Prévia do material em texto
<p>MUSEU, EDUCAÇÃO E</p><p>CULTURA</p><p>ENCONTROS DE CRIANÇAS E</p><p>PROFESSORES COM A ARTE</p><p>Maria Isabel Leite e</p><p>Luciana E. Ostetto (orgs.)</p><p>>></p><p>http://www.papirus.com.br/</p><p>http://www.papirus.com.br/</p><p>COLEÇÃO ÁGERE</p><p>Ágere, termo latino, é fonte primeira de duas</p><p>palavras de uso corrente em português: agir (que</p><p>chegou a nós do francês, agir) e arte (de ars,</p><p>artis).</p><p>Assim, escolhemos Ágere para denominar uma</p><p>coleção que busca instigar o debate e desenvolver</p><p>a crítica tanto no agir educacional, no sentido</p><p>amplo, relacionado às várias disciplinas que</p><p>integram o currículo (campo do universo</p><p>objetivo), quanto no campo da arte, via de</p><p>expressão privilegiada do universo subjetivo e</p><p>espelho das culturas e de seu tempo.</p><p>SUMÁRIO</p><p>PREFÁCIO</p><p>Ary de Macedo</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>Maria Isabel Leite e Luciana Esmeralda Ostetto</p><p>PARTE I</p><p>MUSEU, EDUCAÇÃO E CULTURA</p><p>1. MUSEUS DE ARTE: ESPAÇOS DE EDUCAÇÃO E CULTURA</p><p>Maria Isabel Leite</p><p>2. MUSEU DO BRINQUEDO COMO CENTRO CULTURAL</p><p>INFANTIL</p><p>Telma Anita Piacentini e Monica Fantin</p><p>3. OLHARES E SABERES DO ENCONTRO COM A ARTE</p><p>Gabriela Salles Argolo</p><p>4. TURBILHÃO DE SENTIMENTOS E IMAGINAÇÕES: AS</p><p>CRIANÇAS VÃO AO MUSEU, OU AO CASTELO...</p><p>Adriana Aparecida Ganzer</p><p>5. O SEU OLHAR MELHORA O MEU: O PROCESSO DE</p><p>MONITORIA EM EXPOSIÇÕES ITINERANTES</p><p>Adriana de Almeida Machado</p><p>6. ESPAÇOS DE CULTURA E FORMAÇÃO DE</p><p>PROFESSORES/MONITORES</p><p>Cristina Carvalho</p><p>PARTE II</p><p>ENCONTROS DE CRIANÇAS E PROFESSORES</p><p>COM A ARTE: OLHARES E DIZERES</p><p>1. DE LUZES E DE VOOS: EM BUSCA DA BELEZA PARA SER</p><p>HUMANO</p><p>Luciana Esmeralda Ostetto</p><p>2. AMPLIANDO MEU REPERTÓRIO VIVENCIAL, VIAJANDO E</p><p>ENTRANDO NO MUSEU</p><p>Magda Ugioni do Livramento</p><p>3. MEU ENCONTRO COM PICASSO... E COMIGO</p><p>Samantha Fernandes da Silva</p><p>4. O ESCOLAR – COMO VAN GOGH ME FEZ PENSAR SOBRE</p><p>ESCOLA</p><p>Celia Lucia Baptista Flores</p><p>5. COMI O ABAPORU COM OS OLHOS: UM MERGULHO</p><p>ANTROPOFÁGICO NAS CORES DE TARSILA</p><p>Rita Márcia Magalhães Furtado</p><p>NOTAS</p><p>SOBRE AS AUTORAS</p><p>OUTROS LIVROS DA COLEÇÃO ÁGERE</p><p>REDES SOCIAIS</p><p>CRÉDITOS</p><p>PREFÁCIO</p><p>Talvez nada exista de mais importante que isso: que para</p><p>nos deleitarmos com essas obras, devemos ter um</p><p>espírito leve, pronto a captar todo e qualquer indício</p><p>sugestivo e a reagir a todas as harmonias ocultas.</p><p>E.H. Gombrich, A história da arte</p><p>É com grande alegria que constatamos o desaparecimento de</p><p>antigos preconceitos contra os museus. Eram eles considerados</p><p>depósitos empoeirados que mereciam visita apenas em caso de</p><p>pesquisas especializadas, ou raríssimos surtos de curiosidade própria de</p><p>gente mais velha.</p><p>Envolvidos com atividades correlatadas a museus e órgãos</p><p>culturais, sem vínculo pecuniário, há mais de 40 anos, podemos</p><p>comparar a passada ausência de público com a atual alta frequência dos</p><p>museus.</p><p>Em 1962, a convite do então diretor do Museu Nacional de Belas</p><p>Artes do Rio de Janeiro, José Roberto Teixeira Leite, e aceitando sua</p><p>esplêndida sugestão, fomos fundadores, com outros companheiros, da</p><p>Associação de Amigos, a qual serviu e ainda serve de exemplo para</p><p>sociedades semelhantes. Publicações de álbuns de gravuras, valorização</p><p>da arte africana, destaque para os nossos fantásticos naïfs foram</p><p>algumas das atividades iniciais que visavam tornar “popular” a</p><p>importância do museu.</p><p>Na década de 1990, o entusiasmo e a competência da diretora do</p><p>MNBA, Heloísa Lustosa, fizeram reviver a Associação de Amigos;</p><p>Heloísa conseguiu, em sua inspirada gestão, dar o grande impulso e</p><p>indicar caminhos para a visitação em larga escala a nossos museus.</p><p>Indispensável lembrar as exposições, entre outras, de Rodin, Monet,</p><p>Dalí e do nosso Guignard, as quais atraíram milhares de visitantes. A</p><p>mostra de Monet, por exemplo, teve picos de 15 mil pessoas/dia e mais</p><p>de 400 mil pessoas em seu total. A semente lançada germinou e cresceu</p><p>com a megaexposição “Mostra do Redescobrimento”, inicialmente</p><p>apresentada em São Paulo e posteriormente ramificada em vários</p><p>museus do Brasil, dando continuidade às novas perspectivas,</p><p>demonstrando excelente receptividade do grande público, o qual, ficou</p><p>comprovado, necessitava daquelas oportunidades para confirmar o valor</p><p>e a importância da arte na vida da comunidade.</p><p>As teses e as esplêndidas conclusões de Luciana Esmeralda Ostetto</p><p>e Maria Isabel Leite, reveladas já em algumas publicações anteriores e</p><p>ora confirmadas, fazem acreditar que desapareceram, por completo,</p><p>aqueles antigos preconceitos, eles, sim, empoeirados e bolorentos.</p><p>É uma verdadeira proclamação das autoras o reconhecimento e a</p><p>divulgação de serem os museus de arte espaços de educação e cultura.</p><p>Daí partem corolários e premissas que vão desde a apreciação do</p><p>redescobrimento de linguagens até a busca da beleza para o ser humano.</p><p>No caminho, aprofundam temas que, esperamos, constituirão futuras</p><p>obras: novos olhares para a formação de professores; melhora da</p><p>qualidade de atendimento nos museus; abertura para novas experiências</p><p>que falem ou transmitam sentimentos; atenção ao que seriam atrações</p><p>para crianças; importância dos monitores como agentes ativos de</p><p>cultura – esses são temas de real importância que as autoras oferecem,</p><p>como dádivas, para quem desejar aproveitá-los e expandir-se em novas</p><p>direções da cultura. São acenos e promessas para novos impulsos</p><p>criadores, como um desafio a quem por eles se apaixonar e quiser se</p><p>embrenhar na realização de novos textos.</p><p>Algumas passagens e sugestões são inesquecíveis, neste livro.</p><p>Assim é o encontro do original da obra que era conhecida, pelo</p><p>observador, em reproduções. Essa visão, além de dominadora, pode</p><p>servir de abertura para outros caminhos, para outras “aventuras”</p><p>plásticas que enriquecerão o visitante do museu, como nenhuma</p><p>experiência “momentânea” poderá realizar. Dizemos “momentânea”</p><p>porque outros tipos de enriquecimento cultural demandam tempo, e</p><p>tempo longo. Assim, os valores literários só são apreciados depois de</p><p>vastas leituras; a apreciação musical, depois de muito ouvir. Só o</p><p>encontro com a obra de arte constitui o momento supremo (Stefan</p><p>Zweig não o contemplou!) que pode modificar e dar novos rumos à vida</p><p>do atento observador, ampliando seus conhecimentos na descoberta de</p><p>novos horizontes para a beleza.</p><p>Ousaríamos dizer que também encontramos neste livro preciosos</p><p>conselhos até para renomados críticos. Até onde tem o texto escrito o</p><p>direito de “invadir” as artes visuais? Até onde vai a responsabilidade</p><p>das informações? Como veiculá-las, com palavras esdrúxulas, sem</p><p>macular a obra, o objeto de sua apreciação?</p><p>Importante – de alta consideração – é enfocarmos a bibliografia e as</p><p>citações que enriquecem o volume. São elas fonte de buscas com</p><p>preciosas indicações para o desenvolvimento dos temas. Representam</p><p>um valioso auxílio para quem deseja o aprofundamento dos assuntos</p><p>abordados.</p><p>Nos “Encontros de crianças e professores com a arte”, título tão</p><p>bem-completado com “Olhares e dizeres”, encontramos testemunhos</p><p>vários, com os mais diversos aspectos de relacionamento, ou de</p><p>“aventuras”, que enriquecem, sobremodo, os principais temas do</p><p>volume. São complementações subjetivas com a pureza e o frescor que</p><p>só se encontram nas experiências pessoais que envolvam dedicação e,</p><p>por que não dizê-lo, amor ao que se faz. Ressaltar um ou alguns desses</p><p>testemunhos redundaria em meras traduções que quase sempre são a</p><p>simples sombra do original. Melhor lê-los em primeira mão, sem</p><p>impressões de terceiros, as quais, por certo, impediriam que cada leitor</p><p>pudesse tirar desses exemplos pessoais e inalienáveis o que de melhor</p><p>eles oferecem: a lembrança e a saudade de um encontro com a arte.</p><p>Recebendo tal impressão, terá o leitor a imensa vantagem de utilizá-la</p><p>em um próximo convívio com o museu e com a arte.</p><p>Merecem, as jovens autoras, nosso profundo respeito e nosso</p><p>agradecimento pelos caminhos que descortinam em suas louváveis</p><p>peregrinações. São as novas gerações que, agora, indicam caminhos de</p><p>cultura, como vias de educação e aprimoramento, estradas que,</p><p>passando pelos museus, visam atingir seu destino final – o</p><p>conhecimento e a valorização da arte.</p><p>Ary de Macedo[1]</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>Instigadas pela lacuna de publicações na área</p><p>na</p><p>sua palavra” (p. 72). Penso que essa cobrança pela cópia pode afastar</p><p>ainda mais as crianças de seus processos de criação. Quando vou</p><p>desenhar aquilo que quero, é sempre um novo desenho. A expressão</p><p>aflora de forma inaugural – então, por que copiar?</p><p>Em algumas turmas observadas, o tema é sugerido; em outras, ele é</p><p>deixado em aberto. Por que dirigir o desenho? Ou por que não fazê-lo?</p><p>Observando os trabalhos, mesmo aqueles cujo processo não</p><p>acompanhei, percebo que a proposta feita pode ter sido indutiva e</p><p>reprodutora. Crianças da mesma escola e da mesma sala fazem o</p><p>mesmo desenho – às vezes as pipas, outras vezes um barco ou baú, ou,</p><p>ainda, Dalí tomando banho de mar, o rinoceronte ou a Gala.</p><p>Perceber elementos comuns às várias crianças e, simultaneamente,</p><p>reconhecer elementos particulares de cada uma faz-nos mergulhar na</p><p>tensão permanente da relação parte/todo, singularidade/totalidade. O</p><p>desenho, assim como as demais formas de expressão, é polifônico e</p><p>múltiplo.</p><p>Buscando uma visada nos trabalhos feitos pelas crianças, podemos</p><p>ver que, com toda a força diretiva em torno da reprodutibilidade, elas</p><p>muitas vezes subvertem a ordem e criam imagens que ampliam o</p><p>diálogo entre suas experiências de vida e a experiência estética da</p><p>exposição. Elas desenham outros temas de seu interesse – personagens</p><p>de histórias em quadrinho ou desenhos animados; cenas do cotidiano,</p><p>cenas de filmes em evidência – ou mesmo recriam com base em</p><p>elementos da obra: Salvador Dalí vestido com a camisa número 10 da</p><p>Seleção Brasileira de Futebol – exemplo de inserção de elementos da</p><p>exposição vista no contexto cotidiano da criança (estávamos em plena</p><p>Copa do Mundo!). Assim também podemos ver outras imagens que</p><p>aparecem em seus trabalhos.</p><p>Não tenho dúvidas de que todos os desenhos feitos pelas crianças</p><p>nessas exposições, dos mais distantes aos mais próximos das obras</p><p>vistas, traduzem, de alguma forma, uma produção singular dessas</p><p>crianças. Ressalto, entretanto, que nas duas exposições observadas,</p><p>quanto mais “livres”, quanto mais distantes do modelo, menos</p><p>valorizadas pelas monitoras foram as produções. Diferentemente do</p><p>processo acompanhado nos serviços educativos dessas duas exposições</p><p>aqui narradas, consideraria de suma importância que fosse viabilizado o</p><p>processo de criação não estereotipada por parte das crianças, não só por</p><p>deixar aflorar a livre expressão desses meninos e meninas, como</p><p>também pela possibilidade de mexer com a autoexpressão dos</p><p>educadores.</p><p>Se antes havia muita dificuldade de os professores levarem crianças</p><p>aos museus, hoje, com as diversas parcerias que se formam, a realidade</p><p>– em especial nos grandes centros urbanos – já é outra. Mas estão os</p><p>museus dando conta, qualitativamente, dessa demanda? Parece-me, pela</p><p>pesquisa feita, que os serviços educativos dos museus têm pautado a</p><p>relação criança-obra numa perspectiva educativa que não representa</p><p>sequer o pensamento pedagógico vigente nas escolas e nos parâmetros</p><p>curriculares – eles replicam o passado da própria escola! Por que aulas</p><p>expositivas em museus?</p><p>Mais do que fazer oficinas pedindo que as crianças desenhem, na</p><p>melhor das hipóteses, “a seu modo”, aquilo que contemplaram, seria</p><p>importante nos preocuparmos em investir na continuidade de propostas</p><p>ricas em experiências visuais, estéticas e de criação. Pensarmos mais</p><p>amplamente os espaços de criação de crianças e adultos seria, a meu</p><p>ver, mais significativo para uma formação estética e cultural do que</p><p>oferecer lápis e papel com o argumento de estarmos estimulando a</p><p>criatividade. O que é possível criar com hora marcada, espaço definido,</p><p>material pré-selecionado, tema encomendado e olhar avaliativo?