;	MONTANARI,</p><p>op.	cit.,	p.	108).</p><p>A	 comensalidade	 pode	 ser	 lida,	 portanto,	 como	 uma	 regulamentação	 social	 e</p><p>cultural	 que	 se	 sobrepõe	 à	 pulsão.	 O	 mito	 grego	 da	 deusa	 Deméter	 (PANTEL,</p><p>1998)	 ilustra	 a	 complexidade	do	 sistema	de	 leis	da	 comensalidade	dos	gregos	 e	o</p><p>fato	do	banquete	estar	submetido	à	lei	dos	deuses	e	aos	seus	assentimentos.	Além</p><p>disso,	participar	do	banquete	é	sinal	da	mortabilidade	humana	e	de	sua	diferença	em</p><p>relação	aos	deuses.</p><p>Deméter	percebe	que	os	 soldados	de	Erisicton,	o	 filho	do	 rei,	maltratam	 seus</p><p>bosques	e	recusam-se	a	se	retirar	da	floresta.	Em	retaliação,	provoca	nele	uma	fome</p><p>insaciável	 e	 terrível,	 que	 o	 atormenta	 e	 o	 coloca	 em	 uma	 devoração	 sem	 limites,</p><p>sendo	jogado	nas	ruas	e	obrigado	a	comer	restos	de	comida.	Desse	modo,	“por	ter</p><p>ultrajado	 a	 deusa,	 Erisicton	 foi	 privado	 para	 sempre	 do	 que	 é	 a	 característica	 da</p><p>sociabilidade	humana,	o	banquete”	(PANTEL,	op.	cit.,	p.	156).</p><p>O	funcionamento	anoréxico	em	relação	à	alimentação	pode	ser	pensado	como</p><p>um	 desvio	 na	 prática	 do	 banquete,	 ilustrado	 pelo	 comer	 escondido,	 solitário,	 de</p><p>forma	não	compartilhada,	 e	pela	privação	 autoinduzida	 e	 contínua,	 indicando	um</p><p>individualismo	 que	 é	 próprio	 da	 contemporaneidade.	 A	 anoréxica	 priva-se	 do</p><p>banquete	enquanto	função	social	e	faz	suas	próprias	regras,	havendo,	portanto,	uma</p><p>falha	na	 lei	que	 regula	a	 relação	do	sujeito	com	a	comida.	A	relação	da	anoréxica</p><p>com	 a	 alimentação	 fica	 fora	 do	 discurso	 em	 decorrência	 de	 uma	 alteração	 ou</p><p>insuficiência	na	inscrição	do	sujeito	na	ordem	simbólica.</p><p>Bidaud	 (1998,	 p.	 10)	 realiza	 uma	 diferença	 importante	 entre	 o	 jejum	 das</p><p>anoréxicas,	que	ele	nomeia	como	“jejum	absoluto”,	e	o	“jejum	comunitário”,	prática</p><p>comum	 dos	 rituais	 religiosos,	 afirmando	 que	 o	 jejum	 anoréxico	 representa	 uma</p><p>“subversão	 dessa	 função	 simbólica”	 da	 comensalidade,	 ao	 contrário	 do	 jejum</p><p>comunitário,	que	está	incluído	no	registro	simbólico.</p><p>A	 lei	 da	 comensalidade	 representa	 a	 lei	 da	 castração	 simbólica,	 que	 separa	 a</p><p>criança	“do	corpo	a	corpo	devorador	com	a	Mãe	para	reconduzi-la	à	universalidade</p><p>normativa	 da	 ‘mesa	 do	 Pai’”(COSENZA,	 op.	 cit.,	 p.	 22).	 O	 banquete	 funciona,</p><p>portanto,	 como	 uma	 metáfora,	 na	 qual	 a	 comida	 –	 representante	 da	 Mãe	 –	 é</p><p>substituída	pelo	banquete	–	lei	paterna	–,	possibilitando	uma	experiência	alimentar</p><p>pautada	 no	 simbólico	 e	 uma	 perda	 de	 gozo,	 uma	 vez	 que	 a	 pulsão	 torna-se</p><p>regulamentada.</p><p>A	função	do	banquete	também	pode	ser	compreendida	em	Totem	e	Tabu	(1912-</p><p>1913),	em	que	Freud	anuncia	a	 função	de	 identidade	do	ato	de	alimentar-se,	uma</p><p>vez	que	os	filhos	se	identificam	ao	pai	ao	devorá-lo.</p><p>O	totemismo	é	considerado	um	sistema	de	certos	povos	primitivos,	da	região	da</p><p>África,	Austrália	e	América,	que	“tem	o	papel	de	uma	religião	e	fornece	a	base	da</p><p>organização	social”	 (p.	156).	Freud	 levanta	as	hipóteses	de	que	a	cultura	 totêmica</p><p>está	 na	 base	 de	 toda	 sociedade,	 antes	 de	 seu	 desenvolvimento	 em	 direção	 à</p><p>civilização,	 e	 que	 existe	 uma	 relação	 entre	 os	 povos	 primitivos	 e	 os	 neuróticos,</p><p>principalmente	 em	 relação	 aos	 desejos	 incestuosos,	 que	 formam	 o	 núcleo	 do</p><p>complexo	da	neurose,	e	que	nos	povos	primitivos	são	tratados	como	ameaçadores,</p><p>exigindo	medidas	rigorosas	de	defesa.</p><p>Uma	 das	 características	 do	 totemismo	 é	 a	 proibição	 da	 relação	 sexual	 com</p><p>membros	do	mesmo	totem,	o	horror	ao	incesto.	O	totem	pode	ser	um	animal,	uma</p><p>planta	ou	alguma	outra	força	da	natureza,	e	é	o	que	dá	identidade	a	um	grupo	ou</p><p>clã,	 representando	 seu	 ancestral	 comum.	 Existem	 alguns	 tabus	 relacionados</p><p>ao</p><p>totem,	 como	 o	 de	 não	 matá-lo	 e	 não	 comê-lo.	 Os	 membros	 do	 totem	 são</p><p>considerados	 parentes	 sanguíneos	 e	 esses	 laços	 são	 mais	 fortes	 que	 os	 laços</p><p>familiares.</p><p>Outras	características	essenciais	do	totemismo	são	a	identificação	com	o	totem	e</p><p>a	ambivalência	emocional	em	relação	a	ele.	Freud	destaca	a	relação	entre	o	animal</p><p>totêmico	e	o	pai	e	relaciona	a	gênese	do	totemismo	com	o	complexo	de	Édipo:</p><p>Se	 o	 animal	 totêmico	 é	 o	 pai,	 o	 teor	 dos	 dois	 principais	 mandamentos	 do</p><p>totemismo	–	os	dois	preceitos	que	constituem	seu	núcleo,	não	matar	o	totem	e	não</p><p>ter	relações	sexuais	com	uma	mulher	do	totem	–	coincide	com	o	dos	dois	crimes	de</p><p>Édipo,	 que	 matou	 o	 pai	 e	 tomou	 a	 mãe	 por	 esposa,	 e	 com	 os	 dois	 desejos</p><p>primordiais	 da	 criança,	 desejos	 cuja	 repressão	 insuficiente	 ou	 cujo	 redespertar</p><p>forma	o	núcleo	de	talvez	todas	as	psiconeuroses	(p.	203).</p><p>A	 refeição	 totêmica	 configurava-se	 como	 um	 sacrifício,	 no	 qual	 havia	 uma</p><p>oferenda	de	bebidas	e	comidas	aos	deuses	e	cada	membro	do	clã	tinha	sua	parte	na</p><p>refeição.	 Freud	 (1912-1913,	 p.	 216)	 analisa	 a	 horda	 primeva	 darwiniana,</p><p>caracterizada	por	“um	pai	violento	e	ciumento,	que	reserva	todas	as	fêmeas	para	si	e</p><p>expulsa	os	filhos	quando	crescem”,	e	anuncia	uma	hipótese	para	o	fim	dessa	horda:</p><p>“os	 irmãos	 expulsos	 se	 juntaram,	 abateram	 e	 devoraram	o	pai,	 assim	 terminando</p><p>com	 a	 horda	 primeva”.	A	 devoração	 do	 pai	 implica	 uma	 identificação	 com	 ele	 e</p><p>uma	apropriação	de	sua	força,	e	o	banquete	totêmico	representaria	a	repetição	desse</p><p>momento	mítico,	ao	mesmo	tempo	criminoso	e	memorável,	que	fundou	os	sistemas</p><p>sociais,	morais	e	a	religião.</p><p>Com	esse	assassinato	do	pai,	os	filhos	passam	a	proibir	a	si	mesmos	o	que	antes</p><p>era	 função	 do	 pai,	 adquirindo	 assim	 uma	 consciência	 de	 culpa	 e	 os	 dois	 tabus</p><p>fundamentais	do	totemismo:	matar	o	totem	e	o	incesto.</p><p>Ao	 tomar	 o	 canibalismo	 como	 uma	 expressão	 mítica	 que	 se	 refere	 a	 um</p><p>protótipo	da	 identificação,	Freud	 anuncia	que	 a	 incorporação	 é	o	modelo	oral	 da</p><p>identificação,	 e	 que	 existe	 uma	 tentativa	 de	 negar	 o	 objeto,	 uma	 vez	 que	 ele	 é</p><p>incorporado	 e	 destruído.	 As	 pulsões	 canibalistas	 mostram	 a	 ambivalência	 em</p><p>relação	ao	objeto	de	amor	presente	na	oralidade.</p><p>O	canibalismo	pode	ser	pensado	como	um	“gozo	da	unidade	violenta,	na	perda</p><p>de	 qualquer	 limite”	 entre	 o	 sujeito	 e	 o	 objeto	 (FÉDIDA,	 1999,	 p.	 61).	 O	 mito</p><p>canibalista	representa,	portanto,	uma	“encenação	imaginária	do	incesto	alimentar”	e</p><p>um	 desejo	 de	 nunca	 perder	 o	 outro:	 “Em	 nome	 de	 uma	 identidade	 ilusória	 do</p><p>mesmo,	ele	 tem	a	vocação	 imaginária	de	nunca	perder	o	outro	–	ou	seja,	aquele	que</p><p>somente	 uma	 destruição	 por	 devoração	 poderia	 impedir	 para	 sempre	 que	 nos</p><p>abandone”	(op.	cit.,	p.	65).</p><p>Podemos	 considerar	 o	 canibalismo	 como	 “a	 expressão	 mítica	 de	 um	 luto</p><p>melancólico”	caracterizado	por	um	gozo	de	devoração	do	objeto	de	amor	com	o</p><p>qual	se	está	identificado.	A	apropriação	das	qualidades	do	outro	não	funciona	como</p><p>resolução	 da	 angústia	 de	 perda,	 mas	 demonstra	 “uma	 verdadeira	 transgressão</p><p>imaginária	de	uma	falta…”	(FÉDIDA,	op.	cit.,	p.	66-67).	No	lugar	da	renúncia	do</p><p>objeto	instala-se	sua	aniquilação	e	ao	mesmo	tempo	uma	angústia	de	ser	aniquilado</p><p>pelo	 objeto	 incorporado.	O	 canibalismo	 não	 representa,	 portanto,	 uma	 resolução</p><p>simbólica	para	a	angústia	de	perda,	mas	uma	satisfação	 imaginária	de	se	alimentar</p><p>do	objeto	perdido.</p><p>Freud	(1895)	anunciou	a	relação	da	anorexia	com	a	melancolia	quando	afirmou</p><p>que	a	anorexia	era	a	neurose	paralela	à	melancolia.	Assim	como	na	melancolia,	na</p><p>anorexia	 o	 modelo	 identitário	 é	 a	 incorporação,	 que	 funciona	 como	 uma</p><p>transgressão	imaginária	da	proibição	do	incesto.</p><p>Fernandes	 (2006)	afirma	que	existem	dificuldades	no	processo	de	 identificação</p><p>primária	 na	 anorexia,	 que	 inclui	 a	 introjeção	 e	 a	 incorporação.	 A	 identificação</p><p>primária	 aprisiona-se	 na	 incorporação,	 que	 é	 o	 protótipo	 corporal	 da	 introjeção.</p><p>“Ora,	 enquanto	 a	 introjeção	 permitirá	 ao	 sujeito	 restringir	 a	 sua	 dependência	 em</p><p>relação	 ao	objeto,	 a	 incorporação	do	objeto,	 ao	 contrário,	 cria	 e	 reforça	 a	 ligação</p><p>objetal	imaginária”	(p.	212).	Segundo	a	autora,	ocorre	um	fracasso	na	introjeção	da</p><p>função	de	“paraexcitação	materna”,	 responsável	por	 regular	 as	pulsões	do	bebê	e</p><p>libidinizar	seu	corpo,	provocando	a	necessidade	do	sujeito	de	incorporar	o	objeto,</p><p>já	que	o	objeto	interno	não	se	constituiu	de	maneira	eficaz.</p><p>No	entanto,	a	autora	faz	uma	diferenciação	entre	o	processo	de	incorporação	na</p><p>melancolia	 e	 na	 anorexia,	 defendendo	 que,	 enquanto	 na	 melancolia	 o	 objeto	 é</p><p>incorporado	e	fundido	com	o	ego,	na	anorexia,	o	objeto	é	 incorporado	e	fundido</p><p>com	o	corpo.</p><p>Traremos	 a	 seguir	 um	 recorte	 sobre	 o	 filme	 Cisne	 Negro	 (2011),	 do	 cineasta</p><p>Darren	 Aronosfky,	 e	 um	 caso	 clínico	 para	 ilustrar	 a	 temática	 da	 ineficácia	 do</p><p>banquete	totêmico	na	anorexia.</p><p>CISNE	NEGRO:	o	impedimento	da	filha	de	tornar-se	mulher</p><p>No	filme	Cisne	Negro,	 vemos	um	exemplo	de	 relação	entre	mãe	e	 filha	na	qual</p><p>existe	a	 ineficácia	do	banquete	totêmico,	pela	prevalência	de	uma	mãe	devoradora</p><p>que	 impede	 que	 a	 filha	 se	 torne	 mulher.	 Em	 decorrência	 dessa	 devastação,	 o</p><p>psiquismo	da	 filha,	 a	 personagem	Nina,	 se	 desmorona,	 como	na	 cena	 em	que	 se</p><p>joga	do	alto	no	espetáculo	de	balé	em	direção	à	morte.</p><p>A	história	é	de	uma	 jovem	bailarina,	Nina,	que	apresenta	 sintomas	alimentares</p><p>importantes,	como	recusa	em	comer	e	vômitos	autoinduzidos,	e	comportamentos</p><p>de	automutilação.	Ela	vive	com	sua	mãe,	Érica,	que	não	conseguiu	 sucesso	como</p><p>bailarina	 e	 projeta	 na	 filha	 todos	 os	 seus	 anseios	 narcísicos.	 Érica	 a	 infantiliza,	 a</p><p>coloca	 no	 lugar	 de	 uma	 menina	 meiga	 e	 rodeada	 de	 objetos	 infantis,</p><p>impossibilitando	 o	 acesso	 da	 filha	 à	 feminilidade,	 o	 que	 pode	 representar	 uma</p><p>grande	catástrofe	(FREUD,	1931).	Mesmo	que	cada	mulher	se	invente	a	si	mesma,</p><p>ela	espera	que	a	mãe	acolha	seus	questionamentos	em	torno	da	questão	sobre	“o</p><p>que	é	ser	mulher?”.	“Ela	quer	saber	qual	a	solução	encontrada	pela	mãe	para	a	sua</p><p>condição	de	mulher,	que	em	sua	forma	mais	feminina	se	expressa	pela	vontade	de</p><p>despertar	o	desejo	de	um	homem”	(ZALCBERG,	2011,	p.	2).</p><p>E	 esse	 acolhimento	 para	 as	 questões	 da	 identidade	 feminina,	 Nina	 não</p><p>encontrou	em	sua	mãe.	Esta	tenta	afastá-la	dos	homens,	buscando	proteger	a	filha</p><p>de	ter	um	mesmo	destino	que	ela,	que	engravidou	e	desistiu	de	sua	carreira	no	balé.</p><p>Respondendo	a	essa	demanda	materna,	Nina	rejeita	o	assédio	de	um	homem	e	sua</p><p>tentativa	de	beijá-la,	mordendo-o.	Mas	na	visão	de	Zalcberg,	não	 se	 trata	de	uma</p><p>reação	histérica,	como	na	cena	do	beijo	de	Dora	com	o	Senhor	K,	pois	Nina	não	se</p><p>refere	 à	outra	mulher	nem	procura	nela	 respostas	para	o	 enigma	da	 feminilidade.</p><p>Ela	 não	 se	 mistura	 com	 as	 outras	 bailarinas,	 não	 há	 um	 espaço	 dela	 no	mundo</p><p>feminino.</p><p>O	 investimento	 devoto	 no	 balé	 tem	 um	 duplo	 sentido	 na	 vida	 de	 Nina:</p><p>representa,	por	um	lado,	seu	aprisionamento	na	fantasia	materna,	mas,	por	outro,	é</p><p>no	palco	onde	consegue	experienciar	um	sentido	para	 sua	existência,	 levando	seu</p><p>corpo	até	o	limite	da	exaustão	e	dor.	(ZALCBERG,	op.	cit.).	O	que	está	em	jogo	não</p><p>é	simplesmente	buscar	a	perfeição	no	balé,	mas	tentar	manter	a	integridade	de	seu</p><p>corpo,	 que	pode	 a	qualquer	momento	 se	 extinguir	 e	 desaparecer,	 pela	 ameaça	do</p><p>corpo	devorador	da	mãe.	Nesse	sentido,	o	balé	dá	consistência	ao	seu	ser,	e	não	está</p><p>na	ordem	do	fazer.</p><p>Nina	é	convidada	a	encenar	no	espetáculo	do	balé	duas	figuras	distintas:	o	cisne</p><p>branco,	 representante	 da	 delicadeza,	 da	 infância,	 da	 pureza,	 como	 uma	 sweet	 girl</p><p>(menina	meiga),	e	o	cisne	negro,	figura	da	sensualidade	e	sexualidade	feminina.	O</p><p>diretor	 do	 balé,	 Thomas,	 a	 convoca	 a	 pôr	 em	 cena	 esse	 lado	mulher,	 o	 que	 tem</p><p>efeitos	catastróficos	para	Nina.	Esta	encontra	em	outra	bailarina,	Lily,</p><p>álcool,	 drogas	 e	 sexo.	 Pode-se	 pensar	 que	 a	 crescente</p><p>valorização	das	atividades	físicas	na	vida	de	Maria,	bem	como	seu	comportamento</p><p>de	 colocar-se	 em	 risco,	 tenham	 relação	 com	 um	movimento	 de	 afastamento	 dos</p><p>excessos	 que	 ressurgem	 de	 outro	 modo?	 Podemos	 entender	 esse	 acontecimento</p><p>como	uma	atuação	que	se	dá	como	um	procedimento	autocalmante?</p><p>Os	 procedimentos	 autocalmantes	 são	 comportamentos	 estudados	 pelos	 autores	 da</p><p>Escola	de	Psicossomática	de	Paris,	nos	quais	a	atividade	motora	torna-se	necessária</p><p>para	efeito	de	uma	descarga	pulsional	que	se	encontra	impossibilitada	de	escoar	de</p><p>outra	forma.	Eles	são	encontrados	na	necessidade,	por	parte	de	alguns	pacientes,	de</p><p>realizar	uma	atividade	repetitiva.	Isso	pode	acontecer	por	meio	dos	esportes,	muito</p><p>comum	 nas	 caminhadas,	 mas	 também	 pode	 estar	 presente	 ao	 se	 tocar	 um</p><p>instrumento	ou	na	 atividade	da	dança,	 quando	 segue	determinadas	 características.</p><p>Cria-se	 um	 círculo	 vicioso	 em	 que	 a	 necessidade	 urgente	 de	 reduzir	 o	 nível	 de</p><p>excitação	 acaba,	 de	 certa	 maneira,	 promovendo	 ações	 que	 a	 incrementam,	 e	 os</p><p>procedimentos	 autocalmantes	 assemelham-se	 às	 condutas	 aditivas	 (VOLICH,</p><p>2010).</p><p>A	prática	esportiva	e	os	comportamentos	de	risco	fizeram-se	mais	presentes	em</p><p>sua	vida	e	pareceram	representar	uma	nova	forma	encontrada	por	Maria	na	busca</p><p>de	equilíbrio	e	de	prazer.	Foi	mais	um	passo	no	processo	de	quebra	dos	elementos</p><p>psíquicos	 dissociados,	 embora	 ainda	 não	 integrados	 completamente	 em	 sua	 vida</p><p>psíquica,	pois	os	procedimentos	autocalmantes	são	atividades	que	ficam	apartadas</p><p>da	 vida	 subjetiva	 e	 da	 fantasia.	 Uma	 distinção	 importante	 a	 ser	 feita	 para	 a</p><p>compreensão	dos	procedimentos	 autocalmantes	 é	que	eles	 representam	uma	ação</p><p>estritamente	calmante,	que	remete	às	experiências	da	relação	com	uma	mãe	que,	ao</p><p>embalar	seu	bebê,	não	consegue	transmitir	afeto,	não	erotiza.</p><p>Entendemos	que	o	acidente	de	Maria	foi	um	modo	de	viver	uma	experiência	de</p><p>quebra	da	casca	do	ovo	narcísico,	da	onipotência,	calcada	no	corpo	e	na	realidade.</p><p>Lembremos	que	as	condutas	de	risco	podem	ser	entendidas	como	uma	busca	mais</p><p>ou	menos	 desesperada	 de	 tomar	 posse	 de	 si	 mesmo,	 de	 engendrar-se,	 recriar-se,</p><p>renascer	após	a	aproximação	com	a	morte.	Algo	como	uma	busca	pela	vida	e	pela</p><p>autonomia	psíquica.	Um	dos	modos	de	se	apropriar	do	corpo	é	pela	“possibilidade</p><p>de	 se	 machucar,	 como	 na	 anorexia,	 na	 bulimia,	 nas	 automutilações,	 indo	 até	 a</p><p>tentativa	de	suicídio,	de	autoagressão,	a	qual,	nesses	casos,	mais	do	que	a	vontade	de</p><p>morrer,	exprime,	na	maior	parte	das	vezes,	um	desejo	prometeico	de	se	reapropriar</p><p>do	seu	destino”	(JEAMMET,	2005,	p.	140).</p><p>Ao	 analisar	 uma	 paciente	 que	 apresentava	 hiperatividade	 de	 marcha,	 Brusset</p><p>(1990,	 p.	 155)	 diz:	 “Na	 bulimia,	 por	 exemplo,	 uma	 conduta	 atuada	 e	 repetida</p><p>aparece	como	formação	substitutiva	na	busca	perdida	do	prazer	e	do	gozo	que	não</p><p>pode	ser	encontrado	por	outras	vias”,	tornando-se	uma	toxicomania	sem	droga.	A</p><p>hiperatividade,	 ele	 continua,	 é	 vivida	 com	 entusiasmo,	 e	 o	 sujeito	 usa	 várias</p><p>racionalizações	para	justificar	seu	uso;	no	entanto,	funciona	dentro	de	uma	lógica	de</p><p>coação	ou	de	um	conjunto	de	 coações.	Algumas	vezes,	 ela	 surge	na	passagem	da</p><p>anorexia	 para	 a	 bulimia	 e	 cumpre	 importante	 função	 de	 neorregulação	 do</p><p>funcionamento	psíquico.2</p><p>Esse	 autor	 enfatiza	 o	 quanto,	 apesar	 do	 automatismo,	 uma	 conduta	 aditiva	 de</p><p>marcha	pode,	por	intermédio	da	análise,	alimentar	a	elaboração	psíquica	levando	a</p><p>uma	 redução	 da	 clivagem.	Desse	modo,	 ele	 apresenta	 uma	 dimensão	 positiva	 de</p><p>ligadura,	 de	 objetalização.	 “Existe	 no	 atuar	 a	 dimensão	 de	 uma	 evitação,	 de	 uma</p><p>evasão,	 mas	 também	 de	 uma	 substituição:	 do	 ponto	 de	 vista	 dinâmico,	 uma</p><p>modalidade	 diferente	 do	 funcionamento	 psíquico	 põe	 em	 ação	 outras	 defesas	 e</p><p>outros	gozos	 […],	 tem	um	efeito	de	 ruptura	 […]”	 (BRUSSET,	1990,	p.	165-166).</p><p>Retoma	a	ideia	de	quão	poderosas	são	a	ação	e	a	sensação	corporal	em	termos	de</p><p>ativação	fantasmática.</p><p>No	 caso	 de	 Maria,	 o	 uso	 desse	 tipo	 de	 atividade	 se	 fez	 presente	 em	 outra</p><p>passagem,	que	foi	a	do	abandono	das	condutas	aditivas.	Concordamos	com	Brusset</p><p>que,	 embora	 seja	 uma	 conduta	 de	 atuação,	 pode	 promover	 um	 movimento	 de</p><p>erotização	 importante.	Maria	 foi	morar	 em	 uma	 casa	 que	 não	 era	 nem	 a	 do	 avô</p><p>alcoolista	nem	a	dela	 com	o	 ex-marido	 a	 exibir	 seu	 status	 econômico.	Foi	buscar</p><p>uma	vida	mais	simples,	com	um	vínculo	que	expressava	mais	autenticidade	e	 laço</p><p>afetivo.	O	 esporte	 no	 qual	 se	 envolveu	 está	 relacionado	 com	o	novo	 vínculo	 e	 o</p><p>prazer	do	contato	com	a	natureza.</p><p>Após	o	acidente,	Maria	pôde	viver	momentos	de	maior	depressividade3	na	análise,</p><p>nos	quais	suportava	mais	o	contato	com	seu	mundo	interno.	O	tema	do	cuidado	se</p><p>pôs	 em	 relevo.	Em	certa	 sessão,	 cita	um	 filme	que	 trata	da	 relação	mãe/filha,	no</p><p>qual	a	personagem	é	fotógrafa	de	guerra:	nele	aparece	todo	o	conflito	da	filha	ao</p><p>ver	que	a	mãe	não	consegue	se	afastar	do	perigo.4	Associa	com	o	que	está	vivendo</p><p>em	 seus	 impulsos	 de	 se	 arriscar	 e	 com	 a	 relação	de	 cuidado	mãe-filha	 que,	 neste</p><p>caso,	 se	 dá	 invertida.	É	 a	 filha	 que	 tem	 de	 cuidar	 da	mãe.	Na	 sequência,	 fala	 do</p><p>temor	com	relação	aos	riscos	que	seu	bichinho	de	estimação	corre	quando	este	sai</p><p>de	casa	à	noite,	tal	como	o	irmão	saía,	envolvendo-se	em	perigo,	o	que	aterrorizava</p><p>os	pais.	Maria	acompanhava	a	cena	assustada	e	sem	lugar	na	atenção	deles	–	ela	é</p><p>que	 se	 preocupava	 com	 eles.	O	 que	 aqui	 emerge	 é	 a	 preocupação	 com	 o	 outro,</p><p>assim	como	preocupação	e	cuidado	consigo	mesma.	É	o	ponto	de	 ligação	do	seu</p><p>retorno	para	a	análise:	pela	percepção	da	preocupação	da	analista	com	ela.</p><p>Com	o	caso	de	Maria,	pudemos	pensar	e	acompanhar	as	ricas	possibilidades	de</p><p>desdobramentos	 dos	 sintomas,	 e	 como	 estes	 vão	 ganhando	 sentido	 em	 cada</p><p>contexto	 em	 que	 são	 vividos.	 Maria,	 com	 seu	 jeito	 que	 lembra	 o	 “bêbado	 e	 o</p><p>equilibrista”,	vem	nos	ensinar	a	sermos	os	dois,	a	compreender	na	carne	do	corpo	a</p><p>importância	do	risco	em	que	consiste	o	viver.</p><p>Notas:</p><p>1.	Sobre	o	tema	dos	transbordamentos	das	pulsões	e	das	relações	entre	genitalidade	e	oralidade	na	sexualidade</p><p>feminina,	com	referência	aos	deslocamentos	dos	“prazeres	da	cama”	aos	“prazeres	da	mesa”,	remetemos	o</p><p>leitor	a	A.	Gurfinkel	(2001).</p><p>2.	Sobre	o	tema	dos	transtornos	alimentares	em	suas	relações	com	a	hiperatividade,	 indicamos	o	interessante</p><p>texto	 de	 C.	Weinberg	 e	M.	 Berlinck	 (2010),	 que	 compreende	 este	 aspecto,	 relacionando-o	 com	 a	 defesa</p><p>maníaca	e	com	a	repressão	da	sexualidade.</p><p>3.	Sobre	o	conceito	de	depressividade,	ver	A.	Gurfinkel	(2010).</p><p>4.Mil	vezes	boa	noite,	Noruega,	Irlanda	e	Suécia,	2014,	direção	de	Erik	Poppe</p><p>Referências</p><p>BRUSSET,	B.	