Prévia do material em texto
<p>Sumário</p><p>“O bêbado e o equilibrista”</p><p>Aline Eugênia Camargo</p><p>O estatuto do corpo e a anorexia nervosa</p><p>Ana Paula Gonzaga</p><p>A relevância da interação da equipe multidisciplinar fora das</p><p>instituições</p><p>Ana Tereza Arantes De Almeida Alonso</p><p>Corpo e virtualidade</p><p>Camila Deneno Perez</p><p>Patricia Gipsztejn Jacobsohn</p><p>Bulimia: o objeto “necessário”</p><p>Camila Peixoto Farias</p><p>Marta Rezende Cardoso</p><p>Notas sobre o abandono do tratamento</p><p>Flávia Machado Seidinger-Leibovitz</p><p>Carla Maria Vieira</p><p>Larissa Rodrigues</p><p>Relação mãe-filha</p><p>Christiane Baldin Adami-Lauand</p><p>Fabiana Elias Goulart de Andrade Moura</p><p>Rosane Pilot Pessa</p><p>As marcas no corpo</p><p>Cybelle Weinberg</p><p>Cinderelas contemporâneas</p><p>Fabiana Maria Gama Pereira</p><p>Elisa Gan</p><p>Considerações psicanalíticas sobre a compulsão alimentar</p><p>Fernanda Kalil</p><p>Revisitando a técnica psicanalítica no atendimento a pacientes com</p><p>transtornos alimentares</p><p>Gabriela Malzyner</p><p>Anorexia</p><p>Jaqueline Pinto Cardoso</p><p>Que conversa é essa?</p><p>Marina Fibe De Cicco</p><p>A anorexia e a bulimia em Freud</p><p>Maria Helena Fernandes</p><p>Dos transtornos alimentares aos transtornos dismórficos corporais</p><p>Marina Ramalho Miranda</p><p>Entrelaces psíquicos entre mães e filhas</p><p>Marina F. R. Ribeiro</p><p>Sobre o exercício da clínica dos transtornos alimentares</p><p>Patricia Gipsztejn Jacobsohn</p><p>A construção simbólica em pacientes com fome de estórias</p><p>Talita Azambuja Nacif</p><p>Thais Fonseca de Andrade</p><p>Autores</p><p>Apresentação</p><p>“O método psicanalítico tem sido alvo de questionamentos e discussão no que diz</p><p>respeito à sua atualidade como prática terapêutica que se mostre eficaz na escuta e</p><p>contenção das formas de sofrimento e gozo assumidas pelas subjetividades</p><p>contemporâneas.”</p><p>Com estas palavras, o saudoso Prof. Homero Vettorazzo Filho iniciou o texto da</p><p>contracapa do primeiro volume do Psicanálise de Transtornos Alimentares, em 2010, no</p><p>qual afirmou “que a atualidade e a vitalidade da Psicanálise dependem de que os</p><p>psicanalistas tenham sua experiência clínica como espaço para levantar</p><p>interrogantes que lhes permitam questionar e revisar as teorias psicanalíticas,</p><p>separando elementos fecundos e insaturados de conceitos repetidos como</p><p>convicções estéreis”.</p><p>Este segundo volume vem comprovar que a Psicanálise pode ser viva, frutífera e</p><p>servir de base para novas pesquisas, quando trabalhada em um grupo de estudos e</p><p>atendimento, nos moldes da CEPPAN.</p><p>Com muito orgulho, podemos afirmar que um dos nossos objetivos iniciais, a</p><p>divulgação de conhecimentos adquiridos sobre os transtornos alimentares, tem se</p><p>mantido e consolidado nos últimos anos, abrindo espaços de interlocução com</p><p>profissionais envolvidos com essa temática.</p><p>Agradecemos, aqui, a esses profissionais que aceitaram nosso convite para</p><p>participar desta publicação, compartilhando conosco sua experiência clínica e suas</p><p>pesquisas metapsicológicas. Com eles, nós da CEPPAN nos sentimos fortalecidos</p><p>para continuar no caminho da compreensão e da sustentação da Psicanálise no</p><p>campo dos transtornos alimentares.</p><p>– Cybelle Weinberg</p><p>Coordenadora da CEPPAN</p><p>“O BÊBADO E O EQUILIBRISTA”</p><p>Atuações e comportamentos autocalmantes no devir</p><p>dos quadros de transtornos alimentares</p><p>Aline Eugênia Camargo</p><p>Sobre os deslocamentos dos sintomas alimentares</p><p>No dia a dia da clínica, é comum nos depararmos com os ecos de problemáticas</p><p>alimentares vividas por nossos pacientes no passado, frequentemente na</p><p>adolescência, às vezes também na infância. Muitos relatos revelam sintomas de</p><p>anorexia ou de bulimia propriamente ditas, ou mesmo de outras manifestações</p><p>sintomáticas ligadas à inibição ou aos excessos no campo alimentar. Tais ecos nos</p><p>trazem informações de uma época em que corpo, comportamento e relação com o</p><p>outro faziam parte de uma mesma unidade. Embora superada ao longo da vida,</p><p>essa sintomática deixa suas marcas em uma história de traumatismos precoces. A</p><p>presença desses traumatismos e seus efeitos sobre o psiquismo pode ser</p><p>reconhecida na vida do sujeito muitos anos depois, manifestando-se clinicamente de</p><p>diferentes formas.</p><p>Podemos acompanhar no processo analítico o deslocamento dos sintomas</p><p>quando estes se constituem em expressões simbólicas dos conflitos, que, como nos</p><p>sonhos, revelam movimentos de elaboração. Quando isso não acontece,</p><p>observamos na análise uma série infindável de atuações, as quais, no entanto,</p><p>podem ir adquirindo um aspecto de mudança, construindo uma trilha elaborativa</p><p>que respeita o caminho, ainda a ser percorrido, da ação ao pensamento. A clínica, tal</p><p>como se apresenta na atualidade, tem nos ensinado e desafiado a seguir</p><p>investigando na direção de uma maior compreensão desses processos que remetem</p><p>à dimensão do arcaico, daquilo que se encontra aquém do universo da</p><p>representação, bem como o caminho desses processos psíquicos ao longo da</p><p>análise.</p><p>A diversidade de manifestações sintomáticas encontrada na clínica atual, em suas</p><p>muitas possibilidades de composição, nos remete à investigação do campo que se</p><p>estende para além da neurose, nas patologias ligadas às falhas estruturais na</p><p>formação do psiquismo. Dessa condição resultam funcionamentos psíquicos, como</p><p>as neuroses mal focalizadas, funcionamentos nos quais convivem diversos</p><p>mecanismos psíquicos em arranjos pouco estáveis, que se alteram ao longo da vida</p><p>em face das experiências e em virtude dos laços afetivos. Entendemos esse</p><p>funcionamento como o resultado de um equilíbrio que, embora alcançado, constitui</p><p>um arranjo precário, metaforizado na dupla formada pelo bêbado e o equilibrista.</p><p>Escutar na clínica esses ecos e acompanhar seu percurso e suas transformações</p><p>pode ser muito esclarecedor, auxiliando nas difíceis trilhas que o analista tem a</p><p>percorrer no corpo a corpo de determinados casos.</p><p>Encontramos, na literatura sobre transtornos alimentares, o tema de que no</p><p>devir desses casos, ao longo da análise ou pelo conjunto de tratamentos a eles</p><p>dedicados, os sintomas da problemática alimentar saem de foco. Desse modo,</p><p>abrem espaço para a estruturação psíquica por trás deles, suas organizações e</p><p>desorganizações, bem como seus arranjos defensivos com os quais o sujeito agora</p><p>tem de se deparar. O desenrolar desses elementos revela uma busca do equilíbrio</p><p>pela ação e pelas sensações vividas no corpo, ou seja, pelo embate em um registro</p><p>corporal (JEAMMET, 1999).</p><p>É nesse sentido que apresentamos um caso no qual vemos a possibilidade de</p><p>relacionar vários aspectos desse vasto campo que envolve a vida contemporânea e</p><p>seus excessos, em que um sintoma de transtorno alimentar na adolescência</p><p>repercute no momento atual. No trabalho de análise, consideramos fundamental a</p><p>compreensão de como a reedição de elementos arcaicos da constituição psíquica em</p><p>suas reorganizações no momento da puberdade e adolescência influi na formação</p><p>posterior dos sintomas.</p><p>Lembramos a importância para a psicanálise da investigação por meio dos casos</p><p>clínicos e de como o estudo de caso</p><p>pode ser revelador da subjetividade e das manifestações idiossincráticas do viver e</p><p>do adoecer […] constituindo um campo de observação particular que permite tanto</p><p>a construção, verificação e transformação da teoria como o desenvolvimento de</p><p>dispositivos terapêuticos específicos para o tratamento com cada paciente</p><p>(SOARES et al., 2015, p. 11).</p><p>A análise se processa em meio às atuações da paciente com relação a uma busca</p><p>de mudança, que envolvia trabalho, estilo de vida na direção de maior prazer e de</p><p>uma rotina mais “saudável”. Acompanhamos as idas e vindas dos excessos, as</p><p>angústias decorrentes destes, e os deslocamentos de certo comportamento aditivo,</p><p>bem como a passagem para comportamentos de risco.</p><p>Maria procura análise por dificuldades no trabalho. Relata que tudo o mais vai</p><p>bem: casamento, relações familiares, amizades,</p><p>hierarquia saudável entre pais e filhos para ideais, valores e</p><p>convicções serem recebidos em alto grau e assim sustentarem uma “voz” ativa,</p><p>forte, atuante e norteadora.</p><p>Salvador Minuchin (1995) estuda as famílias e suas estruturas e defende que a</p><p>família exerce o lugar de “matriz de identidade”. Apresenta a ideia de que a forma</p><p>como uma pessoa interage, se relaciona e se comporta está intimamente articulada</p><p>ao modo como a família se estrutura.</p><p>O benefício transferencial no tratamento dos transtornos</p><p>alimentares em um processo de análise como parte integrada a</p><p>uma equipe multidisciplinar</p><p>Foi em 1905 que Freud se deparou com a potente força da transferência,</p><p>necessitando pensar sobre a interrupção do processo analítico de Dora. Ele se deu</p><p>conta de que o paciente irá reviver emoções na intimidade da relação analítica –</p><p>transferencialmente projetados na relação e na figura do analista –, sem idade, sem</p><p>lugar e sem tempo.</p><p>O setting terapêutico, como pensa Balint (2014), tem como função primordial</p><p>garantir um espaço protegido de urgências de tempo, estímulos e isento de</p><p>julgamento crítico. “[…] Penso que o analista deve fazer uma aposta no tempo e na</p><p>relação, e aguentar esperar que o paciente, sustentado por uma relação analítica</p><p>confiável e não invasiva, encontre uma forma de recolocar-se no caminho do</p><p>desenvolvimento.” (p. 137).</p><p>É nessa relação que considera que o tempo interno é diferente do tempo</p><p>externo, que não atende a uma linearidade, que se estabelece a plenitude da relação</p><p>entre paciente e analista.</p><p>Figueiredo (2002) nos diz que “a figura do analista inserida numa das</p><p>constelações psíquicas que o paciente organizou ao longo de suas experiências</p><p>emocionais aciona, a um só tempo transferência e resistência, alavancando a</p><p>dinâmica do tratamento” (p.2).</p><p>Este lugar da intimidade tem como comandante qualquer pensamento, devaneio</p><p>ou sonho, porém, na clínica dos transtornos alimentares, essa potencialidade é</p><p>extremamente precária.</p><p>O benefício de uma análise como parte integrada a uma equipe multidisciplinar</p><p>ocorre antes mesmo da chegada em nossos consultórios e ao longo das primeiras</p><p>entrevistas, em que a equipe será responsável por informar a necessidade</p><p>indispensável do processo e esclarecer algumas dúvidas tanto do paciente como de</p><p>seus familiares, fornecendo, desse modo, o amparo necessário para a busca da</p><p>terapia. Muitas vezes é somente com esse firme sustentar da extrema necessidade</p><p>do processo psicoterapêutico, encontro após encontro, com o ritmo das idas e</p><p>vindas, que a relação analítica pode se estabelecer, fortalecer e atingir na</p><p>transferência todo o potencial do trabalho. O resultante é a construção do setting</p><p>terapêutico simbólico capaz de oferecer tal espaço de intimidade para que o</p><p>paciente – dentro de seu percurso autoral da construção de sua própria narrativa –</p><p>possa vir a ser.</p><p>Para podermos nos dedicar ao “mergulho simbólico” em direção à construção</p><p>dos aspectos psíquicos, precisaremos contar com o psiquiatra e o nutricionista</p><p>atentos ao que é mais concreto, como o peso que a balança marca semanal ou</p><p>quinzenalmente, o IMC, as taxas sanguíneas (anemia, falta de ferro), o sinal</p><p>vermelho do ritmo cardíaco, a falta de ar, a necessidade ou não da medicação para</p><p>lidar com comorbidades, como depressão, ansiedade, falta de sono, impulsividade…</p><p>Outra questão é a falta do “contorno primordial” e do “tamanho simbólico”</p><p>daquele sujeito, questões que assolam seu psiquismo. A meu ver, a equipe</p><p>constituída, constante e atuante promove simbolicamente uma vivência de</p><p>contorno, uma borda, o traçado que indicará – principalmente em momentos</p><p>extremos – o limite, o risco, a direção a seguir. Outro dia, em uma reunião com a</p><p>equipe clínica, uma paciente disse: “Eu não quero, não vai ser fácil, mas, por outro</p><p>lado, vejo vocês como meu paraquedas reserva, que, quando eu não consigo</p><p>sozinha, não vão deixar eu me esborrachar”. Assim, a equipe será responsável por</p><p>acionar alertas vermelhos para a paciente e para a família que, imersos em formas</p><p>de se relacionar por anos a fio, não conseguem apreender os aspectos de exclusão,</p><p>controle, onipotência e fusionalidade que operam nas relações.</p><p>A relação analítica, como sabemos, tem como material de trabalho as</p><p>resistências, atuações e outros funcionamentos psíquicos, mas, no que tange a</p><p>dinâmica familiar, será no contato com o psiquiatra e o nutricionista que esta</p><p>questão será trabalhada. O posicionamento do terapeuta deve salvaguardar a relação</p><p>do sujeito com o corpo psíquico que, ainda sem a intensidade dos contornos e</p><p>limites psíquicos necessários para o amparar, escancara a carência nutricional</p><p>psíquica mediante um intenso vazio ou um esparramar que transborda e conduz</p><p>aquilo que poderia vir a ser um pensamento, para o ralo. A voz “fraca” ou</p><p>desorganizada, mas única possível, precisa, de quietude e silêncio de atuações da</p><p>família para poder ser “ouvida”, fertilizando devaneios, explicitando fantasmas e</p><p>seguindo na direção de provocar questionamentos no sujeito, para que ele possa se</p><p>implicar consigo mesmo.</p><p>O setting terapêutico deve ser resguardado de invasões e transbordamentos</p><p>concretos dos familiares. Quando estamos diante do convite à fusionalidade,</p><p>qualquer familiar sendo a voz do paciente é prejudicial para esses “passos” com</p><p>traços ainda tão primitivos.</p><p>Gurfinkel (2010, p. 78-79), afirma que</p><p>Neste ponto passamos a falar da transferência e seu complexo interjogo, pensamos</p><p>que o contexto clínico do enquadre pode ser entendido como um importante ritual</p><p>que regula a aproximação entre o sujeito e seu analista. Enquanto a representação</p><p>dos braços da mãe, ele pode auxiliar na contenção da pulsionalidade e da tendência</p><p>ao ato ou da impulsividade, por meio de uma presença do outro que possa “cuidar”,</p><p>regulando o excesso de excitação que assola o sujeito.</p><p>Essa constância se repete na análise, e estamos diante da possibilidade de</p><p>reeditar, na transferência, aquelas primeiras vivências que falamos no início, a</p><p>conquista de reviver essa dependência e esse olhar libidinizador.</p><p>Nosso manejo clínico deve atentar para a problemática da intensidade de</p><p>investimento referida anteriormente no texto, nem de mais, nem de menos, a justa</p><p>medida entre aridez e excesso extremos como destruidores. Ponto que corresponde</p><p>com nossa postura como analistas, a necessidade de sermos mais ativos, mais</p><p>tolerantes com o não saber, e jamais atropelando a construção do saber sobre eles</p><p>mesmos. Esses pacientes nos apresentam um vazio simbólico e, muitas vezes,</p><p>escassa possibilidade de associação.</p><p>Outra questão potencial no tratamento multidisciplinar é a vivência do paciente</p><p>nos diferentes espaços, a experiência emocional de ser “olhado” e “cuidado”, se</p><p>“olhar”, se “pensar” e se “cuidar” dentro de cada especificidade profissional. Será</p><p>nessa diversidade de vivências que pode ocorrer uma ampliação de seus</p><p>investimentos tão restritos. Aqui menciono que a carta da paciente para seu corpo</p><p>citada neste capítulo “nasceu” de uma reflexão entre ela e a nutricionista e,</p><p>explicitando a riqueza transferencial e o bom uso desses diferentes espaços, foi</p><p>trazida pela paciente para seu espaço analítico e alimentou suas associações.</p><p>Dessa forma, cada profissional em determinado momento do tratamento poderá</p><p>– como em uma dança das cadeiras – receber diferentes projeções</p><p>predominantemente. Teremos fúria narcísica, temores, competição, controle,</p><p>movimentos de reparação, prazer, desprazer, conquista, fracasso, dar-se conta da</p><p>falta,</p><p>do desejo (amoroso e destrutivo), de necessidade… transitando por este</p><p>tripé/equipe, o que traz grande riqueza para a associação, necessária para a</p><p>elaboração em análise.</p><p>No tratamento desses pacientes, muitas vezes o investimento se dá na intenção</p><p>de repetir a relação fusional na terapia e com cada um dos integrantes da equipe, de</p><p>excluir um ou mais espaços/profissionais, como representantes simbólicos da</p><p>exclusão do terceiro e da dificuldade diante de tal forma de se relacionar. Uma</p><p>equipe experiente, com um discurso e uma forma de pensar atentos aos mesmos</p><p>pontos, que convive com as diferenças de cada área de atuação e que não exclui</p><p>ninguém, legitima esse formato de triangulação relacional que, em si, marca a falta, a</p><p>necessidade e explicita a não onipotência, abrindo as portas para maiores</p><p>possibilidades de maturidade.</p><p>Jeammet (2008, p. 47) alerta para um “risco” que habita simbolicamente a forma</p><p>com que esses pacientes se relacionam, em que a instituição teria uma função</p><p>protetora.</p><p>A Abordagem institucional oferece mediações que tornam o contato objetal menos</p><p>perigoso e mais suportável do que uma relação dual na qual ela corre o risco de ser</p><p>imediatamente captada pelo outro em razão do mesmo sobreinvestimento que</p><p>fazem desta relação.</p><p>O analista também cumprirá um papel importante junto à equipe falando sobre</p><p>as movimentações psíquicas e defesas atuantes, favorecendo o entendimento, para</p><p>elaboração também dos profissionais. Estes terão que tolerar projeções e atuações</p><p>defensivas maciças em um constante alternar dos lugares com que cada profissional</p><p>está indentificado naquele momento nas projeções simbólicas daquele paciente. A</p><p>transferência é viva e atinge toda a equipe!</p><p>Notas:</p><p>1 .Agradeço à Cybelle Weinberg pela leitura.</p><p>Referências</p><p>AULAGNIER, P. A violência da interpretação – do pictograma ao enunciado. São Paulo:</p><p>Escuta, 1979.</p><p>______. Um intérprete em busca de sentido – I e II. São Paulo: Escuta, 1990.</p><p>BALINT, M. A falha básica: aspectos terapêuticos da regressão. São Paulo: Zagodoni,</p><p>2014.</p><p>BILYC, B. et al. Peculiaridade no tratamento da anorexia e bulimia nervosa na</p><p>adolescência. A experiência do Protad. São Paulo, Revista Psiquiatria Clínica, 31 (4),</p><p>2004.</p><p>BLEICHMAR, S. A fundação do inconsciente: destinos da pulsão, destinos do sujeito. Porto</p><p>Alegre: Artes Médicas, 1994.</p><p>_______. Do motivo de consulta à razão de análise: e outros ensaios psicanalíticos. São Paulo:</p><p>Zagodoni, 2015.</p><p>BOURDIEU, P. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.</p><p>BRUSSET, B. Anorexia mental e bulimia do ponto de vista de sua gênese. In:</p><p>URRIBARRI, R. (org.) Anorexia e bulimia. São Paulo: Escuta, 2008.</p><p>FIGUEIREDO, L. C. Transferência, contratransferência e outras coisinhas mais. Trabalho</p><p>apresentado na Formação Freudiana. Rio de Janeiro, 2002.</p><p>FREUD, S. [1895] Projeto para uma psicologia científica. In: Publicações pré-</p><p>psicanalíticas e esboços inéditos. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas</p><p>Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 1.</p><p>GARFINKEL, P. E.; & GARNER, D. M. Anorexia nervosa: A Multidimensional</p><p>Perspective. Brunner/ Mazel, Nova York, 1982. [ Links:</p><p>http://ijp.sagepub.com/content/11/3/263.short ]</p><p>GURFINKEL, A. C. Depressividade e manejo clínico no tratamento das</p><p>problemáticas alimentares. In: GONZAGA, A. P.;. WEINBERG, C. (orgs.)</p><p>Psicanálise de transtornos alimentares. São Paulo: Primavera, 2010.</p><p>JEAMMET, Ph.; CORCOS, M. Novas problemáticas da adolescência: evolução e manejo da</p><p>dependência. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.</p><p>JEAMMET, Ph. A abordagem psicanalítica dos transtornos das condutas</p><p>alimentares. In: URRIBARRI, R. (org.) Anorexia e bulimia. São Paulo: Escuta, 2008.</p><p>LAPLANCHE, J. El extravio biologizante de la sexualidad en Freud. Buenos Aires:</p><p>Amorrortu, 1999.</p><p>LOCK, J.; LE GRANGE, D.; AGRAS, S. W.; DARE, C. Treatment Manual for</p><p>Anorexia Nervosa: A Family-Based Approach. Nova York: The Guilford Press, 2001.</p><p>McDOUGALL, J. Teatros do corpo. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000.</p><p>MINUCHIN, S. A cura da família. Rio de Janeiro: Artes Médicas, 1995.</p><p>STEINHAUSEN, H. C. The outcome of Anorexia nervosa in the 20th century.</p><p>American Journal of Psychiatry. August 2002, 159 (8): 1284-1293.</p><p>TURKIEWICZ, G. et al. Feasibility, acceptability, and effectiveness of family-based</p><p>treatment for adolescent anorexia nervosa: an observational study conducted in</p><p>Brazil. Revista Brasileira Psiquiatria, June 2010, 32.</p><p>WEINBERG, C. (org.) Transtornos alimentares na infância e adolescência: uma visão</p><p>multidisciplinar. São Paulo: Sá Editora, 2008.</p><p>http://ijp.sagepub.com/content/11/3/263.short</p><p>CORPO E VIRTUALIDADE</p><p>Os transtornos alimentares na tecnocultura</p><p>Camila Deneno Perez</p><p>Patricia Gipsztejn Jacobsohn</p><p>Os adolescentes de hoje têm crescido submersos na era da tecnocultura. As</p><p>redes sociais, os grupos virtuais, a conectividade digital e tantos outros elementos</p><p>têm atualmente participação ativa em nosso trabalho cotidiano, influenciando o</p><p>exercício de nossa clínica e invadindo o setting analítico. Precisamos considerar que</p><p>essas mudanças certamente impactam a estruturação psíquica e a construção</p><p>identitária.</p><p>Na clínica dos transtornos alimentares, as questões relativas à internet têm cada</p><p>vez mais força e aparecem, inclusive, como motivo de grande preocupação entre as</p><p>equipes. As webpages pró-anorexia e pró-bulimia, mesmo após tantos anos,</p><p>continuam a ser acessadas. Temos acompanhado o advento dos fenômenos mais</p><p>modernos, como as blogueiras fitness, os perfis escabrosos e assombrosos do</p><p>Instagram, o SnapChat e YouTube e o Tumblr (de menos sucesso no Brasil, mas</p><p>que, ainda assim, ecoa na clínica dos transtornos alimentares). Os grupos de jovens</p><p>do WhatsApp também têm tido significativa participação, já que há uma troca</p><p>constante de imagens, dietas, dicas, fotos de seus pratos de refeições (em alguns</p><p>casos, vemos mais o prato mesmo, a comida é bem pouca).</p><p>As questões que se colocam, então, são: O que sustenta analiticamente a</p><p>virtualidade e o transtorno alimentar? Que intersecções e relações existem? E indo</p><p>ainda mais longe, qual seria o impacto da virtualidade no corpo?</p><p>Não é preciso muito esforço para perceber como a imposição de um corpo</p><p>magro encontra-se crescente e pulverizada em nossa sociedade. Raramente</p><p>conhecemos pessoas que se sentem bem com o próprio corpo, e é uma tarefa cada</p><p>vez mais árdua escapar de conversas sobre dietas e técnicas “mágicas” para</p><p>emagrecer. O ciberespaço vem se tornando um meio rápido e eficiente de</p><p>disseminação desses ideais.</p><p>Em meio a este contexto, é importante que fique claro desde o início, como</p><p>elucida Weinberg (2001, p. 156), que “fica anoréxica ou bulímica quem pode, não</p><p>quem quer”. Em outras palavras, apesar de a preocupação com o peso e a</p><p>insatisfação com o corpo atingirem a maioria das pessoas, o transtorno alimentar</p><p>precisa de algo mais para se desenvolver. Não é nosso objetivo aqui refletir sobre a</p><p>etiologia dos transtornos alimentares, mas sim, sobre o entrecruzamento da</p><p>anorexia a da bulimia com o campo virtual. Mesmo assim, é importante dizer que</p><p>não são patologias suscitadas somente pela cultura do culto ao corpo e da magreza</p><p>excessiva. Embora isso possa desencadear o processo, é preciso que haja um</p><p>encontro do ideal veiculado pelo meio social com determinado funcionamento</p><p>psíquico.1</p><p>Não se trata, também, de demonizar a internet. Como bem explicita Lemma</p><p>(2015), do ponto de vista psíquico, os problemas surgem quando não se pensa o</p><p>virtual como sendo um alargamento do real, mas sim, como uma alternativa ao real.</p><p>Segundo a</p><p>autora, os avanços tecnológicos podem ser usados para promover o</p><p>desenvolvimento psíquico, criando oportunidades para ampliação da aprendizagem</p><p>e da criatividade, e também podem auxiliar nos processos de desenvolvimento. Por</p><p>outro lado, podem servir para evitar vivências psíquicas desagradáveis ou</p><p>aterrorizadoras. Isso depende do uso que cada sujeito faz das novas tecnologias.</p><p>Recentemente, a Revista Veja publicou uma extensa reportagem sobre o jogo</p><p>Minecraft. Afirma que o jogo estimula a criatividade, exercita o raciocínio,</p><p>desenvolve o aprendizado, estreita o relacionamento entre pais e filhos – que jogam,</p><p>pesquisam e conversam sobre a atividade. A reportagem mostra ainda como os</p><p>jogadores aficionados vão para além do jogo: ainda no plano virtual, compartilham</p><p>vídeos no YouTube, escrevem textos e discutem em fóruns da web, mas também</p><p>expandem seus limites para o mundo real, frequentando eventos de games, por</p><p>exemplo. “O fenômeno se estabelece exatamente no lance de expansão do universo</p><p>virtual, que define um ‘além da tela’ para a experiência” (p. 81).</p><p>Os transtornos alimentares no ciberespaço</p><p>Já há alguns anos assistimos à proliferação dos blogs e páginas de internet pró-</p><p>anorexia e pró-bulimia. São criados e acessados por jovens adolescentes,</p><p>principalmente do sexo feminino (o que coincide, não por acaso, com a maior</p><p>prevalência dos transtornos alimentares). Como publicamos anteriormente</p><p>(JACOBSOHN, 2010, p. 5), é um nicho estruturado dentro da rede, uma tribo com</p><p>identidade própria: possuem siglas específicas, como Ana e Mia (diminutivos de</p><p>Anorexia e Bulimia, que tomam forma humana e são tratadas como amigas a quem</p><p>se deve devoção), LF (low food ou pouca comida), NF (no food ou jejum), LF e NF</p><p>coletivos (semanas, quinzenas ou mesmo meses previamente estipulados, nos quais,</p><p>juntos, os jovens promovem uma restrição alimentar severa ou mesmo jejum) e</p><p>miar (diminutivo “carinhoso” de vomitar). Existe também a “literatura do</p><p>movimento”: a carta da Ana e da Mia; nada mais são do que cartas que incitam a</p><p>Anorexia e a Bulimia.</p><p>A linguagem nessas páginas é cibernética, muitas vezes difícil de entender,</p><p>quando não se tem muita familiaridade com esse tipo de escrita abreviada. Frases de</p><p>efeito (como starving for perfection ou one minute on the lips forever on the hips), fórmulas</p><p>malucas, receitas mirabolantes, mandamentos e conselhos terríveis é o que se</p><p>encontra. Nomes de remédios anorexígenos e laxantes são também muito comuns.</p><p>Tudo isso misturado à presença de ídolos teens. Fotos de celebridades esquálidas</p><p>fazem parte desse universo e são utilizadas como “thinspiration” (inspiração de</p><p>magreza). Há inclusive fotos nitidamente manipuladas (por Photoshop) de Gisele</p><p>Bündchen, que é a máxima das chamadas weborexics. Victoria Beckham e Angelina</p><p>Jolie (que tem tatuada no corpo a frase quod me nutrit, me destruit2) são presenças</p><p>unânimes. Encontram-se também músicas próprias (as chamadas EDsongs).</p><p>“Dicas” e “truques” de como esconder de pais, familiares e amigos o transtorno, de</p><p>como vomitar, do que comer ou não comer, de como rebater acusações de que</p><p>estão doentes completam o cenário caótico.</p><p>Quais motivos levariam os jovens a se interessar por blogs e comunidades de</p><p>Facebook pró-anorexia e pró-bulimia, ou a seguir via Instagram as tão famosas</p><p>blogueiras fitness? Percebemos o quão restritos em conteúdo são esses espaços. O</p><p>que se acha são dicas de exercício físico, de como perder peso, de como manter um</p><p>padrão estético e um corpo que não pertence ao sujeito que lê. Sem contar o perigo</p><p>em seguir uma “orientação dietética” ou uma atividade física proposta por alguém</p><p>sem formação específica e de modo generalizado (como se servisse a qualquer</p><p>pessoa).</p><p>O que as blogueiras fitness pretendem mostrar é como a vida delas é realmente</p><p>“maravida” (como fala uma delas). É tudo esteticamente tão perfeito quanto</p><p>ilusório (a começar pelos corpos extremamente emagrecidos e pouco saudáveis – e</p><p>o que é pior – travestidos de saudáveis). Angústias, mal-estares, inquietações ou</p><p>reclamações não têm espaço. Importante mencionar também a quantidade</p><p>interminável de propagandas não explícitas. Uma dessas blogueiras, por exemplo,</p><p>postou há pouco sua mesa de café da manhã. Um olhar desatento, pouco treinado</p><p>ou ingênuo (tal qual pode ser o olhar dos jovens) não percebe as hashtags de</p><p>publicidade da toalha, das louças e até do bolo orgânico. Há, portanto, como grande</p><p>atrativo, um convite a um mundo no qual é possível só se viver o que é bom e,</p><p>principalmente, só o que é belo.</p><p>Pensamos que outro motivo de sucesso de tais páginas – especialmente os blogs</p><p>e as comunidades de Facebook pró-anorexia e pró-bulimia – seria a sensação de</p><p>acolhimento, apoio e pertencimento que os jovens relatam ao acessar tais espaços.</p><p>Como se encontrassem ecos de comportamentos, sentimentos e ideias, bem como</p><p>um local que permite certa troca, proporcionando quase que uma rede de apoio</p><p>mútuo.</p><p>Encontramos um exemplo disso em um blog, em uma entrevista que sua</p><p>administradora realiza com a administradora de outro blog sobre seu percurso</p><p>como blogueira de uma página pró-anorexia:</p><p>[Administradora do blog]: […] O que te motivou a criar o blog? Já tinha ouvido</p><p>falar deles?</p><p>[Blogueira entrevistada]: Não sei o motivo, a verdade mesmo, acho que foi carência.</p><p>A necessidade de falar do meu problema com alguém que não iria me julgar e sim</p><p>me apoiar e me ajudar. Não sei como, ou onde, mas achei o blog “X” e então criei o</p><p>blog para poder seguí-la […].</p><p>Outra característica frequente em páginas pró-anorexia e pró-bulimia é a defesa</p><p>da anorexia e da bulimia como estilos de vida, não como doença.</p><p>O que ocorre é que essas páginas acabam por perpetuar e reforçar condutas</p><p>inadequadas e perigosas. Os transtornos alimentares expostos de forma positiva e</p><p>saudável retardam o diagnóstico e dificultam o acesso ao tratamento por</p><p>desconsiderar seu aspecto patológico, o que vai totalmente na mão inversa do que</p><p>se preconiza, já que é amplamente sabido que o diagnóstico precoce favorece um</p><p>melhor prognóstico.</p><p>Vamos percebendo, então, tanto pelas concepções de saúde apresentadas pelas</p><p>blogueiras fitness, como pelas páginas que defendem explicitamente práticas</p><p>anoréxicas e bulímicas como estilos de vida, que há uma confusão entre o que é ser</p><p>saudável e equilibrado atualmente. A nutricionista Erica Romano aborda este</p><p>assunto no blog do GENTA (Grupo Especializado em Nutrição e Transtornos</p><p>Alimentares e Obesidade).3 O que a autora tem observado é que uma mesa cheia de</p><p>coisas gostosas vira uma ameaça, não um momento de prazer. Do mesmo modo,</p><p>sentar-se com a família e amigos para compartilhar uma refeição causa estresse, não</p><p>tranquilidade.</p><p>Diante da cultura com a qual nos deparamos, e que nos atravessa, cabe</p><p>questionar se vale a pena abrir mão desses ricos momentos que nos nutrem o corpo</p><p>e a alma em nome de uma “vida saudável”. Parece saudável alguém sentir tanta</p><p>culpa e tanta preocupação diante do alimento e de situações em que há uma ampla</p><p>variedade de sabores?</p><p>A que servem estes espaços virtuais e o que nos dizem sobre</p><p>anorexia e bulimia?</p><p>Podemos pensar que a virtualidade leva o corpo a assumir alguns aspectos:</p><p>1 Assepsia – via de regra, o corpo virtual é total e</p><p>completamente asséptico, sempre belo. É livre de sujeiras,</p><p>secreções ou fluidos. É quase um corpo mítico, mas que ganha</p><p>um status de matéria, numa negação do corpo real.</p><p>2 O corpo ganha uma continuidade de ser, ou seja, é perene,</p><p>não se esgota e se alonga no tempo. É livre de distâncias</p><p>geográficas, limitações, ausências ou morte. É</p><p>um corpo</p><p>eternamente plugado, que nunca se desliga. Não há, portanto,</p><p>angústias de separação de nenhuma ordem.</p><p>3 O corpo é a-histórico na rede. A história do sujeito é</p><p>desimplicada. Depende, talvez, da “identidade virtual”, mas</p><p>esta pode começar de qualquer ponto, sem uma ocorrência</p><p>histórica, sem filiação, sem vínculos (não por acaso, os</p><p>corajosos virtuais são tão presentes). Com isso, rompem-se as</p><p>relações de dependência, relações hierárquicas ou de simetria.</p><p>4 É o corpo da demanda imediata. O imediatismo, a</p><p>comunicação segundo a segundo, as soluções rápidas e</p><p>mágicas põem fim ao trabalho psíquico de tolerar as falhas,</p><p>lacunas, os buracos, espera, frustração. Em outras palavras,</p><p>não há espaço para o desenvolvimento do pensar e, com isso,</p><p>claro, há um prejuízo da capacidade simbólica.</p><p>5 É certo que nossa realidade externa altera nossa percepção</p><p>da realidade interna e vice-versa, num fluxo contínuo. Muitas</p><p>vezes, porém, o ser virtual acredita que sua realidade interna</p><p>pode ser projetada no mundo virtual, no qual atuam fantasias.</p><p>Ou seja, não há diferenciação entre o que pode ser imaginado</p><p>e atuado. Mundo interno e externo confundem-se com real e</p><p>virtual, numa clara confusão de fronteiras simbólicas, de</p><p>dentro e fora.</p><p>6 Não há assunção da alteridade no corpo virtual. O outro é</p><p>um eterno conhecido. E, com isso, o controle onipotente se</p><p>faz presente.</p><p>As características expostas sobre o corpo virtual assemelham-se às características</p><p>de dinâmicas psíquicas de pacientes com transtornos alimentares: o controle</p><p>onipotente, a falta de delimitação dentro-fora, a dificuldade de lidar com a</p><p>separação do corpo materno, a dificuldade de crescer. Segundo Fernandes (2010), é</p><p>como se o corpo não exercesse a função de colocar limites entre o eu e o outro.</p><p>Pensando nisso, podemos começar a conjecturar a que servem esses espaços</p><p>virtuais, considerando que provocam/permitem uma relação outra com o próprio</p><p>corpo e com o corpo do outro.</p><p>Lemos (2007), apoiando-se em Recalcati (2003), diz que o virtual pode ser um</p><p>meio de livrar-se de uma demanda asfixiante. Zalcberg (2003) situa a problemática</p><p>anoréxica exatamente na recusa de responder à demanda, qual seja, suposta</p><p>demanda de uma mãe que alimentaria em demasia. Segundo a autora, a anoréxica</p><p>alimenta-se do “nada” como uma forma de inserir a falta em uma mãe que se</p><p>apresenta como plena, de modo a não dar espaço para que a filha possa surgir e</p><p>desejar.</p><p>Nessa dinâmica, vamos entendendo o quão importante é, para essas meninas,</p><p>controlar o próprio corpo e a fome, já que há uma invasão que é da ordem do</p><p>incontrolável e, por isso mesmo, escapa a seu comando. Podemos pensar no campo</p><p>virtual como um facilitador no que diz respeito a tal caráter controlador. Isso</p><p>porque, nas relações on-line, é possível responder o que e quando bem entender,</p><p>desconectar-se quando quiser, bem como tornar-se uma personagem que não</p><p>detém necessidades fisiológicas inerentes ao corpo humano. Quer dizer, podemos</p><p>pensar em uma tentativa onipotente de nada precisar e de tudo controlar, que pode</p><p>“ganhar corpo” a partir do uso da internet, justamente porque, uma vez imerso no</p><p>mundo cibernético, “perde-se” o corpo real, material, imperfeito e falho.</p><p>A importância do controle aparece com força neste trecho da entrevista de um</p><p>blog pró-anorexia:</p><p>[Administradora do blog]: […] Você citou uma palavra bastante importante:</p><p>controle. Todas nós queremos ter controle, você tem?</p><p>[Blogueira entrevistada]: Depende, às vezes sim, às vezes não, e por isto que estou</p><p>nesta: pela busca constante de controle do meu corpo. É por isto que todas estamos</p><p>nesta.</p><p>Fava e Perez (2011, p. 357), citando Fucks (2003), ressaltam que a conduta</p><p>anoréxica revela um ideal ascético, cuja meta é “anular o corpo pulsional e</p><p>sexuado”. Não é à toa que a anorexia e a bulimia surgem, na maioria das vezes, na</p><p>adolescência, quando o corpo, já não mais de criança, vai anunciando as curvas</p><p>características de um corpo de mulher. Nesse período, também acontece a menarca,</p><p>o que convoca fantasias referentes a novas possibilidades e ao encontro com a</p><p>sexualidade.</p><p>O susto frente às mudanças ocasionadas pela puberdade não acontece apenas</p><p>pelas diversas sensações que despertam no corpo, mas também pelo olhar do outro</p><p>que se apresenta diferente (WEINBERG, 2001). Em triagem da CEPPAN, uma</p><p>garota nos conta que quis perder peso pela primeira vez aos 14 anos, quando sentia</p><p>que os amigos olhavam para suas coxas, que já não eram mais tão finas como antes.</p><p>Ela vai buscando então fugir deste olhar, “apagar do corpo todos os sinais de</p><p>feminilidade” (WEINBERG, 2001, p. 153), retornar a uma silhueta infantil. Para a</p><p>autora, assim estaria concretizado o sonho de ser a eterna criança da mãe, sonho</p><p>este tão ambivalente e conflituoso.</p><p>A anorexia se torna, portanto, uma saída para que, ao mesmo tempo em que</p><p>permanecem frágeis e necessitando de cuidados, apresentem uma determinação</p><p>impressionante de recusar o alimento em tentativa de assumir tanto o controle de si</p><p>como uma identidade própria. Daí o sucesso das páginas pró-ana e pró-mia, que</p><p>têm códigos, linguagem e regras específicas que unem os que frequentam em torno</p><p>dessa temática. Além disso, é muito comum notarmos imagens de florzinhas,</p><p>bonecas, estrelas e corações decorando essas páginas, dando indícios de que há algo</p><p>de infantil muito presente nessas meninas.</p><p>Ilustramos esse paradoxo que aparece na anorexia com a citação a seguir,</p><p>retirada de um blog, que revela que a busca de poder sobre si, por essas vias, leva a</p><p>um caminho que desemboca em maior dependência:</p><p>A Ana, quando faço tudo que ela manda e tudo que lhe convém, por mais que doa,</p><p>eu me sinto mais no controle e mais forte. Mais bonita, e feliz […]. Ela é exigente,</p><p>ela vai tomar conta de você 24 horas por dia, a chegar em um ponto que você não</p><p>estará mais no controle da sua mente […].</p><p>Outro aspecto que nos chama a atenção é o modo indiscriminado como as</p><p>meninas se nomeiam como Anas e Mias nos espaços virtuais. Para Lemos (2007),</p><p>este comportamento indica que, ao mesmo tempo em que se tem uma identidade a</p><p>partir da anorexia e da bulimia, parece tratar-se de uma identidade que produz um</p><p>achatamento da singularidade. Ou seja, vamos percebendo que também no campo</p><p>virtual coloca-se o conflito entre diferenciar-se e manter a dependência, assim como</p><p>a dificuldade de discriminar o eu e o outro. Além disso, receitas, fórmulas,</p><p>mandamentos e conselhos são compartilhados no formato de um manual a ser</p><p>seguido, revelando a importância da imitação às pacientes com transtornos</p><p>alimentares.</p><p>Em relação a esse aspecto, Weinberg (2007) aponta que uma característica muito</p><p>encontrada em jovens com transtornos alimentares é o comportamento imitativo. A</p><p>psicanalista Hilde Bruch até cunhou a expressão “me too anorexia” para designar esse</p><p>comportamento, decorrente de déficits básicos do sentido de si mesmo, da</p><p>identidade e do funcionamento autônomo. Diz Weinberg (2007, p. 78): “A</p><p>anoréxica, para Bruch, seria como uma lousa em branco, a ser preenchida com a</p><p>personalidade de cada nova pessoa com quem se envolve, com aquilo que a amiga</p><p>gosta ou quer fazer. Tanto que, para essa autora, esse tipo de comportamento</p><p>imitativo poderia ser o responsável pelo rápido aumento da incidência da Anorexia</p><p>nos últimos anos”. Esses jovens, cujo espelhamento constitui uma forma arcaica de</p><p>identificação, facilmente copiam comportamentos, dietas, e padrões de outros,</p><p>sempre marcados por um ideal externo. Aliás, em um dos blogs que acessamos,</p><p>assim que a página abriu, surgiu um pop up que dizia: “Seja bem-vindo e copie à</p><p>vontade”.</p><p>Fazendo essas articulações, é inevitável pensarmos em questões como: Que</p><p>modelos de identificação estamos oferecendo a essas meninas? Que espaços de</p><p>escuta disponibilizamos a quem tanto precisa falar e muitas vezes tem a fala</p><p>censurada e sancionada? De que formas podemos evitar que páginas tão perigosas</p><p>continuem a atrair mais e mais gente na rede?</p><p>Encerramos com um último exemplo que encontramos em um blog pró-</p><p>anorexia e pró-bulimia e que, em vez de finalizar, explicita a importância de</p><p>ampliarmos o debate.</p><p>Me chamo Lua, sou Ana e Mia a bastante tempo. Procuro algo que nem eu mesma</p><p>sei se é real. Tento viver da maneira que posso, mesmo que por muitas vezes eu</p><p>tenha desistido de viver. Talvez no meio dessa busca, eu consigo me encontrar e</p><p>talvez encontrar a tal felicidade de que todos falam […]</p><p>Observações finais – o que fazer com isso?</p><p>Após nos debruçarmos sobre o campo exposto, que entrecruza o corpo, a</p><p>virtualidade e os transtornos alimentares, e considerando a ampla gama de</p><p>possibilidades e o imensurável alcance da internet, defendemos que o ciberespaço</p><p>pode sim ser usado como um meio de prevenção e apoio, proporcionando lugares</p><p>de troca e de acolhimento a favor da vida. Pode funcionar inclusive como um local</p><p>de compartilhamento de experiências – não apenas as boas e belas – e</p><p>ressignificação do que foi vivido, de modo a abrir espaço a outras possibilidades e</p><p>caminhos diversos.</p><p>Para que tal uso seja viável, porém, é extremamente relevante que os</p><p>adolescentes possam desenvolver um pensamento crítico, construindo um olhar</p><p>criterioso em relação ao que é exposto como verdade no mundo virtual. Uma</p><p>possibilidade é fomentarmos a discussão em escolas, clubes e academias, onde a</p><p>temática do corpo e de padrões veiculados pela internet possa ser abordada</p><p>incluindo toda complexidade e contradição que envolve e desperta.</p><p>Importante ressaltar que, quando falamos sobre transtornos alimentares no</p><p>sentido preventivo, os comportamentos purgativos e restritivos típicos da anorexia e</p><p>da bulimia, bem como os blogs, websites e comunidades pró-anorexia e bulimia não</p><p>devem ser expostos, uma vez que, quem tem certa predisposição, muito</p><p>provavelmente os usará não como exemplo negativo, mas como uma cartilha a ser</p><p>seguida. Uma blogueira nos dá um claro exemplo disso, quando escreve sobre o</p><p>início de seus transtornos alimentares, resgatando uma abordagem televisiva que</p><p>podia muito bem ser vista como preventiva, mas que teve o efeito contrário:</p><p>Eu me lembro de que quando eu era pequena, minha mãe assistia uma novela que</p><p>havia uma menina que tinha bulimia. E ai, meu irmão uma vez forçou o vomito para</p><p>não ir ao colégio e tive a ideia de fazer o mesmo, mas só que para emagrecer.</p><p>Cabe aos profissionais que trabalham com transtornos alimentares a criação de</p><p>páginas, blogs e perfis que informem e exponham a questão de forma adequada, de</p><p>modo a oferecer ajuda. Sabemos da dificuldade de se praticar isso. Primeiramente</p><p>pela dificuldade dos profissionais de usar linguagem simples e compreensível aos</p><p>leigos. Há o medo de ser mal-entendido, e do uso que o leitor possa fazer da</p><p>informação. Também porque, como já mencionado, devemos tomar cuidado com a</p><p>exposição da anorexia e da bulimia. Apesar disso, estamos certas de que precisamos</p><p>de formas criativas, inteligentes e lúdicas ao tratar de pacientes com tais</p><p>problemáticas e, principalmente, das formas saudáveis de se alimentar e da relação</p><p>com o corpo. Assim, podemos oferecer informações acerca do comer com prazer,</p><p>sem culpa, conectado com sensações internas (como fome e saciedade), longe das</p><p>dietas da moda.</p><p>Além disso, podemos fornecer subsídios para que a comunidade em geral passe</p><p>a reconhecer como belo o corpo em suas diversas formas e diferenças, bem como</p><p>instrumentalizar a população, especialmente profissionais que trabalham com</p><p>jovens, para que atentem às dificuldades que envolvem alimentação e autoimagem,</p><p>aos modelos que os adolescentes almejam seguir e às páginas virtuais que os atraem.</p><p>Lembrando que muito mais interessante do que restringir e vigiar, é ofertar outras</p><p>possibilidades de acesso cultural, relacional, virtual e alimentar.</p><p>Notas:</p><p>1. Cybelle Weinberg, ao estudar as santas da Idade Média, conclui que a anorexia não é uma “doença da</p><p>modernidade”, já estava presente de outras formas em diferentes séculos e culturas. A autora percebe que</p><p>mulheres que jejuavam e que foram santificadas pela Igreja Católica tinham comportamentos muito</p><p>semelhantes às anoréxicas no que diz respeito a restrições, perfeccionismo e luta contra as necessidades do</p><p>corpo. Para saber mais: WEINBERG, C.; CORDAS, T. Do altar às passarelas: da anorexia santa à anorexia</p><p>nervosa. São Paulo: Annablume, 2006.</p><p>2. A frase, escrita em latim, significa: “aquilo que me nutre também me destrói”.</p><p>3. O endereço do blog é: http://gentabrasil.blogspot.com.br e o nome do texto citado é Final do ano, festas,</p><p>família, amigos e… Comida, publicado em 12 de janeiro de 2015.</p><p>Referências</p><p>FAVA, M. V.; PERES, R. S. Do vazio mental ao vazio corporal: um olhar</p><p>psicanalítico sobre as comunidades virtuais pró-anorexia. Paideia on-line. Ribeirão</p><p>Preto, 21(50): 353-361, 2011.</p><p>FERNANDES, M. H. O corpo recusado na anorexia e o corpo estranho na</p><p>bulimia. In: GONZAGA, A. P.; WEINBERG, C. (org.) Psicanálise de transtornos</p><p>alimentares. São Paulo: Primavera, 2010.</p><p>JACOBSOHN, P. G. A morte como mote: websites pró-anorexia e bulimia. In:</p><p>Cadernos da Ceppan, 7, Outubro de 2010.</p><p>LEMMA, A. A psicanálise em tempos de tecnocultura. Algumas reflexões sobre o</p><p>destino do corpo no espaço virtual. In: Revista Brasileira de Psicanálise, 49(1):67-84,</p><p>2015.</p><p>LEMOS, J. Maldita comida!: Um estudo sobre comunidades virtuais de anoréxicas e</p><p>bulímicas. Cogito on-line. 8:21-25, 2007.</p><p>LOPES, C. M. Uma investigação sobre os sintomas bulímico e anoréxico nas redes</p><p>sociais. Cadernos de Psicanálise – CPRJ. Rio de Janeiro, 37(32):105-116, 2015.</p><p>Minecraft. Uma história sem-fim. Revista Veja, 2465(7):76-85, ano 49, 17 fev 2016.</p><p>WEINBERG, C. Vítimas da fome. In: WEINBERG, C. (org.) Geração Delivery:</p><p>adolescer no mundo atual. São Paulo: Sá, 2001.</p><p>_________. As meninas-roseira. Revista Mente e Cérebro, ano XIV, 171, Edi 2007.</p><p>WEINBERG, C; CORDAS, T. A. Do altar às passarelas: da anorexia santa à anorexia</p><p>nervosa. São Paulo: Annablume, 2006.</p><p>ZALCBERG, M. A relação mãe e filha. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.</p><p>BULIMIA: O OBJETO “NECESSÁRIO”</p><p>Camila Peixoto Farias</p><p>Marta Rezende Cardoso</p><p>O objetivo deste capítulo é investigar a organização pulsional subjacente à</p><p>bulimia, tendo em vista a sua articulação com a dimensão de alteridade. Vamos nos</p><p>dedicar à análise da impossibilidade de perda do objeto nessa patologia,</p><p>privilegiando a questão do modo de relação objetal aí estabelecido. André Green,</p><p>autor que nos serve em nossa reflexão como principal referência, nos fornece</p><p>valiosos elementos para analisarmos a singularidade da relação entre ego e objeto na</p><p>bulimia, principalmente no que se refere ao processo de internalização e,</p><p>igualmente, à dimensão pulsional, elementos fundamentais de nossa análise.</p><p>Green (1986) dirige sua atenção para a importância do trabalho de luto na vida</p><p>psíquica. Enfatiza como a questão relativa ao objeto se articula estreitamente à da</p><p>negatividade, termo que, nesse contexto, indica a possibilidade interna de perda do</p><p>objeto, quer dizer, de o ego poder promover o seu “apagamento” no interior do</p><p>psiquismo. Este processo nomeado pelo autor como “trabalho do negativo”</p><p>concerne ao trabalho de internalização, de simbolização do objeto primário.</p><p>O trabalho do negativo engendra um movimento estruturante, permitindo</p><p>que o</p><p>objeto interno, próprio ao registro primário, sofra um processo de negativização.</p><p>Este processo implica, dentre outros aspectos, a possibilidade de vir a ser recalcado</p><p>e transformado em representação psíquica. Porém, vale destacar que o trabalho do</p><p>negativo não se ancora apenas no mecanismo do recalcamento; ele está vinculado a</p><p>todas as formas de “dizer não” ao objeto (GREEN, 1986).</p><p>Se esse trabalho for realizado com sucesso, o objeto primário virá a ser</p><p>internalizado, efetivando, desse modo, uma adequada diferenciação entre o eu e o</p><p>outro, e, em seu desdobramento, entre mundo interno e mundo externo. A</p><p>internalização do objeto pressupõe, portanto, que este pôde ser perdido,</p><p>“esquecido”, dando passagem a outros fenômenos, conforme esclarecem</p><p>Figueiredo & Cintra (2004, p. 17): “[...] na atenuação de sua presença [do objeto]</p><p>para dar lugar, de um lado, à representação e, de outro e mais profundamente, ao</p><p>vazio internalizado na forma de uma estrutura”.</p><p>Na contracorrente desse encaminhamento, encontramos, segundo os termos</p><p>utilizados por esses autores, o “objeto absolutamente necessário”. “Este não é</p><p>introjetado como ‘objeto interno’, mas tal como ocorre no luto, como elemento</p><p>estrutural e estruturante do psiquismo” (op. cit.). Tendo caráter estruturante, o</p><p>“objeto absolutamente necessário” possui funções importantes do ponto de vista</p><p>da dinâmica das pulsões, pois ele é o responsável tanto por despertá-las, como por</p><p>contê-las, ligá-las.</p><p>De acordo com essa visão, o objeto primário possui dupla função: a de excitar e</p><p>também a de aplacar a excitação que ele mesmo veio despertar.