</p><p>Advogo que essas práticas, mesmo de forma sutil, reforçam a ideia de</p><p>modelo.</p><p>Essa perspectiva reprodutivista remonta a um tempo longínquo da</p><p>história da arte. Durante muito tempo, até aproximadamente a metade</p><p>do século XIV, havia a figura do mestre e seus seguidores. Depois,</p><p>mesmo ainda sob a égide das encomendas artísticas, a liberdade era, ao</p><p>menos, relativa, começando a esboçar-se, ali, a ideia de artista. Nas</p><p>academias francesas, copiavam-se desenhos, gesso, paisagens, animais</p><p>– o ápice da técnica copista eram as cenas históricas. Mas as artes</p><p>visuais sofreram muitas mudanças no século XX e criou-se um novo</p><p>modo de ver e de expressar-se. A cada momento aparecem outras</p><p>formas de arte às quais naturalmente não estamos acostumados (ou</p><p>sequer imaginávamos que poderiam vir a existir...), e a cada nova forma</p><p>de arte, em cada geração, mais estranhamento, mais crítica. Mudam os</p><p>instrumentos e, com eles, as formas de fazer, a poética. Com os novos</p><p>equipamentos, as produções se diversificam; criam-se linguagens que</p><p>nunca se imaginou ver na arte (Eluf 2004).</p><p>Dando nós e colocando pontos de amarração na trama</p><p>reflexiva...</p><p>O que incomoda é que, nas duas exposições observadas, o que</p><p>prevalece é a gradual perda de autonomia na relação da criança com a</p><p>obra e de autoria nas suas produções pós-visitação. Quando falamos de</p><p>produção cultural de crianças, particularmente de seus desenhos após as</p><p>exposições, parece que, por mais que estejam presentes em nosso</p><p>cotidiano, ainda hoje, essas atividades pictóricas e gráficas ganham</p><p>conotação pouco expressiva. Perdem sua força narrativa. Não só nos</p><p>museus, mas também nas escolas e em outros espaços de cultura, o</p><p>desenho tem ficado espremido pelo tempo, pela ordem dada, pelo</p><p>material, pelas instalações... é bom prestarmos atenção às suas</p><p>condições de produção. Vale lembrar que o prazer de produzir está</p><p>diretamente relacionado ao processo e às condições de produção</p><p>oferecidas.</p><p>No meu entender, as duas instituições aqui observadas, durante</p><p>essas exposições, ressignificam seu papel social, autodenominam-se</p><p>espaços de cultura, inserem a criança em seus projetos, mas continuam</p><p>não respeitando suas produções – seja pela forma com que se</p><p>relacionam com o produto final, seja pelas condições de trabalho</p><p>oferecidas. Se pararmos para pensar nos espaços físicos museológicos,</p><p>veremos que, normalmente, eles são caracterizados por salas ou galerias</p><p>cujo centro fica vazio, ou, no máximo, preenchido por bancos. Não</p><p>poderíamos pensar esse “miolo”, no meio das galerias, como espaço</p><p>significativo de criação e significação? Não poderíamos oferecer um</p><p>sortimento de espaços alternativos – cavaletes, almofadas, mesas,</p><p>cadeiras, chão –, materiais diferentes – papéis, grafite, carvão, pastel,</p><p>hidrocor, lápis de cera, sucatas, argila, massa de modelagem, entre</p><p>outros –, encaminhamentos diversos – desenho, pintura, colagem,</p><p>escultura –, de forma que a vontade de realizar/produzir pudesse ser</p><p>mais respeitada, ampliada, incrementada, pudesse ter mais sentido?</p><p>Nesse caso, esses espaços poderiam não mais estar restritos às crianças.</p><p>Quantos de nós, adultos, não temos desejo de desenhar, pintar ou</p><p>esculpir quando imersos num ambiente que favorece nossa experiência</p><p>estética? Isso requer, sobretudo, uma mudança na mentalidade sobre a</p><p>visitação dos museus, sobre o papel da visita dirigida, dos monitores</p><p>etc.</p><p>E quanto à possibilidade oferecida à criança de apropriação dos</p><p>bens culturais? É importante levar crianças aos museus? Não só as</p><p>crianças, mas também os adultos. Buscar ir além na apreciação, buscar</p><p>uma experiência estética significativa, relacionar aquilo que vê com o</p><p>que já conhece, com seu cotidiano. Frequentar exposições amplia o</p><p>repertório imagético – sonoro, visual, corporal – de todos.</p><p>Independentemente de gênero, etnia, credo, classe social ou idade, é</p><p>parte de sua formação, sendo assim, antes de tudo, um direito. A</p><p>criança, assim como seus pais, colegas ou educadores, faz parte da</p><p>história da humanidade e, como tal, também escreve e se inscreve na</p><p>história coletiva. Ela vive a realidade, transforma-a e é por ela</p><p>transformada. Para tal, é necessário que possa trocar, dialogar,</p><p>questionar aquilo que vê.</p><p>Portanto, façamos valer a ideia já anteriormente mencionada da</p><p>acessibilidade. Aos museus cabe repensar seus horários de</p><p>funcionamento, o preço do ingresso, a divulgação das exposições.</p><p>Ampliando seu público, devem estar sempre atentos à visibilidade das</p><p>obras, ao texto, aos monitores, aos guardas. É instigante pensarmos que</p><p>só frequentamos ou levamos as crianças às exposições que nos</p><p>metralham com sua mídia impiedosa; ou, como conteudistas</p><p>contumazes, reduzimos visitação de museu a conteúdo programático:</p><p>tipos de comunicação? Museu do Telefone! Meios de transporte? Museu</p><p>do Trem ou Aeroespacial! Assim também só costumamos levar meninos</p><p>e meninas ao zoológico para estudar animais e aos parques para estudar</p><p>vegetais. Escolarizamos nossas brincadeiras, nossas áreas de lazer, a</p><p>literatura, a arte... o universo: tudo acaba ficando a serviço da relação</p><p>ensino-aprendizagem.</p><p>Ao que parece, a modernidade vem anulando o sujeito, e o museu</p><p>tem, com esse tipo de proposta monológica e reprodutivista,</p><p>compactuado com isso. Portanto, finalizo reforçando que, para</p><p>trocarmos/interagirmos com a criança-sujeito-de-cultura precisamos</p><p>nos ver, também, como produtores e consumidores críticos de cultura;</p><p>precisamos nos reconhecer como tal e também usufruir a cultura.</p><p>Estou farto do lirismo comedido</p><p>Do lirismo bem comportado</p><p>Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e</p><p>manifestações de apreço ao Sr. Diretor</p><p>Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo</p><p>de um vocabulário.</p><p>(...)</p><p>Quero antes o lirismo dos loucos</p><p>O lirismo dos bêbados</p><p>O lirismo difícil e pungente dos bêbados</p><p>O lirismo dos clowns de Shakespeare</p><p>– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.</p><p>(Manuel Bandeira s./d., pp. 32-33)</p><p>Bibliografia</p><p>ALBANO, Ana Angélica (s./d.). O espaço do desenho: A educação do educador. São Paulo:</p><p>Loyola.</p><p>ALMEIDA, Milton José de (1999). “A educação visual da memória – Imagens agentes do</p><p>cinema e da televisão”. Campinas: Unicamp. (Mimeo.)</p><p>ANDRADE, Mário de (s./d.). “Depoimentos 2 – Sentimento e expressão: Fases históricas”.</p><p>Publicação periódica para debate de arquitetura. Instituto de Estudos Brasileiros/GFAU.</p><p>(Mimeo.)</p><p>ANGELI, Margarida Nilda Barreto (1993). “Museus por teimosia – Uma análise da utilidade</p><p>dos museus”. Dissertação de mestrado. Campinas: FE/Unicamp.</p><p>BAKHTIN, Mikhail (1992). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec.</p><p>BANDEIRA, Manuel (s./d.). “Poética”. In: BANDEIRA, Manuel. Libertinagem estrela da</p><p>manhã. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.</p><p>BARBOSA, Ana Mae (1995). A arte-educação no Brasil. São Paulo: Perspectiva.</p><p>________ (1997). A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva.</p><p>BARROS, Manoel de (1996). “As lições de R.Q.”. In: Barros, Manoel de. O encantador de</p><p>palavras. Rio de Janeiro: Sociedade de Bibliófilos do Brasil.</p><p>BESSA, Mahilda (1969). Artes plásticas entre crianças. Rio de Janeiro: José Olympio.</p><p>CARVALHO, Maria Cristina (2000). “Infância, cultura e formação de professores”. Rio de</p><p>Janeiro. (Mimeo.)</p><p>COLI, Jorge (2002). O que é arte. São Paulo: Brasiliense.</p><p>DIAS, Karine Sperle (1999). “Formação estética: Em busca do olhar sensível”. In: KRAMER,</p><p>Sonia et al. (orgs.). Infância e educação infantil. Campinas: Papirus, pp. 175-202.</p><p>ELUF, Lygia (2004). “A atuação do artista na universidade: O pensar e o fazer”. Palestra</p><p>proferida no Seminário Internacional de Educação Estética. Campinas: Unicamp.</p><p>(Anotações pessoais)</p><p>FARIAS, Agnaldo (2004). “Os espetáculos crípticos: Nota sobre o impacto do processo de</p><p>espetacularização nos museus brasileiros”. Palestra proferida no Seminário Internacional</p><p>de Educação Estética. Campinas: Unicamp. (Anotações pessoais)</p><p>FRAYSE-PEREIRA, João Augusto (2004). “Experiência estética, psicanálise e crítica de arte”.</p><p>Palestra proferida no Seminário Internacional de Educação Estética. Campinas: Unicamp.</p><p>(Anotações pessoais)</p><p>GALARD, Jean (1999a). “Estética da vida – Abolição ou estetização da arte?”. Palestra</p><p>proferida no Centro Cultural Itaú/SP. (Anotações pessoais)</p><p>________ (1999b). “Estetização da vida: Abolição ou generalização da arte?”. (Mimeo.)</p><p>________ (2000). “Le musée: Lieu de scandale ou espace social apaisé?”. (Mimeo.)</p><p>GARUTI, Nives (1998). “As escolas municipais de Módena II: As práticas educativas”. In:</p><p>ZABALZA, Miguel. Qualidade em educação infantil. Porto Alegre: Artmed.</p><p>KRAMER, Sonia (1998). “Produção cultural e educação: Algumas reflexões críticas sobre</p><p>educar em museus”. In: KRAMER, Sonia e LEITE, Maria Isabel (orgs.). Infância e</p><p>produção cultural. Campinas: Papirus, pp. 199-215.</p><p>LEITE, Maria Isabel (2001). “O que e como desenham as crianças? Refletindo sobre as</p><p>condições de produção cultural da infância”. Tese de doutorado. Campinas: FE/Unicamp.</p><p>________ (2004a). “Educação e cinema: Um recorte sobre o papel cultural dos festivais”. In:</p><p>OSTETTO, Luciana Esmeralda e LEITE, Maria Isabel. Arte, infância e formação de</p><p>professores: Autoria e transgressão. Campinas: Papirus.</p><p>________ (2004b). “A criança desenha ou o desenho criança? A ressignificação da expressão</p><p>plástica de crianças e a discussão crítica do papel da escrita em seus desenhos”. In:</p><p>OSTETTO, Luciana Esmeralda e LEITE, Maria Isabel. Arte, infância e formação de</p><p>professores: Autoria e transgressão. Campinas: Papirus.</p><p>________ (2004c). “O serviço educativo dos museus e o espaço imaginativo das crianças”.</p><p>Revista Proposições, vol. 15, n. I(43). Campinas: FE/Unicamp, jan./abr.</p><p>LEITE, Maria Isabel e OSTETTO, Luciana Esmeralda (2004). “Formação de professores: O</p><p>convite da arte”. In: OSTETTO, Luciana Esmeralda e LEITE, Maria Isabel. Arte, infância</p><p>e formação de professores: Autoria e transgressão. Campinas: Papirus.</p><p>MERLEAU-PONTY, Maurice (1980). Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural. (Os</p><p>Pensadores)</p><p>OLIVEIRA, Ana Cláudia de (1999). “Convocações multissensoriais da arte no século XX”. In:</p><p>PILLAR, Analice Dutra (org.). A educação do olhar no ensino das artes. Porto Alegre:</p><p>Mediação, pp. 85-97.</p><p>OSTETTO, Luciana Esmeralda (2004). “‘Mas as crianças gostam!’ ou sobre gostos e</p><p>repertórios musicais”. In: OSTETTO, Luciana Esmeralda e LEITE, Maria Isabel. Arte,</p><p>infância e formação de professores: Autoria e transgressão. Campinas: Papirus.</p><p>OTT, Robert William (1997). “Ensinando crítica nos museus”. In: BARBOSA, Ana Mae (org.).</p><p>Arte-educação: Leitura no subsolo. São Paulo: Cortez, pp. 111-140.</p><p>PEIXOTO, Maria Inês Hamann (2003). Arte e grande público – A distância a ser extinta.</p><p>Campinas: Autores Associados.</p><p>PORTELA, Paulo (2004). “Formação e interpretação: Estratégias do serviço educativo do Masp</p><p>junto ao público”. Palestra proferida no Seminário Internacional de Educação Estética.</p><p>Campinas: Unicamp. (Anotações pessoais)</p><p>READ, Herbert (1976). O sentido da arte. São Paulo: Ibrasa.</p><p>SANTOS, Magaly de Oliveira Cabral (1997). “Lições das coisas (ou Canteiro de obras) –</p><p>Através de uma metodologia baseada na educação patrimonial”. Dissertação de mestrado.</p><p>Rio de Janeiro: DE/PUC.</p><p>STANT, Margaret (1988). A criança de 2 a 5 anos – Atividades e materiais. Rio de Janeiro:</p><p>Francisco Alves.</p><p>2</p><p>MUSEU DO BRINQUEDO COMO CENTRO</p><p>CULTURAL INFANTIL</p><p>Telma Anita Piacentini e</p><p>Monica Fantin</p><p>E achei que esta história</p><p>só caberia no impossível.</p><p>Mas não, ela cabe aqui também.