La	adicción	anoréxica	a	la	marcha	y	el	trabajo	psicoanalitico.	Revista	de</p><p>Psicoanalises	de	Niños	y	adolescentes,	(10):152-169,	1990.</p><p>DEJOURS,	C.	A	banalização	da	injustiça	social.	Rio	de	Janeiro:	Editora	da	FGV,	2007.</p><p>FERNANDES,	M.	H.	Transtornos	alimentares:	anorexia	e	bulimia.	São	Paulo:	Casa	do</p><p>Psicólogo,	2006.</p><p>FUKS,	 M.	 P.	 O	 sintoma	 na	 bulimia:	 psicopatologia	 e	 clínica.	 In:	 FUKS,	 L.;</p><p>FERRAZ,	F.	M.	(orgs.)	O	sintoma	e	suas	faces.	São	Paulo:	Escuta/Fapesp,	2006.</p><p>GURFINKEL,	 A.	 E.	 C.	 Sexualidade	 feminina	 e	 oralidade:	 comer	 e	 ser	 comida.</p><p>Percurso,	(26):69-78,	2001.</p><p>GURFINKEL,	 A.	 C.	 Depressividade	 e	 manejo	 clínico	 no	 tratamento	 das</p><p>problemáticas	 alimentares.	 In:	 WEINBERG,	 C.	 &	 GONZAGA,	 A.	 P.	 (orgs.)</p><p>Psicanálise	de	transtornos	alimentares.	São	Paulo:	Primavera	Editorial,	2010.</p><p>JEAMMET,	P.	Adolescência:	o	espelho	da	sociedade.	Ide.	(41)	138-143,	jul.,	2005.</p><p>JEAMMET,	P.	Abordagem	psicanalítica	dos	transtornos	das	condutas	alimentares.</p><p>In:	URRIBARRI,	R.	(org.)	Anorexia	e	bulimia.	São	Paulo:	Escuta,	1999.</p><p>SOARES,	A.	M.;	RUA,	C.	R.;	VOLICH,	R.	M.;	LABAKI,	M.	E.	Apresentação.	In:</p><p>SOARES,	A.	M.;	RUA</p><p>a	imagem	de</p><p>uma	mulher	 que	 desperta	 o	 desejo	 do	 homem	 e	 que	 se	 “solta”	 nessa	 dança	 do</p><p>universo	feminino,	vivendo	sua	sexualidade.</p><p>Começa,	então,	um	processo	de	fascinação	por	esse	“corpo	erótico	de	mulher”,</p><p>em	uma	tentativa	de	alcançar	respostas	para	o	enigma	da	feminilidade,	seguido	de</p><p>uma	 persecutoriedade,	 pois,	 em	 sua	 fantasia,	 Lily	 quer	 ocupar	 seu	 lugar,</p><p>desencadeando	 assim	 um	 “delírio	 de	 perseguição	 e	 consequente	 perda	 de</p><p>identidade”	 (ZALCBERG,	 op.	 cit.,	 p.	 3).	 Em	 muitas	 cenas	 em	 que	 se	 olha	 no</p><p>espelho,	Nina	vê	um	rosto	deformado,	meio	demoníaco,	e	 tem	um	delírio	de	que</p><p>algo	cresce	em	suas	costas,	como	espinhos,	o	que	mais	tarde	ela	perceberá	como	a</p><p>asa	do	cisne	negro.</p><p>O	filme	vai	mostrando	uma	transformação	de	Nina,	que	vai	deixando	de	ser	o</p><p>cisne	branco,	vai	se	livrando	de	todos	os	objetos	infantis	e	barrando	o	acesso	de	sua</p><p>mãe	 ao	 seu	quarto,	manifestando	violentamente	uma	 tentativa	de	 se	 separar	 dela.</p><p>Ao	perguntar	para	a	filha	“Onde	está	minha	menina	meiga?”,	Nina	responde:	“Ela</p><p>se	 foi”.	 “Mas	 não	 há	 alguém	 para	 substituí-la.	 De	 menina	 para…	 nada”</p><p>(ZALCBERG,	op.	cit.,	p.	4).</p><p>Nesse	 processo	 de	 deixar	 de	 ser	 menina,	 Nina	 se	 solta	 e	 se	 perde,	 pois	 não</p><p>contou	 com	 elementos	 simbólicos	 e	 imaginários	 essenciais	 para	 a	 construção	 do</p><p>tornar-se	mulher,	 perdendo-se	 no	 real	 do	 gozo.	 “O	 que	 se	 solta	 em	Nina	 é	 essa</p><p>amarração	 entre	 os	 três	 níveis	 de	 estruturação	 psíquica,	 deixando-a	 entregue	 ao</p><p>imperativo	 do	 excesso	 do	 gozo	 e	 do	 domínio	 das	 pulsões	 –	 o	 que	 seus	 atos	 de</p><p>mutilação	de	seu	corpo	já	prenunciavam”	(ZALCBERG,	op.	cit.,	p.	4).</p><p>Na	cena	final	do	espetáculo	Cisne	Negro,	Nina	dá	um	salto	sem	sustentação,	que	a</p><p>leva	rumo	ao	abismo	de	um	gozo	mortífero	e	à	perda	de	sua	existência.</p><p>Caso	clínico:	A	recusa	do	banquete	como	um	signo	de	amor</p><p>O	tema	do	“amor”	será	trabalhado	na	discussão	do	caso	e	relacionado	com	duas</p><p>questões	que	se	articulam	entre	si:	a	recusa	do	amor	materno	e	do	amor	ao	saber</p><p>inconsciente.	 O	 amor	 tem	 um	 significado	 particular	 neste	 caso	 e	 aparece</p><p>relacionado	ao	significante	“recusa”.</p><p>Uma	paciente	adulta,	diagnosticada	com	anorexia	nervosa,	é	encaminhada	para</p><p>análise	por	 sua	psiquiatra.	 Seus	 sintomas	 atuais	 são:	medo	de	engordar,	 restrições</p><p>alimentares,	episódios	de	vômitos	e	depressão.	Ela	toma	antidepressivo	e	remédio</p><p>para	dormir.	A	 forma	como	a	psiquiatra	a	descreve	para	o	analista	é	“sem	vida	e</p><p>sem	força,	um	estado	quase	demencial”.</p><p>O	início	dos	sintomas	alimentares	se	deu	na	adolescência,	logo	após	a	morte	da</p><p>mãe,	que	 foi	 interpretada	por	ela	como	um	“suicídio”,	pois	ela	 tinha	uma	doença</p><p>incurável	e	decidiu	tomar	um	remédio	para	morrer.	Isto	foi	vivenciado	pela	paciente</p><p>como:	“minha	mãe	desistiu	da	gente”.</p><p>Uma	 frase	 da	 mãe,	 um	 pouco	 antes	 de	 morrer,	 marca	 o	 início	 dos	 sintomas</p><p>alimentares:	“não	queira	engolir	o	mundo”,	 referindo-se	a	um	excesso	 libidinal	da</p><p>filha,	representado	pela	ansiedade	de	querer	fazer	tudo	ao	mesmo	tempo.	A	partir</p><p>daí,	 dois	momentos	 se	 sucedem	 indo	 do	 excesso	 para	 a	 privação:	 primeiramente,</p><p>desenvolve	uma	compulsão	alimentar	e	abuso	de	drogas,	numa	tentativa	de	elaborar</p><p>a	perda	do	objeto	amado	pela	oralidade,	ilustrado	pela	seguinte	fala:	“comia	demais,</p><p>como	a	minha	mãe”.	Em	seguida,	passa	a	não	comer,	dando	início	à	anorexia.</p><p>Podemos	perceber	nesses	comportamentos	de	compulsão	alimentar	e	de	abuso</p><p>de	 drogas	 da	 paciente	 uma	 identificação	 oral	 e	 melancólica,	 como	 nos	 apontou</p><p>Freud	(1921),	como	uma	tentativa	de	incorporar	o	objeto	materno,	não	no	sentido</p><p>de	uma	elaboração	da	perda,	mas	de	negação.</p><p>Segundo	Fédida	(1999,	p.	65),	o	mito	canibal	representa	de	maneira	imaginária	o</p><p>incesto	alimentar:</p><p>A	análise	poderá	facilmente	encontrar	aí	expressões	fantasmáticas	verbalizadas,	mas,</p><p>com	 mais	 certeza,	 comportamentos	 corporais	 (bulimia,	 anorexia)	 e	 processos</p><p>somáticos	que	envolvem	o	canibalismo	segundo	um	funcionamento	da	conservação</p><p>paradoxal	da	autoconsumação	ou	da	autodevoração.	O	paciente	coloca	em	marcha</p><p>seu	 desejo	 –	muitas	 vezes	 desenfreado	 –	 de	 viver	 tudo	 o	 que	 se	 encontra	 sob	 o</p><p>poder	 da	 pulsão	 de	 morte.	 A	 revelação	 dos	 conteúdos	 inconscientes	 de	 tais</p><p>“comportamentos”	 faz	precisamente	aparecer	a	angústia	canibal	de	 ser	aniquilado</p><p>pela	fascinação	exercida	pelo	objeto.</p><p>O	que	 está	 em	 jogo	nesse	processo	de	devoração,	 segundo	o	 autor,	 é	 a	 ilusão</p><p>imaginária	 de	 não	 perder	 o	 outro,	 já	 que	 ocorre	 uma	 apropriação	 de	 suas</p><p>características	 e,	 por	 isso,	 a	 qualificação	 de	 incesto	 alimentar,	 pois	 a	 falta	 é</p><p>transgredida.</p><p>A	primeira	relação	de	objeto	da	paciente	ficou	marcada	pelo	desamor:	uma	mãe</p><p>“pública”,	muito	ocupada	e	distante,	desligada	do	corpo	da	filha.	Não	contou	para	a</p><p>mãe	quando	menstruou,	porque	ficou	com	medo	dela	se	distanciar	ainda	mais	pelo</p><p>fato	 de	 não	 ser	 mais	 criança.	 Um	 cuidado	 materno,	 portanto,	 que	 se	 limitava	 à</p><p>ordem	da	necessidade.</p><p>Após	o	diagnóstico	da	doença,	 a	mãe	 tenta	 resgatar	um	vínculo	de	 intimidade</p><p>por	 intermédio	 do	 que	 a	 paciente	 nomeia	 como	 “banquetes”:	 reunia	 a	 família</p><p>através	 de	 refeições	 “exageradas”,	 das	 quais	 a	 paciente	 se	 privava.	 Pegava	 o</p><p>pãozinho	 e	 saía	 da	 mesa,	 não	 participava	 do	 banquete,	 que	 representava	 um</p><p>momento	em	que	a	família	se	reunia	e	compartilhava	o	alimento	e	as	palavras.	Ela</p><p>se	privou	dessa	intimidade,	que,	para	ela,	foi	abrupta,	pelo	fato	dessa	transformação</p><p>repentina	de	uma	mãe	ausente	para	uma	mãe	muito	presente.	Revela	 sentimentos</p><p>confusos	 em	 relação	 ao	banquete	 exagerado,	 associando	 ao	 fato	de	 a	mãe	querer</p><p>compensar	sua	ausência	anterior.	A	oferta	do	amor	materno	e	a	despedida	centram-</p><p>se	no	objeto	comida.	A	paciente	revela	uma	atitude	de	recusa	em	dar	o	prazer	para</p><p>o	outro	e	não	permite	a	reparação	da	mãe.</p><p>A	recusa	 localiza-se	na	via	do	amor,	uma	vez	que	a	paciente,	por	meio	de	 sua</p><p>recusa	em	participar	do	banquete	familiar,	se	recusava	a	se	reconciliar	com	sua	mãe,</p><p>a	satisfazê-la	aceitando	seu	amor	“tardio”.	O	historiador	da	alimentação	Montanari</p><p>(1998)	 enfatiza	 a	 função	 social	 do	 banquete,	 que	 representa	 entre	 outras	 coisas	 a</p><p>identidade	 grupal,	 seja	 entre	 a	 família	 ou	 entre	 os	 cidadãos	 de	 um	 determinado</p><p>lugar.	Nessa	mesma	 direção,	Gerd	Althoff 	 (1988,	 p.	 300)	 diz	 que	 o	 comer	 junto</p><p>representa	 também	 “um	 ato	 de	 conciliação”,	 um	 símbolo	 da	 expressão	 de</p><p>compromisso	das	relações	de	boa	convivência.</p><p>A	temática	de	não	poder	satisfazer	o	outro	nem	a	si	mesma	aparece	também	na</p><p>impossibilidade	de	ter	relações	sexuais,	não	havendo	questionamentos	de	sua	falta</p><p>de	desejo.	A	proibição	do	prazer	encontra-se	na	ordem	do	sexual	e	da	oralidade.</p><p>A	transferência	do	caso	fica	marcada	por	três	pontos:	1)	a	recusa	do	sujeito	pela</p><p>experiência	da	palavra;	2)	a	articulação	do	sofrimento	por	meio	do	saber	médico;	e</p><p>3)	um	 jogo	a	dois,	 ela	 e	 a	psiquiatra,	do	qual	o	analista	 está	 fora,	desinvestido.	O</p><p>primeiro	ponto	pode	ser	pensado	pela	dificuldade	para	pensar	e	 falar	nas	sessões.</p><p>Tanto	 o	 sono	 incontrolável	 que	 a	 tomava	 intensamente,	 deixando-a	 lentificada	 e</p><p>ausente,	quanto	as	faltas	recorrentes	a	tiravam	da	experiência	pela	palavra.	Ficar	sem</p><p>falar	é	uma	prática	comum	para	a	paciente.	Na	época	do	falecimento	de	sua	mãe,	os</p><p>familiares	quase	não	se	 falavam	e	pareciam	“estranhos	morando	na	mesma	casa”.</p><p>No	lugar	da	ausência	da	mãe	fica	o	silêncio.	Parece	haver	um	gozo	da	ausência	da</p><p>palavra	que	se	articula	com	o	gozo	da	fome	e	do	objeto	nada.	A	anorexia,	como	nos</p><p>apontou	 Lacan	 (1957),	 não	 significa	 não	 comer	 nada,	 e	 sim	 comer	 nada	 –	 o	 nada</p><p>representando	um	objeto	no	plano	simbólico.</p><p>O	 segundo	ponto	 da	 transferência	 é	 a	 articulação	 do	 sofrimento	por	meio	 do</p><p>discurso	médico,	 das	 explicações	 que	 recebe	 em	 seu	 tratamento	 psiquiátrico,	 não</p><p>formulando	 questões	 próprias	 nem	 construindo	 uma	 versão	 sobre	 si	 mesma.	 A</p><p>direção</p><p>da	 análise	 aponta	 para	 uma	 questão	 preliminar:	 assumir	 um	 discurso</p><p>próprio,	separando-se	do	discurso	da	psiquiatra,	já	que	o	amor	ao	saber	parece	estar</p><p>ausente	nesse	 sujeito,	não	há	uma	busca	de	saber	 sobre	seu	sofrimento,	mas	uma</p><p>colagem	nas	explicações	médicas.	Ela	repete	a	fala	do	outro	sobre	ela,	não	dando</p><p>espaço	para	a	singularidade	de	sua	própria	questão.	Apresenta	como	narrativa	de	si</p><p>um	saber	teórico:	“a	anoréxica	não	consegue	comer	por	ter	dificuldade	de	lidar	com</p><p>suas	angústias”.</p><p>O	 terceiro	 ponto	 da	 transferência	 é	 o	 jogo	 a	 dois,	 entre	 a	 paciente	 e	 sua</p><p>psiquiatra,	no	qual	o	analista	está	desinvestido.	Havia	 sempre	uma	 fala	de	que	ela</p><p>não	sabia	se	gostaria	de	continuar	em	análise,	pois	“já	estava	com	a	psiquiatra”.	O</p><p>desinvestimento	 também	 pode	 ser	 visto	 na	 falta	 de	 pagamento	 das	 sessões,	 nas</p><p>faltas	contínuas	e	numa	espécie	de	desligamento,	parecendo	estar	sempre	distante,</p><p>em	outro	 lugar.	Esse	 lugar	 do	 desinvestido	 é	 ocupado	 também	pelo	marido,	 que</p><p>está	 a	mais	 na	 relação	 entre	 ela	 e	 as	 filhas:	 “Queria	 ficar	 sossegada	 com	minhas</p><p>filhas,	sem	homem	nenhum”.	Fica	claro	sua	impossibilidade	de	estar	a	três.</p><p>A	relação	com	as	filhas	se	dá	pela	via	da	necessidade,	ocupando	o	lugar	de	uma</p><p>mãe	 que	 cuida,	 mas	 não	 se	 sente	 envolvida.	 Ela	 descreve	 uma	 experiência	 de</p><p>estranhamento	tanto	em	relação	às	suas	filhas,	como	se	não	fossem	dela,	tanto	em</p><p>relação	ao	próprio	corpo,	como	se	não	fosse	seu.</p><p>Uma	 construção	 feita	 após	 um	 percurso	 em	 análise	 revela	 algo	 particular</p><p>relacionado	 à	 anorexia,	 que	 se	 relaciona	 à	 impossibilidade	 de	 aceder	 ao	 amor</p><p>edípico,	começando	a	trilhar	um	caminho	de	construção	de	seu	próprio	saber,	para</p><p>tentar	descolar	da	doença.	Quando	se	refere	a	querer	ficar	magra	para	ter	corpo	de</p><p>criança	e	ser	olhada	pela	mãe,	diz:	“Queria	ficar	magra	pra	não	chamar	atenção	dos</p><p>homens,	uma	questão	de	praticidade,	pra	caber	em	qualquer	buraquinho”.</p><p>Bidaud	(1998,	p.	79-80)	ilustra	por	meio	do	mito	de	Deméter	e	Perséfone	como</p><p>o	jejum	pode	representar	uma	forma	de	manter	a	relação	exclusiva	mãe-filha	e	não</p><p>aceder	ao	amor	edipiano.	Perséfone	é	filha	de	Zeus	e	Deméter,	cujo	nome	significa</p><p>“Terra-mãe”.	Esse	mito	aborda	a	perda	da	filha	Perséfone	pela	mãe	e	uma	relação</p><p>de	 paixão	 entre	 ambas.	 Zeus	 acedeu	 sua	 filha	 ao	 deus	 dos	 mortos,	 Hades,	 sem</p><p>consultar	Deméter,	 que	 não	 teria	 concordado.	Quando	 chegou	 junto	 com	Hades</p><p>em	seu	reino,	Perséfone	chamou	pela	mãe,	mas	não	foi	ouvida	e	passou	a	se	recusar</p><p>a	comer.	Deméter	foi	em	busca	da	filha	e,	inconsolada	com	a	separação,	“assolou	a</p><p>terra	 com	 a	 seca	 e	 a	 fome”.	Zeus,	 temendo	 a	 destruição	 da	 humanidade,	 pede	 o</p><p>retorno	 de	 Deméter,	 que	 só	 voltaria	 se	 a	 filha	 retornasse	 para	 ela.	 Então,	 Zeus</p><p>propõe	 uma	 condição:	 “Perséfone	 deveria	 não	 ter	 comido	 nada	 durante	 sua</p><p>permanência	 no	 inferno,	 pois	 quem	 quer	 que	 comesse	 ou	 bebesse	 enquanto</p><p>estivesse	 no	 reino	 de	 Hades	 ficava	 prisioneiro	 deste	 último	 para	 sempre”.	 No</p><p>entanto,	Perséfone	confessa	que	comeu	algumas	sementes	de	romã	e,	por	isso,	Zeus</p><p>decide	que	ela	 ficaria	 com	a	mãe	 somente	 enquanto	as	 sementes	 crescessem	para</p><p>depois	voltar	para	seu	marido.</p><p>Esse	mito	esclarece	a	simbologia	implícita	no	ato	de	comer	como	um	“acesso	ao</p><p>desejo	 do	homem”	 (Bidaud,	 op.	 cit.,	 p.	 81)	 e	 a	 separação	 na	 relação	mãe	 e	 filha,</p><p>marcando	uma	passagem	em	direção	à	 feminilidade.	Como	 já	explicitado,	 a	 lei	da</p><p>comensalidade	pode	 ser	 lida	 como	uma	 lei	 da	 castração	 simbólica,	 que	possibilita</p><p>uma	separação	da	criança	em	relação	à	mãe	devoradora,	como	nos	apontou	Lacan</p><p>(1969-1970,	p.	105),	quando	compara	a	mãe	com	um	crocodilo	com	a	boca	aberta.</p><p>O	papel	da	mãe	é	o	desejo	da	mãe.	Digo-lhes	coisas	simples,	estou	improvisando,</p><p>devo	 dizer,	 há	 um	 rolo,	 de	 pedra,	 é	 claro,	 que	 lá	 está	 em	 potência,	 no	 nível	 da</p><p>bocarra,	e	isso	retém,	isso	emperra.	É	o	que	se	chama	falo.	É	um	grande	crocodilo</p><p>em	cuja	boca	vocês	estão.	A	mãe	é	isso.</p><p>A	 lei	 da	 comensalidade	 permite	 orientar	 a	 criança	 para	 a	 mesa	 do	 pai	 ou	 ao</p><p>banquete,	 que	 representa	 uma	 experiência	 alimentar	 sustentada	 pelo	 simbólico	 e</p><p>pela	regulação	do	gozo.	E	é	 justamente	a	essa	mesa	do	pai	que	a	paciente	direciona</p><p>sua	recusa.</p><p>Nota:</p><p>1.	Este	capítulo	é	parte	da	dissertação	de	mestrado	da	autora,	defendida	em	julho	de	2016,	sob	a	orientação	do</p><p>prof.	Dr.	Christian	Ingo	Lenz	Dunker,	realizada	no	IPUSP.</p><p>Referências</p><p>ALTHOFF,	G.	 Comer	 compromete:	 refeições,	 banquetes	 e	 festas.	 In:	História	 da</p><p>alimentação.	 Direção	 de	 Jean-Louis	 Flandrin	 e	 Massimo	 Montanari.	 São	 Paulo:</p><p>Estação	Liberdade,	1998.</p><p>BIDAUD,	E.	Anorexia	mental,	ascese	mística:	uma	abordagem	psicanalítica.	Rio	de	Janeiro:</p><p>Companhia	de	Freud,	1998.</p><p>COSENZA,	 D.	 Anorexia-bulimia,	 patología	 de	 la	 comensalidad.	 Psicoanálisis</p><p>aplicado	y	discurso	alimentario.	In:	La	comida	y	el	inconsciente:	psicoanálisis	y	transtornos</p><p>alimentarios.	1.	ed.	Buenos	Aires:	Tres	Haches,	2013.</p><p>FÉDIDA,	P.	O	canibal	melancólico.	In:	Depressão.	Tradução	Martha	Gambini.	São</p><p>Paulo:	Escuta,	1999.</p><p>FERNANDES,	M.	H.	Transtornos	alimentares:	anorexia	e	bulimia.	São	Paulo:	Casa	do</p><p>Psicólogo,	2006.</p><p>FLANDRIN,	 J.-L.;	MONTANARI,	M.	História	 da	 alimentação.	 São	 Paulo:	 Estação</p><p>Liberdade,	1998.</p><p>FREUD,	S.	[1895]	Rascunho	G.	Melancolia.	In:	Obras	completas	de	Sigmund	Freud.	v.	1.</p><p>Rio	de	Janeiro:	Imago,	1996.	v.	1.</p><p>______.	 [1912-1913].	 Totem	 e	 Tabu.	 In:	 Obras	 completas,	 volume	 11:	 totem	 e	 tabu,</p><p>contribuição	 à	 história	 do	 movimento	 psicanalítico	 e	 outros	 textos	 (1912-1914).	 Tradução	 e</p><p>notas	Paulo	César	de	Souza.	São	Paulo:	Companhia	das	Letras,	2012.</p><p>______.	 [1921].	 Psicologia	 das	 massas	 e	 análise	 do	 Eu.	 In:	 Psicologia	 das	 massas	 e</p><p>análise	do	eu	e	outros	textos	(1920-1923).	Tradução	e	notas	Paulo	César	de	Souza.	São</p><p>Paulo:	Companhia	das	Letras,	2011.</p><p>______.	 [1931].	 Sobre	 a	 sexualidade	 feminina.	 In:	O	 mal-estar	 na	 civilização,	 novas</p><p>conferências	introdutórias	à	psicanálise	e	outros	textos	(1930-1936).	Tradução	e	notas	Paulo</p><p>César	de	Souza.	São	Paulo:	Companhia	das	Letras,	2010.</p><p>LACAN,	 J.	 [1956-57].	O	Seminário,	 livro	 4:	A	 relação	 de	 objeto.	Rio	de	 Janeiro:	 Jorge</p><p>Zahar	Editor,	1995.</p><p>______.	[1969-70].	O	Seminário,	livro	17:	O	avesso	da	psicanálise.	Rio	de	Janeiro:	Jorge</p><p>Zahar	Editor,	1992.</p><p>MAGTAZ,	 A.	 C.	 Distúrbios	 da	 oralidade	 na	 melancolia.	 Tese	 de	 doutorado	 em</p><p>Psicologia	Clínica.	Pontifícia	Universidade	Católica	de	São	Paulo,	São	Paulo,	2008.</p><p>Disponível	 em:	 <http://livros01.livrosgratis.com.br/cp056080.pdf>.	 Acesso	 em:</p><p>16	jun.	2014.</p><p>MAGTAZ,	A.	C.;	BERLINCK,	M.	T.	Orality	Disorders	in	Melancholia:	Acedia	as</p><p>Stagnation.	São	Paulo,	Rev.	Latinoam.	Psicopat.	Fund.,	 15(3):683-703,	 setembro	2012</p><p>(Suplemento).	 Disponível	 em:	 <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1415-</p><p>47142012000500005&script=sci_arttext>.	Acesso	em:	22	nov.	2014.</p><p>MONTANARI,	M.	 Sistemas	 alimentares	 e	modelos	 de	 civilização.	 In:	História	 da</p><p>alimentação.	 Direção	 de	 Jean-Louis	 Flandrin	 e	 Massimo	 Montanari.	 São	 Paulo:</p><p>Estação	Liberdade,	1998.</p><p>PANTEL,	 P.	 S.	 As	 refeições	 gregas,	 um	 ritual	 cívico.	 In:	História	 da	 alimentação.</p><p>Direção	 de	 Jean-Louis	 Flandrin	 e	 Massimo	 Montanari.	 São	 Paulo:	 Estação</p><p>Liberdade,	1998.</p><p>ZALCBERG,	 M.	 Cisne	 negro:	 perdendo-se	 na	 perfeição.	 Opção	 Lacaniana	 online.</p><p>Nova	série,	Ano	2,	Número	4,	Março	2011.</p><p>QUE	CONVERSA	É	ESSA?</p><p>Sobre	o	lugar	das	palavras	e	do	corpo	no	diálogo</p><p>analítico</p><p>Marina	Fibe	De	Cicco</p><p>Atender	 pacientes	 com	 transtornos	 alimentares	 evidencia	 a	 necessidade	 de	 a</p><p>escuta	 analítica	 ser	 estendida	 para	 modos	 de	 expressão	 diferentes	 da	 linguagem</p><p>verbal.	Quem	acompanha	esses	casos	não	pode	escapar	à	questão:	Que	lugar	têm	o</p><p>corpo	e	a	sua	expressividade	–	grandes	e	pequenos	gestos,	ações,	somatizações,	tom</p><p>de	voz,	postura	corporal	–	na	cadeia	associativa?</p><p>Trabalhar	 com	 adolescentes	 e</p><p>adultos	 com	 diagnósticos	 de	 anorexia	 e	 bulimia</p><p>nos	obriga,	portanto,	a	repensar	a	noção	de	associatividade	na	clínica	psicanalítica.</p><p>Roussillon,	 psicanalista	 francês	 cujas	 ideias	 norteiam	 este	 texto,	 defende	 que	 a</p><p>psicanálise	recupere	a	possibilidade	de	ver	no	corpo	e	no	que	é	da	ordem	do	agir</p><p>mais	organização	e	sentido	do	que	lhes	tem	sido	atribuído.	Concordo	com	o	autor</p><p>sobre	 ser	necessária	 uma	mudança	paradigmática	para	 analisar	 estruturas	que	não</p><p>eram	 tradicionais	 na	 clínica	 psicanalítica	 clássica,	 como	 as	 formas	 variadas	 de</p><p>transtornos	alimentares,	casos-limite	e	adições,	que,	para	Roussillon,	são	diferentes</p><p>expressões	 de	 problemáticas	 narcísico-identitárias.	 Como	 o	 período	 decisivo	 de</p><p>configuração	 desses	 quadros	 é	 anterior	 ao	 da	 aquisição	 da	 linguagem	 verbal,	 que</p><p>acontece	em	torno	dos	dois	anos,	seria	preciso	capacitar	os	analistas	a	detectar,	na</p><p>transferência,	restos	ou	sinais	de	experiências	que	teriam	ocorrido	antes	da	aparição</p><p>da	linguagem	verbal	(ROUSSILLON,	2008a;	2012b).