</p><p>O “objeto absolutamente necessário” deve, entretanto, desaparecer como objeto</p><p>no interior do psiquismo, e ser internalizado como função estruturante de</p><p>estimulação e de contenção da pulsão, reaparecendo como “diferença”, como</p><p>objeto distanciado, sendo fonte de atração e, ao mesmo tempo, de repulsão. Assim</p><p>se caracteriza “um processo bem-sucedido de constituição do psiquismo” (op. cit.).</p><p>O trabalho do negativo cumpre a sua tarefa quando transforma o objeto</p><p>primário em uma “presença ausente”, que permanecerá sempre presente, não mais</p><p>como objeto, mas como elemento estruturante da vida psíquica. Isso indica que,</p><p>como tal, o objeto primordial será para sempre perdido, o que permite justamente a</p><p>inauguração da busca por novos objetos, novas ligações, abrindo assim espaço para</p><p>a necessária contingência que marca o objeto da pulsão. Dessa forma, o sujeito</p><p>torna-se capaz, ele próprio, de gerir sua força pulsional, de contê-la e dirigi-la</p><p>mediante investimento libidinal a novos objetos.</p><p>Se o trabalho do negativo falhar, o objeto tenderá a permanecer no espaço</p><p>psíquico como presença absoluta, externa à cadeia representacional, fora do</p><p>território do recalcado, e seus efeitos traduzindo-se sob a forma de constante</p><p>ameaça ao funcionamento psíquico. Quando o objeto (e suas funções) não pode ser</p><p>internalizado em seu viés estruturante, passa a habitar o espaço interno de maneira</p><p>não integrada; em vez de contribuir para a contenção e a simbolização da força</p><p>pulsional, ao não permitir a sua ligação no aparelho psíquico, deixa o ego exposto à</p><p>invasão de um excesso pulsional.</p><p>Nesse caso, segundo Figueiredo & Cintra, apoiados, por sua vez, nas</p><p>contribuições de André Green, o objeto não só deixa de conter a força pulsional,</p><p>como realiza uma espécie de coalescência com ela, tornando-a ainda mais excessiva.</p><p>O efeito da “insistência” do objeto primário na constituição psíquica faz-se</p><p>perceber nas situações clínicas nas quais supomos que ele não tenha desempenhado</p><p>suas funções básicas, ou seja, quando não se deixou “esquecer”. “É quando os</p><p>objetos fracassam ou produzem efeitos ‘extraordinários’ que mais somos obrigados</p><p>a reconhecer seu papel constitutivo” (op. cit., p. 15-16). O objeto não é apenas o</p><p>fundador e o organizador da vida psíquica: em determinados casos, ele também se</p><p>mostra determinante em sua desestruturação.</p><p>O trabalho do negativo dá-se, em alguns casos, sob a modalidade daquilo que</p><p>Green (1986) denominou exclusão radical. O objeto passa a ocupar o espaço</p><p>psíquico: ele não é recalcado, tampouco se submete ao domínio do ego. Fica deste</p><p>excluído, na qualidade de objeto externo internalizado, mas não integrado.</p><p>Permanece no interior do psiquismo como núcleo de exterioridade. Isso nos remete</p><p>ao que Cardoso (2010) considera constituir uma “alteridade radical”, cuja origem</p><p>reside na intrusão de elementos vindos do outro e que passam a habitar o mundo</p><p>interno, mas que, não tendo sido elaborados, nele se encravam como marcas</p><p>externas interiorizadas, porém não integradas.</p><p>É preciso perceber que o traumático não diz respeito apenas a uma dimensão</p><p>econômica e dinâmica, mas, ao mesmo tempo, à forma como o objeto passa a</p><p>habitar o espaço interno, ao impasse que a relação com o outro produziu no ego.</p><p>Uma vez que “são os objetos primários que, interceptando essa pulsionalidade,</p><p>podem conduzi-la às ligações ou, por sua ausência ou por suas insuficiências,</p><p>podem provocar e disparar as forças de descargas e do desligamento”</p><p>(FIGUEIREDO, 2003, p. 152).</p><p>A intrusão do objeto fragiliza a constituição dos limites entre o eu e o outro.</p><p>Com sua presença maciça e contínua, o objeto deixa de cumprir seu papel,</p><p>dificultando a criação de um espaço fronteiriço entre o eu e o outro, espaço da</p><p>conflitualidade. Desse modo, o objeto não é efetivamente “perdido”, interiorizado,</p><p>e sua perda não é passível de simbolização. Os investimentos libidinais tendem aqui</p><p>a se fixar no objeto primário, este permanecendo, conforme indicamos</p><p>anteriormente, como um “objeto absolutamente necessário”. Vemo-nos assim</p><p>diante do fracasso do trabalho do negativo, da impossibilidade de “perder” o</p><p>objeto, aspecto que consideramos constituir o cerne da problemática da bulimia.</p><p>A crise bulímica confronta-nos com a tentativa do ego, por meio do apelo ao</p><p>ato, de reverter a situação de passividade à qual se encontra submetido. Trata-se de</p><p>uma resposta defensiva arcaica que envolve, paradoxalmente, a busca por um</p><p>mínimo distanciamento desse objeto excessivo que passou a ocupar o espaço</p><p>psíquico do sujeito. Porém, essa resposta terá que ser constantemente repetida, pois</p><p>o fracasso do trabalho do negativo faz com que o objeto permaneça como uma</p><p>presença insistentemente intrusiva, não sendo simbolizada.</p><p>Mas quais seriam as determinações da intrusão desse objeto violento no</p><p>psiquismo?</p><p>Um movimento regressivo</p><p>A intrusão do objeto no espaço psíquico instaura uma lógica singular de</p><p>funcionamento, uma vez que inviabiliza, dentre outros aspectos, a qualidade da</p><p>constituição das fronteiras egoicas. Indica Jeammet (2003) que os investimentos</p><p>libidinais podem manter-se firmemente fixados no objeto primário, dificultando o</p><p>processo de unificação narcísica. Esta vertente da questão nos leva a explorar o</p><p>campo do autoerotismo, tempo primordial da constituição subjetiva. Para</p><p>analisarmos esse tópico, iremos nos deter, a seguir, na noção de apoio.</p><p>A noção psicanalítica de apoio designa a relação primitiva que se trava entre</p><p>pulsões de autoconservação e pulsões sexuais, sendo que estas últimas só</p><p>secundariamente vão se tornar independentes; para efetivar tal operação, apoiam-se</p><p>nas funções vitais que lhe fornecem uma fonte orgânica, uma direção e um objeto</p><p>(LAPLANCHE & PONTALIS, 1982/2001).</p><p>Em 1905, em Os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud postula a</p><p>proximidade existente entre a pulsão sexual e certas funções corporais necessárias à</p><p>conservação da</p><p>vida. Isso é exemplificado por meio da sucção do seio que, além de</p><p>fonte de alimento, constitui-se como grande fonte de prazer. A satisfação da zona</p><p>erógena está, a princípio, estreitamente associada à satisfação da necessidade do</p><p>alimento.</p><p>Nesse primeiro tempo, a função corporal fornece à sexualidade a sua fonte (um</p><p>objeto), permitindo que um prazer não redutível à satisfação da fome seja</p><p>experimentado. No movimento do apoio, o objeto da pulsão de autoconservação</p><p>coincide com o da pulsão sexual. Acrescenta Freud (1905/2006, p. 171) que “[…]</p><p>em breve a necessidade de repetir a satisfação sexual irá separar-se da necessidade</p><p>de nutrição”. A sexualidade tornar-se-á autônoma somente a partir do surgimento</p><p>de um desdobramento autoerótico, que é resultante da perda do objeto da</p><p>autoconservação.</p><p>Quanto a esse estágio da vida psíquica, não podemos, no entanto, descartar o</p><p>fato de nela estar implicada a presença do objeto, levando-se em conta a dimensão</p><p>da fantasia “[…] e a suposição de um objeto externo interiorizado, porém ainda não</p><p>integrado: objeto parcial, insubstituível, ‘objeto único’ (nos termos de Jacques</p><p>André), fonte do pulsional, em primeiro lugar, do excesso pulsional” (CARDOSO,</p><p>2010, p. 22). É esse objeto fantasístico que se tornará o objeto fonte da pulsão</p><p>sexual.</p><p>O movimento de apoio sobre a função vital e os deslizamentos progressivos</p><p>pelos quais se chega à perda do objeto original possibilitam a construção do objeto</p><p>da pulsão sexual. Portanto, o movimento de apoio ancora a própria constituição do</p><p>objeto fonte da pulsão, objeto do autoerotismo. De acordo com o que abordamos</p><p>no tópico anterior, o objeto do autoerotismo constitui o “objeto absolutamente</p><p>necessário”. Por intermédio do trabalho do negativo, ele poderá tornar-se uma</p><p>“presença ausente” por permanecer no psiquismo como elemento sempre presente,</p><p>porém, não como objeto, mas como elemento estruturante da vida psíquica.</p><p>No caso da bulimia, não é isso que ocorre. O ego do sujeito permanece atrelado</p><p>a um objeto interno “absolutamente necessário” – e que se desloca, na realidade</p><p>externa, à dependência radical de um objeto externo –, o que significa o</p><p>estabelecimento de um desvio do regime objetal descontínuo, insatisfatório, regime</p><p>pulsional, rumo a um regime substancial contínuo. Em sintonia com o que aponta</p><p>Cardoso (2010), consideramos que esse processo implica um “movimento de des-</p><p>apoio” no sentido de sua tendência regressiva. E o que estaria na base dessa</p><p>tendência?</p><p>Segundo Laplanche & Pontalis (1982/2001), o fato do apoio das pulsões sexuais</p><p>incidir primeiramente sobre a fonte e o objeto da pulsão de autoconservação, e a</p><p>posterior possibilidade desta se tornar independente, aponta precisamente para a</p><p>diferença de natureza existente entre as duas classes de pulsão. Acrescentam os</p><p>mencionados autores, que a pulsão de autoconservação tem seu funcionamento</p><p>predeterminado pelo aparelho somático, seu objeto sendo imediatamente fixado. Já</p><p>quanto à pulsão sexual, seu modo de satisfação diz respeito, inicialmente, a um</p><p>ganho obtido à margem da pulsão de autoconservação, não possuindo, portanto,</p><p>um funcionamento ou um objeto predeterminado.</p><p>Partindo dessa diferenciação e tendo como foco a questão do regime de</p><p>funcionamento psíquico, encontramos um caminho frutífero para pensarmos a</p><p>tendência regressiva da dinâmica pulsional na bulimia. Esta tendência, de caráter</p><p>desviante, envolve uma singular busca da satisfação, quanto ao caminho percorrido</p><p>a partir da reivindicação pulsional. Em vez da necessária contingência do objeto da</p><p>pulsão, passando de objeto-substituto em objeto-substituto, sempre em busca de</p><p>“outra coisa”, opera-se aqui um desvio para um “regime da substância”, percurso</p><p>marcado pelo imperativo de um sempre mais, mais do mesmo, sem possibilidade de</p><p>abertura para uma “outra coisa” (CARDOSO, 2010).</p><p>Pensamos que a crise bulímica se encontra submetida a esse regime quantitativo.</p><p>O sujeito bulímico mantém-se fixado ao objeto parcial, objeto fonte da pulsão,</p><p>objeto do autoerotismo, operação situada aquém da unificação narcísica. Trata-se,</p><p>de fato, de um descaminho no registro do desejo, “no sentido de uma ‘perversão’ da</p><p>própria via pulsional, e que atrela o sujeito a uma servidão ao objeto fonte da</p><p>pulsão” (op. cit., p. 26).</p><p>Jacques André (2008) permite-nos aprofundar ainda mais essa questão, quando</p><p>sublinha que, nos casos de adicção – como na bulimia –, o registro do desejo estaria</p><p>submetido a uma exigência, a um imperativo, vindo obstruir a fluidez dos</p><p>investimentos libidinais. Essa proposição nos levou a pensar que o registro do</p><p>desejo mantém-se atrelado a um modo de funcionamento próximo ao da</p><p>autoconservação, funcionando como imperativo.</p><p>Sobre esse ponto, Igoin (1979) propõe a hipótese segundo a qual, na bulimia, a</p><p>pulsão sexual não deixa de se manter apoiada no objeto da função vital. Destaca,</p><p>porém, que a questão que aí se coloca não é a da fixação ao objeto da</p><p>autoconservação, do qual a sexualidade não poderia se libertar, mas a de uma</p><p>escolha de objeto sexual cuja particularidade é a de “imitar” uma relação vital.</p><p>Avançando em suas proposições, sustenta a autora que, na bulimia, tudo se passa</p><p>como se o objeto perdido (da autoconservação) e o objeto a ser reencontrado (da</p><p>sexualidade) fossem o mesmo. A sexualidade não teria seu próprio objeto; a</p><p>alimentação seria convocada sem consideração da fome, perdendo seu papel de</p><p>nutrir, impedindo que a saciedade seja alcançada. Portanto, a função alimentar,</p><p>conduta neutralizada, dessexualizada, sublimada, fonte de prazer não sexual – ou</p><p>antes, de um sexual sublimado –, torna-se aqui também objeto da pulsão sexual.</p><p>Na bulimia, o registro do desejo funciona sob o modelo da autoconservação,</p><p>indicativo de coalescência entre o objeto da sexualidade e o da autoconservação.</p><p>Nossa conclusão é que nessa patologia se opera um movimento de “des-apoio”,</p><p>mediante uma tendência regressiva. Esta ideia vem descortinar um rico caminho</p><p>para a delimitação de algumas diferenças essenciais entre bulimia e anorexia.</p><p>Como assinala Igoin (1979), na bulimia, a sexualidade tende a “imitar” a função</p><p>da autoconservação da qual justamente se diferencia. Já na anorexia, a sexualidade</p><p>invade tal função a ponto de torná-la inoperante, de paralisá-la. Na anorexia, a</p><p>sexualidade invade o campo da autoconservação, subvertendo seu modo de</p><p>funcionamento, impondo-lhe outro, regido pelas pulsões sexuais. Sob essa</p><p>perspectiva, o caminho percorrido na anorexia é, de certa maneira, o inverso</p><p>daquele que tem lugar na bulimia. Nesta, as pulsões sexuais passam justamente a</p><p>funcionar sob um modelo muito próximo ao da autoconservação, enquanto na</p><p>anorexia a sexualidade invade esse campo, impondo-lhe seu modo de</p><p>funcionamento.</p><p>Cabe, entretanto, atentarmos para um importante matiz nessa proposta de</p><p>diferenciação, a saber: na bulimia, a junção entre sexualidade e autoconservação</p><p>mantém-se, embora o funcionamento da pulsão sexual – revelando-se atrelado, de</p><p>certa maneira, ao da autoconservação – traga prejuízos para ambas, uma vez que se</p><p>centraliza em torno de um mesmo objeto. Já no caso da anorexia, a sexualidade</p><p>prejudica o funcionamento do registro da autoconservação, subvertendo sua lógica</p><p>de funcionamento.</p><p>Tal posição se aproxima daquela sustentada por Fernandes (2006), quando</p><p>sublinha que a disjunção entre fome e sexualidade, própria da anorexia, nos fala da</p><p>presença de uma espécie de curto-circuito entre sexualidade e função nutritiva,</p><p>como se uma “desfusão” pulsional se operasse no interior mesmo</p><p>da pulsão de</p><p>vida, conduzindo-a a uma fragmentação.</p><p>Eis aqui um aspecto significativo que esclarece a questão da diferenciação entre</p><p>essas duas patologias, tão frequentemente analisadas de forma associada. Uma</p><p>análise apurada da questão da singularidade da dinâmica pulsional permite que</p><p>precisemos algumas diferenças marcantes entre a bulimia e a anorexia, aspecto com</p><p>direta repercussão na forma de relação que, em cada uma delas, se trava com o</p><p>objeto externo, no caso, com o objeto comida.</p><p>No que concerne à bulimia, a intrusão no psiquismo de um objeto excessivo e</p><p>violento repercute diretamente na relação do sujeito com o objeto externo. A</p><p>existência de uma fragilidade narcísica conduz a arranjos defensivos voltados para a</p><p>realidade externa, em detrimento de defesas pautadas pela representação e pela</p><p>elaboração psíquica (JEAMMET, 2003). O objeto externo adquire natureza</p><p>singular, de caráter absoluto e fixo. No âmbito da dinâmica pulsional, assiste-se a</p><p>um modo de funcionamento determinado por um imperativo, no sentido de uma</p><p>exigência de sempre mais, sempre mais, do mesmo objeto.</p><p>Segundo Brusset (2003), o que ganha relevo no arranjo defensivo, que é</p><p>característico da bulimia, é o fato do contato com o objeto estar a serviço da</p><p>necessidade do sujeito de se assegurar de sua presença e de sua não destruição,</p><p>forma de contato que torna possível mantê-lo, ilusoriamente, sob domínio. Além</p><p>disso, há a tendência a buscar sensações ligadas à exterioridade, em detrimento das</p><p>emoções, das trocas afetivas, da interioridade. O arranjo relacional com o objeto é</p><p>substituído por uma alternância na busca de sensações, tanto de excitação como de</p><p>apaziguamento, mediante uma satisfação de tipo direto e imediato, espécie de</p><p>réplica do modelo da satisfação da necessidade.</p><p>O sujeito mantém um contato com o objeto supostamente garantidor de sua</p><p>presença e de sua não destruição, tentando assim garantir o seu estatuto de</p><p>extraterritorialidade. Isso, em alguma medida, salvaguardaria seus limites egoicos e</p><p>sua identidade; a ancoragem da excitação sobre uma atividade fisiológica e sobre</p><p>uma substância exógena autorizaria o exercício de um domínio e a aquisição de uma</p><p>aparente independência em relação aos objetos investidos (BRUSSET, 2003).</p><p>Na bulimia, esse modo de relação com o objeto externo – objeto comida – por</p><p>meio de um movimento regressivo perpetua uma situação de radical dependência,</p><p>situação inerente ao início da vida subjetiva a qual não encontrou uma via de</p><p>negativação, de superação, remetendo, compulsivamente, ao encontro com um</p><p>objeto “absolutamente necessário”.</p><p>Referências</p><p>ANDRÉ, J. Comunicação oral em grupo de estudos, 2008.</p><p>BRUSSET, B. Psicopatologia e metapsicologia da adição bulímica. In: BRUSSET, P.;</p><p>COUVREUR, C.; FINE, A. (orgs.) A Bulimia. São Paulo: Escuta, 2003. p. 137-172.</p><p>CARDOSO, M. R. A servidão ao “outro” nos estados limites. In: ________ &</p><p>GARCIA, C. A. Entre o eu e o outro: espaços fronteiriços. Curitiba: Juruá, 2010. 17 –28.</p><p>FERNANDES, M. H. Transtornos alimentares. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.</p><p>FIGUEIREDO, L. C. Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta,</p><p>2003.</p><p>FIGUEIREDO, L. C. & CINTRA, E. M. U. Lendo André Green: o trabalho do</p><p>negativo e o paciente limite. In: CARDOSO, M. R. (org.) Limites. São Paulo: Escuta,</p><p>2004. p. 13-58.</p><p>FREUD, S. [1905] Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard</p><p>Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006. v.</p><p>VII.</p><p>GREEN, A. El trabajo de lo negativo. Buenos Aires: Amorrortu, 1986.</p><p>IGOIN, L. La boulimie et son infortune. Paris: PUF, 1979.</p><p>JEAMMET, P. Desregulações narcísicas e objetais na bulimia. In: BRUSSET, P.;</p><p>COUVREUR, C.; FINE, A. (orgs.) In: A Bulimia. São Paulo: Escuta, 2003. p. 103-</p><p>136.</p><p>LAPLANCHE J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário de Psicanálise. 4. ed. São Paulo:</p><p>Martins Fontes, 1982/2001.</p><p>NOTAS SOBRE O ABANDONO DO TRATAMENTO</p><p>Da revisão de literatura científica às contribuições da</p><p>psicanálise aplicada à clínica das Anorexias e Bulimias</p><p>Flávia Machado Seidinger-Leibovitz</p><p>Carla Maria Vieira</p><p>Larissa Rodrigues</p><p>Introdução</p><p>O abandono do tratamento é comum nas psicoterapias e nos tratamentos</p><p>psiquiátricos e, em geral, tem como principal motivo, segundo pesquisas, a</p><p>insatisfação do paciente com o tratamento ou com o terapeuta (MOHL et al., 1991;</p><p>THERANI et al, 1996). O problema ganha outros contornos quando se trata de</p><p>transtornos alimentares (TA): taxas muito mais elevadas e maior gravidade, o que é</p><p>reafirmado nos estudos aqui revisados. Por exemplo, o abandono em internação</p><p>para anorexia nervosa (AN) é ao menos duas vezes maior que em outros</p><p>transtornos psiquiátricos (KAHN; PIKE, 2002). Os TA são considerados os mais</p><p>graves dentre os transtornos psiquiátricos, pelo comprometimento psíquico e físico,</p><p>e pelo alto índice de mortalidade, inclusive por suicídio (ARCELUS et al., 2011;</p><p>WHO, 2005).</p><p>O abandono do tratamento é conhecido na literatura científica internacional</p><p>pelo descritor dropout, com taxas médias de 50% na Anorexia Nervosa (AN) e 30%</p><p>na Bulimia Nervosa (BN). Em geral, pesquisado em regime de internação, é ainda</p><p>mais elevado em tratamento ambulatorial para adultos. Apesar de esforços desde a</p><p>primeira pesquisa sobre abandono em TA (VANDEREYCKEN; PIERLOOT,</p><p>1983) seguem existindo muitos impasses e aumento nas taxas de não adesão e</p><p>abandono, como as descritas entre 1991 e 2006 (CAMPBELL, 2009; MAHON,</p><p>2000). Assim, o fenômeno sobre o qual nos debruçamos neste capítulo justifica-se</p><p>pela relevância clínica, constitui obstáculo aos êxitos terapêuticos e fator de piora</p><p>do prognóstico, e permanece pouco esclarecido e carente de estudos qualitativos.</p><p>Trataremos de discutir os achados de uma revisão da literatura científica sobre o</p><p>tema1, à luz da psicanálise aplicada à clínica das anorexias e bulimias. Desse modo, a</p><p>leitura implicará o exercício constante de operar com dois paradigmas: de um lado,</p><p>o médico-científico, com resultados obtidos pelo método de revisão de literatura</p><p>em bases de dados internacionais; e, de outro, o da psicanálise, cujos fundamentos</p><p>teóricos sustentam nossa prática clínica em ambulatório especializado da rede</p><p>pública2, individualmente e em grupo, bem como no serviço privado, em</p><p>consultório. A partir dessa perspectiva, pousaremos diferentes olhares sobre o</p><p>mesmo fenômeno para dialogar por meio da discussão dos achados da revisão.</p><p>Notas da revisão bibliográfica sobre o abandono do tratamento</p><p>No campo da pesquisa – O tema segue como desafio a clínicos e</p><p>pesquisadores, com baixo impacto na clínica e resultados insatisfatórios na pesquisa,</p><p>e os autores apontam: 1) declínio da linha hegemônica de pesquisa que buscava</p><p>preditores do abandono no paciente; 2) problemas metodológicos, alguns específicos ao</p><p>que se convencionou chamar TA, por exemplo, relativos à classificação diagnóstica</p><p>e subtipos, com impacto na composição de amostras comprometendo estudos em</p><p>função de internações, mortalidade por complicações nutricionais ou suicídio, e o</p><p>próprio abandono do tratamento (WILD et al., 2009; SANTONASTASO et al.,</p><p>2009); 3) impasses na pesquisa que conduzem a resultados paradoxais e estudos não</p><p>conclusivos. Elementos estes que demandam estudos qualitativos visando cernir</p><p>fenômenos não captados por tais desenhos de pesquisa e recortes de objeto no</p><p>paciente como único responsável pelo abandono. Assim, a revisão apontou que o</p><p>abandono passou a ser visto como fenômeno complexo e multifacetado,</p><p>necessitando ser estudado em suas pluridimensionalidade e profundidade. Nesse</p><p>sentido, autores</p><p>(CAMPBELL, 2009; WALLIER et al., 2009; SLY, 2009)</p><p>argumentam pela substituição do termo dropout por término prematuro do tratamento.</p><p>Na esteira dessas considerações, interroga-se ainda pela dinâmica que inclua o</p><p>tratamento, o funcionamento da equipe – o que, com a psicanálise, poderíamos ler</p><p>como fenômenos transferenciais e/ou contratransferenciais, que destacamos como</p><p>fundamental nos resultados encontrados.</p><p>No campo da clínica – Segundo a análise sobre abandono específico ao</p><p>tratamento psicológico, para TA, considerando tipo de tratamento, formato e setting,</p><p>o abandono não guarda relação direta com o tratamento ambulatorial ou hospitalar</p><p>(MAHON, 2000). Ademais, há que se considerar a não padronização entre os</p><p>estudos, desde a definição de abandono até a metodologia empregada, sendo pouco</p><p>legítimo compará-los. Em sua maioria, são estudos prospectivos baseados em</p><p>experiências particulares em contextos culturais diversos, com enormes variações,</p><p>inclusive do que é considerado abandono. Assim, as porcentagens não são</p><p>generalizáveis e não permitem predizer o fenômeno. Ressalvas feitas, as variações</p><p>das taxas encontradas permitem não muito mais que inferir maior índice de</p><p>abandono em regime ambulatorial que em internação, na AN e BN, no caso de</p><p>adultos. O contrário se pode observar nos dois únicos estudos encontrados sobre</p><p>AN em adolescentes: taxa de abandono mais alta em internação (GODART, 2005)</p><p>que em regime ambulatorial (LOCK et al., 2006). Os índices em internação para</p><p>BN são menores quando comparados à AN, e o contrário é encontrado em regime</p><p>ambulatorial: taxas maiores de abandono ambulatorial na BN, nos estudos para</p><p>adultos; em adolescentes, taxa igualmente reduzida, aliás, menor que na AN</p><p>(HOSTE et al., 2007). Tal dado permite a hipótese: por ser menos frequente</p><p>internação em BN, tratar-se-ia de casos que, quando internados, representem</p><p>situações extremas nas quais outros critérios de gravidade ou risco podem estar</p><p>presentes, gerando maior aceitação e adesão. Também é possível que a questão do</p><p>“controle”, central nos TA, no caso da internação, sendo bruscamente passada para</p><p>as mãos do outro, seja menos suportada pelos pacientes com AN, podendo ser</p><p>fator de aumento de abandono, pois a alimentação, nas internações, fica sob o</p><p>controle da equipe, o que não costuma ser suportado por pacientes no polo</p><p>anoréxico, digamos assim. Ao contrário, no “polo bulímico”, a dieta ser controlada</p><p>pelo outro pode ser fator de alívio, e o controle dos episódios de compulsão reduz a</p><p>necessidade da purgação, tornando a internação mais suportável. Em nossa</p><p>hipótese, o controle excessivo, presente na AN, ficaria abalado pela internação; ao</p><p>contrário, o controle visado, que vacila na BN e costuma ser sentido como falha</p><p>com o excesso de comida, seria restabelecido pela internação, refletindo em melhor</p><p>adesão, logo, menor abandono.</p><p>No setting ambulatorial, encontramos maiores índices de abandono nos</p><p>tratamentos da BN (WALLER, 1997), o que pode ser atribuído ao maior ajuste</p><p>social no caso das pessoas com BN do que com AN, desde a doença aparente versus</p><p>a doença que se omite, fator acompanhado da estimativa de que as pacientes com</p><p>BN se tratem menos que as com AN. Também sabemos ser mais frequente a</p><p>procura por demanda espontânea do próprio paciente na BN, ao contrário da AN.</p><p>Que os pacientes cheguem pela demanda da família ou outros vínculos pode</p><p>explicar parte dos motivos de maior abandono ambulatorial em tratamentos para</p><p>BN que para AN, excluindo interferência de terceiros na decisão. No caso da AN,</p><p>mesmo em adultos, ocorreria o que observamos em adolescentes: menor abandono</p><p>ligado à maior participação de familiares.</p><p>Aspectos do abandono do tratamento em anorexia e bulimia</p><p>Os sintomas alimentares mais severos identificados nas triagens</p><p>(VANDEREYCKEN & PIERLOOT, 1983; WALLER, 1997; WOODSIDE;</p><p>CARTER & BLACKMORE, 2004; FASSINO et al., 2003; SURGENOR;</p><p>MAGUIRE & BEUMONT, 2004) apresentam correlação com tempo de duração</p><p>da doença em tratamento ambulatorial para adolescentes com BN HOSTE et al.,</p><p>2007) e também internação para adultos com AN (KAHN; PIKE, 2002;</p><p>WOODSIDE; CARTER; BLACKMORE, 2007). O subtipo purgativo foi</p><p>encontrado como o aspecto mais sustentado pelas pesquisas enquanto relacionado</p><p>ao abandono, e atribuído à impulsividade, correlato clínico que os une; ainda assim,</p><p>os resultados divergem3 em grau e, afirmado por alguns, é negado por outros.</p><p>Abandonar o tratamento é necessariamente algo negativo?</p><p>O risco de abandono pode diminuir na presença da depressão, o que tampouco</p><p>significa, nesses casos, melhor prognóstico (ZEECK; HERZOG, 2000). O</p><p>contrário foi verificado em estudos sobre internações para anorexia em adultos.</p><p>Encontrada relação positiva com severidade dos sintomas alimentares e</p><p>psicopatologia psiquiátrica (HOSTE, 2007; VANDEREYCKEN;</p><p>VANSTEENKISTE, 2009); de modo contrário, também encontrado em relação</p><p>negativa (KAHN; PIKE, 2002; MAHON, 2001). Transtornos tipo esquizoide e de</p><p>evitação foram encontrados nos pacientes mais resistentes e menos aderentes ao</p><p>tratamento, grupo com maior índice de abandono. Frente a tais achados, autores</p><p>questionam a fidedignidade de pesquisas que consideram quaisquer interrupções</p><p>como abandono e advertem para o fato de que pacientes comórbidos com</p><p>Transtorno de Personalidade são frequentemente desligados pela equipe – e são</p><p>muitas vezes computados como abandonos, alertando sobre vieses prejudiciais à</p><p>construção do saber com este subgrupo, com pior prognóstico dentre os TA</p><p>(CLINTON; BJÖRCK; SOHLBERG; NORRING, 2004; MARTÍN MURCIA et</p><p>al., 2009). Ainda, há o questionamento se é positivo que pacientes com TA e</p><p>depressão abandonem menos, o que pode indicar incapacidade de separação,</p><p>dependência do outro, considerando que tampouco obtêm melhoras em outros</p><p>critérios – o que relativiza o paradigma do abandono como resistência do paciente.</p><p>Na mesma direção, autores questionam seu caráter negativo ao encontrar correlação</p><p>significativa com melhora global e escores em escalas de depressão, autoestima ou</p><p>autoconfiança. Portanto, recomendam mais pesquisas com análise qualitativa de</p><p>entrevistas com pacientes e terapeutas a fim de investigar a subjetividade ligada ao</p><p>abandono e seus significados.</p><p>Autoimagem negativa é menos presente em pacientes que abandonam (HALMI</p><p>et al., 2005; BJÖRCK, 2008), baixa autoestima (WALLER, 1997; HALMI, 2005),</p><p>propensão à irritabilidade, ódio e não cooperação (FASSINO et al., 2003) foram</p><p>relacionados ao abandono e não adesão. Nos abandonos precoces encontram-se</p><p>mais internações prévias (KAHN; PIKE, 2002), e o abandono em sua forma mais</p><p>tardia tende a ocorrer ao verem-se no limiar de mudanças subjetivas importantes,</p><p>quando tais pacientes tendem a recuar – encontrado por autores de estudos em</p><p>contextos culturais diversos, por métodos distintos. Aspectos que podem explicar o</p><p>abandono frente à melhora: dificuldade em ganhar peso na AN e BN como os</p><p>aspectos descritos, em geral medidos por escalas: dificuldade em realizar mudanças, medo</p><p>do amadurecimento, necessidade de deter o controle, dilema central vivido por tais pacientes</p><p>(VANDEREYCKEN; VANSTEENKISTE, 2009; EIVORS, 2003), o qual</p><p>solucionam, em geral, ao abandonar antes, não permitindo à equipe dar-lhes alta</p><p>(BJÖRK, 2009), logrando assim manter consigo o poder, o controle (BELL, 2003;</p><p>EIVORS et al., 2003). Trata-se da inversão da relação de potência no ato de</p><p>abandonar na iminência da alta, como quem retira da equipe esse poder, tomando-o</p><p>para si. O fenômeno</p><p>do abandono é compreendido, assim, como tentativa de</p><p>resolução do dilema do “controle – eu-o(O)utro” ao retirá-lo das mãos da equipe</p><p>nesse ato.</p><p>Desde Freud, sabemos do custo para que possamos abrir mão dos nossos</p><p>sintomas; especialmente nesta clínica, o deslocamento para o corpo cumpre especial</p><p>função e, muitas vezes, identidade, como a metáfora da bengala, que discutiremos</p><p>mais adiante. No abandono tardio, a psicanálise nos permite a interpretação da</p><p>esquiva frente ao “risco” de se ver totalmente sem poder recorrer ao comer</p><p>desordenado; a ideia da alta explicita o desarranjo daquilo que cumpria função tão</p><p>cara à economia psíquica. Esse recuo é também apontado pela literatura médica na</p><p>análise do abandono tardio; assim, a psicodinâmica estabelecida nos TA é fator</p><p>relevante nas interrupções, com destaque para as características psicológicas do</p><p>desamparo psíquico, baixa autoestima, hostilidade e ambivalência. A disponibilidade</p><p>da equipe para acolhimento, manejo clínico e flexibilidade afirma-se extremamente</p><p>relevante e relacionada à adesão e à permanência, especialmente nas AN.</p><p>Família – Envolvimento familiar no tratamento se relaciona a menor índice de</p><p>abandono (WALLER, 1997; LOCK et al., 2006) e pacientes que não abandonam</p><p>têm famílias mais estruturadas (HOSTE et al., 2007) e com menor histórico de</p><p>psicopatologia (VAN STRIEN; VAN DER HAM; VAN ENGELAND, 1992),</p><p>enquanto pacientes que abandonam mais são filhos de pais separados (MAHON,</p><p>2001; LOCK et al., 2006; DALE GRAVE et al., 2008) – aspecto associado à</p><p>capacidade de constituir e manter laços (MAHON, 2000) desde as experiências</p><p>primordiais e familiares.4 Ou seja, a capacidade de manter os laços, inclusive na</p><p>relação terapêutica, é diretamente proporcional ao lugar encontrado (ou não) para si</p><p>a partir dos Outros primordiais, o Outro familiar.5</p><p>Remédio e veneno do abandono: a aliança terapêutica</p><p>No centro da discussão do abandono encontramos, seja nos achados de campo</p><p>(SEIDINGER, 2014), seja nas conclusões da revisão, a dificuldade nas relações</p><p>interpessoais, intensificada nas AN e BN, e seu correlato clínico, a aliança terapêutica.</p><p>A ambivalência significativamente encontrada como em relação ao abandono na</p><p>AN, os mecanismos de introjeção e projeção da culpa relacionados à autoimagem e,</p><p>por sua vez, às dificuldades geradas no campo da relação interpessoal, o que inclui o</p><p>terapeuta, podem desembocar no abandono. O mesmo se dá na repetição das</p><p>dificuldades com as figuras parentais projetadas nessa relação (CLINTON et al.,</p><p>2004; OLIVEIRA; SANTOS, 2006), dinâmica que, se negligenciada, pode</p><p>contribuir com o abandono.</p><p>Pacientes com AN em psicoterapia especializada são mais propensos a</p><p>permanecer em tratamento que aqueles a quem foi oferecido somente tratamento</p><p>ambulatorial de rotina, apesar de tratar-se de grupo com pior prognóstico por</p><p>desencadeamento precoce, longa duração da doença e história de insucesso no</p><p>tratamento (EIVORS et al., 2003). Há melhor adesão e maior efetividade em obter</p><p>ganho de peso na terapia familiar quando associada à individual focal (DARE et al.,</p><p>2001), isto é: independentemente da abordagem, será a aliança terapêutica o</p><p>aspecto determinante para a permanência e o sucesso do tratamento?</p><p>Programas de autoajuda indicam melhores resultados e preferência quando</p><p>orientados se comparados aos não orientados (PERKINS et al., 2006), o que</p><p>aponta para a aliança terapêutica no sentido de que ter alguém na posição de</p><p>acompanhante e orientador do paciente reflete na adesão e na permanência.</p><p>Estudo de caso brasileiro com testes projetivos confirma as dificuldades</p><p>interpessoais na AN/BN; por outro lado, encontra condições afetivas de vinculação</p><p>com o terapeuta e reitera a necessidade desse vínculo, bem como a relação entre</p><p>traços psicopatológicos, hostilidade com a equipe, mecanismo de negação, e não</p><p>adesão ao tratamento (OLIVEIRA; SANTOS, 2006).</p><p>Acima de qualquer outra variável do paciente ou abordagem encontram-se</p><p>significativamente relacionados ao abandono o papel da aliança terapêutica e</p><p>diferenças entre expectativas do paciente e da equipe (CLINTON, 1996). Nesse</p><p>sentido, é fundamental que os tratamentos tomem como alvo o trabalho com</p><p>a autoestima e não com o controle do peso (DALLE et al., 2008). Com outros</p><p>autores, defendemos que não sejam negligenciadas questões clínicas e nutricionais,</p><p>porém, cabe destacar que se o tratamento colocá-las em primeiro plano correr-se-á</p><p>o sério risco de perder de vista questões psíquicas subjacentes e motivadoras do</p><p>quadro alimentar, e favorecer o abandono por insistir na via que o próprio</p><p>adoecimento fechou, aumentando as velhas conhecidas: resistência ao tratamento</p><p>nos TA e reação terapêutica negativa. Destacamos como direção do tratamento:</p><p>trabalhar pela localização subjetiva dos fatores e da conjuntura do</p><p>desencadeamento, junto ao investimento em conquistar/construir a tão difícil</p><p>aliança terapêutica com tais pacientes, tendo em vista suas modalidades de relação</p><p>com o Outro.</p><p>De um tratamento preliminar ao tratamento possível nas anorexias e</p><p>bulimias</p><p>A partir da revisão de literatura científica no campo do que é agrupado pela</p><p>psiquiatria como Transtornos Alimentares, é possível colher estratégias clínicas para</p><p>a redução do abandono, como: discussão das expectativas do tratamento, abertura</p><p>para negociação de certas decisões deixando tramitar “o controle” entre a equipe e</p><p>o paciente, o que à luz da aplicação da psicanálise a esta clínica, podemos formular</p><p>em termos do holding, do acolhimento que não julga, mas ampara, colocando-se em</p><p>primeiro plano não a restauração de peso e metas nutricionais, mas o constante</p><p>investimento na aliança terapêutica e seu manejo clínico, pois o alto risco do</p><p>abandono como “solução” sempre estará presente. Mais ainda nos TA, o paciente</p><p>suposto vinculado hoje, pode ser o abandono amanhã. Isso remete à discussão da</p><p>abordagem do abandono como responsabilidade somente do paciente; faz-se</p><p>necessário que a equipe escute o que está em jogo para o sujeito do inconsciente,</p><p>que fica rechaçado no deslocamento para o corpo do conflito anoréxico-bulímico.</p><p>Há que se debruçar sobre cada caso como único, e ter em vista as razões que a</p><p>clínica e a literatura psicanalítica clássica nos ensinaram, para amparar tais sujeitos</p><p>nas construções que um dia lhes permitam abrir mão do que lhes é mais caro.</p><p>Enquanto não há possibilidade dessa relação terapêutica que permita que se</p><p>articulem como sujeito, frente ao o(O)utro, abandonar o tratamento pode ser mais</p><p>confiável que abandonar a “muleta”.6</p><p>A discussão que nos toca aqui visa construir algum saber nos interstícios, isto é,</p><p>nas lacunas surdas entre as disciplinas, que, apesar do esforço interdisciplinar (LUZ,</p><p>2006) são rapidamente percebidas pela psicodinâmica de nossas pacientes, pela qual</p><p>muitas vezes se deixam tragar mediante sua ambivalência anoréxico-bulímica e,</p><p>quando nos damos conta, lá se foi “a criança com a água do banho”, como no sábio</p><p>dito popular. Somando-se sua maestria no funcionamento histérico à particular</p><p>relação de horror ao defeito, em geral, esses sujeitos ficam inconscientemente à</p><p>espreita das falhas, no tratamento ou no funcionamento da equipe, e delas se</p><p>nutrem; fartam-se das falhas e obtêm o jejum anoréxico na relação com a equipe</p><p>por intermédio de faltar, não aderir e/ou abandonar, assim rechaçando a oferta de</p><p>tratamento. Conseguem, por fim, com suas manobras inconscientes, inverter a</p><p>demanda na relação com o Outro, conforme a lição de Lacan sobre o que</p><p>caracteriza a anorexia: ao</p><p>lazer. Exercendo suas atividades</p><p>profissionais no mundo corporativo, diz que o emprego “suga” suas energias; conta</p><p>que perdeu o apetite e emagreceu; nota que seus cabelos começaram a cair em</p><p>grande quantidade, que ficou irritadiça e dorme mal.</p><p>Aparece, em primeiro plano, uma problemática muito relevante que remete ao</p><p>universo das psicopatologias do trabalho. No âmbito das questões contemporâneas,</p><p>trata-se de um campo importante de investigação, e a psicanálise tem muito a</p><p>contribuir na compreensão dos excessos no trabalho. Tal problemática mostra-se</p><p>especialmente no universo corporativo, em que são frequentes as manipulações das</p><p>relações de trabalho, com elementos psicológicos envolvidos na exploração do</p><p>empregado, levando a certos efeitos psicopatológicos hoje bem conhecidos</p><p>(DEJOURS, 2007) que produzem efeitos de comportamentos aditivos e de</p><p>somatizações.</p><p>Mulher jovem, bonita, muito inteligente, chega demonstrando bastante</p><p>familiaridade com a análise. Se, por um lado, se mostra dona de si e sabedora do</p><p>que busca, por outro, transmite muita fragilidade, da qual não se dá conta. Apesar</p><p>de sua postura assertiva, demonstra também uma posição passiva, de impotência, de</p><p>certo modo vitimizada. Entende que vive uma situação de exploração no trabalho, o</p><p>que lhe provoca muita raiva. Demonstra clareza em sua compreensão das questões</p><p>do trabalho, sua sujeição e a dos colegas, algo que, segundo ela, se dá por meio de</p><p>promoções e ganho monetário cuja contrapartida é de exigências desmedidas de</p><p>eficiência e dedicação em termos de carga horária. Afirma sentir-se como que</p><p>capturada e escravizada por forças muito além das suas, as quais a submetem ao</p><p>fascínio das benesses daquele trabalho em termos de poder aquisitivo e status.</p><p>Maria declara gostar de seu emprego, mas nunca haver se sentido plenamente</p><p>realizada, tendo escolhido sua profissão por motivos financeiros. Cumpre suas</p><p>obrigações profissionais da melhor forma possível, sem conseguir, entretanto, sentir</p><p>muito prazer ao trabalhar. Conta que trabalha desde os 19 anos, sempre</p><p>intensamente, e acha que escolheu a profissão errada. Revela gostar mesmo de</p><p>culinária, e que chegou a fazer cursos mas desistiu da ideia quando percebeu que era</p><p>uma atividade de muito sacrifício pelos horários e que lhe proporcionava pouco</p><p>retorno econômico.</p><p>Teve várias experiências de terapias, a primeira delas na adolescência, época em</p><p>que apresentava bulimia; segundo ela, melhorou justamente quando passou a ter</p><p>uma dedicação excessiva aos estudos e ao trabalho e relaciona os dois fatos.</p><p>Percebe-se, assim, que trazia algumas interpretações prontas e, algumas vezes,</p><p>fechadas. Acrescenta que gosta muito de agradar aos outros e que tem preocupação</p><p>em não decepcionar os pais.</p><p>Maria vai mostrando certa compulsão pelo trabalho, sendo que sua dificuldade</p><p>reside justamente no fato de procurar atender de pronto às exigências da chefia: no</p><p>intuito de agradar, mergulhava em atividades sem-fim em horário muito estendido.</p><p>Como reação, repentinamente surgia uma aversão a tudo, com um colorido</p><p>persecutório e uma necessidade de rompimento abrupto; com isso, vinham os</p><p>pensamentos e, depois, a decisão de se demitir. Conteúdo recorrente em suas</p><p>sessões, a necessidade imperiosa de deixar o emprego decorria do sentimento de</p><p>sua sobrevivência física se achar em risco.</p><p>Acompanhavam as queixas com o trabalho fantasias de estar em vias de ser</p><p>engolida por ele, fantasias estas de forte conteúdo oral que ela mesma relacionava</p><p>com a experiência anterior com a bulimia, mas tendo muita dificuldade de seguir as</p><p>associações nesse sentido e de poder receber as intervenções da analista. Teria sido</p><p>seu modo de chegar à análise trazendo prontas as interpretações e controlando o</p><p>que desejava “colocar para dentro”?</p><p>Vários aspectos da problemática de Maria são muitas vezes encontrados nos</p><p>quadros de transtornos alimentares, polaridades vítimas/algozes, um uso dissociado</p><p>da inteligência e das capacidades de trabalho em contrapartida com a precária</p><p>percepção de seu corpo e de seu mundo interno. Os investimentos libidinais</p><p>apresentam-se ora como investimentos maciços ora como desinvestimento,</p><p>transitando do passional ao evitamento, “duas modalidades relacionais espelhadas</p><p>que têm em comum o fato de uma ser a transformação no contrário da outra”</p><p>(JEAMMET, 1999, p. 32).</p><p>É importante lembrar que as manifestações da bulimia se caracterizam por</p><p>acessos de hiperfagia frequentemente seguidos de vômitos, na busca de compensar</p><p>esse comportamento e de não ganhar peso, tendo como pano de fundo um ideal de</p><p>magreza, já que tanto na bulimia quanto na anorexia mental há uma distorção da</p><p>imagem corporal. Sucedem-se episódios de compulsão alimentar da ordem da</p><p>impulsão, de uma tendência sem freios e sem mediação psíquica. Um dos aspectos</p><p>que caracteriza a bulimia é a forma como o sujeito se relaciona com o alimento,</p><p>como este é ingerido (em grande quantidade, de modo voraz e às escondidas).</p><p>Delineia-se um aspecto anárquico nessa ingestão, pois não há prazer nem fome. Por</p><p>esse fator e por sua dinâmica, a bulimia é muitas vezes associada às adições. “Os</p><p>fatores desencadeantes desses acessos são diversos, mas frequentemente</p><p>relacionam-se com sentimentos de desamparo, fracasso e solidão, ou ao contrário,</p><p>de excitação e prazer.” (FERNANDES, 2006, p. 76). Isso aparecia no caso de Maria</p><p>no aspecto aditivo.</p><p>Outra questão relevante nos casos de bulimia é a supervalorização da aparência</p><p>quanto à imagem corporal, mas também do lado material da vida, bem como das</p><p>sensações e dos prazeres imediatos. Esse aspecto associa-se à dimensão do modo de</p><p>vida contemporâneo, no qual se faz cada vez mais presente o individualismo,</p><p>dissolvendo as experiências de solidariedade, apoio mútuo e valorização do humano</p><p>como contrapartida ao universo da materialidade e do consumo.</p><p>Proponho olhar o caso de Maria a partir da perspectiva de Jeammet (1999), de</p><p>um funcionamento em patchwork, uma composição, estando ausente uma</p><p>organização psíquica dominante, com níveis de estruturação sobrepostos, o que faz</p><p>surgir diferentes faces que se alternam ora em angústias arcaicas ora em rearranjos</p><p>relacionais de tipo neurótico.</p><p>Era possível notar na transferência essa marca das polaridades: algumas vezes,</p><p>mostrava uma excessiva familiaridade, como se acreditasse de fato haver entre nós</p><p>um vínculo muito sólido, que parecia real, e, outras vezes se comportava de um</p><p>modo distanciado, como se viesse para a análise só quando tinha problemas a</p><p>resolver. Podemos pensar aí em uma recusa a estreitar o vínculo? Como que</p><p>correndo um risco narcísico na dificuldade de administrar a proximidade e a</p><p>distância do objeto? Para realizar uma relação utilitária, do tipo “usar e jogar fora”,</p><p>ou comer e vomitar? Era como se para ela bastasse ter uma analista, sendo</p><p>desnecessário construir uma relação a partir das sessões e de trabalhar sobre seus</p><p>afetos. Agia como se a análise fosse um prêt-à-porter, comprar e pronto.</p><p>Casada há pouco tempo, ela e o marido estavam reformando o apartamento</p><p>recém-adquirido, algo a que se dedicava bastante e que resultava dos ganhos no</p><p>trabalho. Seus pais se orgulhavam muito de ela, tão jovem, já ter comprado e estar</p><p>reformando seu imóvel sem a ajuda econômica deles. Para ela e sua família, o fator</p><p>econômico parecia representar, ou melhor, equivaler, a uma estabilidade emocional,</p><p>e a sintomatologia por ela apresentada refletia justamente a eventual ameaça a essa</p><p>condição.</p><p>Por causa da reforma do apartamento, ela e o marido residiam temporariamente</p><p>em outro local. Ela falava muito mal dessa</p><p>colocar a equipe no lugar da mãe nutriz, fazem equivaler o</p><p>tratamento ofertado ao alimento. Produzem, por sua posição subjetiva, a conhecida</p><p>“inversão na relação de potência com o Outro” (LACAN, 1995), obtendo assim um</p><p>alívio por cavar uma falta nesse outro que lhes é maciço, vivenciado como invasivo,</p><p>desde a alienação subjetiva, faltando-lhes avançar na operação de separação do</p><p>Outro materno, no qual o tratamento possível deve operar.7</p><p>Considerações finais</p><p>Clínicos e pesquisadores levantados em nossa revisão consideram o abandono</p><p>em AN e BN como fenômeno complexo e multifacetado. São necessários mais</p><p>estudos qualitativos pautados na compreensão das vivências e significados do</p><p>abandono, investigando seus significados e modalidades em diferentes regimes de</p><p>tratamento, faixa etária, etc.</p><p>A busca dos chamados preditores do abandono declinou e passou-se a</p><p>considerar setting, abordagem, grau de autonomia do paciente, características dos</p><p>terapeutas; porém, é válido apontar que subtipo purgativo, baixa escolaridade,</p><p>gravidade de sintomas alimentares na triagem, estrutura e psicopatologia familiar</p><p>são indicados por diversos estudos como fortemente relacionados ao abandono.</p><p>A motivação central para o abandono parece residir nas dificuldades próprias à</p><p>psicopatologia dos transtornos alimentares no campo do relacionamento</p><p>interpessoal e na diferença entre as expectativas do terapeuta e do paciente. Reitera-</p><p>se a importância fundamental da construção da aliança terapêutica pela equipe,</p><p>condição conhecida para qualquer tratamento, porém, ainda mais importante em se</p><p>tratando de pacientes com anorexia nervosa ou bulimia, relação que esperamos ter</p><p>clareado ao longo deste texto.</p><p>O abandono do tratamento nos TA constitui face pouco explorada, cujo método</p><p>se encontra em evolução; a revisão compreensiva dos aspectos implicados, vários</p><p>controversos, tem a expectativa de contribuir para a elaboração de abordagens mais</p><p>eficazes, bem como fundamentar pesquisa qualitativa de campo que merece</p><p>continuidade com foco nas questões do apego e no aprofundamento da</p><p>compreensão dos fenômenos da transferência, em jogo no que a psicologia médica</p><p>chama aliança terapêutica. Assim, concluímos ao apontar o seu manejo como</p><p>principal ferramenta de adesão e permanência no terreno constantemente</p><p>desafiador do tratamento possível para as anorexias e bulimias.</p><p>Agradecimentos: Aos suportes financeiros da CAPES e FAPESP, e às grandes contribuições dos coautores</p><p>da revisão de literatura, Celso Garcia Júnior e Professor Doutor Egberto Ribeiro Turato. Ao Instituto Clínico de</p><p>Buenos Aires, ao CLIN-a, aos queridos pares do LPCq e do GETA, e às pacientes, que nos ensinam até quando</p><p>abandonam.</p><p>Notas:</p><p>1. A referida revisão de literatura fundamentou as bases da pesquisa para obtenção do título de mestre em</p><p>Ciências Médicas/Saúde Mental na FCM-Unicamp (SEIDINGER, 2014); bolsa CAPes e Aux. Pesquisa</p><p>Fapesp 2011/20469-8. Apresentado: 15th World Congress of Psychiatry, Buenos Aires, 2011; European</p><p>Psychiatry Association, Viena, 2011; (SEIDINGER; GARCIA; BÖTTCHER-LUIZ; TURATO, 2011). O</p><p>artigo de revisão no qual este capítulo se fundamenta foi recentemente publicado na íntegra em periódico</p><p>multidisciplinar brasileiro (SEIDINGER-LEIBOVITZ; RODRIGUES, GARCIA-JÚNIOR; VIEIRA,</p><p>2016).</p><p>2. GETA /UNICAMP – Grupo Interdisciplinar de Assistência e Estudos em Transtornos Alimentares.</p><p>3. Os seguintes estudos o encontraram como: forte preditor, e preditor modesto, em outros, não se revelou</p><p>como preditor.</p><p>4. A partir da experiência clínica, entendemos que o que a literatura nomeia “desestruturação familiar” pode se</p><p>dar de diversos modos, inclusive quando o núcleo familiar não se desfaz efetivamente, porém as figuras</p><p>parentais não sustentam os laços, deixando de ocupar posições simbólicas importantes ao desenvolvimento</p><p>psíquico dos filhos – muitas vezes está lá, mas é rechaçado pela posição subjetiva do filho, que</p><p>inconscientemente escolhe não consentir com os limites, com a Lei, a castração.</p><p>5. Em outro estudo, aprofundamos a análise do complexo de abandono segundo Germaine Guex (SEIDINGER-</p><p>LEIBOVITZ et al., 2015).