O Brasil está no mapa? Reflexões sobre a inserção e a visibilidade do Brasil no mapa internacional das artes Ana Letícia Fialho No final dos anos 80, agentes da cena artística “internacional”, centralizada no eixo Europa Ocidental-Estada Unidos, começam a integrar cada vez mais artistas de regiões “periféricas” em seus discursos e práticas. Fora do eixo central, Bienais e outros eventos, assim como instituições de arte contemporânea começam a se multiplicar, e agentes que atuavam em escala regional passam a buscar visibilidade e inserção internacional, pressionando as fronteiras até então bem delimitadas do mainstream internacional. Num contexto histórico mais amplo, vive-se o fim da guerra fria, a globalização econômica e a expansão da internet, fenômenos que mudam de forma radical as noções de tempo, de distância e de fronteira. A intensidade e a velocidade com que pessoas, bens e informações passam a circular trazem oportunidades e desafios para regiões que, até então, não tinham voz no debate internacional. É nesse contexto que se inicia a configuração de um novo mapa das artes, supostamente mais democrático e descentralizado. No entanto, é importante se levar em conta que esse processo é muito recente e que suas conseqüências, embora observadas em escala global, não afetam de forma simultânea e similar as diferentes regiões do planeta. Daí a pertinência a se analisar tal fenômeno a partir de contextos determinados. A inserção internacional da produção brasileira tem sido objeto de meu trabalho de pesquisa nos últimos 10 anos.1 Hoje, interessa-me deslocar o foco da produção para o sistema das artes e pensar o lugar do Brasil no cenário internacional. De que forma os agentes, o mercado e as instituições estão presentes (campo da visibilidade) e atuam (campo do reconhecimento) na nova geopolítica internacional das artes? Qual é a sua participação na construção de valores da produção contemporânea global? Qual o grau de permeabilidade internacional do nosso sistema das artes e como ele se articula internacionalmente?2 Essas são algumas das questões sobre as quais repousa meu trabalho atual. Neste artigo, gostaria de abordar algumas delas, não de forma conclusiva, mas como ponto .de partida para construção de hipóteses que constituem a base de uma nova pesquisa,em sua fase inicial. 3 Mas para se pensar sobre o lugar do Brasil no mapa das artes é importante entender quais fatores dão origem a esse movimento. O que provoca essa “abertura” do restrito circuito internacional a regiões que, até então, não apareciam no mapa ou apareciam de forma residual? Quais interesses, disputas e negociações, no plano simbólico e econômico, estão em jogo nesse processo? As fronteiras e as hierarquias de fato desapareceram? É interessante observar que, apesar de se tratar de uma história muito recente, é possível identificar, pelo menos, duas fases bastante distintas nesse processo: a primeira se situa entre o final dos anos 80 e o começo dos anos 90, quando ocorre uma renovação controlada da oferta4, com uma expansão de fronteiras do mapa das artes a partir do centro e com um foco na produção artística, e a fase atual, que se inicia no final dos anos 90 e ainda se encontra em curso, na qual observamos o início de uma descentralização e multiplicação dos circuitos de legitimação.5 Até meados da década de 80, o mundo internacional das artes é, de certa forma, muito mais “internacional” e homogêneo. A produção, a validação e o consumo da arte contemporânea são extremamente concentrados. Um número limitado de instituições e de agentes internacionais define os valores da arte contemporânea no plano simbólico e econômico. O que acontece no “centro” tem alcance internacional, enquanto os sistemas das artes localizados nas zonas de silêncio6, embora funcionem em articulação com o sistema internacional, como no caso do Brasil, não logram participar ativamente e em pé de igualdade do debate internacional. A análise de alguns números da Documenta de Kassel de 1982 mostra claramente essa concentração: na sua sétima edição, dirigida por Radi Fuchs7, a Documenta exibe 1.000 obras de 170 artistas, sendo 60 dos Estados Unidos, 52 da Alemanha, 20 da Itália, 13 da Holanda, 12 da Inglaterra, 11 da Suíça, 6 da França, 3 do Canadá, 1 da Espanha e um da Bélgica. Esse é aproximadamente o mapa internacional das artes de então. No final da década de 80, esse sistema “internacional” vive um período de grande expansão: o boomcomeça no mercado, mas logo atinge as instituições; multiplica-se o número de exposições, e estas passam a circular mais. É nesse contexto que surgem grandes exposições com recortes geopolíticos, dedicadas à América Latina, à África, à Ásia, e que a produção dessas regiões começa a aparecer com mais freqüência tanto em pesquisas e publicações, como em vendas especializadas8. De forma geral,observa-se um aumento significativo da demanda por “novos produtos” no plano institucional, da academia e do mercado. No entanto, a forma como a produção das regiões não-centrais é apresentada oscila entre o elogio da diferença com ênfase em certa “exotização”; e a negação dessa diferença com base em critérios universais, caso em que essa produção é apresentada fora de contexto ou como “dependente” da produção “ocidental”9. Há uma clara distinção entre a produção “ocidental”, que se refere aos artistas do eixo central, considerados “internacionais”, e a chamada produção “não-ocidental” em que entram todos os artistas que não fazem parte domainstream internacional. 10 Um marco dessa época é a exposição Les Magiciens de la Terre, organizada por Jean- Hubert Martin em 1989 no Centro Georges Pompidou, em Paris, da qual participam Cildo Meireles e Mestre Didi. Considerada uma das primeiras exposições a abordar a produção contemporânea de forma global, assume uma posição a favor da diversidade e da diferença no mundo das artes, muito embora seja criticada por ainda trazer uma visão fortemente eurocêntrica.11Uma postura mais crítica em relação a essa dicotomia “centro-periferia” começa a se esboçar no final dos anos 90 12. A partir de então, a presença de artistas das mais diversas origens se consolida no circuito internacional de exposições e bienais, e sua produção passa a integrar as coleções de museus, a ser objeto de publicações e de pesquisas e a ser comercializada no mercado internacional. Se tomarmos como exemplo desse processo a produção brasileira, podemos observar que na década de 80 nenhum artista brasileiro participa de Kassel ou das exposições internacionais da Bienal de Veneza, já nos anos 90 isso começa a mudar, e nas última sedições esse número se amplia significativamente. Da mesma forma, a análise de coleções de referência, como as do MoMA ou da TATE Modern, indica que a produção brasileira vem ganhando visibilidade inédita, embora tal fenômeno seja muito recente; ele se torna, de fato, significativo a partir do ano 2000.13 A presença dos artistas no mercado internacional também vem crescendo, tanto no ponto de vista quantitativo quanto em relação a valores de venda. (Cf. Anexos I a VI). Ao que parece, a diversidade oferecida pela expansão das fronteiras deixa de ser somente uma estratégia do sistema internacional para renovar a oferta e cumprir com uma agenda pós-colonial, politicamente correta, estabelecida nos centros. Não apenas os artistas, mas também outros agentes do campo das artes, de diferentes regiões, começam a conquistar mais espaço e reconhecimento internacional. Os discursos neocoloniais se tornam raros, e as práticas curatoriais se tornam mais críticas, apontando com frequência para a complexidade e a diversidade da produção contemporânea e para a importância de se levar em conta os seus diferentes contextos de origem. Hoje, fala-se de uma arte contemporânea