</p><p>Utilizando	as	palavras	do	autor,	diríamos	que	em	análise	o	diálogo	se	estabelece</p><p>simultaneamente	em	dois	níveis:	“de	um	lado	ele	se	estabelece	em	nível	verbal,	que</p><p>possui	sua	coerência	própria,	mas	de	outro	 lado	se	desenvolve	um	diálogo	mimo-</p><p>gesto-postural	que	também	tem	sua	‘lógica’	própria	e	não	necessariamente	dada	ao</p><p>diálogo	 verbal”	 (Roussillon,	 2005,	 p.	 375,	 tradução	 livre).	 Ao	 investigar	 as</p><p>peculiaridades	 dessas	 duas	 formas	 de	 diálogo,	 pretendo	 explorar	 alternativas	 à</p><p>técnica	clássica	no	trabalho	com	pacientes	com	transtornos	alimentares.</p><p>Para	tanto,	ressaltarei,	por	um	lado,	a	importância	de	o	analista	tentar	comunicar</p><p>verbalmente	ao	analisando	o	que	as	mensagens	veiculadas	por	ele	via	corpo	e	ação</p><p>buscam	expressar.	Afinal,	não	se	deve	perder	de	vista	a	necessidade	de	devolver	ao</p><p>paciente,	por	meio	da	verbalização,	o	segmento	de	sua	história	que	reconstruímos	a</p><p>partir	do	que	muitas	vezes	são	apenas	fragmentos	sensíveis	disparatados	(PARAT,</p><p>1991,	 apud	 FONTES,	 2010,	 p.	 30-31).	 Nesse	 contexto,	 surgem	 as	 seguintes</p><p>indagações:	 Como	 se	 comunicar	 verbalmente	 com	 o	 paciente,	 se	 a	 forma	 de</p><p>comunicação	mais	acessível	a	ele	não	passa	pelos	canais	verbais?	Ainda	se	trata	de</p><p>interpretação?	 Se	 sim,	 que	 interpretação	 é	 essa?	 Ela	 deve	 ser	 ampliada	 além	 dos</p><p>limites	da	integração	do	reprimido?</p><p>Além	 de	 pensar	 sobre	 como	 a	 comunicação	 verbal	 pode	 ser	 significativa	 para</p><p>esses	 pacientes,	 proporei	 que	 na	 clínica	 atual	 é	 imprescindível	 incluir	 o	 corpo	 do</p><p>analista	na	conversa.	Mais	que	isso:	é	preciso	pensar	em	termos	do	corpo	interpretante,</p><p>pois	 as	 ações,	 os	 gestos	 e	 tom	de	voz	do	 analista	 talvez	 sejam	o	que	 lhe	permite</p><p>responder	 ao	 analisando	 no	 registro	 procurado	 por	 ele,	 que	 nem	 sempre	 é	 o	 da</p><p>linguagem	verbal.</p><p>As	mensagens	do	corpo</p><p>Zygouris	 (2011,	p.	13)	afirma	que	às	vezes	são	necessários	anos	de	preparação</p><p>para	que	um	paciente	possa	realizar	o	que	seria	uma	“análise	clássica”,	e	sugere	que</p><p>no	 período	 preparatório	 ocorreria	 uma	 análise	 “atípica”,	 na	 qual	 “as	 expressões</p><p>discursivas	não	figuram	em	primeiro	plano”.</p><p>Em	 2010,	 escrevi	 sobre	 Laura,	 paciente	 bulímica	 adulta	 com	 quem	 sempre</p><p>mantive	 o	 face	 a	 face	 e	 cuja	 linguagem	 corporal,	 gestos,	 coceiras,	 agitação,</p><p>velocidade	da	fala	e	tom	de	voz	costumavam	chamar	tanto	ou	mais	minha	atenção</p><p>do	que	o	 conteúdo	do	que	 ela	dizia.	Após	minhas	 falas,	 ela	 costumava	mexer	no</p><p>celular,	na	bolsa,	limpava	o	nariz,	se	olhava	no	espelho,	e,	em	certa	sessão,	chegou	a</p><p>ter	coceiras	 incontroláveis	após	um	comentário	meu.	A	atividade	corporal	parecia</p><p>ser	a	forma	de	expressar	um	grande	mal-estar,	para	o	qual	ela	não	tinha	palavras.</p><p>Outra	paciente,	adolescente,	veio	para	análise	por	estar	restringindo	seriamente	a</p><p>alimentação	 –	 perdera	 15	 quilos	 em	 6	 meses.	 Falava	 muito	 pouco,	 quase	 nunca</p><p>trazia	conteúdos	espontaneamente,	mas	se	comunicou	todo	o	tempo	por	vias	não</p><p>verbais.	Ela	chorava	e,	em	etapa	posterior	da	análise,	desenhava,	mas	nada	dizia.	Seu</p><p>corpo	 e	 sua	 aparência,	 porém,	 falavam:	 tinha	um	corte	de	 cabelo	 exótico	que	 ela</p><p>mesma	fazia,	usava	 invariavelmente	uma	maquiagem	carregada	e	peculiar,	além	de</p><p>acessórios	 e	 penduricalhos	 que	 chamavam	 muita	 atenção	 e	 podiam	 deformar	 o</p><p>corpo.	As	 roupas	 eram	 bastante	 originais	mas	monocromáticas,	 todas	 no	mesmo</p><p>tom	 escuro.	 As	 cenas	 compostas	 a	 partir	 de	 sua	 aparência,	 corpo,	 lágrimas,</p><p>desenhos	e	 silêncios	 tinham	 lugar	privilegiado	na	análise,	 servindo	como	meio	de</p><p>expressão	do	que	a	paciente	não	podia	dizer.</p><p>Acredito	 não	 ser	 possível	 compreender	 minhas	 pacientes	 sem	 tomar	 as</p><p>manifestações	em	ato	e	no	corpo	como	parte	da	cadeia	associativa,	resíduos	de	uma</p><p>relação	 em	 que	 ainda	 não	 se	 dispunha	 da	 linguagem	 verbal	 como	 meio	 de</p><p>comunicação.	 As	 experiências	 subjetivas	 do	 início	 da	 vida	 só	 adquirem	 valor	 de</p><p>mensagem	quando	a	 resposta	do	ambiente	as	 reconhece	como	tal;	 a	partir	daí,	 as</p><p>expressões,	 os	 gestos,	movimentos	 e	 gritos	 variados	do	bebê	 são	definidos	 como</p><p>mensagem	significante.	Se	não	for	assim,	se	não	houver	um	outro	disposto	e	apto	a</p><p>ler	 o	 esboço	 de	 sentido	 embutido	 no	 comportamento	 do	 bebê,	 este	 sentido</p><p>degenera,	“perde	seu	valor	protosimbólico	potencial,	é	ameaçado	de	não	ser	mais</p><p>que	evacuação	insignificante,	é	anulado	em	seu	valor	expressivo	e	proto-narrativo”</p><p>(ROUSSILLON,	2008a,	p.	29,	tradução	livre).</p><p>A	hipótese	clínica	é	que	a	sintomatologia	das	problemáticas	narcísico-identitárias</p><p>–	 entre	 elas,	 os	 transtornos	 alimentares	 –	 manifesta,	 em	 ação	 ou	 no	 corpo,	 as</p><p>tentativas	 frustradas	de	comunicação.	O	não	 reconhecimento	e	 a	não	qualificação</p><p>das	 comunicações	 corporais	 e	 afetivas	 da	 criança	 constituem	 ataques	 narcísicos</p><p>repetidos	 que	 fragilizam	 globalmente	 o	 ego	 do	 indivíduo,	 e	 as	 mensagens</p><p>degeneradas	 vão	 se	 manifestar	 nos	 quadros	 psicopatológicos	 da	 criança,	 do</p><p>adolescente	ou	do	adulto.</p><p>As	 experiências	 subjetivas	 primitivas	 fariam	 sua	 aparição,	 na	 clínica,	 não	 via</p><p>conteúdos	verbais,	mas	 sob	a	 forma	mesma	de	 seu	primeiro	 registro,	 constituindo	o	que</p><p>Roussillon	chama	de	 comunicação	mimo-gesto-postural.	Por	não	se	utilizarem	do	verbo,</p><p>parte	 do	 seu	 sentido	 é	 sempre	 inacabada,	 e	 o	 significado	 que	 podem	 adquirir</p><p>depende	da	interpretação	feita	pelo	outro-sujeito	a	quem	se	dirige.	Estando	sujeitas</p><p>à	 interpretação,	 sua	 comunicação,	 seu	 compartilhamento	 e	 reconhecimento</p><p>suscitam	 dificuldades,	 pois	 quanto	 mais	 a	 linguagem	 se	 afasta	 da	 representação</p><p>verbal	e	se	aproxima	de	formas	pré-verbais	(gesto,	 imagem,	movimento),	mais	seu</p><p>sentido	é	aberto,	e	mais	intimamente	depende	do	outro.</p><p>Colocar	 em	 evidência	 o	 papel	 do	 outro	 como	 receptor	 e	 transformador	 da</p><p>mensagem	pulsional	 implica	considerar	que	somente	a	 resposta	do	objeto-analista</p><p>permite	 desenvolver	 as	 potencialidades	 latentes	 da	 mensagem	 inicial.	 Nessa</p><p>perspectiva,	o	que	se	manifesta	via	corpo	–	ato,	comportamento	e	interação	–	não</p><p>precisa	mais	ser	banido	como	obstáculo	ao	trabalho	de	subjetivação,	nem	excluído</p><p>do	campo	de	escuta	clínica;	uma	vez	acolhidos	e	refletidos	pelo	analista,	adquirem</p><p>valor	 intersubjetivo,	 para	 em	 seguida	 poder	 exercer	 sua	 função	 intrassubjetiva</p><p>potencial	(ROUSSILLON,	2008b,	p.	9).</p><p>Vale	a	pena	citar	Roussillon	(2008b,	p.	12),	que	ilustra	suas	ideias	com	o	exemplo</p><p>de	Echo,	uma	paciente	cuja	anorexia	vinha	desaparecendo	no	curso	da	análise,	mas</p><p>que	mantinha	uma	vida	social	extremamente	restrita.	Nas	sessões,	sentada	em	frente</p><p>ao	analista,	Echo	costumava	mostrar-se	imóvel,	apática	e	silenciosa,	falando	muito</p><p>pouco	de	sua	vida	interior:</p><p>No	exemplo	de	Echo,	eu	sou	inicialmente	confrontado	a	um	comportamento.	Este</p><p>tem	um	valor	“auto”,	ele	tem	lugar	na	economia	narcisista	do	sujeito,	ele	não	parece</p><p>particularmente	 endereçado	 a	 ninguém	 em	 particular:	 quando	 ela	 não</p><p>está	 na</p><p>sessão,	 Echo	 se	 “comporta”	 da	 mesma	 maneira.	 Mas	 na	 medida	 em	 que	 esse</p><p>comportamento	é	introduzido	na	sessão,	ele	começa	a	adquirir	um	valor	interativo,</p><p>ou	 seja,	 no	 espaço	 analítico,	 ele	 me	 afeta	 e	 ganha,	 pouco	 a	 pouco,	 valor	 de</p><p>“mensagem	 agida”	 para	 mim.	 Eu	 acabo	 lhe	 atribuindo	 o	 valor	 de	 uma	 forma</p><p>particular	de	transferência,	do	agieren	da	transferência	[…].	Na	medida	em	que	um</p><p>outro	 sujeito	 se	 sente	 mobilizado	 e	 pode	 refletir	 o	 comportamento	 como	 uma</p><p>mensagem	agida	e	endereçada,	se	abre	a	questão	de	uma	dimensão	intersubjetiva	do</p><p>comportamento	 e	 de	 sua	 ação	 sobre	 o	 outro.	 Nós	 passamos	 assim</p><p>progressivamente	 de	 um	 comportamento	 anônimo	 a	 uma	 forma	 de	 entre	 “eus”</p><p>(tradução	livre).</p><p>Sobre	a	técnica</p><p>Muitos	 autores	 apontam	 a	 insuficiência	 dos	 recursos	 simbólicos	 como	 uma</p><p>importante	 característica	 não	 só	 dos	 pacientes	 com	 transtornos	 alimentares,	 mas</p><p>dos	analisandos	do	nosso	tempo	de	forma	geral.	Para	Marucco	(2007,	p.	132),	o	ato</p><p>e	o	soma	constituem	categorias	de	fronteira	cujas	manifestações	são	cada	vez	mais</p><p>presentes	 na	 clínica	 contemporânea.	 Kristeva	 (2002,	 p.	 16)	 confirma	 que	 as</p><p>dimensões	 do	 ato	 e	 do	 corpo	 ocupam	 cada	 vez	 mais	 espaço	 na	 clínica	 atual,	 e</p><p>ressalta	que,	 apesar	da	variedade	de	“novas	 sintomatologias”,	haveria,	 “unindo-as,</p><p>um	 denominador	 comum:	 a	 dificuldade	 de	 representar”.	 O	 ato	 e	 o	 corpo	 são</p><p>considerados	categorias	de	fronteira	porque,	quanto	mais	sua	realidade	se	apresenta,</p><p>mais	próximos	estamos	do	campo	das	intensidades	e	mais	distantes	do	registro	da</p><p>representação.</p><p>O	trabalho	com	o	não	simbolizado,	tão	presente	nas	análises	de	pacientes	com</p><p>transtornos	 alimentares,	 exige,	 portanto,	 alternativas	 à	 interpretação,	 que	 seria</p><p>incapaz	de	atingir	–	afetar,	mover	e	transformar	–	registros	ou	inscrições	aquém	da</p><p>palavra.	A	clínica	com	esses	pacientes	se	dá	principalmente	no	plano	da	experiência</p><p>e	 manejo	 dos	 afetos,	 ou	 plano	 sensível,	 e	 a	 produção	 de	 sentido	 em	 muitos</p><p>momentos	se	dá	pelo	compartilhamento	de	estados	emocionais	com	o	analista.</p><p>Safra	(2005,	p.	14)	se	pergunta:	“Como	falar	de	significados	reprimidos,	se	há	até</p><p>mesmo	 a	 ausência	 da	 capacidade	 de	 significar	 e	 de	 dar	 sentido?”	 Como	 vimos,</p><p>quando	 as	 palavras	 faltam	 é	 a	 partir	 do	 corpo,	 das	 ações	 e	 dos	 afetos	 que	 elas</p><p>surgirão.	Nesses	casos,	as	 interpretações	necessitam	ser	precedidas	pela	criação	de</p><p>um	setting	que	permita	a	construção	de	estruturas	psíquicas	básicas	do	sujeito.</p><p>Deve-se	considerar	que	o	sentido	latente	trazido	à	tona	pela	interpretação	como</p><p>concebida	por	Freud	já	está	representado,	ainda	que	esteja	recalcado,	o	que	facilita	o</p><p>trabalho	de	transcrição/tradução	do	analista.	Mas	quando	o	sentido	a	ser	trazido	à</p><p>tona	 é	 rudimentar,	 inacabado	 e	 arredio	 ao	 verbo,	 o	 que	 podem	 as	 palavras	 do</p><p>analista?	É	a	elas	que	devemos	apelar?</p><p>Acredito	 que	 mesmo	 quando	 (ainda)	 não	 articuladas	 como	 interpretação,	 as</p><p>palavras	mantêm	seu	lugar	privilegiado	nessas	análises,	como	não	poderia	deixar	de</p><p>ser.	Dar	nome	ou	domar	pelo	verbo	 sensações	 e	 afetos	 em	estado	bruto,	porém,</p><p>exige	que	o	analista	encontre	“palavras	com	mais	capacidade	sensorial”	(FONTES,</p><p>2010,	 p.	 20).	 Ao	 tentar	 ilustrar	 o	 que	 chama	 de	 potencial	 de	 simbolização	 do	 processo</p><p>analítico,	Garcia	(1998)	relata	o	forte	efeito	que	o	uso	da	palavra	consistente	teve	sobre</p><p>uma	paciente.	O	autor	faz	breve	referência	à	análise	de	uma	mulher	que	sofria	de</p><p>grave	anorexia.	Em	um	momento	particularmente	difícil	do	tratamento,	o	analista</p><p>tentou	dizer	algo	que	pudesse	provocar	novas	associações	e	retirar	a	paciente	de	seu</p><p>imobilismo.	Ao	final	de	uma	 interpretação	“mais	 longa	que	útil”,	Garcia	 lhe	disse</p><p>que	“ela	comunicava	seu	sofrimento	como	se	tentasse	alcançar	uma	sensação	que	fosse	consistente”</p><p>(p.	 39	 –	 grifos	 meus).	 Após	 esta	 intervenção,	 houve	 um	 profundo	 e	 duradouro</p><p>silêncio.	 Na	 sessão	 seguinte,	 após	 momentos	 de	 quietude	 inicial,	 a	 paciente</p><p>descreveu	com	muita	emoção	sua	experiência	da	sessão	anterior.	Garcia	(op.	cit.,	p.</p><p>39)	escreve:</p><p>disse-me	que	ao	ouvir	a	palavra	consistente,	teve	uma	sensação	estranha	pelo	corpo,</p><p>mas	 que	 não	 era	 desagradável.	 Aos	 poucos	 foi	 tendo	 uma	 vivência	 de</p><p>reconhecimento	de	si	mesma,	que	me	disse	nunca	ter	experimentado	antes	e	que	se</p><p>sentiu	muito	grata	a	mim.</p><p>Para	 o	 autor,	 o	 impacto	 dessa	 intervenção	 não	 se	 deveu	 à	 libertação	 de	 uma</p><p>representação	do	 jugo	da	 repressão.	A	palavra	 consistente	 teria	 proporcionado	 uma</p><p>experiência	de	limites,	de	corporeidade	e	de	preenchimento	que	ocupou	o	lugar	das</p><p>queixas	monótonas	e	das	palavras	vazias,	contornando	o	corpo	da	paciente	“tal	qual</p><p>acontece	quando	uma	criança	enluva	com	 traços	de	 lápis	 sua	pequenina	mão”	 (p.</p><p>39).</p><p>Citando	Kristeva	 (2002),	Fontes	 (2010,	p.	38)	 lembra	que	a	espécie	humana	se</p><p>caracteriza	pela	capacidade	de	representar,	mas	desde	que	a	representação	psíquica</p><p>esteja	ancorada	no	corpo,	uma	vez	que	“não	há	despertar	do	sujeito	enquanto	suas</p><p>percepções	e	sensações	não	ganham	significado”.	Para	Kristeva,	a	possibilidade	de</p><p>significar	percepções	e	sensações	pela	via	da	palavra	depende	de	o	analista	ter	o	que</p><p>ela	 chama	 de	 “sorte	 eventual	 de	 metabolizar	 a	 autossensualidade	 inominável	 em</p><p>discurso	conciliável”	(FONTES,	p.	20).	Talvez	tenha	sido	exatamente	isso	o	que	se</p><p>deu	 no	 episódio	 narrado	 por	 Garcia:	 o	 uso	 do	 termo	 consistente	 evocou	 a</p><p>sensorialidade,	sendo	por	isso	capaz	de	instituir	a	ligação	do	corpo	à	palavra.</p><p>Fontes	 (2010)	menciona	ainda	o	caso	de	uma	paciente	obesa	que	usava	muito	a</p><p>palavra	 soberba;	 a	 analista	 brinca	 com	 ela	 “sobre	 tratar-se	 de	 uma	 palavra	 gorda,</p><p>cheia	de	‘b’s’”.	A	mesma	paciente	mostrou	recear	seu	grande	entusiasmo	com	certa</p><p>conquista,	então	a	analista	perguntou	se	ela	ia	explodir	e	apontou	seu	medo	de	ficar</p><p>cheia	de	si.	Outra	paciente,	alcoolista,	costumava	“grudar”	em	seus	objetos	amorosos,</p><p>e	para	nomear	 tais	movimentos	 a	 analista	usou	 a	palavra	 ventosa.	A	paciente	disse</p><p>que	a	palavra	correspondia	fisicamente	ao	que	sente	(p.	94-97).</p><p>Quando	conectadas	ao	corpo,	portanto,	as	palavras	são	cheias	–	de	sensorialidade</p><p>e	pulsionalidade	–	e	têm	verdadeiro	significado	para	o	sujeito.	Dito	de	outra	forma,</p><p>as	palavras	têm	efeito	e	promovem	simbolização	quando	se	engancham	à	sua	matriz</p><p>sensorial.</p><p>Corpo	interpretante</p><p>Tendo	 investigado	 aspectos	 da	 comunicação	 verbal	 nas	 análises	 que	 ora</p><p>examinamos,	chegamos	a	outra	pergunta:	Será	que	de	alguma	forma	a	interpretação</p><p>do	não	verbal	se	dá	na	capacidade	gestual	do	analista	–	que	lhe	permitiria	responder</p><p>ao	paciente	no	mesmo	registro	usado	por	ele?</p><p>Fédida,	em	seus	comentários	na	banca	de	doutorado	de	Fontes,	indaga:</p><p>Será	 que	 nós	 evoluímos	 em	 nossa	 concepção	 de	 interpretação?	 Essa	 que</p><p>produzimos	no	tratamento	e	que	se	forma	no	interior	do	material	de	sensações	que</p><p>o	 analista	 recebe	 vindas	 de	 seus	 pacientes?	 Refiro-me	 a	 esse	 não	 verbal,	 se	 os</p><p>senhores	 assim	o	 querem,	melhor	 seria	 designá-lo	 como	 sensorial,	 como	 sensual,</p><p>como	 sexual	 não	 agido	 na	 sessão.	 Será	 que	 a	 interpretação	 forma-se	 nessa</p><p>capacidade	 gestual	 que	 permite	 em	 seguida	 ao	 paciente	 receber	 as	 palavras	 do</p><p>analista	 com,	digamos,	o	material	que	é	de	 sua	própria	 experiência	 transferencial?</p><p>(FONTES,	2010,	p.	131-132).</p><p>Boraks	 (2012)	 relata	um	caso	em	que	fica	evidente	a	 importância	de	o	analista</p><p>reagir	 ao	 paciente	 com	 material	 que	 é	 da	 sua	 própria	 experiência	 transferencial.	 Sua</p><p>paciente	buscava	contundentemente	comunicar-se	no	registro	corporal.	Após	uma</p><p>sessão	 em	que	 a	 analisanda	 usou	 a	 sensorialidade	 com	 especial	 intensidade	 como</p><p>meio	de	manifestar	seu	desespero,	através	de	coceiras,	tom	de	voz,	intensidade	das</p><p>palavras	e	gestual,	Boraks,	pela	primeira	vez,	ao	se	despedir,	tomou	sua	mão	entre	as</p><p>suas	duas	mãos	–	e	esta	resposta	corporal	da	analista	à	analisanda</p><p>marcou	uma	virada</p><p>na	análise.</p><p>Casos	 assim	 confirmam	 a	 necessidade	 de	 indagarmos	 o	 que	 exigem	 certas</p><p>análises,	tanto	em	termos	de	recepção	do	material	pelo	analista	quanto	de	sua	devolução</p><p>para	o	paciente.	Como	diz	Fédida,	“não	se	trata	de	modificar	radicalmente	a	técnica,</p><p>mas	 as	 intervenções	 do	 analista	 vão	 precisar	 levar	 em	 conta	 as	 experiências</p><p>corporais	 originais	 que	 se	 encontram	 presentes	 na	 transferência”	 (citado	 por</p><p>FONTES,	2010,	p.	130).</p><p>Para	Roussillon	(2005,	p.	376),	nos	casos	em	que	ainda	é	preciso	constituir	uma</p><p>pele	psíquica,	a	interpretação	talvez	esteja	na	capacidade	gestual.	Ele	se	pergunta	se</p><p>“as	 coisas	 ditas	 em	 palavra	 devem	 também	 encontrar	 uma	 forma	 corporal	 de</p><p>expressão,	ser	também	ditas	‘no	corpo’”	(tradução	livre),	e	pondera:	para	descobrir</p><p>como	 devolver	 ao	 paciente	 o	 que	 ele	 nos	 endereça	 pela	 via	 do	 corpo	 e	 da</p><p>motricidade,	 será	 que	 não	 devo/posso	 falar	 com	 meu	 corpo?	 No	 face	 a	 face	 o</p><p>corpo	 do	 analista	 fala	 o	 tempo	 todo,	 mas	 será	 que	 os	 analistas	 se	 dão	 conta	 da</p><p>importância	desse	 tipo	de	 intervenção?	E	mesmo	estando	atrás	do	divã,	não	seria</p><p>nossa	 voz	 cheia	 de	 corpo,	 será	 que	 nosso	 corpo	 não	 está	 sempre	 presente	 nas</p><p>inflexões,	 no	 tom,	 no	 tamanho	 de	 nossas	 frases?	 E	 será	 que	 na	 formação</p><p>psicanalítica,	 por	 exemplo,	 não	 se	 fala	 só	 do	 que	 o	 analista	 deve	 ou	 não	 dizer,</p><p>esquecendo-se	da	forma,	do	tom,	do	ritmo?	Não	seria	preciso	atentar	também	para	o</p><p>gestual,	experimentando	formas	de	expressão	cujo	tom	seja	próximo	à	emoção	do</p><p>outro?	 A	 ideia	 é	 que	 o	 corpo	 do	 analista	 também	 seja	 interpretante,	 afinal	 pode</p><p>haver	 um	 levantar	 de	 sobrancelhas	 ou	 um	 franzir	 de	 testa	 que	 diz	 tudo,	 de	 uma</p><p>forma	que	a	palavra	não	seria	capaz	de	fazer,	o	que	é	bom	(ROUSSILLON,	2012a).</p><p>O	face	a	face	e	o	diálogo	corporal	podem	oferecer	um	modo	de	expressão	visual</p><p>aos	conteúdos	psíquicos	em	dificuldade	de	expressão	linguageira,	ou	em	sofrimento</p><p>representacional.	 Conclui-se	 que	 o	 analista	 não	 pode	 negligenciar	 seu	 corpo,	 sua</p><p>aparência,	 seu	 cheiro	 –	 toda	 a	 sua	 expressividade,	 enfim	 –,	 pois	 esses	 elementos</p><p>suscitam	algo	na	relação	analítica.	Como	vimos,	as	experiências	subjetivas	primitivas</p><p>só	 adquirem	 valor	 de	 mensagem	 quando	 a	 resposta	 do	 ambiente	 reconhece	 seu</p><p>sentido	 como	 tal.	 Se	 as	 manifestações	 corporais	 do	 paciente	 têm	 um	 sentido</p><p>protosimbólico	 à	 espera	 de	 um	 outro	 que	 lhe	 dê	 seu	 sentido	 acabado,	 podemos</p><p>supor	 também	 que	 a	 reação	 corporal,	 gestos	 ou	 ações	 do	 analista	 em	 reação	 às</p><p>mensagens	 emitidas	 pelos	 pacientes	 sejam	 sustentáculos	 do	 processo	 de</p><p>simbolização.</p><p>Ao	deixar-se	 atingir	 e	mostrar-se	 afetado,	 o	 analista	 impede	que	 as	mensagens</p><p>emitidas	na	linguagem	do	corpo	e	dos	afetos	degenerem.	Dessa	forma,	o	processo</p><p>de	simbolização	posto	em	marcha	pela	comunicação	 incipiente	não	se	 interrompe</p><p>nem	cai	no	vazio;	as	 trilhas	não	verbais,	sempre	abertas,	serão	a	princípio	as	mais</p><p>percorridas,	até	que	os	elos	construídos	no	campo	analítico	levem	a	um	novo	grau</p><p>de	simbolização.</p><p>Referências</p><p>BORAKS,	 R.	 Psicossomática	 –	 Comunicação	 Deformada.	 Reverie	 Revista	 de</p><p>Psicanálise,	5(1):55-65,	2012.</p><p>DE	CICCO,	M.	Transtornos	alimentares	e	a	função	do	analista	na	clínica	do	não-</p><p>representado.	 In:	 GONZAGA,	 A.	 P.;	 WEINBERG,	 C.	 (orgs.)	 Psicanálise	 de</p><p>transtornos	alimentares.	São	Paulo:	Primavera	Editorial,	2010.	p.	121-139.</p><p>FONTES,	I.	Psicanálise	do	sensível:	fundamentos	e	clínica.	Aparecida,	SP:	Ideias	&	Letras,</p><p>2010.</p><p>GARCIA,	 J.	 C.	 O	 ato	 analítico	 e	 seu	 potencial	 de	 simbolização.	 Tese	 de	 mestrado,</p><p>Universidade	de	São	Paulo,	São	Paulo,	1998.