</p><p>6. Menção às metáforas comumente referidas por esses paciente, tais como “muleta, bengala”, verbalizados no</p><p>sentido do sintoma psíquico, como aquilo que nos é mais caro, necessário, e do qual dependemos, muito ou</p><p>pouco, como apoio; em recuperação, descrevem a sensação de encontrar, ou recuperar, as próprias pernas.</p><p>Momento no qual testemunhamos algum distanciamento entre o somático e o psíquico que constitui a</p><p>própria condição da melhora para poder consentir com o alimento, ou o seu equivalente nas intervenções,</p><p>isto é: o alimento-oferta que vem do Outro da equipe, espelho no qual podem reconstruir ou construir uma</p><p>imagem corporal, retificar suas marcas, algumas traumáticas, outras que resistem à separação, propriamente</p><p>dita, do Outro materno.</p><p>7. Segundo Lacan as duas operações de constituição do sujeito são alienação e separação (LACAN, 1988;</p><p>LACAN, 1998).</p><p>Referências</p><p>ARCELUS, J. et al. Mortality Rates en Patients with Anorexia Nervosa and Other</p><p>Eating Disorders – a Meta-analysis of 36 studies, 68(7):724-731, 2011.</p><p>BELL, L. What can we learn from consumer studies and qualitative research in the</p><p>treatment of eating disorders? In: Eat Weight Disord., 8(3):181-187, 2003.</p><p>BJÖRCK, C. et al. Self-image and treatment drop-out in eating disorders. In: Psych</p><p>and Psychoth., 81(Pt 1):95-104, 2008.</p><p>BJÖRK, T. et al. What happened to the ones who dropped out? Outcome in eating</p><p>disorder patients who complete or prematurely terminate treatment. Eur Eat</p><p>Disorders Rev., 17(2):109-119, 2009.</p><p>CAMPBELL, M. Drop-Out from treatment for the eating disorders: a problem for</p><p>clinicians and researchers. Eur. Eat. Disorders Rev, 17(4):239-242, 2009.</p><p>CARTER, J. C. et al. The impact of childhood sexual abuse in anorexia nervosa. In:</p><p>Child Abuse Negl, 30(3):257-269, 2006.</p><p>CLINTON, D. et al. Patient satisfaction in treatment of Eating Disorders: cause for</p><p>complacency or concern? Eur Eat Disorders Rev., 12(4):240-246, 2004.</p><p>CLINTON, D. Why do eating disorder patients drop out? Psychother Psychosom,</p><p>65(1):29-35, 1996.</p><p>DALLE GRAVE, R. et al. Personality dimensions and treatment drop-outs among</p><p>eating disorders patients treated with cognitive-behavior therapy. Psychiatry</p><p>Research., 158:381-388, 2008.</p><p>_________. Inpatient treatment for anorexia nervosa: a lenient approach. Eur Eat</p><p>Disord Rev., 1(3):166-176, 1993.</p><p>DARE, C. et al. Psychological therapies for adults with anorexia nervosa:</p><p>randomised controlled trial of out-patient treatments. Br J Psychiatry, 178: 216-221,</p><p>2001.</p><p>EIVORS, A. et al. Understanding the experience of drop-out from treatment for</p><p>anorexia nervosa. In: Eur Eat Disorders Rev., 11(2):90-107, 2003.</p><p>FASSINO, S. et al. Dropout from brief psychotherapy within a combination</p><p>treatment in bulimia nervosa: Role of personality and anger. Psychother</p><p>Psychosom, 72(4):203-210, 2003.</p><p>FAVARO, A. M. D., SANTONASTASO, P. Self-Injurious Behavior in Anorexia</p><p>Nervosa. In: J Nerv Ment Dis., 188(8):537-542, 2000.</p><p>GODART, N. T. et al. Predictors of premature termination of anorexia nervosa</p><p>treatment. Am J Psychiatry, 162(12):2398-2399, 2005.</p><p>HALMI, K. A. et al. Predictors of treatment acceptance and completion in</p><p>anorexia nervosa: implications for future study designs. Arch Gen Psychiatry.,</p><p>62(7):776-781, 2005.</p><p>HAY, P. J. et al. Eating disorder behaviors are inereasing: findings from two</p><p>sequential community surveys in South Australian. Plos ONE, 3(2):e1541, 2008.</p><p>HOSTE, R. R. et al. What can dropouts teach us about retention in eating disorder</p><p>treatment studies? Int J Eat Disord, 40(7):668-671,</p><p>2007.</p><p>KAHN C.; PIKE K. M. In search of predictors of dropout from inpatient</p><p>treatment for anorexia nervosa.:Int J Eat Disord, 30(3):237-244, 2001.</p><p>_________. In search of predictors of dropout from inpatient treatment for</p><p>anorexia nervosa. Erratum. Int J Eat Disord, 32(2):249, 2002.</p><p>LACAN, J. [1957] O Seminário livro 4. A relação de objeto. 4. ed. Rio de Janeiro:</p><p>Zahar, 1995.</p><p>LACAN, J. [1964]. O Seminário, Livro 11: Os conceitos fundamentais da</p><p>psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1988. LACAN [1964]. Posição do inconsciente.</p><p>In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.</p><p>LOCK, J. et al. Predictors of dropout and remission in family therapy for</p><p>adolescent anorexia nervosa in a randomized clinical trial. Int J Eat Disord.,</p><p>39(8):639-647, 2006.</p><p>LUZ, M. Complexidade do campo da Saúde Coletiva: multidisciplinaridade,</p><p>interdisciplinaridade e transdisciplinaridade de saberes e práticas – análise sócio-</p><p>histórica de uma trajetória paradigmática. São Paulo, Saúde e Sociedade, v. 18, n. 2,</p><p>p. 304-322, 2009.</p><p>MAHON, J. et al. Do broken relationships in childhood relate to bulimic women</p><p>breaking off psychotherapy in adulthood? Int J Eat Disord, 29(20):139-149, 2001.</p><p>MAHON, J. Dropping out from psychological treatment for eating disorders: What</p><p>are the issues? Eur Eat Disord Rev., 8(3):198-216, 2000.</p><p>MARTÍN MURCIA, F. M. et al. Trastornos de la personalidad en pacientes con</p><p>trastornos de la conducta alimentaria. Psicothema, 21(1):33-38, 2009.</p><p>MASSON, P. C. et al. Premature termination of treatment in an inpatient eating</p><p>disorder programme. Eur Eat Disord Rev., 15(4):275-282, 2007.</p><p>MOHL, P. C. et al. Early dropouts in psychotherapy. J Nerv Ment Dis, 179(8):478-</p><p>481, 1991.</p><p>OLIVEIRA E. A.; SANTOS, M. A. Perfil psicológico de pacientes com anorexia e</p><p>bulimia nervosas: a ótica do psicodiagnóstico. Medicina., 39(3):353-360, 2006.</p><p>PERKINS, S. J. et al. Self-help and guided self-help for eating disorders. Cochrane</p><p>Database of Systematic Reviews. The Cochrane Library, Issue 9, Art. No.</p><p>CD004191, 2006.</p><p>SANTONASTASO, P. et al. Typical and atypical restrictive anorexia nervosa:</p><p>weight history, body image, psychiatric symptoms, and response to outpatient</p><p>treatment. Int J Eat Disord, 42(5):44-70, 2009.</p><p>SEIDINGER, F. M. et al. Dropout in the treatment for anorexia nervosa and</p><p>bulimia: a systematic review from the international databases. European Psychiatry,</p><p>n. 26, p. 738, 2011.</p><p>SEIDINGER, F. M. Significados psicológicos do abandono do tratamento</p><p>ambulatorial nos TA: um estudo clínico-qualitativo, 138 p. orientação Prof. Dr.</p><p>Egberto Ribeiro Turato. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de</p><p>Campinas, Faculdade de Ciências Médicas, Campinas, SP. Disponível em:</p><p>http://www.t.unicamp.br/document/?code=000931464.</p><p>SEIDINGER-LEIBOVITZ, F. M., et al. Slavery to addiction as meaning of</p><p>dropout in eating disorders: psychological aspects among women that have</p><p>interrupted treatment at a specialized service in Brazil. Psychology. 2015; 6, 788–</p><p>799. doi: 10.4236/psych.2015.66078, 2015.</p><p>SEIDINGER-LEIBOVITZ, F. M. et al. Abandono do tratamento em anorexia</p><p>nervosa e bulimia: uma revisão crítica, Revista Interface, Edição nº 11, p. 120-137.</p><p>Maio 2016. SLY, R. What’s in a Name? Classifying ‘the Dropout’ from treatment for</p><p>anorexia nervosa. Eur Eat Disorders Rev. 2009; 17(6):405-407, 2009.</p><p>SURGENOR, L. J.; MAGUIRE, S.; BEUMONT, P. J. V. Drop-out from inpatient</p><p>treatment for anorexia nervosa: Can risk factors be identified at point of</p><p>admission? Eur Eat Disorders Rev, 12(2):94-100, 2004</p><p>THERANI, E. et al. Dropping out of psychiatric treatment: a prospective study of</p><p>a first admission cohort. Acta Psychiatr Scand, 94(4):266-271, 1996.</p><p>VANDEREYCKEN, W.;</p><p>VANSTEENKISTE, M. Let Eating disorder Patients decide: providing choice may</p><p>reduce early drop-out from inpatient treatment. Eur Eat Disorders Rev., 17(3):177-</p><p>183, 2009.</p><p>VANDEREYCKEN W.; PIERLOOT, R. Drop-out during in-patient treatment of</p><p>anorexia nervosa: A clinical study of 133 patients. Br J Med Psychol, 56(Pt 2):145-</p><p>156, 1983.</p><p>VAN STRIEN, D. C.; VAN DER HAM, T.; VAN ENGELAND, H. Dropout</p><p>characteristics in a follow-up study of 90 eating-disordered patients. Int J Eat</p><p>Disord, 12(3):341-343, 1992.</p><p>WALLER, G. Drop-out and failure to engage in individual outpatient cognitive</p><p>behavior therapy for bulimic disorders. Int J Eat Disord., 22(1):35-41, 1997.</p><p>WALLIER, J. et al. Dropout from inpatient treatment for anorexia nervosa: critical</p><p>review of the literatures. Int J Eat Disord, 42(7):636-647, 2009.</p><p>WHO. Mental health: facing the challenges, building solutions: report from the</p><p>WHO European Ministerial Conference” World Health Organization Regional</p><p>Office for Europe, 2005. Disponível em:</p><p>http://www.euro.who.int/data/assets/pdf_file/0008/96452/E87301.pdf. Acesso</p><p>em: 02 dez 2011.</p><p>WOODSIDE, D. B.; CARTER, J. C.; BLACKMORE, E. Predictors of premature</p><p>termination of inpatient treatment for anorexia nervosa. Am J Psychiatry,</p><p>161(12):2277-2281, 2004.</p><p>ZEECK, A.; HERZOG, T. Behandlungsabbrüche bei der stationären Behandlung</p><p>der Anorexia Nervosa. In: Nervenarzt. 71:565-572, 2000. ZEECK, A. et al. Drop</p><p>outs from inpatient treatment of anorexia nervosa. In: Acta Psychiatr Scand.,</p><p>111(1):29-37, 2005.</p><p>WOODSIDE, D. B.; CARTER, J. C.; BLACKMORE, E. Predictors of premature</p><p>termination of inpatient treatment for anorexia nervosa. Am J Psychiatry,</p><p>161(12):2277-2281, 2004.</p><p>ZEECK, A.; HERZOG, T. Behandlungsabbrüche bei der stationären Behandlung</p><p>der Anorexia Nervosa. In: Nervenarzt. 71:565-572, 2000.</p><p>ZEECK, A. et al. Drop outs from inpatient treatment of anorexia nervosa. In: Acta</p><p>Psychiatr Scand., 111(1):29-37, 2005.</p><p>RELAÇÃO MÃE-FILHA</p><p>Repercussões psicológicas dos cuidados maternos</p><p>Christiane Baldin Adami-Lauand</p><p>Fabiana Elias Goulart de Andrade Moura</p><p>Rosane Pilot Pessa</p><p>Introdução</p><p>Os transtornos alimentares (TA) são descritos na literatura especializada como</p><p>doenças mentais, cuja etiologia envolve fatores biológicos, genéticos, psicológicos,</p><p>socioculturais e familiares (MORGAN; CLAUDINO, 2005; SICCHIERI et al.,</p><p>2007). No entanto, a compreensão tanto dos sintomas como de sua etiopatogenia</p><p>ainda apresenta um caráter enigmático e desafiador, uma vez que contrariam o mais</p><p>básico e primitivo dos impulsos de vida.</p><p>Diversos fatores são conhecidos por contribuírem para a predisposição,</p><p>instalação e a manutenção dos sintomas dos transtornos alimentares, com a</p><p>influência combinada da dinâmica familiar, do meio cultural e de aspectos de</p><p>personalidade do indivíduo (OLIVEIRA; SANTOS, 2006; DUPONT; CORCOS,</p><p>2008).</p><p>A construção do vínculo mãe-filha nos TA tem sido objeto de vários estudos, na</p><p>medida em que tal vínculo se apresenta a partir de relações simbióticas e, ao mesmo</p><p>tempo, muito problemáticas e conflituosas, contribuindo para fixar um padrão de</p><p>relacionamentos intensos e confusos do ponto de vista do processo de</p><p>individuação. Dessa forma, o conflito é situado em fases precoces do</p><p>desenvolvimento psicoafetivo, mais exatamente nos primórdios da relação</p><p>estabelecida pela dupla e influenciado pelo processo alimentar, que constitui o</p><p>primeiro elo entre mãe e filha.</p><p>Neste trabalho, consideramos que a construção do vínculo emocional centra-se</p><p>em três elementos fundamentais para a organização e integração da vida psíquica do</p><p>indivíduo: o binômio alimentar/ser alimentado (tendo o alimento como balizador</p><p>da relação mãe-bebê, veículo pulsional e agente de desejo); a condição que a mãe</p><p>terá de receber e conter as necessidades dessa criança; e a historicidade das relações</p><p>influenciada, muitas vezes, pelos mecanismos de identificação que se estabelecem</p><p>entre as gerações, constituindo uma herança transgeracional.</p><p>Esse conhecimento torna-se um requisito essencial não apenas do ponto de vista</p><p>do valor diagnóstico que possa ter, como também de seu valor prognóstico, na</p><p>medida em que contribui com o planejamento da intervenção terapêutica.</p><p>A constituição do vínculo</p><p>A partir de observações clínicas de crianças pequenas, Klein (2006) buscou</p><p>compreender as ansiedades primitivas e os sentimentos de culpa gerados pelos</p><p>impulsos destrutivos e fantasias agressivas do bebê, dirigidos primeiramente ao seio</p><p>da mãe, como representante de seu mundo interno e, posteriormente, ao mundo</p><p>externo – a mãe como objeto total. Essa autora buscou compreender os sentidos</p><p>dessas manifestações do inconsciente, relacionando-as com o processo de</p><p>desenvolvimento normal e também com as psicopatologias que se manifestam</p><p>tanto na criança quanto no adulto.</p><p>Na concepção kleiniana, no bebê satisfeito, o domínio da ansiedade requer o</p><p>controle da avidez, que se dá por meio da subordinação da relação alimentar a um</p><p>princípio de relação de objeto. O contato com a realidade depende essencialmente</p><p>do sentimento de segurança. Se a criança não está segura de receber amor, seu</p><p>pleno desenvolvimento poderá ficar comprometido.</p><p>Winnicott (2000) afirma que, no início da vida, o bebê sente como se ele e a mãe</p><p>formassem uma unidade somatopsíquica, inexistindo outra possibilidade de arranjo</p><p>mental, principalmente em decorrência da extrema dependência que a criança tem</p><p>dos cuidados maternos. Uma mãe com disponibilidade e preocupação genuína com</p><p>os cuidados e as necessidades de seu filho contribui para uma adaptação ativa do</p><p>bebê ao ambiente externo. Para superar esse estado inicial de dependência e atingir</p><p>uma relativa independência é necessário que a mãe crie um ambiente de segurança</p><p>em que a criança possa experimentar diversas sensações e experiências sem que se</p><p>sinta insegura ou ameaçada em sua integridade, possa manifestar suas tendências ao</p><p>desenvolvimento e experimentar movimentos espontâneos rumo à independência.</p><p>Quando a mãe tem um ambiente favorável e consegue dedicar-se ao bebê e</p><p>identificar-se com ele, Winnicott (1982) acredita que a alimentação desta criança</p><p>constitui-se uma das partes mais importantes da relação. Para ele, a mãe e o recém-</p><p>nascido estariam prontos para unirem-se pelos laços de amor e, naturalmente,</p><p>conhecerem-se e, em seguida, aceitarem os riscos emocionais envolvidos nessa</p><p>relação. A partir do momento que passam a confiar um no outro e a entender-se</p><p>mutuamente, o processo de alimentação começa a se desenvolver por conta própria.</p><p>A relação harmoniosa entre a mãe e o bebê proporciona a este último a ilusão</p><p>onipotente de ter criado os objetos que atendam às suas necessidades no exato</p><p>instante em que elas surgiram. Nesse momento, o bebê é incapaz de perceber a</p><p>existência de outro sujeito e de diferenciar suas experiências internas dos cuidados</p><p>externos oferecidos pela mãe ou pessoa que assume a função materna.</p><p>Conforme o bebê se desenvolve, é natural que adquira condição de perceber que</p><p>a mãe é alguém separado dele, e a fusão anterior começa a dar lugar a outra relação</p><p>rumo ao desenvolvimento da capacidade criativa do indivíduo.</p><p>Segal (1975) considera que, quando a relação é fortemente perturbada pela</p><p>resposta adversa da mãe ou pela inveja do bebê – normalmente uma combinação de</p><p>ambos –, estão lançadas as bases para uma perturbação psicótica posterior.</p><p>Bruch (1973), uma das pioneiras no estudo dos transtornos alimentares, atribui o</p><p>desenvolvimento deficiente dessas pacientes à escassez de respostas</p><p>retroalimentadoras apropriadas. Por exemplo, as necessidades da criança foram</p><p>respondidas pela mãe de modo contraditório ou com extrema solicitude,</p><p>conduzindo a filha a um reconhecimento ineficaz de seus estados internos, a</p><p>respostas insuficientemente diferenciadas e a deficiências conceituais ou</p><p>perceptuais. A criança não receberia um retorno confirmatório de suas sensações e</p><p>sentimentos, o que traria grande insatisfação e insegurança por não ter clareza</p><p>acerca das próprias necessidades, dificultando, assim, o desenvolvimento de seu</p><p>sentido de self. Seu sentimento de autonomia estaria prejudicado e ela se perceberia</p><p>como uma mera extensão da mãe. Isso provocaria, mais tarde, um medo de se</p><p>separar do convívio íntimo e da zona de influência dos pais. Nessa vertente, a</p><p>autora situa o problema que compromete o comportamento alimentar na base da</p><p>comunicação mãe-filha, a partir da má organização precoce.</p><p>Os transtornos alimentares e a transgeracionalidade</p><p>O material clínico dos atendimentos com pacientes portadores de TA e seus</p><p>familiares nos revela que, na dupla mãe-filha, os enredos de suas histórias misturam-</p><p>se e, às vezes, os conflitos pertencentes à geração anterior tendem a se repetir a</p><p>cada geração. Histórias rejeitadas pelas mães, guardadas no “porão de suas mentes”,</p><p>lutos não elaborados, segredos, traumas, silêncios parecem encontrar um terreno</p><p>fértil no psiquismo de suas filhas, caracterizando um processo de transmissão</p><p>psíquica entre as gerações.</p><p>A respeito dessa transmissão, Silva (2003) traz que, em casos de transtornos</p><p>emocionais graves, observa-se que o self desses pacientes é habitado por conteúdos</p><p>inconscientes que pertencem a outra geração, impedindo o desenvolvimento de um</p><p>psiquismo próprio.</p><p>Freud (1976), em Introdução ao Narcisismo, já fornecia indícios de uma transmissão</p><p>entre as gerações e através delas. Para o autor, a formação do psiquismo da geração</p><p>precedente sofre influência do narcisismo parental, tornando-se responsável pela</p><p>continuidade da vida psíquica entre as gerações. O investimento dos pais na criança</p><p>a torna depositária de seus desejos insatisfeitos e projetos não realizados, marcando</p><p>as condições do nascimento psíquico dessa criança.</p><p>Essa transmissão implica a inexistência do limite e do espaço subjetivo entre o</p><p>eu e o outro, permanecendo apenas a exigência do narcisismo. São elementos que se</p><p>transmitem através dos sujeitos e não entre eles, perpetuando segredos e lutos que</p><p>dificultam a transformação e a simbolização (KAËS, 2001).</p><p>A transmissão desses conteúdos pode ser descrita como um fenômeno</p><p>transgeracional resultante de uma herança psíquica que atravessa gerações sem ter</p><p>tido a possibilidade de transformação, interrompendo a integração psíquica.</p><p>Para Silva (2003, p. 184). “a mãe está presente na relação com o bebê não só</p><p>como mãe, mas como mãe, avó, bisavó, com toda sua história de relações, com as</p><p>questões do meio ambiente em que ela viveu e a questão cultural, compondo o</p><p>próprio cuidado materno”.</p><p>A partir dessas contribuições, pode-se pensar que o psiquismo se origina na</p><p>relação com o outro, sofre e depende do ambiente a sua volta. Winnicott (1999)</p><p>articulou seu referencial teórico com a observação da existência dos fenômenos</p><p>transgeracionais e dedicou um olhar especial para o desenvolvimento emocional</p><p>sadio das crianças. Desenvolveu o conceito de função materna relacionada aos</p><p>cuidados básicos da maternagem. Estes compreendem a disponibilidade afetiva da</p><p>mãe e sua capacidade de sintonia com as necessidades emocionais do bebê, criando</p><p>um espaço de continência e acolhimento às angústias do bebê, a fim de ajudá-lo a</p><p>delimitar os contornos do seu mundo psíquico, no qual existe o eu e o outro.</p><p>A construção do vínculo pode receber influência de conteúdos emocionais não</p><p>elaborados, denominados de objetos transgeracionais, que são transmitidos pelas</p><p>gerações por mecanismos de identificação, em especial pela identificação projetiva</p><p>(SILVA, 2003). Para a autora, a identificação projetiva corresponde à comunicação</p><p>de emoções</p><p>e identificações entre a mãe e o bebê e vice-versa. Nesse mecanismo, o</p><p>objeto será incorporado pelo mundo psíquico sem possibilidade de ser</p><p>transformado pela transmissão e, consequentemente, paralisa e interdita a</p><p>constituição de uma estrutura mental própria e autônoma.</p><p>A história de Sofia</p><p>Sofia é uma mãe que acompanhou o tratamento da filha no Grupo de</p><p>Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de</p><p>Medicina de Ribeirão Preto – USP (GRATA – HCFMRP/USP), que estava no</p><p>serviço há cerca de quatro anos. Os dados relatados a seguir são fragmentos de</p><p>dissertações de mestrado realizadas pelas duas primeiras autoras, orientadas pela</p><p>terceira autora.</p><p>Ela passou sua primeira infância na zona rural. Ao ingressar na escola, mudou-se</p><p>para a cidade e, quase no mesmo período, o pai abandonou a família por um tempo</p><p>e depois retornou. Na ausência do pai, a avó materna acolheu-os, mas logo em</p><p>seguida faleceu. Narra uma infância marcada por perdas de pessoas significativas e</p><p>por restrições alimentares que ela atribui às dificuldades financeiras da família. Em</p><p>sua adolescência, experimenta momentos de fartura alimentar quando passa um</p><p>período fora da casa dos pais, porém, nessa época, as transformações corporais</p><p>típicas do período chamam sua atenção e, em alguns momentos, a preocupam.</p><p>Tornou-se adulta com o desejo de poder alimentar-se com “coisas diferentes”, pois</p><p>o alimento fornecido pela família não lhe satisfazia. Com o casamento, encontrou</p><p>recursos financeiros e afetivos para saborear novos pratos e encanta-se pelo poder</p><p>de conseguir satisfazer seus desejos alimentares infantis.</p><p>Casou-se aos 20 anos e logo engravidou de seu primeiro filho. Relata um</p><p>casamento difícil, com pouca participação do marido. Assumiu as responsabilidades</p><p>da casa e raramente recebia ajuda de familiares. O marido fazia uso de bebidas</p><p>alcoólicas frequentemente, assim como seu pai, o que a deixava muito descontente.</p><p>Quando o filho contava com 9 meses, engravidou novamente e foi orientada a</p><p>proceder o desmame da criança, o que lhe causou muito sofrimento. A gravidez da</p><p>segunda filha, apesar de desejada, foi cercada de muitas contrariedades e o parto foi</p><p>difícil, induzido e a fórceps. A filha era uma criança muito “boazinha”, quase não</p><p>chorava, se contentava com o que lhe ofereciam, mas era muito apegada a Sofia,</p><p>que associa esse apego à amamentação. A filha mamou até os 5 anos e só</p><p>interrompeu após a internação de Sofia por desnutrição. O pai foi responsável pelo</p><p>“corte”, dizendo que Sofia estava adoecendo por querer amamentar a filha. A partir</p><p>desse dia, a filha recusou o seio e não suportava beber nenhum tipo de leite. O</p><p>ingresso na escola também foi difícil, apesar do bom desempenho escolar.</p><p>Sofia teve seus filhos e manteve-se magra até o nascimento de sua filha. Depois,</p><p>diz que ganhou peso, o que lhe causou desconforto e, em seguida, voltou a</p><p>emagrecer. Conseguia manter na despensa de sua casa os alimentos “diferentes”,</p><p>como as guloseimas, os embutidos, as frutas e os doces que tanto desejou na</p><p>infância. Tudo parecia caminhar bem, mas em determinado momento, viu-se diante</p><p>da impossibilidade de alimentar a filha, pois ela se recusava a ingerir os alimentos.</p><p>Inicia-se a trajetória na qual buscava nomear as condições de emagrecimento e de</p><p>recusa alimentar da filha. Sofia passou a dedicar-se quase que integralmente à filha,</p><p>afastando-se muitas vezes da família, de amigos e de si mesma.</p><p>Após quatro anos de seguimento no GRATA, com momentos que oscilaram</p><p>entre a iminência de morte e a esperança pela vida, sua filha encontrava-se em</p><p>franca recuperação de peso e ensaiava uma nova fase para a sua vida, na qual se</p><p>abriu espaço para sonhos, desejos e uma mente pensante. Sofia, por sua vez, ficou</p><p>confusa, sentia ter perdido sua função “pensante” na dupla, o medo e o desamparo</p><p>invadiam sua mente e, seu corpo abatido, revelava a dor diante desse processo de</p><p>diferenciação que começou a surgir.</p><p>Algumas reflexões…</p><p>1 Relação com o alimento</p><p>Em seus relatos, observamos a função emocional que o alimento assumiu para</p><p>Sofia. Ora o alimento é sentido como perseguidor, ameaça a sua integridade, ora</p><p>tem a função reparadora, capaz de compensar a dor da perda de pessoas queridas.</p><p>Sofia também revela o desejo por alimentos “diferentes” que se apresentavam a</p><p>ela com restrição durante sua infância, justificada pelas dificuldades financeiras da</p><p>família. Porém, estabelece um compromisso consigo de modificar essa situação,</p><p>adotando muitas vezes atitudes semelhantes a uma grande voracidade alimentar.</p><p>“Eu comento às vezes com minha filha que eu morria de vontade de ter uma</p><p>caixa de bombom na minha mão, mas nunca tive, minha tia sempre levava um ou</p><p>dois. Então, pensava que, ao ter condições financeiras, eu compraria uma caixa de</p><p>bombom para mim somente.”</p><p>“Então eu comprava tudo que eu tinha vontade de comer, eu comprava e comia</p><p>mesmo.”</p><p>2 Cuidar diante das dificuldades em alimentar</p><p>Quando Sofia assumiu a responsabilidade pelo preparo dos alimentos para sua</p><p>família, procurou evitar aquilo que em sua infância sentiu como restrição e falta.</p><p>Surgiram tentativas de organizar a alimentação familiar baseadas nas suas</p><p>frustrações, porém o exagero e a busca por saciar todos os desejos alimentares</p><p>muitas vezes dificultavam essa organização, como citado na seguinte fala:</p><p>“Eu fazia direto bolo, bolacha, rosca, pão, e dizia aos meus filhos que não tinha</p><p>condições financeiras de comprar presentes, mas o que eles quisessem comer não</p><p>me importava em comprar. Então, tudo o que eles pediam para comer, mesmo as</p><p>‘besteiras’, eu permitia, pois acho que uma criança que pede um chocolate fica</p><p>sentida se não come, porque eu ficava”.</p><p>Nesse fragmento da história de Sofia, temos indícios de como ela construiu seu</p><p>mundo interno a partir das experiências alimentares. As dificuldades no desmame</p><p>dos filhos, juntamente com a dificuldade em proporcionar à filha a tranquilidade</p><p>necessária para um distanciamento gradual e seguro, influenciaram a maneira como</p><p>ela oferecia o alimento à filha.</p><p>“Ela foi uma menina assim bem calma. Quando nasceu, só gostava de</p><p>amamentar muito. Amamentava bastante, Nossa senhora, o que ela mais gostava era</p><p>de amamentar. Não era muito de comer não.”</p><p>O desmame é um período difícil e necessário também do ponto de vista</p><p>emocional para a criança. É um importante passo no processo de individuação do</p><p>bebê. As dificuldades de Sofia no manejo do desmame podem nos dar algumas</p><p>indicações de como a filha vivenciou este período. A ruptura abrupta pode ter</p><p>vindo acompanhada de fantasias de que ela fazia um grande mal àquele seio e,</p><p>consequentemente, à mãe. Fantasias persecutórias dessa natureza são capazes de</p><p>conduzir a criança a uma busca incessante pela confirmação de que não foi</p><p>responsável pela destruição da pessoa amada. Esta pode ser uma busca para toda a</p><p>vida.</p><p>“E […] quando ela largou de mamar, ela perguntou pro pai dela por que que eu</p><p>tava doente; eu não sei se ele falou que foi porque ela mamava […]. Só sei que</p><p>quando eu cheguei do hospital uma vez, que eu fui internada várias vezes, quando</p><p>ela tinha já uns 5 anos, que ela ainda mamava. Aí ela chegou e falou assim: ‘eu não</p><p>quero que a senhora fique doente mais, de hoje em diante, eu não vou mamar mais’.</p><p>Pequenininha, né? Então, mas eu acho que já não foi muito bom isso, né? Pra</p><p>cabecinha dela… E ela pegou e já não quis mais.”</p><p>Considerando as dificuldades apresentadas por Sofia no que diz respeito a se</p><p>entregar aos cuidados com seu bebê, talvez o estado de “excessivamente boazinha”</p><p>relatado possa ser uma resposta emocional a um sentimento</p><p>intenso de desamparo,</p><p>levando a uma desistência de se apresentar para a mãe. A criança passa então a</p><p>alucinar o cuidado e não mais a contar com ele, tornando-se cada vez mais</p><p>autônoma, ou negando a dependência.</p><p>Várias manobras autísticas1 protetoras podem ser usadas para amortecer a</p><p>consciência de modo a evitar o sofrimento. Isso resulta no afastamento da realidade.</p><p>A consciência do mundo exterior é inibida ou gravemente distorcida. Nesses casos,</p><p>integrações psicológicas não acontecem; o comportamento se torna idiossincrático,</p><p>o bebê se isola das emoções, implicando uma ausência de resposta ao seu ambiente.</p><p>Nesses estados, o bebê pode parecer apático e sem interesse pelo meio em que vive.</p><p>Essa condição é ignorada com mais facilidade do que outros distúrbios, como o</p><p>choro excessivo, a agitação e a recusa do alimento.</p><p>Sofia parece ter tido dificuldade de captar as necessidades de seu bebê e de</p><p>supri-las adequadamente, fornecendo a simplicidade e a monotonia necessárias para</p><p>o sentimento de permanência de sua existência. Assim, tornou-se incapaz de</p><p>suportar as angústias da filha, devolvendo-as de forma processada de maneira que</p><p>possa promover-lhe um estado de acalento frente a suas terríveis angústias.</p><p>Para Sofia, maternidade e culpa parecem andar de mãos dadas. Ela relata</p><p>experiências em que considera que falhou ou que não foi suficientemente boa no</p><p>que diz respeito aos cuidados de sua filha. Juntamente com isso, e complicando</p><p>ainda mais um quadro de muita angústia e sofrimento, surgiu um sentimento de que</p><p>foram as suas falhas, e consequentemente ela própria, a responsável pelo</p><p>aparecimento futuro da doença na filha.</p><p>“Ela chegou pra mim e falou assim: ‘Ai, você nunca brincou comigo!’ Ela</p><p>chegou a falar isso uma vez. Eu nunca fui de brincar assim com menino. Às vezes, a</p><p>gente saía, mas de brincar não… não sei se é porque a gente foi criado assim</p><p>também, né? Mas às vezes chegava tarde e… vai jantar, ficava lá, assistindo</p><p>televisão, não dava muita atenção, talvez eu também não dava, porque eu comecei a</p><p>trabalhar. Eu acho que talvez um pouco de carinho faltou sim. Mais conversa, mais</p><p>carinho, mais ficar junto ali mesmo, né? Talvez ela, ela tenha falta disso.”</p><p>Sofia estabeleceu seus vínculos oferecendo, em sua concepção, bons alimentos à</p><p>sua família. Para ela, o ato de oferecer um alimento concretamente à família parecia</p><p>ser um “bom jeito” de cuidar.</p><p>A anorexia de sua filha, no entanto, comprometeu essa concepção, pois seu</p><p>alimento/afeto é recusado pela filha. Sofia experimentou sentimentos de culpa e</p><p>angústia diante da dificuldade em nutrir. A fala a seguir elucida tais sentimentos:</p><p>“Ela chorava demais, acho que sentia fome; dizia que aquela comida ficava ruim</p><p>[…] sem sal. Ela chorava muito e falava que eu fazia comida com terra, […] eu</p><p>ficava um pouquinho nervosa”.</p><p>A afetividade e o cuidado que Sofia atribuía ao preparo dos alimentos tornaram-</p><p>se incertos, gerando insegurança frente à sua capacidade de alimentar a família. Em</p><p>um mecanismo de indiferenciação, mãe e filha não conseguiam ter o mesmo prazer</p><p>em alimentar-se e Sofia diminuiu sua ingestão alimentar. Parece que Sofia perdeu</p><p>sua capacidade de cuidar do outro e de si diante da recusa alimentar da filha. Os</p><p>relatos a seguir mostram tal aspecto:</p><p>“Eu fazia comida mais temperada, hoje em dia eu faço a comida, eu como, mas</p><p>não sinto que ela fica gostosa”.</p><p>“Com a doença […] você passa a ter um cuidado tão grande que hoje fico com</p><p>medo até de comer, não por medo de engordar, mas por medo que a comida esteja</p><p>ruim e não sustente”.</p><p>3 Após quatro anos de atendimento</p><p>Sofia vivia um momento de ambivalência afetiva na recuperação da filha. A</p><p>necessidade de olhar para si como uma mente separada da filha gerava incertezas,</p><p>medos que a impediam de apropriar-se da recuperação da filha com confiança.</p><p>Pensou-se que a possibilidade de perder a filha pela recusa do alimento, objeto</p><p>representante de afeto e cuidado, mobilizou em Sofia vivências e emoções que</p><p>pareciam estar adormecidas em sua mente.</p><p>No relato a seguir, percebe-se que desde muito cedo a própria Sofia tinha uma</p><p>preocupação com peso e imagem:</p><p>“Uma vez, eu lembro que eu estava na escola e minhas amigas ficavam com peso</p><p>baixo e me falavam que eu estava gordinha. Mas eu nem esquentava a cabeça com</p><p>isso, só uma vez que uma colega brincou comigo, me apertou, me chamou de gorda</p><p>e eu não gostei. Depois comecei a trabalhar e me movimentar mais”.</p><p>Sofia, durante os anos de tratamento da filha, também revelou dificuldades em</p><p>aceitar qualquer espaço de cuidado da sua cidade e, portanto, de mais fácil acesso</p><p>para poder cuidar de si. A seguinte fala nos confirma o aspecto da indiscriminação:</p><p>“Mas se eu for procurar alguém pra fazer terapia tem que ser especialista em</p><p>transtorno alimentar. Como vou a alguém que não sabe o que eu vivo?”</p><p>Sofia estava vivendo um período de intenso sofrimento com o desenvolvimento</p><p>psíquico da filha e com a possibilidade de suas mentes se separarem. Ela dava sinais</p><p>de uma identificação com a doença da filha que parecia lhe sustentar a vida.</p><p>Faimberg (2001) esclarece melhor essa identificação quando propõe o conceito</p><p>de “identificação alienada ou clivada”, na qual o narcisismo dos pais em relação aos</p><p>filhos exerce as funções de apropriação e de intrusão. Na função de apropriação, os</p><p>pais internos identificam-se com o que há de positivo em seus filhos e apropriam-se</p><p>dessa identidade. Na função de intrusão, expulsam no filho o que rejeitam em si.</p><p>Para essa autora, o filho é odiado não só porque é diferente, mas, sobretudo, […]</p><p>porque sua história será comum à história de seus pais, e a tudo o que eles não</p><p>aceitam em sua regulação narcísica” (op. cit.).</p><p>Ela acrescenta ainda que há pelo menos três gerações envolvidas nesse tipo de</p><p>identificação e, assim, os “pais não são os únicos protagonistas dessa relação, mas</p><p>estão, por sua vez, inscritos inconscientemente em seu próprio sistema familiar”</p><p>(idem).</p><p>As falas de Sofia ilustram esse aspecto.</p><p>“Para mim tá muito difícil, tanto tempo cuidando, agora ela quer namorar, eu</p><p>não quero, mas tenho que aceitar, tá difícil.”</p><p>“Ela tá melhor, quer fazer faculdade, sair, mas fica de segredos, não me conta</p><p>mais tudo e eu fico querendo saber.”</p><p>O regime narcísico das funções de apropriação e de intrusão forçam a geração</p><p>seguinte a uma adaptação alienante, na qual há a transmissão de uma história que</p><p>não lhe pertence, porém habita-lhe a mente, impedindo qualquer possibilidade de</p><p>desejo e existência de um mundo mental próprio.</p><p>Com a evolução do quadro clínico e dos recursos psíquicos para pensar, a filha</p><p>de Sofia iniciou outro momento da sua vida, no qual começava a contar sua história</p><p>ao desenvolver um mundo mental próprio. Sofia, por sua vez, tentava felicitar-se</p><p>por isso, afinal fora uma batalha pela vida que lutou desde o início. Pensa-se, no</p><p>entanto, por quais vidas ela lutava já que mãe e filha eram uma só mente.</p><p>Sofia dava sinais à equipe, até o momento da realização deste trabalho, de que</p><p>construir um mundo psíquico próprio lhe era doloroso, lhe causava medo,</p><p>provavelmente, porque teria que olhar para os próprios fantasmas, suas dores, seus</p><p>lutos, seus segredos e apropriar-se deles a fim de transformá-los em experiência</p><p>criativa.</p><p>Considerações finais</p><p>Apresentar uma finalização para este texto parece-nos uma tarefa muito difícil,</p><p>pois estamos diante de mentes em processo de desenvolvimento. Em seus ensaios</p><p>na busca pela subjetivação e construção de suas individualidades, tanto mãe quanto</p><p>filha apresentam, em suas trajetórias, histórias marcadas por descompassos e</p><p>angústias, mas também encontramos empenho e dedicação de ambas. Elas se</p><p>esforçaram para iniciar um novo</p><p>capítulo de suas biografias, em que cada uma</p><p>pudesse escrever a própria história, livres de identificações alienantes que</p><p>aprisionavam suas mentes, impedindo a construção de algo novo.</p><p>Silva (2003) refere que os fenômenos transgeracionais estão presentes em todos</p><p>nós; eles só se tornam sinistros quando nos são interditados de conhecê-los, de</p><p>pensá-los, de sonhá-los. Esses fenômenos que não nos são facilmente acessíveis, são</p><p>também a matéria-prima básica para o trabalho dos profissionais que cuidam de</p><p>pessoas portadoras de TA e suas famílias, por uma escuta atenta e um trabalho</p><p>cuidadoso que possam trazer à tona esses conteúdos.</p><p>Durante o período em que estivemos próximos de sua história, Sofia nos conta</p><p>que, apesar das dores, frustrações e feridas “esquecidas” no porão de sua mente,</p><p>neste momento, empenhava-se, ainda com certa resistência, para procurar um</p><p>espaço terapêutico que oferecesse a possibilidade de ressignificar suas experiências</p><p>e, assim, construir outros enredos e caminhos mais saudáveis.</p><p>Nota:</p><p>1.Termo apresentado por Tustin para designar um modo de funcionamento mental dominado por sensações</p><p>não mentalizadas e que não adquirem representação na mente. O indivíduo recolhe-se no interior de uma</p><p>“concha protetora”, permanecendo absorto em atividades autossensuais, bastando-se com elas, de modo a se</p><p>proteger de estados de grande vulnerabilidade.</p><p>Referências</p><p>BRUCH, H. Eating desorders: obesity, anorexia nervosa and the person within. Nova York:</p><p>Basic Books, 1973.</p><p>DUPONT, M. E., CORCOS, M. Psychopathology in eating disorders: new trends.</p><p>La Revue du Praticien, 2(58):141-149, 2008.</p><p>FAIMBERG, H. A telescopagem das gerações a propósito da genealogia de certas</p><p>identificações. In: KAËS, R. et al. Transmissão da vida psíquica entre as gerações. São</p><p>Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. p. 71-93.</p><p>FREUD, S. Introdução ao narcisismo. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago,</p><p>1976. v. 13.</p><p>KAËS, R. Introdução ao conceito de transmissão psíquica no pensamento de</p><p>Freud. In: KAËS, R. et al. Transmissão da vida psíquica entre as gerações. São Paulo: Casa</p><p>do Psicólogo, 2001. p. 27-69.</p><p>KLEIN, M. Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In:______. Inveja e gratidão</p><p>e outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago, 2006. p. 17-43.</p><p>MORGAN, C. M.; CLAUDINO, A. M. Epidemiologia e etiologia. In: MORGAN,</p><p>C. M.; CLAUDINO, A. M. (orgs.) Guia de transtornos alimentares e obesidade. Barueri,</p><p>SP: Manole, 2005.</p><p>OLIVEIRA, E. A.; SANTOS, M. A. Perfil psicológico de pacientes com anorexia e</p><p>bulimia nervosas: a ótica do psicodiganóstico. Rev Medicina, 3(39):353-360, 2006.</p><p>SEGAL, H. Introdução à obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 147.</p><p>SICCHIERI, J. M. F. et al. Avaliação nutricional de portadores de transtornos</p><p>alimentares: resultados após a alta hospitalar. Ciência, Cuidado e Saúde, 6(1):68-75,</p><p>2007.</p><p>SILVA, M. C. P. A herança psíquica na clínica psicanalítica. São Paulo: Casa do</p><p>Psicólogo, 2003.</p><p>WINNICOTT, D. W. O desenvolvimento da capacidade de se preocupar. In:</p><p>_____. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento</p><p>emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1982. p. 70-78.</p><p>________. O conceito de indivíduo saudável. In: ______ Tudo começa em casa.</p><p>Tradução de Paulo Sandler. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 3-22</p><p>_________. [1956] A preocupação materna primária. In: ______. Da pediatria à</p><p>psicanálise: obras escolhidas. Tradução de Davy Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago,</p><p>2000. p. 399-405.</p><p>AS MARCAS NO CORPO1</p><p>Cybelle Weinberg</p><p>Prosseguindo no propósito de aproximar as questões pertinentes ao</p><p>funcionamento mental próprias da santidade e da anorexia, tema que vem me</p><p>ocupando nos últimos anos, pretendo tratar aqui das automutilações, observadas</p><p>tanto na clínica como nos relatos de Santa Veronica Giuliani, santa jejuadora que</p><p>viveu na Itália em fins do século XVII e início do século XVIII.</p><p>Para tanto, tomarei como exemplo quatro casos de adolescentes com sintomas</p><p>alimentares que se cortam ou se machucam com regularidade, atendidas em</p><p>consultório.</p><p>O primeiro é o de uma garota que se apresenta com as mãos terrivelmente</p><p>feridas. Sentada frente à analista, passa toda a sessão enfiando um clipe entre as</p><p>unhas e a carne dos dedos até que o sangue pingue. E, aparentemente, indiferente à</p><p>dor e ao que a sua ação possa provocar no outro.</p><p>O segundo é o de outra garota que arranca a pele dos pés até que eles sangrem.</p><p>Em certa ocasião, essa garota juntou os pedaços de pele arrancados, fez com eles</p><p>uma flor, fotografou-a e levou a foto para a analista.</p><p>No terceiro caso, a jovem, quando acha que exagerou na comida, usa um estilete</p><p>para escrever várias vezes em sua barriga e coxas as palavras “gorda”, “porca”,</p><p>“nojenta”. Em seguida, se fotografa e posta as fotos na internet, numa</p><p>autoacusação pública gravada na própria pele.</p><p>O quarto é o de uma moça de 22 anos que se corta desde os 13. Com uma gilete,</p><p>faz cortes nos braços e há tanto tempo que, ao usar uma blusa de mangas curtas,</p><p>exibe uma infinidade de cicatrizes. Diz que, ao se cortar, gosta de ver o sangue</p><p>escorrer, que “é fascinante”. Sobre o sangue menstrual, afirma que o odeia, que “o</p><p>sangue dos cortes pode ser estancado quando quiser”, mas o outro, o da</p><p>menstruação, “escorre sem controle”. Recentemente, substituiu esses cortes por</p><p>outro tipo de sangramento: com uma seringa, retira o sangue das veias e vai</p><p>depositando-o em um pote de vidro. Em seguida, joga-o no lixo, descartando o</p><p>sangue, mas não a seringa, que é sempre a mesma. Sobre esse ato, afirma que ele</p><p>“diminui a tristeza, dá um alívio imediato, melhor que o remédio, que demora para</p><p>fazer efeito.”</p><p>Os sangramentos de Santa Veronica Giuliani</p><p>Santa Veronica Giuliani relembra, em seus escritos, vários episódios encenados</p><p>com sangue, desde aqueles de quando era muito pequena, quando se comprazia em</p><p>ver o sangue escorrer de um dedo machucado, até a descrição de feridas que</p><p>jorravam sangue ou cartas escritas com sangue.</p><p>Em seus anos de convento – período denominado pelos seus biógrafos como os</p><p>“anos do purgatório” –, tendo se sentido chamada a sofrer pela conversão dos</p><p>pecadores, ofereceu-se como intermediária entre eles e Deus, tomando para si a</p><p>penitência expiatória que lhes cabia. E, com seu próprio sangue, registrou sua</p><p>promessa:</p><p>Voltei a mim, encontrei o hábito todo ensanguentado. Tinha ainda a pena na mão e</p><p>a carta onde tinha escrito a promessa, que me parecia começar assim: “Meu Senhor,</p><p>declaro não querer nunca mais ofender-vos voluntariamente, nem de nenhum outro</p><p>modo; com o vosso auxílio espero fazê-lo. Agora, para sempre, vos prometo amar e</p><p>o mesmo amor vos peço, não com palavras, mas com o próprio sangue. Outro não</p><p>quero que vós, agora meu dono de tudo. Este meu coração e esta minha alma são</p><p>vossos, e como vossa esposa me doo. Sim, meu Senhor, sejam estes dizeres</p><p>confirmados por vós de querer me aceitar por vossa esposa”. Enquanto assim dizia,</p><p>entendi que tudo se confirmara.</p><p>Havia outras coisas na promessa, mas no momento não me recordo. Somente que</p><p>também lhe implorava a conversão dos pecadores. Encontrai essa carta, toda escrita</p><p>com meu sangue. Sentia muita dor na ferida que tinha feito, e lá estava bem gravado</p><p>o nome de Jesus, e lá permanecerá para sempre o sinal. Seja tudo pela glória de</p><p>Deus.</p><p>Este nome de Jesus fiz com canivete, renovado por duas ou três vezes para alguma</p><p>solenidade e também agora escrevi mais vezes as promessas com meu próprio</p><p>sangue. Dei essas promessas ao confessor, e parte não me foi devolvida, assim</p><p>como muitos escritos que tinha. Assim, não me recordo bem de</p><p>tudo: somente</p><p>descrevo o pouco que posso, em sinal de obediência.</p><p>Recordo que, algumas vezes, em algum recolhimento ou visões, o Senhor fazia-me</p><p>entender que queria tomar posse do meu coração. Recebendo eu essa nova, não</p><p>queria outra coisa que sofrer. Estava constantemente pensando na paixão do</p><p>Senhor. Uma vez pareceu-me que o Senhor colocava no meu coração alguns</p><p>instrumentos da sua paixão. Após o que eu sentia muita dor no coração e mais</p><p>sofrimento e dores pedia (Il mio calvario, p. 109).</p><p>Em outra situação, relata sua confirmação como “parceira da cruz”:</p><p>Recordo-me que, estando às vezes com aquela tristeza, repentinamente uma grande</p><p>cruz me era revelada. Dava-me terror, fazia-me tremer. Uma vez, com esta aparição</p><p>tive mais medo que das outras vezes, mas me deu coragem. Quis ir ao seu encontro</p><p>e abraçá-la, mas não podia. Veio em minha mente um pensamento de me declarar e</p><p>escrever ao Senhor uma carta com letras de sangue. Assim, peguei um canivete e fiz</p><p>uma cruz sobre a carne do lado do coração e com o mesmo sangre escrevi assim:</p><p>“Meu querido Jesus, venho com letras de sangue confortar-me pelo vosso santo</p><p>querer e para declarar-me e confirmar-me como vossa esposa, parceira da cruz. Se</p><p>bem que estremeço com o seu aparecimento, ele me faz também reafirmar a</p><p>estabelecer o quanto quereis de mim, e assim resolvi escrever-vos com meu próprio</p><p>sangue, para implorar-vos em graça por meu guia, meu apoio, dai-me a cruz. Meu</p><p>supremo Bem, bondade infinita, não olheis mais as minhas ingratidões: esquecei</p><p>todas. Agora para sempre me declaro vossa esposa; e a fim de que purifiqueis e se</p><p>faça a vossa vontade, agora com letras de sangue, escrevo-vos do mais íntimo do</p><p>coração. Digo que quero ser toda vossa companheira da cruz. Eu, pelo vosso amor,</p><p>o quero. Não deixeis nunca que no futuro eu me afaste disso”. Dizendo isso, ela se</p><p>revelou na minha frente como uma visão real. Assim voltada a ela disse:</p><p>“Oh! Cruz Santa, fazei-me sentir o vosso peso, a fim de que eu possa me amoldar</p><p>com meu Deus Crucificado. Oh! boa Cruz vinde a mim: chamo-vos com o coração</p><p>de Jesus e de Maria, vinde a mim. Estou contente de abraçar-vos, se assim agrada ao</p><p>Senhor”. Assim, voltada a ela: “Meu diviníssimo Esposo, fazei de mim o que</p><p>quiseres: não quero outro desejo que o Vosso. Abaixo assino com meu próprio</p><p>sangue, escrava do amor; para unir-me e juntar-me a ela, outra ligação não quero</p><p>que o mesmo amor e por meio dele pego a cruz. Aqui me confirmo: Cristo confiai-</p><p>me vossa Cruz. Ó Cruz desejável, vinde a mim. Eu de coração vos aceito para</p><p>cumprir o desejo e o querer do meu Deus e declaro que vós sois a intermediária</p><p>para fazer-me reencontrar o meu supremo Bem, o esposo da minha alma. Meu</p><p>único tesouro”.</p><p>Assim comecei a dizer: “Meu Jesus, quando quereis retornar a este coração?</p><p>Intrincar-vos com ele, unir-vos de todo com esta minha alma? Vinde agora, não</p><p>demoreis mais; com palavras de sangue vos chamo; não encontro repouso sem vós,</p><p>não estarei tranquila até que vos encontre. Não demoreis mais, vinde, vinde. Eu me</p><p>confirmo com o nome de Vossa esposa, e com meu próprio sangue assino esposa</p><p>de Jesus, e vos prometo fidelidade. Não tenho poder para fazer nada, mas com</p><p>vossa graça farei tudo. Sim, meu caro Esposo me declarais e entendeis que digo isso</p><p>com Vossa voz, com Vosso amor. Suplico-vos, não com letras do meu sangue, mas</p><p>com Vosso sangue precioso que tendes disseminado em mim. Seja ele a voz para</p><p>me aproximar de Vós, meu Senhor, isto é, em tudo e por tudo, amoldar-me ao</p><p>Vosso Santo querer; e por Vossos méritos santíssimos, peço a Vossa benção e me</p><p>subscrevo: Filha do Crucifixo” (Il mio calvario, p. 139-140).</p><p>Sobre esta carta, comenta Santa Veronica:</p><p>Enquanto escrevia esta carta, recordo-me de não estar com os meus sentidos. Disse</p><p>muita coisa e foi uma carta bem longa, toda escrita com meu próprio sangue: Agora</p><p>não me recordo bem de tudo: disse tudo que tinha em mente e me recordo que esta</p><p>carta me fez bem. Dei-a ao confessor por obediência a ele. Não a recuperei mais.</p><p>Disse-me que a havia queimado como fazia com tudo que lhe dava por escrito. Fiz</p><p>tudo por obediência, no íntimo eu lamentava.</p><p>Cartas escritas com o meu próprio sangue, da maneira como falei acima, não as fiz</p><p>mais, e como não me lembro bem de todas, somente quis escrever mais uma. Mas</p><p>não me vem nem a metade, porque não tenho na memória aquilo que disse. Às</p><p>vezes escrevi também os protestos com meu próprio sangue. Assim também, outras</p><p>vezes, quando se abria a ferida, depois que voltava a mim, continuava sangrando e</p><p>com esse sangue escrevia ao Senhor e lhe pedia a conversão dos pecadores. […] Na</p><p>união daquele precioso sangue, unindo a dor da ferida e o sangue que brota, de</p><p>coração pedi a Cristo o perdão pelo meu golpe e a graça de que todos os pecadores</p><p>se convertessem (Il mio calvario. p. 141-142).</p><p>Ainda sobre a união pelo sangue, escreve em seu II Diário:</p><p>Vamos, meu Deus, percebeste que ninguém se move. Que devo fazer? Estou pronta</p><p>para tudo! Quero amar-vos por mim, por todos… Eu quero ser toda Vossa. Vamos!</p><p>Tirai de mim todas as coisas! O meu estudo (projeto) será de viver crucificada</p><p>convosco. O meu alimento, as lágrimas e os lamentos dos pecados cometidos…</p><p>Estou aqui aos vossos pés… Lavai esta alma com Vosso precioso sangue!</p><p>Conservai-me unida com vossas Santas Chagas! No vosso Coração descanso (IV –</p><p>34, 35, p. 47).</p><p>A Síndrome de Lasthénie de Ferjol</p><p>Em 1967, o hematólogo Jean Bernard e colaboradores chamaram de Síndrome de</p><p>Lasthénie de Ferjol as anemias resultantes de hemorragias autoprovocadas. O nome</p><p>foi tomado emprestado do romance de J. Barbey d’Aurevilly – Uma história sem nome,</p><p>publicado em 1882 –, que conta a trágica experiência de Lasthénie de Ferjol</p><p>(CORCOS, 2005; BIDAUD, 2010).