</p><p>Manoel de Barros 2001, p. 31</p><p>Quem não se lembra do encanto das bonecas de pano, de plástico</p><p>ou de porcelana? Dos efeitos especiais dos carrinhos de lata, de</p><p>madeira, de metal? Da fragilidade das loucinhas, do fogão e das</p><p>panelinhas de barro? Da alegria dançante dos piões, dos rapas e das</p><p>piorras? Das acrobacias teimosas dos bilboquês, dos bate-bates? Do</p><p>estalar das bolinhas de gude, de vidro ou das “burquinhas”? Dos times</p><p>montados com futebol de botão? Dos voos coloridos das pipas cortando</p><p>o céu? Enfim, quem não se lembra das tantas alegrias das brincadeiras</p><p>de crianças? Das interações, das negociações, dos combinados, dos</p><p>conflitos, da espontaneidade e da liberdade presentes nos jogos, nos</p><p>brinquedos e nas brincadeiras?</p><p>São a essas e a outras lembranças, memórias e imaginações de um</p><p>tempo não muito distante – porque sempre próximo de nossos corações</p><p>e mentes – que as brincadeiras da infância nos remetem. E ainda que as</p><p>armazenemos</p><p>com o maior carinho no fundo de nosso ser – pois a</p><p>criança que fomos não nos abandona –, por que não objetivar e</p><p>materializar tais memórias num tempo presente-passado que vai</p><p>construindo o futuro? Presente-passado que recria, reconstrói e que tem</p><p>a chance de indicar pistas, recuperar trilhas e, quem sabe, apontar</p><p>caminhos na direção de outras possibilidades para a condição da</p><p>infância atual.</p><p>Ainda que possamos relativizar a ideia de que muitas brincadeiras</p><p>de nossa infância não existem mais – pois o brincar transforma e se</p><p>transforma –, o que nos conforta é saber que tais lembranças também</p><p>podem ser encontradas num museu do brinquedo.</p><p>Mas, por que um museu do brinquedo? Será que as crianças não</p><p>estão mais brincando com seus brinquedos nos quintais, parques, praças</p><p>e ruas, levando-nos a falar em museu? Será que tais objetos, que tanto</p><p>estimulam o imaginário infantil, devem permanecer em um museu?</p><p>Na primavera de 1999, foi instalado o Museu do Brinquedo da Ilha</p><p>de Santa Catarina, o primeiro no Brasil em uma universidade federal.</p><p>[24]</p><p>O Museu do Brinquedo nasceu do trabalho que transformou o</p><p>brinquedo e as imagens da infância em objetos de pesquisa. Unindo o</p><p>interesse pela arte, pela infância e pela história que os brinquedos</p><p>despertam, como por meio de uma coleção de bonecas dos mais</p><p>diversos lugares do mundo e de um acervo de brincadeiras de crianças,</p><p>o artista e pesquisador da cultura popular Franklin Cascaes, ao fazer o</p><p>registro de época com estatuetas de argila, a partir dos anos 40,</p><p>transportou para nossos dias a mesma magia, renovada no olhar que</p><p>olha e vê, reconhece e relembra, diverte-se e apaixona-se pelas</p><p>brincadeiras de uma infância passada e, no entanto, tão presente em</p><p>nossas mentes e no cotidiano de nossas crianças. Memória de uma</p><p>geração, o Museu do Brinquedo faz o milagre de, ao transpor épocas,</p><p>responder ainda à chamada diária de inquietas ou silenciosas – mas</p><p>ainda alegres – crianças.</p><p>Assim, a criação desse museu na Ilha de Santa Catarina, com o</p><p>patrocínio da Universidade Federal de Santa Catarina, possibilita a</p><p>abertura de um espaço pedagógico e cultural de incalculável dimensão.</p><p>Desde 2003, em virtude da reforma no Museu Universitário que</p><p>abriga o Museu do Brinquedo, grande parte do acervo está na reserva</p><p>técnica. A falta de condições objetivas de espaço adequado nos desafiou</p><p>a pensar na possibilidade de um museu itinerante. O caráter de um</p><p>museu do brinquedo itinerante se revelou acertado, pois permitiu que</p><p>algumas coleções de brinquedos do acervo ficassem ao alcance de</p><p>crianças, jovens e adultos de todas as idades em diferentes espaços</p><p>físicos e geográficos. Assim, desde que seja assegurada sua instalação</p><p>em dependências adequadas, parte do acervo pode ser vista em diversas</p><p>instituições, como escolas, hospitais, bibliotecas e outros espaços,</p><p>garantindo a acessibilidade e a democratização da cultura.[25]</p><p>Além do registro da memória cultural de um povo e da preservação</p><p>de suas condições de vida por meio da guarda adequada dos objetos da</p><p>infância, a presença de um museu com tais características proporciona,</p><p>às gerações atuais e às futuras, a possibilidade de estudos de</p><p>identificação do universo pessoal e social da existência humana.</p><p>Afinal, o brinquedo, como suporte do imaginário infantil, integra-se</p><p>num campo de estudos das representações. Admitindo que, no fundo de</p><p>nós mesmos, o que nos toca nessa viagem pelo mundo do brinquedo é</p><p>uma espécie de saudade, tida como categoria de pensamento e ação –</p><p>ainda que como construção cultural e ideológica –, perguntamo-nos</p><p>como poderíamos deixar de admitir o trânsito livre e paralelo que uma</p><p>categoria social com essas conotações proporciona. E recorremos a</p><p>Roberto Da Matta (apud Piacentini 1995, p. 157) para explicar que</p><p>(...) a saudade não seria algo cuja trajetória se daria dos indivíduos para a</p><p>sociedade por meio de imposições e negociações que teriam se cristalizado na</p><p>linguagem e na memória coletiva como um reflexo da experiência empírica da</p><p>perda. Ao contrário, temos na saudade uma categoria de espírito humano e, dentro</p><p>dele, de uma certa estrutura de valores ou ideologia; (...). Neste sentido, a saudade</p><p>é um conceito que trata de uma experiência universal comum a todos os homens</p><p>em todas as sociedades: a experiência da passagem, da duração, da demarcação e</p><p>da consciência reflexiva do tempo, mas ela a singulariza, associando-a a elementos</p><p>que não estariam presentes em outras modalidades culturais de medir, falar,</p><p>classificar e controlar o tempo.</p><p>E se a saudade é expressão obrigatória de um sentimento – o</p><p>sentimento de infância que o Museu do Brinquedo remete –, reveste-se</p><p>de memória construída num espaço que configura parte de um tempo;</p><p>tempo e espaço nos quais o discurso da saudade não teme a travessia</p><p>que une a memória do passado, para, com ares de magia, transformar-se</p><p>em atualidade, pela simples imagem de um brinquedo.</p><p>A história que os brinquedos contam</p><p>A história do brinquedo ensina que, por muito tempo, ele teve</p><p>múltiplas funções – além de ser considerado arte e enfeite em forma de</p><p>miniaturas que expressavam o modo como os adultos representavam as</p><p>lembranças da infância –, fazendo uma trajetória singular de objeto</p><p>sagrado a profano.</p><p>O estilo e a beleza das peças antigas materializavam a difusão de</p><p>um mundo de coisas minúsculas que faziam a alegria das crianças nas</p><p>estantes dos brinquedos e dos adultos nas “salas de artes e maravilhas”</p><p>(Benjamin 1984, p. 68). No entanto, é preciso reconhecer que não foram</p><p>as necessidades infantis que criaram os brinquedos, e sim a imaginação</p><p>das crianças que transformou objetos dados pelos adultos. Benjamin</p><p>afirma que a passagem de objetos de culto a brinquedos está marcada</p><p>pela liberdade infantil de aceitar ou não o que era imposto pela geração</p><p>anterior e essa dimensão revela o caráter do brinquedo.</p><p>Para fazer a alegria de crianças, jovens e adultos nas estantes e nas</p><p>“salas de artes e maravilhas”, o acervo do Museu do Brinquedo percorre</p><p>diferentes tempos e espaços da cultura lúdica e das culturas infantis.</p><p>Lá, podemos apreciar brinquedos de diversas culturas, origens e</p><p>influências – como, por exemplo, de portugueses, espanhóis e demais</p><p>europeus –, que apontam para as inúmeras brincadeiras trazidas, como a</p><p>pipa, o pião e a amarelinha, além de personagens como a cuca, o papão,</p><p>a mula sem cabeça.</p><p>Dos negros encontramos histórias, contos, lendas, canções, mitos,</p><p>deuses e animais encantados provindos da cultura africana e que estão</p><p>presentes na lúdica infantil, principalmente nas brincadeiras das</p><p>crianças do engenho, nas canções de ninar e cantigas de acalanto que as</p><p>amas negras/mães pretas, cuidando das crianças, contavam e cantavam.</p><p>Personagens como boitatá, saci-pererê[26] e outros também são</p><p>oriundos do folclore africano, que é cheio de histórias de bichos e</p><p>repleto de animismos fantásticos, além de brincadeiras que refletem as</p><p>condições de vida do negro em tempos de escravidão.</p><p>A formação da cultura e do folclore brasileiros é toda permeada</p><p>pelas valiosas contribuições dos indígenas, com suas danças, imitações</p><p>e rituais mágicos misturados a seus contos e brincadeiras que perduram</p><p>na memória social da infância. Brincadeiras ao ar livre, em contato</p><p>permanente com a natureza, nos rios e matas; o gosto por figuras de</p><p>animais e por imitá-los em jogos de grupos; os brinquedos de barro, o</p><p>uso de bodoque, o alçapão para pegar passarinho e depois criá-lo são</p><p>tradições indígenas que permanecem na infância brasileira.</p><p>Embora seja tênue o limiar entre as influências das diversas culturas</p><p>nas brincadeiras, é tarefa dificílima e extremamente complexa</p><p>discriminar a contribuição de cada um dos fatores étnicos. Além do que,</p><p>com o passar do tempo, muitos jogos se descaracterizaram em virtude</p><p>das influências recíprocas das culturas africana, portuguesa e indígena,</p><p>que, por sua vez, também receberam influências outras.</p><p>A adaptação ao novo meio, os conflitos decorrentes das relações</p><p>entre as diversas etnias e a consequente fusão entre elas deram às</p><p>brincadeiras um colorido local e um</p><p>brilho singular que lhes são</p><p>próprios, sendo difícil, portanto, precisar com exatidão a contribuição</p><p>específica de brancos, negros e índios nos jogos tradicionais infantis no</p><p>Brasil, que são ressignificados numa relação constantemente construída</p><p>e reconstruída.</p><p>A compreensão dos brinquedos e a recuperação do sentido lúdico</p><p>de cada povo dependem do modo de vida de cada agrupamento</p><p>humano, em seu tempo e espaço. Disso emerge a imagem que se faz da</p><p>criança – seus valores, costumes e brincadeiras. Dessa forma, notamos</p><p>que o brinquedo evolui ao ritmo das representações culturais que ele</p><p>veicula. Assim, se as brincadeiras se transformaram, isso não significa</p><p>que elas desapareceram, e sim que mudanças de representações foram</p><p>introjetadas nelas em decorrência da dinâmica dos processos históricos</p><p>que alteram o panorama social e o cotidiano infantil; mesmo</p><p>modificadas, tais brincadeiras fazem parte do imaginário infantil.</p><p>Simultaneamente à especificidade dos brinquedos tradicionais</p><p>infantis brasileiros, existe certa universalidade de temas e valores</p><p>presentes em diversas populações, o que nos faz pensar que brincar é</p><p>uma atividade universal, encontrada nos vários grupos humanos, em</p><p>diferentes períodos históricos e estágios de desenvolvimento</p><p>econômico.</p><p>No entanto, as várias modalidades lúdicas não existem em todas as</p><p>épocas e também não permanecem imutáveis através dos tempos. Como</p><p>toda atividade humana, o brincar também se constitui na interação de</p><p>vários fatores que marcam determinado período histórico, sendo</p><p>continuamente transformado pela própria ação dos indivíduos, por suas</p><p>representações e produções culturais e tecnológicas.</p><p>Nesse sentido, podemos dizer também que as crianças sempre</p><p>brincaram; desde as épocas mais antigas as crianças brincam.[27] As</p><p>crianças brincam porque gostam de brincar, e gostam de brincar porque</p><p>a brincadeira é o melhor instrumento para a satisfação das necessidades</p><p>que vão surgindo do convívio com o mundo objetivo que elas tentam</p><p>conhecer e com o mundo social com o qual se relacionam; enquanto</p><p>brincam, o conhecimento desse mundo se amplia.</p><p>Tizuko Kishimoto enfatiza que as brincadeiras favorecem a</p><p>socialização da criança, uma vez que permitem a apropriação da cultura</p><p>infantil necessária para que cada um possa se incorporar a um</p><p>determinado segmento social. A apropriação da cultura é o mecanismo</p><p>pelo qual a criança seleciona elementos dessa cultura e traduz o</p><p>universo em que vive (1993, pp. 55-56).</p><p>Assim, cada cultura dispõe de um repertório de imagens</p><p>consideradas expressivas do ser criança; tentar embutir um significado</p><p>alheio ao cotidiano das crianças em seus brinquedos é obrigá-las a</p><p>brincar com elementos destituídos de impregnação cultural, portanto,</p><p>sem significação para elas. Mas ampliar os significados possíveis que o</p><p>brincar de outras épocas traz é enriquecer o repertório cultural e</p><p>vivencial de quem visita um museu do brinquedo.