</p><p>KRISTEVA,	J.	As	novas	doenças	da	alma.	Rio	de	Janeiro:	Rocco,	2002.</p><p>MARUCCO,	N.	C.	Entre	a	 recordação	e	o	destino:	a	 repetição.	São	Paulo,	Revista</p><p>Brasileira	de	Psicanálise,	41(1):121-136,	2007.</p><p>ROUSSILLON,	R.	La	 “conversation”	psychanalytique:	 un	divan	 en	 latence.	Revue</p><p>française	de	Psychanalyse,	69(2):365-381,	2005.</p><p>__________.	 [2008a]	 Corps	 et	 actes	 messagers.	 In:	 CHOUVIER,	 B.;</p><p>ROUSSILLON,	R.	 (orgs.)	Corps,	 acte	 et	 symbolisation	 –	Psychanalyse	 aux	 frontières.</p><p>Bruxelas:	Groupe	DE	BOECK,	2010.	p.	23-37.</p><p>__________.	Le	jeu	et	l’entre	je(u).	Paris:	Presses	Universitaires	de	France,	2008b.</p><p>__________.	Conferência	Teoria	 da	 simbolização:	 a	 simbolização	 primária,	 realizada	 em</p><p>26/05/12	no	Instituto	de	Psicologia	da	USP.	Anotações	pessoais,	2012a.</p><p>__________.	As	condições	da	exploração	psicanalítica	das	problemáticas	narcísico-</p><p>identitárias.	Alter	–	Revista	de	Estudos	Psicanalíticos,	30(1):7-32,	2012b.</p><p>SAFRA,	 G.	 [2005].	A	 face	 estética	 do	 self:	 teoria	 e	 clínica.	 Aparecida,	 SP:	 Ideias	 &</p><p>Letras/São	Paulo:	Unimarco	Editora,	2005.</p><p>ZYGOURIS,	R.	Psicanálise	e	psicoterapia.	São	Paulo:	Via	Lettera,	2011.</p><p>A	ANOREXIA	E	A	BULIMIA	EM	FREUD</p><p>Maria	Helena	Fernandes</p><p>Se	 Freud	 não	 se	 deteve	 sobre	 a	 questão	 da	 anorexia	 e	 menos	 ainda	 sobre	 a</p><p>temática	da	bulimia,	isso	não	significa	que,	ao	longo	da	construção	de	sua	obra,	ele</p><p>não	tenha	pontuado	e	refletido,	de	maneira	explícita,	sobre	a	complexidade	desses</p><p>quadros	 clínicos.	 Um	 texto	 trata	 diretamente	 de	 um	 caso	 de	 anorexia;	 outros,</p><p>entretanto,	 assinalam	 apenas	 a	 presença	 do	 sintoma	 anoréxico	 ou	 bulímico	 na</p><p>evolução	 de	 diversos	 quadros	 clínicos.	 Em	 alguns	 de	 seus	 textos	 técnicos,	 Freud</p><p>chega	a	 fazer	referência	às	dificuldades	no	manejo	 terapêutico	desses	casos,	e,	em</p><p>outros	 textos,	delineia	noções	 teóricas	que	certamente	 abriram	várias	perspectivas</p><p>de	pesquisa	sobre	essas	patologias.</p><p>De	 uma	 forma	 geral,	 Freud	 tenta	 compreender	 a	 anorexia	 por	 intermédio	 do</p><p>modelo	 da	 histeria,	 assinalando	 a	 importância	 da	 oralidade	 na	 organização	 da</p><p>sexualidade,	sem,	no	entanto,	deixar	de	enfatizar	a	relação	desse	quadro	clínico	com</p><p>a	melancolia.	No	que	diz	respeito	à	bulimia,	suas	referências	diretas	são	ainda	mais</p><p>escassas.	Contudo,	 seu	 interesse	pelas	adições,	 assim	como	o	conceito	de	neurose</p><p>atual	 e	 as	 elaborações	 teóricas	 sobre	 os	 processos	 de	 descarga	 da	 excitação</p><p>pulsional,	puderam	fornecer	pistas	importantes	para	a	compreensão	da	bulimia.</p><p>Sendo	assim,	neste	capítulo,	pretendemos	fazer	um	passeio	pelas	referências	de</p><p>Freud	à	anorexia	e	à	bulimia,	com	o	objetivo	de	colocar	em	evidência	os	modelos</p><p>teóricos	que	 inspiraram	mais	 tarde	 as	 diversas	 contribuições	pós-freudianas	 sobre</p><p>essas	patologias.</p><p>As	 primeiras	 referências	 à	 anorexia:	 a	 importância	 do	 elemento</p><p>traumático</p><p>Na	obra	 freudiana,	o	único	 relato	de	caso	de	anorexia	 foi	publicado	em	1893.</p><p>Trata-se	de	uma	mulher	que	desenvolve	o	quadro	após	o	nascimento	do	primeiro</p><p>filho.	 Nessa	 ocasião,	 a	 amamentação	 do	 bebê	 precisou	 ser	 interrompida,	 duas</p><p>semanas	após	o	nascimento,	em	decorrência	do	quadro	anoréxico	da	mãe	e	a	sua</p><p>consequente	 falta	de	 leite.	Os	mesmos	 sintomas	 reaparecem	 três	 anos	mais	 tarde,</p><p>no	momento	do	nascimento	do	segundo	bebê;	Freud	(1893a)	relata	que	o	quadro</p><p>anoréxico	 se	 faz	 acompanhar	de	vômitos,	distúrbios	gastrointestinais	 e	depressão.</p><p>Como	tratamento,	Freud	realiza	três	sessões	de	hipnose,	após	as	quais	a	mãe	retoma</p><p>o	aleitamento	do	bebê	 até	o	oitavo	mês.	Um	ano	mais	 tarde,	Freud	é	novamente</p><p>solicitado,	 pois	 o	 nascimento	 de	 um	 terceiro	 bebê	 reeditou	 os	mesmos	 sintomas.</p><p>Mais	uma	vez,	ele	lança	mão	das	sessões	de	hipnose	e	o	aleitamento	é	retomado.</p><p>A	 essa	 altura	 da	 construção	 de	 seu	 pensamento,	 Freud	 (1893a)	 classifica	 esse</p><p>caso	entre	as	“histerias	de	ocasião”	e	assinala,	de	acordo	com	o	psiquiatra	francês	C.</p><p>Lasègue,	 tratar-se	 de	 uma	 forma	 de	 “perversão	 da	 vontade”.	 No	 entanto,	 a</p><p>dimensão	melancólica,	que	será	enfatizada	por	Freud	mais	adiante,	já	aparece	nessa</p><p>ocasião	claramente	assinalada:	“[…]	onde	está	presente	uma	neurose	–	e	não	estou</p><p>me	 referindo	 explicitamente	 apenas	 à	 histeria,	 mas	 ao	 status	 nervosus</p><p>em	 geral	 –</p><p>temos	de	supor	a	presença	primária	de	uma	tendência	à	depressão	e	à	diminuição	da</p><p>autoconfiança,	tal	como	as	encontramos	muito	desenvolvidas	e	individualizadas	na</p><p>melancolia”	(p.	176-177).	Ao	mesmo	tempo,	é	interessante	notar	que	Freud	atribui	à</p><p>depressão	um	estatuto,	por	assim	dizer,	fundamental	na	organização	neurótica.</p><p>Tem	 sido	 assinalado	 que	 esse	 caso	 ilustra	 de	 forma	 privilegiada	 a	 equação</p><p>simbólica	 comer-amamentar.	 A	 meu	 ver,	 além	 de	 colocar	 em	 evidência	 as</p><p>dificuldades	 originárias	 na	 relação	 mãe-bebê,	 ele	 remete,	 de	 forma	 exemplar,	 às</p><p>questões	relativas	à	feminilidade,	equacionadas	a	partir	da	maternidade	e	da	função</p><p>alimentar	desempenhada	pelo	corpo	da	mulher.	Certamente	não	é	à	toa	que	Freud</p><p>(1893a,	 p.	 179)	 enfatiza	 a	 potencialidade	 traumática	 do	 parto	 na	 vida	 de	 uma</p><p>mulher:	 “Um	 primeiro	 parto,	 afinal,	 é	 o	 maior	 choque	 ao	 qual	 está	 sujeito	 o</p><p>organismo	 feminino	 e,	 em	 consequência	 dele,	 uma	 mulher	 geralmente	 produz</p><p>alguns	 sintomas	neuróticos,	que	podiam	estar	 latentes	em	sua	disposição”.	Ora,	 a</p><p>potencialidade	traumática	do	primeiro	parto	e	também,	poderíamos	acrescentar,	da</p><p>primeira	 gravidez,	 parece	 residir	 justamente	 no	 fato	 de	 que	 esses	 acontecimentos</p><p>acometem	 diretamente	 o	 corpo	 da	 mulher,	 promovendo	 transformações	 físicas</p><p>espetaculares	e	imprevisíveis.</p><p>A	primeira	gravidez	e	o	primeiro	parto	poderiam,	então,	ter	uma	potencialidade</p><p>traumática	 ao	 conterem,	 simultaneamente,	 a	 dimensão	 do	 excesso	 e	 o	 elemento</p><p>surpresa,	que,	segundo	Freud,	são	dois	elementos	constitutivos	do	trauma.	Dito	de</p><p>outro	 modo,	 com	 a	 primeira	 gravidez,	 a	 mulher	 se	 defronta	 com	 essa</p><p>imprevisibilidade,	 esse	 absoluto	 desconhecimento	 frente	 às	 sensações	 físicas	 que</p><p>irão	 se	 processar	 no	 seu	 corpo.	 Tais	 sensações	 são	 acompanhadas	 de</p><p>transformações	concretas	que,	ocorrendo	no	interior	do	corpo,	são	visíveis	também</p><p>no	exterior	dele.	A	continuidade	dessas	transformações,	ao	 longo	dos	nove	meses</p><p>de	gestação,	 culmina	na	 experiência	do	primeiro	parto.	Tal	 experiência	 talvez	 seja</p><p>um	 momento	 radical	 do	 ponto	 de	 vista	 corporal,	 pela	 intensidade	 das</p><p>transformações	 que	 a	mulher	 experimenta	 no	 interior	 de	 si	mesma	 e,	 ainda,	 pela</p><p>vivência	da	dor.</p><p>Além	disso,	após	o	parto,	a	mulher	se	depara	com	o	fato	de	seu	corpo	ter	agora</p><p>a	nova	função	de	alimentar	um	outro	ser.	A	função	alimentar,	exercida	pelo	corpo</p><p>materno,	 provavelmente	 encontra-se	 no	 cruzamento	 de	 questões	 que	 engajam</p><p>diretamente	 o	 corpo	 e	 a	 feminilidade,	 em	uma	problemática	 exclusiva	 da	mulher.</p><p>Talvez	essa	especificidade	do	corpo	feminino,	como	aquele	que	também	alimenta,</p><p>possa	desempenhar	um	papel	na	predominância	dos	distúrbios	alimentares	entre	as</p><p>mulheres,	já	que	a	transformação	de	seu	corpo	na	puberdade	atesta	sua	condição	de</p><p>poder	 engravidar	 e,	 consequentemente,	 amamentar,	 refletindo	 assim	 sua</p><p>semelhança	com	o	corpo	materno	(FERNANDES,	2012;	2013a).</p><p>Dois	anos	depois	de	 ter	discutido	o	caso	de	anorexia	abordado	anteriormente,</p><p>Freud	publica,	 em	1895,	 a	história	do	 caso	de	Emmy	von	N.,	 na	qual	 a	 anorexia</p><p>aparece	como	um	dos	sintomas	dominantes.	Emmy	apresentava	também	uma	fobia</p><p>de	 beber	 água	 e	 se	 queixava	 de	 violentas	 e	 persistentes	 dores	 de	 estômago,</p><p>apresentando	ainda,	de	forma	alternada,	amenorreia	e	dismenorreia.	O	tratamento</p><p>preconizado	por	Freud	(1895a)	é	uma	combinatória	de	sugestão	hipnótica,	banhos</p><p>quentes,	massagens	 e	 separação	 do	meio	 familiar.	Desde	 as	 primeiras	 sessões	 de</p><p>hipnose,	Emmy	evoca	uma	série	de	lembranças	precoces	que	estariam	associadas	à</p><p>origem	de	 seus	 terrores	 e	 repugnâncias.	Dentre	os	 eventos	 trágicos	da	vida	dessa</p><p>mulher,	merece	 destaque	 a	 brutal	morte	 do	marido	 diante	 dela,	 precisamente	 no</p><p>momento	em	que	Emmy	encontrava-se	acamada	e	impotente	para	socorrê-lo,	pois</p><p>acabara	de	dar	à	luz	uma	menina.</p><p>É	ela	quem	sugere	a	Freud	deixá-la	falar	livremente,	dando	a	ele	a	pista	do	que</p><p>mais	 tarde	 viria	 a	 ser	 conhecido	 como	 o	método	 da	 associação	 livre.	 Suas	 dores</p><p>gástricas	 têm	 início	 após	 a	 morte	 do	 marido,	 época	 em	 que	 Emmy	 perde</p><p>completamente	 o	 apetite,	 comendo	 somente	 por	 obrigação.	 Encontramos	 aqui</p><p>também	os	dois	elementos	que	definem	a	potencialidade	traumática	dessa	situação:</p><p>o	elemento	surpresa	e	o	excesso.	Emmy	encontra-se	exposta	à	morte	inesperada	do</p><p>marido	 justamente	 após	 o	 parto	 de	 sua	 segunda	 filha.	 O	 excesso	 aqui	 parece</p><p>consistir	no	efeito	cumulativo	de	duas	situações	com	potencialidade	traumática.</p><p>Certa	 vez,	 ao	 atendê-la	 justamente	 na	 hora	 do	 almoço,	 Freud	 a	 surpreende</p><p>jogando	a	sobremesa	pela	janela	para	os	filhos	do	zelador.	Ele	nota,	então,	que	ela</p><p>deixa	no	prato	mais	da	metade	de	sua	refeição.	Ao	interrogá-la	sobre	isso,	ele	obtém</p><p>como	resposta	que	ela	não	tem	o	hábito	de	comer	e	que	nisso	se	parece	com	seu</p><p>pai.	Nessa	ocasião,	Freud	descobre,	ainda,	que	ela	não	bebe	água,	mas	unicamente</p><p>leite,	 café	 ou	 chocolate,	 atribuindo	 à	 água	 o	 poder	 de	 fazer	 mal	 à	 sua	 digestão.</p><p>Lançando	mão	de	seu	bastão	de	médico,	Freud	solicita	imediatamente	um	exame	de</p><p>urina,	 que	 se	 encontra	 excessivamente	 concentrada,	 e	 prescreve	 à	 sua	 paciente	 o</p><p>aumento	da	ingestão	de	água	e	de	alimentos.	Quando,	em	seguida,	ele	a	proíbe	de	se</p><p>desfazer	de	sua	sobremesa	e	ordena	a	 ingestão	de	água	mineral,	Emmy	se	 irrita	e</p><p>retruca:	 “Eu	 o	 farei	 porque	 o	 senhor	 está	mandando,	mas	 eu	 posso	 desde	 já	 lhe</p><p>dizer	que	 isso	vai	 acabar	mal,	porque	é	contrário	à	minha	natureza	e	meu	pai	 era</p><p>como	eu”	(p.	63).	Emmy	anuncia,	assim,	de	forma	eloquente,	o	fracasso	inevitável</p><p>da	 prescrição	 do	 médico	 Freud.	 Embora	 Freud	 não	 tenha	 destacado</p><p>particularmente	esse	aspecto,	transparece	aqui	a	identificação	de	Emmy	com	o	pai.</p><p>De	fato,	no	dia	seguinte,	tendo	seguido	suas	prescrições,	Freud	encontra	Emmy</p><p>deprimida,	mal-humorada	e	 se	queixando	de	dores	gástricas.	Ela	não	 lhe	poupa	a</p><p>clássica	reprimenda:	“Agora	vai	ser	preciso	que	eu	fique	de	dieta	total	durante	cinco</p><p>a	oito	dias	antes	de	poder	tolerar	ingerir	qualquer	coisa”	(p.	63).	Freud	tenta	em	vão</p><p>explicar-lhe	que	suas	dores	relacionam-se	à	sua	angústia	e	não	à	ingestão	excessiva</p><p>de	 comida,	 porém,	 esses	 apelos	 pedagógicos	 não	 surtem	 o	 menor	 efeito	 na</p><p>paciente.	 Além	 disso,	 ainda	 nesse	 dia,	 ele	 não	 consegue	 hipnotizá-la	 para	 fazê-la</p><p>adormecer,	como	era	costume	ao	final	das	sessões.</p><p>Diante	disso,	e	acuado	pelo	impasse	colocado	por	Emmy,	Freud	apela	para	sua</p><p>autoridade	médica	e	ameaça	abandonar	o	tratamento	caso	ela,	dentro	de	24	horas,</p><p>não	tenha	se	rendido	aos	seus	argumentos.	No	dia	seguinte,	Freud	a	encontra	dócil</p><p>e	submissa,	porém	ao	interrogá-la	sobre	o	que	pensa	a	respeito	da	origem	de	suas</p><p>dores	 gástricas,	 obtém	a	provocativa	 resposta:	 “Eu	 creio	que	 elas	 vêm	de	minhas</p><p>apreensões,	 mas	 somente	 porque	 o	 senhor	 disse”	 (p.	 63).	 Aqueles	 que	 estão</p><p>habituados	a	lidar	com	jovens	anoréxicas	certamente	não	terão	dificuldade	para	se</p><p>sentir	solidários	com	Freud.	A	certeza	de	um	saber	sobre	o	funcionamento	de	seus</p><p>corpos,	particularmente	no	que	diz	respeito	às	funções	que	envolvem	o	processo	da</p><p>alimentação,	parece	não	aceitar	 interferência,	nem	discussão.	Se,	por	um	lado,	essa</p><p>certeza	pode	parecer	exasperante	para	quem	vai	se	ocupar	desses	casos,	por	outro,</p><p>mostra	 o	 sistema	 fechado	 no	 qual	 essas	 jovens	 se	 encontram	 e	 a	 inutilidade,	 do</p><p>ponto	de	vista	clínico,	de	enfrentá-lo	diretamente.</p><p>Nas	 sessões	 de	 hipnose,	 Emmy	 conta	 suas	 recordações	 traumáticas	 infantis</p><p>diretamente	associadas	ao	problema	alimentar.	Surge	o	relato	de	conflitos	com	sua</p><p>mãe,	que	a	forçava	a	esvaziar	seu	prato	e	a	comer	a	carne	que	ali	estava	até	o	fim,</p><p>causando-lhe	 uma	 forte	 repugnância	 a	 visão	 da	 gordura	 fria	 no	 prato.	 Aparece</p><p>ainda,	mais	 tarde,	 o	 temor	 de	 ser	 contaminada,	 através	 da	 alimentação,	 por	 seus</p><p>irmãos,	um	com	varíola	e	o	outro	com	tuberculose.	Emmy	afirma</p><p>que	ela	se	sentia</p><p>obrigada	 a	não	deixar	 sequer	 transparecer	 seu	medo	ou	 sua	 repulsa.	Freud	 refere</p><p>que,	 após	 essa	 sessão	de	hipnose,	 ela	não	deixa	de	 alimentar-se	por	uma	 semana,</p><p>como	teria	sugerido,	mas	come	e	bebe	sem	dificuldade,	apresentando	uma	melhora</p><p>significativa	no	que	diz	respeito	ao	comportamento	alimentar.</p><p>Em	sua	discussão	sobre	esse	caso,	Freud	(1895a)	salienta	a	escassez	de	sintomas</p><p>conversivos	e	chama	a	atenção	para	as	modificações	do	humor	(particularmente	a</p><p>angústia	e	a	depressão)	e	para	as	fobias	e	abulias	(inibições	da	vontade),	enfatizando</p><p>que	 estas	 últimas	 aparecem	 na	 história	 de	 Emmy	 claramente	 determinadas	 por</p><p>incidentes	traumáticos.	Ele	escreve:</p><p>A	 anorexia	 de	 nossa	 paciente	 oferece	 um	 exemplo	 eloquente	 dessa	 espécie	 de</p><p>abulia.	Ela	come	muito	pouco	porque	os	alimentos	não	lhe	agradam	e,	se	ela	não	os</p><p>encontra	ao	 seu	gosto,	 é	porque	a	 ideia	de	comer	 se	encontra	 ligada,	desde	a	 sua</p><p>infância,	 a	 lembranças	 repugnantes	 cuja	 carga	 afetiva	 não	 sofreu	 nenhuma</p><p>diminuição.	 É	 impossível	 comer,	 ao	 mesmo	 tempo,	 com	 asco	 e	 com	 prazer.	 A</p><p>atenuação	do	asco	provocado	pelas	refeições	não	se	produziu	porque	a	paciente	era</p><p>obrigada,	 a	 cada	 vez,	 a	 reprimi-lo,	 em	 vez	 de	 livrar-se	 dele	 pela	 reação:	 quando</p><p>criança	ela	 se	via	obrigada,	por	medo	de	uma	punição,	a	comer	com	repugnância</p><p>suas	refeições	frias	e,	mais	tarde,	por	consideração	com	seus	irmãos,	ela	se	impedia</p><p>de	exprimir	os	sentimentos	que	experimentava	ao	 longo	das	refeições	em	comum</p><p>(p.	69).</p><p>Pode-se	 dizer	 que	 as	 vivências	 traumáticas	 deixaram	 traços	 psíquicos	 que,</p><p>embora	articulados	à	fantasia,	se	inscreveram	no	corpo.</p><p>De	 fato,	 dois	 anos	 antes	 da	 publicação	 desse	 caso	 em	 Sobre	 o	 mecanismo	 dos</p><p>fenômenos	 histéricos,	 Freud	 (1893b)	 já	 havia	 associado	 a	 repulsa	 da	 comida	 com	 a</p><p>sensação	 de	 asco	 ao	 tentar	 analisar	 diferentes	 formações	 sintomáticas	 na	 histeria.</p><p>Nessa	ocasião,	ele	escreveu:</p><p>Um	dos	sintomas	mais	comuns	da	histeria	é	uma	combinação	de	anorexia	e	vômito.</p><p>Conheço	todo	um	conjunto	de	casos	em	que	a	ocorrência	desse	sintoma	é	explicada</p><p>bem	 simplesmente.	Assim,	 em	uma	paciente	 o	 vômito	 persistiu	 após	 ela	 ler	 uma</p><p>carta	 humilhante	 pouco	 antes	 de	 uma	 refeição,	 ficando	 violentamente	 nauseada</p><p>depois	 disso.	 Em	 outros	 casos,	 a	 repulsa	 da	 comida	 podia	 ser	 definitivamente</p><p>relacionada	ao	fato	de	que,	tributária	da	instituição	da	‘mesa	comum’,	a	pessoa	fosse</p><p>compelida	 a	 comer	 sua	 refeição	 em	 companhia	 de	 alguém	 que	 ela	 detestasse.	 A</p><p>repulsa	 é	 então	 transferida	 da	 pessoa	 à	 comida.	 A	 mulher	 com	 o	 tique	 que</p><p>mencionei	 há	 pouco	 era	 particularmente	 interessante	 a	 esse	 respeito	 [Freud	 se</p><p>refere	aqui	a	Emmy	von	N.].	Comia	excepcionalmente	pouco	e	apenas	sob	pressão.</p><p>Ela	me	 instruiu,	 sob	 hipnose,	 que	 um	 conjunto	 de	 traumas	 psíquicos	 produziam</p><p>eventualmente	esse	sintoma	de	repulsa	à	comida	(p.	44-45).</p><p>Associando	essa	combinação	de	anorexia	e	vômitos	à	histeria,	nota-se	que	Freud</p><p>insiste	na	predominância	de	diversos	fatores	traumáticos.</p><p>Em	Estudos	sobre	a	histeria,	Breuer	descreve	brevemente	o	caso	de	um	garoto	de</p><p>12	anos	que	 repentinamente	 apresenta	um	comportamento	anoréxico	associado	a</p><p>disfagia	 e	 vômitos.	 Esses	 sintomas	 aparecem	 depois	 de	 um	 episódio	 de	 cunho</p><p>sexual:	tendo	entrado	em	um	banheiro	público,	o	garoto	se	depara	com	um	homem</p><p>que	lhe	exibe	o	pênis,	exigindo	que	ele	o	coloque	na	boca.	Porém,	segundo	Breuer</p><p>(1895a,	p.	169),	o	traumatismo	atual	de	ordem	sexual	não	é	suficiente	para	criar	a</p><p>anorexia:	 “Para	 criar	 os	 fenômenos	 de	 anorexia,	 de	 disfagia,	 de	 vômitos,	 a</p><p>concomitância	 de	 muitos	 fatores	 foi	 necessária:	 uma	 predisposição	 nervosa,	 um</p><p>temor,	 a	 irrupção	 do	 sexual	 em	 sua	 forma	 mais	 brutal	 na	 alma	 infantil	 e,	 fator</p><p>determinante,	 a	 representação	 repugnante”.	Além	de	 enfatizar	 o	 trauma	 sexual,	 a</p><p>intenção	de	Breuer,	nessa	ocasião,	é	chamar	a	atenção	para	a	sobredeterminação	do</p><p>sintoma.	Para	que	um	sintoma	qualquer	apareça,	é	necessária	a	ação	simultânea	de</p><p>vários	 fatores.	 Quem	 quer	 que	 se	 dedique	 ao	 trabalho	 psicanalítico,	 diz	 Freud</p><p>(1905a,	p.	44),	“logo	descobrirá	que	um	sintoma	tem	mais	de	um	significado	e	serve</p><p>para	 representar	 simultaneamente	 diversos	 processos	mentais	 inconscientes.	E	 eu</p><p>gostaria	 de	 acrescentar	 que,	 na	 minha	 opinião,	 um	 único	 processo	 ou	 fantasia</p><p>mental	inconsciente	dificilmente	bastará	para	a	produção	de	um	sintoma”.</p><p>Além	 de	 salientar	 que	 Freud,	 desde	 o	 início,	 recusa	 uma	 causalidade	 psíquica</p><p>direta	e	esquemática,	é	igualmente	importante	assinalar	aqui	que	a	teoria	do	trauma</p><p>sofre	 transformações	 significativas	 ao	 longo	 da	 evolução	 de	 seu	 pensamento.	 Tal</p><p>teoria	 vai	 ganhando	 espessura	 à	 medida	 que	 evolui,	 cada	 vez	 mais,	 a	 partir	 de</p><p>premissas	que	se	constroem	sobre	o	funcionamento	interior	de	um	aparelho	psíquico.</p><p>Com	isso,	a	noção	de	trauma	passa	da	ideia	de	um	trauma	produzido	por	um	fator</p><p>externo	 para	 a	 de	 algo	 que	 não	 foi	 possível	 ser	 absorvido,	 naquele	momento	 da</p><p>existência	 do	 sujeito	 e	 por	 uma	 infinidade	 de	 motivos,	 no	 interior	 do	 aparelho</p><p>psíquico.	Para	utilizar	uma	metáfora	 alimentar	pode-se	dizer	que	 é	 trauma	 aquilo	 que</p><p>não	pode	ser	digerido.</p><p>Oralidade	e	sexualidade</p><p>No	 mesmo	 ano	 da	 publicação	 dos	Estudos	 sobre	 a	 histeria,	 Freud	 (1895b),	 no</p><p>Manuscrito	 G,	 enfatiza	 a	 dimensão	 melancólica	 da	 anorexia.	 Já	 nessa	 ocasião,</p><p>destaca	que,	na	melancolia,	nos	deparamos	com	o	mesmo	afeto	do	luto,	isto	é,	“o</p><p>lamento	amargurado	de	alguma	coisa	perdida”	(p.	93).	Freud	tenta	compreender	a</p><p>melancolia	 “como	 uma	 perda	 no	 domínio	 da	 vida	 pulsional”.	 Sendo	 assim,	 ele</p><p>escreve:	 “A	 neurose	 alimentar	 paralela	 à	melancolia	 é	 a	 anorexia.	 A	 anorexia	 das</p><p>jovens,	que	é	um	problema	bem	conhecido,	aparece,	após	uma	observação	rigorosa,</p><p>como	uma	forma	de	melancolia	nos	sujeitos	com	a	sexualidade	ainda	inacabada.	A</p><p>paciente	 assegura	 não	 comer	 simplesmente	 porque	 ela	 não	 tem	 fome.	 Perda	 de</p><p>apetite	 e,	 no	 domínio	 sexual,	 perda	 de	 libido”	 (p.	 93).	 