</p><p>Estudos posteriores ao de Jean Bernard mostraram que a síndrome ocorre quase</p><p>que exclusivamente entre mulheres que exercem profissões médicas ou</p><p>paramédicas, enfermeiras, religiosas e outras profissões que exigem “devoção e</p><p>abnegação”. É significativa sua presença em pacientes que sofrem de anorexia ou</p><p>bulimia e que apresentam uma “megalomania masoquista” colorida de heroísmo:</p><p>continuam suas atividades profissionais ou escolares ainda que em um estado de</p><p>desnutrição ou anemia avançadas (CORCOS, 2005, p. 147).</p><p>A relação singular entre a baronesa de Ferjol e sua filha Lasthénie é o tema</p><p>central dessa novela. Tendo enviuvado prematuramente, Mme. de Ferjol retira-se</p><p>com sua filha Lasthénie para um lugar isolado, compartilhando com ela todos os</p><p>momentos de uma vida solitária. Certo dia, Mme. de Ferjol, muito católica, dá</p><p>abrigo a um jovem capuchinho que pedia hospedagem. Esse monge desconhecido,</p><p>à noite, violenta Lasthénie, que sofria de sonambulismo. Grávida e sem saber quem</p><p>a violentou, a jovem passa a ser atormentada pela mãe, que exige dela a confissão</p><p>do nome do pai da criança. A mãe ameaça arrancar-lhe “esse nome maldito”,</p><p>mesmo que fosse necessário “ir buscá-lo no fundo de suas entranhas com o seu</p><p>filho”. E a mãe cumpre sua ameaça, arrancando a criança do ventre de sua filha.</p><p>Lasthénie morre dias depois, “com detalhes”, enterrando dezoito alfinetes – o</p><p>número de sua idade e um a cada dia –, na região do coração (apud BIDAUD, 2010,</p><p>p. 31).</p><p>Relacionando o drama de Lasthénie com o que ele chama de “clínica dos</p><p>sangramentos provocados”, Éric Bidaud (2010, p. 30) afirma:</p><p>Essa fantasmática do sangue, em uma configuração da clínica do feminino, nos leva</p><p>às pacientes que, com frequência, são anoréxicas e respondem à chamada síndrome</p><p>de Lasthénie de Ferjol, devido à qual o sangue, metodicamente autopuncionado por</p><p>elas, em um ritual secreto e de uma terrível intimidade, assinala uma grave falha no</p><p>tocante à identidade de onde provém o drama de um rosto que passa a ser</p><p>detestado, de um corpo vivido como um cadáver, ou seja, um corpo-objeto do qual</p><p>o sujeito faz sua “coisa”, um sacrifício particular.</p><p>Aprofundando-se na compreensão dessa síndrome, Bidaud (2000, p. 31) nos diz:</p><p>Essas hemorragias autoprovocadas são difíceis de evidenciar em razão de sua</p><p>variedade e do poder de dissimulação das pacientes. Embora a anemia seja</p><p>importante, é muito bem tolerada, sendo o objeto de uma busca desenvolvida</p><p>durante muito tempo em seu limite vital. Os sangramentos podem ser externos (na</p><p>dobra interna do cotovelo ou na virilha) ou internos (nariz, garganta, bexiga), e o</p><p>sangue pode ser até reinjetado, em um circuito em que todos os limites entre o</p><p>interno e o externo, o conteúdo e o continente, ficam “enlouquecidos”. Os</p><p>hematólogos veem chegar aos hospitais essas pacientes em uma “oferenda” de sua</p><p>anemia extrema, cuidam delas por meio de transfusões até o dia em que percebem</p><p>que se trata apenas de uma farsa. E ainda é necessário que eles levantem a suspeita,</p><p>pois a paciente só revelará o segredo de sua prática em último caso.</p><p>Longe de entender as automutilações que vemos na clínica como quadros</p><p>idênticos à síndrome de Ferjol, concordamos com Bidaud quando ele diz que, “no</p><p>quadro clínico dos chamados sangramentos provocados, a síndrome de Lasthénie</p><p>de Ferjol deve ser considerada como um paradigma limite”. São suas palavras:</p><p>O segredo sempre presente nesse exercício sintomático, embora nunca</p><p>absolutamente inviolável, poderá conter formas de alívio, de escamoteação, estando</p><p>associado a um desejo em gestação de ser olhado, de ser acolhido. Dito de outra</p><p>forma, é o lugar do sujeito do sintoma em sua relação com o Outro que deve</p><p>orientar nossa atenção. Nossa hipótese é que as marcas no corpo, que deixam</p><p>traços, funcionam como um inciso à escamoteação do Outro como uma carta na</p><p>carne, com a presença encarnada (no sentido mais próximo da etimologia do</p><p>termo) do Outro materno (op. cit., p. 34, grifo nosso).</p><p>Bidaud introduz uma questão importante ao se perguntar se esse agir (do se</p><p>cortar) pode ser compreendido como a criação de algo, de um espaço em que o</p><p>sujeito se lança na tentativa de fazer alguma coisa com sua pele a fim de sair de uma</p><p>associação com o Outro. Seria, enfim, uma saída, um rompimento com a associação</p><p>com o Outro e, ao mesmo tempo, uma forma de inscrever uma ligação, por mais</p><p>rudimentar que seja, com esse Outro. É nesse sentido, diz ele, “que o sujeito</p><p>adquire certa garantia de existência no agir” (p. 35).</p><p>Maurice Corcos (2005), que também se debruçou sobre essa questão, considera</p><p>que para além da expiação mortificante à qual se submete o sujeito automutilador</p><p>está o objeto materno, que é visado e atingido pelo fato da “escolha” privilegiada do</p><p>ataque corporal. Este investimento procurado e provocado seria a permanência do</p><p>investimento na perda do objeto ideal. Numa posição sacrificante, ele mantém o</p><p>objeto ideal no domínio, não lidando com a perda. O investimento no sofrimento</p><p>marcaria o fim da luta entre sujeito e objeto. O sofrimento vira o último</p><p>representante dessa mãe frustrante e a voluptuosidade da dor ocupa o lugar da falta.</p><p>O sujeito é dolorosamente submetido ao outro; não elabora o luto originário, “não</p><p>sabe do que e por que sofre” (p. 143).</p><p>Concebendo a automutilação como uma “melancolia abortada” – um espetáculo</p><p>que anuncia e ao mesmo tempo barra o suicídio –, Corcos pensa que ela se</p><p>transforma aqui numa “demonstração” endereçada ao objeto primário, uma</p><p>proteção contra o suicídio melancólico, daquele que se mata para matar esse objeto.</p><p>Philippe Jeammet, em trabalho conjunto com Corcos (2005), toma as</p><p>automutilações na adolescência como uma manifestação do masoquismo, “um</p><p>recurso sempre possível”. Sobre essa agressividade voltada contra si mesmo, dizem</p><p>os autores:</p><p>A solução masoquista se impõe ao Ego como um compromisso sempre possível, “à</p><p>mão”, poder-se-ia dizer, quando o Ego é ameaçado de transbordamento. Há uma</p><p>dimensão de resposta traumática, quando se põe em ação uma conduta masoquista,</p><p>nos dois extremos possíveis: os traumatismos cumulativos de experiências</p><p>dolorosas da infância ou o traumatismo pubertário da confrontação brutal de um</p><p>Ego vulnerável a uma decepção insuportável, ou na emergência de desejos</p><p>experimentados como incontroláveis. Graças ao recurso a mecanismos de defesa</p><p>tão arcaicos quanto o retorno sobre si e a transformação em seu contrário, a</p><p>conduta masoquista oferece sempre ao sujeito a possibilidade ou a ilusão de se</p><p>liberar do domínio do objeto e de retomar uma posição ativa de controle,</p><p>exatamente onde ele se sentia ameaçado de transbordamento e de rendição passiva</p><p>ao objeto (p. 83).</p><p>Para os autores, é a ameaça sobre a identidade que parece ser o motor desse</p><p>masoquismo. E acrescentam:</p><p>Além de seu retorno sobre o próprio sujeito, a violência atuada representa a última</p><p>defesa do Ego para restaurar sua identidade ameaçada. Se o resultado é sempre</p><p>aleatório e depende dos outros, o dano e o sofrimento autoinfligidos são garantidos</p><p>e podem sempre escapar do poder do outro. Eles permitem, além disso, lidar com</p><p>esse outro, tornando-o impotente, e mesmo dependente da boa vontade daquele</p><p>que se faz mal. Encontra-se como sempre esse movimento de transformação da</p><p>decepção sofrida em seu contrário, o poder de decepcionar e do retorno contra si</p><p>da violência dirigida ao outro (p. 84).</p><p>Em linhas gerais, os autores citados parecem estar de acordo quanto à questão</p><p>da identidade nas automutilações. Essa posição vem ao encontro da clínica, em que</p><p>observamos meninas lutando ardentemente para adquirir um lugar de autonomia.</p><p>Mas que, impotentes para sustentar a separação de um objeto materno intrusivo e</p><p>dominador, fazem esse corte concretamente em sua própria carne.</p><p>Mutiladas, escarificadas, esfoladas vivas, essas pacientes oferecem ao nosso olhar</p><p>o seu sofrimento encarnado. Usando as palavras de Micheline Enriquez (1999, p.</p><p>150), são pacientes que “transformaram um corpo em sofrimento em um corpo de</p><p>sofrimento”.</p><p>Também Santa Veronica Giuliani, com seus cortes e ferimentos, exibe um corpo</p><p>que sofre, exigido até às últimas consequências. Em um primeiro momento,</p><p>podemos pensar que, diferente do que acontece com as pacientes, os sangramentos</p><p>de Santa Veronica têm um endereçamento: seu sangue é de e para Cristo. Nas jovens</p><p>adolescentes, diz Bidaud (2010, p. 34), essas cartas de sofrimento “são a marca</p><p>cicatrizada de uma escrita sem destinatário, um apelo pobre e desesperado de um</p><p>gesto de nomeação que não leva a nenhum lugar”.</p><p>Mas seriam mesmo as cartas das jovens pacientes sem destinatário? Ou, como as</p><p>cartas para Cristo, são um pedido de amor? Não teria destinatário a “flor de peles”</p><p>que a paciente entrega, através da foto, à sua analista? Não estariam todas, santa e</p><p>pacientes, vivendo o mesmo calvário da luta com o objeto ideal, amado e odiado,</p><p>temido e procurado?</p><p>O sangue menstrual</p><p>A paciente tomada como exemplo de automutilação na clínica – que afirma</p><p>odiar seu sangue menstrual – não é a única com sintomas de anorexia a fazer tal</p><p>afirmação. Outras garotas dizem o mesmo e algumas tomam medicamentos para</p><p>deixar de menstruar. E parecem se alegrar com a amenorreia, uma das</p><p>consequências clínicas da anorexia.</p><p>Como podemos entender o significado dessas falas, pensando além da questão</p><p>do controle sobre seu corpo?</p><p>Sobre esse sangue menstrual, Bidaud (op. cit, p. 28) afirma que:</p><p>O sangue das regras apresenta à jovem uma nova temporalidade: o tempo do ciclo e</p><p>da fecundação, da espera ou da ausência do fluxo sanguíneo como índice da</p><p>contenção do corpo</p><p>com relação a esse bebê que tomará todo seu valor imaginário</p><p>e simbólico de objeto da disposição de encontro com o outro. É pela “perda</p><p>regrada” desse conteúdo, o sangue, que normalmente não deve sair do corpo, esse</p><p>objeto em que se concentra o mistério da vida e da morte, que a jovem ascende à</p><p>sua condição de mulher.</p><p>Contestando essa condição e manipulando seu sangue, conclui o autor, a jovem</p><p>faz dele a sua “coisa”, o objeto de seu prazer. E “se a morte é o limite mais</p><p>frequentemente ‘impensado’ do sujeito, este pode se tornar, precisamente, o objeto</p><p>de seu desafio”, como bem exemplificam as garotas que tiram seu sangue com uma</p><p>seringa ou as que se cortam “no limite” para não sangrar até à morte.</p><p>Segundo Corcos, uma das etimologias hebraicas para regras é “separação”. A</p><p>palavra remete não apenas à separação do esposo imposta pela religião – porque a</p><p>mulher é “suja e sagrada” durante esse período –, mas, mais originalmente, à</p><p>separação com o objeto primário, a mãe, no momento de ascensão a um corpo</p><p>sexualmente adulto. E à separação pelo sujeito de um corpo próprio da infância. A</p><p>partir disso, Corcos pensa que manter a amenorreia é permanecer criança e recusar</p><p>a separação e a rivalidade com a mãe no terreno da maternidade, alimentando o</p><p>fantasma de gravidez, pois a amenorreia é ao mesmo tempo o sinal da esterilidade e</p><p>da gravidez. O fantasma corrente de ser estéril, na anorexia, teria por função</p><p>proteger de um risco de gravidez permanente, de natureza psíquica incestuosa. E</p><p>quando se torna possível para uma anoréxica esperar uma gravidez, conclui Corcos</p><p>(2005, p. 167), “isto não pode ocorrer senão em relação à história maternal (ser mãe</p><p>na mesma idade que sua mãe, tornar-se mãe e provocar assim a menopausa de sua</p><p>própria mãe, como se não houvesse lugar para duas mulheres em idade de</p><p>procriar)”.</p><p>Christopher Bollas (1998, p. 109) ilustra bem essa questão do sangramento</p><p>autoprovocado e do sangue menstrual com as palavras de uma paciente de um</p><p>hospital psiquiátrico aberto:</p><p>O que comemoro quando me corto? Adoro o passar do tempo, o intervalo entre a</p><p>incisão e o brotar do sangue. Espero. Terei cortado suficientemente fundo para</p><p>brotar o sangue? Ou é o corte de uma virgem, sem menarca? Devo esperar. Estou</p><p>acostumada a estas esperas. O corte no meu corpo não sangrou até que eu fiz 12</p><p>anos; então eu sei tudo sobre como esperar pelo sangrar de um corte.</p><p>Ele flui, derramando-se sobre a minha pele. Puro. Nenhum óvulo. Nenhum bebê</p><p>morto aqui. Mancha alguma que cheire e possa causar problema com a minha</p><p>relação com o outro corte: este sangue é puro.</p><p>Nenhuma relação com “seu outro corte”, com sua sexualidade, com um corpo</p><p>que dê prazer. É o que a clínica nos confirma. Jovens amenorreicas, com corpos de</p><p>menina e presas às suas mães, lutam pela sua sobrevivência psíquica fechando a</p><p>boca para a comida e cortando seu corpo. Levando uma vida ascética, nos lembram</p><p>Veronica Giuliani que, ainda menina, escolheu o caminho do monastério e, se</p><p>aceitou o casamento, foi na condição de sofrimento e de esposa de Cristo.</p><p>1. Este texto é a publicação do capítulo de mesmo nome, com pequenas modificações, da tese de doutorado</p><p>intitulada Sob o olhar da Santa Madre: articulações entre a vida de Santa Veronica Giuliani e a clínica da anorexia,</p><p>defendida em 2015, na PUC de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Manoel T. Berlinck.</p><p>Referências</p><p>BIDAUD, E. Reflexões sobre a clínica dos sangramentos provocados. In:</p><p>GONZAGA, A. P.; WEINBERG, C. (orgs.) Psicanálise de transtornos alimentares. São</p><p>Paulo: Primavera, 2010.</p><p>BOLLAS, C. Flagelação. In: Sendo um personagem. Rio de Janeiro: Revinter, 1998.</p><p>CORCOS, M. Le corps insoumis. Psychopathologie des troubles des conduits alimentaires. Paris:</p><p>Dunod, 2005.</p><p>ENRIQUEZ, M. Do corpo em sofrimento ao corpo de sofrimento. In: Nas</p><p>encruzilhadas do ódio: paranoia, masoquismo, apatia. São Paulo: Escuta, 1991.</p><p>JEAMMET, P. & CORCOS, M. Novas problemáticas da adolescência: evolução e manejo da</p><p>dependência. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.</p><p>Veronica Giuliani Diario. In: Um tesoro nascosto; ossia Diario di S. Veronica Giuliani,</p><p>scritto da lei medesima. Publicato e corredato di note dal Pizzicaria, P., v. II (1693 –</p><p>1694 – 1695). Città di Castello: Prato, 1897.</p><p>Veronica Giuliani Il mio calvario. Diario. Città di Castello: Monastero delle</p><p>Cappuccine, 1976.</p><p>CINDERELAS CONTEMPORÂNEAS</p><p>“Fada madrinha, eu quero entrar no tamanho 36!”</p><p>Fabiana Maria Gama Pereira</p><p>Elisa Gan</p><p>Introdução</p><p>Aquilo que permeia a corporalidade é algo que desde cedo fascinou o homem</p><p>em diferentes épocas e culturas. Atualmente, no entanto, a forma de olhar sobre o</p><p>que envolve a imagem humana se modificou bastante. Este texto, escrito a quatro</p><p>mãos, foi elaborado a partir da experiência de duas profissionais interessadas em</p><p>refletir sobre o corpo e os transtornos alimentares. Por intermédio de suas</p><p>experiências, tanto no campo da antropologia quanto da psicanálise, foi possível</p><p>elaborar o tema de uma forma ampliada, o que nos pareceu bastante enriquecedor.</p><p>Os corpos dessas garotas que chegam aos nossos consultórios nos remetem o</p><p>todo tempo à própria finitude humana, e nos fazem pensar no inconsciente</p><p>enquanto instância enigmática, sobretudo em casos tão complexos como são os</p><p>transtornos alimentares. Mas além do psiquismo, não se pode descartar o papel da</p><p>própria cultura sob o adoecer dessas jovens. Os padrões corporais mostrados na</p><p>mídia estão presentes nos discursos dessas meninas que falam de personagens</p><p>magros, tidos como os “tipos ideais”, aos quais se identificam maciçamente. Ser</p><p>magra passa a ser o objetivo, e para consegui-lo vale qualquer sacrifício.</p><p>Neste texto, trataremos do corpo num sentido interdisciplinar, indo do</p><p>psicanalítico ao antropológico, numa tentativa de estabelecer uma reflexão sobre os</p><p>padrões estéticos da sociedade atual e a relação com a clínica dos transtornos</p><p>alimentares, notadamente da anorexia.</p><p>Fran, “Cinderela punk”</p><p>Punk?</p><p>De aparência assustada e, ao mesmo tempo, provocadora, na cara, ou melhor, no</p><p>septo nasal um piercing cravado lhe dava um aspecto de “não estou pra brincadeira!”;</p><p>nas orelhas, vários outros adornos, ao ponto que quase não lhe sobrava cavidade, o</p><p>cabelo muito preto, espetado, roupas igualmente negras, mas de menina, não de</p><p>mulher. Na época, Fran tinha 28 anos.</p><p>Nesse mesmo corpo, várias tatuagens se esparramavam, as visíveis eram coisas</p><p>triviais, estrelinhas e corações. Algum tempo depois verbalizou ter criado coragem</p><p>para mostrar aquela que seria a mais difícil; ficava nas costas, era um dragão negro,</p><p>que tatuou para cobrir uma fada. A tal fadinha foi feita por volta dos 19 anos, e,</p><p>agora, com quase 30, não pegava bem desfilar com uma fada de asinhas, surgindo</p><p>então o impasse de como apagar aquilo, aquela marca inocente, definitivamente.</p><p>Fran criou coragem e foi a um estúdio de tatuagem para exterminar a fada. Depois</p><p>de examinar, o tatuador disse que só um dragão poderia cobrir e ela concordou,</p><p>mas ao final do trabalho, achou que havia ficado muito grande, não gostou do</p><p>resultado, embora tenha se conformado.</p><p>Essa tatuagem, de certa forma, fala muito sobre Fran, uma menina frágil,</p><p>disfarçada em algo que assusta e afugenta quem quer se aproximar. Esse</p><p>movimento de ferocidade e voracidade de Fran, atacando a si mesma, já que não</p><p>consegue conviver com sua enorme fragilidade, apontaria para a fragilidade do Ego</p><p>frente a um desejo devorador, que ela tenta a todo custo manter enjaulado.</p><p>Queixa</p><p>Casada há dez anos com o primeiro e único namorado, que conheceu muito</p><p>jovem, Fran fala de “falta de desejo”. Não sente vontade de ter relações</p><p>sexuais,</p><p>mas “faz” para satisfazer a necessidade do marido. Outra queixa é a obsessão por</p><p>dietas, passa o dia todo pensando nas calorias dos alimentos ingeridos e nos</p><p>exercícios físicos compensatórios que são realizados e de forma exagerada.</p><p>Fran come basicamente iogurte, proteína de soja, salada (sem tempero) e pão</p><p>integral. Ela se impõe uma vida quase monástica, ascética, de vez em quando vai a</p><p>algum restaurante japonês, mas compensa tudo na academia. Nas ocasiões em que</p><p>toma duas latinhas de cerveja, são quase 10 quilômetros a mais de corrida.</p><p>Conforme verbaliza nas sessões, sente-se muito mais feliz quanto resiste à tentação</p><p>de comer o que deseja, do que quando sai e come, o que ela nunca faz, pois se</p><p>satisfaz na recusa e na autopunição. Ou seja, resistir é sempre melhor que desejar.</p><p>A esse respeito, Silva e Bastos (2006, p. 100) afirmam que “[…] a anorexia seria,</p><p>então, uma manobra de separação do sujeito em relação ao Outro. Aí onde o Outro</p><p>parece sufocar toda falta, a recusa surge como desejo […]”. Essa citação indica que</p><p>esse sintoma é consequência da relação entre o sujeito e o Outro, visto que, de</p><p>alguma maneira, o sujeito busca essa operação de separação em detrimento da</p><p>alienação, a favor do surgimento de seu desejo. A recusa, nesse caso, confirma que</p><p>não se trata de um não comer ou de inapetência da ordem da necessidade, mas sim</p><p>desse “nada” propulsor ao desejo. Nesse sentido, é interessante quando Recalcati</p><p>(2001, p. 28) enuncia a seguinte frase: “É o nada como escudo e como suporte do</p><p>desejo”. É o nada que protege o sujeito do Outro sufocante e que, ao tentar</p><p>preencher a falta, pode fazer eclodir o desejo.</p><p>Cinderela</p><p>Fran diz que sempre esteve atrás da genitora, apesar dela – a mãe – não ligar</p><p>muito para a filha. Durante a adolescência, relata que lhe faltavam roupas para as</p><p>festas de 15 anos das amigas. A mãe não se preocupava em comprar vestidos para</p><p>os bailes de debutantes, típicos dessa época: “…eu não tenho vestido para aquela</p><p>festa toda, não quero gastar um dinheirão com aquela bobagem, minha mãe poderia</p><p>ter me comprado um vestido, mas também pensou que não valeria a pena o</p><p>investimento, será que ela me achava feia? Onde já se viu me chamar de</p><p>investimento? Mas enfim tive que ir naquela breguice” (sic).1</p><p>A mãe conseguiu um vestido emprestado, que ela já havia usado em outra</p><p>ocasião: “O vestido chegou, lindo, azul, todo bordado, eu ia parecer uma princesa,</p><p>mas tudo bem, vamos para o sacrifício. Quando experimentei disse, ‘nesse vestido</p><p>cabemos as duas’, e os sapatos então, dois números maiores. Ela deve achar que sou</p><p>do tamanho dela” (sic).2 A genitora parece ter tido só os cuidados básicos com</p><p>Fran, o afeto ficou bastante comprometido e isso aparece em suas relações, através</p><p>do medo e do desejo de ser cuidada.</p><p>Fazendo uma analogia do caso aqui apresentado com o filme Cinderela</p><p>(BRANAGH, 2015), o que chama a atenção dos espectadores não é o belo vestido</p><p>de baile feito pela fada madrinha, mas a minúscula cintura da protagonista.</p><p>Essa ideia nos convida a pensar em outra, já que a identidade do sujeito é</p><p>revelada pelo corpo que se tem, e hoje existe a possibilidade de inúmeras</p><p>intervenções. Se a cada momento se tem um novo corpo, a identidade também se</p><p>refaz a cada dia. Assim, o sujeito é direcionado a buscar o corpo da moda, e dessa</p><p>forma, a identidade corporal é refém do imprevisível. De acordo com o que está na</p><p>moda, se intervém no corpo. É um “corpo novo” a cada dia…</p><p>Hoje, além da moda das roupas, há também a moda do corpo. O corpo entrou e</p><p>está em moda. Goldenberg (2007) propõe que é possível pensar que além de o</p><p>corpo ser mais importante que a roupa, atualmente ele pode ser considerado a</p><p>própria roupa. O corpo pode ser exibido, moldado, manipulado, trabalhado,</p><p>costurado, enfeitado, encolhido, construído, produzido, imitado. É ele que entra e</p><p>sai de moda. Dentre essas tantas possibilidades, resta a cada um idealizar e escolher</p><p>o padrão corporal que quer. Em se tratando de moda, é o objeto corpo e não mais</p><p>o objeto roupa que todos tentam alcançar e vestir.</p><p>Kehl (2004), a partir de uma composição musical de Noel Rosa, denominada</p><p>“Com que roupa eu vou?”, provoca os questionamentos: “Com que corpo eu</p><p>vou?”, “Que corpo você está usando ultimamente?”. Diante das inúmeras</p><p>possibilidades que se tem, não se decide apenas qual roupa usar, mas também qual</p><p>corpo usar, afinal, ele também entra e sai de moda! Por si só, o corpo já transmite</p><p>mensagem para o outro. Atualmente, o sujeito se direciona a partir do corpo que</p><p>tem, do corpo que se “in-veste”.</p><p>Início</p><p>Aos 17 anos, Fran resolve ir para São Paulo estudar, mas não consegue ficar</p><p>nessa cidade, abandona a faculdade no segundo ano e volta para a casa dos pais.3 É</p><p>nessa época que começa a fazer dietas, quando, segundo ela, estava oito kilos acima</p><p>de seu peso. Aos poucos, passa a colecionar tabelas de calorias. Sua rotina diária era</p><p>bastante dura: estudava, trabalhava e fazia sanduíches para vender; conseguiu perder</p><p>os oito kilos desejados, mas isso nunca mais foi o suficiente.</p><p>Um tempo depois, quis voltar a fazer outro curso, passando a viver com o</p><p>namorado, com quem casou meses depois.</p><p>Apesar de tantas conquistas, não se sentia feliz. A faculdade só lhe dava</p><p>problemas, não gostava do que estudava.</p><p>Durante o curso, também conseguiu um estágio muito almejado por todos numa</p><p>multinacional. Aí, começou a ter vontade de morrer, chegava perto da janela e</p><p>pensava: se eu pular acaba tudo… (sic). Saiu do estágio após nove meses.</p><p>Como se sabe, tornar-se adulta é tarefa difícil, entrar no mercado profissional</p><p>marca uma nova etapa na vida das pessoas. São nessas fases, marcadas por</p><p>transições, que Fran parece não conseguir transitar muito bem. A anorexia pode ser</p><p>uma forma de mantê-la sempre criança, sem corpo e sem atitude de uma mulher</p><p>adulta.</p><p>Tratamento</p><p>Antes de começar o tratamento, Fran já havia ido a um psiquiatra e tomava</p><p>antidepressivo.4 Tomou esse medicamento durante dois anos, quando começou seu</p><p>tratamento psicanalítico.5 Quando parou com a medicação psiquiátrica, alguns</p><p>meses depois, pela primeira vez, chorou.6</p><p>Fran não se permitia ser frágil, essa foi uma das poucas sessões em que ela</p><p>manifestou o desejo de se mostrar. Como tantas outras pacientes, achou que o</p><p>remédio resolveria seu sofrimento mais rapidamente. Fran iniciou um processo de</p><p>mudanças em sua vida, tanto exteriores quanto interiores. Retirou o piercing do septo</p><p>nasal, o que lhe conferia uma imagem menos agressiva. As tatuagens e piercings</p><p>neste caso, teriam a função de anteparo entre Fran e o mundo externo, à medida</p><p>que ela consegue contar e montar sua própria história, esses acessórios vão</p><p>perdendo o sentido inicial. Também resolveu prestar um novo vestibular para</p><p>nutrição, área com que parecia mais identificada. Passou no vestibular e começou</p><p>seu novo curso.</p><p>Dedicava-se bastante aos estudos, mas continuava avessa às pessoas, parecia ter</p><p>uma fobia social, sentia-se bem apenas com seu marido, aqui denominado de</p><p>“Nan”. O rapaz, certa vez, procurou a psicanalista de Fran, marcou um horário.</p><p>Bonito, simpático, extrovertido, relata que a esposa não era assim, e que as coisas</p><p>pioraram com a separação dos pais dela.</p><p>Fran foi emagrecendo lentamente e não tinha a percepção do quanto estava</p><p>magra: “só porque os outros dizem que estou esquelética, que posso acreditar que</p><p>realmente estou” (sic).</p><p>Ou seja, a imagem que ela tinha de si mesma não condizia com a do seu corpo</p><p>extremamente emagrecido. Ela se olha no espelho e a imagem que aparece é</p><p>distorcida. É diante do que os outros lhe falam</p><p>moradia provisória, de propriedade de</p><p>um avô, sobre quem logo comentou tratar-se de um alcoolista que transtornou a</p><p>vida de toda a família, inclusive de sua mãe. Conta, ainda, que sua mãe enfrentara</p><p>esse homem e ajudara a avó a separar-se dele. Um forte componente familiar de</p><p>excesso no uso do álcool marca as sucessivas gerações.</p><p>Em seu discurso, aparecia um temor de que tudo desse errado, que fosse</p><p>acontecer algo terrível, ideias que se tornavam insistentes e lhe perturbavam o sono.</p><p>Inesperadamente, entremeava sua fala com comentários, fantasias sobre situações</p><p>de muita carência e desamparo, o que contaminava seus sentimentos com relação ao</p><p>futuro e a tudo que parecia ser tão certo em sua vida. Começava a romper a</p><p>dissociação e os conteúdos afastados ameaçavam transbordar. Não vivia as</p><p>situações contendo dois lados, o bem e o mal, coisas boas e ruins ou das que</p><p>gostasse e das que não gostasse. Havia para ela apenas o bom e o “podre” que</p><p>poderia estragar tudo o mais.</p><p>Aos poucos Maria vai se queixando de falta de afeto. Havia, na família de Maria,</p><p>uma dinâmica muito própria, segundo ela, cada um dos familiares tinha o próprio</p><p>quadro psicopatológico, o que permitia vislumbrar o percurso de terapias anteriores</p><p>e o uso, muitas vezes estereotipado, que ela fazia delas. Relata a experiência de</p><p>terapia familiar que fora realizada por causa do irmão que tem sérios</p><p>comprometimentos psíquicos. E, assim, gradativamente, vai narrando e construindo</p><p>para si outra versão dessa história familiar, a qual, até então, só vinha à tona em</p><p>flashes bem-humorados, como se não fosse algo a ser levado a sério.</p><p>Pai e mãe alcoolistas, ele muito impulsivo e agressivo: quando brigava, deixava</p><p>todos tremendo de medo. Muito calado, um silêncio regado a boas doses diárias de</p><p>uísque, até que explodia. A mãe fazia um contraponto na forma de um alcoolismo</p><p>“festivo”, em um movimento maníaco no qual “tudo é festa, senão, tudo vira</p><p>drama”. Frente aos problemas, oscilava entre ignorá-los ou dramatizar demais.</p><p>Maria diz que a incomodava muito nunca saber o que esperar da reação deles</p><p>quando lhes contava os fatos de sua vida, e que passou a ter mais cuidado com isso</p><p>para se preservar.</p><p>Não é incomum nos depararmos com essa modalidade de relação na qual, diante</p><p>de problemas e conflitos, se estabelece uma defesa cerrada contra a percepção</p><p>indesejada. É um mecanismo de funcionamento originado quando o</p><p>comportamento do adulto incita a criança à dissociação psíquica, ao negar a</p><p>percepção da realidade. O irmão, na adolescência, teria trazido muitas preocupações</p><p>aos pais com seu comportamento, segundo ela, provocando um grande tumulto na</p><p>família – novamente aparece a ideia de um membro da família que estraga tudo.</p><p>Maria nada mais desejou do que silenciar seus problemas e emoções, de modo que</p><p>viveu a adolescência sem seus pais acompanharem minimamente esse período e</p><p>suas dificuldades, tal como a experiência bulímica que, por muito tempo, passou</p><p>despercebida deles. Precisava sentir-se o membro saudável do grupo, queria agradar</p><p>ou, ao menos, não decepcionar os pais, como o irmão fazia.</p><p>Os deslocamentos dos sintomas</p><p>Embora o tema central de suas queixas ainda fosse o das dificuldades nos</p><p>empregos, sempre geradas porque os excessos a faziam sentir-se adoecendo e</p><p>esgotada até precisar abandoná-los, outros acontecimentos foram surgindo. Parecia</p><p>que toda a voracidade contida até então emergia e, com ela, um comportamento de</p><p>maior atuação, as paixões por trás dos sintomas começando a se revelar, tal como se</p><p>vê frequentemente nos tratamentos das pacientes com anorexia, que quando</p><p>evoluem e rompem a dissociação dos afetos passam para um comportamento de</p><p>bulimia. “As crises bulímicas representarão no curso de uma anorexia uma</p><p>verdadeira solução de compromisso; […] significam uma perda de controle</p><p>onipotente dos impulsos e uma ida ao encontro do objeto.” (FUKS, 2006, p. 44).</p><p>Ainda que algumas dificuldades alimentares sempre aparecessem como pano de</p><p>fundo, em geral na forma de perda de apetite e temor de retomada de um apetite</p><p>voraz, não foram as questões alimentares que tomaram o primeiro plano quando ela</p><p>rompeu com suas defesas mais dissociadas por trás da mulher que gostava de</p><p>agradar, de trabalhar, de ganhar dinheiro etc. Em certa sessão disse que “parecia um</p><p>robô trabalhando, feliz e sorridente”. De fato, nesse momento apresentava um</p><p>sorriso artificial, como que plantado no rosto. Ela partiu para uma busca</p><p>desenfreada de prazer, que foi procurar no sexo, em drogas, e especialmente na</p><p>bebida e em uma vida de baladas e excessos.</p><p>O marido, que até então representava seu porto seguro diante do caos emocional</p><p>de sua família, principalmente por sua estabilidade afetiva e financeira, passou a ser</p><p>sentido como frio, distante, alguém com quem não vivia as emoções que desejava.</p><p>É interessante notar que à medida que a relação do casal esfriava, ambos</p><p>dedicavam-se cada vez mais às aventuras gastronômicas. O gosto de Maria de</p><p>frequentar restaurantes caros, no desejo de degustar comidas e vinhos especiais,</p><p>tinha se tornado frequente no final do casamento. Podemos pensar que esse</p><p>comportamento respondia a um deslocamento da busca de prazer, retornando a</p><p>uma dimensão oral? Interessante que, neste caso, o excesso ficava do lado da</p><p>sofisticação e não da dimensão grosseira e brutal do ataque e da voracidade</p><p>bulímicas. Podemos pensar em certa solução de compromisso, um modo de</p><p>preencher um vazio que se fazia presente nessa “comilança de pouca quantidade”?1</p><p>A paciente separou-se do marido e passou por uma série de abandonos de</p><p>empregos sem conseguir se desligar totalmente de um tipo de relação insatisfatória.</p><p>Ia se delineando cada vez mais como centro da análise sua insatisfação com seus</p><p>investimentos. Em todo caso, a meu ver, a cada desligamento, a cada emprego que</p><p>largava, Maria, ao seu modo, ia elaborando seu projeto de mudança de vida e de</p><p>apropriação de si e de seu corpo, o que passava por um contato maior com sua</p><p>fragilidade, voracidade e violência.</p><p>Maria decidiu separar-se, depois de viver um período marcado por paixões</p><p>desenfreadas. Foi se desligando destas e procurando abster-se de tais</p><p>comportamentos, na tentativa de afastar-se de paixões e excessos considerados por</p><p>ela mesma “não saudáveis”. Quando tudo fica controlado “dentro”, o perigo parece</p><p>retornar de fora. Volta então o tema do risco. Aos poucos, vai sendo capaz de</p><p>nomear as situações de risco e seu impulso em vivenciá-las. Em certa ocasião, disse</p><p>que “a vida fica sem sentido sem correr riscos”. Foi um tema importante, que</p><p>remeteu a questões existenciais, e, com isso, seu modo de pensar em si e na vida se</p><p>ampliou.</p><p>Maria interrompe também o processo de análise, em função de sua mudança de</p><p>vida, muda de cidade e convive com um segundo companheiro. Ela parece não dar</p><p>importância à interrupção de nosso vínculo. Posteriormente, me procura de novo,</p><p>vem em algumas sessões espaçadas. Depois de alguns meses, retorna, contando a</p><p>experiência de um acidente que sofreu praticando um esporte que envolvia</p><p>equilíbrio. Lembra-se de algumas intervenções minhas, com as quais procurei</p><p>investigar e questionar uma possível atitude de risco em sua prática esportiva, que,</p><p>na ocasião, ela negara. Nesse retorno, disse que queria pensar melhor a respeito.</p><p>Comportamentos autocalmantes e comportamentos de risco</p><p>Maria frisa ter muito prazer nas atividades esportivas, em especial por sentir-se</p><p>fazendo algo saudável em um momento que se afastara da convivência com os</p><p>amigos partidários de</p><p>sobre seu corpo esquelético que ela</p><p>pode acreditar que realmente está muito magra. Esse corpo só ganha significado a</p><p>partir do que as outras pessoas lhe dizem, a partir do olhar do Outro. É também a</p><p>partir dessa percepção corporal que se pode conceber a questão da morte na</p><p>anorexia. Segundo Fernandes (2006), as anoréxicas, ao recusarem o alimento e</p><p>levarem seus corpos à inanição, não querem se matar, ou seja, a condição física não</p><p>indica uma tentativa de suicídio. Talvez justamente porque a imagem corporal seja</p><p>distorcida, elas não tenham ideia, ou ao menos, uma noção, de que a inanição pode</p><p>causar a morte.</p><p>Este nada e o corpo esquelético da anoréxica podem ser concebidos como</p><p>tentativa de interromper sua relação com o Outro. É por meio do corpo</p><p>extremamente magro que busca vida e seu desejo, já que este é praticamente</p><p>inexistente diante da intrusão materna. Portanto, quanto mais profissionais e</p><p>familiares insistirem na alimentação, mais a recusa se instala, demonstrando sua</p><p>onipotência e tentando constituir seu desejo. Bellini (2000) aponta dois</p><p>questionamentos para o sujeito com anorexia, um pela medicina, “Por que não</p><p>come?”, outro pela psicanálise, “Por que não come nada?”. Ou seja, não é que não</p><p>se come na anorexia, mas o que se come é o nada, pois apesar de parecer um não</p><p>comer, já que não há alimentação, esse nada é dotado de significados para o sujeito.</p><p>É isso o que ele come.</p><p>Essa constatação direciona para a compreensão do uso que a anoréxica faz do</p><p>próprio corpo, corpo este constituído através da relação do sujeito com</p><p>significantes, que não se esgotam no corpo anatômico. Na atualidade, observa-se</p><p>também uma mudança no modo como a anorexia se apresenta. Esse corpo</p><p>cadavérico, a partir do ideal do corpo magro que demarca a cultura, vem sendo</p><p>idealizado, visto que há quem reverencie a anorexia como modo e estilo de vida.</p><p>Afinal, a magreza é um ideal procurado pela maioria das pessoas.</p><p>O caso Fran e suas implicações socioculturais</p><p>Tomando como base o caso descrito, tentaremos pensar, além da psicanálise, na</p><p>relevância dos fatores socioculturais e como eles se agregam aos sintomas psíquicos.</p><p>Dessa forma, adotaremos por base a antropologia do corpo como foco de nossas</p><p>análises. Partimos, então, das seguintes indagações: O que o sintoma anoréxico de</p><p>Fran pode nos ensinar? O que comunica à sociedade atual? Qual a implicação da</p><p>cultura nos transtornos alimentares?</p><p>Fran, com seu corpo esquálido, é o exemplo de uma menina que traz no</p><p>biológico a marca escancarada de uma doença psíquica. Assim como Fran, muitas</p><p>pacientes estão chegando aos consultórios de médicos, nutricionistas e psicanalistas,</p><p>sofrendo por não conseguirem alcançar o corpo “perfeito”. Em muitos dos casos,</p><p>essa espécie de “obsessão” passa a comandar a vida da pessoa, podendo se tornar</p><p>uma patologia.</p><p>O corpo é o primeiro eixo da relação do homem com o mundo, é de onde</p><p>nascem e se propagam as significações que fundamentam a existência individual e a</p><p>coletiva. Pela corporeidade, o homem faz do mundo extensão de sua experiência e,</p><p>para isso, ele aprende e se comunica por meio da linguagem, presente nas mais</p><p>diversas ações do seu cotidiano: nos gestos, nos rituais, na própria maneira de</p><p>preparar, manipular e comer os alimentos, enfim, em cada ato há um sentido que</p><p>varia segundo o meio sociocultural. Nesse sentido, cientistas sociais vão afirmar que</p><p>a corporeidade é construída, ou seja, vamos moldando nosso corpo de acordo com</p><p>o meio que nos rodeia. Aspectos socioculturais se sobrepõem ao fisiológico, como</p><p>apontam diversos estudos. Portanto, pode-se afirmar que o corpo não é só uma</p><p>soma de órgãos, mas uma estrutura simbólica.</p><p>Os padrões de beleza, a vaidade, os cuidados com o corpo variam tanto em</p><p>época quanto nas sociedades e culturas. O ser humano sempre chamou a atenção de</p><p>estudiosos pela sua preocupação com a beleza, aliás, o mito da beleza é tão antigo</p><p>quanto a própria história da civilização ocidental. Recentemente, arqueólogos</p><p>descobriram vestígios de perfumaria e salões de beleza egípcios que datam</p><p>aproximadamente de 4.000 a.C., bem como a existência de cosméticos, que</p><p>atribuem a 6.000 a.C., conforme assinalou Diane Ackerman (1996, p. 322-323):</p><p>Os egípcios antigos preferiam as sombras para as pálpebras em verde recoberto por</p><p>um brilho que obtinham amassando a carapaça iridescente de determinados</p><p>besouros; delineador e rímel; batom azul-preto; rouge vermelho; e pés e mãos</p><p>tingidos com henna. Depilavam completamente as sobrancelhas, desenhando</p><p>outras, falsas. Uma mulher egípcia daquela época que acompanhasse a moda</p><p>ressaltava as veias de seus seios desenhando-se em azul e coloriam os mamilos de</p><p>dourado. A cor do esmalte assinalava seu status social, sendo o mais elevado</p><p>representado pelo vermelho. Os homens também se permitiam o uso de porções</p><p>elaboradas e de outros embelezamentos, o que não era feito somente para sair à</p><p>noite: o túmulo de Tutankhamon encerra entre suas riquezas inúmeros jarros de</p><p>maquilagem e cremes de beleza, para o seu uso na vida após a morte. Os homens</p><p>romanos adoravam os cosméticos, e os guerreiros penteavam e perfumavam os</p><p>cabelos e pintavam as unhas antes de ir para as batalhas.</p><p>Por outro lado, nos tratados de beleza do século XVI, há um rechaço por parte</p><p>de religiosos pela cosmética. Relacionando a brancura do corpo à limpeza da alma,</p><p>na Idade Média, as mulheres nobres empregavam severos métodos para perder</p><p>sangue e ficar com o aspecto de palidez. Sangrias, laxantes, esfregamento das</p><p>extremidades do corpo, ventosas na nuca e nos ombros, escarificações,</p><p>sanguessugas nas bochechas, na ponta do nariz ou na testa, etc. Locateli, em 1664,</p><p>descreve as francesas:</p><p>nacen con esa blancura que conservan absteniéndose del vino, bebiendo mucha</p><p>leche, recurriendo a sangrías muy frecuentes, a lavativas y también a otros medios:</p><p>por lo tanto no hay que maravillarse de que sus mejillas sean rosadas y sus senos de</p><p>color de lirio (apud VIGARELLO, 2005, p. 78).</p><p>Nessa época, o tema do enfeite evocava a prostituta, que, quando era retratada,</p><p>sempre levava a pele avermelhada nas bochechas, os cabelos soltos, despenteados e</p><p>desarrumados.</p><p>Durante o século XVIII, as mulheres nobres europeias comiam biscoito de</p><p>arsênico a fim de tornar a pele mais branca, pois tal substância inibia os glóbulos</p><p>vermelhos do sangue, fazendo com que elas desenvolvessem uma pigmentação</p><p>bastante apreciada entre as camadas aristocráticas da época.</p><p>Entretanto, independentemente da época e do lugar, desde o momento em que</p><p>o homem se socializa, a cultura se inscreve no fisiológico e, para a antropologia, no</p><p>corpo encontram-se implícitos diversos valores e significados moldados pelo</p><p>contexto sociocultural ao qual o indivíduo pertence.</p><p>Conforme já enfatizou Marcel Mauss (1974), carregamos na nossa imagem</p><p>também nossa cultura, sendo o corpo um veículo de comunicação. Assim, nos</p><p>expressamos pelas mais diversas formas de comportamento que possuímos: desde</p><p>nosso andar, nossa maneira de vestir, de nos portar à mesa, inclusive de comer. Tais</p><p>práticas são reguladas por rituais de interação da vida cotidiana, que refletem as</p><p>variadas formas que os indivíduos utilizam para fazer usos de seus corpos. Para</p><p>cada necessidade, a cultura molda a maneira de satisfazê-la; a própria expressão dos</p><p>sentimentos é, para o autor, cultural. O homem deve ser visto como “Ser total”,</p><p>dentro de um tríplice viés, ou seja, biopsicossocial, sendo exatamente isso que o</p><p>diferencia do animal.</p><p>Nessa perspectiva, é absolutamente importante a ideia de relativismo da imagem</p><p>corporal, pois aquilo que parece</p><p>sexualmente estimulante em uma determinada</p><p>sociedade pode exercer o efeito contrário em outra. Como bem observa José Carlos</p><p>Rodrigues, em O Tabu do Corpo (1975), há, na África Central, um ideal de estética</p><p>feminina que identifica a beleza com a obesidade, sendo a jovem, na época de sua</p><p>puberdade, submetida às mais diferentes técnicas, capazes de fazê-la engordar. Aliás,</p><p>o ideal estético baseado nas formas corpulentas serviu como modelo para a pintura</p><p>barroca e a renascentista. Seu oposto parece impregnar a estética do último quartel</p><p>do século passado, em que predominou, sobretudo, um ideal baseado nas formas</p><p>longilíneas do corpo humano (CLARK, 1956).</p><p>Durante a pesquisa de mestrado, Fabiana Pereira (2001) observou um grupo de</p><p>trinta mulheres da classe alta de Recife, entre 15 e 30 anos. Eram mulheres que</p><p>aparentemente levavam uma vida normal, ou seja, estudavam, trabalhavam,</p><p>cuidavam dos filhos, etc. No entanto, uma das características que norteou o</p><p>discurso de todas elas foi a excessiva preocupação com a aparência e com a</p><p>beleza, que se relacionava, em todos os casos, com a magreza. Eram pessoas que</p><p>frequentavam academias de ginástica, spas e clínicas de rejuvenescimento, além de</p><p>serem consumidoras de produtos voltados para o embelezamento corporal e o</p><p>emagrecimento.7</p><p>Muitas delas já tinham se submetido a algum tipo de intervenção no corpo de</p><p>natureza estética, como cirurgia plástica ou lipoaspiração. Todas temiam a gordura e</p><p>pareciam se influenciar pelos padrões de beleza veiculados na mídia. Engordar era o</p><p>principal vilão que deveria ser evitado a qualquer preço e sacrifício. Certa vez, uma</p><p>dessas mulheres, aqui chamada de Karina (22 anos), contou que chegava a fazer mil</p><p>abdominais por dia, e que já tinha feito duas lipoaspirações, não descartando uma</p><p>terceira. No caso de Fátima (18 anos), entrar na academia passou a ser um</p><p>problema, pois se sentia gorda (não revelava a ninguém seu peso, por vergonha).</p><p>Tinha medo dos espelhos que refletiam corpos esculturais; já no seu caso era</p><p>ameaçador se ver refletida, pois distorceria a harmonia daqueles corpos tão bem</p><p>disciplinados, segundo ela. Chegou a dizer que o corpo era como o “cartão de</p><p>visita”, então tinha que se encaixar direitinho nos moldes da beleza.</p><p>Nesse caso, a gordura parece se associar ao desproporcional, ao que excede o</p><p>limite, ao feio, deformado, podendo ser feita uma analogia da mesma (da gordura)</p><p>com os seres grotescos da Idade Média, que eram marcados pela falta de definição</p><p>física.8 Sobre o grotesco, não se pode deixar de citar Rabelais, que, em 1532, criou</p><p>os personagens Gargantua e Pantagruel. O livro está atravessado de corpos</p><p>disformes, despedaçados, órgãos separados do corpo, excrementos, urinas, morte,</p><p>nascimento, etc.</p><p>Assim como Fran, as mulheres entrevistadas pareciam influenciadas por um</p><p>padrão estético que associa beleza com magreza. É importante observar que nos</p><p>tempos atuais somos diariamente bombardeados por padrões socialmente impostos</p><p>por intermédio de uma “tirania estética da boa forma e da magreza” fornecida</p><p>pelos multimeios, que impõem e exigem cuidados exagerados com a aparência. As</p><p>revistas de moda, os blogs, a internet, o cinema e a televisão costumam trazer à cena</p><p>a chamada “perfeição corporal”.</p><p>Observar uma revista de moda, por exemplo, é uma tarefa bastante difícil, na</p><p>medida em que as pessoas que posam para as fotos sempre estão “impecáveis”, do</p><p>ponto de vista estético, como se ali o tempo congelasse a imagem. Veículo</p><p>publicitário “poderoso”, instrumento de certa forma ambíguo, capaz de</p><p>proporcionar ao mesmo tempo prazer e ansiedade. As mensagens trazem</p><p>implicitamente a ideia da “meritocracia”, com conselhos e “fórmulas mágicas”:</p><p>TENHA O CORPO QUE MERECE!</p><p>NÃO SE TEM UM CORPO MARAVILHOSO SEM ESFORÇO!</p><p>TIRE O MELHOR PARTIDO DOS SEUS ATRIBUTOS NATURAIS.</p><p>Dessa maneira, cada um sente a dura responsabilidade, extremamente</p><p>individualista, pela forma do corpo: Você pode moldar totalmente seu corpo!</p><p>O poder de sedução das mensagens que são veiculadas é imenso. Geralmente</p><p>agregada a elas, vem alguma foto que ilustra a “magia” do anúncio. As fotografias</p><p>são retocadas quantas vezes forem necessárias, até que a imagem fique “perfeita”,</p><p>conforme apontou Wolf (1992, p. 108): “Nos nossos dias, os leitores não fazem</p><p>ideia da verdadeira aparência de um rosto de uma mulher de 60 anos na imprensa,</p><p>porque ele é retocado para aparentar 45”.</p><p>A leitora, muitas vezes, se olha no espelho e se compara ao que está estampado</p><p>na foto. Por toda parte e a todo instante, as mulheres se deparam com lindos</p><p>rostinhos e corpinhos “sarados” que são utilizados pela publicidade para venda de</p><p>seus produtos. Os modelos que posam para os anúncios são, na sua grande maioria,</p><p>jovens magérrimas de cor clara.9 É raro se encontrar modelos negros, assim como</p><p>pessoas mais velhas ou até de meia-idade que, quando aparecem, geralmente é para</p><p>algum anúncio de creme contra envelhecimento. A mesma rejeição se aplica a</p><p>pessoas gordas, a menos quando estas são veiculadas em publicidade de produtos</p><p>dietéticos ou plus size.</p><p>Mesmo sabendo que o anunciante é quem vai criar a mensagem com o interesse</p><p>de vender seu produto, dizendo o que a mulher deve usar, como deve se pentear, se</p><p>maquiar, o que comer, percebe-se que as mensagens veiculadas nas revistas, mesmo</p><p>sendo banalizadas, representam, de alguma forma, a cultura na qual essas mulheres</p><p>estão inseridas, sendo isso um fator extremamente determinante para a expansão e</p><p>a circulação desses produtos e serviços ligados essencialmente a sua aparência</p><p>estética.</p><p>O espectador, encantado com o que assiste, parece se hipnotizar perante o que</p><p>se passa diante de seus olhos, deixando-se, sem se dar conta, manipular por todo</p><p>aquele mundo de imagens, que, apesar de ficcional, confunde-se com a própria</p><p>realidade. Assim, é muito significativo o poder que circula na dinâmica entre</p><p>telespectador, câmera e imagem, na medida em que quando algo é transmitido se</p><p>estabelece um jogo intencional e interacional, fazendo com que aquilo seja</p><p>absorvido imediatamente sem que haja uma maior reflexão. Sem percebermos,</p><p>somos submetidos a um império de imagens que nos captura e nos coloca frente a</p><p>uma exaltação de corpos magros, torneados, sarados, sem rugas ou flacidez. Cenas</p><p>que nos levam a pensar nas nossas próprias imperfeições o tempo todo.</p><p>Naomi Wolf (1992) argumenta que existe uma opressão social bastante forte</p><p>relacionada ao que chamou de “Mito da Beleza”. Ao mesmo tempo em que a</p><p>mulher foi emergindo na esfera social, também foram crescendo consideravelmente</p><p>as exigências aos cuidados com a sua aparência estética. Quanto mais perto do</p><p>poder, maior é a exigência de sacrifício e preocupação com o físico feminino. Esse</p><p>ideal estético é visto por Baudrillard (1995) como uma nova forma de violência e de</p><p>sacrifício para com o próprio corpo.</p><p>Desse modo, o corpo passou a ser um objeto ameaçador, sendo necessário vigiá-</p><p>lo a todo momento, principalmente numa “sociedade de abundância”. A grande</p><p>questão é que tudo isso tem implicações severas, que podem levar a extremismos e</p><p>a patologias, como no caso de Fran, em que a busca pela “perfeição” faz com que</p><p>haja uma negação do próprio corpo e da própria necessidade de se alimentar.</p><p>Recusar um corpo talvez implique num recusar outras coisas. Tal qual o alimento</p><p>que ela nega, há outros rechaços que estão envolvidos nesse padecer: o corpo que</p><p>desaparece, assim como a menstruação, as curvas e outros atributos que remetem à</p><p>sexualidade feminina. Sem falar que o próprio significante “comer” tem uma</p><p>conotação sexual.</p><p>Podemos concluir dizendo que se trata de um sintoma psíquico, pois nem todas</p><p>as magras são anoréxicas.