</p><p>Em artigo sobre educação em museus, Sonia Kramer (1998) tece</p><p>suas reflexões críticas dizendo que “ao caminhar num museu – numa</p><p>galeria de torsos, ou de objetos quaisquer –, o que vemos em cada peça,</p><p>em cada quadro, em cada obra guardada ali é história condensada, que</p><p>aglutina contradições, diz e cala, valoriza e omite, conta” (p. 205). E o</p><p>que será que os brinquedos do acervo do museu contam, escondem e</p><p>revelam?</p><p>“Itinerário da magia”: Conhecendo o acervo</p><p>Como numa máquina do tempo, conhecer o acervo de um museu do</p><p>brinquedo pode funcionar como um passaporte para outras épocas em</p><p>razão da curiosidade despertada, do encantamento provocado, da</p><p>emoção sentida ao apreciar brinquedos de outros tempos e espaços.</p><p>Passaporte que também pode transportar para outro tempo e revelar a</p><p>tristeza sentida ao imaginar brinquedos de uma infância que não existe</p><p>mais.</p><p>No Museu do Brinquedo da Ilha de Santa Catarina podemos</p><p>encontrar brinquedos e brincadeiras de diferentes tempos em diversas</p><p>coleções, como, por exemplo, a coleção de bonecas doada pela criadora</p><p>do museu, Telma Piacentini, e a coleção de brincadeiras infantis de</p><p>Franklin Cascaes, que ganham destaque especial no acervo.</p><p>Pesquisando sobre a história da boneca, podemos destacar que ela</p><p>está ligada à história dos homens. Como uma réplica de si mesmo, o</p><p>homem elevou os diferentes tipos de bonecos a símbolo cultural a</p><p>acompanhá-lo em suas múltiplas experiências, fazendo, desse objeto,</p><p>desde oferenda religiosa, objeto de culto, figura de magia, ídolo,</p><p>amuleto ou talismã, lembrança mortuária, até chegar ao uso infantil,</p><p>como brinquedo.</p><p>Entre as bonecas de diversos tipos e lugares encontradas no Museu</p><p>do Brinquedo da Ilha de Santa Catarina, há bonecas indígenas de vários</p><p>grupos e lugares, como, por exemplo, bonecas de barro/cerâmica dos</p><p>índios carajás vindas do Alto Xingu; bonecas de pano dos índios</p><p>navajos adquiridas nos EUA; bonecas indígenas vindas do México;</p><p>bonecas de pano de várias etnias de países da América Latina, como</p><p>Peru e Bolívia; bonecas de porcelana vindas da Itália; bonecas orientais,</p><p>vindas da China e do Vietnã; bonecas negras, vindas de diferentes</p><p>países da África; bonecas bebês vindas da Alemanha; bonecas</p><p>manequins de vários lugares – entre elas, uma Barbie grávida de</p><p>gêmeos, vinda do Canadá; bonecas personagens de histórias, como</p><p>Lineia, vinda dos “Jardins de Monet”, da França; e tantas outras</p><p>bonecas vindas das regiões mais distantes do Brasil e do mundo,</p><p>representando o caldeirão da diversidade cultural que lindamente nos</p><p>constitui.</p><p>No Museu do Brinquedo pode ser encontrada também a coleção de</p><p>brincadeiras de criança do artista e pesquisador Franklin Cascaes,</p><p>representando, nas imagens esculpidas em barro, terracota e cerâmica,</p><p>crianças soltando pipas, jogando bolinha de vidro, brincando de roda,</p><p>perna de pau, cavalinhos de bambu e de folha de bananeira, carrinhos de</p><p>roda, batizado de boneca, boi de mamão, meninos no engenho e tantas</p><p>outras cenas de crianças “brincando de trabalhar”.</p><p>Bonecos de madeira, com e sem articulação; bonecos personagens</p><p>de histórias infantis, como Pinóquio, os Três Porquinhos, soldadinhos</p><p>de chumbo; bonecos de plástico e de borracha; bonecos super-heróis de</p><p>vários contextos históricos e geográficos; bonecos músicos etc.</p><p>enriquecem o elenco de atrações do Museu do Brinquedo.</p><p>Encontram-se ali também bonecos fantoches representando as</p><p>alegorias do boi de mamão, brincadeira da Ilha de Santa Catarina, com</p><p>suas figuras e personagens: boi, cabra, cavaleiro, bernunça, maricota</p><p>etc., que contam, cantam e dançam histórias da vida, morte e</p><p>ressurreição do boi.</p><p>Há ainda os brinquedos indígenas de aldeias guaranis: miniaturas</p><p>de animais em madeira, bonecas de palha, petecas, loucinhas de barro</p><p>etc.</p><p>A coleção de brincadeiras tradicionais feitas em argila por Milena</p><p>de Albuquerque, representando cenas de jogos como amarelinha, pula</p><p>corda, esconde-esconde, cirandas, passa anel, 5 Marias, elástico, taco e</p><p>tantas outras, é outra atração do museu.</p><p>Há, ainda, brinquedos de madeira feitos por Antonio Matos, com</p><p>uma coleção de piões de diversos tipos e tamanhos, rapas, piorras,</p><p>bilboquês etc., brinquedos artesanais de madeira, de pano, de palha, de</p><p>papel, brinquedos industrializados e diversos brinquedos populares.</p><p>Enfim, brinquedos eternos porque usam a linguagem simples e</p><p>universal da imaginação, da fantasia, envolvendo um universo que</p><p>contempla o canto, a dança, o gesto, a expressão, a fala, o olhar, a arte, o</p><p>desenho, a pintura e muitas outras construções em que a criança</p><p>expressa a rica complexidade de seu imaginário.</p><p>E se os brinquedos antigos nos permitem compreender o mundo</p><p>infantil de épocas passadas, os atuais nos proporcionam registrar o</p><p>mundo de agora.[28] Se o ato de brincar com brinquedos antigos</p><p>elabora um “tempo interno” demorado e amplo quando comparado aos</p><p>brinquedos eletrônicos, estes últimos desenvolvem determinadas</p><p>capacidades que são típicas da sociedade contemporânea.</p><p>O universo da criança, compartilhado entre brinquedos e parceiros,</p><p>permite a elaboração de um mundo de sentimentos e ações com</p><p>significado socioafetivo novo e “criativo”,</p><p>apesar do desgaste sofrido</p><p>por esse termo ultimamente.</p><p>Se atentarmos para o que pode significar um mundo sem a presença</p><p>de brinquedos, poderemos antever, hipoteticamente, uma vida cinza e</p><p>fria, sem infância e sem cor, destituída da alegria, dos projetos de</p><p>felicidade e do calor humano que podem ser conquistados atingindo-se</p><p>a dimensão revolucionária do brincar.</p><p>Guardar brinquedos num lugar público e de fácil acesso, como um</p><p>museu, possibilita abrir o mundo infantil aos olhos de crianças e</p><p>adultos. Além disso, estantes cuidadosamente montadas para sua</p><p>apreciação e espaços estrategicamente criados para uma vivência</p><p>cultural significativa, são, no mínimo, uma resposta de valorização da</p><p>infância e de respeito ao mundo adulto que, por diferentes vias, é</p><p>resultado de um tempo de infância.</p><p>E se o brinquedo, fazendo parte da cultura da infância, assume as</p><p>cores e características de seu tempo e lugar, revelando sua</p><p>singularidade, também aponta a universalidade presente em outros</p><p>tempos e contextos.</p><p>Museu do brinquedo como centro cultural infantil</p><p>Na perspectiva de integrar a singularidade-universalidade presente</p><p>no brincar, o museu do brinquedo pode ser entendido como um centro</p><p>cultural onde é possível conhecer e usufruir o acervo de brinquedos de</p><p>diferentes temáticas e culturas sem implicar a necessidade de aquisição</p><p>e consumo. O olhar e a interatividade presentes na recriação do</p><p>brinquedo podem suprir parcialmente o desejo de consumo do objeto</p><p>quando a criança tem a possibilidade de participar de diversas</p><p>atividades lúdicas, artísticas, literárias e culturais, que deverão estar</p><p>presentes no museu ou que podem ser atividades decorrentes da visita.</p><p>Nesse sentido, o museu do brinquedo assume um caráter múltiplo,</p><p>pois permite guardar, olhar e também brincar com certos brinquedos</p><p>construídos nas oficinas de criação.</p><p>Além de um espaço para conhecer e apreciar, o museu do</p><p>brinquedo contempla também a fundamental dimensão do fazer, por</p><p>meio das oficinas e/ou ateliês.</p><p>Ao assumir o desafio de articular linguagens, educação, cultura e</p><p>cidadania, e ao incorporar os brinquedos às narrativas (histórias, contos,</p><p>lendas, mitos), às oficinas, ao ateliê de arte-criação e a outras atividades</p><p>lúdicas, o museu do brinquedo estará favorecendo a integração de</p><p>diversas possibilidades educativas, lúdicas, artísticas e culturais, unindo</p><p>no espaço museológico “as possibilidades de o freqüentador receber</p><p>para pensar, ver para sensibilizar e fazer para intuir” (Segall 1997, p.</p><p>206).</p><p>Considerando o museu como instância educacional com função e</p><p>responsabilidade políticas, Kramer diz que “deve-se ir aos museus para</p><p>interrogar e se interrogar, para escapar da amnésia, para ter experiência</p><p>cultural, pois o museu é instância educacional autônoma”. Ela enfatiza</p><p>que é na ação cultural que o museu pode ser educativo, destacando que</p><p>“o museu não é lugar de ensinar a cultura, mas, sim, lugar de cultura”</p><p>(1998, p. 210).</p><p>Nesse sentido, a criação de um museu do brinquedo como centro</p><p>cultural pretende ser também uma possibilidade de preparação e</p><p>formação de público para o entendimento do trabalho artístico-cultural,</p><p>uma contribuição para a desmistificação da ideia de inacessibilidade dos</p><p>museus e do sentimento de ignorância do visitante. É necessário abolir o</p><p>medo, a timidez e/ou o preconceito de entrar em museus, sentimentos</p><p>presentes tanto entre os que possuem níveis de escolaridade mais altos</p><p>como entre os que não têm escolaridade e não se sentem</p><p>suficientemente conhecedores para adentrar no “templo de cultura”.</p><p>Como diz Barbosa (1998, p. 19): “É hora de os museus abandonarem</p><p>seu comportamento sacralizado e assumirem sua parceria com escolas,</p><p>porque somente as escolas podem dar aos alunos de classe pobre a</p><p>ocasião e a auto-segurança para entrar num museu”.</p><p>Assim, o museu pretende ser lugar para educar e maravilhar com o</p><p>brinquedo como herança cultural que pertence a todos, e não somente à</p><p>parcela social e economicamente privilegiada, já que, historicamente, os</p><p>museus são considerados espaços que refletem apenas a cultura de uma</p><p>classe social – a classe dominante –, recusando-se a examinar a</p><p>produção estética na perspectiva multidisciplinar que pode transcender</p><p>os limites sociais, apontando para uma outra concepção estética.</p><p>Tendo o caráter de pluralismo cultural, o museu do brinquedo pode</p><p>contribuir para a construção de relações que privilegiem o intercâmbio</p><p>entre os diversos códigos e valores veiculados pelas diferentes coleções</p><p>de brinquedos. Tal flexibilidade “intercultural”, além de expressão de</p><p>uma tendência do momento histórico, destaca a típica expressão das</p><p>raízes da formação plural brasileira, em que o branco, o negro, o índio e</p><p>seus intercruzamentos compõem um belo mosaico de nossas origens. E</p><p>o caráter itinerante do museu potencializa tais relações e expressões.</p><p>Aliada a essa perspectiva – a proposta de trabalhar o amálgama que</p><p>articula relações entre erudito/popular, razão/emoção, saber/sentir ou</p><p>conhecer/sentir e sentir conhecendo – está a possibilidade de envolver</p><p>crianças e adultos de diferentes idades em diversas atividades mediadas</p><p>por histórias e oficinas de criação “arteira”.</p><p>Além de preservar a memória e a conservação, o Museu do</p><p>Brinquedo da Ilha de Santa Catarina pretende incorporar em seus</p><p>projetos a recuperação da memória lúdica infantil e a formação da</p><p>cultura, de tal forma que possa, além de preservar o acervo, desenvolver</p><p>projetos de pesquisa, vindo a se tornar também um núcleo irradiador de</p><p>conhecimento e estímulo à aventura de brincar e pesquisar. A pesquisa</p><p>pode indicar outras perspectivas, cujo lastro e ponto de partida poderão</p><p>ser o acervo que orienta as demais atividades do museu.</p><p>Sendo um espaço não formal de ensino, o brincar-aprender em</p><p>museu oferece uma possibilidade educativa potencial, nutrindo a</p><p>curiosidade, estimulando motivações e atitudes, convidando à</p><p>participação e à socialização de uma infância que teima em permanecer.</p><p>Os brinquedos, além de mediadores no processo de socialização da</p><p>criança, são objetos específicos da infância, podendo ser definidos tanto</p><p>em relação à brincadeira, como em relação a uma representação social.</p><p>E a brincadeira, além de ser uma forma de interpretação de significados</p><p>contidos no brinquedo, permite à criança a apropriação de códigos</p><p>culturais, sendo este seu papel na socialização muitas vezes destacado.</p><p>O museu do brinquedo alimenta a brincadeira, a qual permite que a</p><p>criança se aproprie dos códigos sociais da transposição imaginária,</p><p>trabalhando valores, elaborando necessidades internas e desenvolvendo</p><p>comportamentos individuais e coletivos, por meio de seus conteúdos</p><p>sociais e socializadores, como nos lembra Brougère (1995).