Levando	 adiante	 sua</p><p>comparação,	Freud	conclui	que	“a	melancolia	é	um	luto	provocado	por	uma	perda</p><p>de	libido”	(op.	cit.,	p.	93).</p><p>Poderíamos	 nos	 servir	 dessa	 marca	 do	 pensamento	 freudiano,	 essa	 fecunda</p><p>maneira	 de	 raciocinar	 por	 comparações	 e	 analogias,	 para	 pensar	 a	 anorexia	 das</p><p>adolescentes	 como	 uma	 forma	 de	 expressão	 de	 um	 “lamento	 amargurado	 de</p><p>alguma	 coisa	 perdida”.	Mas,	 de	 que	 perda	 se	 trata?	A	 perda	 no	 domínio	 da	 vida</p><p>pulsional,	 à	 qual	 se	 refere	 Freud	 para	 pensar	 a	 melancolia,	 talvez	 encontre	 seu</p><p>correlato	na	anorexia	pela	frequência	com	a	qual	essas	meninas	deixam	entrever	a</p><p>vivência	de	uma	decepção,	uma	espécie	de	desencanto,	 seja	 frente	a	elas	próprias,</p><p>seja	 em	 relação	 à	 figura	 materna	 ou	 paterna.	 Essa	 decepção	 parece	 traduzir	 o</p><p>encontro	 dramático,	 que	 o	 próprio	 desenvolvimento	 impõe,	 entre	 os	 ideais	 de</p><p>perfeição	e	o	confronto	com	a	realidade	humana,	delas	próprias	e	dos	outros.</p><p>Numa	 carta	 que	 data	 de	 fevereiro	 de	 1899,	 Freud	 (1899,	 p.	 246-247)	 dirige	 a</p><p>Fliess	essa	questão:</p><p>Sabe	 você,	 por	 exemplo,	 por	 que	 uma	 certa	 X	 sofre	 de	 vômitos	 histéricos?	 É</p><p>porque,	na	 imaginação,	ela	está	grávida.	Insaciável,	ela	não	pode,	com	efeito,	abrir</p><p>mão	de	trazer	dentro	de	si	o	filho	de	um	último	amante	imaginário.	Mas	ela	vomita</p><p>também	 porque,	 de	 certa	 forma,	 passa	 fome,	 emagrece,	 perde	 sua	 beleza	 e	 não</p><p>poderá	mais	agradar.	É	assim	que	o	sintoma	representa	a	realização	de	dois	desejos</p><p>contraditórios.</p><p>Vale	ressaltar	aqui	a	ênfase	na	contradição	dos	desejos	e	na	ambiguidade	que	eles</p><p>despertam,	 a	 incompatibilidade	 entre	 a	 dimensão	 insaciável	 da	 sexualidade	 e	 a</p><p>rejeição	que	 isso	provoca.	Se	pensarmos	no	 tumulto	provocado	pela	puberdade	e</p><p>pela	entrada	na	adolescência,	veremos	que	essa</p><p>incompatibilidade	mostra-se	ainda</p><p>atual.	 Mesmo	 em	 nosso	 mundo	 contemporâneo,	 com	 a	 banalização	 do	 contato</p><p>sexual,	observamos	na	clínica	que	a	sexualidade	e	seus	enigmas	ainda	continuam	a</p><p>produzir	sintomas	entre	os	jovens.</p><p>Sempre	 interessado	na	questão	da	 escolha	da	neurose,	 alguns	meses	depois	da</p><p>carta	citada,	Freud	(1899,	p.	270)	se	pergunta,	numa	nova	carta	a	Fliess	(9-12-1899),</p><p>sobre	 as	 relações	 entre	o	 ego	primitivo	 e	o	 autoerotismo.	Enfatizando	a	 corrente</p><p>autoerótica	da	paranoia	em	comparação	com	a	corrente	aloerótica	da	histeria,	Freud</p><p>certamente	abre	aqui	uma	pista	para	a	exploração	das	relações	entre	a	anorexia	e	a</p><p>bulimia	 e	o	 autoerotismo,	o	que	coloca	em	evidência	 a	dimensão	mais	 arcaica	do</p><p>funcionamento	 libidinal.	 Isso	 nos	 remete,	 necessariamente,	 às	 vicissitudes	 da</p><p>experiência	de	satisfação	no	início	da	vida	do	bebê,	em	relação	à	autoconservação	e</p><p>à	sexualidade.1</p><p>No	 caso	Dora,	 aparecem	 de	 forma	 discreta	 as	 dores	 gástricas,	 as	 dificuldades</p><p>para	 comer	 e	 uma	 certa	 aversão	 pelo	 alimento,	 que	 se	 encontram,	 de	 alguma</p><p>maneira,	 vinculadas	 ao	 sentimento	 de	 repugnância	 experimentado	 no	 incidente</p><p>traumático	com	o	Sr.	K,	quando	ela	tinha	14	anos.	Nessa	ocasião,	Freud	(1905a,	p.</p><p>27)	tenta	demonstrar	que	o	fantasma	originário	que	explica	a	repugnância	seria,	em</p><p>Dora,	um	fantasma	de	 felação.	De	um	outro	 lado,	 ele	enfatiza	as	 relações	entre	a</p><p>leucorreia,	a	enurese	(que	reaparece	após	os	6	anos)	e	a	masturbação.	Freud	(1905a,</p><p>p.	81)	evidencia	particularmente	a	relação	observada	pelos	médicos	entre	leucorreia</p><p>e	perda	de	apetite	e	vômitos,	com	o	intuito	de	compreender	os	sintomas	histéricos</p><p>como	substitutos	de	desejos	recalcados.	Porém,	não	se	pode	deixar	de	assinalar	aqui</p><p>que	 Dora	 encontrava-se	 em	 plena	 adolescência,	 portanto,	 às	 voltas	 com	 a</p><p>emergência	pulsional	própria	dessa	fase	e	com	a	necessidade	de	gerenciar	o	desejo</p><p>sexual	 frente	 às	 restrições	 impostas	 à	 sexualidade	 e	 particularmente	 à	 sexualidade</p><p>feminina,	próprias	a	sua	época.</p><p>Mais	tarde,	no	caso	do	“homem	dos	lobos”,	Freud	(1918,	p.	124)	assim	se	refere</p><p>à	perda	de	apetite:	“Estou	 inclinado	à	opinião	de	que	essa	perturbação	do	apetite</p><p>deva	ser	considerada	como	a	primeira	das	doenças	neuróticas	do	paciente.	Se	assim</p><p>foi,	o	distúrbio	no	apetite,	a	fobia	aos	lobos	e	a	devoção	obsessiva	constituiriam	a</p><p>série	completa	de	perturbações	infantis	que	estabeleceu	a	predisposição	para	o	seu</p><p>colapso	 neurótico,	 após	 haver	 passado	 a	 puberdade”.	 Freud	 relaciona	 a	 origem</p><p>dessa	perturbação	do	apetite	com	a	provável	observação	do	ato	sexual	na	idade	de</p><p>um	ano	e	meio,	e	continua	seu	raciocínio	evocando	a	primeira	fase	da	organização</p><p>sexual	 –	 a	 fase	 oral	 –	 e	 a	 equação	 alimentação-sexualidade.	 A	 esse	 respeito,	 ele</p><p>escreve:	 “É	 sabido	 que	 existe	 uma	 neurose	 nas	meninas	 que	 ocorre	 numa	 idade</p><p>muito	posterior,	na	época	da	puberdade	ou	pouco	depois,	e	que	exprime	a	aversão	à</p><p>sexualidade	por	meio	da	anorexia.	Essa	neurose	terá	que	ser	examinada	em	conexão</p><p>com	a	fase	oral	da	vida	sexual”	(idem,	p.	133).	Com	isso,	Freud	parece	compreender</p><p>os	sintomas	da	anorexia	a	partir	da	lógica	da	histeria;	no	entanto,	ao	fazer	incidir	o</p><p>recalcamento	 sobre	 o	 erotismo	 oral,	 ele	 situa	 a	 anorexia	 em	 um	 período	 de</p><p>organização	pré-genital	da	libido.</p><p>O	estudo	da	anorexia	levou	vários	autores	a	pensar	que	possam	existir	formas	de</p><p>histeria	muito	mais	precoces,	em	que	os	conflitos	orais	e	as	expressões	sintomáticas</p><p>ligadas	 à	 oralidade	 desempenham	um	papel	 fundamental.	De	 fato,	 a	 evolução	 do</p><p>pensamento	 freudiano	 retrata	 claramente	 que	 a	 busca	 da	 etiologia	 da	 histeria	 vai</p><p>privilegiando	fases	cada	vez	mais	precoces	do	desenvolvimento.	Pode-se	entrever	aí</p><p>um	descentramento	do	paradigma	da	 fase	 fálica,	 do	Édipo	 e	da	 triangulação,	que</p><p>encontra	expressão	nos	textos	mais	tardios	de	Freud	sobre	a	sexualidade	feminina	e</p><p>a	 feminilidade,	 nos	 quais	 é	 enfatizada,	 na	 etiologia	 da	 histeria,	 a	 importância	 da</p><p>relação	pré-edípica	da	menina	com	a	mãe	(FREUD,	1931;	1933).</p><p>A	importância	dessa	relação	certamente	não	deixa	passar	desapercebida	a	estreita</p><p>ligação	entre	o	corpo	da	mãe	como	fonte	de	alimentação	do	bebê	e	as	vicissitudes</p><p>da	oralidade	no	processo	de	construção	da	feminilidade	na	menina.	Poderíamos	nos</p><p>perguntar:	 aA	 anorexia	 permitiria	 entrever	 uma	 recusa,	 tanto	 do	 corpo	 da	 mãe</p><p>como	fonte	alimentar,	como	da	possibilidade	de	o	próprio	corpo	vir	a	ser	essa	fonte</p><p>para	o	outro?</p><p>Tudo	isso	nos	leva	a	constatar	que	a	evolução	do	pensamento	psicanalítico	parte</p><p>das	 questões	 da	 oralidade	 para	 privilegiar	 as	 dinâmicas	 de	 instauração	 do</p><p>autoerotismo,	do	narcisismo	e	das	 relações	objetais,	 salientando	particularmente	 a</p><p>especificidade	 da	 relação	 da	 menina	 com	 a	 mãe	 e	 suas	 formas	 de	 inscrição	 no</p><p>corpo.</p><p>Este	percurso	pela	obra	de	Freud	nos	permite	constatar	um	primeiro	paradoxo</p><p>interessante:	se,	de	um	lado,	ele	parece	enfatizar	a	dimensão	histérica	da	anorexia,</p><p>de	 outro,	 ele	 vai	 salientar	 os	 impasses	 técnicos	 observados	 na	 sua	 prática	 clínica,</p><p>chegando	mesmo	a	questionar	as	 indicações	de	análise	nesses	casos.	Sendo	assim,</p><p>Freud	(1904,	p.	6-7)	escreve:</p><p>Os	 casos	 crônicos	 de	 psiconeuroses	 com	 sintomas	 pouco	 violentos	 e	 pouco</p><p>perigosos	 são	 os	mais	 acessíveis	 à	 psicanálise,	 primeiramente	 todas	 as	 formas	 de</p><p>neurose	 obsessiva,	 de	 pensamentos	 e	 atos	 obsedantes	 e	 os	 casos	 de	 histeria	 nos</p><p>quais	 as	 fobias	 e	 as	 abulias	 desempenham	 um	 papel	 principal,	 em	 seguida	 as</p><p>manifestações	 somáticas	 da	 histeria,	 com	 exceção	 dos	 casos	 em	 que,	 como	 na</p><p>anorexia,	uma	rápida	intervenção	se	impõe	para	suprimir	o	sintoma”.</p><p>A	contraindicação	para	a	análise	parece	 se	centrar	aqui	na	necessidade	de	uma</p><p>“rápida	intervenção”,	como	se	Freud	respondesse	ao	clima	de	urgência	e	perigo	tão</p><p>característico	 dos	 casos	 graves	 de	 anorexia.	 Um	 ano	 depois	 dessa	 colocação,</p><p>encontramos	o	mesmo	tipo	de	formulação:	“A	psicanálise	é	contraindicada	quando</p><p>se	trata	da	supressão	rápida	de	certos	sintomas	alarmantes,	como,	por	exemplo,	no</p><p>caso	da	anorexia	histérica”	(Freud,	1905b,	p.	18).	Mostrando-se	pessimista	quanto	à</p><p>abordagem	psicanalítica	da	anorexia,	ele	alicerçava	tal	pessimismo	na	gravidade	dos</p><p>sintomas	anoréxicos	e	na	necessidade	de	uma	rápida	intervenção	clínica,	em	função</p><p>do	risco	de	vida	nos	casos	de	inanição	grave.</p><p>Embora	a	literatura	psicanalítica	das	últimas	décadas	tenha	se	voltado	sobretudo</p><p>para	as	perversões,	as	somatizações,	os	boderlines	ou	estados-limite	e	as	toxicomanias,</p><p>evidenciando	um	interesse	maior	pelas	patologias	narcísicas	do	que	pela	neurose,	é,</p><p>provavelmente,	 ilusória	 a	 ideia	 de	 que	 já	 se	 tenha	 dito	 tudo	 sobre	 a	 neurose	 e	 a</p><p>histeria.	As	 problemáticas	 da	 anorexia	 e	 da	 bulimia,	 atingindo	 prioritariamente	 as</p><p>mulheres	 e	 se	 constituindo	 no	 cruzamento	 de	 tantos	 eixos	 psicopatológicos,</p><p>conforme	constataremos	ainda	com	maior	clareza	a	seguir,	sem	dúvida	relançam	a</p><p>ênfase	na	histeria	pela	eloquência	com	que	trazem	à	tona	a	questão	da	sexualidade,</p><p>particularmente,	a	sexualidade	feminina.</p><p>Recorrer	 à	 repressão	 dos	 desejos	 sexuais	 já	 não	 é	 mais	 necessário	 para	 as</p><p>mulheres	da	mesma	 forma	que	 foi	 antes	da	 revolução	 sexual,	 do	 feminismo	e	da</p><p>invenção	 da	 psicanálise.	Talvez,	 por	 isso,	 a	 forma	 clássica	 da	 histeria,	 tal	 qual	 era</p><p>descrita	 no	 século	 XIX,	 apareça	 numa	 frequência	 menor,	 sem,	 no	 entanto,	 ter</p><p>deixado	 de	 existir.	 De	 fato,	 assim	 como	 a	 expressão	 do	 mal-estar	 varia	 de	 um</p><p>momento	 histórico	 a	 outro,	 ela	 também	 varia	 nas	 diversas	microculturas	 de	 uma</p><p>mesma	época.</p><p>Dessa	forma,	conforme	salienta	S.	Alonso	(2000,	p.	82):</p><p>Nas	 diversas	 microculturas,	 expressões	 sintomáticas	 diferentes	 convivem	 lado	 a</p><p>lado:	assim,	ainda	hoje	podemos	ver	moças	desmaiarem	em	vez	de	dar	a	notícia	de</p><p>que	 estão	 grávidas,	 em	 famílias	 para	 as	 quais	 a	 “maternidade”	 e	 a	 “virgindade”</p><p>continuam	 constituindo	 os	 troféus	 fundamentais	 do	 feminino.	 Mas	 nesta	 nossa</p><p>mesma	 época	 é	 possível	 ver-se	 uma	 jovem	 definhar,	 seu	 corpo	 inteiramente</p><p>reduzido,	na	 anorexia,	presa	da	mortificação,	 sob	o	 império	da	“cultura	 light”	que</p><p>toma	 o	 estar	 em	 “forma”	 como	 imperativo	máximo	 do	 ideal	 de	 saúde	 e	 beleza.</p><p>Apesar	de	suas	grandes	diferenças,	há	em	ambas	algo	em	comum:	o	corpo	como	lugar</p><p>de	expressão	daquilo	que	não	consegue	ser	dito	(grifos	meus).</p><p>Se	o	corpo	das	histéricas	deu	voz	à	problemática	feminina	do	século	XIX,	parece</p><p>ser	 o	 corpo	 em	 negativo	 da	 anoréxica	 que	 vem,	 em	 nossos	 dias,	 ocupando	 esse</p><p>lugar.	 Sendo	 assim,	 não	 é	 nada	 surpreendente	 constatarmos,	 hoje	 em	 dia,	 o</p><p>aumento	 dos	 sintomas	 anoréxicos	 de	 tipo	 histérico.	 Sabe-se	 bem	 que	 a	 histeria</p><p>busca	habilmente	 situar-se	 no	 lugar	 do	objeto	de	 algum	 saber	 constituído	 e	 atual</p><p>para	ser	reconhecida.</p><p>Nesse	 sentido,	 já	 nos	 anos	 1960,	 J-P.	Valabrega	 (1967,	 p.	 87)	 salientava:	 “Para</p><p>explicar	a	relativa	raridade	da	‘gran	crisis’	histérica,	comparada	com	a	sua	frequência</p><p>no	passado,	não	se	deve	esquecer	que	as	manifestações	histéricas	não	são	criadas,</p><p>senão	motivadas	 e	 atualizadas	 pelo	 interesse	 que	 se	 presta	 nelas”.	Não	 podemos</p><p>deixar	de	constatar	que	o	interesse	de	hoje	nas	conversões	histéricas	está	rarefeito.</p><p>Os	 ataques,	 desmaios	 e	 chiliques,	 que	 antes	 despertavam	 no	 público	 uma</p><p>curiosidade	 respeitosa,	 parecem	 atualmente	 evocar	 um	 olhar	 de	 desprezo	 e</p><p>reprovação,	encontrando	eco	no	uso	pejorativo	do	adjetivo	“histérico”.	Destituída</p><p>de	um	certo	glamour,	a	conversão	histérica	perdeu	sua	potencialidade	engendradora</p><p>do	interesse	público,	ou	seja,	engendradora	do	enigma,	daquilo	capaz	de	capturar	o</p><p>olhar	 do	 outro.	 No	 entanto,	 os	 efeitos	 da	 sexualidade	 no	 corpo,	 tal	 como	 nos</p><p>ensinou	o	mecanismo	da	conversão	histérica,	apontam,	ainda	em	nossos	dias,	para</p><p>uma	diversidade	de	formas	de	expressão	que	o	corpo	emagrecido	e	amenorreico	da</p><p>anoréxica	 evoca	 de	maneira	 efusiva.	 Um	 corpo	 que,	mais	 pela	 falta	 do	 que	 pelo</p><p>excesso,	 parece	 evocar	 o	 mal-estar	 feminino	 na	 contemporaneidade</p><p>(FERNANDES,	2006b;	2008;	2009;	2011;	2013b).</p><p>A	bulimia:	entre	o	modelo	das	neuroses	atuais	e	o	da	adição</p><p>No	que	diz	respeito	à	bulimia,	uma	das	primeiras	referências	de	Freud	aparece</p><p>ligada	à	problemática	da	angústia,	abordada	na	chamada	neurose	de	angústia.	Freud</p><p>(1895c,	p.	39)	escreve:</p><p>A	atividade	de	digestão	 conhece,	na	neurose	de	 angústia,	poucos	problemas,	mas</p><p>estes	são	característicos.	Sensações	como	a	tendência	a	vomitar	e	as	náuseas	não	são</p><p>coisa	rara	e	o	sintoma	da	bulimia	pode,	sozinho	ou	com	outras	congestões,	dar	um</p><p>acesso	de	angústia	rudimentar;	como	modificação	crônica,	análoga	à	espera	ansiosa,</p><p>encontra-se	 uma	 tendência	 à	 diarreia	 que	 já	 deu	 lugar	 aos	 mais	 estranhos	 erros</p><p>diagnósticos	(p.	39).</p><p>É	 interessante	 notar	 que	 as	 descrições	 clínicas	 da	 bulimia	 eram	 relativamente</p><p>raras	na	época;	portanto,	é	possível	que	o	comportamento	purgativo,	associado	ao</p><p>uso	 de	 laxantes	 para	 provocar	 a	 diarreia,	 ainda	 não	 fosse	 percebido	 como</p><p>relativamente	 frequente	 na	 conduta	 bulímica,	 dando	 lugar,	 assim,	 “aos	 mais</p><p>estranhos	 erros	 diagnósticos”.	 Cabe	 notar,	 ainda,	 que	 a	 bulimia	 aparece,	 nesse</p><p>momento	 do	 texto	 freudiano,	 identificada	 ao	 registro	 das	 neuroses	 atuais,</p><p>diferentemente	da	anorexia,	que	aparece	ora	identificada	à	histeria,	ligada,	portanto,</p><p>ao	registro	das	psiconeuroses,	ora	identificada	à	melancolia,	que	Freud	localiza	entre</p><p>as	neuroses	narcísicas.</p><p>Dois	anos	após	a	referência	anterior,	em	duas	cartas	endereçadas	a	Fliess,	Freud</p><p>formula	 algumas	 ideias	 a	 respeito	 de	 certas	 adições	 que	 podem	 ser	 aplicadas	 à</p><p>bulimia.	Na	carta	datada	de	11	de	janeiro	de	1897,	ao	referir-se	a	um	homem	que</p><p>aos	50	 anos	passou	 a	 apresentar	um	quadro	de	dipsomania,	Freud	 (1899,	p.	 163-</p><p>164)	expressa	a	ideia	de	que	a	compulsão	para	beber	(dipsomania)	poderia	ser	uma</p><p>substituição	de	uma	pulsão	sexual	reprimida:</p><p>Suas	crises	de	dipsomania	começavam	sempre	ou	com	diarreia,	ou	com	uma	gripe	e</p><p>rouquidão	(sistema	sexual	oral!),	 isto	é,	por	uma	reprodução	de	 incidentes	que	ele</p><p>tinha	experimentado	passivamente.	 […’]	A	dipsomania	foi	produzida	pelo	reforço</p><p>(ou	 melhor,	 pela	 substituição)	 de	 uma	 pulsão	 que	 veio	 substituir	 a	 pulsão	 sexual</p><p>associada.	 (O	 mesmo	 fenômeno	 provavelmente	 ocorre	 com	 o	 velho	 F.	 com	 a</p><p>paixão	pelo	jogo.</p><p>Freud	chama	a	atenção,	já	nessa	ocasião,	para	a	característica	da	pulsão	sexual	de</p><p>se	 fazer	 substituir	 por	outra,	 inaugurando	o	princípio	da	 lógica	de	 compensações</p><p>que	 atua	 no	 interior	 do	 aparelho	 psíquico.	 Além	 disso,	 observa-se	 aqui	 uma</p><p>referência	 à	 provável	 associação	 entre	 os	 diversos	 comportamentos	 aditivos.	 De</p><p>fato,	nota-se,	com	certa	frequência	na	clínica,	a	substituição	de	uma	compulsão	por</p><p>outra.</p><p>Já	 na	 carta	 de	 22	 de	 dezembro	 de	 1897,	 Freud	 (idem,	 p.	 211-212)	 evoca	 a</p><p>masturbação	como	o	protótipo	da	adição	originária:</p><p>Comecei	 a	 acreditar	 que	 a	masturbação	 é	 o	 único	 grande	 hábito,	 a	 “necessidade</p><p>primitiva”,	e	que	os	outros	apetites,	como	a	necessidade	de	álcool,	de	morfina	e	de</p><p>tabaco,	são	apenas	substitutos,	produtos	de	substituição.	Na	histeria,	o	papel	dessa</p><p>necessidade	 é	 extremamente	 considerável	 e	 pode	 ser	 que	 as	 grandes	 dificuldades</p><p>que	 tenho	 encontrado	 ainda	 derivem	 inteiramente	 ou	 parcialmente	 dela.</p><p>Naturalmente	 podemos	 nos	 perguntar	 se	 uma	 tal	 necessidade	 é	 curável	 ou	 se	 a</p><p>análise	e	o	tratamento	se	encontram	parados	nesse	ponto	e	devem	se	contentar	em</p><p>transformar	uma	histeria	em	neurastenia</p><p>Vale	ressaltar	que	Freud	colocará	a	neurose	de	angústia	ao	lado	da	neurastenia	e,</p><p>a	 seguir,	 da	 hipocondria,	 no	 rol	 das	 neuroses	 atuais.	 Mesmo	 diferenciando	 os</p><p>mecanismos	 que	 regem	 as	 neuroses	 atuais	 e	 as	 psiconeuroses,	 Freud	 atribui	 às</p><p>primeiras	 a	 qualidade	 de	 núcleo	 do	 sintoma	 psiconeurótico.	 Em	 1912,	 em	 uma</p><p>passagem	em	que	insistia	sobre	essa	distinção,	Freud	(1912,	p.	179)	escreve:</p><p>Considero	 ainda,	 como	 assim	me	parecia	 já	 há	mais	 de	 quinze	 anos,	 que	 as	 duas</p><p>neuroses	 atuais	 –	 a	 neurastenia	 e	 a	 neurose	 de	 angústia	 –	 (talvez	 a	 verdadeira</p><p>hipocondria	 deva	 ser	 classificada	 como	 uma	 terceira	 neurose	 atual)	 constituem	 a</p><p>antecipação	somática	das	psiconeuroses,	e	fornecem	o	material	da	excitação,	o	qual,</p><p>em	 seguida,	 é	 psiquicamente	 selecionado	 e	 encoberto,	 apesar	 de	 que,	 falando	 de</p><p>uma	forma	geral,	o	núcleo	do	sintoma	psiconeurótico	–	esse	grão	de	areia	no	meio	da</p><p>pérola	–	é	formado	de	uma	manifestação	sexual	somática	(grifos	meus).</p><p>Em	Fernandes	(2003,	p.	36-40),	salientei	que	Freud	privilegia	a	metáfora	do	grão</p><p>de	areia	para	designar	a	relação	existente	entre	as	neuroses	atuais	e	as	psiconeuroses,</p><p>mostrando	 assim	que	 as	 neuroses	 se	 organizam	em	geral	 a	 partir	 de	mecanismos</p><p>mistos	 interligados;	por	 isso,	 torna-se	difícil,	na	experiência	clínica,	o	encontro	de</p><p>neuroses,	por	assim	dizer,	“puras”.	Sendo	assim,	se	a	complexidade	da	clínica	tende</p><p>a	 relativizar	 a	 distinção	 entre	 neuroses	 atuais	 e	 psiconeuroses,	 esta	 distinção</p><p>conserva,	contudo,	seu	valor	por	introduzir,	conforme	salienta	J.	Laplanche	(1980,</p><p>p.	45),	“dois	elementos	estruturais	que	geralmente	agem	de	forma	complementar”.</p><p>O	 conceito	 de	 neurose	 atual	 foi	 recuperado	 pelos	 trabalhos	 da	 Escola	 de	 Paris,</p><p>particularmente	 por	 Pierre	 Marty,	 e	 tem	 amplamente	 servido	 para	 pensar	 as</p><p>psicopatologias	da	ação	e	do	corpo,	em	que	o	funcionamento	habitual	do	aparelho</p><p>psíquico	 parece	 nocauteado	 pelo	 aspecto	 quantitativo	 da	 excitação.	 Incapaz	 de</p><p>exercer	suas	funções	em	virtude	de	carências	mais	ou	menos	profundas,	o	aparelho</p><p>psíquico	 se	 vê,	 duradoura	 ou	 momentaneamente,	 subutilizado,	 resultando	 em</p><p>respostas	 comportamentais	 ou	 somáticas.	 O	 modelo	 das	 neuroses	 atuais,</p><p>amplamente</p><p>utilizado	 para	 compreender	 as	 somatizações,	 pode	 servir	 para</p><p>pensarmos	a	problemática	da	bulimia	pela	impulsiva	passagem	ao	ato	por	meio	da</p><p>ingestão	 desmedida	 de	 alimentos	 e	 dos	 comportamentos	 compensatórios.	 A</p><p>impulsão	 ao	 ato	bulímico	 seria,	 dessa	 forma,	uma	 tentativa	de	 evacuar	 as	 tensões</p><p>geradas	pelas	pulsões	sexuais.</p><p>Em	1926,	após	a	elaboração	do	segundo	dualismo	pulsional,	a	bulimia	reaparece</p><p>diretamente	no	texto	de	Freud.	A	função	alimentar	não	é	mais	considerada	em	um</p><p>registro	 diferente	 das	 pulsões	 sexuais,	 tal	 como	 se	 via,	 por	 exemplo,	 nos	 Três</p><p>ensaios	(1905c),	época	em	que	reinava	o	primeiro	dualismo	pulsional	que	opunha	as</p><p>pulsões	 sexuais	 às	 pulsões	 de	 autoconservação.	 