</p><p>No entanto, não podemos negar o papel da cultura na</p><p>formação do sintoma. A magreza passou a ser cultuada, o sacrifício de atingir o tal</p><p>padrão de beleza pode levar a patologia ou até mesmo a morte, dependendo da</p><p>estrutura do sujeito. Fran nos conta sua história, ela é a autora, e serve para</p><p>refletirmos sobre as questões da contemporaneidade, mas sem perder de vista a</p><p>singularidade de cada indivíduo portador de um psiquismo particular.</p><p>Notas:</p><p>1. Fran se refere à festa da melhor amiga que se sentiu obrigada a comparecer.</p><p>2. Ela conta isso e o tom de sua voz não se altera, parece sempre conformada.</p><p>3. Fran morava em Minas Gerais, é natural de uma cidade do interior.</p><p>4. O antidepressivo não era o indicado pelo médico como primeira.opção e, sim, o mais barato.</p><p>5. Ela tomava anticoncepcionais há quase dez anos.</p><p>6. Segundo Wolf (1992), o peso das modelos de moda desceu para 23% abaixo do peso das mulheres normais.</p><p>7. O trabalho de campo foi realizado nesses locais, onde foi possível estabelecer uma rede de contatos com os</p><p>atores sociais da pesquisa. Ali foram realizadas entrevistas e observações com semiparticipantes durante</p><p>cinco meses.</p><p>8. Sendo a teratologia a ciência que estudava as más formações físicas em seres vivos, homens ou animais, suas</p><p>raízes remontavam aos tempos em que cada monstro era portador de um significado particular. Os monstros</p><p>humanos, desde Aristóteles, se diferenciavam em “monstros por excesso” (gêmeos siameses ou gigantes) e</p><p>“monstros por defeito” (anões; pessoas de uma perna só; um olho, etc.). A razão dessas anomalias estava</p><p>indicada em uma quantidade respectivamente excessiva ou escassa de espermatozoide no momento da</p><p>inseminação. Vale ressaltar a esse respeito que na Antiguidade clássica, tanto gregos como romanos e hindus,</p><p>exterminavam seres deformes, afogando, queimando ou colocando-os em alguma ilha deserta, de maneira</p><p>que, em algumas épocas, o disforme não se associava ao humano, mas ao diabólico (PARRA, 2003).</p><p>9. Segundo Wolf (1992), o peso das modelos de moda desceu para 23% abaixo do peso das mulheres normais.</p><p>Referências</p><p>ACKERMAN, D. Uma história natural dos sentidos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,</p><p>1996.</p><p>BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Portugal: Edições 70, 1995.</p><p>BELLINI, T. Mais além do objeto: a, mais além de A: supereu. In: GORALI, V.</p><p>(org.) Estudos de anorexia e bulimia. Buenos Aires: Atuel, 2000.</p><p>BRANAGH, K., Cinderela. [Filme]. Direção de Kenneth Branagh. Estados Unidos:</p><p>Walt Disney Studios, 2015.</p><p>CLARK, A. The Nude: A Study of Ideal Art. Londres: John Murray, 1956.</p><p>FERNANDES, M. H. Transtornos alimentares. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.</p><p>GOLDENBERG, M. O corpo como Capital. São Paulo: Estação das Letras e Cores,</p><p>2007.</p><p>KEHL, M. R. Com que corpo eu vou. In: BUCCY E.; KEHL, M. R. (orgs.)</p><p>Videologias. São Paulo: Boitempo, 2004.</p><p>MAUSS, M. As técnicas corporais. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EDUSP,</p><p>1974.</p><p>PARRA, DEL R. Una era de monstruos: representaciones de lo deforme en el siglo de oro</p><p>español. Navarra: Universidad de Navarra, 2003.</p><p>PEREIRA, F. Através do Espelho. Um ensaio etnográfico sobre as representações do corpo</p><p>feminino entre mulheres de classe média alta na cidade de Recife. Mestrado em Antropologia</p><p>pela Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001.</p><p>RABELAIS. Gargantua et Pantagruel. 3. ed. Paris: ODEJ, 1966.</p><p>RECALCATI, M. Os dois ¨nada¨ da anorexia. Correio: Revista da Escola Brasileira de</p><p>Psicanálise, 32, 2001.</p><p>RODRIGUES, J. C. O tabu do corpo. 3. ed. Rio de Janeiro: Achiamé, 1975.</p><p>SILVA, A. N.; BASTOS, A. Anorexia: uma pseudo-separação frente a impasses na</p><p>alienação e na separação. Rio de Janeiro Psicologia Clínica, v. 18, 2006.</p><p>VIGARELLO, G. Historia de la belleza: el cuerpo y el arte de embellecer desde el renacimiento</p><p>hasta nuestros días. Buenos Aires: Nueva visión, 2005.</p><p>WOLF, N. O Mito da Beleza. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.</p><p>CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE A</p><p>COMPULSÃO ALIMENTAR</p><p>Fernanda Kalil</p><p>Sabemos que todo sintoma está inserido em um tempo, espaço e contexto</p><p>cultural. No mundo contemporâneo, o excesso, a rapidez, o consumo e o</p><p>individualismo têm lugar privilegiado. Nas palavras de Ana Maria Sigal (2009), trata-</p><p>se de manifestações que hoje aparecem na clínica em decorrência de diversas</p><p>mudanças históricas que produziram importantes efeitos na produção da</p><p>subjetividade.</p><p>Cito a fala de uma paciente:</p><p>Ontem foi mais um dia daqueles; comi o tempo todo em frente ao computador</p><p>enquanto trabalhava exaustivamente. O mundo corporativo é assim e logo eu não</p><p>vou ser a “loser”! Saí da empresa acabada, bebi todas, fumei a noite inteira e tive a</p><p>maior compulsão da minha vida. Comi tudo o que via na minha frente,</p><p>desesperadamente, até me empanturrar e fui dormir triste e me sentindo fracassada.</p><p>Agora eu te pergunto; dá pra ser feliz desse jeito?</p><p>O que ela nos diz? A medida, o ritual, a escolha, o tempo não cabem mais no dia</p><p>a dia, “isso é coisa de loser”. A vibe agora é outra: correr, consumir, fazer, vencer…</p><p>Não há investimento simbólico, nada se escolhe, tudo se incorpora, seguindo a</p><p>lógica do consumo e do excesso (que se manifesta mediante o uso dos mais</p><p>variados objetos: trabalho, sexo, comida, álcool, drogas), na busca desenfreada de</p><p>tamponar os vazios internos e a falta fundamental, marca da condição humana.</p><p>Nesse contexto, o efeito manifesto é o sofrimento, com todas as roupagens</p><p>sintomáticas que invadem a nossa clínica sob a forma de demanda. Não a demanda</p><p>de reposicionamento subjetivo, de articular palavras, de recriar o simbólico, mas a</p><p>demanda de se livrar do mal-estar: “Não dá pra ser feliz desse jeito”.</p><p>Embora as compulsões retratem com tanta propriedade a lógica de</p><p>funcionamento da cultura pós-moderna, não se pode dizer que a compulsão</p><p>alimentar seja um sintoma novo, é possível que sempre tenha existido. Relatos</p><p>históricos comprovam, por exemplo, a presença de comportamentos semelhantes</p><p>na Roma antiga, com a descrição das chamadas “orgias alimentares” nos palácios</p><p>romanos.</p><p>No decorrer da história do Ocidente, outros relatos apresentaram quadros com</p><p>características de hiperfagia, apetite voraz e ingestão de alimentos em intervalos</p><p>muito curtos, típicos de compulsão alimentar. No entanto, a tentativa de</p><p>compreender esses comportamentos é relativamente moderna (BUCARETCHI &</p><p>WEINBERG, 2003). A primeira descrição científica da compulsão alimentar foi</p><p>realizada por Stunkard, em 1959 (BORGES & JORGE, 2000).</p><p>A compulsão alimentar: transtorno ou sintoma?</p><p>No olhar da psiquiatria, compulsões alimentares regulares caracterizam um</p><p>“transtorno alimentar”. O recente DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico de</p><p>Doenças Mentais – 5. ed.) modificou os critérios diagnósticos do TCAP</p><p>(Transtorno da Compulsão Alimentar Periódica), descrevendo novamente esse</p><p>quadro clínico.</p><p>Trata-se de um comportamento caracterizado pela ingestão de grande</p><p>quantidade de alimentos com sensação de descontrole, normalmente em curto</p><p>período de tempo, acompanhado de sofrimento psíquico, porém agora, bastando a</p><p>ocorrência do episódio 1 (uma) vez por semana no período de 3 (três) meses para</p><p>caracterizar o transtorno.</p><p>No que se refere ao quadro clínico, o paciente sente uma necessidade</p><p>incontrolável de ingerir grande quantidade de alimentos. A ingestão é feita às</p><p>pressas, sem preparo, ritual ou escolha; só há descontrole. O paciente torna-se</p><p>dependente e escravo do seu sintoma, envolvido num processo repetitivo e</p><p>destrutivo, aparentemente sem solução.</p><p>“Eu estou aqui buscando tratamento, mas sinceramente, eu não acredito que possa</p><p>mudar. Há vinte anos vivo esse dilema com a comida e, até hoje, apesar das</p><p>inúmeras</p><p>tentativas, nada mudou.”</p><p>É justamente esse incontrolável, essa ausência de significação, esse enigma, que</p><p>justifica a busca do trabalho em análise. O inconsciente escapa a toda tentativa de</p><p>racionalização, da mudança comportamental desprovida de significação e da</p><p>medicalização do sintoma.</p><p>É assim que, a todo momento, nos deparamos com fracassos nas tentativas de</p><p>inibir e represar o sintoma sem o tratamento de sua causa fundamental:</p><p>“Eu tomava remédio, ficava sem fome, mas corria para o shopping… Ao invés de</p><p>comer eu fazia compras, gastava muito além do que eu podia e voltava culpada, era</p><p>outro tipo de sofrimento…”</p><p>“Depois que eu fiz a cirurgia bariátrica passei a vomitar compulsivamente. Aqueles</p><p>picos de êxtase e alívio passaram a ser o meu novo jeito de extravasar…</p><p>Os casos de insucesso nas medicações para emagrecer e “conter” as compulsões,</p><p>as graves consequências psicológicas da cirurgia bariátrica mal indicada ou realizada</p><p>sem a preparação psicológica do paciente, estão presentes no cotidiano da cultura e</p><p>da nossa clínica, surpreendendo aqueles que buscam uma resposta aquém da</p><p>subjetivação.</p><p>A compulsão alimentar à luz da psicanálise</p><p>O diagnóstico de “transtorno” pode criar um viés negativo de categorização, no</p><p>sentido de vitimizar o sujeito que se vê retratado em uma classificação, mas também</p><p>pode trazer ganhos secundários para o paciente. É nesses termos que ser “doente”</p><p>ou “vítima de um transtorno” é uma maneira usual de justificar o mal-estar sem</p><p>necessidade de implicação, de assumir a responsabilidade pelo sofrimento que o</p><p>acomete. Pode ser mais cômodo acreditar que foi acometido por uma doença,</p><p>como algo externo de que se é vítima, do que ser chamado para entender o</p><p>significado subjacente de um sintoma, sendo convocado a responsabilizar-se por</p><p>ele. Fazer análise é trabalhoso!</p><p>“TEM QUE EXISTIR UM REMÉDIO PARA A MINHA DOENÇA.”</p><p>E é justamente numa cultura que hostiliza a falta e idealiza a busca de soluções</p><p>mágicas e imediatas para qualquer tipo de mal-estar, que a medicalização do sintoma</p><p>sem o comprometimento do paciente é o acalento das “mentes desesperadas”; mas,</p><p>como toda mágica, efêmera por sua própria natureza, o conto de fadas termina, e,</p><p>na vida real, o final é infeliz: medicamentos que não contêm o excesso pulsional,</p><p>discursos prontos que não se sustentam, angústia que invade. Essa é a razão de</p><p>existir da psicanálise. A voracidade alimentar fala em nome de um sujeito que não</p><p>consegue se fazer ouvir, que não tem ideia do que se passa no campo da</p><p>subjetividade, e justamente por isso, mantém o sintoma vivo e vigoroso.</p><p>Sobre as contribuições psicanalíticas…</p><p>Freud, no decorrer de sua obra, não abordou especificamente a compulsão</p><p>alimentar, mas deu substrato metapsicológico para futuras e importantes</p><p>construções teóricas, de onde retiramos elementos de base para a construção de</p><p>uma psicanálise da compulsão alimentar.</p><p>Karl Abraham, seu fiel seguidor, desenvolveu um estudo sobre as fases pré-</p><p>genitais do desenvolvimento, descrevendo o que chamou de “sentimentos anormais</p><p>de fome” na neurose, formulando importantes observações sobre a dinâmica</p><p>psíquica dos pacientes com compulsão alimentar, apontando a relação entre o</p><p>apego ao alimento e à libido recalcada.</p><p>Em 1924, Abraham salientou a importância da relação mãe-bebê com ênfase na</p><p>função alimentar, confirmada mais tarde por autores contemporâneos:</p><p>O período de sucção pode ser uma época extremamente desagradável para a</p><p>criança. Em alguns casos, seu mais primitivo anseio de prazer é satisfeito</p><p>imperfeitamente e ela fica privada de desfrutar o estágio de sugar. Noutros casos, o</p><p>mesmo período é anormalmente rico em prazer. Sabe-se bem como certas mães são</p><p>indulgentes para com o anseio de prazer de seus filhos, fazendo-lhes todas as</p><p>vontades. […] Quer tenha a criança atravessado este primeiro período da vida sem</p><p>prazer ou quer ela tenha obtido um excesso dele, o efeito é o mesmo (p. 165).</p><p>Trata-se do que Maria Helena Fernandes (2006) denominou “mãe de extremos”,</p><p>aquela que, intrusiva ou faltosa, não possibilitou uma distância adequada e</p><p>necessária ao processo de individuação da criança, impossibilitando a introjeção da</p><p>função materna. Em outras palavras, o sujeito permanece desprotegido diante do</p><p>excesso pulsional, buscando o alimento como substituto dos objetos faltantes em</p><p>seu mundo interno (KALIL, 2010).</p><p>Outras contribuições pós-freudianas foram também indispensáveis para</p><p>entender a compulsão alimentar e suas vicissitudes, como a teorização de Winnicott</p><p>sobre a relação mãe-bebê, formulando o conceito de “mãe suficientemente boa”; a</p><p>distinção entre necessidade, demanda e desejo e a elaboração do conceito de gozo</p><p>por Lacan; a compreensão da economia psíquica da adição de Joyce McDougall; e,</p><p>em última instância, as construções teóricas de Hilde Bruch, Phillipe Jeammet e</p><p>Bernard Brusset baseadas em larga experiência clínica com pacientes com</p><p>transtornos alimentares e imprescindíveis para a compreensão e a condução do</p><p>tratamento desses sintomas.</p><p>No entanto, a literatura psicanalítica ainda é escassa ao tratar de compulsão</p><p>alimentar, o que nos convida a desenvolver novos trabalhos com a responsabilidade</p><p>de criar maiores condições de compreender a compulsão alimentar e de explicitar o</p><p>trabalho clínico consistente que a psicanálise realiza com esses pacientes.</p><p>Variações clínicas da compulsão alimentar</p><p>A meu ver, a compulsão alimentar é sintoma, podendo se manifestar nos</p><p>diferentes quadros psicopatológicos. Na clínica, é frequente a apresentação da</p><p>compulsão alimentar enquanto sintoma neurótico, com toda a gama de conflitos</p><p>ligados ao recalcamento, especialmente na histeria, podendo também se manifestar</p><p>na neurose obsessiva. Nesses casos, o que varia é a estratégia psíquica utilizada pelo</p><p>sujeito em seu confronto com a castração.</p><p>Pensando que a questão da histérica é a dificuldade com a sexualidade e que o</p><p>corpo é palco do sofrimento e da insatisfação, o sintoma compulsão alimentar pode</p><p>ser um “prato cheio” para afastar o desejo e manter o descontentamento.</p><p>As histéricas de outrora portanto caíram de moda, e seu sofrimento de hoje se</p><p>oferece sobre outras faces, outras formas clínicas mais discretas, menos</p><p>espetaculares, talvez, que as da antiga Salpêtrière. O histérico do final do século</p><p>XIX e o histérico moderno vivem, cada qual a sua maneira, um sofrimento</p><p>diferente mas a explicação que a psicanálise propõe para dar conta da causa desses</p><p>sofrimentos essencialmente não variou (NASIO, 1991, p. 9).</p><p>A questão da sexualidade feminina, marca da histeria, faz do sintoma alimentar</p><p>uma via ideal de escoamento do sintoma. Sentir-se “empanturrada”, tornar-se</p><p>“gorda”, é afastar o “perigo” da satisfação sexual. Embora nos quadros de</p><p>compulsão alimentar (excluída a bulimia nervosa) não haja distorção da imagem</p><p>corporal, a insatisfação com a imagem real está frequentemente presente no relato</p><p>dessas pacientes.</p><p>“Parece que sem perceber eu faço força para me tornar uma gorda indesejável. Não</p><p>vai ter outra saída caso eu continue tendo essas compulsões.”</p><p>“E foi justamente no dia de ir para o motel com ele que eu tive a maior das minhas</p><p>compulsões. Resultado: o sexo mais esperado da minha vida foi um desastre: não</p><p>consegui relaxar e só sentia a minha barriga estufada, imaginando que ele deveria</p><p>estar reparando na minha gordura.”</p><p>Na neurose obsessiva, o deslocamento da carga afetiva separada da</p><p>representação se instala no pensamento. A compulsão alimentar enquanto sintoma</p><p>funciona como uma medida protetora utilizada pelo sujeito para lidar com a</p><p>dificuldade perante a castração. Assim, a compulsão se apresenta como um</p><p>mecanismo de tamponamento</p><p>da angústia, uma forma de manter uma posição</p><p>fálica, de garantir a sensação de onipotência:</p><p>“Chegar em casa, sentar em frente à TV comendo o que eu quiser é o momento do</p><p>dia que é só meu. A palavra que uso para definir o que eu sinto com qualquer</p><p>tentativa de médicos ou nutricionistas de modificar minha alimentação é invasão; eu</p><p>fico profundamente irritado.”</p><p>É preciso diferenciar as compulsões presentes como sintomas comuns na</p><p>neurose das compulsões que identificamos como modo de subjetivação próprio das</p><p>chamadas “patologias do vazio”, “patologias do narcisismo ou do desamparo”</p><p>(HOCHGRAF & BRASILIANO, 2004), ou mesmo o que Gurfinkel (2006)</p><p>denominou de “clínica do agir”. Trata-se de patologias mais graves, nas quais</p><p>acontece uma verdadeira carência de elaboração psíquica e falhas na simbolização.</p><p>Segundo os autores que nomearam essas patologias como outra categoria</p><p>excluída da neurose, aqui as questões a serem tratadas não se referem ao que</p><p>chamamos de clínica do recalcamento, mas estamos falando de algo mais arcaico,</p><p>primitivo, que nos leva a pensar nas particularidades da análise do narcisismo ou nas</p><p>modalidades da relação de objeto. É nesse contexto que muitos autores retomam o</p><p>conceito freudiano de neuroses atuais, caracterizadas pelo acúmulo de uma</p><p>excitação sexual que se transforma em sintoma, sem mediação psíquica</p><p>(LAPLANCHE & PONTALIS, 2000).</p><p>A diversidade de terreno estrutural explica a variedade clínica das compulsões</p><p>alimentares, o que confirma que o paciente precisa ser considerado em suas</p><p>particularidades e modos de subjetivação. Cada compulsão traz em si uma</p><p>significação, uma história, um sentido, ou no caso das “patologias do vazio”, uma</p><p>ausência de sentido que precisa ser significada. Isso repercute também na condução</p><p>do tratamento.</p><p>O cotidiano da clínica: a condução do tratamento</p><p>Quando os pacientes chegam à análise, é comum que já tenham buscado outros</p><p>profissionais: endocrinologistas, nutricionistas e possivelmente investiram em</p><p>tentativas de dieta e/ou reeducação alimentar sem efeito. São pacientes que chegam</p><p>muito mobilizados com a questão do peso e das calorias, identificados com o</p><p>diagnóstico: “Sou compulsivo”. É de fundamental importância que possamos</p><p>favorecer uma desidentificação do paciente com essa condição de doente,</p><p>possibilitando surgir na análise algo além da problemática alimentar. A nossa escuta</p><p>é a escuta do sujeito.</p><p>O sofrimento com o sintoma (egodistonia) é um ponto a nosso favor no</p><p>tratamento, embora a demanda de soluções rápidas própria da intolerância à espera</p><p>e a dificuldade frente às questões subjetivas apresentem possíveis impasses com os</p><p>quais teremos que lidar na transferência.</p><p>Na condução do tratamento, é preciso diferenciar as compulsões próprias da</p><p>neurose (clínica do recalcamento) das compulsões que podemos atribuir às</p><p>chamadas “patologias do vazio”.</p><p>Na neurose, trabalhamos com a metaforização, acompanhando o paciente na</p><p>elaboração dos conflitos referentes à expressão de desejos, sexualidade, autonomia.</p><p>Trata-se de um caminho de atribuição de significados.</p><p>Nas patologias do vazio, precisamos auxiliar os pacientes a traduzir as sensações</p><p>corporais em estados emocionais, a dar significado para aquilo que estão dizendo</p><p>sem saber do que se trata, possibilitando a construção de uma representação</p><p>interna, criando um aporte simbólico onde só existe uma descarga evacuativa de</p><p>tensão não representada. Esses casos, caracterizados por um movimento pulsional</p><p>difícil de tratar pela via da palavra, são os que exigem uma especial habilidade do</p><p>analista na escuta e na escolha das intervenções, mas que também convocam</p><p>algumas intervenções pontuais (horário, pagamento) que toquem o pulsional,</p><p>podendo operar mudanças importantes.</p><p>O lugar do analista e a boa distância</p><p>Maria Helena Fernandes (2006, p. 261) enfatiza a importância da função de</p><p>paraexcitação do analista em sua tripla dimensão de proteção, mediação e</p><p>libidinização:</p><p>Se a função de paraexcitação materna encontrou dificuldade de ser introjetada,</p><p>deixando-as expostas ao desamparo diante da ausência do objeto, não posso deixar</p><p>de insistir aqui na importância dessa função de paraexcitação do analista. Nesses</p><p>casos, a função mediadora e protetora, assegurada pela presença constante e regular</p><p>do analista, vem se unir a essa função de libidinização assegurada pela sua escuta.</p><p>O paciente precisa da segurança da presença do analista, o que se faz com a</p><p>escuta genuína, sem pressa. É preciso esperar, com paciência e sensibilidade,</p><p>dosando silêncio e palavras, afinando a escuta com os conteúdos que surgem na</p><p>sessão, sem a pretensão de adequar a teoria àquilo que o paciente nos apresenta. A</p><p>teoria possibilita a nossa escuta, o caminho da análise é de criação.</p><p>É preciso acrescentar que estamos falando de casos em que precisamos estar</p><p>atentos ao perigo de manter o paciente no lugar de alienado ao saber de um outro</p><p>poderoso que possui as respostas a seu respeito. Nas palavras de Cobelo, Gonzaga</p><p>& Weinberg (2010, p. 271), eventuais falhas no processo de diferenciação e de</p><p>formação da identidade que remontam a fases precoces do desenvolvimento infantil</p><p>“promovem dificuldades importantes tanto nas referências de identidade como na</p><p>discriminação do que é próprio ao mundo interno ou externo […]”.</p><p>O paciente tem o direito de encontrar no analista um outro diferente daquele</p><p>outro de sua própria história, e o analista tem o dever de se apresentar diferente</p><p>daquele outro conhecido, excessivamente ausente ou presente, incapaz de</p><p>possibilitar a experiência da falta, adivinho das necessidades de seu “pupilo”. Suprir</p><p>com cuidados excessivos vai na contramão do trabalho analítico. É na transferência</p><p>que se instaura uma nova possibilidade de existir na relação; sempre ressaltando que</p><p>a adequada função materna reeditada na transferência possibilita deixar espaços</p><p>regulares para que o sujeito possa descobrir-se desejante, a partir da falta. Trata-se</p><p>de um “fio da navalha”, de um tom degradée que apenas o analista na sua escuta,</p><p>amparado pelo seu inconsciente e pelo trabalho realizado em sua análise pessoal,</p><p>poderá mensurar.</p><p>Precisamos contribuir para que o paciente experimente a vivência de um vazio</p><p>necessário que faça emergir um certo incômodo, uma angústia necessária, que</p><p>possa, enfim, ser relativizada pela palavra. É a partir dessa nova experiência que o</p><p>sujeito pode se surpreender com a possibilidade de adquirir recursos para se deparar</p><p>com o “rochedo”, e, então, se torne apto a atravessar o confronto com as suas</p><p>próprias questões subjetivas. Esse é o cerne do nosso trabalho, em que a questão</p><p>começa e termina não na comida, mas no sujeito. A direção do trabalho em análise</p><p>é assegurar ao paciente o reposicionamento subjetivo e uma nova aliança com a</p><p>pulsão, de forma que possa vivenciar aquilo que é próprio da condição humana sem</p><p>se sentir radicalmente desamparado, ocupando aquele lugar que ele, sujeito, definiu</p><p>como seu.</p><p>Termino com a fala de Helena (nome fictício), uma paciente que chegou ao meu</p><p>consultório diagnosticada pelo psiquiatra como portadora de “transtorno alimentar</p><p>e transtorno bipolar grave” (nas palavras dela). A paciente se apresentava com um</p><p>relato vazio de afeto e discurso, apenas preenchido pela descrição de uma sequência</p><p>de atuações, inclusive com grave risco de vida. Enfim, Helena era só sofrimento…</p><p>Durante o primeiro tempo da análise, eu me perguntava se haveria ali alguma</p><p>possibilidade de que tamanha angústia expressa em atuações pudesse ser</p><p>relativizada pela simbolização e, com tempo, paciência e esforço para escutá-la,</p><p>fui</p><p>surpreendida pela disposição de Helena para o tratamento e potencial associativo:</p><p>“Quando você recebe um diagnóstico ou vários (rs), você se vitimiza, como se fosse</p><p>acometida por um mal que não depende de você e que você não tem</p><p>responsabilidade sobre ele. Foi assim que eu cheguei aqui, né?</p><p>[…] Hoje eu entendo que as minhas compulsões tinham a ver com a minha</p><p>dificuldade de me posicionar, de saber de mim, das minhas vontades, necessidades e</p><p>de fazer escolhas. E por falar em escolha, tive uma festa nesse final de semana que</p><p>passou. Foi muito diferente comer por lá, saboreando, sentindo prazer, sem sofrer</p><p>nem me incomodar. Estou te contando isso porque esse dia serviu como símbolo</p><p>da minha vontade em todos os âmbitos da minha vida. A partir dessa medida que</p><p>encontrei nas coisas, mesmo sabendo das dificuldades que eu preciso enfrentar de</p><p>frente, que eu comecei (acho que pela primeira vez) a sentir prazer de verdade nas</p><p>coisas da vida.”</p><p>E assim seguimos com o propósito do nosso trabalho, o de recriar a palavra para</p><p>que enfim o paciente possa reencontrar um sentido que legitime, nas palavras de</p><p>Philippe Jeammet, o apetite de viver.</p><p>Referências</p><p>ABRAHAM, K. [1916]. O primeiro estágio pré-genital da libido. In: ABRAHAM,</p><p>K. Teoria Psicanalítica da Libido: sobre o caráter e o desenvolvimento da Libido. Rio de</p><p>Janeiro: Imago, 1970. p. 51-80.</p><p>_________. (1924). A influência do erotismo oral na formação do caráter. In:</p><p>ABRAHAM, K. Teoria Psicanalítica da Libido: sobre o caráter e o desenvolvimento da Libido.</p><p>Rio de Janeiro: Imago, 1970. p. 161-173.</p><p>BORGES, M. B. F.; JORGE, M. R. Evolução histórica do conceito de compulsão alimentar.</p><p>São Paulo, Psiquiatria na Prática Médica, XXXIII(4):113-118, 2000.</p><p>BRUCH, H. Eating disorders: obesity, anorexia nervosa and the person within. Nova York:</p><p>Basic Books, 1973.</p><p>BRUSSET, B.; COUVREUR, C.; FINE, A. (orgs.) A bulimia. São Paulo: Escuta,</p><p>2003.</p><p>BUCARETCHI, H. A.; WEINBERG, C. Um breve histórico sobre os transtornos</p><p>alimentares. In: BUCARETCHI, H. A. (org.) Anorexia e bulimia nervosa: uma visão</p><p>multidisciplinar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. p. 19-26.</p><p>COBELO, A. W.; GONZAGA, A. P.; WEINBERG, C. Contribuições da</p><p>psicanálise para o tratamento dos transtornos alimentares. In: GONZAGA &</p><p>WEINBERG (orgs.) Psicanálise de transtornos alimentares. São Paulo: Primavera</p><p>Editorial, 2010. p. 167-185.</p><p>FERNANDES, M. H. Transtornos Alimentares. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006</p><p>GURFINKEL, Décio. Teatro de transferência e clínica do agir. In FUKS, Lucía</p><p>Barbero; FERRRAZ, Flávio Carvalho (orgs.) O sintoma e suas faces. São Paulo:</p><p>Escuta/Fapesp, 2006. p. 181-195.</p><p>GONZAGA, A. P.; WEINBERG, C. Psicanálise de transtornos alimentares. São Paulo:</p><p>Primavera Editorial, 2010.</p><p>HOCHGRAF, Patrícia Brunfentrinker; BRASILIANO, Sílvia. A compulsão</p><p>alimentar e outras compulsões/dependências e adições nos transtornos alimentares.</p><p>In: ALVARENGA, Marle; PHILLIPI, Sonia Tucunduva. Transtornos alimentares: uma</p><p>visão nutricional. São Paulo: Manole, 2004. p. 83-101.</p><p>KALIL, F. A compulsão alimentar e suas implicações na clínica psicanalítica. In:</p><p>GONZAGA, A. P.; WEINBERG, C. Psicanálise de transtornos alimentares. São Paulo:</p><p>Primavera Editorial, 2010. p. 167-185.</p><p>LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário de Psicanálise. São</p><p>Paulo: Martins Fontes, 2000.</p><p>NASIO, J. D. A histeria: teoria e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,</p><p>1991.</p><p>SIGAL, A. M. Escritos metapsicológicos e clínicos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.</p><p>URRIBARRI, R. (org.) Anorexia e bulimia. São Paulo: Escuta, 1999.</p><p>REVISITANDO A TÉCNICA PSICANALÍTICA NO</p><p>ATENDIMENTO A PACIENTES COM</p><p>TRANSTORNOS ALIMENTARES</p><p>Gabriela Malzyner</p><p>A psicanálise diariamente perde espaço para outras abordagens teóricas em</p><p>hospitais, escolas, consultórios particulares, etc. Recentemente, fiz uma pesquisa1</p><p>on-line em universidades do estado da Flórida (EUA) para verificar a inserção de</p><p>psicanalistas nesses meios e pude constatar que não há profissionais na academia.</p><p>Esse cenário é bastante comum a qualquer olhar atento. Podemos nos indagar</p><p>sobre o que ocorre para que a psicanálise perca tanto terreno. Se formularmos</p><p>hipóteses frente a esse panorama assustador, talvez possamos combater a perda</p><p>desses espaços sociais pelo psicanalista.</p><p>O jornalista Robert Whitaker, em entrevista recente ao El País, afirma que frente</p><p>à constatação de que pacientes esquizofrênicos evoluem melhor em países onde são</p><p>menos medicados, como Índia e Nigéria, do que em nações como os Estados</p><p>Unidos – somado ao fato de que, em 1955, havia 355 mil pessoas em hospitais com</p><p>diagnósticos psiquiátricos nos EUA e, em 2007, o número subiu para 4 milhões –, o</p><p>entrevistado afirma que algo deve estar sendo feito de forma equivocada.</p><p>Para ele, a psiquiatria moderna, para equiparar-se à medicina clássica, assumiu a</p><p>posição de diagnosticar e medicar as doenças mentais como se pudessem ser</p><p>explicadas totalmente por desequilíbrios químicos. A sociedade tende e quer</p><p>acreditar que os medicamentos podem resolver tudo, medicando de adultos</p><p>angustiados a crianças em período escolar.</p><p>Não pretendo fazer aqui uma revisão da história da psiquiatria ou até mesmo da</p><p>psicanálise.2 mas sim abrir a possibilidade de pensamento e de enfrentamento do</p><p>panorama psicanalítico atual.</p><p>Se a psiquiatria, por um lado, abandonou a psicanálise como forma de</p><p>compreender e ler os fenômenos clínicos, nós, psicanalistas, por outro, adotamos</p><p>uma posição reclusa e pouco comunicativa. A resultante não poderia ser muito</p><p>diferente do que observamos em grandes cidades: um aumento significativo de</p><p>medicações psicoativas sendo utilizadas e um decréscimo da presença de</p><p>psicanalistas em hospitais e escolas.</p><p>Acrescido ao fato de que há toda uma tendência mundial de aquietar as dores da</p><p>vida com fármacos e a de que nós, psicanalistas, falamos muito pouco para além</p><p>dos muros de nossas escolas – os guetos psicanalíticos nos conservam numa</p><p>posição de “intocáveis e incontestáveis”, aumentando assim o espaço que nos</p><p>distancia da comunidade e de outros profissionais.</p><p>O que observo, na prática clínica, é que nós, psicanalistas, temos muito a</p><p>contribuir ao tratamento e à compreensão das dores e dos amores que acometem o</p><p>humano. Mas, para tanto, temos que contar de onde falamos e o que</p><p>compreendemos acerca dos fenômenos clínicos.</p><p>Reconheço que me sinto, de alguma maneira, privilegiada. Afinal, o trabalho com</p><p>pacientes que apresentam transtornos alimentares exige esse diálogo constante e</p><p>nos obriga a encontrar uma linguagem comum aos membros de uma equipe</p><p>multidisciplinar, o que nos possibilita repensar nosso fazer diário e, então, rever</p><p>nossa forma de trabalho.</p><p>Está aí, aquilo que fundamenta e sustenta a psicanálise! Freud era um</p><p>pesquisador que não temia pensar e repensar a teoria e a clínica, para então</p><p>comunicar aos seus pares e para além das sociedades psicanalíticas seus achados.</p><p>O que pretendo neste breve capítulo é contar ao leitor o que pude aprender com</p><p>a minha prática clínica, bem como de minhas colegas da CEPPAN,3 no que se</p><p>refere à especificidade técnica dos atendimentos a pacientes com transtornos</p><p>alimentares (ou, como prefiro me referir, a pacientes que apresentam problemas na</p><p>forma como conduzem sua vida alimentar); e mostrar à comunidade como a</p><p>psicanálise é sim uma forma eficaz e importante no tratamento.</p><p>A importância dessa conversa não se restringe ao meio psicanalítico, pois, para</p><p>que possamos estar inseridos em equipes, estas têm que conhecer e dialogar com a</p><p>nossa forma de compreensão dos fenômenos psicopatológicos.</p><p>Outro paradigma</p><p>importante e de entrave entre o psicanalista e profissionais da</p><p>área da saúde é a ideia de cura. A cura em psicanálise é um conceito bastante</p><p>complexo, afasta-se da medicina na medida em que não busca a eliminação do</p><p>sintoma.</p><p>Apesar disso, a cura é um elemento central na marcha do processo analítico, e é</p><p>exatamente porque o sujeito que busca análise acredita que o analista poderá auxiliá-</p><p>lo num processo de cura, que a análise se inicia.</p><p>Esse ponto é fundamental na clínica. Vemos muitas meninas não “se</p><p>engancharem” num processo analítico, o que faz com que vislumbremos um mal</p><p>prognóstico para sua conflitiva. Nos ditos casos de transtornos alimentares, essa</p><p>não entrada em análise é comumente observada.</p><p>Fernandes (2006)4 – psicanalista e grande estudiosa dos transtornos alimentares</p><p>– afirma que para falarmos em “cura” da anorexia e da bulimia, a relação dessas</p><p>jovens com elas mesmas terá que ser transformada, mas para que isso ocorra, elas</p><p>não podem ter “cristalizado” essa forma de conduzir a vida psíquica.</p><p>Penso que isso nos remete à questão pulsional. Parece que a pulsão ao encontrar</p><p>um caminho de satisfação buscará esta forma específica até que ocorra um desvio.</p><p>A análise teria que ser capaz de promover esse corte na repetição, mas isso implica</p><p>certa abertura e flexibilidade da libido. A transferência precisa se instalar para que</p><p>isso ocorra, e aí reside uma questão relevante para esta clínica.</p><p>A primeira dificuldade que encontramos frente a moças que apresentam</p><p>problemas alimentares é a chegada aos consultórios. Temos dados que apontam</p><p>para um grande número de desistências entre o chamado à CEPPAN (contato</p><p>telefônico, via e-mail, site, etc.) e a vinda à triagem.</p><p>Os números da instituição mostram isso de forma evidente. Muitas meninas</p><p>buscam atendimento, mas uma proporção significativa delas não consegue sequer</p><p>chegar à triagem inicial. Parece faltar crença na cura… Ou poderíamos nos</p><p>questionar de que cura estamos falando aqui: afinal, muitas dessas jovens não</p><p>reconhecem questões em si mesmas.</p><p>A CEPPAN possuía como protocolo que, após a triagem inicial – realizada</p><p>sempre por duas analistas –, o caso seria passado para o grupo, e a analista que se</p><p>disponibilizasse a atender aquele caso específico deveria aguardar o contato da</p><p>paciente. Ou seja, exigíamos um duplo movimento por parte dessas garotas.</p><p>Observamos que muitas meninas se perdiam nessa passagem – da triagem até a</p><p>busca pelo analista –, então optamos por modificar a conduta. Hoje, após a triagem,</p><p>o analista designado a atender o caso entra em contato com a paciente, eliminando</p><p>assim o segundo movimento de busca.</p><p>Pensamos inicialmente que, com isso, estaríamos eliminando uma “vala”, pela</p><p>qual e elas escorriam. Talvez o que esteja ocorrendo nesse cenário seja exatamente a</p><p>falta de esperança de que haja um outro capaz de auxiliá-las, ou, até mesmo, uma</p><p>impossibilidade de ver como questão aquilo que se passa internamente.</p><p>O que estou afirmando é que, de alguma maneira, não há a ideia de cura nesse</p><p>psiquismo. Talvez porque o que falte seja exatamente pôr em questão seus atos: não</p><p>há abertura para a dúvida. Disso decorre outra hipótese: essas formas de conduta</p><p>alimentar provavelmente desempenham um papel fundamental naquela organização</p><p>psíquica.</p><p>A consequência de tal organização pode ser a morte, e, em muitos casos, é</p><p>exatamente disso que se trata.</p><p>Nasio (1999, p. 167), psicanalista francês, afirma que “os sintomas são a</p><p>expressão de uma tentativa de autocura do Eu”. E “[…]a expressão de uma batalha.</p><p>Constituem a parte visível de um combate inconsciente do Eu contra um</p><p>sofrimento inconsciente, intolerável para o Eu, e visam torná-lo mais aceitável”.</p><p>A psicanálise compreende o sintoma de uma maneira positiva; ele exprime um</p><p>movimento do Eu que busca se desvencilhar de um sofrimento insuportável.</p><p>Assim, diferentemente da concepção médica – que, em muitos momentos, visa</p><p>suprimir o sintoma –, o psicanalista serve-se dele como via indireta, a fim de</p><p>trabalhar e dissipar a dor inconsciente.</p><p>Esse ponto é crucial quando discutimos casos em equipes multidisciplinares.</p><p>Para os psiquiatras, uma jovem com transtornos alimentares tem que rapidamente</p><p>abandonar sua sintomatologia, e é dessa maneira que medem o grau de sucesso do</p><p>tratamento.</p><p>Um problema considerável com relação a esse tema está ligado à noção de que</p><p>em muitos momentos elas são incapazes de pensar em um agravamento do quadro</p><p>físico, como quando estão muito emagrecidas e desnutridas.</p><p>O embate é grande, pois vemos que, muitas vezes, as intervenções no sentido de</p><p>eliminar o sintoma de forma rápida tendem à falência do tratamento, ao mesmo</p><p>tempo em que há risco iminente de morte.</p><p>Esse é um engodo desta clínica!</p><p>Nasio (op. cit., p. 169) cita Freud e afirma: “A eliminação dos sintomas de</p><p>sofrimento não é procurada (pelo terapeuta) como objetivo particular, mas, sob a</p><p>condição de uma conduta rigorosa da análise, ela ocorre, por assim dizer, como um</p><p>benefício anexo”.</p><p>Podemos afirmar que a cura não é a meta de uma análise, mas sim uma</p><p>consequência desta.</p><p>Joyce McDougall (1997) apresenta um pensamento rico para essa discussão, ao</p><p>apontar para a problemática vivida pelo analista frente àquilo que compreende</p><p>como melhora, ou, até mesmo, cura. Afirma que, para Freud, a ideia de cura estaria</p><p>ligada à possibilidade do sujeito de amar e trabalhar, mas até mesmo essa concepção</p><p>pode ser questionada. Frente a um analisando que funciona de forma adicta em</p><p>relação ao trabalho, o analista não tem por objetivo que esse sujeito trabalhe. O</p><p>estudo da perversão aponta para formas distintas de compreender os fenômenos</p><p>psíquicos. O analista não pode ocupar o lugar de um “normopata”, que deseja</p><p>enquadrar o sujeito nos moldes do que a sociedade quer para ele.</p><p>McDougall (op. cit., p. 242) afirma ainda que, para Bion, a análise deve buscar a</p><p>“verdade” e a “realidade”, mas que até mesmo isso poderia conduzir</p><p>[…] ao perigo de impor valores de natureza moral, religiosa, estética e política. Tais</p><p>imposições atrapalhariam nosso trabalho como analistas e imporiam pressões aos</p><p>nossos pacientes no sentido de se sujeitarem ao nosso sistema de valores, em vez de</p><p>descobrirem seus próprios sistemas e de assumirem ou modificarem seus valores</p><p>em consequência disso.</p><p>A meu ver, o ponto discutido pela autora é de extrema relevância para a clínica</p><p>dos transtornos alimentares. Afinal, o analista tem que ser capaz de dialogar com</p><p>uma equipe multidisciplinar que, em muitos momentos, possui como eixo central</p><p>do tratamento a eliminação do sintoma, porém ele não pode “embarcar” junto à</p><p>equipe nessa busca. Se o fizer, corre o risco de impedir o tratamento e também de</p><p>tentar adequar o sujeito ao desejo do outro, repetindo uma dinâmica bastante</p><p>comum nas famílias dessas moças.</p><p>Seguindo o pensamento de McDougall, o único objetivo do analista é</p><p>compreender a vivência psíquica do paciente e comunicá-la, com a esperança de</p><p>que o sujeito assuma plena responsabilidade por suas escolhas e seus atos.</p><p>Nossa prática (assim como ética básica) concentra-se em ajudar cada analisando a</p><p>tornar-se consciente de suas fantasias e conflitos recalcados, com o resultado de que</p><p>conjunto de valores até então não reconhecidos, aceitos anteriormente como</p><p>verdades básicas, sejam trazidos também para a percepção consciente (p. 243).</p><p>A conduta clínica</p><p>A prática analítica clássica nos remete à mobilização do paciente, por intermédio</p><p>da associação livre, para que seja favorecido o surgimento do material reprimido</p><p>que até então se encontrava fora da consciência. Nessa perspectiva, o trabalho do</p><p>analista busca, por meio da interpretação, revelar</p><p>o arranjo simbólico desses</p><p>elementos, entrando em contato com a sua conflitiva.</p><p>É pela instauração da transferência que o analista é capaz de fazer seu trabalho,</p><p>quando o analisando o procura em seu consultório/instituição e lhe atribui um</p><p>saber sobre sua dor e esperança no alívio de seu sofrimento.</p><p>Esse é o campo predominante da intervenção analítica: a interpretação do</p><p>conteúdo manifesto como instrumento para alcançar o latente, mas essa não é a</p><p>única forma possível. José Carlos Garcia (2007, p. 27) pensa que: “[…]ao lado dessa</p><p>potencialidade do trabalho analítico podemos constatar uma outra, que diz respeito</p><p>ao potencial para simbolização de demandas pulsionais que não puderam até então</p><p>alcançar o nível do representado”.</p><p>Segundo Silvia Alonso (2011), quando o analista está diante de uma situação</p><p>clínica em que não se trata de desconstruir o sintoma construído pelo recalque, mas</p><p>sim construir psiquismo e bordas para o eu, a forma de intervenção clínica tem que</p><p>ser reavaliada.</p><p>Ainda segundo a autora:</p><p>quando se trata do “princípio do prazer” pode-se funcionar ressignificando as</p><p>marcas históricas; mas quando, de certa forma, a temporalidade foi “perdida”,</p><p>quando não há passado e tampouco projeto de futuro, é preciso que o processo</p><p>analítico funcione como um modelo de história, com base no qual se crie a</p><p>possibilidade de construir esse projeto (p. 130).</p><p>Muitas vezes, no atendimento de pacientes com transtornos alimentares, o</p><p>analista se vê compelido a trabalhar três ou quatro vezes na semana, como sugere a</p><p>técnica clássica psicanalítica. Constatamos, no acompanhamento desses casos, que</p><p>há uma urgência iminente, mas esta urgência que se apresenta não pode ser</p><p>respondida a ponto de aplacar a falta. A urgência física nos leva a oferecer nutrição,</p><p>mas em muitos momentos isso tende a ser rejeitado pela própria dinâmica presente</p><p>nessas formas de relação com o outro.</p><p>Há a ilusão de que a frequência dos encontros possa eliminar o vazio que há</p><p>entre duas pessoas. Tenta-se eliminar o vazio na análise, assim como essas meninas</p><p>tentam eliminá-lo preenchendo-o com a dor.</p><p>Não podemos oferecer excesso de alimento (sessões) a uma jovem com</p><p>anorexia, pois isso acarreta um profundo desconforto para ela, assim como</p><p>observamos que, frente a jovens bulímicas, as sessões são tomadas com voracidade,</p><p>havendo pouco espaço para o silêncio e para o vazio. Somos alimentos devorados e</p><p>expelidos com a mesma velocidade. A dinâmica que observamos na clínica se</p><p>assemelha em muitos aspectos àquelas vividas com o alimento – ora devorado, ora</p><p>devorador.</p><p>Na clínica dos transtornos alimentares, a técnica psicanalítica é fundamental, mas</p><p>a rigidez do setting pode ser em muitos momentos impeditiva ao trabalho, pela</p><p>dificuldade e precariedade na forma com que estabelecem vínculos.</p><p>McDougall propõe, por meio de um pensamento solidamente psicanalítico, que</p><p>todo sintoma estaria ligado a uma tentativa de sobrevivência psíquica; assim, o</p><p>analista ao entrar em contato com seu paciente “[…] fará um esforço consciente de</p><p>tratar com profundo respeito o precário equilíbrio sintomático construído pela</p><p>criança aflita e desamparada que existe escondida dentro de cada adulto” (op. cit., p.</p><p>259).</p><p>O analista não pode colocar-se como aquele que detém todo o conhecimento,</p><p>precisa admitir não saber tudo, abrindo espaço para um trabalho multiprofissional,</p><p>com o auxílio de nutricionistas e psiquiatras.</p><p>Cada analista tem que se colocar na relação com o paciente de forma horizontal,</p><p>evitando incursões às vezes violentas na relação contratransferencial, respeitando o</p><p>equilíbrio psíquico de cada sujeito, por mais sintomático que ele possa parecer.</p><p>Afinal, ele foi construído de forma criativa para dar conta da dor mental que existe</p><p>em cada um de nós.</p><p>A psicanálise se afasta, em muitos momentos, de outras formas de</p><p>conhecimento acerca do humano, exatamente por se opor a uma maneira</p><p>“setorizada” de compreender o sujeito.</p><p>A psicanálise é ousada! Ela ousa subverter a ordem atual e afirma que somos,</p><p>como profissionais, capazes de ouvir a dor humana em seus diferentes aspectos,</p><p>cores, credos, configurações, arranjos e rearranjos.</p><p>É exatamente na pluralidade da nossa escuta que ganhamos bagagem para nosso</p><p>trabalho clínico. Apenas porque somos afinados por anos de análise pessoal,</p><p>supervisão e estudo, é que podemos nos permitir ouvir dores e amores de tantas</p><p>vidas distintas. Mas o trabalho exige atenção.</p><p>O que proponho, então, neste trabalho, é que os psicanalistas, frente a pacientes</p><p>que apresentam condutas alimentares desarranjadas, fiquem atentos à forma com</p><p>que manejam a técnica clínica.</p><p>Assinalo alguns pontos que me parecem relevantes:</p><p>· Não devemos esperar que exista associação livre para que se inicie o processo</p><p>clínico. Ela é uma meta do trabalho e não ponto de partida.</p><p>· Por sua vez, o desejo do sujeito tem que estar presente. Tomar em análise</p><p>alguém que é incapaz de reconhecer seu sofrimento pode inviabilizar o trabalho</p><p>clínico.</p><p>· Faz-se necessário, eventualmente, apresentar recursos lúdicos e ativamente</p><p>buscar criar formas distintas para a comunicação. A interpretação clássica nem</p><p>sempre encontra espaço nessas análises.</p><p>· O uso do divã tem que ocorrer com muita cautela. Em muitos momentos, ele</p><p>pode se apresentar mais como elemento persecutório do que como possibilidade de</p><p>livre associar.</p><p>· O tempo de consulta deve ser mantido (utilizo 50 minutos em minha prática</p><p>clínica, mas não creio que o ponto nevrálgico seja 50, 45 ou 30). O importante é</p><p>que o sujeito saiba quanto tempo tem de consulta para que possa dosar o quanto</p><p>suporta do contato com o analista.</p><p>· O contrato tem que ser verbalizado de forma clara. Cada analista conduz de</p><p>acordo com aquilo que compreende como mais adequado à sua clínica, mas o que</p><p>enfatizo aqui é a importância de ser falado e mantido o acordo contratual. Isso traz</p><p>estabilidade e segurança para essas jovens. Um contrato frouxo impossibilita o</p><p>trabalho.</p><p>· A atenção flutuante do analista é fundamental. Uma escuta atenta e sensível</p><p>abre novas possibilidades de ser.</p><p>· Não devemos oferecer excesso de sessões. A angústia que nos invade ao</p><p>falarmos com uma jovem que apresenta transtorno alimentar faz com que</p><p>acreditemos que o ideal seria encontrá-la quatro vezes na semana, mas isso não é</p><p>verdadeiro. Essas moças não suportam um contato tão frequente e podem até</p><p>mesmo vir a abandonar o trabalho, caso se vejam pressionadas à proximidade.</p><p>Apesar da gravidade dos casos, oferecemos apenas aquilo que possa caber em seu</p><p>estômago e, na maioria das vezes, uma sessão semanal é suficiente e, mesmo assim,</p><p>essas moças tendem a controlar o encontro.</p><p>· O analista tem que ser capaz de dialogar com a equipe multidisciplinar</p><p>envolvida no atendimento do caso. É de extrema relevância que o analista não se</p><p>coloque num lugar onipotente na relação com essas jovens, reconhecendo a</p><p>necessidade de um trabalho em equipe.</p><p>Os pontos anteriormente citados não encerram a discussão e a possibilidade de</p><p>pensarmos sobre a técnica psicanalítica frente a clínicas tão diversas e desafiadoras,</p><p>mas auxilia o trabalho solitário de cada analista no encontro com o outro. E como</p><p>nos diz o poeta:</p><p>“Eu sei: ninguém faz ideia de quem vem lá,</p><p>De quem vem lá,</p><p>De quem vem lá,</p><p>Ninguém faz ideia de quem vem lá.</p><p>Lenine, ‘Ninguém faz ideia’”</p><p>Portanto, apesar de sabermos da especificidade desta clínica, não estamos livres</p><p>da descoberta de que cada encontro propicia a dupla que se forma. Ressalto a</p><p>importância crucial de mantermos nossa escuta aberta e atenta às dores de cada</p><p>humano que nos convoca e nos privilegia com o lugar de “suposto saber”.</p><p>Notas:</p><p>1. Disponível em: Psychoanalytic-Friendly Graduate Programs in Psychoanalysis –</p><p>http://www.apadivisions.org/divisions39/leadership/committees/grad-students-programs.aspx</p><p>2.Para aqueles que se interessam pelo assunto, recomendo o livro do querido e competente prof. Dr. Renato</p><p>Mezan, O tronco e os ramos – Estudos de história da psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.</p><p>3. CEPPAN: Clínica de Estudo e Pesquisa em psicanálise da anorexia e bulimia. A Ceppan é formada por</p><p>psicanalistas que se reúnem semanalmente, com o objetivo de estudar, pesquisar e atender pessoas que</p><p>apresentem transtornos alimentares. O grupo foi fundado em 2000. No ano de 2015, defendi meu mestrado</p><p>na PUC-SP, intitulado: Contribuições psicanalíticas ao atendimento de pacientes com transtorno alimentar: revisitando a</p><p>técnica. Neste trabalho apresento casos clínicos da Ceppan (sempre preservando a identidade do sujeito), a</p><p>fim de pensar sobre a técnica clássica da psicanálise e como atua um psicanalista frente a pacientes com</p><p>queixas de anorexia e bulimia. Trabalho junto à CEPPAN desde 2005.</p><p>4. FERNANDES, M. H. Transtornos alimentares: anorexia e bulimia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006</p><p>(coleção: Clínica psicanalítica).</p><p>Referências</p><p>ALONSO, S. L. O tempo, a escuta, o feminino. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011. p.</p><p>130.</p><p>FERNANDES, M. H. Transtornos alimentares: anorexia e bulimia. São Paulo: Casa do</p><p>Psicólogo, 2006.</p><p>GARCIA, J. C. Desafios a técnica psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. p.</p><p>27.</p><p>NASIO, J. D. Como trabalha um psicanalista? São Paulo: Jorge Zahar Editor, 1999.</p><p>MALZYNER, G. Contribuições psicanalíticas ao atendimento de pacientes com transtornos</p><p>alimentares – Revisitando a técnica. Mestrado em Psicologia Clínica, PUC – SP, 2015.