</p><p>Afinal, se “o mundo perceptivo da criança está marcado pelos</p><p>traços da geração anterior e se confronta com eles, o mesmo ocorre em</p><p>suas brincadeiras” (Benjamin 1994, p. 250). É preciso, pois, identificar</p><p>e desvelar os encontros entre as gerações, e a educação em museus</p><p>permite uma reflexão acerca da produção cultural e educativa em várias</p><p>modalidades de expressão cultural.</p><p>O poeta russo Korney Chukovsky, em reflexão sobre as narrativas,</p><p>“dizia que as pessoas contam histórias e canções de que mais gostavam</p><p>quando elas próprias eram crianças, de modo que quem escolhe as</p><p>histórias para as crianças de hoje são as crianças de ontem” (apud</p><p>Girardello 2003, p. 2). E, numa analogia com as brincadeiras, podemos</p><p>pensar que quem escolhe os brinquedos e os repertórios lúdicos das</p><p>crianças de hoje são, também, as crianças de ontem.</p><p>Nesse sentido, na relação do eterno com o novo presente nos</p><p>brinquedos e brincadeiras de ontem e de hoje, percebemos brinquedos e</p><p>brincadeiras que permanecem e podemos imaginar que seja porque são</p><p>os mais belos e duradouros, porque pertencem a uma cultura popular,</p><p>porque são ricos de significado, porque passam como herança cultural,</p><p>porque são para “brincantes” e não para “olhantes”. Enfim, como</p><p>Abramovich afirma, se alguns brinquedos têm a importância que têm</p><p>por séculos e séculos, é porque não estão</p><p>solicitando o passageiro e o</p><p>superficial. É porque estão lidando com o que existe de fundamental na</p><p>condição humana... como brinquedo que encanta, que maravilha, que</p><p>desperta o sensível, o inesperado, o que não se repete jamais, “como o</p><p>fascínio do caleidoscópio e a poesia da bolha de sabão... brinquedos</p><p>imbatíveis e eternos porque lidam com o que há de mais eterno na</p><p>pessoa” (apud Fantin 2000, p. 228).</p><p>Além desse movimento eterno-novo que percebemos nos</p><p>brinquedos, destacamos que a universalidade e a contemporaneidade</p><p>das brincadeiras locais configuram cenários e marcam a história das</p><p>brincadeiras. Ao mesmo tempo, esse movimento garante a inserção da</p><p>criança como “cidadã” do mundo, ao dispor das representações de uma</p><p>cultura universal expressa nas imagens das brincadeiras antigas que ele</p><p>atualiza quando brinca.</p><p>Nessas aproximações do eterno com o novo, do local com o</p><p>universal que o museu do brinquedo permite, observamos que, no</p><p>repertório lúdico infantil, acontece um encontro: um encontro da argila</p><p>com o metal, da madeira com o plástico, do manual com o eletrônico,</p><p>do velho com o novo, do antigo com o atual, enfim, do tradicional com</p><p>o moderno; com todas as nuanças que tais encontros provocam no</p><p>movimento de permanência e mudança existente na brincadeira.</p><p>Diante disso, podemos pensar que, se a imagem da cultura está</p><p>vinculada aos brinquedos e neles representada, a cultura também vai se</p><p>construindo no lúdico – que, por sua vez, se constrói na cultura –, só</p><p>que as crianças não se apropriam dessas relações espontaneamente, ao</p><p>contrário das imagens que transmitem os brinquedos, necessitando de</p><p>mediações.</p><p>Para isso, a cultura lúdica objetivada nos brinquedos pode</p><p>sensibilizar educadores para a importância do museu como um lugar de</p><p>cultura e de educação, favorecendo a discussão desse espaço como</p><p>importante dimensão formadora dos sujeitos.</p><p>Repensar o passado, ressignificar a história, pensar o presente e</p><p>indagar o futuro, colocando-o numa situação crítica, tudo isso lembra as</p><p>figuras centrais da galeria de personagens de Benjamin, a do cronista e</p><p>do colecionador. O cronista, como narrador da história, “narra os</p><p>acontecimentos sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em</p><p>conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser</p><p>considerado perdido para a história” (Benjamin 1994, p. 223). E o</p><p>colecionador é aquele que consegue descontextualizar o objeto para que</p><p>ele funcione como texto, dispondo objeto e coleção de forma que, ao</p><p>interagir com um objeto, cada um possa conhecer a história desse objeto</p><p>atribuindo-lhe um de seus inúmeros sentidos possíveis.</p><p>Numa analogia às coleções, podemos situar a reflexão de Benjamin</p><p>sobre um colecionador de livros infantis, dizendo que “(...) esse tipo de</p><p>coleção – a de livros infantis – só pode ser apreciado por quem se</p><p>manteve fiel à alegria que experimentou quando criança, ao ler esses</p><p>livros. Essa fidelidade está na origem de sua biblioteca, e toda coleção,</p><p>para prosperar, precisará de algo semelhante” (idem, p. 235), e inferir</p><p>que as coleções do acervo de um museu do brinquedo podem ser</p><p>apreciadas por quem se manteve fiel à alegria que experimentou quando</p><p>criança, ao brincar com esses e outros brinquedos.</p><p>Nessa perspectiva, os adultos (profissionais ou não) podem assumir</p><p>a figura do narrador que considera os grandes e pequenos</p><p>acontecimentos pelo contato com a singularidade e a universalidade</p><p>presentes nos brinquedos e com a tradicionalidade e a</p><p>contemporaneidade das brincadeiras tipicamente locais, que configuram</p><p>cenários que a criança percorre marcando história de brincadeiras</p><p>específicas, ao mesmo tempo que garantem sua inserção no mundo.</p><p>Embora enfatizemos que para ser educativo o museu precisa ser</p><p>espaço de cultura, podemos pensar inúmeras possibilidades de um</p><p>trabalho pedagógico a partir de uma visita ao museu. Seja em seu</p><p>caráter provisório de museu itinerante, seja em espaço próprio e</p><p>duradouro, além do resgate como recuperação e recriação inevitável a</p><p>que certos brinquedos e brincadeiras podem remeter, podemos listar a</p><p>importância de:</p><p>• conhecer a exposição do acervo permanente aliada a</p><p>mostras temporárias e simultâneas de brinquedos de</p><p>diferentes temáticas e culturas;</p><p>• trabalhar o simbolismo, o imaginário e a fantasia nas</p><p>brincadeiras e narrativas de histórias, contos, mitos e</p><p>lendas;</p><p>• possibilitar a representação, a expressão e a comunicação</p><p>de experiências por meio de diferentes formas de registros</p><p>e linguagens nas oficinas de criação e interação com</p><p>brinquedos e brincadeiras;</p><p>• construir e restaurar brinquedos a partir da oficina de</p><p>criação e restauração;</p><p>• organizar pesquisas lúdicas, artísticas, científicas e</p><p>culturais envolvendo crianças e adultos;</p><p>• promover eventos culturais e educativos por meio de</p><p>exposições ou mostras iconográficas envolvendo crianças</p><p>e seus familiares.</p><p>Essas são algumas possibilidades que podem ser construídas a</p><p>partir de uma simples visita a um museu do brinquedo, pois “quando</p><p>um moderno poeta diz que para cada homem existe uma imagem em</p><p>cuja contemplação o mundo inteiro desaparece, para quantas pessoas</p><p>essa imagem não se levanta de uma velha caixa de brinquedos?”</p><p>(Benjamin 1984, p. 75).</p><p>Bibliografia</p><p>BARBOSA, A. (1998). Tópicos utópicos. Belo Horizonte: C/Arte.</p><p>BARROS, Manoel de (2001). Tratado geral das grandezes do ínfimo. Rio de Janeiro: Record.</p><p>BENJAMIN, Walter (1984). Reflexões: A criança, o brinquedo e a educação. São Paulo:</p><p>Summus.</p><p>________ (1994). Obras escolhidas I – Magia e técnica. Arte e política. São Paulo: Brasiliense.</p><p>BROUGÈRE, Gilles (1995). Brinquedo e cultura. São Paulo: Cortez.</p><p>FANTIN, Monica (2000). No mundo da brincadeira – Jogo, brinquedo e cultura na educação</p><p>infantil. Florianópolis: Cidade Futura.</p><p>GIRARDELLO, Gilka (2003). “Voz, presença e imaginação: A narração de histórias e as</p><p>crianças pequenas”. Anais da Anped. Poços de Caldas: Anped.</p><p>KISHIMOTO, Tizuko (1993). Jogos tradicionais infantis: O jogo, a criança e a educação.</p><p>Petrópolis: Vozes.</p><p>KRAMER, Sonia (1998). “Produção cultural e educação: Algumas reflexões críticas sobre</p><p>educar com museu”. In: KRAMER, Sonia e LEITE, Maria Isabel (orgs.). Infância e</p><p>produção cultural. Campinas: Papirus.</p><p>PIACENTINI, Telma (1992). “Projeto de museu do brinquedo”. Florianópolis: UFSC.</p><p>(Mimeo.)</p><p>________ (1995). “Fragmentos e imagens de infância”. Tese de doutorado. São Paulo: FE/USP.</p><p>SEGALL, M. (1997). “Museus hoje para o amanhã”. Novos Estudos, n. 47. São Paulo: Cebrap.</p><p>3</p><p>OLHARES E SABERES DO ENCONTRO COM A</p><p>ARTE</p><p>Gabriela Salles Argolo</p><p>A arte introduz cada vez mais a ação da paixão,</p><p>rompe o equilíbrio interno, modifica a vontade em um</p><p>sentido novo,</p><p>formula para a mente e revive para o sentimento aquelas</p><p>emoções,</p><p>paixões e vícios que sem ela teriam permanecido em</p><p>estado indefinido e imóvel.</p><p>L.S. Vygotsky 1999, p. 316</p><p>Este texto é resultado de vários encontros. Encontro com a arte,</p><p>encontro com as professoras e amigas Luciana Ostetto, Maria Isabel</p><p>Leite, Ana Angélica Albano e Adriana Almeida. Encontro com Wanda</p><p>Junqueira Aguiar, minha orientadora no mestrado. Encontro com</p><p>guardas de museu.</p><p>Tudo começou no Rio de Janeiro. Foi na Cidade Maravilhosa que</p><p>conheci a professora Maria Isabel Leite e fui convidada a participar do</p><p>grupo de estudo sobre sujeito contemplador e arte na Universidade</p><p>Estadual de Campinas (Unicamp).[29] Também foi nessa cidade que</p><p>entrevistei os guardas de museu, que fariam parte de minhas reflexões</p><p>na dissertação de mestrado, defendida no Programa de Pós-graduação</p><p>em Psicologia da Educação na PUC-SP, em abril de 2003.</p><p>Este texto é um recorte desse meu primeiro caminho. É o meu olhar</p><p>e saber sobre educação e arte, construído com base em encontros</p><p>deliciosamente especiais.</p><p>No encontro com guardas de museu...</p><p>A presença de guardas nos museus tinha, para mim, um sentido</p><p>desagradável de controle. Uma presença inibidora de qualquer ato mais</p><p>entusiasmado por parte do visitante: olhos sempre atentos, ar</p><p>preocupado, percorrendo os corredores ou imóveis...</p><p>Felizmente o encontro inusitado</p><p>com guardas do Museu Nacional</p><p>de Belas Artes, numa visita ao Rio de Janeiro, fez-me repensar esse jeito</p><p>de conceber a presença desses profissionais no museu.</p><p>A surpresa ao ser conduzida à Sala Portinari por um guarda que</p><p>falava com desprendimento sobre o Painel rodoviário, demonstrando</p><p>conhecer obra e artista, levou-me a descobrir novas formas de pensar o</p><p>encontro com a arte. Por meio das explicações de um profissional que</p><p>não esperava que tivesse algo a dizer sobre o tema, tive uma aula a</p><p>respeito de Portinari e acerca de uma obra conhecida por poucos.</p><p>Este quadro foi pintado em 1936, foi pedido do DNER (Departamento Nacional de</p><p>Estradas de Rodagem). Na época estavam construindo as grandes rodovias</p><p>federais, no caso, continuação da Dutra. Ficou por 30 anos no Monumento</p><p>Rodoviário, que era na Serra das Araras, no trecho que vai do Rio para São Paulo,</p><p>e podia ser visto lá por todos que passavam. Olha, tem fotos dele aqui [do quadro e</p><p>de Portinari]. Ele [o quadro] estava abandonado lá, pegava sol, chuva, vento, então,</p><p>estava se deteriorando. (...) Então, o Ministério da Cultura e do Transporte, eles</p><p>restauraram e doaram para o museu. A Petrobras financiou a construção deste</p><p>espaço aqui para abrigar permanentemente essa obra aí. Foi um dos primeiros</p><p>murais pintados por Portinari. Portinari foi um dos pioneiros nesta arte, neste tipo</p><p>de arte. (...) Vocês sabiam que Portinari estudou aqui [no Museu Nacional de Belas</p><p>Artes]? Aqui era a Escola de Belas Artes. Bem jovenzinho ele veio para cá. Dizem,</p><p>né, que na época, que ele estava estudando aqui e os outros artistas saíam para</p><p>almoçar, como ele não tinha dinheiro, ele comia farinha de trigo com água</p><p>escondido e dizia assim: “Ah, estou terminando aqui o trabalho e já vou”. Mas, que</p><p>nada, ele não tinha dinheiro. Então... ele fumava muito também e o cheiro da tinta,</p><p>tinta tóxica, mais muito cigarro que ele fumava, ele morreu bem jovem, com 59</p><p>anos, devido a essas coisas também. (...) Portinari destacava muito o</p><p>expressionismo do trabalhador, como vocês podem ver aí. Na época da construção</p><p>das rodovias, ele destaca muito, do trabalhador, do material... tudo, em murais –</p><p>este aí foi um dos primeiros que ele pintou. Ele era influenciado pelo muralismo</p><p>mexicano também. Depois deste aí vieram vários outros. Veio o Dom Quixote...</p><p>tem um que tá na sede da ONU, em Nova York. (...) (Guarda 1)</p><p>Naquele dia, conheci e ouvi outros dois guardas do museu – e</p><p>aprendi muito com eles também. Guardas que revelaram em suas falas</p><p>que trabalhar em um museu representa muito mais do que simplesmente</p><p>guardar as obras: é a possibilidade de conhecimento e reconhecimento.