No	 texto	 Inibição,	 sintoma	 e</p><p>angústia,	de	1926,	ao	referir-se	à	função	alimentar,	a	ênfase	recai	sobre	a	teoria	da</p><p>libido	 e	 a	 inapetência	 alimentar	 corresponde	 a	 uma	 retração	 da	 libido.	 Vejamos</p><p>como	se	expressa	Freud	(1926,	p.	207):</p><p>A	 perturbação	 mais	 frequente	 da	 função	 de	 nutrição	 é	 a	 inapetência	 alimentar</p><p>acarretada	por	uma	retirada	da	libido.	Um	aumento	da	apetência	alimentar	também</p><p>não	 é	 raro;	 uma	 compulsão	 a	 comer	 é	 atribuída	 à	 angústia	 de	 morrer	 de	 fome,</p><p>porém,	 essa	 questão	 foi	 pouco	 estudada.	 Como	 defesa	 histérica	 contra	 a</p><p>alimentação	nós	conhecemos	o	sintoma	do	vômito.	A	recusa	de	alimento	seguida	de</p><p>angústia	pertence	aos	estados	psicóticos	(delírio	de	envenenamento)”.</p><p>Além	de	atribuir	ao	sintoma	do	vômito	uma	função	defensiva	de	tipo	histérico,</p><p>Freud	destaca	a	dimensão	psicótica	da	recusa	alimentar	se	esta	vem	acompanhada</p><p>de	angústia	e	ideias	delirantes.</p><p>Um	 ano	 depois,	 Freud	 (1927a,	 p.	 137)	 vai	 colocar	 lado	 a	 lado	 as	 adições	 e	 o</p><p>humor	como	formas	de	defesa	contra	a	possibilidade	do	sofrimento:	“Pela	defesa</p><p>que	ele	(o	humor)	exerce	sobre	a	possibilidade	do	sofrimento,	ele	ocupa	um	lugar</p><p>na	grande	série	desses	métodos	que	a	vida	psíquica	humana	forja	para	se	subtrair	ao</p><p>constrangimento	 do	 sofrimento,	 série	 que	 começa	 com	 a	 neurose,	 culmina	 no</p><p>delírio,	 e	 na	 qual	 se	 incluem	 a	 embriaguês,	 o	mergulho	 em	 si	mesmo,	 o	 êxtase”.</p><p>Freud	não	 inclui	 explicitamente	 a	bulimia,	mas	 aborda	 a	 lógica	 aditiva	 como	uma</p><p>das	 estratégias	 para	 evitar	 o	 sofrimento.	 Pode-se	 pensar	 que	 os	 comportamentos</p><p>compensatórios	 na	 bulimia,	 como	 o	 excesso	 de	 exercícios	 físicos,	 podem	 ser</p><p>compreendidos	como	medidas	de	proteção.	Tais	excessos,	esgotando	a	energia	do</p><p>sujeito,	funcionam	como	fonte	de	satisfação	no	seu	efeito	autocalmante2.</p><p>Porém,	é	em	O	mal-estar	na	civilização	que	nos	deparamos	com	uma	série	de</p><p>colocações	 de	 Freud	 que	 surpreendem	 pela	 capacidade	 preditiva	 e	 extrema</p><p>atualidade.	 Novamente	 referindo-se	 aos	 métodos	 usados	 pelo	 ser	 humano	 para</p><p>evitar	 o	 sofrimento,	 Freud	 (1930,	 p.	 96-97)	 narra	 a	 influência	 química	 das</p><p>substâncias	 tóxicas:	 “é	 fato,	 porém,	 que	 existem	 substâncias	 estranhas,	 as	 quais,</p><p>quando	 presentes	 no	 sangue	 ou	 nos	 tecidos,	 provocam	 em	 nós,	 diretamente,</p><p>sensações	 prazerosas,	 alterando,	 também,	 tanto	 as	 condições	 que	 dirigem	 nossa</p><p>sensibilidade,	 que	nos	 tornamos	 incapazes	de	 receber	 impulsos	desagradáveis.	Os</p><p>dois	 efeitos	 não	 só	 ocorrem	 de	modo	 simultâneo,	 como	 parecem	 estar	 íntima	 e</p><p>mutuamente	ligados”.</p><p>Estabelecendo	uma	fecunda	comparação	com	a	mania,	uma	espécie	de	euforia</p><p>sem	droga,	ele	evoca	nesse	texto	o	aspecto	tóxico	dos	processos	psíquicos,	aqueles</p><p>que	 se	 formam	 em	 nossa	 própria	 química	 interior,	 antecipando,	 assim,	 as</p><p>descobertas	 neurofisiológicas	 posteriores.	 A	 esse	 respeito,	 Freud	 (op.	 cit.,	 p.	 97)</p><p>afirma:</p><p>No	entanto,	é	possível	que	haja	substâncias	na	química	de	nossos	próprios	corpos</p><p>que	 apresentem	 efeitos	 semelhantes,	 pois	 conhecemos	 pelo	 menos	 um	 estado</p><p>patológico,	 a	 mania,	 no	 qual	 uma	 condição	 semelhante	 à	 intoxicação	 surge	 sem</p><p>administração	 de	 qualquer	 droga	 intoxicante.	 Além	 disso,	 nossa	 vida	 psíquica</p><p>normal	 apresenta	 oscilações	 entre	 uma	 liberação	 de	 prazer	 relativamente	 fácil	 e</p><p>outra	comparativamente	difícil,	paralela	à	qual	ocorre	uma	receptividade,	diminuída</p><p>ou	 aumentada,	 ao	desprazer.	É	 extremamente	 lamentável	 que	 até	 agora	 esse	 lado</p><p>tóxico	dos	processos	psíquicos	tenha	escapado	ao	exame	científico.</p><p>Além	 de	 antecipar	 as	 descobertas	 do	 papel	 das	 endorfinas	 e	 das	 drogas</p><p>antidepressivas,	Freud	nos	permite	pensar,	ainda,	os	aspectos	tóxicos	dos	processos</p><p>psíquicos	 envolvidos,	 por	 exemplo,	 na	paixão,	 responsável	 por	 “uma	 liberação	de</p><p>prazer	 relativamente	 fácil”.	 Já	 descrita	 como	 uma	 “toxicomania	 sem	 droga”,	 a</p><p>bulimia	 pode	 ser	 pensada,	 a	 partir	 dessas	 considerações,	 como	 uma	 tentativa	 de</p><p>evitar	o	sofrimento	pela	intoxicação	alimentar.</p><p>Afora	 os	 comentários	 explícitos	 de	 Freud	 acerca	 da	 bulimia,	 ou	 mesmo	 das</p><p>adições,	conforme	apresentados	aqui,	pode-se	dizer	que	essa	patologia,	assim	como</p><p>a	anorexia,	evocam	diretamente	os	modelos	freudianos	para	tentar	compreendê-las.</p><p>Sendo	 assim,	 permanece	 válida	 a	 questão:	 Como	 entender	 as	 relações	 entre	 a</p><p>autoconservação	 e	 a	 sexualidade?	 J.	 Laplanche	 assinala	 que	 a	 experiência	 de</p><p>satisfação	das	necessidades	que	servem	à	autoconservação	tem,	no	corpo	do	bebê,</p><p>o	lugar	da	sedução	originária	exercida	pela	mãe.	Ora,	que	relação	pode	haver	entre	a</p><p>anorexia	e	a	bulimia	e	a	experiência	de	satisfação?	Freud	relaciona	tal	experiência	à</p><p>impossibilidade	 de	 o	 bebê,	 sozinho,	 conseguir	 suprir	 suas	 necessidades	 de</p><p>sobrevivência,	 ligando,	 assim,	 a	 satisfação	 à	 imagem	 do	 objeto.	 O	 que	 significa,</p><p>então,	para	a	economia	 libidinal,	 sua	dependência	ao	outro?	Dito	de	outro	modo,</p><p>como	 pensar	 as	 articulações	 entre	 libido	 narcísica	 e	 libido	 objetal?	 A	 teoria</p><p>freudiana	 do	 narcisismo,	 assim	 como	 a	 ênfase	 no	 modelo	 da	 melancolia,</p><p>particularmente	 a	 partir	 da	 fecunda	 comparação	 desta	 com	o	 luto,	 permitem-nos</p><p>considerar	as	vicissitudes	da	perda	do	objeto	nessas	patologias,	justamente	por,	mais</p><p>tarde,	 esta	 perda	 vir	 a	 ser	 determinante	 ao	 aparecimento	 da	 angústia</p><p>(FERNANDES,	2006a;	2010).</p><p>Além	disso,	a	evolução	dos	modelos	teóricos	freudianos,	particularmente	a	partir</p><p>dos	anos	1920,	traz	nova	luz	sobre	as	vicissitudes	do	comportamento	alimentar.	De</p><p>uma	 teorização	 centrada	na	questão	da	oralidade	 e	 da	 sexualidade,	 o	pensamento</p><p>freudiano	 vai,	 progressivamente,	 iluminando	 avanços	 teóricos	 também	 em	 outras</p><p>direções.</p><p>É	assim	que	se	pode	observar	a	ênfase	de	Freud	sobre	os	processos	de	descarga</p><p>da	excitação,	que	ele	atribui	a	um	funcionamento	arcaico	do	ego	que,	após	os	anos</p><p>1920,	 será	 relacionado	 com	 a	 pulsão	 de	 morte,	 particularmente	 com	 a	 desfusão</p><p>pulsional.	 Além	 disso,	 o	 papel	 do	 masoquismo	 erógeno,	 do	 fetichismo,	 a</p><p>importância	do	mecanismo	da	recusa	e	certamente	a	ideia	de	um	ego	corporal,	são</p><p>noções	que	vão,	sem	dúvida,	enriquecer	a	compreensão	da	questão	da	percepção	e</p><p>da	representação	do	corpo	próprio,	tão	fundamental	na	problemática	da	anorexia	e</p><p>da	bulimia.	Isso	sem	falar	na	importância	atribuída	por	Freud,	particularmente	em</p><p>seus	 textos	 mais	 tardios,	 à	 relação	 precoce	 da	 menina	 com	 a	 mãe	 para	 o</p><p>desdobramento	da	sexualidade	feminina.</p><p>À	guisa	de	conclusão</p><p>Pode-se	dizer	que	as	pistas	lançadas	por	Freud	para	a	compreensão	da	anorexia	e</p><p>da	 bulimia	 apontam	 inicialmente	 dois	 modelos:	 o	 da	 neurose	 e	 o	 das	 neuroses</p><p>narcísicas.	 O	 raciocínio	 analógico	 de	 Freud	 evoca,	 particularmente	 no	 caso	 da</p><p>anorexia,	a	comparação	desta	com	a	histeria	e	com	a	melancolia.	Com	o	transcorrer</p><p>de	 sua	 teorização,	 particularmente	 em	 suas	 considerações	 sobre	 a	 bulimia,	 outros</p><p>modelos	 começam	 a	 ocupar	 mais	 espaço:	 o	 da	 neurose	 atual,	 da	 psicose	 e	 das</p><p>adições.	Não	podemos	deixar	de	ver	aí	uma	relação	com	as	transformações	teóricas</p><p>que	 foram	 se	 processando	 em	 sua	 obra,	 particularmente	 a	 partir</p><p>C.	R.;	VOLICH,	R.	M.;	LABAKI,	M.	E.	(orgs.)	Psicanálise	 e</p><p>psicossomática.	Casos	clínicos,	construções.	São	Paulo:	Escuta,	2015.</p><p>VOLICH,	 R.	 M.	 Psicossomática:	 de	 Hipócrates	 à	 psicanálise.	 São	 Paulo:	 Casa	 do</p><p>Psicólogo,	2010.</p><p>WEINBERG,	C.;	 BERLINK,	M.	T.	A	 hiperatividade	 das	 anoréxicas:	 uma	 defesa</p><p>maníaca?	In:	WEINBERG,	C.	&	GONZAGA,	A.	P.	(orgs.)	Psicanálise	de	 transtornos</p><p>alimentares.	São	Paulo:	Primavera	Editorial,	2010.</p><p>O	ESTATUTO	DO	CORPO	E	A	ANOREXIA</p><p>NERVOSA</p><p>Um	mais	aquém	da	melancolia1</p><p>Ana	Paula	Gonzaga</p><p>Há	 alguns	 anos	 acompanhando	 pacientes	 com	 transtornos	 alimentares,</p><p>sobretudo	 com	anorexia	nervosa,	 venho	pesquisando	 aspectos	do	 funcionamento</p><p>psicodinâmico	que	remetem	ao	trabalho	da	melancolia.	Pretendo	discutir,	partindo</p><p>do	 texto	 freudiano,	 o	 movimento	 regressivo	 que	 se	 instala	 em	 pacientes	 com</p><p>anorexia	nervosa	 (que	necessariamente	não	se	aplica	a	 todas,	mas	é	expressivo	na</p><p>clínica),	que	nos	permite	essa	digressão	ao	que	proponho	como	um	funcionamento</p><p>aquém	da	melancolia.</p><p>Luto	e	melancolia</p><p>Em	seu	 artigo	Luto	 e	Melancolia	 [2011(1915)],	 Freud	 se	 ocupa	 em	 apresentar	 o</p><p>processo	de	luto	–	“reação	à	perda	de	uma	pessoa	querida	ou	de	uma	abstração	que</p><p>esteja	no	lugar	dela,	como	pátria,	liberdade,	ideal,	etc.”	(p.	47)	–	como	um	trabalho</p><p>de	desinvestimento	realizado	pelo	psiquismo	sobre	o	objeto	perdido.	Considera	esse</p><p>processo	necessário	e	normal,	especialmente	pela	retirada	da	libido	que	recai	sobre</p><p>o	 objeto	 que	 já	 não	 se	 faz	 mais	 presente,	 deixando-a,	 assim,	 livre	 para	 novos</p><p>investimentos.	 O	 caráter	 de	 realidade	 é,	 portanto,	 inquestionável;	 bem	 como	 o</p><p>envolvimento	dos	processos	pré-conscientes/conscientes.</p><p>Há	 casos,	 contudo,	 em	 que	 o	 processo	 não	 se	 dá	 assim,	 em	 que	 além	 do</p><p>desânimo,	 do	 desinteresse	 pelo	 mundo,	 da	 perda	 da	 capacidade	 de	 amar	 e	 da</p><p>redução	da	capacidade	de	trabalhar,	há	um	expressivo	“rebaixamento	do	sentimento</p><p>de	autoestima	que	se	expressa	em	autorrecriminações	e	autoinsultos”	(op.	cit.,	p.	47).</p><p>Freud	compreende	tratar-se	de	processos	melancólicos,	em	que	sublinha	a	distinção</p><p>concernente	à	alteração	da	autoestima	e	também	ao	caráter	da	perda	que	não	recai,</p><p>necessariamente,	na	morte	de	um	ente	querido,	mas	sim	na	sua	natureza	ideal,	algo</p><p>que	 se	 perdeu	 como	 objeto	 de	 amor.	 Relaciona	 à	 melancolia	 um	 caráter</p><p>fantasmático	 e	 inconsciente	 e	nos	 aponta,	 tal	 qual	no	 luto,	 em	que	 se	 faz	 claro	o</p><p>caráter	de	trabalho	–	elaboração	psíquica	–,	o	mesmo	atributo.	É	por	essa	qualidade</p><p>de	 trabalho	 que	 a	melancolia	 possibilita	 que,	 internamente,	 se	 busca	 reparar	 uma</p><p>perda	no	ego.</p><p>Desse	 modo,	 Freud	 nos	 ensina	 que,	 se	 soubermos	 ouvir	 com	 paciência	 as</p><p>múltiplas	 autoacusações	 do	 melancólico,	 compreenderemos	 que	 seus	 insultos</p><p>recaem	menos	à	sua	própria	pessoa,	mas	sim	a	alguém	a	quem	o	doente	ama,	amou</p><p>ou	deveria	amar.	“Desse	modo,	tem-se	à	mão	a	chave	do	quadro	clínico,	na	medida</p><p>em	 que	 se	 reconhecem	 as	 autorrecriminações	 como	 recriminações	 contra	 um</p><p>objeto	de	amor,	a	partir	do	qual	se	voltaram	sobre	o	próprio	ego”	(op.	cit.,	p.	59).</p><p>O	processo,	o	trabalho,	que	Freud	assinala	aqui	como	próprio	à	melancolia,	tem</p><p>por	base	a	identificação	em	que	predomina	a	escolha	narcísica	de	objeto.	Enquanto</p><p>nos	processos	normais,	quando	se	deixa	de	amar	algo	ou	alguém,	há	uma	retirada</p><p>da	 libido	desse	objeto	e	consequente	deslocamento	para	um	novo	objeto,	aqui	há</p><p>uma	transferência	ao	ego.	A	libido	livre	não	se	volta	para	o	objeto	externo,	mas	sim,</p><p>para	o	próprio	ego.	Há	uma	identificação	do	ego	com	o	objeto	abandonado.</p><p>Para	compreendermos	como	esse	processo	se	dá,	Freud	nos	propõe	reconstruí-</p><p>lo:	considera	que,	se	por	um	lado	houve	uma	forte	fixação	no	objeto	de	amor,	por</p><p>outro	 e,	 em	 contradição,	 pouco	 investimento	 objetal;	 o	 que	 pressupõe	 que	 essa</p><p>escolha	tenha	sido	feita	em	bases	narcísicas.	“A	identificação	narcísica	com	o	objeto</p><p>se	torna	então	um	substituto	do	investimento	amoroso	e	disso	resulta	que,	apesar</p><p>do	conflito,	a	relação	amorosa	com	a	pessoa	amada	não	precisa	ser	abandonada.”	E,</p><p>enfatiza:	 “Tal	 substituição	 do	 amor	 objetal	 por	 identificação	 é	 um	 mecanismo</p><p>importante	para	 as	 afecções	narcísicas”	 (op.	 cit.,	p.	 63).	Há,	 assim,	uma	 regressão</p><p>para	o	narcisismo	originário,	que	encontrará	uma	rede	de	significados,	provenientes</p><p>de	 investimentos	 objetais	 inconscientes,	 que	 se	 prestarão	 a	 figurar	 essa	 imagem</p><p>identificada	no	ego.</p><p>Mas,	o	que	tem	um	peso	diferencial	na	melancolia	é	o	conflito	de	ambivalência.</p><p>Se,	por	um	lado,	há	um	forte	investimento	libidinal	no	objeto	perdido	pelo	ego,	por</p><p>outro,	há	um	ódio	imenso	pelo	prejuízo	causado	por	seu	abandono.	Assim,	o	ódio	e</p><p>a	 raiva	 sobrepõem	 os	 laços	 amorosos	 e	 parte	 do	 ego	 se	 vê	 identificado	 com	 o</p><p>objeto	 que	 lhe	 era	 tão	 caro,	 mas	 que	 em	 função	 da	 dor	 sentida	 por	 sua	 perda,</p><p>dispara	uma	batalha	violenta:	“ódio	e	amor	combatem	entre	si:	um	para	desligar	a</p><p>libido	do	objeto,	outro	para	defender	contra	o	ataque	essa	posição	da	 libido”	 (op.</p><p>cit.,	p.	81).</p><p>Encontramos	nesse	 texto	 a	base	para	discutir,	o	que	 suponho,	um	mecanismo</p><p>presente	 nos	 quadros	 dos	 transtornos	 alimentares,	 especialmente	 na	 anorexia</p><p>nervosa.</p><p>A	clínica	da	anorexia	nervosa</p><p>Não	é	incomum	que	esses	pacientes,	predominantemente	mulheres,	associem	o</p><p>início	da	anorexia	a	uma	perda	importante:	uma	decepção	amorosa,	uma	mudança,</p><p>uma	 perda	 financeira,	 a	 perda	 de	 um	 lugar	 ou	 status,	 etc.	 E	 também,	 bastante</p><p>comum,	essa	perda	se	sobrepõe	à	entrada	na	adolescência,	que	por	si	demanda	um</p><p>trabalho	 de	 luto.	O	 que	 presenciamos	 é	 o	 que	 se	 aproxima,	 ou	 vai	 além,	 de	 um</p><p>processo	melancólico:	invariavelmente,	essa	paciente	acredita	que	há	algo	que	deve</p><p>ser	 modificado	 em	 si	 mesma	 para	 que	 não	 venha	 a	 perder	 novamente.	 Suas</p><p>autorrecriminações	 recaem	sobre	a	 forma	de	 seu	corpo:	 crê,	por	exemplo,	que	 se</p><p>“não	fosse	gorda	e	cheia	de	deformações”	não	teria	lhe	acontecido	tal	sorte.	Trata</p><p>de	maneira	 acusatória	 e	 autodepreciativa	o	que	 estiver	 relacionado	 à	 sua	 imagem,</p><p>sobretudo	 sua	 aparência,	 e	 o	 que	 possa	 derivar	 para	 aspectos	 idealizados.	 Assim,</p><p>algo	deve	ser	feito	em	seu	corpo	que	altere	esse	estado	de	coisas.</p><p>Freud	(op.	cit.)	chama	a	atenção	para	que	“o	quadro	clínico	da	melancolia	põe	em</p><p>destaque	o	desagrado	moral	com	o	próprio	ego,	acima	de	outros	defeitos.	Defeito</p><p>físico,	 feiura,	 fraqueza	 e	 inferioridade	 social,	muito	mais	 raramente	 são	 objeto	 de</p><p>autoavaliação	 […]”.	 Porém,	 o	 que	 escutaremos,	 repetidamente,	 exaustivamente	 e</p><p>com	muita	aflição	e	dor	desses	pacientes	é	uma	queixa	 referida	à	aparência	 física,</p><p>destituída	de	realidade,	em	que	pesam	a	deformação,	a	feiura	e	a	gordura.</p><p>O	 que	 nos	 surpreende	 é	 que	 não	 estamos	 diante	 de	 alguém	 que	 pudesse	 ser</p><p>considerada	 gorda	 ou	 deformada	 por	 ocasião	 dessa	 proposição.	 Raramente	 uma</p><p>paciente	 com	 anorexia	 iniciou	 uma	 dieta	 que	 pudesse	 ser	 prescrita	 por	 um</p><p>profissional	 especializado.	 Que	 representação	 corporal	 é	 essa	 que	 se	 apresenta?</p><p>Com	que	imagem/objeto	essa	paciente	está	identificada?</p><p>Primeiros	tempos</p><p>Em	 trabalho	 anterior	 (GONZAGA,	 2010),	 propus	 uma	 digressão	 que	 nos</p><p>permitisse	 compreender	 como	 esse	 corpo	 imaginado	 pela	 anoréxica	 remeteria	 à</p><p>construção	narcísica	de	sua	identidade.	Nesse	sentido,	os	processos	identificatórios</p><p>se	 dariam	 por	 um	 superinvestimento	 narcísico	materno,	 tornando-a	 assim,	 refém</p><p>das	 imagens	 projetadas	 nesse	 enlace	 e	 que	 causariam	 tanto	 estranhamento	 por</p><p>ocasião	 do	 adoecimento.	 Um	 corpo	 que	 não	 reconhece	 como	 seu,	 que	 não	 lhe</p><p>causa	admiração	ou	prazer.</p><p>Silvia	 Bleichmar	 (2005),	 ao	 postular	 a	 constituição	 do	 psiquismo,	 sublinha	 a</p><p>importância	de	considerarmos	o	recalque	originário	como	tempo	fundante	(p.	109)</p><p>e	como	dispositivo	analítico	para	operar	terapeuticamente.	E	nos	faz	compreender</p><p>que	o	que	funda	o	aparelho	psíquico	e</p><p>dos	 anos	 1920,</p><p>quando	 a	 lógica	 compulsiva	 e	 a	 lógica	 perversa	 vêm	marcar	 definitivamente	 seu</p><p>lugar	no	interior	da	metapsicologia	(FERNANDES,	2013).</p><p>Um	passeio	pela	literatura	psicanalítica	sobre	a	anorexia	e	a	bulimia	nos	permite</p><p>constatar	 que	 a	 compreensão	 desses	 quadros	 clínicos	 transita	 nos	 escritos</p><p>psicanalíticos	 privilegiando	 quatro	 dimensões:	 a	 dimensão	 neurótica,	 cujo	modelo</p><p>seria,	por	excelência,	 a	histeria;	 a	dimensão	narcísica,	que	 teria	 como	paradigma	a</p><p>melancolia;	a	dimensão	de	neurose	atual,	representada	pelo	modelo	da	somatização;</p><p>e	a	dimensão	impulsiva,	ilustrada	pelo	modelo	das	adições.</p><p>Observa-se	 que,	 a	 partir	 do	 momento	 em	 que	 a	 anorexia	 não	 é	 mais</p><p>exclusivamente	 identificada	 à	 histeria,	 o	 que	 parece	 ocorrer	 em	 função	 da</p><p>progressiva	consideração	da	bulimia,	parece	haver	um	descentramento	da	questão</p><p>da	 oralidade	 e	 da	 sexualidade	 em	 direção,	 primeiramente,	 às	 considerações	 a</p><p>respeito	 das	 relações	 objetais	 primárias	 e,	 em	 seguida,	 em	 direção	 à	 questão	 do</p><p>corpo.	É	assim	que	as	atenções	se	voltam	para	a	 importância	das	perturbações	da</p><p>imagem	do	corpo	nessas	patologias.</p><p>Pode-se	 dizer	 que,	 desde	 sempre,	 as	 contribuições	 de	 Freud	 insistem	 que	 as</p><p>dificuldades	das	jovens	anoréxicas	e	bulímicas	não	se	referem	à	alimentação	em	sua</p><p>materialidade	 concreta,	 mas	 sim	 às	 dimensões	 fantasmáticas	 que	 a	 alimentação</p><p>desperta	em	seu	funcionamento	psíquico.	É	importante	precisar	que	o	conflito	não</p><p>é	 entre	 a	 jovem	 e	 a	 comida,	 mas	 se	 refere	 às	 múltiplas	 significações	 a	 que	 a</p><p>alimentação	reenvia.	Para	a	psicanálise,	tais	significações	engajam	necessariamente	o</p><p>corpo	e	o	outro.	Sendo	assim,	a	meu	ver,	uma	melhor	compreensão	dos	distúrbios</p><p>da	função	alimentar	não	poderia	deixar	de	assinalar	as	vicissitudes	da	construção	do</p><p>corpo	no	processo	de	constituição	do	sujeito.</p><p>Os	trabalhos	psicanalíticos,	sobretudo	os	mais	recentes,	enfatizam	a	dificuldade,</p><p>particularmente	da	jovem	anoréxica,	em	assumir	seu	papel	sexual	genital	e	integrar</p><p>as	transformações	próprias	da	puberdade,	salientando	que	seu	conflito	principal	se</p><p>situa	 no	nível	 do	 corpo	 e	 não	no	nível	 da	 função	 alimentar.	Ora,	 esses	 trabalhos</p><p>apontam	para	a	necessidade	de	continuarmos	a	explorar	as	vicissitudes	da	 relação</p><p>precoce	do	bebê	com	a	mãe	para	melhor	compreender	não	apenas	as	dificuldades</p><p>ligadas	 à	 feminilidade,	 mas	 também	 a	 importância	 da	 mãe	 no	 gerenciamento</p><p>pulsional.</p><p>Não	 se	 deve	 esquecer	 que	 a	 anorexia	 e	 a	 bulimia	 não	 atingem	 apenas	 as</p><p>mulheres.	Embora	exista	uma	predominância	nitidamente	feminina,	não	se	trata	de</p><p>uma	 exclusividade.	 Aliás,	 nos	 últimos	 anos,	 os	 relatos	 de	 casos	 masculinos	 têm</p><p>aumentado	 consideravelmente.	 Porém,	 essa	 predominância	 feminina	 nos	 levou	 a</p><p>aprofundar	 nossa	 investigação	 na	 tentativa	 de	 precisar	 as	 especificidades</p><p>decorrentes	do	fato	de	o	objeto	primário	da	menina	poder	funcionar	como	espelho</p><p>de	 si	 no	 futuro,	 bem	 como	 nos	 levou	 a	 pensar	 as	 vicissitudes	 do	 gerenciamento</p><p>pulsional	na	adolescência,	cada	vez	mais	ampliada	em	tempos	pós-modernos,	e	sua</p><p>relação	 com	 a	 diferenciação,	 a	 autonomia,	 o	 tempo	 e	 a	 morte	 (FERNANDES,</p><p>2006a;	2011;	2012;	2013a).