</p><p>MEZAN, R. O tronco e os ramos. Estudos de história da psicanálise. São Paulo:</p><p>Companhia das Letras, 2014.</p><p>MCDOUGALL, J. As múltiplas faces de Eros. São Paulo: Martins Fontes, 1997.</p><p>Psychoanalytic-Friendly Graduate Programs in Psychoanalysis. Disponível em:</p><p>http://www.apadivisions.org/divisions39/leadership/committees/grad-students-</p><p>programs.aspx</p><p>WHITAKE, R. A Psiquiatria está em crise. Disponível em:</p><p>http://brasil.elpais.com/br…I?id_externo_rsoc=fb_CM.</p><p>ANOREXIA</p><p>A INEFICÁCIA DO BANQUETE TOTÊMICO1</p><p>Jaqueline Pinto Cardoso</p><p>“Nós não sentamos à mesa para comer –</p><p>lemos em Plutarco – mas para comer junto.”</p><p>– MONTANARI, 1998, p. 108</p><p>Ao considerarmos a anorexia como uma patologia do consumo de alimentos,</p><p>levamos em conta a existência de perturbações na ordem da oralidade, uma</p><p>tentativa de controlar a pulsão oral (MAGTAZ, 2008; MAGTAZ; BERLINCK,</p><p>2012). O que está em jogo é uma alteração na lei simbólica da comensalidade, do</p><p>comer junto, provocando “efeitos de deformação no plano imaginário, no nível do</p><p>narcisismo corpóreo, e no plano real, em uma compulsividade pulsional não</p><p>regulamentada” (COSENZA, 2013, p. 19, tradução nossa). Podemos considerar a</p><p>anorexia como uma patologia da comensalidade, na qual a lei que rege a relação do</p><p>sujeito com a comida não é eficaz, promovendo um gozo sem regulação simbólica.</p><p>Alguns historiadores (FLANDRIN; MONTANARI, 1998) que estudam a</p><p>história da alimentação nos trazem importantes revelações sobre a humanização das</p><p>condutas alimentares, afirmando que o que diferencia o humano do animal em</p><p>relação à alimentação é a comensalidade, o cerimonial e os rituais que cercam o</p><p>consumo de alimentos e que envolvem uma função social. A comensalidade</p><p>representa uma lei simbólica que regulamentava a relação do sujeito com o alimento</p><p>na cultura europeia ocidental.</p><p>Os banquetes e as festas dos povos gregos e romanos assumiam uma função</p><p>social, em que o comer e o beber junto favoreciam o fortalecimento de amizades, a</p><p>solidariedade, o reforço da relação entre senhor e vassalo e a boa convivência:</p><p>[…] o homem civilizado come não somente (e menos) por fome, para satisfazer</p><p>uma necessidade elementar do corpo, mas, também (e, sobretudo) para transformar</p><p>essa ocasião em um momento de sociabilidade, em um ato carregado de forte</p><p>conteúdo social e de grande poder de comunicação (FLANDRIN; MONTANARI,</p><p>op. cit., p. 108).</p><p>A comensalidade pode ser lida, portanto, como uma regulamentação social e</p><p>cultural que se sobrepõe à pulsão. O mito grego da deusa Deméter (PANTEL,</p><p>1998) ilustra a complexidade do sistema de leis da comensalidade dos gregos e o</p><p>fato do banquete estar submetido à lei dos deuses e aos seus assentimentos. Além</p><p>disso, participar do banquete é sinal da mortabilidade humana e de sua diferença em</p><p>relação aos deuses.</p><p>Deméter percebe que os soldados de Erisicton, o filho do rei, maltratam seus</p><p>bosques e recusam-se a se retirar da floresta. Em retaliação, provoca nele uma fome</p><p>insaciável e terrível, que o atormenta e o coloca em uma devoração sem limites,</p><p>sendo jogado nas ruas e obrigado a comer restos de comida. Desse modo, “por ter</p><p>ultrajado a deusa, Erisicton foi privado para sempre do que é a característica da</p><p>sociabilidade humana, o banquete” (PANTEL, op. cit., p. 156).</p><p>O funcionamento anoréxico em relação à alimentação pode ser pensado como</p><p>um desvio na prática do banquete, ilustrado pelo comer escondido, solitário, de</p><p>forma não compartilhada, e pela privação autoinduzida e contínua, indicando um</p><p>individualismo que é próprio da contemporaneidade. A anoréxica priva-se do</p><p>banquete enquanto função social e faz suas próprias regras, havendo, portanto, uma</p><p>falha na lei que regula a relação do sujeito com a comida. A relação da anoréxica</p><p>com a alimentação fica fora do discurso em decorrência de uma alteração ou</p><p>insuficiência na inscrição do sujeito na ordem simbólica.</p><p>Bidaud (1998, p. 10) realiza uma diferença importante entre o jejum das</p><p>anoréxicas, que ele nomeia como “jejum absoluto”, e o “jejum comunitário”, prática</p><p>comum dos rituais religiosos, afirmando que o jejum anoréxico representa uma</p><p>“subversão dessa função simbólica” da comensalidade, ao contrário do jejum</p><p>comunitário, que está incluído no registro simbólico.</p><p>A lei da comensalidade representa a lei da castração simbólica, que separa a</p><p>criança “do corpo a corpo devorador com a Mãe para reconduzi-la à universalidade</p><p>normativa da ‘mesa do Pai’”(COSENZA, op. cit., p. 22). O banquete funciona,</p><p>portanto, como uma metáfora, na qual a comida – representante da Mãe – é</p><p>substituída pelo banquete – lei paterna –, possibilitando uma experiência alimentar</p><p>pautada no simbólico e uma perda de gozo, uma vez que a pulsão torna-se</p><p>regulamentada.</p><p>A função do banquete também pode ser compreendida em Totem e Tabu (1912-</p><p>1913), em que Freud anuncia a função de identidade do ato de alimentar-se, uma</p><p>vez que os filhos se identificam ao pai ao devorá-lo.</p><p>O totemismo é considerado um sistema de certos povos primitivos, da região da</p><p>África, Austrália e América, que “tem o papel de uma religião e fornece a base da</p><p>organização social” (p. 156). Freud levanta as hipóteses de que a cultura totêmica</p><p>está na base de toda sociedade, antes de seu desenvolvimento em direção à</p><p>civilização, e que existe uma relação entre os povos primitivos e os neuróticos,</p><p>principalmente em relação aos desejos incestuosos, que formam o núcleo do</p><p>complexo da neurose, e que nos povos primitivos são tratados como ameaçadores,</p><p>exigindo medidas rigorosas de defesa.</p><p>Uma das características do totemismo é a proibição da relação sexual com</p><p>membros do mesmo totem, o horror ao incesto. O totem pode ser um animal, uma</p><p>planta ou alguma outra força da natureza, e é o que dá identidade a um grupo ou</p><p>clã, representando seu ancestral comum. Existem alguns tabus relacionados</p><p>ao</p><p>totem, como o de não matá-lo e não comê-lo. Os membros do totem são</p><p>considerados parentes sanguíneos e esses laços são mais fortes que os laços</p><p>familiares.</p><p>Outras características essenciais do totemismo são a identificação com o totem e</p><p>a ambivalência emocional em relação a ele. Freud destaca a relação entre o animal</p><p>totêmico e o pai e relaciona a gênese do totemismo com o complexo de Édipo:</p><p>Se o animal totêmico é o pai, o teor dos dois principais mandamentos do</p><p>totemismo – os dois preceitos que constituem seu núcleo, não matar o totem e não</p><p>ter relações sexuais com uma mulher do totem – coincide com o dos dois crimes de</p><p>Édipo, que matou o pai e tomou a mãe por esposa, e com os dois desejos</p><p>primordiais da criança, desejos cuja repressão insuficiente ou cujo redespertar</p><p>forma o núcleo de talvez todas as psiconeuroses (p. 203).</p><p>A refeição totêmica configurava-se como um sacrifício, no qual havia uma</p><p>oferenda de bebidas e comidas aos deuses e cada membro do clã tinha sua parte na</p><p>refeição. Freud (1912-1913, p. 216) analisa a horda primeva darwiniana,</p><p>caracterizada por “um pai violento e ciumento, que reserva todas as fêmeas para si e</p><p>expulsa os filhos quando crescem”, e anuncia uma hipótese para o fim dessa horda:</p><p>“os irmãos expulsos se juntaram, abateram e devoraram o pai, assim terminando</p><p>com a horda primeva”. A devoração do pai implica uma identificação com ele e</p><p>uma apropriação de sua força, e o banquete totêmico representaria a repetição desse</p><p>momento mítico, ao mesmo tempo criminoso e memorável, que fundou os sistemas</p><p>sociais, morais e a religião.</p><p>Com esse assassinato do pai, os filhos passam a proibir a si mesmos o que antes</p><p>era função do pai, adquirindo assim uma consciência de culpa e os dois tabus</p><p>fundamentais do totemismo: matar o totem e o incesto.</p><p>Ao tomar o canibalismo como uma expressão mítica que se refere a um</p><p>protótipo da identificação, Freud anuncia que a incorporação é o modelo oral da</p><p>identificação, e que existe uma tentativa de negar o objeto, uma vez que ele é</p><p>incorporado e destruído. As pulsões canibalistas mostram a ambivalência em</p><p>relação ao objeto de amor presente na oralidade.</p><p>O canibalismo pode ser pensado como um “gozo da unidade violenta, na perda</p><p>de qualquer limite” entre o sujeito e o objeto (FÉDIDA, 1999, p. 61). O mito</p><p>canibalista representa, portanto, uma “encenação imaginária do incesto alimentar” e</p><p>um desejo de nunca perder o outro: “Em nome de uma identidade ilusória do</p><p>mesmo, ele tem a vocação imaginária de nunca perder o outro – ou seja, aquele que</p><p>somente uma destruição por devoração poderia impedir para sempre que nos</p><p>abandone” (op. cit., p. 65).</p><p>Podemos considerar o canibalismo como “a expressão mítica de um luto</p><p>melancólico” caracterizado por um gozo de devoração do objeto de amor com o</p><p>qual se está identificado. A apropriação das qualidades do outro não funciona como</p><p>resolução da angústia de perda, mas demonstra “uma verdadeira transgressão</p><p>imaginária de uma falta…” (FÉDIDA, op. cit., p. 66-67). No lugar da renúncia do</p><p>objeto instala-se sua aniquilação e ao mesmo tempo uma angústia de ser aniquilado</p><p>pelo objeto incorporado. O canibalismo não representa, portanto, uma resolução</p><p>simbólica para a angústia de perda, mas uma satisfação imaginária de se alimentar</p><p>do objeto perdido.</p><p>Freud (1895) anunciou a relação da anorexia com a melancolia quando afirmou</p><p>que a anorexia era a neurose paralela à melancolia. Assim como na melancolia, na</p><p>anorexia o modelo identitário é a incorporação, que funciona como uma</p><p>transgressão imaginária da proibição do incesto.</p><p>Fernandes (2006) afirma que existem dificuldades no processo de identificação</p><p>primária na anorexia, que inclui a introjeção e a incorporação. A identificação</p><p>primária aprisiona-se na incorporação, que é o protótipo corporal da introjeção.</p><p>“Ora, enquanto a introjeção permitirá ao sujeito restringir a sua dependência em</p><p>relação ao objeto, a incorporação do objeto, ao contrário, cria e reforça a ligação</p><p>objetal imaginária” (p. 212). Segundo a autora, ocorre um fracasso na introjeção da</p><p>função de “paraexcitação materna”, responsável por regular as pulsões do bebê e</p><p>libidinizar seu corpo, provocando a necessidade do sujeito de incorporar o objeto,</p><p>já que o objeto interno não se constituiu de maneira eficaz.</p><p>No entanto, a autora faz uma diferenciação entre o processo de incorporação na</p><p>melancolia e na anorexia, defendendo que, enquanto na melancolia o objeto é</p><p>incorporado e fundido com o ego, na anorexia, o objeto é incorporado e fundido</p><p>com o corpo.</p><p>Traremos a seguir um recorte sobre o filme Cisne Negro (2011), do cineasta</p><p>Darren Aronosfky, e um caso clínico para ilustrar a temática da ineficácia do</p><p>banquete totêmico na anorexia.</p><p>CISNE NEGRO: o impedimento da filha de tornar-se mulher</p><p>No filme Cisne Negro, vemos um exemplo de relação entre mãe e filha na qual</p><p>existe a ineficácia do banquete totêmico, pela prevalência de uma mãe devoradora</p><p>que impede que a filha se torne mulher. Em decorrência dessa devastação, o</p><p>psiquismo da filha, a personagem Nina, se desmorona, como na cena em que se</p><p>joga do alto no espetáculo de balé em direção à morte.</p><p>A história é de uma jovem bailarina, Nina, que apresenta sintomas alimentares</p><p>importantes, como recusa em comer e vômitos autoinduzidos, e comportamentos</p><p>de automutilação. Ela vive com sua mãe, Érica, que não conseguiu sucesso como</p><p>bailarina e projeta na filha todos os seus anseios narcísicos. Érica a infantiliza, a</p><p>coloca no lugar de uma menina meiga e rodeada de objetos infantis,</p><p>impossibilitando o acesso da filha à feminilidade, o que pode representar uma</p><p>grande catástrofe (FREUD, 1931). Mesmo que cada mulher se invente a si mesma,</p><p>ela espera que a mãe acolha seus questionamentos em torno da questão sobre “o</p><p>que é ser mulher?”. “Ela quer saber qual a solução encontrada pela mãe para a sua</p><p>condição de mulher, que em sua forma mais feminina se expressa pela vontade de</p><p>despertar o desejo de um homem” (ZALCBERG, 2011, p. 2).</p><p>E esse acolhimento para as questões da identidade feminina, Nina não</p><p>encontrou em sua mãe. Esta tenta afastá-la dos homens, buscando proteger a filha</p><p>de ter um mesmo destino que ela, que engravidou e desistiu de sua carreira no balé.</p><p>Respondendo a essa demanda materna, Nina rejeita o assédio de um homem e sua</p><p>tentativa de beijá-la, mordendo-o. Mas na visão de Zalcberg, não se trata de uma</p><p>reação histérica, como na cena do beijo de Dora com o Senhor K, pois Nina não se</p><p>refere à outra mulher nem procura nela respostas para o enigma da feminilidade.</p><p>Ela não se mistura com as outras bailarinas, não há um espaço dela no mundo</p><p>feminino.</p><p>O investimento devoto no balé tem um duplo sentido na vida de Nina:</p><p>representa, por um lado, seu aprisionamento na fantasia materna, mas, por outro, é</p><p>no palco onde consegue experienciar um sentido para sua existência, levando seu</p><p>corpo até o limite da exaustão e dor. (ZALCBERG, op. cit.). O que está em jogo não</p><p>é simplesmente buscar a perfeição no balé, mas tentar manter a integridade de seu</p><p>corpo, que pode a qualquer momento se extinguir e desaparecer, pela ameaça do</p><p>corpo devorador da mãe. Nesse sentido, o balé dá consistência ao seu ser, e não está</p><p>na ordem do fazer.</p><p>Nina é convidada a encenar no espetáculo do balé duas figuras distintas: o cisne</p><p>branco, representante da delicadeza, da infância, da pureza, como uma sweet girl</p><p>(menina meiga), e o cisne negro, figura da sensualidade e sexualidade feminina. O</p><p>diretor do balé, Thomas, a convoca a pôr em cena esse lado mulher, o que tem</p><p>efeitos catastróficos para Nina. Esta encontra em outra bailarina, Lily,</p><p>álcool, drogas e sexo. Pode-se pensar que a crescente</p><p>valorização das atividades físicas na vida de Maria, bem como seu comportamento</p><p>de colocar-se em risco, tenham relação com um movimento de afastamento dos</p><p>excessos que ressurgem de outro modo? Podemos entender esse acontecimento</p><p>como uma atuação que se dá como um procedimento autocalmante?</p><p>Os procedimentos autocalmantes são comportamentos estudados pelos autores da</p><p>Escola de Psicossomática de Paris, nos quais a atividade motora torna-se necessária</p><p>para efeito de uma descarga pulsional que se encontra impossibilitada de escoar de</p><p>outra forma. Eles são encontrados na necessidade, por parte de alguns pacientes, de</p><p>realizar uma atividade repetitiva. Isso pode acontecer por meio dos esportes, muito</p><p>comum nas caminhadas, mas também pode estar presente ao se tocar um</p><p>instrumento ou na atividade da dança, quando segue determinadas características.</p><p>Cria-se um círculo vicioso em que a necessidade urgente de reduzir o nível de</p><p>excitação acaba, de certa maneira, promovendo ações que a incrementam, e os</p><p>procedimentos autocalmantes assemelham-se às condutas aditivas (VOLICH,</p><p>2010).</p><p>A prática esportiva e os comportamentos de risco fizeram-se mais presentes em</p><p>sua vida e pareceram representar uma nova forma encontrada por Maria na busca</p><p>de equilíbrio e de prazer. Foi mais um passo no processo de quebra dos elementos</p><p>psíquicos dissociados, embora ainda não integrados completamente em sua vida</p><p>psíquica, pois os procedimentos autocalmantes são atividades que ficam apartadas</p><p>da vida subjetiva e da fantasia. Uma distinção importante a ser feita para a</p><p>compreensão dos procedimentos autocalmantes é que eles representam uma ação</p><p>estritamente calmante, que remete às experiências da relação com uma mãe que, ao</p><p>embalar seu bebê, não consegue transmitir afeto, não erotiza.</p><p>Entendemos que o acidente de Maria foi um modo de viver uma experiência de</p><p>quebra da casca do ovo narcísico, da onipotência, calcada no corpo e na realidade.</p><p>Lembremos que as condutas de risco podem ser entendidas como uma busca mais</p><p>ou menos desesperada de tomar posse de si mesmo, de engendrar-se, recriar-se,</p><p>renascer após a aproximação com a morte. Algo como uma busca pela vida e pela</p><p>autonomia psíquica. Um dos modos de se apropriar do corpo é pela “possibilidade</p><p>de se machucar, como na anorexia, na bulimia, nas automutilações, indo até a</p><p>tentativa de suicídio, de autoagressão, a qual, nesses casos, mais do que a vontade de</p><p>morrer, exprime, na maior parte das vezes, um desejo prometeico de se reapropriar</p><p>do seu destino” (JEAMMET, 2005, p. 140).</p><p>Ao analisar uma paciente que apresentava hiperatividade de marcha, Brusset</p><p>(1990, p. 155) diz: “Na bulimia, por exemplo, uma conduta atuada e repetida</p><p>aparece como formação substitutiva na busca perdida do prazer e do gozo que não</p><p>pode ser encontrado por outras vias”, tornando-se uma toxicomania sem droga. A</p><p>hiperatividade, ele continua, é vivida com entusiasmo, e o sujeito usa várias</p><p>racionalizações para justificar seu uso; no entanto, funciona dentro de uma lógica de</p><p>coação ou de um conjunto de coações. Algumas vezes, ela surge na passagem da</p><p>anorexia para a bulimia e cumpre importante função de neorregulação do</p><p>funcionamento psíquico.2</p><p>Esse autor enfatiza o quanto, apesar do automatismo, uma conduta aditiva de</p><p>marcha pode, por intermédio da análise, alimentar a elaboração psíquica levando a</p><p>uma redução da clivagem. Desse modo, ele apresenta uma dimensão positiva de</p><p>ligadura, de objetalização. “Existe no atuar a dimensão de uma evitação, de uma</p><p>evasão, mas também de uma substituição: do ponto de vista dinâmico, uma</p><p>modalidade diferente do funcionamento psíquico põe em ação outras defesas e</p><p>outros gozos […], tem um efeito de ruptura […]” (BRUSSET, 1990, p. 165-166).</p><p>Retoma a ideia de quão poderosas são a ação e a sensação corporal em termos de</p><p>ativação fantasmática.</p><p>No caso de Maria, o uso desse tipo de atividade se fez presente em outra</p><p>passagem, que foi a do abandono das condutas aditivas. Concordamos com Brusset</p><p>que, embora seja uma conduta de atuação, pode promover um movimento de</p><p>erotização importante. Maria foi morar em uma casa que não era nem a do avô</p><p>alcoolista nem a dela com o ex-marido a exibir seu status econômico. Foi buscar</p><p>uma vida mais simples, com um vínculo que expressava mais autenticidade e laço</p><p>afetivo. O esporte no qual se envolveu está relacionado com o novo vínculo e o</p><p>prazer do contato com a natureza.</p><p>Após o acidente, Maria pôde viver momentos de maior depressividade3 na análise,</p><p>nos quais suportava mais o contato com seu mundo interno. O tema do cuidado se</p><p>pôs em relevo. Em certa sessão, cita um filme que trata da relação mãe/filha, no</p><p>qual a personagem é fotógrafa de guerra: nele aparece todo o conflito da filha ao</p><p>ver que a mãe não consegue se afastar do perigo.4 Associa com o que está vivendo</p><p>em seus impulsos de se arriscar e com a relação de cuidado mãe-filha que, neste</p><p>caso, se dá invertida. É a filha que tem de cuidar da mãe. Na sequência, fala do</p><p>temor com relação aos riscos que seu bichinho de estimação corre quando este sai</p><p>de casa à noite, tal como o irmão saía, envolvendo-se em perigo, o que aterrorizava</p><p>os pais. Maria acompanhava a cena assustada e sem lugar na atenção deles – ela é</p><p>que se preocupava com eles. O que aqui emerge é a preocupação com o outro,</p><p>assim como preocupação e cuidado consigo mesma. É o ponto de ligação do seu</p><p>retorno para a análise: pela percepção da preocupação da analista com ela.</p><p>Com o caso de Maria, pudemos pensar e acompanhar as ricas possibilidades de</p><p>desdobramentos dos sintomas, e como estes vão ganhando sentido em cada</p><p>contexto em que são vividos. Maria, com seu jeito que lembra o “bêbado e o</p><p>equilibrista”, vem nos ensinar a sermos os dois, a compreender na carne do corpo a</p><p>importância do risco em que consiste o viver.</p><p>Notas:</p><p>1. Sobre o tema dos transbordamentos das pulsões e das relações entre genitalidade e oralidade na sexualidade</p><p>feminina, com referência aos deslocamentos dos “prazeres da cama” aos “prazeres da mesa”, remetemos o</p><p>leitor a A. Gurfinkel (2001).</p><p>2. Sobre o tema dos transtornos alimentares em suas relações com a hiperatividade, indicamos o interessante</p><p>texto de C. Weinberg e M. Berlinck (2010), que compreende este aspecto, relacionando-o com a defesa</p><p>maníaca e com a repressão da sexualidade.</p><p>3. Sobre o conceito de depressividade, ver A. Gurfinkel (2010).</p><p>4.Mil vezes boa noite, Noruega, Irlanda e Suécia, 2014, direção de Erik Poppe</p><p>Referências</p><p>BRUSSET, B. La adicción anoréxica a la marcha y el trabajo psicoanalitico. Revista de</p><p>Psicoanalises de Niños y adolescentes, (10):152-169, 1990.</p><p>DEJOURS, C. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2007.</p><p>FERNANDES, M. H. Transtornos alimentares: anorexia e bulimia. São Paulo: Casa do</p><p>Psicólogo, 2006.</p><p>FUKS, M. P. O sintoma na bulimia: psicopatologia e clínica. In: FUKS, L.;</p><p>FERRAZ, F. M. (orgs.) O sintoma e suas faces. São Paulo: Escuta/Fapesp, 2006.</p><p>GURFINKEL, A. E. C. Sexualidade feminina e oralidade: comer e ser comida.</p><p>Percurso, (26):69-78, 2001.</p><p>GURFINKEL, A. C. Depressividade e manejo clínico no tratamento das</p><p>problemáticas alimentares. In: WEINBERG, C. & GONZAGA, A. P. (orgs.)</p><p>Psicanálise de transtornos alimentares. São Paulo: Primavera Editorial, 2010.</p><p>JEAMMET, P. Adolescência: o espelho da sociedade. Ide. (41) 138-143, jul., 2005.</p><p>JEAMMET, P. Abordagem psicanalítica dos transtornos das condutas alimentares.</p><p>In: URRIBARRI, R. (org.) Anorexia e bulimia. São Paulo: Escuta, 1999.</p><p>SOARES, A. M.; RUA, C. R.; VOLICH, R. M.; LABAKI, M. E. Apresentação. In:</p><p>SOARES, A. M.; RUA</p><p>a imagem de</p><p>uma mulher que desperta o desejo do homem e que se “solta” nessa dança do</p><p>universo feminino, vivendo sua sexualidade.</p><p>Começa, então, um processo de fascinação por esse “corpo erótico de mulher”,</p><p>em uma tentativa de alcançar respostas para o enigma da feminilidade, seguido de</p><p>uma persecutoriedade, pois, em sua fantasia, Lily quer ocupar seu lugar,</p><p>desencadeando assim um “delírio de perseguição e consequente perda de</p><p>identidade” (ZALCBERG, op. cit., p. 3). Em muitas cenas em que se olha no</p><p>espelho, Nina vê um rosto deformado, meio demoníaco, e tem um delírio de que</p><p>algo cresce em suas costas, como espinhos, o que mais tarde ela perceberá como a</p><p>asa do cisne negro.</p><p>O filme vai mostrando uma transformação de Nina, que vai deixando de ser o</p><p>cisne branco, vai se livrando de todos os objetos infantis e barrando o acesso de sua</p><p>mãe ao seu quarto, manifestando violentamente uma tentativa de se separar dela.</p><p>Ao perguntar para a filha “Onde está minha menina meiga?”, Nina responde: “Ela</p><p>se foi”. “Mas não há alguém para substituí-la. De menina para… nada”</p><p>(ZALCBERG, op. cit., p. 4).</p><p>Nesse processo de deixar de ser menina, Nina se solta e se perde, pois não</p><p>contou com elementos simbólicos e imaginários essenciais para a construção do</p><p>tornar-se mulher, perdendo-se no real do gozo. “O que se solta em Nina é essa</p><p>amarração entre os três níveis de estruturação psíquica, deixando-a entregue ao</p><p>imperativo do excesso do gozo e do domínio das pulsões – o que seus atos de</p><p>mutilação de seu corpo já prenunciavam” (ZALCBERG, op. cit., p. 4).</p><p>Na cena final do espetáculo Cisne Negro, Nina dá um salto sem sustentação, que a</p><p>leva rumo ao abismo de um gozo mortífero e à perda de sua existência.</p><p>Caso clínico: A recusa do banquete como um signo de amor</p><p>O tema do “amor” será trabalhado na discussão do caso e relacionado com duas</p><p>questões que se articulam entre si: a recusa do amor materno e do amor ao saber</p><p>inconsciente. O amor tem um significado particular neste caso e aparece</p><p>relacionado ao significante “recusa”.</p><p>Uma paciente adulta, diagnosticada com anorexia nervosa, é encaminhada para</p><p>análise por sua psiquiatra. Seus sintomas atuais são: medo de engordar, restrições</p><p>alimentares, episódios de vômitos e depressão. Ela toma antidepressivo e remédio</p><p>para dormir. A forma como a psiquiatra a descreve para o analista é “sem vida e</p><p>sem força, um estado quase demencial”.</p><p>O início dos sintomas alimentares se deu na adolescência, logo após a morte da</p><p>mãe, que foi interpretada por ela como um “suicídio”, pois ela tinha uma doença</p><p>incurável e decidiu tomar um remédio para morrer. Isto foi vivenciado pela paciente</p><p>como: “minha mãe desistiu da gente”.</p><p>Uma frase da mãe, um pouco antes de morrer, marca o início dos sintomas</p><p>alimentares: “não queira engolir o mundo”, referindo-se a um excesso libidinal da</p><p>filha, representado pela ansiedade de querer fazer tudo ao mesmo tempo. A partir</p><p>daí, dois momentos se sucedem indo do excesso para a privação: primeiramente,</p><p>desenvolve uma compulsão alimentar e abuso de drogas, numa tentativa de elaborar</p><p>a perda do objeto amado pela oralidade, ilustrado pela seguinte fala: “comia demais,</p><p>como a minha mãe”. Em seguida, passa a não comer, dando início à anorexia.</p><p>Podemos perceber nesses comportamentos de compulsão alimentar e de abuso</p><p>de drogas da paciente uma identificação oral e melancólica, como nos apontou</p><p>Freud (1921), como uma tentativa de incorporar o objeto materno, não no sentido</p><p>de uma elaboração da perda, mas de negação.</p><p>Segundo Fédida (1999, p. 65), o mito canibal representa de maneira imaginária o</p><p>incesto alimentar:</p><p>A análise poderá facilmente encontrar aí expressões fantasmáticas verbalizadas, mas,</p><p>com mais certeza, comportamentos corporais (bulimia, anorexia) e processos</p><p>somáticos que envolvem o canibalismo segundo um funcionamento da conservação</p><p>paradoxal da autoconsumação ou da autodevoração. O paciente coloca em marcha</p><p>seu desejo – muitas vezes desenfreado – de viver tudo o que se encontra sob o</p><p>poder da pulsão de morte. A revelação dos conteúdos inconscientes de tais</p><p>“comportamentos” faz precisamente aparecer a angústia canibal de ser aniquilado</p><p>pela fascinação exercida pelo objeto.</p><p>O que está em jogo nesse processo de devoração, segundo o autor, é a ilusão</p><p>imaginária de não perder o outro, já que ocorre uma apropriação de suas</p><p>características e, por isso, a qualificação de incesto alimentar, pois a falta é</p><p>transgredida.</p><p>A primeira relação de objeto da paciente ficou marcada pelo desamor: uma mãe</p><p>“pública”, muito ocupada e distante, desligada do corpo da filha. Não contou para a</p><p>mãe quando menstruou, porque ficou com medo dela se distanciar ainda mais pelo</p><p>fato de não ser mais criança. Um cuidado materno, portanto, que se limitava à</p><p>ordem da necessidade.</p><p>Após o diagnóstico da doença, a mãe tenta resgatar um vínculo de intimidade</p><p>por intermédio do que a paciente nomeia como “banquetes”: reunia a família</p><p>através de refeições “exageradas”, das quais a paciente se privava. Pegava o</p><p>pãozinho e saía da mesa, não participava do banquete, que representava um</p><p>momento em que a família se reunia e compartilhava o alimento e as palavras. Ela</p><p>se privou dessa intimidade, que, para ela, foi abrupta, pelo fato dessa transformação</p><p>repentina de uma mãe ausente para uma mãe muito presente. Revela sentimentos</p><p>confusos em relação ao banquete exagerado, associando ao fato de a mãe querer</p><p>compensar sua ausência anterior. A oferta do amor materno e a despedida centram-</p><p>se no objeto comida. A paciente revela uma atitude de recusa em dar o prazer para</p><p>o outro e não permite a reparação da mãe.</p><p>A recusa localiza-se na via do amor, uma vez que a paciente, por meio de sua</p><p>recusa em participar do banquete familiar, se recusava a se reconciliar com sua mãe,</p><p>a satisfazê-la aceitando seu amor “tardio”. O historiador da alimentação Montanari</p><p>(1998) enfatiza a função social do banquete, que representa entre outras coisas a</p><p>identidade grupal, seja entre a família ou entre os cidadãos de um determinado</p><p>lugar. Nessa mesma direção, Gerd Althoff (1988, p. 300) diz que o comer junto</p><p>representa também “um ato de conciliação”, um símbolo da expressão de</p><p>compromisso das relações de boa convivência.</p><p>A temática de não poder satisfazer o outro nem a si mesma aparece também na</p><p>impossibilidade de ter relações sexuais, não havendo questionamentos de sua falta</p><p>de desejo. A proibição do prazer encontra-se na ordem do sexual e da oralidade.</p><p>A transferência do caso fica marcada por três pontos: 1) a recusa do sujeito pela</p><p>experiência da palavra; 2) a articulação do sofrimento por meio do saber médico; e</p><p>3) um jogo a dois, ela e a psiquiatra, do qual o analista está fora, desinvestido. O</p><p>primeiro ponto pode ser pensado pela dificuldade para pensar e falar nas sessões.</p><p>Tanto o sono incontrolável que a tomava intensamente, deixando-a lentificada e</p><p>ausente, quanto as faltas recorrentes a tiravam da experiência pela palavra. Ficar sem</p><p>falar é uma prática comum para a paciente. Na época do falecimento de sua mãe, os</p><p>familiares quase não se falavam e pareciam “estranhos morando na mesma casa”.</p><p>No lugar da ausência da mãe fica o silêncio. Parece haver um gozo da ausência da</p><p>palavra que se articula com o gozo da fome e do objeto nada. A anorexia, como nos</p><p>apontou Lacan (1957), não significa não comer nada, e sim comer nada – o nada</p><p>representando um objeto no plano simbólico.</p><p>O segundo ponto da transferência é a articulação do sofrimento por meio do</p><p>discurso médico, das explicações que recebe em seu tratamento psiquiátrico, não</p><p>formulando questões próprias nem construindo uma versão sobre si mesma. A</p><p>direção</p><p>da análise aponta para uma questão preliminar: assumir um discurso</p><p>próprio, separando-se do discurso da psiquiatra, já que o amor ao saber parece estar</p><p>ausente nesse sujeito, não há uma busca de saber sobre seu sofrimento, mas uma</p><p>colagem nas explicações médicas. Ela repete a fala do outro sobre ela, não dando</p><p>espaço para a singularidade de sua própria questão. Apresenta como narrativa de si</p><p>um saber teórico: “a anoréxica não consegue comer por ter dificuldade de lidar com</p><p>suas angústias”.</p><p>O terceiro ponto da transferência é o jogo a dois, entre a paciente e sua</p><p>psiquiatra, no qual o analista está desinvestido. Havia sempre uma fala de que ela</p><p>não sabia se gostaria de continuar em análise, pois “já estava com a psiquiatra”. O</p><p>desinvestimento também pode ser visto na falta de pagamento das sessões, nas</p><p>faltas contínuas e numa espécie de desligamento, parecendo estar sempre distante,</p><p>em outro lugar. Esse lugar do desinvestido é ocupado também pelo marido, que</p><p>está a mais na relação entre ela e as filhas: “Queria ficar sossegada com minhas</p><p>filhas, sem homem nenhum”. Fica claro sua impossibilidade de estar a três.</p><p>A relação com as filhas se dá pela via da necessidade, ocupando o lugar de uma</p><p>mãe que cuida, mas não se sente envolvida. Ela descreve uma experiência de</p><p>estranhamento tanto em relação às suas filhas, como se não fossem dela, tanto em</p><p>relação ao próprio corpo, como se não fosse seu.</p><p>Uma construção feita após um percurso em análise revela algo particular</p><p>relacionado à anorexia, que se relaciona à impossibilidade de aceder ao amor</p><p>edípico, começando a trilhar um caminho de construção de seu próprio saber, para</p><p>tentar descolar da doença. Quando se refere a querer ficar magra para ter corpo de</p><p>criança e ser olhada pela mãe, diz: “Queria ficar magra pra não chamar atenção dos</p><p>homens, uma questão de praticidade, pra caber em qualquer buraquinho”.</p><p>Bidaud (1998, p. 79-80) ilustra por meio do mito de Deméter e Perséfone como</p><p>o jejum pode representar uma forma de manter a relação exclusiva mãe-filha e não</p><p>aceder ao amor edipiano. Perséfone é filha de Zeus e Deméter, cujo nome significa</p><p>“Terra-mãe”. Esse mito aborda a perda da filha Perséfone pela mãe e uma relação</p><p>de paixão entre ambas. Zeus acedeu sua filha ao deus dos mortos, Hades, sem</p><p>consultar Deméter, que não teria concordado. Quando chegou junto com Hades</p><p>em seu reino, Perséfone chamou pela mãe, mas não foi ouvida e passou a se recusar</p><p>a comer. Deméter foi em busca da filha e, inconsolada com a separação, “assolou a</p><p>terra com a seca e a fome”. Zeus, temendo a destruição da humanidade, pede o</p><p>retorno de Deméter, que só voltaria se a filha retornasse para ela. Então, Zeus</p><p>propõe uma condição: “Perséfone deveria não ter comido nada durante sua</p><p>permanência no inferno, pois quem quer que comesse ou bebesse enquanto</p><p>estivesse no reino de Hades ficava prisioneiro deste último para sempre”. No</p><p>entanto, Perséfone confessa que comeu algumas sementes de romã e, por isso, Zeus</p><p>decide que ela ficaria com a mãe somente enquanto as sementes crescessem para</p><p>depois voltar para seu marido.</p><p>Esse mito esclarece a simbologia implícita no ato de comer como um “acesso ao</p><p>desejo do homem” (Bidaud, op. cit., p. 81) e a separação na relação mãe e filha,</p><p>marcando uma passagem em direção à feminilidade. Como já explicitado, a lei da</p><p>comensalidade pode ser lida como uma lei da castração simbólica, que possibilita</p><p>uma separação da criança em relação à mãe devoradora, como nos apontou Lacan</p><p>(1969-1970, p. 105), quando compara a mãe com um crocodilo com a boca aberta.</p><p>O papel da mãe é o desejo da mãe. Digo-lhes coisas simples, estou improvisando,</p><p>devo dizer, há um rolo, de pedra, é claro, que lá está em potência, no nível da</p><p>bocarra, e isso retém, isso emperra. É o que se chama falo. É um grande crocodilo</p><p>em cuja boca vocês estão. A mãe é isso.</p><p>A lei da comensalidade permite orientar a criança para a mesa do pai ou ao</p><p>banquete, que representa uma experiência alimentar sustentada pelo simbólico e</p><p>pela regulação do gozo. E é justamente a essa mesa do pai que a paciente direciona</p><p>sua recusa.</p><p>Nota:</p><p>1. Este capítulo é parte da dissertação de mestrado da autora, defendida em julho de 2016, sob a orientação do</p><p>prof. Dr. Christian Ingo Lenz Dunker, realizada no IPUSP.</p><p>Referências</p><p>ALTHOFF, G. Comer compromete: refeições, banquetes e festas. In: História da</p><p>alimentação. Direção de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari. São Paulo:</p><p>Estação Liberdade, 1998.</p><p>BIDAUD, E. Anorexia mental, ascese mística: uma abordagem psicanalítica. Rio de Janeiro:</p><p>Companhia de Freud, 1998.</p><p>COSENZA, D. Anorexia-bulimia, patología de la comensalidad. Psicoanálisis</p><p>aplicado y discurso alimentario. In: La comida y el inconsciente: psicoanálisis y transtornos</p><p>alimentarios. 1. ed. Buenos Aires: Tres Haches, 2013.</p><p>FÉDIDA, P. O canibal melancólico. In: Depressão. Tradução Martha Gambini. São</p><p>Paulo: Escuta, 1999.</p><p>FERNANDES, M. H. Transtornos alimentares: anorexia e bulimia. São Paulo: Casa do</p><p>Psicólogo, 2006.</p><p>FLANDRIN, J.-L.; MONTANARI, M. História da alimentação. São Paulo: Estação</p><p>Liberdade, 1998.</p><p>FREUD, S. [1895] Rascunho G. Melancolia. In: Obras completas de Sigmund Freud. v. 1.</p><p>Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 1.</p><p>______. [1912-1913]. Totem e Tabu. In: Obras completas, volume 11: totem e tabu,</p><p>contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). Tradução e</p><p>notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.</p><p>______. [1921]. Psicologia das massas e análise do Eu. In: Psicologia das massas e</p><p>análise do eu e outros textos (1920-1923). Tradução e notas Paulo César de Souza. São</p><p>Paulo: Companhia das Letras, 2011.</p><p>______. [1931]. Sobre a sexualidade feminina. In: O mal-estar na civilização, novas</p><p>conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Tradução e notas Paulo</p><p>César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.</p><p>LACAN, J. [1956-57]. O Seminário, livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge</p><p>Zahar Editor, 1995.</p><p>______. [1969-70]. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge</p><p>Zahar Editor, 1992.</p><p>MAGTAZ, A. C. Distúrbios da oralidade na melancolia. Tese de doutorado em</p><p>Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.</p><p>Disponível em: <http://livros01.livrosgratis.com.br/cp056080.pdf>. Acesso em:</p><p>16 jun. 2014.</p><p>MAGTAZ, A. C.; BERLINCK, M. T. Orality Disorders in Melancholia: Acedia as</p><p>Stagnation. São Paulo, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., 15(3):683-703, setembro 2012</p><p>(Suplemento). Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1415-</p><p>47142012000500005&script=sci_arttext>. Acesso em: 22 nov. 2014.</p><p>MONTANARI, M. Sistemas alimentares e modelos de civilização. In: História da</p><p>alimentação. Direção de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari. São Paulo:</p><p>Estação Liberdade, 1998.</p><p>PANTEL, P. S. As refeições gregas, um ritual cívico. In: História da alimentação.</p><p>Direção de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari. São Paulo: Estação</p><p>Liberdade, 1998.</p><p>ZALCBERG, M. Cisne negro: perdendo-se na perfeição. Opção Lacaniana online.</p><p>Nova série, Ano 2, Número 4, Março 2011.</p><p>QUE CONVERSA É ESSA?</p><p>Sobre o lugar das palavras e do corpo no diálogo</p><p>analítico</p><p>Marina Fibe De Cicco</p><p>Atender pacientes com transtornos alimentares evidencia a necessidade de a</p><p>escuta analítica ser estendida para modos de expressão diferentes da linguagem</p><p>verbal. Quem acompanha esses casos não pode escapar à questão: Que lugar têm o</p><p>corpo e a sua expressividade – grandes e pequenos gestos, ações, somatizações, tom</p><p>de voz, postura corporal – na cadeia associativa?</p><p>Trabalhar com adolescentes e</p><p>adultos com diagnósticos de anorexia e bulimia</p><p>nos obriga, portanto, a repensar a noção de associatividade na clínica psicanalítica.</p><p>Roussillon, psicanalista francês cujas ideias norteiam este texto, defende que a</p><p>psicanálise recupere a possibilidade de ver no corpo e no que é da ordem do agir</p><p>mais organização e sentido do que lhes tem sido atribuído. Concordo com o autor</p><p>sobre ser necessária uma mudança paradigmática para analisar estruturas que não</p><p>eram tradicionais na clínica psicanalítica clássica, como as formas variadas de</p><p>transtornos alimentares, casos-limite e adições, que, para Roussillon, são diferentes</p><p>expressões de problemáticas narcísico-identitárias. Como o período decisivo de</p><p>configuração desses quadros é anterior ao da aquisição da linguagem verbal, que</p><p>acontece em torno dos dois anos, seria preciso capacitar os analistas a detectar, na</p><p>transferência, restos ou sinais de experiências que teriam ocorrido antes da aparição</p><p>da linguagem verbal (ROUSSILLON, 2008a; 2012b).</p><p>Utilizando as palavras do autor, diríamos que em análise o diálogo se estabelece</p><p>simultaneamente em dois níveis: “de um lado ele se estabelece em nível verbal, que</p><p>possui sua coerência própria, mas de outro lado se desenvolve um diálogo mimo-</p><p>gesto-postural que também tem sua ‘lógica’ própria e não necessariamente dada ao</p><p>diálogo verbal” (Roussillon, 2005, p. 375, tradução livre). Ao investigar as</p><p>peculiaridades dessas duas formas de diálogo, pretendo explorar alternativas à</p><p>técnica clássica no trabalho com pacientes com transtornos alimentares.</p><p>Para tanto, ressaltarei, por um lado, a importância de o analista tentar comunicar</p><p>verbalmente ao analisando o que as mensagens veiculadas por ele via corpo e ação</p><p>buscam expressar. Afinal, não se deve perder de vista a necessidade de devolver ao</p><p>paciente, por meio da verbalização, o segmento de sua história que reconstruímos a</p><p>partir do que muitas vezes são apenas fragmentos sensíveis disparatados (PARAT,</p><p>1991, apud FONTES, 2010, p. 30-31). Nesse contexto, surgem as seguintes</p><p>indagações: Como se comunicar verbalmente com o paciente, se a forma de</p><p>comunicação mais acessível a ele não passa pelos canais verbais? Ainda se trata de</p><p>interpretação? Se sim, que interpretação é essa? Ela deve ser ampliada além dos</p><p>limites da integração do reprimido?</p><p>Além de pensar sobre como a comunicação verbal pode ser significativa para</p><p>esses pacientes, proporei que na clínica atual é imprescindível incluir o corpo do</p><p>analista na conversa. Mais que isso: é preciso pensar em termos do corpo interpretante,</p><p>pois as ações, os gestos e tom de voz do analista talvez sejam o que lhe permite</p><p>responder ao analisando no registro procurado por ele, que nem sempre é o da</p><p>linguagem verbal.</p><p>As mensagens do corpo</p><p>Zygouris (2011, p. 13) afirma que às vezes são necessários anos de preparação</p><p>para que um paciente possa realizar o que seria uma “análise clássica”, e sugere que</p><p>no período preparatório ocorreria uma análise “atípica”, na qual “as expressões</p><p>discursivas não figuram em primeiro plano”.</p><p>Em 2010, escrevi sobre Laura, paciente bulímica adulta com quem sempre</p><p>mantive o face a face e cuja linguagem corporal, gestos, coceiras, agitação,</p><p>velocidade da fala e tom de voz costumavam chamar tanto ou mais minha atenção</p><p>do que o conteúdo do que ela dizia. Após minhas falas, ela costumava mexer no</p><p>celular, na bolsa, limpava o nariz, se olhava no espelho, e, em certa sessão, chegou a</p><p>ter coceiras incontroláveis após um comentário meu. A atividade corporal parecia</p><p>ser a forma de expressar um grande mal-estar, para o qual ela não tinha palavras.</p><p>Outra paciente, adolescente, veio para análise por estar restringindo seriamente a</p><p>alimentação – perdera 15 quilos em 6 meses. Falava muito pouco, quase nunca</p><p>trazia conteúdos espontaneamente, mas se comunicou todo o tempo por vias não</p><p>verbais. Ela chorava e, em etapa posterior da análise, desenhava, mas nada dizia. Seu</p><p>corpo e sua aparência, porém, falavam: tinha um corte de cabelo exótico que ela</p><p>mesma fazia, usava invariavelmente uma maquiagem carregada e peculiar, além de</p><p>acessórios e penduricalhos que chamavam muita atenção e podiam deformar o</p><p>corpo. As roupas eram bastante originais mas monocromáticas, todas no mesmo</p><p>tom escuro. As cenas compostas a partir de sua aparência, corpo, lágrimas,</p><p>desenhos e silêncios tinham lugar privilegiado na análise, servindo como meio de</p><p>expressão do que a paciente não podia dizer.</p><p>Acredito não ser possível compreender minhas pacientes sem tomar as</p><p>manifestações em ato e no corpo como parte da cadeia associativa, resíduos de uma</p><p>relação em que ainda não se dispunha da linguagem verbal como meio de</p><p>comunicação. As experiências subjetivas do início da vida só adquirem valor de</p><p>mensagem quando a resposta do ambiente as reconhece como tal; a partir daí, as</p><p>expressões, os gestos, movimentos e gritos variados do bebê são definidos como</p><p>mensagem significante. Se não for assim, se não houver um outro disposto e apto a</p><p>ler o esboço de sentido embutido no comportamento do bebê, este sentido</p><p>degenera, “perde seu valor protosimbólico potencial, é ameaçado de não ser mais</p><p>que evacuação insignificante, é anulado em seu valor expressivo e proto-narrativo”</p><p>(ROUSSILLON, 2008a, p. 29, tradução livre).</p><p>A hipótese clínica é que a sintomatologia das problemáticas narcísico-identitárias</p><p>– entre elas, os transtornos alimentares – manifesta, em ação ou no corpo, as</p><p>tentativas frustradas de comunicação. O não reconhecimento e a não qualificação</p><p>das comunicações corporais e afetivas da criança constituem ataques narcísicos</p><p>repetidos que fragilizam globalmente o ego do indivíduo, e as mensagens</p><p>degeneradas vão se manifestar nos quadros psicopatológicos da criança, do</p><p>adolescente ou do adulto.</p><p>As experiências subjetivas primitivas fariam sua aparição, na clínica, não via</p><p>conteúdos verbais, mas sob a forma mesma de seu primeiro registro, constituindo o que</p><p>Roussillon chama de comunicação mimo-gesto-postural. Por não se utilizarem do verbo,</p><p>parte do seu sentido é sempre inacabada, e o significado que podem adquirir</p><p>depende da interpretação feita pelo outro-sujeito a quem se dirige. Estando sujeitas</p><p>à interpretação, sua comunicação, seu compartilhamento e reconhecimento</p><p>suscitam dificuldades, pois quanto mais a linguagem se afasta da representação</p><p>verbal e se aproxima de formas pré-verbais (gesto, imagem, movimento), mais seu</p><p>sentido é aberto, e mais intimamente depende do outro.</p><p>Colocar em evidência o papel do outro como receptor e transformador da</p><p>mensagem pulsional implica considerar que somente a resposta do objeto-analista</p><p>permite desenvolver as potencialidades latentes da mensagem inicial. Nessa</p><p>perspectiva, o que se manifesta via corpo – ato, comportamento e interação – não</p><p>precisa mais ser banido como obstáculo ao trabalho de subjetivação, nem excluído</p><p>do campo de escuta clínica; uma vez acolhidos e refletidos pelo analista, adquirem</p><p>valor intersubjetivo, para em seguida poder exercer sua função intrassubjetiva</p><p>potencial (ROUSSILLON, 2008b, p. 9).</p><p>Vale a pena citar Roussillon (2008b, p. 12), que ilustra suas ideias com o exemplo</p><p>de Echo, uma paciente cuja anorexia vinha desaparecendo no curso da análise, mas</p><p>que mantinha uma vida social extremamente restrita. Nas sessões, sentada em frente</p><p>ao analista, Echo costumava mostrar-se imóvel, apática e silenciosa, falando muito</p><p>pouco de sua vida interior:</p><p>No exemplo de Echo, eu sou inicialmente confrontado a um comportamento. Este</p><p>tem um valor “auto”, ele tem lugar na economia narcisista do sujeito, ele não parece</p><p>particularmente endereçado a ninguém em particular: quando ela não</p><p>está na</p><p>sessão, Echo se “comporta” da mesma maneira. Mas na medida em que esse</p><p>comportamento é introduzido na sessão, ele começa a adquirir um valor interativo,</p><p>ou seja, no espaço analítico, ele me afeta e ganha, pouco a pouco, valor de</p><p>“mensagem agida” para mim. Eu acabo lhe atribuindo o valor de uma forma</p><p>particular de transferência, do agieren da transferência […]. Na medida em que um</p><p>outro sujeito se sente mobilizado e pode refletir o comportamento como uma</p><p>mensagem agida e endereçada, se abre a questão de uma dimensão intersubjetiva do</p><p>comportamento e de sua ação sobre o outro. Nós passamos assim</p><p>progressivamente de um comportamento anônimo a uma forma de entre “eus”</p><p>(tradução livre).</p><p>Sobre a técnica</p><p>Muitos autores apontam a insuficiência dos recursos simbólicos como uma</p><p>importante característica não só dos pacientes com transtornos alimentares, mas</p><p>dos analisandos do nosso tempo de forma geral. Para Marucco (2007, p. 132), o ato</p><p>e o soma constituem categorias de fronteira cujas manifestações são cada vez mais</p><p>presentes na clínica contemporânea. Kristeva (2002, p. 16) confirma que as</p><p>dimensões do ato e do corpo ocupam cada vez mais espaço na clínica atual, e</p><p>ressalta que, apesar da variedade de “novas sintomatologias”, haveria, “unindo-as,</p><p>um denominador comum: a dificuldade de representar”. O ato e o corpo são</p><p>considerados categorias de fronteira porque, quanto mais sua realidade se apresenta,</p><p>mais próximos estamos do campo das intensidades e mais distantes do registro da</p><p>representação.</p><p>O trabalho com o não simbolizado, tão presente nas análises de pacientes com</p><p>transtornos alimentares, exige, portanto, alternativas à interpretação, que seria</p><p>incapaz de atingir – afetar, mover e transformar – registros ou inscrições aquém da</p><p>palavra. A clínica com esses pacientes se dá principalmente no plano da experiência</p><p>e manejo dos afetos, ou plano sensível, e a produção de sentido em muitos</p><p>momentos se dá pelo compartilhamento de estados emocionais com o analista.</p><p>Safra (2005, p. 14) se pergunta: “Como falar de significados reprimidos, se há até</p><p>mesmo a ausência da capacidade de significar e de dar sentido?” Como vimos,</p><p>quando as palavras faltam é a partir do corpo, das ações e dos afetos que elas</p><p>surgirão. Nesses casos, as interpretações necessitam ser precedidas pela criação de</p><p>um setting que permita a construção de estruturas psíquicas básicas do sujeito.</p><p>Deve-se considerar que o sentido latente trazido à tona pela interpretação como</p><p>concebida por Freud já está representado, ainda que esteja recalcado, o que facilita o</p><p>trabalho de transcrição/tradução do analista. Mas quando o sentido a ser trazido à</p><p>tona é rudimentar, inacabado e arredio ao verbo, o que podem as palavras do</p><p>analista? É a elas que devemos apelar?</p><p>Acredito que mesmo quando (ainda) não articuladas como interpretação, as</p><p>palavras mantêm seu lugar privilegiado nessas análises, como não poderia deixar de</p><p>ser. Dar nome ou domar pelo verbo sensações e afetos em estado bruto, porém,</p><p>exige que o analista encontre “palavras com mais capacidade sensorial” (FONTES,</p><p>2010, p. 20). Ao tentar ilustrar o que chama de potencial de simbolização do processo</p><p>analítico, Garcia (1998) relata o forte efeito que o uso da palavra consistente teve sobre</p><p>uma paciente. O autor faz breve referência à análise de uma mulher que sofria de</p><p>grave anorexia. Em um momento particularmente difícil do tratamento, o analista</p><p>tentou dizer algo que pudesse provocar novas associações e retirar a paciente de seu</p><p>imobilismo. Ao final de uma interpretação “mais longa que útil”, Garcia lhe disse</p><p>que “ela comunicava seu sofrimento como se tentasse alcançar uma sensação que fosse consistente”</p><p>(p. 39 – grifos meus). Após esta intervenção, houve um profundo e duradouro</p><p>silêncio. Na sessão seguinte, após momentos de quietude inicial, a paciente</p><p>descreveu com muita emoção sua experiência da sessão anterior. Garcia (op. cit., p.