</p><p>No diálogo com eles, descobri que a forma de ser, pensar e agir em</p><p>relação à arte foi ganhando um novo sentido para eles, à medida que</p><p>iam reconhecendo nela a oportunidade de acesso à cultura. Museu e arte</p><p>são referências de educação.</p><p>Eu não conhecia nada, nem de cultura, nem de museu. Fui aprender um pouco de</p><p>cultura aqui. Aí aqui, além disso, de você conhecer um pouco da história da arte,</p><p>história da arte ligada também à história do nosso país, de um modo geral, a gente</p><p>conhece muito turista, né, turista... A gente aprende a falar um pouquinho de</p><p>inglês, um poquinhozinho de francês. Um pouquinho que você fala com eles, eles</p><p>já ficam superfelizes, superalegres. (Guarda 1)</p><p>Esses guardas ressignificaram sua atividade profissional ao serem</p><p>inseridos numa prática cotidiana diferente da que estavam acostumados.</p><p>Trabalhar em um museu – espaço educativo e por isso mesmo de</p><p>desenvolvimento cultural e intelectual – contribuiu para a transformação</p><p>da consciência desses guardas quanto à importância do acesso à cultura.</p><p>Isso reflete na educação de seus filhos: “O mais velho tem 12 e o outro</p><p>tem 8. Já tão conhecendo já o museu, pra não acontecer o que aconteceu</p><p>comigo, que fui conhecer museu com 29 anos, né?” (Guarda 1).</p><p>Em sua fala, esse guarda indica perceber as desigualdades sociais</p><p>existentes e ver na educação a chance de superá-las em benefício de</p><p>seus filhos. As ideias, os valores e os conhecimentos que esses guardas</p><p>tinham em relação à arte, resultado de experiências sócio-históricas,</p><p>foram transformados quando passaram a preservar objetos</p><p>culturalmente valiosos em um museu. Foram rompendo com o trabalho</p><p>alienado, ao aprender os significados e constituir um sentido de</p><p>importância para o ato de guardar e para sua existência naquele espaço.</p><p>Ao compreenderem a importância do que estavam guardando, não só</p><p>para eles mesmos, mas também sua importância social e cultural,</p><p>humanizaram sua força de trabalho, transformando sua atividade no</p><p>museu.</p><p>Quando eu vim trabalhar no museu eu via as pessoas explicando. Eu sempre</p><p>gostei, mas nunca me interessei. Teve um dia que alguém me perguntou sobre o</p><p>quadro e eu não soube responder aquilo. Eu fiquei incomodado com aquilo, sabe?</p><p>Eu me senti muito mal. Eu no museu e não saber de um quadro, o personagem, o</p><p>autor, o pintor. Então eu comecei a observar as pessoas explicando e perguntei</p><p>como eu podia aprender aquilo. Então, o professor disse: “Vai na biblioteca, pega o</p><p>nome do quadro, o nome do artista – tem lá tudo direitinho – e você vai estudando,</p><p>estudando, estudando”. E o professor sempre dando uma orientação e sempre me</p><p>ajudando. E comecei e estou até hoje assim... (Guarda 3)</p><p>Na fala desse guarda fica claro o sentimento de não pertencer</p><p>àquele espaço, no momento em que ele salienta seu incômodo por estar</p><p>em um museu e não saber nada sobre um quadro, o personagem, o</p><p>pintor. O encontro com a arte passa a ter para ele um novo sentido,</p><p>transformação que é motivada pela necessidade de conhecer história da</p><p>arte para saber responder às perguntas que lhe são feitas. Desejando ser</p><p>cada vez mais parte integrante do museu, busca aproximação com o</p><p>produto de seu trabalho, apropriando-se dele.</p><p>Lembrando Vygotsky (1998b), para quem não há separação entre os</p><p>aspectos intelectuais e os afetivos e volitivos na compreensão da psique</p><p>humana, ressaltamos que o homem é capaz de modificar qualquer coisa</p><p>em sua vida, em sua conduta, porque seu pensamento está diretamente</p><p>vinculado a suas necessidades e a seus interesses pessoais.</p><p>Nesse sentido, a inter-relação intelecto-afeto – a atividade no</p><p>museu, a representação simbólica que o cerca e as interações sociais</p><p>vividas por esses vigilantes – transformou a realidade profissional</p><p>desses guardas, ao mesmo tempo que esta os transformou.</p><p>Eu trouxe meus filhos aqui para ver aquela exposição do Maurício de Souza,</p><p>Turma da Mônica. (...) Eu trouxe meus filhos nessa. Trouxe agora para ver essa da</p><p>Espanha do século XVIII, inclusive gostaram muito, né? (...) Eu mesmo levei lá</p><p>em cima no século XIX para ver o acervo, levei lá no século XVIII. Lá eu não</p><p>conhecia, tanto que pedi ajuda do monitor. (Guarda 1)</p><p>O guarda confirma que o museu ganhou status afetivo em sua vida,</p><p>ao contar que não levou os filhos somente para ver a exposição de</p><p>Maurício de Souza, ato esperado pelo marketing feito e pela</p><p>proximidade do tema com o universo infantil. Levar os filhos ao museu</p><p>cria a possibilidade de que tenham acesso aos bens culturais, a uma</p><p>educação estética de melhor qualidade, vislumbrando, para os filhos,</p><p>uma vida diferente da que teve.</p><p>O encontro com a obra serviu de fonte de inspiração e satisfação à</p><p>vida desses guardas, alimento e estímulo para reflexões, indagações</p><p>sobre o mundo e sobre eles mesmos. Desfrutaram da arte, da</p><p>possibilidade tardia de conhecê-la. Tocados pelo diálogo com ela,</p><p>acreditaram na possibilidade de fazer parte das ideias e aspirações</p><p>artísticas de uma sociedade que até então os havia excluído. Com um</p><p>olhar marcado pela experiência vivida, pela interlocução com o outro,</p><p>pelo diálogo silencioso com a obra, eles reconheceram em seu cotidiano</p><p>profissional um espaço de aprendizagem e de possibilidade de</p><p>transformação da sua realidade. Seu espaço de trabalho passou a ser um</p><p>lugar afetivamente importante em suas vidas.</p><p>O museu possibilitou que as necessidades desses guardas se</p><p>configurassem em motivos pessoais, impulsionando-os afetivamente</p><p>para uma nova forma de conceber a arte:</p><p>Tem o Amandio e tem o Tobias. Tobias sempre me dando um toque. Então, eu tô</p><p>sempre aprendendo com isso. Quando eu tenho dúvidas, eu vou em cima deles:</p><p>“Oh, não, não é isso não. É assim, assim”. Vou na biblioteca, estudo de novo e falo</p><p>com eles... Eu vou na biblioteca do Exército também... (Guarda 3)</p><p>Por meio de uma realidade objetivamente desenvolvida – espaço,</p><p>pessoas, professores –, a subjetividade desses guardas foi sendo</p><p>ressignificada e transformada. Novos significados e sentidos foram</p><p>sendo construídos por suas próprias motivações e pelas orientações de</p><p>pessoas que alimentaram e acolheram essas motivações.</p><p>Outra questão interessante é a ausência da escola e de seu papel no</p><p>acesso à arte. A arte a que esses guardas tiveram acesso foi aquela que</p><p>puderam conhecer ao exercerem suas funções em um museu, primeira</p><p>oportunidade de entrada num espaço de cultura. Essa aproximação com</p><p>a obra de arte foi pouco explorada pela escola, assim como o foram as</p><p>aulas de arte:</p><p>Eu sou do Rio de Janeiro, tanto que na época que eu estudava, né, a minha</p><p>educação artística não tinha nada a ver com arte, com esta arte aí, história da arte.</p><p>Era só aquele negócio de ampliar desenho, de criar uma historinha, aquele negócio</p><p>assim, básico, né? (Guarda 1)</p><p>Com a possibilidade de acesso ao museu, aberta pela via</p><p>profissional, eles se reencontraram com a arte, um encontro diferente</p><p>daquele proporcionado pela escola. A arte se dirige a todos para ser</p><p>sentida e compreendida. Por isso ela é tão democrática. É impacto</p><p>emocional, confronto de ideias, de histórias, de imaginação e fantasia –</p><p>não importa se somos pobres ou ricos, homens ou mulheres, crianças ou</p><p>idosos, negros ou brancos. Somos seduzidos e cativados pela</p><p>multiplicidade de sentimentos que coexistem numa obra, pelas</p><p>diferentes significações e atribuições de sentido que fazemos no contato</p><p>com ela. Encontro sensível, criador, transformador do próprio sujeito e</p><p>da obra contemplada por ele. A cada nova visita a uma mesma obra,</p><p>uma descoberta diferente, um novo desejo, novos sentidos.</p><p>A história mostra o quanto a arte humaniza e aproxima os seres</p><p>humanos pelas possibilidades de comunicação criadas por sua própria</p><p>linguagem. Essa é a linguagem da humanidade, ampliada e enriquecida</p><p>ao longo da nossa história. Ela reflete a maneira como a humanidade</p><p>ampliou sua sensibilidade, sua consciência e seu entendimento sobre o</p><p>mundo.</p><p>A inquietação provocada pela obra de arte em virtude dos sentidos</p><p>que se atribuem ao contato com ela diz respeito à necessidade que o</p><p>homem tem de compreender o que está à sua volta, o que faz parte de</p><p>suas experiências de vida como ser singular, único.</p><p>As obras mais apreciadas pelos guardas geraram neles inquietações</p><p>e vontade de saber mais sobre elas, o que os motivou a elaborar suas</p><p>próprias perguntas, nascidas do tempo de que dispunham para observar</p><p>– tempo silencioso, de diálogo interno.</p><p>(...) primeiro pela beleza do quadro né, primeiro pela beleza e depois... comecei a</p><p>ver mais o detalhe do quadro, depois que eu fiquei sabendo né, as histórias...</p><p>Primeiro eu vejo a beleza do quadro (...) Acho que beleza... acho que desde o</p><p>momento que tem detalhe, eu gosto, sabe, agora aquele ali [aponta para o quadro</p><p>Batalha do Avaí] que tem tantos detalhes, eu acho que me chamou mais atenção,</p><p>sabe? Toda vez que eu passo paro, olho... (Guarda 2)</p><p>De fato, o tempo para o diálogo com as obras foi significativo para</p><p>que eles pudessem ampliar sua forma de compreensão e identificação</p><p>com elas e com o espaço do museu. Em algum momento foram</p><p>convidados pela obra a contemplá-la, e um olhar mais detido e</p><p>atencioso se instalou.</p><p>Pela natureza da função, esses guardas tiveram tempo para sentir o</p><p>quadro, formular perguntas, observá-lo mais de uma vez, questionar e</p><p>buscar informações que alimentariam o despertado desejo de saber</p><p>mais. Tempo que foi fundamental para que aprendessem a olhar as</p><p>obras como apreciadores e não mais, somente, como vigilantes.</p><p>A emoção gerada a cada novo encontro com as obras expostas</p><p>permanentemente no museu motivou a busca de uma compreensão mais</p><p>aprofundada. Levados por experiências afetivas, esses guardas foram</p><p>conhecendo as obras de arte por meio de contínuo e dinâmico processo</p><p>de aproximação e afastamento de sua realidade.</p><p>Esse aqui... esse aí é o predileto [Batalha do Avaí]. Esse aí é o meu predileto.</p><p>Quando eu bati o olho nele, falei: “Tenho que aprender alguma coisa sobre este</p><p>quadro!”. Foi quando eu comecei a me interessar, conhecer um pouco de Pedro</p><p>Américo. Eu não conheço nada ainda, tô começando a conhecer agora de Pedro</p><p>Américo. Eu tô estudando mais um pouco sobre ele... (Guarda 1)</p><p>Essas palavras expõem as emoções provocadas pelo encontro com a</p><p>arte. Esse encontro despertou sentimentos e emoções pessoais e</p><p>singulares, correspondentes às suas histórias de vida e à familiaridade</p><p>com aquelas obras. São as qualidades da experiência que possibilitam o</p><p>registro na memória como algo marcante. Diante da obra, produziram</p><p>seus próprios significados e sentidos. Encontro sensível, criador,</p><p>transformador do próprio sujeito e da obra contemplada.</p><p>Esses guardas revelaram-me alguns caminhos possíveis para que o</p><p>encontro com a arte seja mais significativo e interessante; indicativos</p><p>para pensarmos em propostas de mediação entre obra de arte e sujeito</p><p>contemplador, dentro ou fora da escola.</p><p>No encontro com a obra de arte:</p><p>Singularidades, tempo e diálogo definindo a experiência</p><p>Os conteúdos da obra não podem ser privilegiados em detrimento</p><p>das oportunidades de expressão e de significação por parte de quem a</p><p>contempla. A singularidade de cada sujeito e o tempo disponível para</p><p>interagir com a obra de arte garantem a qualidade da experiência</p><p>estética contemplativa, assim como as perguntas são o jeito particular de</p><p>conhecer e ter ideias que enriquecem as possibilidades de interlocução</p><p>do sujeito contemplador com o universo artístico – elas são o elo entre o</p><p>conteúdo da obra e os conhecimentos que serão efetivamente</p><p>apropriados.</p><p>Assim sendo, a construção de conhecimento relevante sobre arte</p><p>implica a qualidade das experiências estéticas vividas pelo sujeito. Não</p><p>bastam as informações sobre estilo, épocas e histórias de vida dos</p><p>artistas. Tampouco bastam os espaços educativos elegerem questões que</p><p>julgam importante abordar sem considerar a necessidade da construção</p><p>de conhecimentos e significados pessoais por parte do contemplador.