</p><p>Com	 todo	 este	 percurso	 esperamos	 ter	 conseguido	 demonstrar	 que	 os</p><p>apontamentos	 e	 as	 reflexões	de	Freud	 sobre	 a	 anorexia	 e	 a	bulimia	 testemunham</p><p>uma	 riqueza	 teórica	 a	 ser	 explorada	 ainda	 em	 nossos	 dias,	 pois,	 como	 se	 sabe,	 a</p><p>pluralidade	dos	 recursos	disponíveis	 atualmente	para	o	 tratamento	desses	quadros</p><p>clínicos	 deixa	 claro	 que	 a	 psicanálise	 é	 um	 recurso	 entre	 outros.	 Cabe	 então	 ao</p><p>psicanalista	 não	 só	 conhecer	 a	 existência	 desses	 recursos	 para	 poder	 usá-los	 ou</p><p>refutá-los,	 segundo	 a	 especificidade	 da	 demanda	 que	 lhe	 é	 dirigida,	mas	 também</p><p>conhecer	 os	 fundamentos	 da	 especificidade	 da	 contribuição	 teórico-clínica	 da</p><p>psicanálise	ao	estudo	dessas	patologias.</p><p>Acreditamos	que	explicitar	os	modelos	freudianos	que	certamente	inspiraram	as</p><p>contribuições	posteriores	dos	muitos	psicanalistas	que	se	confrontaram	com	esses</p><p>casos	tem	ainda	o	objetivo	de	contribuir	para	fazer	avançar	a	pesquisa	psicanalítica.</p><p>Entendemos	que	avançar	na	compreensão	desses	casos	clínicos	implica	privilegiar	o</p><p>rigor	 de	 nossas	 contribuições	 teóricas	 e	 a	 criatividade	 de	 nossas	 intervenções</p><p>clínicas,	pois	o	manejo	terapêutico	da	anorexia	e	da	bulimia	permanece,	ainda	hoje,</p><p>um	verdadeiro	desafio.</p><p>Notas:</p><p>1.	A	esse	respeito,	remeto	o	leitor	ao	capítulo	4:	A	função	alimentar:	entre	o	corpo,	o	eu	e	o	outro	do	meu	livro</p><p>Transtornos	alimentares:	anorexia	e	bulimia	(Fernandes,	2006a).</p><p>2.	Sobre	 isso	 remeto	o	 leitor	à	noção	de	procedimentos	autocalmantes	desenvolvida	por	Claude	Smadja	 e	Gérard</p><p>Szwec	para	compreender	as	somatizações.	A	discussão	a	respeito	da	pertinência	metapsicológica	dessa	noção</p><p>deu	origem	a	um	volume	da	Revue	Française	de	Psychosomatique,	em	1993.</p><p>Referências</p><p>ALONSO,	S.	O	que	não	pertence	a	ninguém…	e	as	apresentações	da	histeria.	In:</p><p>FUKS,	L.	B.;	FERRAZ,	F.	C.	(orgs.)	A	clínica	conta	histórias.	São	Paulo:	Escuta,	2000.</p><p>FERNANDES,	M.	H.	Corpo.	São	Paulo:	Casa	do	Psicólogo,	2003.</p><p>FERNANDES,	M.	H.	Transtornos	alimentares:	anorexia	e	bulimia.	São	Paulo:	Casa	do</p><p>Psicólogo,	2006a.</p><p>FERNANDES,	M.	H.	A	mulher-elástico.	Viver	–	mente	&	cérebro,	161:28-33,	2006b.</p><p>(Artigo	 republicado	 na	 Edição	 Especial	As	 faces	 do	 feminino:	 dimensões	 psíquicas	 da</p><p>mulher.	Mente	&	cérebro,	18:78-82,	2009.)</p><p>FERNANDES,	 M.	 H.	 As	 mulheres,	 o	 corpo	 e	 os	 ideais.	 In:	 VOLICH,	 R.	 M.,</p><p>FERRAZ,	 F.	 C.,	 RANÑA,	W.	 (org.)	Psicossoma	 IV:	 corpo,	 história	 e	 pensamento.	 São</p><p>Paulo:	Casa	do	Psicólogo,	2008.	p.	207-220.</p><p>FERNANDES,	 M.	 H.	 Le	 corps	 fétiche:	 La	 clinique	 miroir	 de	 la	 culture.	 In:</p><p>GASPARD,	J-L.	&	DOUCET,	C.	(orgs.)	Pratiques	et	usages	du	corps	dans	notre	modernité.</p><p>Toulouse:	Érès,	2009.	p.	117-127.</p><p>FERNANDES,	 M.	 H.	 O	 corpo	 recusado	 na	 anorexia	 e	 o	 corpo	 estranho	 na</p><p>bulimia.	 In:	 GONZAGA,	 A.	 N.;	 WEINBERG,	 C.	 (orgs.)	 Psicanálise	 de	 transtornos</p><p>alimentares	São	Paulo:	Primavera,	2010.	p.	39-69.</p><p>FERNANDES,	 M.	 H.	 O	 corpo	 e	 os	 ideais	 na	 clínica	 contemporânea.	 Revista</p><p>Brasileira	de	Psicanálise,	45(4):,	p.	21-33,	2011.</p><p>FERNANDES,	 M.	 H.	 Mãe	 e	 filha…	 uma	 relação	 tão	 delicada…	 In:</p><p>MARRACCINI,	E.	M.	et	al.(orgs.)	Limites	de	eros.	São	Paulo:	Primavera,	2012.	p.	87-</p><p>119.</p><p>FERNANDES,	M.	H.	La	 construction	du	corps	dans	 l´anorexie	des	 jeunes	 filles.</p><p>In:	BUTNARU,	D.	&	LE	BRETON,	D.	(orgs.)	Corps	abîmés.	Strasbourg:	Presses	de	l</p><p>´Université	Laval,	2013a.	p.	31-40.</p><p>FERNANDES,	 M.	 H.	 El	 cuerpo	 et	 los	 ideales	 en	 el	 malestar	 femenino.	 In:</p><p>OREJUELA,	J.	J.;	MORENO,	M.	A.	(orgs.)	Abordajes	psicoanalíticos	a	inquietudes	sobre</p><p>la	subjetividad	II.	Cali:	Bonaventuriana,	2013b.	p.	59-68.</p><p>FERNANDES,	 M.H.	 A	 clínica	 psicanalítica	 da	 anorexia	 e	 da	 bulimia	 e	 a	 lógica</p><p>perversa.	Cadernos	de	Psicanálise	da	Sociedade	de	Psicanálise	da	Cidade	do	Rio	de	Janeiro	–</p><p>SPCRJ,	v.	29,	n.	32,	p.	61-81,	2013c.</p><p>FREUD,	S.	Um	caso	de	cura	por	hipnose.	E.S.B.,	v.	1,	1893a.</p><p>FREUD,	 S.	 Sobre	 o	mecanismo	 psíquico	 dos	 fenômenos	 histéricos.	E.S.B.,	 v.	 3,</p><p>1893b.</p><p>FREUD,	S.	&	BREUER,	J.	[1895a]	Etudes	sur	l’hystérie.	Paris:	P.U.F.,	1996.</p><p>FREUD,	S	[1895b]	Manuscrit	G.	In:	Naissance	de	la	Psychanalyse.	Paris:	P.U.F.,	1991.</p><p>FREUD,	S.	Du	bien-fondé	à	séparer	de	la	neurasthénie	un	complexe	de	symptômes</p><p>déterminé,	en	tant	que	‘névrose	d’angoisse’.	In:	Oeuvres	Complètes.	Paris:	P.U.F.,	v.	3,</p><p>1895c.</p><p>FREUD,	 S.	 [1899]	 Lettres	 a	Wilhelm	 Fliess.	 In:	Naissance	 de	 la	 psychanalyse.	 Paris:</p><p>P.U.F.,	1991.</p><p>FREUD,	 S.	 [1904]	 La	 méthode	 psychanalytique	 de	 Freud	 In:	 La	 technique</p><p>psychanalytique.	Paris:	P.U.F.,	1994.</p><p>FREUD,	S.	[1905a]		Fragmento	da	análise	de	um	caso	de	histeria.	E.S.B.,	v.	7.</p><p>FREUD,	 S.	 [1905b]	 	 De	 la	 psychothérapie	 .	 In:	La	 technique	 psychanalytique.</p><p>fixa	o	inconsciente	(derivando	daí	o	ego	e	as</p><p>instâncias	 ideais)	 advém	de	 um	outro	 que,	 além	dos	 cuidados	 primários,	 inscreve</p><p>“restos”	 recalcados	 de	 sua	 própria	 conflitiva.	 Revela,	 assim,	 como	 o	 agente</p><p>produtor	 instaura	 o	 psiquismo	 incipiente	 e	 de	 onde	 esse	 último	 retira	 sua	 força,</p><p>dada	pelo</p><p>duplo	caráter	do	funcionamento	psíquico	parental,	do	fato	de	que	os	pais	produzem</p><p>inscrições	 sexualizantes	 e	 também	 inibições	 regressivas	 por	 estarem	 atravessadas</p><p>por	dois	 sistemas	psíquicos	 em	conflito,	 atravessados	por	desejos	 e	proibições.	A</p><p>partir	de	seus	desejos	inconscientes,	da	sua	sexualidade	recalcada	–	não	só	edípica,</p><p>mas	também	pulsional	–,	implantam	desejos	que	a	partir	de	seu	próprio	narcisismo,</p><p>desde	o	ego,	desconhecem	e	recalcam	a	posteriori	(op.	cit.,	p.	118).</p><p>Encerra	 essa	 discussão	 perguntando	 o	 que	 faz	 com	 que	 a	 criança	 não</p><p>enlouqueça,	já	que	os	pais	parecem	propor	aquilo	mesmo	que	proíbem.</p><p>No	caso	de	nossos	pacientes	com	anorexia	nervosa,	em	especial	as	meninas,	para</p><p>quem	 a	 subjetivação	 da	 feminilidade	 é	 atravessada	 por	 essa	 identificação	 primária</p><p>resultante	 dos	 tempos	 fundantes	 pelo	 enlace	 materno,	 parece	 haver	 aí	 algo	 que</p><p>remete	 a	 esse	 “resto	 recalcado”	 que	 advém	 do	 inconsciente	 parental.	 Esse</p><p>sobreinvestimento	que	não	pode	ser	metabolizado	por	um	aparelho	ainda	incipiente</p><p>e	não	clivado,	e	que,	como	nos	alerta	Bleichmar,	em	“momentos	de	regressão	tão</p><p>intensos	 como	 são	 os	 tempos	 de	 maternagem,	 tempos	 em	 que	 o	 corpo	 está</p><p>implicado	 de	 uma	 maneira	 direta”,	 sofrerá	 por	 não	 encontrar	 outras	 vias	 de</p><p>descarga	ou	ligação	se	estiver	diante	de	uma	carga	excessiva	do	narcisismo	amoroso</p><p>da	mãe.	E	assim,	a	menina	“enlouquece”.</p><p>Narcisismo	e	feminilidade</p><p>Em	Sobre	o	narcisismo:	uma	introdução	 (1914),	Freud	assinala	que	a	escolha	objetal</p><p>feita	 pelas	 mulheres	 é	 preferencialmente	 narcísica:	 elas	 tomam	 por	 objeto	 sexual</p><p>aqueles	 que	 as	 amam	 ou	 que	 as	 convertem	 em	 seu	 ideal;	 que	 restituam	 sua</p><p>autoestima.	Para	ampliar	essa	compreensão,	recorro	a	Hugo	Bleichmar	(1989),	que</p><p>aborda	o	tema	do	narcisismo	considerando	duas	ordens	de	problema,	o	da	relação</p><p>entre	o	ego	e	o	objeto	e	o	da	vivência	de	perfeição,	de	autossatisfação,	de	plenitude.</p><p>Tomando	o	narcisismo	primário	como	objetal,	uma	vez	que	o	próprio	corpo	ou	o</p><p>“si	mesmo”	se	ofereceria	como	objeto	de	amor	para	o	sujeito,	reitera	a	importância</p><p>do	 outro	 na	 construção	 das	 representações	 que	 serão	 base	 das	 identificações.</p><p>Assinala	ainda	que	“identificação	e	narcisismo	são	 incompreensíveis	se	não	forem</p><p>articulados	com	a	divisão	em	consciente	e	inconsciente,	essencial	para	a	psicanálise.</p><p>Com	 relação	 à	 imagem	 inconsciente,	 o	 ego	 e	 o	 outro	 são	 o	mesmo”	 (p.	 36).	H.</p><p>Bleichmar	destaca	ainda	que	o	amor	do	narcisismo	se	caracteriza	pela	idealização,	o</p><p>que	potencializa	os	 sentimentos	de	perfeição,	beleza,	 encantamento	e	 inteligência,</p><p>entre	outras	qualidades	associadas	aos	ideais.</p><p>Remete-nos,	a	partir	daí,	à	constatação	de	que	essas	valorizações	implicam	uma</p><p>ordem	simbólica	que	é	exterior	ao	sujeito	e	na	qual	se	 inscreve.	“É	o	outro	quem</p><p>converte	 meros	 objetos	 anatômicos	 em	 algo	 digno	 de	 ser	 admirado	 como	 belo.</p><p>Resulta	 fácil	 imaginar	 as	múltiplas	 situações	em	que	uma	mãe	pode	converter	 em</p><p>adorados	os	olhos	e	os	cachos	de	cabelos	de	sua	filha	ou	em	notáveis	as	produções</p><p>intelectuais	 ou	 físicas	 das	 mesmas”	 (op.	 cit.,	 p.	 38).	 E	 assinala,	 também,	 que	 o</p><p>narcisismo	dos	pais	estará	diretamente	 referenciado	na	satisfação	de	suas	próprias</p><p>necessidades	de	hiperestima	ao	valorar	seus	filhos.</p><p>Freud	(1923),	ao	apresentar	e	sintetizar	suas	concepções	sobre	o	funcionamento</p><p>mental	–	trabalhando	com	o	conceito	de	inconsciente	e	sua	aplicação	às	instâncias</p><p>psíquicas	 –,	 afirma	 que	 o	 “o	 ego	 é	 acima	 de	 tudo,	 um	 ego	 corporal;	 não	 é</p><p>simplesmente	 uma	 entidade	 de	 superfície,	 mas	 é,	 ele	 próprio	 a	 projeção	 de	 uma</p><p>superfície”,	e	esclarece	em	nota	de	rodapé	como	se	constitui,	em	última	análise,	a</p><p>partir	 das	 sensações	 corporais	 que	 ganharão	 representação	 mental	 no	 aparelho</p><p>psíquico.</p><p>Assim,	 não	 podemos	 deixar	 de	 considerar	 que	 o	 corpo	 do	 bebê	 nesse</p><p>primeiríssimo	tempo	fica	à	mercê	do	inconsciente	materno	e	que	poderá	fixar,	por</p><p>consequência,	marcas,	no	que	virá	a	ser	representado	como	ego	corporal.	Nos	casos</p><p>de	 pacientes	 com	 anorexia	 nervosa,	 podemos	 levantar	 a	 hipótese	 de	 que	 essas</p><p>marcas	 resultam	 de	 aspectos	 fusionados	 ao	 narcisismo	 materno,	 muito</p><p>provavelmente	também	produto	das	representações	do	seu	próprio	ego	corporal.</p><p>Não	é	raro	nos	depararmos	com	mães	que	apresentam	insatisfações	importantes</p><p>com	 sua	 aparência	 e	 que	 se	 preocupam	 excessivamente	 com	 seu	 corpo	 e	 sua</p><p>alimentação.	Apresentam	ideais	e	exigências	que	muitas	vezes	recaem	não	somente</p><p>sobre	si,	mas	sobre	toda	família.	Também	não	é	incomum	o	caráter	transgeracional</p><p>nessas	famílias.</p><p>Além	disso,	temos	observado	que	oito	em	cada	dez	pacientes	do	sexo	feminino</p><p>que	 têm	 anorexia	 nervosa	 são	 filhas	 únicas	 ou	 primogênitas,2	 o	 que	 sugere	 a</p><p>importância	da	subjetivação	da	feminilidade	na	dupla	mãe-filha.</p><p>Dessa	 forma,	 a	 problemática	 resultante	 para	 essa	menina	 parece	 ser	 conseguir</p><p>superar,	separar	o	que	seria	um	ideal	do	outro	impingido	em	seu	corpo/psiquismo.</p><p>Quando	 por	 ocasião	 de	 uma	 nova	 convocação,	 também	 dada	 pelo	 corpo,	 de</p><p>diferenciação	 e	 consequente	 independência	 identificatória,	 uma	 falha	 parece	 se</p><p>impor	e	nos	vemos	diante	um	destino	dado	ao	pulsional	que	causa	estranhamento	e</p><p>dor:	 a	 libido	 que	 deveria	 se	 desligar	 de	 um	objeto	 e	 ganhar	 novos	 investimentos</p><p>retorna	ao	ego,	só	que,	nesse	caso,	ao	ego	corporal	que	encarnaria	representações</p><p>identificatórias	primitivas.</p><p>Em	artigo	 já	 citado	 (GONZAGA,	2010),	 considerei	 que	para	poder	 continuar</p><p>vivendo,	a	anoréxica	tem	a	tarefa	de	desencarnar	esse	objeto	intrusivo,	incrustrado</p><p>no	que	propus	ser	seu	narcisismo	corporal.</p><p>A	anorexia	e	o	trabalho	da	melancolia</p><p>O	que	aconteceria	então	com	nossas	pacientes	que	desenvolvem	um	quadro	de</p><p>anorexia?</p><p>Ao	 considerarmos	 a	 maior	 incidência	 dessa	 patologia	 na	 adolescência	 das</p><p>garotas,	 inevitavelmente	 remeteremos	 aos	 lutos	 que	 demandam	 elaboração	 por	 si</p><p>nessa	 fase	do	desenvolvimento	–	 luto	 ao	próprio	 corpo,	 à	 identidade	 infantil,	 aos</p><p>pais	 da	 infância	 e	 à	 bissexualidade.	 O	 que	 parece	 já	 ser	 uma	 tarefa	 difícil	 é</p><p>potencializada,	 via	 de	 regra,	 por	 outras	 perdas	 significativas	 já	 citadas	 (decepção</p><p>amorosa,	mudança,	separações,	viagens,	intercâmbio,	etc.),	e	então	assistimos	a	essa</p><p>jovem	atribuir	a	um	suposto	“defeito”	em	seu	corpo	a	causa	de	seu	fracasso.</p><p>Parece,	sobretudo,	que	diante	do	fracasso	de	um	processo	de	luto	normal,	o	que</p><p>poderia	 ser	 um	 trabalho	 melancólico	 que	 lhe	 outorgasse	 a	 possibilidade	 de</p><p>encontrar	 em	 representações	 mentais	 a	 identificação	 narcísica	 própria	 a	 esse</p><p>processo	vai	além	e	transfere	para	o	corpo	a	tarefa	de	realizar	tal	processo.</p><p>A	ambivalência	das	relações	amorosas,	que	já	configura	na	melancolia	o	amor	e	o</p><p>ódio	 dirigidos	 ao	 objeto,	 encontra	 aqui	 peculiar	 expressão.	 A	 entrada	 na</p><p>adolescência	da	menina	lhe	impõe	a	tarefa	de	desligar	as	representações	próprias	ao</p><p>seu	mundo	infantil	e,	nesse	caso,	nos	parece	que	a	força	dos	investimentos	impede</p><p>que	 esse	 desligamento	 siga	 um	 processo	 de	 luto	 próprio	 a	 essa	 etapa	 evolutiva.</p><p>Freud	(1923,	p.	81)	enfatiza	que,	para	haver	um	trabalho	de	luto,	as	representações</p><p>devem	 encontrar	 um	 caminho	 fluido	 do	 sistema	 inconsciente	 para	 o	 pré-</p><p>consciente/consciente,	e	que	o	mesmo	não	acontece	na	melancolia:	“esse	caminho</p><p>está	 bloqueado	para	 o	 trabalho	melancólico,	 talvez	 em	 consequência	 de	 inúmeras</p><p>causas	ou	de	uma	ação	conjunta	de	causas”.</p><p>Reitero,	mais	do	que	um	bloqueio	que	impeça	a	derivação	para	as	representações</p><p>mentais	 inconscientes	 –	 que,	 no	 caso,	 promoveria</p><p>um	quadro	 de	melancolia	 –,	 o</p><p>que	observamos	é	essa	derivação	para	 representações	corporais.	Parece	que	nesse</p><p>trabalho	 regressivo	 o	 ego	 já	 encontra	 o	 próprio	 objeto	 encarnado	 –	 e	 não	 a</p><p>“sombra	do	objeto”,	 como	assinala	Freud	como	característica	 central	do	 trabalho</p><p>da	melancolia.</p><p>Seguindo	 o	 texto	 freudiano,	 ao	 tratar	 a	 tendência	 ao	 suicídio	 na	 melancolia,</p><p>teremos	que	considerar	que:</p><p>[…]	 a	 análise	 da	melancolia	 nos	 ensina	 que	 o	 ego	 só	 pode	matar	 a	 si	 próprio	 se</p><p>puder,	por	meio	do	retorno	do	investimento	de	objeto,	tratar-se	como	um	objeto,	se</p><p>puder	dirigir	contra	si	a	hostilidade	que	vale	para	o	objeto	e	que	representa	a	reação</p><p>primordial	do	ego	contra	os	objetos	do	mundo	externo	(op.	cit.,	p.	69).</p><p>A	confusão	que	se	estabelece	no	espelho	da	anoréxica	parece	nos	contar	sobre	a</p><p>falta	de	discernimento	entre	ego,	objeto	e	ego	corporal.	Confusão	essa	decorrente</p><p>do	superinvestimento	do	narcisismo	materno	que	potencializa	o	que	 lhe	 foi	dado</p><p>como	 enunciado	 inconsciente,	 e	 que	 a	 impossibilita	 de	 realizar	 um	 processo</p><p>melancólico	 exitoso,	 que	 lhe	 ofereceria	 representações	mentais	 para	 elaborar	 seus</p><p>lutos	 e	 que	 outorgaria	 ao	 ego	 sua	 principal	 atribuição,	 o	 discernimento.	 Ela</p><p>sucumbe,	não	percebe	que	castiga	 seu	corpo;	 ao	contrário,	 tem	plena	certeza	que</p><p>não	se	alimentando	está	cuidando	de	um	corpo	deformado	pela	gordura.	Dito	de</p><p>outra	maneira:	está	tentando	pela	via	motora	desinvestir	a	libido	que	recai	sobre	o</p><p>objeto	de	amor	e	ódio.	Reage	maniacamente:	 luta	com	toda	energia,	 resultante	da</p><p>retirada	da	libido	objetal,	contra	si	mesma,	mas	acreditando	que	dominou	o	inimigo.</p><p>O	trabalho	clínico</p><p>Laplanche	(2015[2003],	p.	194)	também	enfatiza	a	importância	das	relações	inter-</p><p>humanas	na	gênese	do	psiquismo	do	infans,3	sobretudo	por	seu	caráter	assimétrico</p><p>no	que	diz	 respeito	 à	 sexualidade,	 e	 atribui	 a	 esse	 encontro	uma	peculiaridade	na</p><p>comunicação,	 comprometida	 pelo	 inconsciente,	 que	 resultaria	 em	 mensagens</p><p>enigmáticas.</p><p>A	 situação	 antropológica	 fundamental	 confronta,	 num	 diálogo</p><p>simétrico/dissimétrico,	 um	 adulto	 que	 possui	 um	 inconsciente	 sexual</p><p>(essencialmente	pré-genital)	e	um	infans	que	ainda	não	constituiu	um	inconsciente,</p><p>nem	 a	 oposição	 inconsciente/consciente.	 O	 inconsciente	 sexual	 do	 adulto	 é</p><p>reativado	 na	 relação	 com	 a	 criança	 pequena,	 com	o	 infans	 […]	Estas	mensagens</p><p>são,	então,	enigmáticas,	ao	mesmo	tempo	para	o	emissor	adulto	e	para	o	receptor,	o</p><p>infans.</p><p>Recorro	a	essas	considerações	de	Laplanche,	pois	a	partir	daí	ele	discorrerá	sobre</p><p>o	 caráter	 traumático	 dessa	 implantação	 e	 do	 que	 resultará	 como	 trabalho	 de</p><p>tradução	por	esse	psiquismo	 incipiente,	o	que	constituirá	uma	tarefa	 importante	a</p><p>ser	elaborada	ao	longo	da	existência.	Contudo,	nos	alerta,	essa	tarefa	pode	fracassar,</p><p>parcial	 ou	 integralmente,	 e	 essas	mensagens	 podem	 carecer	 de	 tradução.	Assinala</p><p>que	“o	fracasso	da	tradução	pode	ter	por	resultado	especialmente	uma	transmissão</p><p>tal	qual,	intergeracional,	sem	nenhuma	metabolização”	(p.	197).	Laplanche	aponta,	a</p><p>partir	daí,	para	a	organização	do	funcionamento	psíquico	desde	o	que	consideramos</p><p>normal	 ou	 neurótico	 até	 o	 borderline	 ou	 psicótico,	 ressaltando	 que	 “existiria	 em</p><p>todo	 ser	 humano	 uma	 espécie	 de	 estoque	 de	mensagens	 não	 traduzidas:	 algumas</p><p>praticamente	 impossíveis	de	 traduzir,	outras	na	espera	provisória	de	 tradução”	 (p.</p><p>199).</p><p>No	 trabalho	 com	 pacientes	 com	 anorexia	 nervosa,	 levar	 em	 conta	 essas</p><p>considerações	me	ajudaram	a	refletir	sobre	como	operar	terapeuticamente	com	os</p><p>dispositivos	 analíticos	 que	 referenciam	 a	 clínica.	 Via	 de	 regra,	 não	 há	 como</p><p>trabalhar	 classicamente	 com	 a	 associação	 livre,	 interpretações	 ou	 análise	 da</p><p>transferência.	 Percebo-me	 diante	 de	 pacientes	 que	 não	 têm	 “vocabulário”	 para</p><p>traduzir	 suas	 insatisfações	 ou	 queixas,	 que	 pudessem	 minimamente	 remeter	 a</p><p>conflitos	com	estatuto	representacional.	O	corpo	é	que	confere	esse	estatuto	e	que</p><p>se	apresenta	marcado	por	signos	que	carecem	dessa	tradução.</p><p>Acompanhar	essas	pacientes,	desde	as	queixas	corporais,	que	não	têm	veracidade</p><p>ou	realidade,	me	parece	uma	forma	de	dar	alguma	possibilidade	de	conversa	sobre</p><p>algo	 que	 não	 se	 sabe	 falar.	 Se	 muito	 apressadamente	 tentamos	 dar	 um	 estatuto</p><p>representacional	 ao	 que	 está	 sendo	 apresentado,	 fracassamos	 de	 imediato.	 Ter	 a</p><p>delicadeza	de	reconhecer	a	falta	de	repertório	que	pudesse	atribuir	significados	ao</p><p>sofrimento	experimentado	por	esse	corpo	percebido	como	deformado	é,	a	meu	ver,</p><p>uma	possibilidade	de	 trabalho	 analítico.	Perceber	 que	o	 corpo	 é	 o	 depositário	 do</p><p>que	não	tem	tradução,	do	que	não	foi	metabolizado,	quase	sempre	por	mais	de	uma</p><p>geração,	 é	 realmente	 oferecer	 recursos	 para	 alguma	 elaboração.	 Sentimentos	 e</p><p>sensações	 ganham	 equivalências	 difíceis	 de	 serem	 discernidas,	 muitas	 vezes	 pela</p><p>paciente	e,	na	melhor	das	hipóteses,	algumas	vezes	pelo	analista.</p><p>A	morte	não	está	em	questão	como	possibilidade	real	para	a	anoréxica,	ela	não</p><p>tem	por	intenção	morrer.	Só	poderá	viver	se	puder	matar	sua	imagem	especular.	E,</p><p>assim	 acredito,	 temos	 no	 espelho	 uma	 imagem	 fusionada,	 herança	 dos</p><p>primeiríssimos	 tempos,	 em	 que	 o	 ego	 corporal	 impede	 que	 as	 representações</p><p>mentais	 possam	 servir	 ao	 psiquismo,	 conferindo	 um	 caráter	 mais	 regressivo	 ao</p><p>trabalho	da	melancolia,	que	encontra	no	corpo	sua	expressão.</p><p>A	melancolia	 que	 não	 pode	 ser	 elaborada	 confere	 ao	 corpo	 da	 anoréxica	 um</p><p>estandarte	que	denuncia	seu	sofrimento,	mas	não	para	ela	mesma.	