</p><p>39) escreve:</p><p>disse-me que ao ouvir a palavra consistente, teve uma sensação estranha pelo corpo,</p><p>mas que não era desagradável. Aos poucos foi tendo uma vivência de</p><p>reconhecimento de si mesma, que me disse nunca ter experimentado antes e que se</p><p>sentiu muito grata a mim.</p><p>Para o autor, o impacto dessa intervenção não se deveu à libertação de uma</p><p>representação do jugo da repressão. A palavra consistente teria proporcionado uma</p><p>experiência de limites, de corporeidade e de preenchimento que ocupou o lugar das</p><p>queixas monótonas e das palavras vazias, contornando o corpo da paciente “tal qual</p><p>acontece quando uma criança enluva com traços de lápis sua pequenina mão” (p.</p><p>39).</p><p>Citando Kristeva (2002), Fontes (2010, p. 38) lembra que a espécie humana se</p><p>caracteriza pela capacidade de representar, mas desde que a representação psíquica</p><p>esteja ancorada no corpo, uma vez que “não há despertar do sujeito enquanto suas</p><p>percepções e sensações não ganham significado”. Para Kristeva, a possibilidade de</p><p>significar percepções e sensações pela via da palavra depende de o analista ter o que</p><p>ela chama de “sorte eventual de metabolizar a autossensualidade inominável em</p><p>discurso conciliável” (FONTES, p. 20). Talvez tenha sido exatamente isso o que se</p><p>deu no episódio narrado por Garcia: o uso do termo consistente evocou a</p><p>sensorialidade, sendo por isso capaz de instituir a ligação do corpo à palavra.</p><p>Fontes (2010) menciona ainda o caso de uma paciente obesa que usava muito a</p><p>palavra soberba; a analista brinca com ela “sobre tratar-se de uma palavra gorda,</p><p>cheia de ‘b’s’”. A mesma paciente mostrou recear seu grande entusiasmo com certa</p><p>conquista, então a analista perguntou se ela ia explodir e apontou seu medo de ficar</p><p>cheia de si. Outra paciente, alcoolista, costumava “grudar” em seus objetos amorosos,</p><p>e para nomear tais movimentos a analista usou a palavra ventosa. A paciente disse</p><p>que a palavra correspondia fisicamente ao que sente (p. 94-97).</p><p>Quando conectadas ao corpo, portanto, as palavras são cheias – de sensorialidade</p><p>e pulsionalidade – e têm verdadeiro significado para o sujeito. Dito de outra forma,</p><p>as palavras têm efeito e promovem simbolização quando se engancham à sua matriz</p><p>sensorial.</p><p>Corpo interpretante</p><p>Tendo investigado aspectos da comunicação verbal nas análises que ora</p><p>examinamos, chegamos a outra pergunta: Será que de alguma forma a interpretação</p><p>do não verbal se dá na capacidade gestual do analista – que lhe permitiria responder</p><p>ao paciente no mesmo registro usado por ele?</p><p>Fédida, em seus comentários na banca de doutorado de Fontes, indaga:</p><p>Será que nós evoluímos em nossa concepção de interpretação? Essa que</p><p>produzimos no tratamento e que se forma no interior do material de sensações que</p><p>o analista recebe vindas de seus pacientes? Refiro-me a esse não verbal, se os</p><p>senhores assim o querem, melhor seria designá-lo como sensorial, como sensual,</p><p>como sexual não agido na sessão. Será que a interpretação forma-se nessa</p><p>capacidade gestual que permite em seguida ao paciente receber as palavras do</p><p>analista com, digamos, o material que é de sua própria experiência transferencial?</p><p>(FONTES, 2010, p. 131-132).</p><p>Boraks (2012) relata um caso em que fica evidente a importância de o analista</p><p>reagir ao paciente com material que é da sua própria experiência transferencial. Sua</p><p>paciente buscava contundentemente comunicar-se no registro corporal. Após uma</p><p>sessão em que a analisanda usou a sensorialidade com especial intensidade como</p><p>meio de manifestar seu desespero, através de coceiras, tom de voz, intensidade das</p><p>palavras e gestual, Boraks, pela primeira vez, ao se despedir, tomou sua mão entre as</p><p>suas duas mãos – e esta resposta corporal da analista à analisanda</p><p>marcou uma virada</p><p>na análise.</p><p>Casos assim confirmam a necessidade de indagarmos o que exigem certas</p><p>análises, tanto em termos de recepção do material pelo analista quanto de sua devolução</p><p>para o paciente. Como diz Fédida, “não se trata de modificar radicalmente a técnica,</p><p>mas as intervenções do analista vão precisar levar em conta as experiências</p><p>corporais originais que se encontram presentes na transferência” (citado por</p><p>FONTES, 2010, p. 130).</p><p>Para Roussillon (2005, p. 376), nos casos em que ainda é preciso constituir uma</p><p>pele psíquica, a interpretação talvez esteja na capacidade gestual. Ele se pergunta se</p><p>“as coisas ditas em palavra devem também encontrar uma forma corporal de</p><p>expressão, ser também ditas ‘no corpo’” (tradução livre), e pondera: para descobrir</p><p>como devolver ao paciente o que ele nos endereça pela via do corpo e da</p><p>motricidade, será que não devo/posso falar com meu corpo? No face a face o</p><p>corpo do analista fala o tempo todo, mas será que os analistas se dão conta da</p><p>importância desse tipo de intervenção? E mesmo estando atrás do divã, não seria</p><p>nossa voz cheia de corpo, será que nosso corpo não está sempre presente nas</p><p>inflexões, no tom, no tamanho de nossas frases? E será que na formação</p><p>psicanalítica, por exemplo, não se fala só do que o analista deve ou não dizer,</p><p>esquecendo-se da forma, do tom, do ritmo? Não seria preciso atentar também para o</p><p>gestual, experimentando formas de expressão cujo tom seja próximo à emoção do</p><p>outro? A ideia é que o corpo do analista também seja interpretante, afinal pode</p><p>haver um levantar de sobrancelhas ou um franzir de testa que diz tudo, de uma</p><p>forma que a palavra não seria capaz de fazer, o que é bom (ROUSSILLON, 2012a).</p><p>O face a face e o diálogo corporal podem oferecer um modo de expressão visual</p><p>aos conteúdos psíquicos em dificuldade de expressão linguageira, ou em sofrimento</p><p>representacional. Conclui-se que o analista não pode negligenciar seu corpo, sua</p><p>aparência, seu cheiro – toda a sua expressividade, enfim –, pois esses elementos</p><p>suscitam algo na relação analítica. Como vimos, as experiências subjetivas primitivas</p><p>só adquirem valor de mensagem quando a resposta do ambiente reconhece seu</p><p>sentido como tal. Se as manifestações corporais do paciente têm um sentido</p><p>protosimbólico à espera de um outro que lhe dê seu sentido acabado, podemos</p><p>supor também que a reação corporal, gestos ou ações do analista em reação às</p><p>mensagens emitidas pelos pacientes sejam sustentáculos do processo de</p><p>simbolização.</p><p>Ao deixar-se atingir e mostrar-se afetado, o analista impede que as mensagens</p><p>emitidas na linguagem do corpo e dos afetos degenerem. Dessa forma, o processo</p><p>de simbolização posto em marcha pela comunicação incipiente não se interrompe</p><p>nem cai no vazio; as trilhas não verbais, sempre abertas, serão a princípio as mais</p><p>percorridas, até que os elos construídos no campo analítico levem a um novo grau</p><p>de simbolização.</p><p>Referências</p><p>BORAKS, R. Psicossomática – Comunicação Deformada. Reverie Revista de</p><p>Psicanálise, 5(1):55-65, 2012.</p><p>DE CICCO, M. Transtornos alimentares e a função do analista na clínica do não-</p><p>representado. In: GONZAGA, A. P.; WEINBERG, C. (orgs.) Psicanálise de</p><p>transtornos alimentares. São Paulo: Primavera Editorial, 2010. p. 121-139.</p><p>FONTES, I. Psicanálise do sensível: fundamentos e clínica. Aparecida, SP: Ideias & Letras,</p><p>2010.</p><p>GARCIA, J. C. O ato analítico e seu potencial de simbolização. Tese de mestrado,</p><p>Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.</p><p>KRISTEVA, J. As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.</p><p>MARUCCO, N. C. Entre a recordação e o destino: a repetição. São Paulo, Revista</p><p>Brasileira de Psicanálise, 41(1):121-136, 2007.</p><p>ROUSSILLON, R. La “conversation” psychanalytique: un divan en latence. Revue</p><p>française de Psychanalyse, 69(2):365-381, 2005.</p><p>__________. [2008a] Corps et actes messagers. In: CHOUVIER, B.;</p><p>ROUSSILLON, R. (orgs.) Corps, acte et symbolisation – Psychanalyse aux frontières.</p><p>Bruxelas: Groupe DE BOECK, 2010. p. 23-37.</p><p>__________. Le jeu et l’entre je(u). Paris: Presses Universitaires de France, 2008b.</p><p>__________. Conferência Teoria da simbolização: a simbolização primária, realizada em</p><p>26/05/12 no Instituto de Psicologia da USP. Anotações pessoais, 2012a.</p><p>__________. As condições da exploração psicanalítica das problemáticas narcísico-</p><p>identitárias. Alter – Revista de Estudos Psicanalíticos, 30(1):7-32, 2012b.</p><p>SAFRA, G. [2005]. A face estética do self: teoria e clínica. Aparecida, SP: Ideias &</p><p>Letras/São Paulo: Unimarco Editora, 2005.</p><p>ZYGOURIS, R. Psicanálise e psicoterapia. São Paulo: Via Lettera, 2011.</p><p>A ANOREXIA E A BULIMIA EM FREUD</p><p>Maria Helena Fernandes</p><p>Se Freud não se deteve sobre a questão da anorexia e menos ainda sobre a</p><p>temática da bulimia, isso não significa que, ao longo da construção de sua obra, ele</p><p>não tenha pontuado e refletido, de maneira explícita, sobre a complexidade desses</p><p>quadros clínicos. Um texto trata diretamente de um caso de anorexia; outros,</p><p>entretanto, assinalam apenas a presença do sintoma anoréxico ou bulímico na</p><p>evolução de diversos quadros clínicos. Em alguns de seus textos técnicos, Freud</p><p>chega a fazer referência às dificuldades no manejo terapêutico desses casos, e, em</p><p>outros textos, delineia noções teóricas que certamente abriram várias perspectivas</p><p>de pesquisa sobre essas patologias.</p><p>De uma forma geral, Freud tenta compreender a anorexia por intermédio do</p><p>modelo da histeria, assinalando a importância da oralidade na organização da</p><p>sexualidade, sem, no entanto, deixar de enfatizar a relação desse quadro clínico com</p><p>a melancolia. No que diz respeito à bulimia, suas referências diretas são ainda mais</p><p>escassas. Contudo, seu interesse pelas adições, assim como o conceito de neurose</p><p>atual e as elaborações teóricas sobre os processos de descarga da excitação</p><p>pulsional, puderam fornecer pistas importantes para a compreensão da bulimia.</p><p>Sendo assim, neste capítulo, pretendemos fazer um passeio pelas referências de</p><p>Freud à anorexia e à bulimia, com o objetivo de colocar em evidência os modelos</p><p>teóricos que inspiraram mais tarde as diversas contribuições pós-freudianas sobre</p><p>essas patologias.</p><p>As primeiras referências à anorexia: a importância do elemento</p><p>traumático</p><p>Na obra freudiana, o único relato de caso de anorexia foi publicado em 1893.</p><p>Trata-se de uma mulher que desenvolve o quadro após o nascimento do primeiro</p><p>filho. Nessa ocasião, a amamentação do bebê precisou ser interrompida, duas</p><p>semanas após o nascimento, em decorrência do quadro anoréxico da mãe e a sua</p><p>consequente falta de leite. Os mesmos sintomas reaparecem três anos mais tarde,</p><p>no momento do nascimento do segundo bebê; Freud (1893a) relata que o quadro</p><p>anoréxico se faz acompanhar de vômitos, distúrbios gastrointestinais e depressão.</p><p>Como tratamento, Freud realiza três sessões de hipnose, após as quais a mãe retoma</p><p>o aleitamento do bebê até o oitavo mês. Um ano mais tarde, Freud é novamente</p><p>solicitado, pois o nascimento de um terceiro bebê reeditou os mesmos sintomas.</p><p>Mais uma vez, ele lança mão das sessões de hipnose e o aleitamento é retomado.</p><p>A essa altura da construção de seu pensamento, Freud (1893a) classifica esse</p><p>caso entre as “histerias de ocasião” e assinala, de acordo com o psiquiatra francês C.</p><p>Lasègue, tratar-se de uma forma de “perversão da vontade”. No entanto, a</p><p>dimensão melancólica, que será enfatizada por Freud mais adiante, já aparece nessa</p><p>ocasião claramente assinalada: “[…] onde está presente uma neurose – e não estou</p><p>me referindo explicitamente apenas à histeria, mas ao status nervosus</p><p>em geral –</p><p>temos de supor a presença primária de uma tendência à depressão e à diminuição da</p><p>autoconfiança, tal como as encontramos muito desenvolvidas e individualizadas na</p><p>melancolia” (p. 176-177). Ao mesmo tempo, é interessante notar que Freud atribui à</p><p>depressão um estatuto, por assim dizer, fundamental na organização neurótica.</p><p>Tem sido assinalado que esse caso ilustra de forma privilegiada a equação</p><p>simbólica comer-amamentar. A meu ver, além de colocar em evidência as</p><p>dificuldades originárias na relação mãe-bebê, ele remete, de forma exemplar, às</p><p>questões relativas à feminilidade, equacionadas a partir da maternidade e da função</p><p>alimentar desempenhada pelo corpo da mulher. Certamente não é à toa que Freud</p><p>(1893a, p. 179) enfatiza a potencialidade traumática do parto na vida de uma</p><p>mulher: “Um primeiro parto, afinal, é o maior choque ao qual está sujeito o</p><p>organismo feminino e, em consequência dele, uma mulher geralmente produz</p><p>alguns sintomas neuróticos, que podiam estar latentes em sua disposição”. Ora, a</p><p>potencialidade traumática do primeiro parto e também, poderíamos acrescentar, da</p><p>primeira gravidez, parece residir justamente no fato de que esses acontecimentos</p><p>acometem diretamente o corpo da mulher, promovendo transformações físicas</p><p>espetaculares e imprevisíveis.</p><p>A primeira gravidez e o primeiro parto poderiam, então, ter uma potencialidade</p><p>traumática ao conterem, simultaneamente, a dimensão do excesso e o elemento</p><p>surpresa, que, segundo Freud, são dois elementos constitutivos do trauma. Dito de</p><p>outro modo, com a primeira gravidez, a mulher se defronta com essa</p><p>imprevisibilidade, esse absoluto desconhecimento frente às sensações físicas que</p><p>irão se processar no seu corpo. Tais sensações são acompanhadas de</p><p>transformações concretas que, ocorrendo no interior do corpo, são visíveis também</p><p>no exterior dele. A continuidade dessas transformações, ao longo dos nove meses</p><p>de gestação, culmina na experiência do primeiro parto. Tal experiência talvez seja</p><p>um momento radical do ponto de vista corporal, pela intensidade das</p><p>transformações que a mulher experimenta no interior de si mesma e, ainda, pela</p><p>vivência da dor.</p><p>Além disso, após o parto, a mulher se depara com o fato de seu corpo ter agora</p><p>a nova função de alimentar um outro ser. A função alimentar, exercida pelo corpo</p><p>materno, provavelmente encontra-se no cruzamento de questões que engajam</p><p>diretamente o corpo e a feminilidade, em uma problemática exclusiva da mulher.</p><p>Talvez essa especificidade do corpo feminino, como aquele que também alimenta,</p><p>possa desempenhar um papel na predominância dos distúrbios alimentares entre as</p><p>mulheres, já que a transformação de seu corpo na puberdade atesta sua condição de</p><p>poder engravidar e, consequentemente, amamentar, refletindo assim sua</p><p>semelhança com o corpo materno (FERNANDES, 2012; 2013a).</p><p>Dois anos depois de ter discutido o caso de anorexia abordado anteriormente,</p><p>Freud publica, em 1895, a história do caso de Emmy von N., na qual a anorexia</p><p>aparece como um dos sintomas dominantes. Emmy apresentava também uma fobia</p><p>de beber água e se queixava de violentas e persistentes dores de estômago,</p><p>apresentando ainda, de forma alternada, amenorreia e dismenorreia. O tratamento</p><p>preconizado por Freud (1895a) é uma combinatória de sugestão hipnótica, banhos</p><p>quentes, massagens e separação do meio familiar. Desde as primeiras sessões de</p><p>hipnose, Emmy evoca uma série de lembranças precoces que estariam associadas à</p><p>origem de seus terrores e repugnâncias. Dentre os eventos trágicos da vida dessa</p><p>mulher, merece destaque a brutal morte do marido diante dela, precisamente no</p><p>momento em que Emmy encontrava-se acamada e impotente para socorrê-lo, pois</p><p>acabara de dar à luz uma menina.</p><p>É ela quem sugere a Freud deixá-la falar livremente, dando a ele a pista do que</p><p>mais tarde viria a ser conhecido como o método da associação livre. Suas dores</p><p>gástricas têm início após a morte do marido, época em que Emmy perde</p><p>completamente o apetite, comendo somente por obrigação. Encontramos aqui</p><p>também os dois elementos que definem a potencialidade traumática dessa situação:</p><p>o elemento surpresa e o excesso. Emmy encontra-se exposta à morte inesperada do</p><p>marido justamente após o parto de sua segunda filha. O excesso aqui parece</p><p>consistir no efeito cumulativo de duas situações com potencialidade traumática.</p><p>Certa vez, ao atendê-la justamente na hora do almoço, Freud a surpreende</p><p>jogando a sobremesa pela janela para os filhos do zelador. Ele nota, então, que ela</p><p>deixa no prato mais da metade de sua refeição. Ao interrogá-la sobre isso, ele obtém</p><p>como resposta que ela não tem o hábito de comer e que nisso se parece com seu</p><p>pai. Nessa ocasião, Freud descobre, ainda, que ela não bebe água, mas unicamente</p><p>leite, café ou chocolate, atribuindo à água o poder de fazer mal à sua digestão.</p><p>Lançando mão de seu bastão de médico, Freud solicita imediatamente um exame de</p><p>urina, que se encontra excessivamente concentrada, e prescreve à sua paciente o</p><p>aumento da ingestão de água e de alimentos. Quando, em seguida, ele a proíbe de se</p><p>desfazer de sua sobremesa e ordena a ingestão de água mineral, Emmy se irrita e</p><p>retruca: “Eu o farei porque o senhor está mandando, mas eu posso desde já lhe</p><p>dizer que isso vai acabar mal, porque é contrário à minha natureza e meu pai era</p><p>como eu” (p. 63). Emmy anuncia, assim, de forma eloquente, o fracasso inevitável</p><p>da prescrição do médico Freud. Embora Freud não tenha destacado</p><p>particularmente esse aspecto, transparece aqui a identificação de Emmy com o pai.</p><p>De fato, no dia seguinte, tendo seguido suas prescrições, Freud encontra Emmy</p><p>deprimida, mal-humorada e se queixando de dores gástricas. Ela não lhe poupa a</p><p>clássica reprimenda: “Agora vai ser preciso que eu fique de dieta total durante cinco</p><p>a oito dias antes de poder tolerar ingerir qualquer coisa” (p. 63). Freud tenta em vão</p><p>explicar-lhe que suas dores relacionam-se à sua angústia e não à ingestão excessiva</p><p>de comida, porém, esses apelos pedagógicos não surtem o menor efeito na</p><p>paciente. Além disso, ainda nesse dia, ele não consegue hipnotizá-la para fazê-la</p><p>adormecer, como era costume ao final das sessões.</p><p>Diante disso, e acuado pelo impasse colocado por Emmy, Freud apela para sua</p><p>autoridade médica e ameaça abandonar o tratamento caso ela, dentro de 24 horas,</p><p>não tenha se rendido aos seus argumentos. No dia seguinte, Freud a encontra dócil</p><p>e submissa, porém ao interrogá-la sobre o que pensa a respeito da origem de suas</p><p>dores gástricas, obtém a provocativa resposta: “Eu creio que elas vêm de minhas</p><p>apreensões, mas somente porque o senhor disse” (p. 63). Aqueles que estão</p><p>habituados a lidar com jovens anoréxicas certamente não terão dificuldade para se</p><p>sentir solidários com Freud. A certeza de um saber sobre o funcionamento de seus</p><p>corpos, particularmente no que diz respeito às funções que envolvem o processo da</p><p>alimentação, parece não aceitar interferência, nem discussão. Se, por um lado, essa</p><p>certeza pode parecer exasperante para quem vai se ocupar desses casos, por outro,</p><p>mostra o sistema fechado no qual essas jovens se encontram e a inutilidade, do</p><p>ponto de vista clínico, de enfrentá-lo diretamente.</p><p>Nas sessões de hipnose, Emmy conta suas recordações traumáticas infantis</p><p>diretamente associadas ao problema alimentar. Surge o relato de conflitos com sua</p><p>mãe, que a forçava a esvaziar seu prato e a comer a carne que ali estava até o fim,</p><p>causando-lhe uma forte repugnância a visão da gordura fria no prato. Aparece</p><p>ainda, mais tarde, o temor de ser contaminada, através da alimentação, por seus</p><p>irmãos, um com varíola e o outro com tuberculose. Emmy afirma</p><p>que ela se sentia</p><p>obrigada a não deixar sequer transparecer seu medo ou sua repulsa. Freud refere</p><p>que, após essa sessão de hipnose, ela não deixa de alimentar-se por uma semana,</p><p>como teria sugerido, mas come e bebe sem dificuldade, apresentando uma melhora</p><p>significativa no que diz respeito ao comportamento alimentar.</p><p>Em sua discussão sobre esse caso, Freud (1895a) salienta a escassez de sintomas</p><p>conversivos e chama a atenção para as modificações do humor (particularmente a</p><p>angústia e a depressão) e para as fobias e abulias (inibições da vontade), enfatizando</p><p>que estas últimas aparecem na história de Emmy claramente determinadas por</p><p>incidentes traumáticos. Ele escreve:</p><p>A anorexia de nossa paciente oferece um exemplo eloquente dessa espécie de</p><p>abulia. Ela come muito pouco porque os alimentos não lhe agradam e, se ela não os</p><p>encontra ao seu gosto, é porque a ideia de comer se encontra ligada, desde a sua</p><p>infância, a lembranças repugnantes cuja carga afetiva não sofreu nenhuma</p><p>diminuição. É impossível comer, ao mesmo tempo, com asco e com prazer. A</p><p>atenuação do asco provocado pelas refeições não se produziu porque a paciente era</p><p>obrigada, a cada vez, a reprimi-lo, em vez de livrar-se dele pela reação: quando</p><p>criança ela se via obrigada, por medo de uma punição, a comer com repugnância</p><p>suas refeições frias e, mais tarde, por consideração com seus irmãos, ela se impedia</p><p>de exprimir os sentimentos que experimentava ao longo das refeições em comum</p><p>(p. 69).</p><p>Pode-se dizer que as vivências traumáticas deixaram traços psíquicos que,</p><p>embora articulados à fantasia, se inscreveram no corpo.</p><p>De fato, dois anos antes da publicação desse caso em Sobre o mecanismo dos</p><p>fenômenos histéricos, Freud (1893b) já havia associado a repulsa da comida com a</p><p>sensação de asco ao tentar analisar diferentes formações sintomáticas na histeria.</p><p>Nessa ocasião, ele escreveu:</p><p>Um dos sintomas mais comuns da histeria é uma combinação de anorexia e vômito.</p><p>Conheço todo um conjunto de casos em que a ocorrência desse sintoma é explicada</p><p>bem simplesmente. Assim, em uma paciente o vômito persistiu após ela ler uma</p><p>carta humilhante pouco antes de uma refeição, ficando violentamente nauseada</p><p>depois disso. Em outros casos, a repulsa da comida podia ser definitivamente</p><p>relacionada ao fato de que, tributária da instituição da ‘mesa comum’, a pessoa fosse</p><p>compelida a comer sua refeição em companhia de alguém que ela detestasse. A</p><p>repulsa é então transferida da pessoa à comida. A mulher com o tique que</p><p>mencionei há pouco era particularmente interessante a esse respeito [Freud se</p><p>refere aqui a Emmy von N.]. Comia excepcionalmente pouco e apenas sob pressão.</p><p>Ela me instruiu, sob hipnose, que um conjunto de traumas psíquicos produziam</p><p>eventualmente esse sintoma de repulsa à comida (p. 44-45).</p><p>Associando essa combinação de anorexia e vômitos à histeria, nota-se que Freud</p><p>insiste na predominância de diversos fatores traumáticos.</p><p>Em Estudos sobre a histeria, Breuer descreve brevemente o caso de um garoto de</p><p>12 anos que repentinamente apresenta um comportamento anoréxico associado a</p><p>disfagia e vômitos. Esses sintomas aparecem depois de um episódio de cunho</p><p>sexual: tendo entrado em um banheiro público, o garoto se depara com um homem</p><p>que lhe exibe o pênis, exigindo que ele o coloque na boca. Porém, segundo Breuer</p><p>(1895a, p. 169), o traumatismo atual de ordem sexual não é suficiente para criar a</p><p>anorexia: “Para criar os fenômenos de anorexia, de disfagia, de vômitos, a</p><p>concomitância de muitos fatores foi necessária: uma predisposição nervosa, um</p><p>temor, a irrupção do sexual em sua forma mais brutal na alma infantil e, fator</p><p>determinante, a representação repugnante”. Além de enfatizar o trauma sexual, a</p><p>intenção de Breuer, nessa ocasião, é chamar a atenção para a sobredeterminação do</p><p>sintoma. Para que um sintoma qualquer apareça, é necessária a ação simultânea de</p><p>vários fatores. Quem quer que se dedique ao trabalho psicanalítico, diz Freud</p><p>(1905a, p. 44), “logo descobrirá que um sintoma tem mais de um significado e serve</p><p>para representar simultaneamente diversos processos mentais inconscientes. E eu</p><p>gostaria de acrescentar que, na minha opinião, um único processo ou fantasia</p><p>mental inconsciente dificilmente bastará para a produção de um sintoma”.</p><p>Além de salientar que Freud, desde o início, recusa uma causalidade psíquica</p><p>direta e esquemática, é igualmente importante assinalar aqui que a teoria do trauma</p><p>sofre transformações significativas ao longo da evolução de seu pensamento. Tal</p><p>teoria vai ganhando espessura à medida que evolui, cada vez mais, a partir de</p><p>premissas que se constroem sobre o funcionamento interior de um aparelho psíquico.</p><p>Com isso, a noção de trauma passa da ideia de um trauma produzido por um fator</p><p>externo para a de algo que não foi possível ser absorvido, naquele momento da</p><p>existência do sujeito e por uma infinidade de motivos, no interior do aparelho</p><p>psíquico. Para utilizar uma metáfora alimentar pode-se dizer que é trauma aquilo que</p><p>não pode ser digerido.</p><p>Oralidade e sexualidade</p><p>No mesmo ano da publicação dos Estudos sobre a histeria, Freud (1895b), no</p><p>Manuscrito G, enfatiza a dimensão melancólica da anorexia. Já nessa ocasião,</p><p>destaca que, na melancolia, nos deparamos com o mesmo afeto do luto, isto é, “o</p><p>lamento amargurado de alguma coisa perdida” (p. 93). Freud tenta compreender a</p><p>melancolia “como uma perda no domínio da vida pulsional”. Sendo assim, ele</p><p>escreve: “A neurose alimentar paralela à melancolia é a anorexia. A anorexia das</p><p>jovens, que é um problema bem conhecido, aparece, após uma observação rigorosa,</p><p>como uma forma de melancolia nos sujeitos com a sexualidade ainda inacabada. A</p><p>paciente assegura não comer simplesmente porque ela não tem fome. Perda de</p><p>apetite e, no domínio sexual, perda de libido” (p. 93). Levando adiante sua</p><p>comparação, Freud conclui que “a melancolia é um luto provocado por uma perda</p><p>de libido” (op. cit., p. 93).</p><p>Poderíamos nos servir dessa marca do pensamento freudiano, essa fecunda</p><p>maneira de raciocinar por comparações e analogias, para pensar a anorexia das</p><p>adolescentes como uma forma de expressão de um “lamento amargurado de</p><p>alguma coisa perdida”. Mas, de que perda se trata? A perda no domínio da vida</p><p>pulsional, à qual se refere Freud para pensar a melancolia, talvez encontre seu</p><p>correlato na anorexia pela frequência com a qual essas meninas deixam entrever a</p><p>vivência de uma decepção, uma espécie de desencanto, seja frente a elas próprias,</p><p>seja em relação à figura materna ou paterna. Essa decepção parece traduzir o</p><p>encontro dramático, que o próprio desenvolvimento impõe, entre os ideais de</p><p>perfeição e o confronto com a realidade humana, delas próprias e dos outros.</p><p>Numa carta que data de fevereiro de 1899, Freud (1899, p. 246-247) dirige a</p><p>Fliess essa questão:</p><p>Sabe você, por exemplo, por que uma certa X sofre de vômitos histéricos? É</p><p>porque, na imaginação, ela está grávida. Insaciável, ela não pode, com efeito, abrir</p><p>mão de trazer dentro de si o filho de um último amante imaginário. Mas ela vomita</p><p>também porque, de certa forma, passa fome, emagrece, perde sua beleza e não</p><p>poderá mais agradar. É assim que o sintoma representa a realização de dois desejos</p><p>contraditórios.</p><p>Vale ressaltar aqui a ênfase na contradição dos desejos e na ambiguidade que eles</p><p>despertam, a incompatibilidade entre a dimensão insaciável da sexualidade e a</p><p>rejeição que isso provoca. Se pensarmos no tumulto provocado pela puberdade e</p><p>pela entrada na adolescência, veremos que essa</p><p>incompatibilidade mostra-se ainda</p><p>atual. Mesmo em nosso mundo contemporâneo, com a banalização do contato</p><p>sexual, observamos na clínica que a sexualidade e seus enigmas ainda continuam a</p><p>produzir sintomas entre os jovens.</p><p>Sempre interessado na questão da escolha da neurose, alguns meses depois da</p><p>carta citada, Freud (1899, p. 270) se pergunta, numa nova carta a Fliess (9-12-1899),</p><p>sobre as relações entre o ego primitivo e o autoerotismo. Enfatizando a corrente</p><p>autoerótica da paranoia em comparação com a corrente aloerótica da histeria, Freud</p><p>certamente abre aqui uma pista para a exploração das relações entre a anorexia e a</p><p>bulimia e o autoerotismo, o que coloca em evidência a dimensão mais arcaica do</p><p>funcionamento libidinal. Isso nos remete, necessariamente, às vicissitudes da</p><p>experiência de satisfação no início da vida do bebê, em relação à autoconservação e</p><p>à sexualidade.1</p><p>No caso Dora, aparecem de forma discreta as dores gástricas, as dificuldades</p><p>para comer e uma certa aversão pelo alimento, que se encontram, de alguma</p><p>maneira, vinculadas ao sentimento de repugnância experimentado no incidente</p><p>traumático com o Sr. K, quando ela tinha 14 anos. Nessa ocasião, Freud (1905a, p.</p><p>27) tenta demonstrar que o fantasma originário que explica a repugnância seria, em</p><p>Dora, um fantasma de felação. De um outro lado, ele enfatiza as relações entre a</p><p>leucorreia, a enurese (que reaparece após os 6 anos) e a masturbação. Freud (1905a,</p><p>p. 81) evidencia particularmente a relação observada pelos médicos entre leucorreia</p><p>e perda de apetite e vômitos, com o intuito de compreender os sintomas histéricos</p><p>como substitutos de desejos recalcados. Porém, não se pode deixar de assinalar aqui</p><p>que Dora encontrava-se em plena adolescência, portanto, às voltas com a</p><p>emergência pulsional própria dessa fase e com a necessidade de gerenciar o desejo</p><p>sexual frente às restrições impostas à sexualidade e particularmente à sexualidade</p><p>feminina, próprias a sua época.</p><p>Mais tarde, no caso do “homem dos lobos”, Freud (1918, p. 124) assim se refere</p><p>à perda de apetite: “Estou inclinado à opinião de que essa perturbação do apetite</p><p>deva ser considerada como a primeira das doenças neuróticas do paciente. Se assim</p><p>foi, o distúrbio no apetite, a fobia aos lobos e a devoção obsessiva constituiriam a</p><p>série completa de perturbações infantis que estabeleceu a predisposição para o seu</p><p>colapso neurótico, após haver passado a puberdade”. Freud relaciona a origem</p><p>dessa perturbação do apetite com a provável observação do ato sexual na idade de</p><p>um ano e meio, e continua seu raciocínio evocando a primeira fase da organização</p><p>sexual – a fase oral – e a equação alimentação-sexualidade. A esse respeito, ele</p><p>escreve: “É sabido que existe uma neurose nas meninas que ocorre numa idade</p><p>muito posterior, na época da puberdade ou pouco depois, e que exprime a aversão à</p><p>sexualidade por meio da anorexia. Essa neurose terá que ser examinada em conexão</p><p>com a fase oral da vida sexual” (idem, p. 133). Com isso, Freud parece compreender</p><p>os sintomas da anorexia a partir da lógica da histeria; no entanto, ao fazer incidir o</p><p>recalcamento sobre o erotismo oral, ele situa a anorexia em um período de</p><p>organização pré-genital da libido.</p><p>O estudo da anorexia levou vários autores a pensar que possam existir formas de</p><p>histeria muito mais precoces, em que os conflitos orais e as expressões sintomáticas</p><p>ligadas à oralidade desempenham um papel fundamental. De fato, a evolução do</p><p>pensamento freudiano retrata claramente que a busca da etiologia da histeria vai</p><p>privilegiando fases cada vez mais precoces do desenvolvimento. Pode-se entrever aí</p><p>um descentramento do paradigma da fase fálica, do Édipo e da triangulação, que</p><p>encontra expressão nos textos mais tardios de Freud sobre a sexualidade feminina e</p><p>a feminilidade, nos quais é enfatizada, na etiologia da histeria, a importância da</p><p>relação pré-edípica da menina com a mãe (FREUD, 1931; 1933).</p><p>A importância dessa relação certamente não deixa passar desapercebida a estreita</p><p>ligação entre o corpo da mãe como fonte de alimentação do bebê e as vicissitudes</p><p>da oralidade no processo de construção da feminilidade na menina. Poderíamos nos</p><p>perguntar: aA anorexia permitiria entrever uma recusa, tanto do corpo da mãe</p><p>como fonte alimentar, como da possibilidade de o próprio corpo vir a ser essa fonte</p><p>para o outro?</p><p>Tudo isso nos leva a constatar que a evolução do pensamento psicanalítico parte</p><p>das questões da oralidade para privilegiar as dinâmicas de instauração do</p><p>autoerotismo, do narcisismo e das relações objetais, salientando particularmente a</p><p>especificidade da relação da menina com a mãe e suas formas de inscrição no</p><p>corpo.</p><p>Este percurso pela obra de Freud nos permite constatar um primeiro paradoxo</p><p>interessante: se, de um lado, ele parece enfatizar a dimensão histérica da anorexia,</p><p>de outro, ele vai salientar os impasses técnicos observados na sua prática clínica,</p><p>chegando mesmo a questionar as indicações de análise nesses casos. Sendo assim,</p><p>Freud (1904, p. 6-7) escreve:</p><p>Os casos crônicos de psiconeuroses com sintomas pouco violentos e pouco</p><p>perigosos são os mais acessíveis à psicanálise, primeiramente todas as formas de</p><p>neurose obsessiva, de pensamentos e atos obsedantes e os casos de histeria nos</p><p>quais as fobias e as abulias desempenham um papel principal, em seguida as</p><p>manifestações somáticas da histeria, com exceção dos casos em que, como na</p><p>anorexia, uma rápida intervenção se impõe para suprimir o sintoma”.</p><p>A contraindicação para a análise parece se centrar aqui na necessidade de uma</p><p>“rápida intervenção”, como se Freud respondesse ao clima de urgência e perigo tão</p><p>característico dos casos graves de anorexia. Um ano depois dessa colocação,</p><p>encontramos o mesmo tipo de formulação: “A psicanálise é contraindicada quando</p><p>se trata da supressão rápida de certos sintomas alarmantes, como, por exemplo, no</p><p>caso da anorexia histérica” (Freud, 1905b, p. 18). Mostrando-se pessimista quanto à</p><p>abordagem psicanalítica da anorexia, ele alicerçava tal pessimismo na gravidade dos</p><p>sintomas anoréxicos e na necessidade de uma rápida intervenção clínica, em função</p><p>do risco de vida nos casos de inanição grave.</p><p>Embora a literatura psicanalítica das últimas décadas tenha se voltado sobretudo</p><p>para as perversões, as somatizações, os boderlines ou estados-limite e as toxicomanias,</p><p>evidenciando um interesse maior pelas patologias narcísicas do que pela neurose, é,</p><p>provavelmente, ilusória a ideia de que já se tenha dito tudo sobre a neurose e a</p><p>histeria. As problemáticas da anorexia e da bulimia, atingindo prioritariamente as</p><p>mulheres e se constituindo no cruzamento de tantos eixos psicopatológicos,</p><p>conforme constataremos ainda com maior clareza a seguir, sem dúvida relançam a</p><p>ênfase na histeria pela eloquência com que trazem à tona a questão da sexualidade,</p><p>particularmente, a sexualidade feminina.</p><p>Recorrer à repressão dos desejos sexuais já não é mais necessário para as</p><p>mulheres da mesma forma que foi antes da revolução sexual, do feminismo e da</p><p>invenção da psicanálise. Talvez, por isso, a forma clássica da histeria, tal qual era</p><p>descrita no século XIX, apareça numa frequência menor, sem, no entanto, ter</p><p>deixado de existir. De fato, assim como a expressão do mal-estar varia de um</p><p>momento histórico a outro, ela também varia nas diversas microculturas de uma</p><p>mesma época.</p><p>Dessa forma, conforme salienta S. Alonso (2000, p. 82):</p><p>Nas diversas microculturas, expressões sintomáticas diferentes convivem lado a</p><p>lado: assim, ainda hoje podemos ver moças desmaiarem em vez de dar a notícia de</p><p>que estão grávidas, em famílias para as quais a “maternidade” e a “virgindade”</p><p>continuam constituindo os troféus fundamentais do feminino. Mas nesta nossa</p><p>mesma época é possível ver-se uma jovem definhar, seu corpo inteiramente</p><p>reduzido, na anorexia, presa da mortificação, sob o império da “cultura light” que</p><p>toma o estar em “forma” como imperativo máximo do ideal de saúde e beleza.</p><p>Apesar de suas grandes diferenças, há em ambas algo em comum: o corpo como lugar</p><p>de expressão daquilo que não consegue ser dito (grifos meus).</p><p>Se o corpo das histéricas deu voz à problemática feminina do século XIX, parece</p><p>ser o corpo em negativo da anoréxica que vem, em nossos dias, ocupando esse</p><p>lugar. Sendo assim, não é nada surpreendente constatarmos, hoje em dia, o</p><p>aumento dos sintomas anoréxicos de tipo histérico. Sabe-se bem que a histeria</p><p>busca habilmente situar-se no lugar do objeto de algum saber constituído e atual</p><p>para ser reconhecida.</p><p>Nesse sentido, já nos anos 1960, J-P. Valabrega (1967, p. 87) salientava: “Para</p><p>explicar a relativa raridade da ‘gran crisis’ histérica, comparada com a sua frequência</p><p>no passado, não se deve esquecer que as manifestações histéricas não são criadas,</p><p>senão motivadas e atualizadas pelo interesse que se presta nelas”. Não podemos</p><p>deixar de constatar que o interesse de hoje nas conversões histéricas está rarefeito.</p><p>Os ataques, desmaios e chiliques, que antes despertavam no público uma</p><p>curiosidade respeitosa, parecem atualmente evocar um olhar de desprezo e</p><p>reprovação, encontrando eco no uso pejorativo do adjetivo “histérico”. Destituída</p><p>de um certo glamour, a conversão histérica perdeu sua potencialidade engendradora</p><p>do interesse público, ou seja, engendradora do enigma, daquilo capaz de capturar o</p><p>olhar do outro. No entanto, os efeitos da sexualidade no corpo, tal como nos</p><p>ensinou o mecanismo da conversão histérica, apontam, ainda em nossos dias, para</p><p>uma diversidade de formas de expressão que o corpo emagrecido e amenorreico da</p><p>anoréxica evoca de maneira efusiva. Um corpo que, mais pela falta do que pelo</p><p>excesso, parece evocar o mal-estar feminino na contemporaneidade</p><p>(FERNANDES, 2006b; 2008; 2009; 2011; 2013b).</p><p>A bulimia: entre o modelo das neuroses atuais e o da adição</p><p>No que diz respeito à bulimia, uma das primeiras referências de Freud aparece</p><p>ligada à problemática da angústia, abordada na chamada neurose de angústia. Freud</p><p>(1895c, p. 39) escreve:</p><p>A atividade de digestão conhece, na neurose de angústia, poucos problemas, mas</p><p>estes são característicos. Sensações como a tendência a vomitar e as náuseas não são</p><p>coisa rara e o sintoma da bulimia pode, sozinho ou com outras congestões, dar um</p><p>acesso de angústia rudimentar; como modificação crônica, análoga à espera ansiosa,</p><p>encontra-se uma tendência à diarreia que já deu lugar aos mais estranhos erros</p><p>diagnósticos (p. 39).</p><p>É interessante notar que as descrições clínicas da bulimia eram relativamente</p><p>raras na época; portanto, é possível que o comportamento purgativo, associado ao</p><p>uso de laxantes para provocar a diarreia, ainda não fosse percebido como</p><p>relativamente frequente na conduta bulímica, dando lugar, assim, “aos mais</p><p>estranhos erros diagnósticos”. Cabe notar, ainda, que a bulimia aparece, nesse</p><p>momento do texto freudiano, identificada ao registro das neuroses atuais,</p><p>diferentemente da anorexia, que aparece ora identificada à histeria, ligada, portanto,</p><p>ao registro das psiconeuroses, ora identificada à melancolia, que Freud localiza entre</p><p>as neuroses narcísicas.</p><p>Dois anos após a referência anterior, em duas cartas endereçadas a Fliess, Freud</p><p>formula algumas ideias a respeito de certas adições que podem ser aplicadas à</p><p>bulimia. Na carta datada de 11 de janeiro de 1897, ao referir-se a um homem que</p><p>aos 50 anos passou a apresentar um quadro de dipsomania, Freud (1899, p. 163-</p><p>164) expressa a ideia de que a compulsão para beber (dipsomania) poderia ser uma</p><p>substituição de uma pulsão sexual reprimida:</p><p>Suas crises de dipsomania começavam sempre ou com diarreia, ou com uma gripe e</p><p>rouquidão (sistema sexual oral!), isto é, por uma reprodução de incidentes que ele</p><p>tinha experimentado passivamente. […’] A dipsomania foi produzida pelo reforço</p><p>(ou melhor, pela substituição) de uma pulsão que veio substituir a pulsão sexual</p><p>associada. (O mesmo fenômeno provavelmente ocorre com o velho F. com a</p><p>paixão pelo jogo.</p><p>Freud chama a atenção, já nessa ocasião, para a característica da pulsão sexual de</p><p>se fazer substituir por outra, inaugurando o princípio da lógica de compensações</p><p>que atua no interior do aparelho psíquico. Além disso, observa-se aqui uma</p><p>referência à provável associação entre os diversos comportamentos aditivos. De</p><p>fato, nota-se, com certa frequência na clínica, a substituição de uma compulsão por</p><p>outra.</p><p>Já na carta de 22 de dezembro de 1897, Freud (idem, p. 211-212) evoca a</p><p>masturbação como o protótipo da adição originária:</p><p>Comecei a acreditar que a masturbação é o único grande hábito, a “necessidade</p><p>primitiva”, e que os outros apetites, como a necessidade de álcool, de morfina e de</p><p>tabaco, são apenas substitutos, produtos de substituição. Na histeria, o papel dessa</p><p>necessidade é extremamente considerável e pode ser que as grandes dificuldades</p><p>que tenho encontrado ainda derivem inteiramente ou parcialmente dela.</p><p>Naturalmente podemos nos perguntar se uma tal necessidade é curável ou se a</p><p>análise e o tratamento se encontram parados nesse ponto e devem se contentar em</p><p>transformar uma histeria em neurastenia</p><p>Vale ressaltar que Freud colocará a neurose de angústia ao lado da neurastenia e,</p><p>a seguir, da hipocondria, no rol das neuroses atuais. Mesmo diferenciando os</p><p>mecanismos que regem as neuroses atuais e as psiconeuroses, Freud atribui às</p><p>primeiras a qualidade de núcleo do sintoma psiconeurótico. Em 1912, em uma</p><p>passagem em que insistia sobre essa distinção, Freud (1912, p. 179) escreve:</p><p>Considero ainda, como assim me parecia já há mais de quinze anos, que as duas</p><p>neuroses atuais – a neurastenia e a neurose de angústia – (talvez a verdadeira</p><p>hipocondria deva ser classificada como uma terceira neurose atual) constituem a</p><p>antecipação somática das psiconeuroses, e fornecem o material da excitação, o qual,</p><p>em seguida, é psiquicamente selecionado e encoberto, apesar de que, falando de</p><p>uma forma geral, o núcleo do sintoma psiconeurótico – esse grão de areia no meio da</p><p>pérola – é formado de uma manifestação sexual somática (grifos meus).</p><p>Em Fernandes (2003, p. 36-40), salientei que Freud privilegia a metáfora do grão</p><p>de areia para designar a relação existente entre as neuroses atuais e as psiconeuroses,</p><p>mostrando assim que as neuroses se organizam em geral a partir de mecanismos</p><p>mistos interligados; por isso, torna-se difícil, na experiência clínica, o encontro de</p><p>neuroses, por assim dizer, “puras”. Sendo assim, se a complexidade da clínica tende</p><p>a relativizar a distinção entre neuroses atuais e psiconeuroses, esta distinção</p><p>conserva, contudo, seu valor por introduzir, conforme salienta J. Laplanche (1980,</p><p>p. 45), “dois elementos estruturais que geralmente agem de forma complementar”.</p><p>O conceito de neurose atual foi recuperado pelos trabalhos da Escola de Paris,</p><p>particularmente por Pierre Marty, e tem amplamente servido para pensar as</p><p>psicopatologias da ação e do corpo, em que o funcionamento habitual do aparelho</p><p>psíquico parece nocauteado pelo aspecto quantitativo da excitação. Incapaz de</p><p>exercer suas funções em virtude de carências mais ou menos profundas, o aparelho</p><p>psíquico se vê, duradoura ou momentaneamente, subutilizado, resultando em</p><p>respostas comportamentais ou somáticas. O modelo das neuroses atuais,</p><p>amplamente</p><p>utilizado para compreender as somatizações, pode servir para</p><p>pensarmos a problemática da bulimia pela impulsiva passagem ao ato por meio da</p><p>ingestão desmedida de alimentos e dos comportamentos compensatórios. A</p><p>impulsão ao ato bulímico seria, dessa forma, uma tentativa de evacuar as tensões</p><p>geradas pelas pulsões sexuais.</p><p>Em 1926, após a elaboração do segundo dualismo pulsional, a bulimia reaparece</p><p>diretamente no texto de Freud. A função alimentar não é mais considerada em um</p><p>registro diferente das pulsões sexuais, tal como se via, por exemplo, nos Três</p><p>ensaios (1905c), época em que reinava o primeiro dualismo pulsional que opunha as</p><p>pulsões sexuais às pulsões de autoconservação. No texto Inibição, sintoma e</p><p>angústia, de 1926, ao referir-se à função alimentar, a ênfase recai sobre a teoria da</p><p>libido e a inapetência alimentar corresponde a uma retração da libido. Vejamos</p><p>como se expressa Freud (1926, p. 207):</p><p>A perturbação mais frequente da função de nutrição é a inapetência alimentar</p><p>acarretada por uma retirada da libido. Um aumento da apetência alimentar também</p><p>não é raro; uma compulsão a comer é atribuída à angústia de morrer de fome,</p><p>porém, essa questão foi pouco estudada. Como defesa histérica contra a</p><p>alimentação nós conhecemos o sintoma do vômito. A recusa de alimento seguida de</p><p>angústia pertence aos estados psicóticos (delírio de envenenamento)”.</p><p>Além de atribuir ao sintoma do vômito uma função defensiva de tipo histérico,</p><p>Freud destaca a dimensão psicótica da recusa alimentar se esta vem acompanhada</p><p>de angústia e ideias delirantes.</p><p>Um ano depois, Freud (1927a, p. 137) vai colocar lado a lado as adições e o</p><p>humor como formas de defesa contra a possibilidade do sofrimento: “Pela defesa</p><p>que ele (o humor) exerce sobre a possibilidade do sofrimento, ele ocupa um lugar</p><p>na grande série desses métodos que a vida psíquica humana forja para se subtrair ao</p><p>constrangimento do sofrimento, série que começa com a neurose, culmina no</p><p>delírio, e na qual se incluem a embriaguês, o mergulho em si mesmo, o êxtase”.</p><p>Freud não inclui explicitamente a bulimia, mas aborda a lógica aditiva como uma</p><p>das estratégias para evitar o sofrimento. Pode-se pensar que os comportamentos</p><p>compensatórios na bulimia, como o excesso de exercícios físicos, podem ser</p><p>compreendidos como medidas de proteção. Tais excessos, esgotando a energia do</p><p>sujeito, funcionam como fonte de satisfação no seu efeito autocalmante2.</p><p>Porém, é em O mal-estar na civilização que nos deparamos com uma série de</p><p>colocações de Freud que surpreendem pela capacidade preditiva e extrema</p><p>atualidade. Novamente referindo-se aos métodos usados pelo ser humano para</p><p>evitar o sofrimento, Freud (1930, p. 96-97) narra a influência química das</p><p>substâncias tóxicas: “é fato, porém, que existem substâncias estranhas, as quais,</p><p>quando presentes no sangue ou nos tecidos, provocam em nós, diretamente,</p><p>sensações prazerosas, alterando, também, tanto as condições que dirigem nossa</p><p>sensibilidade, que nos tornamos incapazes de receber impulsos desagradáveis. Os</p><p>dois efeitos não só ocorrem de modo simultâneo, como parecem estar íntima e</p><p>mutuamente ligados”.</p><p>Estabelecendo uma fecunda comparação com a mania, uma espécie de euforia</p><p>sem droga, ele evoca nesse texto o aspecto tóxico dos processos psíquicos, aqueles</p><p>que se formam em nossa própria química interior, antecipando, assim, as</p><p>descobertas neurofisiológicas posteriores. A esse respeito, Freud (op. cit., p. 97)</p><p>afirma:</p><p>No entanto, é possível que haja substâncias na química de nossos próprios corpos</p><p>que apresentem efeitos semelhantes, pois conhecemos pelo menos um estado</p><p>patológico, a mania, no qual uma condição semelhante à intoxicação surge sem</p><p>administração de qualquer droga intoxicante. Além disso, nossa vida psíquica</p><p>normal apresenta oscilações entre uma liberação de prazer relativamente fácil e</p><p>outra comparativamente difícil, paralela à qual ocorre uma receptividade, diminuída</p><p>ou aumentada, ao desprazer. É extremamente lamentável que até agora esse lado</p><p>tóxico dos processos psíquicos tenha escapado ao exame científico.</p><p>Além de antecipar as descobertas do papel das endorfinas e das drogas</p><p>antidepressivas, Freud nos permite pensar, ainda, os aspectos tóxicos dos processos</p><p>psíquicos envolvidos, por exemplo, na paixão, responsável por “uma liberação de</p><p>prazer relativamente fácil”. Já descrita como uma “toxicomania sem droga”, a</p><p>bulimia pode ser pensada, a partir dessas considerações, como uma tentativa de</p><p>evitar o sofrimento pela intoxicação alimentar.</p><p>Afora os comentários explícitos de Freud acerca da bulimia, ou mesmo das</p><p>adições, conforme apresentados aqui, pode-se dizer que essa patologia, assim como</p><p>a anorexia, evocam diretamente os modelos freudianos para tentar compreendê-las.</p><p>Sendo assim, permanece válida a questão: Como entender as relações entre a</p><p>autoconservação e a sexualidade? J. Laplanche assinala que a experiência de</p><p>satisfação das necessidades que servem à autoconservação tem, no corpo do bebê,</p><p>o lugar da sedução originária exercida pela mãe. Ora, que relação pode haver entre a</p><p>anorexia e a bulimia e a experiência de satisfação? Freud relaciona tal experiência à</p><p>impossibilidade de o bebê, sozinho, conseguir suprir suas necessidades de</p><p>sobrevivência, ligando, assim, a satisfação à imagem do objeto. O que significa,</p><p>então, para a economia libidinal, sua dependência ao outro? Dito de outro modo,</p><p>como pensar as articulações entre libido narcísica e libido objetal? A teoria</p><p>freudiana do narcisismo, assim como a ênfase no modelo da melancolia,</p><p>particularmente a partir da fecunda comparação desta com o luto, permitem-nos</p><p>considerar as vicissitudes da perda do objeto nessas patologias, justamente por, mais</p><p>tarde, esta perda vir a ser determinante ao aparecimento da angústia</p><p>(FERNANDES, 2006a; 2010).