</p><p>Não se devem ignorar os diferentes tipos de experiências de vida, o</p><p>background das pessoas, pois são fontes de novas e ricas experiências</p><p>de encontro com a arte. Isso porque os sentimentos em relação às obras</p><p>são únicos e singulares. Por isso mesmo, impor informações nem</p><p>sempre desejadas não garante envolvimento, não assegura que a</p><p>experiência com a arte provoque a necessidade de saber mais, o desejo</p><p>de voltar.</p><p>Essa experiência precisa ser afetiva, se a queremos transformadora,</p><p>para que significados sejam construídos, sentidos sejam ampliados, e</p><p>para que sejam estimuladas e enriquecidas a sensibilidade, a</p><p>expressividade, a fantasia e a imaginação, elementos básicos do</p><p>potencial criador – tão presente na infância quanto geralmente</p><p>empobrecido no adulto...</p><p>Minha história pessoal revela diversos encontros com a arte por</p><p>meio das experiências que vivi na escola, como aluna ou professora, e</p><p>das que vivi na vida fora dela.</p><p>Assim como ocorreu com os guardas que entrevistamos, minha</p><p>aproximação com esse universo nasceu das minhas próprias perguntas.</p><p>Cada história que descobria foi sendo interpretada e significada e novos</p><p>conhecimentos foram sendo construídos por meio das experiências</p><p>afetivas que pude viver com a arte.</p><p>As vivências que tive com a arte fora da escola foram sempre mais</p><p>significativas. A primeira e mais intensa foi com a música popular</p><p>brasileira, apresentada na minha infância pelos meus pais,</p><p>principalmente as composições que marcaram época. Juntos, ouvíamos</p><p>(e dançávamos) Vinícius de Morais, Caetano Veloso, Chico Buarque,</p><p>Gilberto Gil, Noel Rosa, Tom Jobim,</p><p>Pixinguinha, Elis Regina, Luiz</p><p>Gonzaga e muitos outros.</p><p>Meus pais também me incentivaram a ter um olhar mais atento e</p><p>sensível para a produção cultural brasileira: o artesanato regional,</p><p>principalmente o nordestino, os objetos antigos, como o baú de minha</p><p>bisavó, a vitrola da senhora que trabalhou em nossa casa, o moedor de</p><p>carne, a máquina de costura, o telefone. Objetos que contavam histórias</p><p>anteriores à nossa casa e outras tantas acumuladas em nosso convívio.</p><p>Hoje, após as muitas experiências estéticas que tive, percebo o</p><p>quanto o contato com esses objetos e essas músicas e a forma afetiva</p><p>como meus pais lidavam com eles contribuíram para constituir meu</p><p>olhar, meu gosto, minha sensibilidade.</p><p>Sensibilidade esta que não era uma preocupação da escola em que</p><p>estudava. Por isso entendo o desabafo do Guarda 1 sobre o que havia</p><p>aprendido de arte na escola. Eu sabia por vivência própria do que ele</p><p>estava falando.</p><p>Quantos de nós não tivemos que decorar trechos de poesias, copiar</p><p>objetos de argila ou desenhar de acordo com técnicas que eram</p><p>ensinadas nas aulas de desenho? Estávamos sempre trabalhando em</p><p>função de um produto final: a criatividade não era favorecida; a ênfase</p><p>estava no fazer técnico, com preocupação fundamental no produto do</p><p>trabalho. Priorizava-se o processo de ensino e aprendizagem centrado</p><p>no adulto, em detrimento da liberdade de pensar e sentir do aluno.</p><p>Nos museus e nas escolas a maioria das informações sobre a obra</p><p>de arte e o artista ainda não leva em conta as perguntas geradas pelas</p><p>inquietações mobilizadas pelo contato com eles. Lidar com a</p><p>coletividade leva a minimizar as diferenças e a esquecer a riqueza das</p><p>diversidades dos sujeitos – seus saberes, suas perguntas, suas</p><p>necessidades, sua forma de relacionar-se com o mundo.</p><p>Aprender e ensinar resultam das reflexões que educando e educador</p><p>estabelecem entre si e sobre o mundo, bem como da interação com seus</p><p>pares e interlocutores. Daí a necessidade do diálogo, dos acordos</p><p>possíveis e dos conflitos inevitáveis, das contradições férteis e das</p><p>indagações desafiadoras, da tensão constante e estimuladora entre</p><p>certezas e dúvidas, erros e acertos.</p><p>Não se trata, portanto, de um caminho assegurado pelo que o</p><p>educador diz, pois costuma haver grande distância entre o que se ensina</p><p>e o que efetivamente se aprende. Sujeito e objeto de conhecimento</p><p>transformam-se e se constituem mutuamente, num caminho singular,</p><p>próprio de quem conhece – não de quem ensina.</p><p>Como educadores, cabe-nos criar espaços afetivos para que atitudes</p><p>sejam exercitadas, conhecimentos sejam produzidos e aprendidos e</p><p>novas perguntas sejam estimuladas e acolhidas. Partindo daquilo que os</p><p>educandos produzem e são, sabem e sentem, cabe-nos promover o</p><p>exercício do pensamento aliado ao sentimento na construção de novos</p><p>saberes, no respeito e na valorização das diferenças.</p><p>Apostar nos encontros dialógicos – eis um caminho desejável e</p><p>possível para que os conhecimentos sejam significativamente</p><p>apropriados. Encontros nos quais o diálogo não seja “discussão</p><p>guerreira para impor verdades individuais”, ou simples “trocar ideias”,</p><p>mas, ao contrário, espaço onde o refletir e o agir se solidarizem na</p><p>busca da pronúncia do mundo a ser transformado e humanizado.</p><p>Encontros, enfim, nos quais o diálogo é ato de criação (Freire 1993).</p><p>Está posto, portanto, um grande desafio para os espaços educativos:</p><p>acreditar na sensibilidade e no afeto como produtores de conhecimento;</p><p>na ordem e na desordem como possíveis caminhos de aprendizagem;</p><p>nas diferenças, nas diversidades da vida e na problematização como</p><p>fontes de novas descobertas. Acreditar, enfim, que os verdadeiros</p><p>roteiros para fazer educação encontram-se no mundo vivido pelos</p><p>educandos.</p><p>Quem sabe assim reduziremos os tardios encontros significativos e</p><p>transformadores com a arte...</p><p>Bibliografia</p><p>AGUIAR, Wanda M. Junqueira (2001a). “Consciência e atividade: Categorias fundamentais da</p><p>psicologia sócio-histórica”. In: BOCK, A.M.B. et al. Psicologia sócio-histórica: Uma</p><p>perspectiva crítica em psicologia. São Paulo: Cortez.</p><p>________ (2001b). “A pesquisa em psicologia sócio-histórica: Contribuições para o debate</p><p>metodológico”. In: BOCK, A.M.B. et al. Psicologia sócio-histórica: Uma perspectiva</p><p>crítica em psicologia. São Paulo: Cortez.</p><p>ALBANO, Ana Angélica (2002). O espaço do desenho: A educação do educador. 9ª ed. São</p><p>Paulo: Loyola.</p><p>BOCK, A.M.B. et al. (2001). Psicologia sócio-histórica: Uma perspectiva crítica em</p><p>psicologia. São Paulo: Cortez.</p><p>COSTA, Gabriela Salles Argolo (2003). “Mediações transformadoras: Olhares e saberes do</p><p>encontro com a obra de arte”. Dissertação de mestrado. São Paulo: Programa de Pós-</p><p>graduação em Psicologia da Educação-PUC.</p><p>FREIRE, Paulo (1991). Educação como prática da liberdade. 20ª ed. Rio de Janeiro: Paz e</p><p>Terra.</p><p>________ (1993). Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.</p><p>KRAMER, Sonia e LEITE, Maria Isabel (orgs.) (2001). Infância e produção cultural.</p><p>Campinas: Papirus.</p><p>LEITE, Maria Isabel (2001). “O que e como desenham as crianças? Refletindo sobre as</p><p>condições de produção cultural da infância”. Tese de doutorado. Campinas: FE/Unicamp.</p><p>________ (s./d.). “Arte e formação estética na educação infantil”. (Mimeo.)</p><p>MARTINS, Miriam Celeste Ferreira Dias (1992). Aprendiz da arte: Trilhas do sensível olhar-</p><p>pensante. São Paulo: Espaço Pedagógico.</p><p>________ (1997). “Projetos em ação para o ensino da arte”. In: FREIRE, Madalena et al.</p><p>Avaliação e planejamento: Instrumentos metodológicos II. São Paulo: Espaço</p><p>Pedagógico, pp. 70-84. (Série Seminários)</p><p>________ (1999). “Arte, o seu encantamento e o seu trabalho na educação de educadores. A</p><p>celebração de metamorfoses da cigarra e da formiga”. Tese de doutorado. São Paulo:</p><p>FE/USP.</p><p>VYGOTSKY, Lev (1998a). Pensamento e linguagem. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes.</p><p>________ (1998b). A formação social da mente. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes.</p><p>________ (1999). Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes.</p><p>4</p><p>TURBILHÃO DE SENTIMENTOS E</p><p>IMAGINAÇÕES: AS CRIANÇAS VÃO AO</p><p>MUSEU, OU AO CASTELO...</p><p>Adriana Aparecida Ganzer</p><p>Possibilitar que a cultura entre na escola utilizando concepções do</p><p>imaginário habitual propicia a criação de relações representativas, pois a</p><p>visibilidade de objetos do cotidiano permite uma apreensão significativa</p><p>dos sentidos. Ao ressignificarmos o conhecimento envolvendo</p><p>necessariamente a criatividade e a sensibilidade, aproximamos a arte da</p><p>educação.</p><p>A educação do olhar é um exercício, uma construção na qual a</p><p>percepção e a sensibilidade estão imbricadas na produção do</p><p>conhecimento. Tornar visível o que se olha é uma concepção do</p><p>sensível. Pensar a educação do olhar é posicionar-se e questionar-se</p><p>diante do processo de aprendizagem, para despertar o caráter sensitivo,</p><p>afetivo e sensorial, como uma viagem ao mundo da imaginação e das</p><p>informações adquiridas.</p><p>Reflexões acerca da práxis educacional do ensino da arte tornam-se</p><p>importantes para incentivar a criação de alternativas pedagógicas que</p><p>possam ampliar o repertório da aprendizagem, exigindo ações</p><p>educativas competentes e novas maneiras de relacionar a arte com a</p><p>educação e suas implicações de leitura no sistema educacional. Esse é</p><p>um desafio. Devemos ter a humildade e a magnitude de acreditar nos</p><p>nossos sentidos e de aprender com as incertezas. Morin (2002) diz que a</p><p>projeção de nossos desejos ou de nossos medos trazida por nossas</p><p>emoções multiplica os riscos de erros, e que somente eliminamos tais</p><p>riscos ignorando e recalcando nossa afetividade. E diz também: “O</p><p>desenvolvimento da inteligência é inseparável do mundo da afetividade,</p><p>da curiosidade e da paixão” (p. 20).</p><p>Como fazermos um chamado para a educação do sensível nos</p><p>educadores e nos educandos? Como despertarmos a sensibilidade e o</p><p>prazer para a educação do olhar? Quais as relações estabelecidas ao</p><p>apresentarmos as imagens às crianças? Que imagens chegam até as</p><p>escolas? Sejam elas artísticas ou cotidianas, o que provocam no nosso</p><p>olhar? Conforme Pillar (1999, p. 18), “o nosso olhar não é ingênuo,</p><p>ele</p><p>está comprometido com nosso passado, com nossas experiências, com</p><p>nossa época e lugar, com nossos referenciais”.</p><p>Sair do ambiente escolar com os alunos e chegar aos espaços</p><p>expositivos é de grande importância. Na escola utilizamos a linguagem</p><p>verbal e materiais didáticos com reproduções de obras, subsídios para</p><p>uma leitura visual. Já no museu, encontramos as obras “originais”,</p><p>realizadas (ou elaboradas) por artistas.</p><p>A visita ao Museu de Arte provoca o gosto pela descoberta das</p><p>impressões sensoriais, a curiosidade e o prazer. A proximidade com as</p><p>obras originais proporciona melhor visibilidade às cores, formas e</p><p>técnicas utilizadas, interferindo também na relação do espectador com</p><p>as dimensões das pinturas, dos desenhos ou fotografias e, no caso das</p><p>obras tridimensionais, com o volume e seu entorno. O prédio do museu,</p><p>como patrimônio cultural, suscita expectativas e estabelece relações</p><p>com o imaginário de cada visitante. As imagens cotidianas observadas</p><p>no trajeto são, também, elementos importantes para a constituição de</p><p>um novo olhar.</p><p>Para tanto, um trabalho educativo atuante entre as instituições</p><p>escolares e culturais é essencial, pois a possibilidade de transformação</p><p>da expectativa, do assombro e do encantamento em situações de</p><p>aprendizagem requer um constante desenvolvimento para atuar como</p><p>agente multiplicador de saberes. Para Buoro (2002, p. 41), “é na</p><p>valorização da sensibilidade, na tentativa de desenvolvê-la no mundo e</p><p>para o mundo devolvê-la, que poderemos contribuir de forma inegável</p><p>com um projeto educacional no qual o ensino da arte desempenhe um</p><p>papel preponderante e não apenas participe como coadjuvante”.</p><p>Um trabalho educativo que constrói fruidores sensíveis e propõe</p><p>um novo olhar para as coisas corriqueiras – que podem ir além dos</p><p>nossos referenciais – privilegia o diálogo entre o visual e o verbal na</p><p>tentativa de compreender os processos e as relações oferecidas.</p><p>Mas como isso acontece na prática? Museus e escolas conversam a</p><p>esse respeito? Vamos tentar aguçar nossa percepção por meio de alguns</p><p>depoimentos tomados de um grupo de crianças que visitaram o museu</p><p>pela primeira vez.