Estamos	quase</p><p>sempre	 aquém	 de	 algo	 que	 possa	 demandar	 um	movimento	 terapêutico.	 Refletir</p><p>essa	queixa,	transformar	em	representações	que	outorguem	trabalho	psíquico	como</p><p>nos	ensina	Freud,	requer	do	analista	um	passo	a	mais:	construir	pontes	para	que	as</p><p>palavras	possam	de	fato	contemplar	seu	objetivo	e	dar	estatuto	representacional	ao</p><p>corpo.	 Capturar	 as	 mensagens	 em	 espera	 de	 tradução	 e	 aí	 sim	 poderemos	 falar</p><p>sobre	 as	 insatisfações	 –	 as	 autorreprovações	 dadas	 pelos	 ideais	 –,	 as	 reais</p><p>mandatárias	desse	sofrimento.	Aí	sim	poderemos	nos	aproximar	do	objeto	que	está</p><p>encarnado	 ou	 encravado	 –	 na	 compreensão	 de	 Laplanche	 –	 e	 promover	 sua</p><p>“fantasmatização”,	para	que	a	“sombra	do	objeto	recaia	sobre	o	ego”	e	um	trabalho</p><p>de	luto/melancolia	se	faça	possível.</p><p>Notas:</p><p>1.	Este	capítulo	é	uma	modificação	do	artigo	publicado:	Anorexia:	A	failure	of 	the	work	of 	a	melancholia.	São</p><p>Paulo,	Revista	Latinoamericana	de	Psicopatologia	Fundamental,	15(3):649-656,	sept	2012	(Suppl.).</p><p>2.	Dados	obtidos	na	Clínica	de	Estudos	e	Pesquisas	em	Psicanálise	da	Anorexia	e	Bulimia	–	CEPPAN.</p><p>3.	Criança	que	não	fala.</p><p>Referências</p><p>BLEICHMAR,	 H.	 Depressão:	 um	 estudo	 psicanalítico.	 3.	 ed.	 Porto	 Alegre:	 Artes</p><p>Médicas,	1989.</p><p>BLEICHMAR,	S.	Clínica	psicanalítica	e	neogênese.	São	Paulo:	São	Annablume	Editora,</p><p>2005.</p><p>FREUD,	S.	[1915]	Sobre	o	narcisismo:	uma	introdução.	In:	Edição	Standard	Brasileira</p><p>das	Obras	Psicológicas	Completas	de	Sigmund	Freud.	Rio	de	Janeiro:	Imago.	1976.	v.	XIV.</p><p>_________.	[1923]	O	Ego	e	o	Id.	In:	Edição	Standard	Brasileira	das	Obras	Psicológicas</p><p>Completas	de	Sigmund	Freud.	Rio	de	Janeiro:	Imago,	1976.	v.	XIX.</p><p>_________.	Luto	e	melancolia.	São	Paulo:	Cosac	Naify,	2011.</p><p>LAPLANCHE,	J.	Três	acepções	da	palavra	“inconsciente”	no	âmbito	da	teoria	da</p><p>sedução	generalizada.	In:	LAPLANCHE,	J.	Sexual	–	A	sexualidade	ampliada	no	sentido</p><p>freudiano	–	2000	–	2008.	Porto	Alegre:	Dublinense,	2015.</p><p>GONZAGA,	 A.	 P.	 Se	 esse	 corpo	 fosse	 meu…	 –	 Considerações	 sobre	 o</p><p>estranhamento	 na	 anorexia.	 In:	 GONZAGA,	 A.	 P.;	 WEINBERG,	 C.	 (orgs.).</p><p>Psicanálise	de	transtornos	alimentares.	São	Paulo:	Primavera,	2010.</p><p>_____________.	 Anorexia:	 A	 failure	 of 	 the	 Work	 of 	 Melancholia.	 Revista</p><p>Latinoamericana	 de	 Psicopatologia	 Fundamental,	 São	 Paulo,	 15(3):649-656,	 sept.	 2012</p><p>(Suppl.).</p><p>A	RELEVÂNCIA	DA	INTERAÇÃO	DA	EQUIPE</p><p>MULTIDISCIPLINAR	FORA	DAS	INSTITUIÇÕES</p><p>SOB	A	ÓTICA	SIMBÓLICA	QUE	OPERA	NO	MANEJO</p><p>CLÍNICO	DOS	TRANSTORNOS	ALIMENTARES1</p><p>Ana	Tereza	Arantes	de	Almeida	Alonso</p><p>“Gostaria	de	ser	um	crocodilo	vivendo	no	Rio	São	Francisco.</p><p>Gostaria	de	ser	um	crocodilo	porque	amo	os	grandes	rios,</p><p>pois	são	profundos	como	a	alma	de	um	homem.</p><p>Na	superfície	são	muito	vivazes	e	claros,	mas	nas	profundezas</p><p>são	tranquilos	e	escuros	como	o	sofrimento	dos	homens.”</p><p>–	Guimarães	Rosa</p><p>Grande	Sertão	Veredas</p><p>Introdução</p><p>Na	proposta	de	falar	algo	sobre	os	transtornos	alimentares,	devemos	ter	sempre</p><p>em	 mente	 que	 estamos	 tocando	 em	 patologias	 complexas	 que	 têm	 etiologia</p><p>multifatorial	e	não	são	circunscritas	a	fatores	socioeconômicos	ou	culturais.	Dentro</p><p>da	 tal	 complexidade,	 se	 faz	 necessária	 uma	 intervenção	 multidisciplinar	 para	 o</p><p>tratamento.</p><p>Esse	 consenso	 compartilhado	 pelos	 profissionais	 que	 trabalham	 com</p><p>transtornos	 alimentares	 e	 suas	 síndromes	 parciais	 é	 baseado	 em	 evidências</p><p>científicas	 e	 trabalhos	 consistentes	 realizados,	 na	 grande	 maioria	 das	 vezes,	 em</p><p>instituições	de	porte,	mantidas	com	recursos	governamentais.</p><p>Esses	 redutos	 institucionais	 são	 capazes	 de	oferecer	 um	 trabalho	 simultâneo	 e</p><p>integrado	 da	 equipe,	 tendo	 como	 tratamento	 padrão	 a	 participação	 de	 médicos</p><p>clínicos,	 endocrinologistas,	 psiquiatras	 e	 psicólogos	 (atendimento	 individual	 e</p><p>condução	 de	 grupos	 psicoeducativos	 com	 as	 famílias),	 nutricionistas	 e	 outros</p><p>profissionais	 da	 saúde.	 É	 na	 riqueza	 dessas	 diferentes	 frentes	 de	 atuação	 e	 na</p><p>interação	constante	da	equipe	que	os	melhores	resultados	puderam	ser	atingidos	até</p><p>hoje.</p><p>Ocorre	que	esses	redutos	de	trabalho	têm	uma	possibilidade	restrita	de	recepção</p><p>de	 pacientes,	 muitas	 vezes	 com	 fila	 de	 espera	 e,	 por	 serem	 instituições	 públicas,</p><p>precisam	se	organizar	diante	da	melhora	de	cada	caso	para	uma	“alta	institucional”,</p><p>disponibilizando	novas	vagas	para	os	pacientes	mais	graves	que	aguardam.	Porém,	a</p><p>alta	institucional	não	está	ligada	ao	esgotamento	da	necessidade	de	continuidade	de</p><p>trabalho,	 e	 sim,	 às	 condições	 possíveis	 para	 aquele	 paciente	 seguir	 sustentando</p><p>determinados	processos	com	maior	autonomia	e	fora	da	instituição.</p><p>Esses	pacientes	são,	na	grande	maioria	das	vezes,	encaminhados	para	processos</p><p>em	 consultórios	 particulares:	 terapêuticos,	 acompanhamento	 nutricional	 e</p><p>psiquiátrico.	Tal	equipe	é	única,	por	se	configurar	em	torno	daquele	paciente.</p><p>Busco	aqui	apresentar	um	panorama	de	algumas	questões	psíquicas	de	complexa</p><p>densidade	 e	 determinantes	 dos	 transtornos	 alimentares,	 com	 as	 quais	 os</p><p>profissionais	 que	 se	 propõem	 a	 trabalhar	 no	 atendimento	 desses	 pacientes	 se</p><p>deparam.	 E,	 conclusivamente,	 pretendo	 abordar	 a	 potencialidade	 da	 riqueza</p><p>simbólica	 a	 ser	 trabalhada	 –	 na	 terapia	 –	 e	 na	 transferência	 –	 em	 um	 processo</p><p>terapêutico	integrado	a	uma	equipe	multidisciplinar,	constante	e	atuante.	Portanto,	o</p><p>argumento	 que	 defendo	 é	 a	 absoluta	 relevância	 da	 interação	 da	 equipe</p><p>multidisciplinar	 fora	 das	 instituições,	 sob	 a	 ótica	 simbólica	 que	 opera	 no	manejo</p><p>clínico	 desses	 casos,	 articulada	 com	 as	 questões	 subjetivas	 presentes	 no</p><p>funcionamento	desses	pacientes.</p><p>Questões	subjetivas	relativas	aos	transtornos	alimentares</p><p>Os	 transtornos	 alimentares	 apresentam	características	 que	 se	 iniciam	em	 idade</p><p>muito	precoce	e	por	anos	correm	o	risco	de	permanecer	sem	serem	notadas,	ainda</p><p>mais	 na	 sociedade	 atual,	 que,	 predominantemente,	 não	 oferece	 um	 olhar	 de</p><p>estranhamento	 para	 um	 corpo	 muito	 emagrecido,	 para	 restrições	 alimentares</p><p>severas	 e	 até	 para	 a	 exclusão	 de	 certos	 grupos	 de	 alimentos	 com	 a	 intenção	 de</p><p>perder	peso.</p><p>É	na	adolescência,	quando	a	progressão	da	doença	captura	a	atenção	de	que	algo</p><p>realmente	 sério	 está	 acontecendo	 na	 vida	 daquela	 pessoa,	 que	 a	 maioria	 dos</p><p>diagnósticos	são	feitos.	Steinhausen	(2002)	nos	diz	que	os	transtornos	alimentares</p><p>“acometem	cerca	de	1%	dos	adolescentes,	podendo	chegar	a	consequências	graves</p><p>(alta	morbidade).	Além	disso,	são	responsáveis	por	1%	a	18%	da	mortalidade”	(apud</p><p>BILYC,	2008,	p.	1284-1293).</p><p>A	 adolescência	 é	 um	período	 de	 intensas	 transformações,	 uma	 fase	 em	 que	 o</p><p>trânsito	 da	 dependência	 para	 a	 independência	 está	 em	 curso.	 As	 mudanças	 na</p><p>dinâmica	familiar,	dentro	de	casa,	e	sociais,	no	contexto	escolar	–	até	então	os	dois</p><p>universos	mais	conhecidos	e	seguros	–	estão	a	todo	vapor.</p><p>Outra	“casa”	primordial	 também	muda,	 transformações	corporais	significativas</p><p>modificam	esse	corpo	conhecido	em	suas	 formas,	 funcionamentos	e	 reações	ante</p><p>questões	internas	e	externas.	Tudo	isso	é	muito	assustador	na	vivência	do	sujeito,	da</p><p>família	nuclear	e	expandida	e	professores.	A	velocidade	de	processamento	com	que</p><p>essas	mudanças	se	darão	não	é	igual	interna	e	externamente,	promovendo	angústias,</p><p>medos	e	apreensões.	Pesquisas	e	testes	serão	atuados	na	realidade	pelo	adolescente,</p><p>na	tentativa	de	construir	e	enriquecer	o	percurso	único	e	autoral	da	constituição	da</p><p>própria	personalidade.	As	figuras	de	identificação	até	então,	materna	e	paterna,	são</p><p>vividas	com	enorme	ambiguidade	e	a	família	sente	o	“curto-circuito”	desses	novos</p><p>formatos	de	relação.</p><p>Essas	 primeiras	 decolagens	 da	 vida	 em	 voo	 solo	 no	 sentido	 da	 individuação</p><p>exigem	a	diferenciação	e	a	discriminação	do	que	é	sentido	como	“eu”	e	como	“não</p><p>eu”.</p><p>Tratando-se	 de	 pessoas	 com	 transtorno	 alimentar,	 nas	 quais	 a	 problemática</p><p>orbita	justamente	pela	precária	possibilidade	que	tiveram	de	se	diferenciar	do	objeto</p><p>e	 constituir	 relação	 entre	 eu	 e	 outro	 (ponto	 que	me	 debruçarei	 mais	 adiante),	 o</p><p>corpo	 que	 se	 impõe	 com	 novas	 formas	 e	 possibilidades	 é	 sentido	 como</p><p>extremamente	 ameaçador	 e	 já	 um	 outro	 em	 si.	 A	 recusa	 e/ou	 a	 desorganização</p><p>diante	dessa	condição	do	desenvolvimento	humano	–	adolescência	–	desencadeiam</p><p>o	 sentimento	 de	 grande	 descontrole,	 ainda	 mais	 intenso	 na	 vivência	 desses</p><p>pacientes	 que	 têm	uma	 falha	 na	 constituição	 egoica.	Com	um	 ego	 precariamente</p><p>estabelecido,	incapaz	de	ancorar	tal	volume	de	angústia,	movimentos	na	tentativa	de</p><p>interceptar	 a	 sensação	 de	 desamparo	 e	 descontrole	 são	 promovidos	 e	 abre-se	 o</p><p>caminho	 para	 que	 intensas	 investidas	 de	 controle	 se	 deem	 no	 mundo	 externo	 e</p><p>concreto.	 Portanto,	 o	 que	 ocorre	 é	 uma	 defesa	 ante	 a	 angústia	 resultante	 das</p><p>intensas	modificações	supracitadas.</p><p>Exemplifico	aqui	com	a	carta	de	uma	adolescente	com	transtorno	alimentar:</p><p>Corpo,</p><p>não	tenho	muito	a	dizer,	você	sabe	o	quanto	te	odeio	por	não	ser	como	eu	quero,</p><p>até	aceito	não	ser	alta	mas	não	admito	que	não	possa	ser	magra,	esquelética	do	jeito</p><p>que	eu	gosto	principalmente	nas	coxas	que	é	o	que	eu	mais	odeio	em	você.	Não</p><p>posso	 ceder	 às	 suas	 vontades	 porque	 se	 eu	 deixo	 você	 seguir	 o	 seu	 percurso</p><p>biológico	 naturalmente	 sei	 que	 você	 será	maior	me	 deixando	 com	mais	 curvas	 e</p><p>tornealidade	do	mesmo	jeito	que	você	era	quando	eu	tinha	14	anos	(coxas	grossas</p><p>enormes	e	cheias	de	celulite)	inadmissíveis	na	sociedade.</p><p>É	 obvio	 que	 não	 gosto	 de	me	 sentir	 cansada,	 indisposta	 às	 vezes	 com	 dores	 no</p><p>corpo	ou	então	passar	mal,	eu	sei	como	é	e	o	quanto	é	ruim	e	o	quanto	você	não</p><p>me	ajuda	com	relação	a	muitas	coisas	na	alimentação	e	“não”	sinto	ao	lhe	informar</p><p>que	 não	 consigo,	 não	 devo,	 não	 posso	 e	 não	 vou	 parar	 até	 encontrar	 o	 “meu</p><p>equilíbrio”,	o	equilíbrio	que	quero,	é	claro.</p><p>Não	sei	se	algum	dia	vou	poder	parar,	não	faço	ideia	de	até	quando	vou	continuar</p><p>cavando	e	jogando	terra	no	mesmo	buraco.</p><p>Outra	coisa	que	não	te	suporto	são	as	vezes	em	que	do	nada	me	faz	sentir	fome,</p><p>aquela	fome	maior	do	que	o	“meu	normal”,	isso	me	incomoda,	me	deixa	com	muita</p><p>raiva	e	por	isso	muitas	vezes	te	burlo	e	não	cumpro	os	combinados	que	faço.</p><p>Não	 te	 suporto,	 não	 vou	 ficar	 do	 jeito	 que	 você	 quer	 e	 não	 vou	 permitir	 essa</p><p>tragédia	na	minha	vida,	vou	ser	bem	sincera	com	você,</p><p>a	verdade	é	que	por	tempo</p><p>indeterminado	não	conte	comigo	pois	já	estou	fazendo	demais	por	você.	Muito	mal</p><p>sabe	você	o	inferno	interno	que	eu	tenho	e	muito	menos	o	demônio	que	comanda</p><p>isso	tudo	e	fica	falando,	falando,	falando	e	falando	coisas	dentro	da	minha	cabeça</p><p>todos	os	dias,	para	que	eu	nunca	me	esqueça	de	que	ele	está	e	sempre	estará	ali	me</p><p>atormentando	 e	 me	 “acompanhando”	 sempre.	 Por	 tanto	 me	 sinto	 com	 todo	 o</p><p>direito	de	jogar	na	sua	cara	que	estou	pouco	me	lixando	para	você.</p><p>Na	 busca	 por	 uma	 oportunidade	 representacional	 que	 visa	 a	 uma	 elaboração,</p><p>funcionamentos	obsessivos	podem	ser	atuados	em	diversas	situações:	o	grama	no</p><p>peso	 corporal,	 o	 milímetro	 na	 circunferência	 da	 coxa,	 o	 ritual	 da	 alimentação	 e</p><p>distribuição	do	alimento	no	prato…	Por	certo	período,	uma	paciente	chegou	quase</p><p>a	 ficar	 careca,	 pois	 não	 admitia	 que	 seus	 cabelos	 não	 nascessem	 em	 uma	 linha</p><p>perfeita.	Ela	arrancou	progressivamente	cada	fio,	na	esperança	de	atingir	 tal	 linha.</p><p>Media	suas	coxas	todos	os	dias	com	a	mesma	fita	métrica	e,	como	consequência	de</p><p>uma	oscilação	indesejada	de	milímetro,	se	punia	fisicamente.</p><p>Nessa	 fase,	 o	 dano	 em	 curso	 afeta	 toda	 a	 potencialidade	 de	 vida	 desses</p><p>indivíduos:	aspectos	do	funcionamento	físico,	mental	e	social	são	prejudicados.	O</p><p>desenvolvimento	nutricional	deficitário	muitas	vezes	compromete	o	crescimento	e	a</p><p>chegada	dos	caracteres	secundários	de	gênero.	Todos	os	investimentos	libidinais	são</p><p>tingidos	pela	dinâmica	de	sua	vida	psíquica.</p><p>Tal	 dinâmica	 detém	 questões	 primitivas,	 datadas	 do	 período	 pré-edípico.	 Os</p><p>aspectos	de	fusionalidade	são	frequentes,	e	a	rigidez	superegoica	primitiva	também</p><p>se	faz	presente.	McDougall	(2000,	p.	158-9)	relata	que:</p><p>A	 doença	 é	 uma	 maneira	 muda	 do	 comunicar	 pensamentos	 e	 sentimentos	 que</p><p>nunca	 tinham	podido	 ser	 elaborados	psiquicamente,	 é	 uma	 expressão	de	 temores</p><p>libidinais	 arcaicos	 e	 de	 desejos	 fusionais	 acessíveis	 à	 consciência,	 porém</p><p>acompanhados	de	fúria	narcísica	e	de	pavor	primitivo,	totalmente	inconscientes.</p><p>Retomo	aqui	o	olhar	para	as	relações	primárias	do	desenvolvimento	psíquico.	A</p><p>relação	 inaugural	 que	 temos	 com	 o	 mundo	 se	 dá	 através	 da	 mãe.	 É	 diante	 da</p><p>intenção	 de	 despender	 os	 cuidados	 físicos	 necessários	 que	 a	 experiência	 de</p><p>satisfação	 advirá.	 Nessa	 vivência,	 como	 diz	 Freud	 (1895),	 determinada	 parte	 do</p><p>corpo	será	alçada	a	ser	uma	zona	erógena.	Existe	aqui	a	marca	da	diferença	entre</p><p>uma	parte	 corporal	 e	 uma	 zona	 erógena,	 aquela	 que,	 para	 além	do	 estancamento</p><p>momentâneo	 da	 necessidade	 física,	 vivencia	 a	 sensação	 de	 prazer,	 e	 recebe	 para</p><p>sempre	 a	 marca	 do	 desejo.	 Essa	 primeira	 relação	 objetal	 será	 de	 alguma	 forma</p><p>balizadora	para	todas	as	relações	objetais	futuras.</p><p>Transitando	também	por	autores,	como	Aulagnier,	Bleichmar,	Laplanche,	amplio</p><p>a	importância	do	primeiro	olhar,	o	materno.	Olhar	este	que	carrega	as	marcas	das</p><p>vivências	 da	mãe	 e	 denuncia	 a	 forma	 com	 que	 ela	 lidou	 e	 o	 quanto	 elaborou	 as</p><p>próprias	 pulsões	 parciais.	 Essa	 relação	 se	 dará	 recoberta	 pelo	 próprio	 narcisismo</p><p>materno,	 que	 tomará	 o	 bebê	 como	 objeto	 sexual,	 e	 os	 cuidados	 serão</p><p>desempenhados	sob	a	convocação	do	infantil	materno.</p><p>Laplanche	(1999)	diz	que	a	sexualidade	e	a	pulsão	vêm	do	outro,	defendendo	o</p><p>inconsciente	materno	como	fundante,	o	qual	 contamina	o	biológico	e	 inscreve	as</p><p>vivências	 de	 satisfação.	 Mas	 aqui,	 tratando	 da	 problemática	 presente	 nos</p><p>transtornos	alimentares,	direcionarei	minha	atenção	para	a	questão	da	intensidade	e</p><p>da	 qualidade	 com	 que	 tudo	 isso	 é	 vivido.	 A	 intensidade	 e	 a	 qualidade	 de</p><p>investimento	 que	 ele	 receberá	 nessa	 relação	 primeva	 serão	 determinantes	 para</p><p>delinear	a	amplitude	que	o	trânsito	da	pulsão	de	morte	terá	dentro	do	psiquismo	do</p><p>sujeito,	 e	 toda	 sua	 possibilidade	 futura	 de	 realizar	 investimentos	 libidinais</p><p>encontrará,	nessa	vivência,	seu	alicerce.</p><p>Pierre	 Bourdieu	 (1974)	 chama	 a	 atenção	 para	 a	 violência	 existente	 no</p><p>movimento	 de	 introduzir	 o	 bebê	 em	 uma	 cultura	 por	meio	 do	 contato	materno.</p><p>Aqui	nos	deparamos	com	a	violência	simbólica	que	ocorre	no	encontro	entre	a	mãe</p><p>e	 seu	 bebê,	 e	 que	 não	 é	 destrutiva,	 mas	 importantíssima	 e	 constitutiva.	 A</p><p>destrutividade	 aí	 estaria	 ligada	 à	 intensidade	 do	 investimento,	 em	 que	 um	 não</p><p>investimento	ou	um	hiperinvestimento,	são	os	grandes	perigos.</p><p>Para	McDougall	(2000,	p.	44):</p><p>À	medida	que	se	dá	a	lenta	introjeção	do	ambiente	maternal,	o	lactente	começará	a</p><p>fazer	a	diferença	entre	si	mesmo	e	sua	mãe	e	a	recorrer	a	ela	com	total	confiança,</p><p>para	que	ela	 lhe	traga	reconforto	e	alívio	de	seu	sofrimento	físico	ou	mental.	Mas</p><p>quando,	 por	 razões	 inconscientes,	 uma	 mãe	 não	 consegue	 proteger	 o	 bebê	 da</p><p>superestimulação	traumática	(especialmente	quando	ele	está	sofrendo),	ou	quando	o</p><p>expõe	 a	 subestimulação	 igualmente	 traumática,	 isso	 pode	 levá-lo	 a	 uma</p><p>incapacidade	de	distinguir	a	representação	de	si	mesmo	da	representação	do	outro.</p><p>Consequentemente	pode	suscitar	uma	representação	arcaica	na	qual	os	contornos</p><p>do	corpo,	o	investimento	das	zonas	erógenas	e	a	distinção	entre	o	corpo	materno	e</p><p>o	corpo	da	criança	permanece	confusa.</p><p>Nos	 pacientes	 com	 transtornos	 alimentares,	 os	 estudos	 embasados	 na</p><p>experiência	clínica	apontam	para	um	comprometimento	dessa	relação,	na	qual	uma</p><p>vivência	de	excesso	é	tão	comprometedora	como	uma	aridez	afetiva.	As	primeiras</p><p>relações	vividas	por	eles	–	ou	de	mais,	ou	de	menos	–	acarretarão	uma	precariedade</p><p>no	 estabelecimento	 do	 ego,	 carregando	 consigo	 uma	 falha	 na	 instauração	 do</p><p>aparelho	 psíquico.	 A	 falha	 no	 funcionamento	 psíquico	 dos	 pacientes	 com</p><p>transtornos	 alimentares	 reside	 na	 precariedade	 da	 representação	 que	 diferencia</p><p>sujeito	 e	 objeto.	 Este	 prejuízo	 na	 vivência	 do	 narcisismo	 primário	 tem	 como</p><p>herdeiro	um	ego	fragilizado	que	fica	à	mercê	do	funcionamento	de	um	ideal	de	ego</p><p>absolutamente	rigoroso	e	submetido	à	intensa	fúria	narcísica.</p><p>Segundo	Brusset	(2008,	p.	54-55):</p><p>Esta	 lógica	 regressiva	 tende	 a	 se	 significar	 aquém	 da	 representação	 que	 supõe	 a</p><p>diferença	de	um	sujeito	e	de	um	objeto,	a	triangulação,	o	terceiro	a	partir	do	qual	as</p><p>relações	sujeito-objeto	podem	ser	objetivadas	e	representadas	[…]	A	boa	distância</p><p>não	encontrável,	entre	o	abandono	e	a	intrusão	privada	de	si,	deixa-se	ver	tanto	nos</p><p>registros	da	posição	 fálica	e	da	castração	quanto	nos	da	analidade	e	oralidade.	As</p><p>relações	 conflitivas	 entre	 objeto	 total	 e	 objeto	 parcial	 mostram	 que	 os</p><p>autoerotismos	 remetem	à	dependência	basal	de	um	objeto,	 sem	poder	estabelecer</p><p>um	espaço	de	investimento	próprio	e	durável.</p><p>A	dinâmica	familiar</p><p>Pessoas	que	desenvolvem	um	transtorno	alimentar	apresentam	geralmente	uma</p><p>dinâmica	 familiar	 característica.	Por	 isso,	 cada	vez	mais,	o	 trabalho	não	 só	com	o</p><p>paciente	 mas	 também	 com	 seus	 familiares	 vem	 tomando	 lugar	 de	 extrema</p><p>importância	 no	 tratamento.	 Nossos	 estudos	 indicam	 que	 a	 indiferenciação	 e</p><p>consequente	identificação	com	a	figura	materna	têm	como	consequência	a	exclusão</p><p>da	 figura	 paterna.	 A	 relação	 entre	 mãe	 e	 filha	 no	 quotidiano	 denuncia	 a</p><p>fusionalidade,	 operando	 com	 frágeis	 aspectos	 de	 diferenciação.	 As	 famílias	 dos</p><p>pacientes	 com	 anorexia	 tendem	 a	 investir	 muita	 atenção	 para	 não	 entrarem	 em</p><p>conflito	e	manterem	uma	“união”	como	sistemas	aglutinados,	rígidos	e	com	grande</p><p>evitamento	de	mudanças,	como	falam	Turkiewicz	et	al.	(2008,	p.	69).	As	famílias	de</p><p>pacientes	 bulímicos	 são	 mais	 caóticas,	 explicitam	 muitas	 críticas	 e	 emoções	 de</p><p>forma	acalorada	e	se	depreciam	constantemente.</p><p>Percebemos	 que	 os	 casais	 estabelecem	 relações	 frágeis,	 sem	 espaços	 privados</p><p>para	 interações	 físicas	 e	 psíquicas.	 Existe	 acentuada	 dificuldade	 de	 conversar,	 se</p><p>divertir,	 ter	 hábitos	 e	 sustentar	 posicionamentos	 em	 comum.	 Diante	 disso	 não</p><p>conseguem	garantir	 a</p>

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