</p><p>Além disso, a evolução dos modelos teóricos freudianos, particularmente a partir</p><p>dos anos 1920, traz nova luz sobre as vicissitudes do comportamento alimentar. De</p><p>uma teorização centrada na questão da oralidade e da sexualidade, o pensamento</p><p>freudiano vai, progressivamente, iluminando avanços teóricos também em outras</p><p>direções.</p><p>É assim que se pode observar a ênfase de Freud sobre os processos de descarga</p><p>da excitação, que ele atribui a um funcionamento arcaico do ego que, após os anos</p><p>1920, será relacionado com a pulsão de morte, particularmente com a desfusão</p><p>pulsional. Além disso, o papel do masoquismo erógeno, do fetichismo, a</p><p>importância do mecanismo da recusa e certamente a ideia de um ego corporal, são</p><p>noções que vão, sem dúvida, enriquecer a compreensão da questão da percepção e</p><p>da representação do corpo próprio, tão fundamental na problemática da anorexia e</p><p>da bulimia. Isso sem falar na importância atribuída por Freud, particularmente em</p><p>seus textos mais tardios, à relação precoce da menina com a mãe para o</p><p>desdobramento da sexualidade feminina.</p><p>À guisa de conclusão</p><p>Pode-se dizer que as pistas lançadas por Freud para a compreensão da anorexia e</p><p>da bulimia apontam inicialmente dois modelos: o da neurose e o das neuroses</p><p>narcísicas. O raciocínio analógico de Freud evoca, particularmente no caso da</p><p>anorexia, a comparação desta com a histeria e com a melancolia. Com o transcorrer</p><p>de sua teorização, particularmente em suas considerações sobre a bulimia, outros</p><p>modelos começam a ocupar mais espaço: o da neurose atual, da psicose e das</p><p>adições. Não podemos deixar de ver aí uma relação com as transformações teóricas</p><p>que foram se processando em sua obra, particularmente a partir</p><p>C. R.; VOLICH, R. M.; LABAKI, M. E. (orgs.) Psicanálise e</p><p>psicossomática. Casos clínicos, construções. São Paulo: Escuta, 2015.</p><p>VOLICH, R. M. Psicossomática: de Hipócrates à psicanálise. São Paulo: Casa do</p><p>Psicólogo, 2010.</p><p>WEINBERG, C.; BERLINK, M. T. A hiperatividade das anoréxicas: uma defesa</p><p>maníaca? In: WEINBERG, C. & GONZAGA, A. P. (orgs.) Psicanálise de transtornos</p><p>alimentares. São Paulo: Primavera Editorial, 2010.</p><p>O ESTATUTO DO CORPO E A ANOREXIA</p><p>NERVOSA</p><p>Um mais aquém da melancolia1</p><p>Ana Paula Gonzaga</p><p>Há alguns anos acompanhando pacientes com transtornos alimentares,</p><p>sobretudo com anorexia nervosa, venho pesquisando aspectos do funcionamento</p><p>psicodinâmico que remetem ao trabalho da melancolia. Pretendo discutir, partindo</p><p>do texto freudiano, o movimento regressivo que se instala em pacientes com</p><p>anorexia nervosa (que necessariamente não se aplica a todas, mas é expressivo na</p><p>clínica), que nos permite essa digressão ao que proponho como um funcionamento</p><p>aquém da melancolia.</p><p>Luto e melancolia</p><p>Em seu artigo Luto e Melancolia [2011(1915)], Freud se ocupa em apresentar o</p><p>processo de luto – “reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que</p><p>esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal, etc.” (p. 47) – como um trabalho</p><p>de desinvestimento realizado pelo psiquismo sobre o objeto perdido. Considera esse</p><p>processo necessário e normal, especialmente pela retirada da libido que recai sobre</p><p>o objeto que já não se faz mais presente, deixando-a, assim, livre para novos</p><p>investimentos. O caráter de realidade é, portanto, inquestionável; bem como o</p><p>envolvimento dos processos pré-conscientes/conscientes.</p><p>Há casos, contudo, em que o processo não se dá assim, em que além do</p><p>desânimo, do desinteresse pelo mundo, da perda da capacidade de amar e da</p><p>redução da capacidade de trabalhar, há um expressivo “rebaixamento do sentimento</p><p>de autoestima que se expressa em autorrecriminações e autoinsultos” (op. cit., p. 47).</p><p>Freud compreende tratar-se de processos melancólicos, em que sublinha a distinção</p><p>concernente à alteração da autoestima e também ao caráter da perda que não recai,</p><p>necessariamente, na morte de um ente querido, mas sim na sua natureza ideal, algo</p><p>que se perdeu como objeto de amor. Relaciona à melancolia um caráter</p><p>fantasmático e inconsciente e nos aponta, tal qual no luto, em que se faz claro o</p><p>caráter de trabalho – elaboração psíquica –, o mesmo atributo. É por essa qualidade</p><p>de trabalho que a melancolia possibilita que, internamente, se busca reparar uma</p><p>perda no ego.</p><p>Desse modo, Freud nos ensina que, se soubermos ouvir com paciência as</p><p>múltiplas autoacusações do melancólico, compreenderemos que seus insultos</p><p>recaem menos à sua própria pessoa, mas sim a alguém a quem o doente ama, amou</p><p>ou deveria amar. “Desse modo, tem-se à mão a chave do quadro clínico, na medida</p><p>em que se reconhecem as autorrecriminações como recriminações contra um</p><p>objeto de amor, a partir do qual se voltaram sobre o próprio ego” (op. cit., p. 59).</p><p>O processo, o trabalho, que Freud assinala aqui como próprio à melancolia, tem</p><p>por base a identificação em que predomina a escolha narcísica de objeto. Enquanto</p><p>nos processos normais, quando se deixa de amar algo ou alguém, há uma retirada</p><p>da libido desse objeto e consequente deslocamento para um novo objeto, aqui há</p><p>uma transferência ao ego. A libido livre não se volta para o objeto externo, mas sim,</p><p>para o próprio ego. Há uma identificação do ego com o objeto abandonado.</p><p>Para compreendermos como esse processo se dá, Freud nos propõe reconstruí-</p><p>lo: considera que, se por um lado houve uma forte fixação no objeto de amor, por</p><p>outro e, em contradição, pouco investimento objetal; o que pressupõe que essa</p><p>escolha tenha sido feita em bases narcísicas. “A identificação narcísica com o objeto</p><p>se torna então um substituto do investimento amoroso e disso resulta que, apesar</p><p>do conflito, a relação amorosa com a pessoa amada não precisa ser abandonada.” E,</p><p>enfatiza: “Tal substituição do amor objetal por identificação é um mecanismo</p><p>importante para as afecções narcísicas” (op. cit., p. 63). Há, assim, uma regressão</p><p>para o narcisismo originário, que encontrará uma rede de significados, provenientes</p><p>de investimentos objetais inconscientes, que se prestarão a figurar essa imagem</p><p>identificada no ego.</p><p>Mas, o que tem um peso diferencial na melancolia é o conflito de ambivalência.</p><p>Se, por um lado, há um forte investimento libidinal no objeto perdido pelo ego, por</p><p>outro, há um ódio imenso pelo prejuízo causado por seu abandono. Assim, o ódio e</p><p>a raiva sobrepõem os laços amorosos e parte do ego se vê identificado com o</p><p>objeto que lhe era tão caro, mas que em função da dor sentida por sua perda,</p><p>dispara uma batalha violenta: “ódio e amor combatem entre si: um para desligar a</p><p>libido do objeto, outro para defender contra o ataque essa posição da libido” (op.</p><p>cit., p. 81).</p><p>Encontramos nesse texto a base para discutir, o que suponho, um mecanismo</p><p>presente nos quadros dos transtornos alimentares, especialmente na anorexia</p><p>nervosa.</p><p>A clínica da anorexia nervosa</p><p>Não é incomum que esses pacientes, predominantemente mulheres, associem o</p><p>início da anorexia a uma perda importante: uma decepção amorosa, uma mudança,</p><p>uma perda financeira, a perda de um lugar ou status, etc. E também, bastante</p><p>comum, essa perda se sobrepõe à entrada na adolescência, que por si demanda um</p><p>trabalho de luto. O que presenciamos é o que se aproxima, ou vai além, de um</p><p>processo melancólico: invariavelmente, essa paciente acredita que há algo que deve</p><p>ser modificado em si mesma para que não venha a perder novamente. Suas</p><p>autorrecriminações recaem sobre a forma de seu corpo: crê, por exemplo, que se</p><p>“não fosse gorda e cheia de deformações” não teria lhe acontecido tal sorte. Trata</p><p>de maneira acusatória e autodepreciativa o que estiver relacionado à sua imagem,</p><p>sobretudo sua aparência, e o que possa derivar para aspectos idealizados. Assim,</p><p>algo deve ser feito em seu corpo que altere esse estado de coisas.</p><p>Freud (op. cit.) chama a atenção para que “o quadro clínico da melancolia põe em</p><p>destaque o desagrado moral com o próprio ego, acima de outros defeitos. Defeito</p><p>físico, feiura, fraqueza e inferioridade social, muito mais raramente são objeto de</p><p>autoavaliação […]”. Porém, o que escutaremos, repetidamente, exaustivamente e</p><p>com muita aflição e dor desses pacientes é uma queixa referida à aparência física,</p><p>destituída de realidade, em que pesam a deformação, a feiura e a gordura.</p><p>O que nos surpreende é que não estamos diante de alguém que pudesse ser</p><p>considerada gorda ou deformada por ocasião dessa proposição. Raramente uma</p><p>paciente com anorexia iniciou uma dieta que pudesse ser prescrita por um</p><p>profissional especializado. Que representação corporal é essa que se apresenta?</p><p>Com que imagem/objeto essa paciente está identificada?</p><p>Primeiros tempos</p><p>Em trabalho anterior (GONZAGA, 2010), propus uma digressão que nos</p><p>permitisse compreender como esse corpo imaginado pela anoréxica remeteria à</p><p>construção narcísica de sua identidade. Nesse sentido, os processos identificatórios</p><p>se dariam por um superinvestimento narcísico materno, tornando-a assim, refém</p><p>das imagens projetadas nesse enlace e que causariam tanto estranhamento por</p><p>ocasião do adoecimento. Um corpo que não reconhece como seu, que não lhe</p><p>causa admiração ou prazer.</p><p>Silvia Bleichmar (2005), ao postular a constituição do psiquismo, sublinha a</p><p>importância de considerarmos o recalque originário como tempo fundante (p. 109)</p><p>e como dispositivo analítico para operar terapeuticamente. E nos faz compreender</p><p>que o que funda o aparelho psíquico e</p><p>dos anos 1920,</p><p>quando a lógica compulsiva e a lógica perversa vêm marcar definitivamente seu</p><p>lugar no interior da metapsicologia (FERNANDES, 2013).</p><p>Um passeio pela literatura psicanalítica sobre a anorexia e a bulimia nos permite</p><p>constatar que a compreensão desses quadros clínicos transita nos escritos</p><p>psicanalíticos privilegiando quatro dimensões: a dimensão neurótica, cujo modelo</p><p>seria, por excelência, a histeria; a dimensão narcísica, que teria como paradigma a</p><p>melancolia; a dimensão de neurose atual, representada pelo modelo da somatização;</p><p>e a dimensão impulsiva, ilustrada pelo modelo das adições.</p><p>Observa-se que, a partir do momento em que a anorexia não é mais</p><p>exclusivamente identificada à histeria, o que parece ocorrer em função da</p><p>progressiva consideração da bulimia, parece haver um descentramento da questão</p><p>da oralidade e da sexualidade em direção, primeiramente, às considerações a</p><p>respeito das relações objetais primárias e, em seguida, em direção à questão do</p><p>corpo. É assim que as atenções se voltam para a importância das perturbações da</p><p>imagem do corpo nessas patologias.</p><p>Pode-se dizer que, desde sempre, as contribuições de Freud insistem que as</p><p>dificuldades das jovens anoréxicas e bulímicas não se referem à alimentação em sua</p><p>materialidade concreta, mas sim às dimensões fantasmáticas que a alimentação</p><p>desperta em seu funcionamento psíquico. É importante precisar que o conflito não</p><p>é entre a jovem e a comida, mas se refere às múltiplas significações a que a</p><p>alimentação reenvia. Para a psicanálise, tais significações engajam necessariamente o</p><p>corpo e o outro. Sendo assim, a meu ver, uma melhor compreensão dos distúrbios</p><p>da função alimentar não poderia deixar de assinalar as vicissitudes da construção do</p><p>corpo no processo de constituição do sujeito.</p><p>Os trabalhos psicanalíticos, sobretudo os mais recentes, enfatizam a dificuldade,</p><p>particularmente da jovem anoréxica, em assumir seu papel sexual genital e integrar</p><p>as transformações próprias da puberdade, salientando que seu conflito principal se</p><p>situa no nível do corpo e não no nível da função alimentar. Ora, esses trabalhos</p><p>apontam para a necessidade de continuarmos a explorar as vicissitudes da relação</p><p>precoce do bebê com a mãe para melhor compreender não apenas as dificuldades</p><p>ligadas à feminilidade, mas também a importância da mãe no gerenciamento</p><p>pulsional.</p><p>Não se deve esquecer que a anorexia e a bulimia não atingem apenas as</p><p>mulheres. Embora exista uma predominância nitidamente feminina, não se trata de</p><p>uma exclusividade. Aliás, nos últimos anos, os relatos de casos masculinos têm</p><p>aumentado consideravelmente. Porém, essa predominância feminina nos levou a</p><p>aprofundar nossa investigação na tentativa de precisar as especificidades</p><p>decorrentes do fato de o objeto primário da menina poder funcionar como espelho</p><p>de si no futuro, bem como nos levou a pensar as vicissitudes do gerenciamento</p><p>pulsional na adolescência, cada vez mais ampliada em tempos pós-modernos, e sua</p><p>relação com a diferenciação, a autonomia, o tempo e a morte (FERNANDES,</p><p>2006a; 2011; 2012; 2013a).</p><p>Com todo este percurso esperamos ter conseguido demonstrar que os</p><p>apontamentos e as reflexões de Freud sobre a anorexia e a bulimia testemunham</p><p>uma riqueza teórica a ser explorada ainda em nossos dias, pois, como se sabe, a</p><p>pluralidade dos recursos disponíveis atualmente para o tratamento desses quadros</p><p>clínicos deixa claro que a psicanálise é um recurso entre outros. Cabe então ao</p><p>psicanalista não só conhecer a existência desses recursos para poder usá-los ou</p><p>refutá-los, segundo a especificidade da demanda que lhe é dirigida, mas também</p><p>conhecer os fundamentos da especificidade da contribuição teórico-clínica da</p><p>psicanálise ao estudo dessas patologias.</p><p>Acreditamos que explicitar os modelos freudianos que certamente inspiraram as</p><p>contribuições posteriores dos muitos psicanalistas que se confrontaram com esses</p><p>casos tem ainda o objetivo de contribuir para fazer avançar a pesquisa psicanalítica.</p><p>Entendemos que avançar na compreensão desses casos clínicos implica privilegiar o</p><p>rigor de nossas contribuições teóricas e a criatividade de nossas intervenções</p><p>clínicas, pois o manejo terapêutico da anorexia e da bulimia permanece, ainda hoje,</p><p>um verdadeiro desafio.</p><p>Notas:</p><p>1. A esse respeito, remeto o leitor ao capítulo 4: A função alimentar: entre o corpo, o eu e o outro do meu livro</p><p>Transtornos alimentares: anorexia e bulimia (Fernandes, 2006a).</p><p>2. Sobre isso remeto o leitor à noção de procedimentos autocalmantes desenvolvida por Claude Smadja e Gérard</p><p>Szwec para compreender as somatizações. A discussão a respeito da pertinência metapsicológica dessa noção</p><p>deu origem a um volume da Revue Française de Psychosomatique, em 1993.</p><p>Referências</p><p>ALONSO, S. O que não pertence a ninguém… e as apresentações da histeria. In:</p><p>FUKS, L. B.; FERRAZ, F. C. (orgs.) A clínica conta histórias. São Paulo: Escuta, 2000.</p><p>FERNANDES, M. H. Corpo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.</p><p>FERNANDES, M. H. Transtornos alimentares: anorexia e bulimia. São Paulo: Casa do</p><p>Psicólogo, 2006a.</p><p>FERNANDES, M. H. A mulher-elástico. Viver – mente & cérebro, 161:28-33, 2006b.</p><p>(Artigo republicado na Edição Especial As faces do feminino: dimensões psíquicas da</p><p>mulher. Mente & cérebro, 18:78-82, 2009.)</p><p>FERNANDES, M. H. As mulheres, o corpo e os ideais. In: VOLICH, R. M.,</p><p>FERRAZ, F. C., RANÑA, W. (org.) Psicossoma IV: corpo, história e pensamento. São</p><p>Paulo: Casa do Psicólogo, 2008. p. 207-220.</p><p>FERNANDES, M. H. Le corps fétiche: La clinique miroir de la culture. In:</p><p>GASPARD, J-L. & DOUCET, C. (orgs.) Pratiques et usages du corps dans notre modernité.</p><p>Toulouse: Érès, 2009. p. 117-127.</p><p>FERNANDES, M. H. O corpo recusado na anorexia e o corpo estranho na</p><p>bulimia. In: GONZAGA, A. N.; WEINBERG, C. (orgs.) Psicanálise de transtornos</p><p>alimentares São Paulo: Primavera, 2010. p. 39-69.</p><p>FERNANDES, M. H. O corpo e os ideais na clínica contemporânea. Revista</p><p>Brasileira de Psicanálise, 45(4):, p. 21-33, 2011.</p><p>FERNANDES, M. H. Mãe e filha… uma relação tão delicada… In:</p><p>MARRACCINI, E. M. et al.(orgs.) Limites de eros. São Paulo: Primavera, 2012. p. 87-</p><p>119.</p><p>FERNANDES, M. H. La construction du corps dans l´anorexie des jeunes filles.</p><p>In: BUTNARU, D. & LE BRETON, D. (orgs.) Corps abîmés. Strasbourg: Presses de l</p><p>´Université Laval, 2013a. p. 31-40.</p><p>FERNANDES, M. H. El cuerpo et los ideales en el malestar femenino. In:</p><p>OREJUELA, J. J.; MORENO, M. A. (orgs.) Abordajes psicoanalíticos a inquietudes sobre</p><p>la subjetividad II. Cali: Bonaventuriana, 2013b. p. 59-68.</p><p>FERNANDES, M.H. A clínica psicanalítica da anorexia e da bulimia e a lógica</p><p>perversa. Cadernos de Psicanálise da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro –</p><p>SPCRJ, v. 29, n. 32, p. 61-81, 2013c.</p><p>FREUD, S. Um caso de cura por hipnose. E.S.B., v. 1, 1893a.</p><p>FREUD, S. Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos. E.S.B., v. 3,</p><p>1893b.</p><p>FREUD, S. & BREUER, J. [1895a] Etudes sur l’hystérie. Paris: P.U.F., 1996.</p><p>FREUD, S [1895b] Manuscrit G. In: Naissance de la Psychanalyse. Paris: P.U.F., 1991.</p><p>FREUD, S. Du bien-fondé à séparer de la neurasthénie un complexe de symptômes</p><p>déterminé, en tant que ‘névrose d’angoisse’. In: Oeuvres Complètes. Paris: P.U.F., v. 3,</p><p>1895c.</p><p>FREUD, S. [1899] Lettres a Wilhelm Fliess. In: Naissance de la psychanalyse. Paris:</p><p>P.U.F., 1991.</p><p>FREUD, S. [1904] La méthode psychanalytique de Freud In: La technique</p><p>psychanalytique. Paris: P.U.F., 1994.</p><p>FREUD, S. [1905a] Fragmento da análise de um caso de histeria. E.S.B., v. 7.</p><p>FREUD, S. [1905b] De la psychothérapie . In: La technique psychanalytique.</p><p>fixa o inconsciente (derivando daí o ego e as</p><p>instâncias ideais) advém de um outro que, além dos cuidados primários, inscreve</p><p>“restos” recalcados de sua própria conflitiva. Revela, assim, como o agente</p><p>produtor instaura o psiquismo incipiente e de onde esse último retira sua força,</p><p>dada pelo</p><p>duplo caráter do funcionamento psíquico parental, do fato de que os pais produzem</p><p>inscrições sexualizantes e também inibições regressivas por estarem atravessadas</p><p>por dois sistemas psíquicos em conflito, atravessados por desejos e proibições. A</p><p>partir de seus desejos inconscientes, da sua sexualidade recalcada – não só edípica,</p><p>mas também pulsional –, implantam desejos que a partir de seu próprio narcisismo,</p><p>desde o ego, desconhecem e recalcam a posteriori (op. cit., p. 118).</p><p>Encerra essa discussão perguntando o que faz com que a criança não</p><p>enlouqueça, já que os pais parecem propor aquilo mesmo que proíbem.</p><p>No caso de nossos pacientes com anorexia nervosa, em especial as meninas, para</p><p>quem a subjetivação da feminilidade é atravessada por essa identificação primária</p><p>resultante dos tempos fundantes pelo enlace materno, parece haver aí algo que</p><p>remete a esse “resto recalcado” que advém do inconsciente parental. Esse</p><p>sobreinvestimento que não pode ser metabolizado por um aparelho ainda incipiente</p><p>e não clivado, e que, como nos alerta Bleichmar, em “momentos de regressão tão</p><p>intensos como são os tempos de maternagem, tempos em que o corpo está</p><p>implicado de uma maneira direta”, sofrerá por não encontrar outras vias de</p><p>descarga ou ligação se estiver diante de uma carga excessiva do narcisismo amoroso</p><p>da mãe. E assim, a menina “enlouquece”.</p><p>Narcisismo e feminilidade</p><p>Em Sobre o narcisismo: uma introdução (1914), Freud assinala que a escolha objetal</p><p>feita pelas mulheres é preferencialmente narcísica: elas tomam por objeto sexual</p><p>aqueles que as amam ou que as convertem em seu ideal; que restituam sua</p><p>autoestima. Para ampliar essa compreensão, recorro a Hugo Bleichmar (1989), que</p><p>aborda o tema do narcisismo considerando duas ordens de problema, o da relação</p><p>entre o ego e o objeto e o da vivência de perfeição, de autossatisfação, de plenitude.</p><p>Tomando o narcisismo primário como objetal, uma vez que o próprio corpo ou o</p><p>“si mesmo” se ofereceria como objeto de amor para o sujeito, reitera a importância</p><p>do outro na construção das representações que serão base das identificações.</p><p>Assinala ainda que “identificação e narcisismo são incompreensíveis se não forem</p><p>articulados com a divisão em consciente e inconsciente, essencial para a psicanálise.</p><p>Com relação à imagem inconsciente, o ego e o outro são o mesmo” (p. 36). H.</p><p>Bleichmar destaca ainda que o amor do narcisismo se caracteriza pela idealização, o</p><p>que potencializa os sentimentos de perfeição, beleza, encantamento e inteligência,</p><p>entre outras qualidades associadas aos ideais.</p><p>Remete-nos, a partir daí, à constatação de que essas valorizações implicam uma</p><p>ordem simbólica que é exterior ao sujeito e na qual se inscreve. “É o outro quem</p><p>converte meros objetos anatômicos em algo digno de ser admirado como belo.</p><p>Resulta fácil imaginar as múltiplas situações em que uma mãe pode converter em</p><p>adorados os olhos e os cachos de cabelos de sua filha ou em notáveis as produções</p><p>intelectuais ou físicas das mesmas” (op. cit., p. 38). E assinala, também, que o</p><p>narcisismo dos pais estará diretamente referenciado na satisfação de suas próprias</p><p>necessidades de hiperestima ao valorar seus filhos.</p><p>Freud (1923), ao apresentar e sintetizar suas concepções sobre o funcionamento</p><p>mental – trabalhando com o conceito de inconsciente e sua aplicação às instâncias</p><p>psíquicas –, afirma que o “o ego é acima de tudo, um ego corporal; não é</p><p>simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio a projeção de uma</p><p>superfície”, e esclarece em nota de rodapé como se constitui, em última análise, a</p><p>partir das sensações corporais que ganharão representação mental no aparelho</p><p>psíquico.</p><p>Assim, não podemos deixar de considerar que o corpo do bebê nesse</p><p>primeiríssimo tempo fica à mercê do inconsciente materno e que poderá fixar, por</p><p>consequência, marcas, no que virá a ser representado como ego corporal. Nos casos</p><p>de pacientes com anorexia nervosa, podemos levantar a hipótese de que essas</p><p>marcas resultam de aspectos fusionados ao narcisismo materno, muito</p><p>provavelmente também produto das representações do seu próprio ego corporal.</p><p>Não é raro nos depararmos com mães que apresentam insatisfações importantes</p><p>com sua aparência e que se preocupam excessivamente com seu corpo e sua</p><p>alimentação. Apresentam ideais e exigências que muitas vezes recaem não somente</p><p>sobre si, mas sobre toda família. Também não é incomum o caráter transgeracional</p><p>nessas famílias.</p><p>Além disso, temos observado que oito em cada dez pacientes do sexo feminino</p><p>que têm anorexia nervosa são filhas únicas ou primogênitas,2 o que sugere a</p><p>importância da subjetivação da feminilidade na dupla mãe-filha.</p><p>Dessa forma, a problemática resultante para essa menina parece ser conseguir</p><p>superar, separar o que seria um ideal do outro impingido em seu corpo/psiquismo.</p><p>Quando por ocasião de uma nova convocação, também dada pelo corpo, de</p><p>diferenciação e consequente independência identificatória, uma falha parece se</p><p>impor e nos vemos diante um destino dado ao pulsional que causa estranhamento e</p><p>dor: a libido que deveria se desligar de um objeto e ganhar novos investimentos</p><p>retorna ao ego, só que, nesse caso, ao ego corporal que encarnaria representações</p><p>identificatórias primitivas.</p><p>Em artigo já citado (GONZAGA, 2010), considerei que para poder continuar</p><p>vivendo, a anoréxica tem a tarefa de desencarnar esse objeto intrusivo, incrustrado</p><p>no que propus ser seu narcisismo corporal.</p><p>A anorexia e o trabalho da melancolia</p><p>O que aconteceria então com nossas pacientes que desenvolvem um quadro de</p><p>anorexia?</p><p>Ao considerarmos a maior incidência dessa patologia na adolescência das</p><p>garotas, inevitavelmente remeteremos aos lutos que demandam elaboração por si</p><p>nessa fase do desenvolvimento – luto ao próprio corpo, à identidade infantil, aos</p><p>pais da infância e à bissexualidade. O que parece já ser uma tarefa difícil é</p><p>potencializada, via de regra, por outras perdas significativas já citadas (decepção</p><p>amorosa, mudança, separações, viagens, intercâmbio, etc.), e então assistimos a essa</p><p>jovem atribuir a um suposto “defeito” em seu corpo a causa de seu fracasso.</p><p>Parece, sobretudo, que diante do fracasso de um processo de luto normal, o que</p><p>poderia ser um trabalho melancólico que lhe outorgasse a possibilidade de</p><p>encontrar em representações mentais a identificação narcísica própria a esse</p><p>processo vai além e transfere para o corpo a tarefa de realizar tal processo.</p><p>A ambivalência das relações amorosas, que já configura na melancolia o amor e o</p><p>ódio dirigidos ao objeto, encontra aqui peculiar expressão. A entrada na</p><p>adolescência da menina lhe impõe a tarefa de desligar as representações próprias ao</p><p>seu mundo infantil e, nesse caso, nos parece que a força dos investimentos impede</p><p>que esse desligamento siga um processo de luto próprio a essa etapa evolutiva.</p><p>Freud (1923, p. 81) enfatiza que, para haver um trabalho de luto, as representações</p><p>devem encontrar um caminho fluido do sistema inconsciente para o pré-</p><p>consciente/consciente, e que o mesmo não acontece na melancolia: “esse caminho</p><p>está bloqueado para o trabalho melancólico, talvez em consequência de inúmeras</p><p>causas ou de uma ação conjunta de causas”.</p><p>Reitero, mais do que um bloqueio que impeça a derivação para as representações</p><p>mentais inconscientes – que, no caso, promoveria</p><p>um quadro de melancolia –, o</p><p>que observamos é essa derivação para representações corporais. Parece que nesse</p><p>trabalho regressivo o ego já encontra o próprio objeto encarnado – e não a</p><p>“sombra do objeto”, como assinala Freud como característica central do trabalho</p><p>da melancolia.</p><p>Seguindo o texto freudiano, ao tratar a tendência ao suicídio na melancolia,</p><p>teremos que considerar que:</p><p>[…] a análise da melancolia nos ensina que o ego só pode matar a si próprio se</p><p>puder, por meio do retorno do investimento de objeto, tratar-se como um objeto, se</p><p>puder dirigir contra si a hostilidade que vale para o objeto e que representa a reação</p><p>primordial do ego contra os objetos do mundo externo (op. cit., p. 69).</p><p>A confusão que se estabelece no espelho da anoréxica parece nos contar sobre a</p><p>falta de discernimento entre ego, objeto e ego corporal. Confusão essa decorrente</p><p>do superinvestimento do narcisismo materno que potencializa o que lhe foi dado</p><p>como enunciado inconsciente, e que a impossibilita de realizar um processo</p><p>melancólico exitoso, que lhe ofereceria representações mentais para elaborar seus</p><p>lutos e que outorgaria ao ego sua principal atribuição, o discernimento. Ela</p><p>sucumbe, não percebe que castiga seu corpo; ao contrário, tem plena certeza que</p><p>não se alimentando está cuidando de um corpo deformado pela gordura. Dito de</p><p>outra maneira: está tentando pela via motora desinvestir a libido que recai sobre o</p><p>objeto de amor e ódio. Reage maniacamente: luta com toda energia, resultante da</p><p>retirada da libido objetal, contra si mesma, mas acreditando que dominou o inimigo.</p><p>O trabalho clínico</p><p>Laplanche (2015[2003], p. 194) também enfatiza a importância das relações inter-</p><p>humanas na gênese do psiquismo do infans,3 sobretudo por seu caráter assimétrico</p><p>no que diz respeito à sexualidade, e atribui a esse encontro uma peculiaridade na</p><p>comunicação, comprometida pelo inconsciente, que resultaria em mensagens</p><p>enigmáticas.</p><p>A situação antropológica fundamental confronta, num diálogo</p><p>simétrico/dissimétrico, um adulto que possui um inconsciente sexual</p><p>(essencialmente pré-genital) e um infans que ainda não constituiu um inconsciente,</p><p>nem a oposição inconsciente/consciente. O inconsciente sexual do adulto é</p><p>reativado na relação com a criança pequena, com o infans […] Estas mensagens</p><p>são, então, enigmáticas, ao mesmo tempo para o emissor adulto e para o receptor, o</p><p>infans.</p><p>Recorro a essas considerações de Laplanche, pois a partir daí ele discorrerá sobre</p><p>o caráter traumático dessa implantação e do que resultará como trabalho de</p><p>tradução por esse psiquismo incipiente, o que constituirá uma tarefa importante a</p><p>ser elaborada ao longo da existência. Contudo, nos alerta, essa tarefa pode fracassar,</p><p>parcial ou integralmente, e essas mensagens podem carecer de tradução. Assinala</p><p>que “o fracasso da tradução pode ter por resultado especialmente uma transmissão</p><p>tal qual, intergeracional, sem nenhuma metabolização” (p. 197). Laplanche aponta, a</p><p>partir daí, para a organização do funcionamento psíquico desde o que consideramos</p><p>normal ou neurótico até o borderline ou psicótico, ressaltando que “existiria em</p><p>todo ser humano uma espécie de estoque de mensagens não traduzidas: algumas</p><p>praticamente impossíveis de traduzir, outras na espera provisória de tradução” (p.</p><p>199).</p><p>No trabalho com pacientes com anorexia nervosa, levar em conta essas</p><p>considerações me ajudaram a refletir sobre como operar terapeuticamente com os</p><p>dispositivos analíticos que referenciam a clínica. Via de regra, não há como</p><p>trabalhar classicamente com a associação livre, interpretações ou análise da</p><p>transferência. Percebo-me diante de pacientes que não têm “vocabulário” para</p><p>traduzir suas insatisfações ou queixas, que pudessem minimamente remeter a</p><p>conflitos com estatuto representacional. O corpo é que confere esse estatuto e que</p><p>se apresenta marcado por signos que carecem dessa tradução.</p><p>Acompanhar essas pacientes, desde as queixas corporais, que não têm veracidade</p><p>ou realidade, me parece uma forma de dar alguma possibilidade de conversa sobre</p><p>algo que não se sabe falar. Se muito apressadamente tentamos dar um estatuto</p><p>representacional ao que está sendo apresentado, fracassamos de imediato. Ter a</p><p>delicadeza de reconhecer a falta de repertório que pudesse atribuir significados ao</p><p>sofrimento experimentado por esse corpo percebido como deformado é, a meu ver,</p><p>uma possibilidade de trabalho analítico. Perceber que o corpo é o depositário do</p><p>que não tem tradução, do que não foi metabolizado, quase sempre por mais de uma</p><p>geração, é realmente oferecer recursos para alguma elaboração. Sentimentos e</p><p>sensações ganham equivalências difíceis de serem discernidas, muitas vezes pela</p><p>paciente e, na melhor das hipóteses, algumas vezes pelo analista.</p><p>A morte não está em questão como possibilidade real para a anoréxica, ela não</p><p>tem por intenção morrer. Só poderá viver se puder matar sua imagem especular. E,</p><p>assim acredito, temos no espelho uma imagem fusionada, herança dos</p><p>primeiríssimos tempos, em que o ego corporal impede que as representações</p><p>mentais possam servir ao psiquismo, conferindo um caráter mais regressivo ao</p><p>trabalho da melancolia, que encontra no corpo sua expressão.</p><p>A melancolia que não pode ser elaborada confere ao corpo da anoréxica um</p><p>estandarte que denuncia seu sofrimento, mas não para ela mesma. Estamos quase</p><p>sempre aquém de algo que possa demandar um movimento terapêutico. Refletir</p><p>essa queixa, transformar em representações que outorguem trabalho psíquico como</p><p>nos ensina Freud, requer do analista um passo a mais: construir pontes para que as</p><p>palavras possam de fato contemplar seu objetivo e dar estatuto representacional ao</p><p>corpo. Capturar as mensagens em espera de tradução e aí sim poderemos falar</p><p>sobre as insatisfações – as autorreprovações dadas pelos ideais –, as reais</p><p>mandatárias desse sofrimento. Aí sim poderemos nos aproximar do objeto que está</p><p>encarnado ou encravado – na compreensão de Laplanche – e promover sua</p><p>“fantasmatização”, para que a “sombra do objeto recaia sobre o ego” e um trabalho</p><p>de luto/melancolia se faça possível.</p><p>Notas:</p><p>1. Este capítulo é uma modificação do artigo publicado: Anorexia: A failure of the work of a melancholia. São</p><p>Paulo, Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 15(3):649-656, sept 2012 (Suppl.).</p><p>2. Dados obtidos na Clínica de Estudos e Pesquisas em Psicanálise da Anorexia e Bulimia – CEPPAN.</p><p>3. Criança que não fala.</p><p>Referências</p><p>BLEICHMAR, H. Depressão: um estudo psicanalítico. 3. ed. Porto Alegre: Artes</p><p>Médicas, 1989.</p><p>BLEICHMAR, S. Clínica psicanalítica e neogênese. São Paulo: São Annablume Editora,</p><p>2005.</p><p>FREUD, S. [1915] Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição Standard Brasileira</p><p>das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1976. v. XIV.</p><p>_________. [1923] O Ego e o Id. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas</p><p>Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XIX.</p><p>_________. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011.</p><p>LAPLANCHE, J. Três acepções da palavra “inconsciente” no âmbito da teoria da</p><p>sedução generalizada. In: LAPLANCHE, J. Sexual – A sexualidade ampliada no sentido</p><p>freudiano – 2000 – 2008. Porto Alegre: Dublinense, 2015.</p><p>GONZAGA, A. P. Se esse corpo fosse meu… – Considerações sobre o</p><p>estranhamento na anorexia. In: GONZAGA, A. P.; WEINBERG, C. (orgs.).</p><p>Psicanálise de transtornos alimentares. São Paulo: Primavera, 2010.</p><p>_____________. Anorexia: A failure of the Work of Melancholia. Revista</p><p>Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, 15(3):649-656, sept. 2012</p><p>(Suppl.).</p><p>A RELEVÂNCIA DA INTERAÇÃO DA EQUIPE</p><p>MULTIDISCIPLINAR FORA DAS INSTITUIÇÕES</p><p>SOB A ÓTICA SIMBÓLICA QUE OPERA NO MANEJO</p><p>CLÍNICO DOS TRANSTORNOS ALIMENTARES1</p><p>Ana Tereza Arantes de Almeida Alonso</p><p>“Gostaria de ser um crocodilo vivendo no Rio São Francisco.</p><p>Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios,</p><p>pois são profundos como a alma de um homem.</p><p>Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas</p><p>são tranquilos e escuros como o sofrimento dos homens.”</p><p>– Guimarães Rosa</p><p>Grande Sertão Veredas</p><p>Introdução</p><p>Na proposta de falar algo sobre os transtornos alimentares, devemos ter sempre</p><p>em mente que estamos tocando em patologias complexas que têm etiologia</p><p>multifatorial e não são circunscritas a fatores socioeconômicos ou culturais. Dentro</p><p>da tal complexidade, se faz necessária uma intervenção multidisciplinar para o</p><p>tratamento.</p><p>Esse consenso compartilhado pelos profissionais que trabalham com</p><p>transtornos alimentares e suas síndromes parciais é baseado em evidências</p><p>científicas e trabalhos consistentes realizados, na grande maioria das vezes, em</p><p>instituições de porte, mantidas com recursos governamentais.</p><p>Esses redutos institucionais são capazes de oferecer um trabalho simultâneo e</p><p>integrado da equipe, tendo como tratamento padrão a participação de médicos</p><p>clínicos, endocrinologistas, psiquiatras e psicólogos (atendimento individual e</p><p>condução de grupos psicoeducativos com as famílias), nutricionistas e outros</p><p>profissionais da saúde. É na riqueza dessas diferentes frentes de atuação e na</p><p>interação constante da equipe que os melhores resultados puderam ser atingidos até</p><p>hoje.</p><p>Ocorre que esses redutos de trabalho têm uma possibilidade restrita de recepção</p><p>de pacientes, muitas vezes com fila de espera e, por serem instituições públicas,</p><p>precisam se organizar diante da melhora de cada caso para uma “alta institucional”,</p><p>disponibilizando novas vagas para os pacientes mais graves que aguardam. Porém, a</p><p>alta institucional não está ligada ao esgotamento da necessidade de continuidade de</p><p>trabalho, e sim, às condições possíveis para aquele paciente seguir sustentando</p><p>determinados processos com maior autonomia e fora da instituição.</p><p>Esses pacientes são, na grande maioria das vezes, encaminhados para processos</p><p>em consultórios particulares: terapêuticos, acompanhamento nutricional e</p><p>psiquiátrico. Tal equipe é única, por se configurar em torno daquele paciente.</p><p>Busco aqui apresentar um panorama de algumas questões psíquicas de complexa</p><p>densidade e determinantes dos transtornos alimentares, com as quais os</p><p>profissionais que se propõem a trabalhar no atendimento desses pacientes se</p><p>deparam. E, conclusivamente, pretendo abordar a potencialidade da riqueza</p><p>simbólica a ser trabalhada – na terapia – e na transferência – em um processo</p><p>terapêutico integrado a uma equipe multidisciplinar, constante e atuante. Portanto, o</p><p>argumento que defendo é a absoluta relevância da interação da equipe</p><p>multidisciplinar fora das instituições, sob a ótica simbólica que opera no manejo</p><p>clínico desses casos, articulada com as questões subjetivas presentes no</p><p>funcionamento desses pacientes.</p><p>Questões subjetivas relativas aos transtornos alimentares</p><p>Os transtornos alimentares apresentam características que se iniciam em idade</p><p>muito precoce e por anos correm o risco de permanecer sem serem notadas, ainda</p><p>mais na sociedade atual, que, predominantemente, não oferece um olhar de</p><p>estranhamento para um corpo muito emagrecido, para restrições alimentares</p><p>severas e até para a exclusão de certos grupos de alimentos com a intenção de</p><p>perder peso.</p><p>É na adolescência, quando a progressão da doença captura a atenção de que algo</p><p>realmente sério está acontecendo na vida daquela pessoa, que a maioria dos</p><p>diagnósticos são feitos. Steinhausen (2002) nos diz que os transtornos alimentares</p><p>“acometem cerca de 1% dos adolescentes, podendo chegar a consequências graves</p><p>(alta morbidade). Além disso, são responsáveis por 1% a 18% da mortalidade” (apud</p><p>BILYC, 2008, p. 1284-1293).</p><p>A adolescência é um período de intensas transformações, uma fase em que o</p><p>trânsito da dependência para a independência está em curso. As mudanças na</p><p>dinâmica familiar, dentro de casa, e sociais, no contexto escolar – até então os dois</p><p>universos mais conhecidos e seguros – estão a todo vapor.</p><p>Outra “casa” primordial também muda, transformações corporais significativas</p><p>modificam esse corpo conhecido em suas formas, funcionamentos e reações ante</p><p>questões internas e externas. Tudo isso é muito assustador na vivência do sujeito, da</p><p>família nuclear e expandida e professores. A velocidade de processamento com que</p><p>essas mudanças se darão não é igual interna e externamente, promovendo angústias,</p><p>medos e apreensões. Pesquisas e testes serão atuados na realidade pelo adolescente,</p><p>na tentativa de construir e enriquecer o percurso único e autoral da constituição da</p><p>própria personalidade. As figuras de identificação até então, materna e paterna, são</p><p>vividas com enorme ambiguidade e a família sente o “curto-circuito” desses novos</p><p>formatos de relação.</p><p>Essas primeiras decolagens da vida em voo solo no sentido da individuação</p><p>exigem a diferenciação e a discriminação do que é sentido como “eu” e como “não</p><p>eu”.</p><p>Tratando-se de pessoas com transtorno alimentar, nas quais a problemática</p><p>orbita justamente pela precária possibilidade que tiveram de se diferenciar do objeto</p><p>e constituir relação entre eu e outro (ponto que me debruçarei mais adiante), o</p><p>corpo que se impõe com novas formas e possibilidades é sentido como</p><p>extremamente ameaçador e já um outro em si. A recusa e/ou a desorganização</p><p>diante dessa condição do desenvolvimento humano – adolescência – desencadeiam</p><p>o sentimento de grande descontrole, ainda mais intenso na vivência desses</p><p>pacientes que têm uma falha na constituição egoica. Com um ego precariamente</p><p>estabelecido, incapaz de ancorar tal volume de angústia, movimentos na tentativa de</p><p>interceptar a sensação de desamparo e descontrole são promovidos e abre-se o</p><p>caminho para que intensas investidas de controle se deem no mundo externo e</p><p>concreto. Portanto, o que ocorre é uma defesa ante a angústia resultante das</p><p>intensas modificações supracitadas.</p><p>Exemplifico aqui com a carta de uma adolescente com transtorno alimentar:</p><p>Corpo,</p><p>não tenho muito a dizer, você sabe o quanto te odeio por não ser como eu quero,</p><p>até aceito não ser alta mas não admito que não possa ser magra, esquelética do jeito</p><p>que eu gosto principalmente nas coxas que é o que eu mais odeio em você. Não</p><p>posso ceder às suas vontades porque se eu deixo você seguir o seu percurso</p><p>biológico naturalmente sei que você será maior me deixando com mais curvas e</p><p>tornealidade do mesmo jeito que você era quando eu tinha 14 anos (coxas grossas</p><p>enormes e cheias de celulite) inadmissíveis na sociedade.</p><p>É obvio que não gosto de me sentir cansada, indisposta às vezes com dores no</p><p>corpo ou então passar mal, eu sei como é e o quanto é ruim e o quanto você não</p><p>me ajuda com relação a muitas coisas na alimentação e “não” sinto ao lhe informar</p><p>que não consigo, não devo, não posso e não vou parar até encontrar o “meu</p><p>equilíbrio”, o equilíbrio que quero, é claro.</p><p>Não sei se algum dia vou poder parar, não faço ideia de até quando vou continuar</p><p>cavando e jogando terra no mesmo buraco.</p><p>Outra coisa que não te suporto são as vezes em que do nada me faz sentir fome,</p><p>aquela fome maior do que o “meu normal”, isso me incomoda, me deixa com muita</p><p>raiva e por isso muitas vezes te burlo e não cumpro os combinados que faço.</p><p>Não te suporto, não vou ficar do jeito que você quer e não vou permitir essa</p><p>tragédia na minha vida, vou ser bem sincera com você,</p><p>a verdade é que por tempo</p><p>indeterminado não conte comigo pois já estou fazendo demais por você. Muito mal</p><p>sabe você o inferno interno que eu tenho e muito menos o demônio que comanda</p><p>isso tudo e fica falando, falando, falando e falando coisas dentro da minha cabeça</p><p>todos os dias, para que eu nunca me esqueça de que ele está e sempre estará ali me</p><p>atormentando e me “acompanhando” sempre. Por tanto me sinto com todo o</p><p>direito de jogar na sua cara que estou pouco me lixando para você.</p><p>Na busca por uma oportunidade representacional que visa a uma elaboração,</p><p>funcionamentos obsessivos podem ser atuados em diversas situações: o grama no</p><p>peso corporal, o milímetro na circunferência da coxa, o ritual da alimentação e</p><p>distribuição do alimento no prato… Por certo período, uma paciente chegou quase</p><p>a ficar careca, pois não admitia que seus cabelos não nascessem em uma linha</p><p>perfeita. Ela arrancou progressivamente cada fio, na esperança de atingir tal linha.</p><p>Media suas coxas todos os dias com a mesma fita métrica e, como consequência de</p><p>uma oscilação indesejada de milímetro, se punia fisicamente.</p><p>Nessa fase, o dano em curso afeta toda a potencialidade de vida desses</p><p>indivíduos: aspectos do funcionamento físico, mental e social são prejudicados. O</p><p>desenvolvimento nutricional deficitário muitas vezes compromete o crescimento e a</p><p>chegada dos caracteres secundários de gênero. Todos os investimentos libidinais são</p><p>tingidos pela dinâmica de sua vida psíquica.</p><p>Tal dinâmica detém questões primitivas, datadas do período pré-edípico. Os</p><p>aspectos de fusionalidade são frequentes, e a rigidez superegoica primitiva também</p><p>se faz presente. McDougall (2000, p. 158-9) relata que:</p><p>A doença é uma maneira muda do comunicar pensamentos e sentimentos que</p><p>nunca tinham podido ser elaborados psiquicamente, é uma expressão de temores</p><p>libidinais arcaicos e de desejos fusionais acessíveis à consciência, porém</p><p>acompanhados de fúria narcísica e de pavor primitivo, totalmente inconscientes.</p><p>Retomo aqui o olhar para as relações primárias do desenvolvimento psíquico. A</p><p>relação inaugural que temos com o mundo se dá através da mãe. É diante da</p><p>intenção de despender os cuidados físicos necessários que a experiência de</p><p>satisfação advirá. Nessa vivência, como diz Freud (1895), determinada parte do</p><p>corpo será alçada a ser uma zona erógena. Existe aqui a marca da diferença entre</p><p>uma parte corporal e uma zona erógena, aquela que, para além do estancamento</p><p>momentâneo da necessidade física, vivencia a sensação de prazer, e recebe para</p><p>sempre a marca do desejo. Essa primeira relação objetal será de alguma forma</p><p>balizadora para todas as relações objetais futuras.</p><p>Transitando também por autores, como Aulagnier, Bleichmar, Laplanche, amplio</p><p>a importância do primeiro olhar, o materno. Olhar este que carrega as marcas das</p><p>vivências da mãe e denuncia a forma com que ela lidou e o quanto elaborou as</p><p>próprias pulsões parciais. Essa relação se dará recoberta pelo próprio narcisismo</p><p>materno, que tomará o bebê como objeto sexual, e os cuidados serão</p><p>desempenhados sob a convocação do infantil materno.</p><p>Laplanche (1999) diz que a sexualidade e a pulsão vêm do outro, defendendo o</p><p>inconsciente materno como fundante, o qual contamina o biológico e inscreve as</p><p>vivências de satisfação. Mas aqui, tratando da problemática presente nos</p><p>transtornos alimentares, direcionarei minha atenção para a questão da intensidade e</p><p>da qualidade com que tudo isso é vivido. A intensidade e a qualidade de</p><p>investimento que ele receberá nessa relação primeva serão determinantes para</p><p>delinear a amplitude que o trânsito da pulsão de morte terá dentro do psiquismo do</p><p>sujeito, e toda sua possibilidade futura de realizar investimentos libidinais</p><p>encontrará, nessa vivência, seu alicerce.</p><p>Pierre Bourdieu (1974) chama a atenção para a violência existente no</p><p>movimento de introduzir o bebê em uma cultura por meio do contato materno.</p><p>Aqui nos deparamos com a violência simbólica que ocorre no encontro entre a mãe</p><p>e seu bebê, e que não é destrutiva, mas importantíssima e constitutiva. A</p><p>destrutividade aí estaria ligada à intensidade do investimento, em que um não</p><p>investimento ou um hiperinvestimento, são os grandes perigos.</p><p>Para McDougall (2000, p. 44):</p><p>À medida que se dá a lenta introjeção do ambiente maternal, o lactente começará a</p><p>fazer a diferença entre si mesmo e sua mãe e a recorrer a ela com total confiança,</p><p>para que ela lhe traga reconforto e alívio de seu sofrimento físico ou mental. Mas</p><p>quando, por razões inconscientes, uma mãe não consegue proteger o bebê da</p><p>superestimulação traumática (especialmente quando ele está sofrendo), ou quando o</p><p>expõe a subestimulação igualmente traumática, isso pode levá-lo a uma</p><p>incapacidade de distinguir a representação de si mesmo da representação do outro.</p><p>Consequentemente pode suscitar uma representação arcaica na qual os contornos</p><p>do corpo, o investimento das zonas erógenas e a distinção entre o corpo materno e</p><p>o corpo da criança permanece confusa.</p><p>Nos pacientes com transtornos alimentares, os estudos embasados na</p><p>experiência clínica apontam para um comprometimento dessa relação, na qual uma</p><p>vivência de excesso é tão comprometedora como uma aridez afetiva. As primeiras</p><p>relações vividas por eles – ou de mais, ou de menos – acarretarão uma precariedade</p><p>no estabelecimento do ego, carregando consigo uma falha na instauração do</p><p>aparelho psíquico. A falha no funcionamento psíquico dos pacientes com</p><p>transtornos alimentares reside na precariedade da representação que diferencia</p><p>sujeito e objeto. Este prejuízo na vivência do narcisismo primário tem como</p><p>herdeiro um ego fragilizado que fica à mercê do funcionamento de um ideal de ego</p><p>absolutamente rigoroso e submetido à intensa fúria narcísica.</p><p>Segundo Brusset (2008, p. 54-55):</p><p>Esta lógica regressiva tende a se significar aquém da representação que supõe a</p><p>diferença de um sujeito e de um objeto, a triangulação, o terceiro a partir do qual as</p><p>relações sujeito-objeto podem ser objetivadas e representadas […] A boa distância</p><p>não encontrável, entre o abandono e a intrusão privada de si, deixa-se ver tanto nos</p><p>registros da posição fálica e da castração quanto nos da analidade e oralidade. As</p><p>relações conflitivas entre objeto total e objeto parcial mostram que os</p><p>autoerotismos remetem à dependência basal de um objeto, sem poder estabelecer</p><p>um espaço de investimento próprio e durável.</p><p>A dinâmica familiar</p><p>Pessoas que desenvolvem um transtorno alimentar apresentam geralmente uma</p><p>dinâmica familiar característica. Por isso, cada vez mais, o trabalho não só com o</p><p>paciente mas também com seus familiares vem tomando lugar de extrema</p><p>importância no tratamento. Nossos estudos indicam que a indiferenciação e</p><p>consequente identificação com a figura materna têm como consequência a exclusão</p><p>da figura paterna. A relação entre mãe e filha no quotidiano denuncia a</p><p>fusionalidade, operando com frágeis aspectos de diferenciação. As famílias dos</p><p>pacientes com anorexia tendem a investir muita atenção para não entrarem em</p><p>conflito e manterem uma “união” como sistemas aglutinados, rígidos e com grande</p><p>evitamento de mudanças, como falam Turkiewicz et al. (2008, p. 69). As famílias de</p><p>pacientes bulímicos são mais caóticas, explicitam muitas críticas e emoções de</p><p>forma acalorada e se depreciam constantemente.</p><p>Percebemos que os casais estabelecem relações frágeis, sem espaços privados</p><p>para interações físicas e psíquicas. Existe acentuada dificuldade de conversar, se</p><p>divertir, ter hábitos e sustentar posicionamentos em comum. Diante disso não</p><p>conseguem garantir a</p>