</p><p>Em Porto Alegre, uma turma de crianças da educação infantil, com</p><p>idades entre quatro e seis anos, foi ao centro da cidade para conhecer o</p><p>Museu de Arte do Rio Grande do Sul. O que aconteceu pelo caminho?</p><p>Como as crianças receberam as imagens no museu, na rua, no percurso</p><p>e as informações? O que ficou registrado?</p><p>A turma, com a ajuda da professora, elaborou um relato dessa</p><p>experiência, discorrendo sobre as situações e os momentos considerados</p><p>mais marcantes. A professora transformou esse relato em cartazes</p><p>ilustrados com fotografias tiradas pelas próprias crianças, expondo-os</p><p>na escola. O objetivo da exposição foi não apenas o de mostrar o</p><p>trabalho realizado, mas também o de chamar a atenção das demais</p><p>turmas, convidando-as a elaborar algo parecido, pois os cartazes e as</p><p>fotos revelavam o quanto ele fora prazeroso e significativo.</p><p>Já no ônibus, a imaginação corre solta. Passageiros entrando e</p><p>saindo, muita movimentação. Olhares curiosos acompanham tudo.</p><p>Alvoroço total! São muitas as informações.</p><p>Depois do almoço nós fomos passear lá no Museu de Artes do Rio Grande do Sul.</p><p>No caminho até o centro o que mais gostamos foi o parque que vimos [Parque da</p><p>Redenção]. Tinha roda-gigante, carrinhos e brinquedos. Na entrada do parque</p><p>tinham duas estrelas, uma azul e outra amarela. (Lina, Luan e Ana)</p><p>Na rua nós vimos soldados, carros, pessoas, casas, prédios e um monte de ônibus</p><p>pra lá e pra cá. (Lina, Fábio e Ana)</p><p>O que gostei muito foi de passar no túnel, lá é escuro. (Ana e Luan)</p><p>Primeira parada. A parada do ônibus[30] fica ao lado do Mercado</p><p>Público. O Mercado Público Central é um dos pontos mais atraentes de</p><p>Porto Alegre. Inaugurado em 1869, restaurado nos anos 90, abriga</p><p>restaurantes, sorveterias e comércio. É tradicional ponto de encontro de</p><p>muitos moradores da capital. O mercado, com suas bancas e suas</p><p>peculiaridades, seus cheiros, suas cores, as pessoas circulando, o verde</p><p>das hortaliças, o amarelo e o vermelho dos pimentões, causa grande</p><p>encantamento nas crianças. Sem dúvida, o Mercado Público tem um</p><p>belíssimo visual.</p><p>Quando descemos do ônibus no Mercado, o Lúcio quis fazer xixi. A Rita levou ele</p><p>num tio e depois foi nos buscar pra fazer xixi também. O tio era bonzinho,</p><p>conversou com nós e nos deu até bolacha. (Francine, Lina e Tiago)</p><p>Lá tinha um mote de máquina de jogar. (Adair)</p><p>O Mercado tem cheiro de peixe. (André, Lúcio e Natana)</p><p>Eufóricas, as crianças dirigem-se, então, ao Museu de Arte,</p><p>passando pela Rua da Praia, a mais popular da cidade. Pessoas andando,</p><p>cada uma no seu ritmo e com seu estilo peculiar. Entretenimento para</p><p>todos os passantes: músicas, danças, discursos, poesias, malabares,</p><p>desenhistas, ambulantes, prédios, lojas... As crianças param</p><p>maravilhadas diante da múmia[31] toda de branco. Para ela se mover, é</p><p>só colocar uma moeda na caixa. Genial! Tudo acontece nesse lugar!</p><p>Ela não se mexia, ficava bem paradinha e nos pés dela tinha uma caixinha que o</p><p>Lúcio botou uma moeda e ela se mexeu, daí deu pra ele uma mensagem. (Pedro,</p><p>Lúcio, Lina e André)</p><p>Lá no centro nós vimos uma escultura de pavão num prédio velho que tinha na</p><p>praça. (Silvia e Adair)</p><p>Tinha muitas esculturas no centro, relógio em cima dos prédios, pombas no chão e</p><p>voando, avião passando, escultura do cavaleiro, a mulher gordinha, os anjos, leões,</p><p>uma praça linda cheia de árvores e pessoas sentadas conversando. (Rafaela, João,</p><p>Lina, Lúcio, Francine, Rita, Luan e Tiago)</p><p>Quando a gente estava na frente do museu, passou um carrinho de coleta de lixo e</p><p>nós pedimos pro tio tirar uma foto e ele deixou. (André e Lúcio)</p><p>Finalmente, o Museu de Artes do Rio Grande do Sul – Ado</p><p>Malagoli. Imponente prédio histórico de estilo neoclássico, construído</p><p>em 1913, projetado pelo arquiteto alemão Theo Wiederspahn para</p><p>abrigar a delegacia fiscal.[32] Destacando-se por sua sinuosidade, a</p><p>construção de cerca de cinco mil metros quadrados de área possui</p><p>vitrais, mármores e ornamentos importados. Espanto, admiração,</p><p>encantamento e a conclusão da turma: “É um castelo!”.</p><p>As crianças são recepcionadas por uma mediadora. Sentam-se na</p><p>escadaria de mármore com tapete vermelho e ouvem atentamente a</p><p>história do prédio e de seu fundador, o professor Ado Malagoli, em</p><p>pinceladas rápidas. A mediadora combina o percurso da visita.</p><p>Na entrada do museu perto das escadas tinha uma escultura[33] de ferro, preta, que</p><p>a barriga tava toda aberta cheia de torneiras e com as pernas fininhas. (Rafaela e</p><p>Fábio)</p><p>Mais pra cima da escada tinha a escultura da Moema,[34] toda preta. (Lina)</p><p>A Moema era uma índia que se apaixonou por um homem que não gostava dela,</p><p>gostava de outra mulher. E um dia o homem saiu de barco com a outra mulher e a</p><p>Moema foi nadando atrás do barco. Nadou, nadou, ficou cansada, se afogou e</p><p>morreu. Aí o mar levou ela de volta para a areia. (Lina, André e João)</p><p>Quem nos contou a história foi a princesa do castelo. (Natana) [As crianças</p><p>chamaram de princesa do castelo a mediadora que as orientou na visita, e de</p><p>castelo, o prédio do museu.]</p><p>Do lado da escultura da Moema tinha o quadro das mulheres numa casa cuidando</p><p>das crianças, o nome do quadro era “Creche”.[35] (Lina)</p><p>No museu tinha um monte de quadros bonitos. (Ana)</p><p>Antes de sair nós tiramos foto com a princesa do castelo e com outras tias que</p><p>estavam lá. (Lúcio e Tiago)</p><p>Quando fomos embora a Rita tirou foto de nós na frente da Prefeitura que tinha um</p><p>monte de pombinhas e um chafariz. (Lina, Natana e André)</p><p>Os guardas nos ajudaram a atravessar a rua. (João)</p><p>Do outro lado da rua tinha uns homens tocando violão e com uma gaitinha de boca.</p><p>(Tiago e Adair)</p><p>Tinha gente vendendo bergamota, um palhaço, a Emília e uns guris fazendo</p><p>capoeira. (Silvia, Tiago, Luan, João, Francine e Lina)</p><p>Lá no museu a gente não podia pôr a mão nas telas porque senão manchava tudo e</p><p>ficava marcado os nossos dedos. (Lina, André, João, Lúcio e Natana)</p><p>Pegamos o ônibus no Mercado Público, viemos</p><p>que permeia a</p><p>educação, a arte e a cultura, publicamos o livro Arte, infância e</p><p>formação de professores: Autoria e transgressão, em que apresentamos</p><p>algumas pesquisas e experiências. Nele falamos de criação, de</p><p>afirmação da autoria – que se faz transgressão, na escola e na vida.</p><p>Apontamos a necessidade de rever conceitos e de estruturar</p><p>teoricamente esse campo de conhecimento que se situa na interface da</p><p>arte com a educação. Mais importante, fazemos um convite ao diálogo</p><p>com diferentes linguagens, ao ensaio de novos olhares para a formação</p><p>de professores, a fim de contemplar a formação cultural.</p><p>Lá, somos duas professoras, pedagogas de formação, com histórias</p><p>que se encontravam e se identificavam, colocando nossas vozes no</p><p>convite, no chamado. Aqui, hoje, vamos ampliando vozes e olhares,</p><p>promovendo mais e significativos encontros. Desejo maior: possibilitar</p><p>o encontro de tantas e diferentes vozes a falar de suas experiências, de</p><p>suas pesquisas, de sua aproximação com o universo artístico-cultural e</p><p>que, ao estruturarem seu discurso, também provoquem o encontro do</p><p>público/leitor com objetos de cultura. Encontros gerando encontros:</p><p>autoras/professoras de cantos diversos desse imenso Brasil, falando de</p><p>instituições diferenciadas de educação e cultura; pensando a educação</p><p>estética, a educação do olhar, a formação cultural do ser humano</p><p>sensível, implicado no mundo que o cerca.</p><p>Na multiplicidade de olhares, fazeres e dizeres, os artigos reunidos</p><p>neste livro tratam das relações entre museu, educação e cultura,</p><p>trazendo elementos teóricos de análise e crítica; enfocam, também, a</p><p>relação direta do sujeito com o objeto de cultura, a obra, discutindo,</p><p>assim, os processos constitutivos do olhar sensível e crítico. Estão aqui</p><p>não apenas textos de pesquisa, mas, também, depoimentos que</p><p>evidenciam e problematizam a experiência estética. Esse talvez seja um</p><p>dos aspectos mais caros da nossa organização, que apresenta os textos</p><p>em duas sessões, percorrendo a temática, já no título revelada.</p><p>“Museu, educação e cultura”, como primeira parte, reúne seis textos</p><p>provenientes de pesquisas cariocas, catarinenses, gaúchas e paulistas.</p><p>Neles, a tônica foi a conceituação dos museus e demais espaços</p><p>culturais como lócus privilegiados – mas não únicos – de acervo e</p><p>preservação da memória cultural, e de produção de conhecimento. A</p><p>especificidade do conhecimento em questão, que abarca não apenas</p><p>aquele científico, mas também os de natureza estética e poética,</p><p>destaca-se como o interesse maior das autoras.</p><p>Se os conceitos de arte, de cultura, de memória são ali</p><p>evidenciados, os artigos aprofundam essa relação e trazem importantes</p><p>e reveladoras análises sobre as condições oferecidas pelos museus para</p><p>que diferentes sujeitos se apropriem e produzam conhecimento. O papel</p><p>social do museu foi questionado. Sua importância na formação cultural</p><p>de todos os cidadãos foi sublinhada. Assim, museu, educação e cultura,</p><p>mais do que simples termos complexos, transformam-se em</p><p>materialidade de propostas e ações que podem se entrelaçar, que</p><p>precisam se encontrar para a realização de uma cidadania plena, para a</p><p>vida ampliada de todos, trançada, tecida e enriquecida nos encontros do</p><p>vasto mundo... no cotidiano, com a arte e a cultura.</p><p>Na continuidade dessas discussões sobre a forma como museus e</p><p>demais espaços culturais se organizam para favorecer a relação entre o</p><p>sujeito e o objeto cultural, podemos vislumbrar propostas de serviços</p><p>educativos – tanto em museus de arte, como o Museu Nacional de Belas</p><p>Artes do Rio de Janeiro e o Museu de Arte do Rio Grande do Sul,</p><p>quanto em outros espaços de cultura, como a Assembleia Legislativa e o</p><p>Solar Grandjean de Montigny, também no Rio de Janeiro, ou o Museu</p><p>do Brinquedo, em Florianópolis, assim como diversos espaços que</p><p>abrigaram exposições itinerantes por todo o interior de São Paulo.</p><p>E sobre os monitores, guardas e visitas guiadas, algo a dizer?</p><p>Muito! A formação de monitores é igualmente trazida para o centro do</p><p>debate, com os dados de pesquisa apresentados oferecendo um roteiro</p><p>para reflexão. Guiar, monitorar, mediar, educar... há diferença? Como</p><p>poderia ser viabilizada a formação dos sujeitos que atuam em museus e</p><p>instituições culturais? São perguntas que surgem e vão ampliando o</p><p>tratamento do tema, que poderia ser formulado assim: como garantir um</p><p>dos papéis sociais do museu, a apresentação dos objetos de cultura de</p><p>forma crítica, provocando o diálogo do público com eles, sem ofuscar o</p><p>olhar, sem barrar o encontro direto do sujeito com a obra?</p><p>E seguimos. “Encontros de crianças e professores com a arte:</p><p>Olhares e dizeres”, a segunda parte do livro, como o próprio título</p><p>indica, traz à cena olhares e dizeres de professores e crianças que foram</p><p>ao encontro da obra. Os textos narram experiências vividas em museus</p><p>brasileiros, em diferentes partes do país. Essa característica é</p><p>fundamental, pois, ao falarem desses espaços – Pinacoteca do Estado,</p><p>Museu de Arte Contemporânea da USP, Museu de Arte de São Paulo e</p><p>Museu de Arte Brasileira/Faap, em São Paulo; Museu Nacional de</p><p>Belas Artes, no Rio de Janeiro –, conferem-lhes visibilidade. Temos,</p><p>igualmente, a citação de espaços expositivos tradicionais, como a OCA-</p><p>Ibirapuera, cenário de grandiosas exposições, em São Paulo.</p><p>Essas narrações são viagens investidas de subjetividade,</p><p>particularidades de cada fruidor. Aqui, ali ou acolá, todas carregadas de</p><p>significados, porque traçadas com as tintas e as cores – pode-se dizer</p><p>com a história – de cada narrador. Todos professores, da educação</p><p>infantil ao ensino superior. Uns trazendo também a escola e as crianças</p><p>para a cena – escolas onde trabalham e crianças das quais são</p><p>professores ou as escolas onde estudaram as crianças que foram... Cada</p><p>um falando de um ponto de vista – um lugar social, um espaço</p><p>geográfico, que dá o tom do discurso. É justamente a diversidade entre</p><p>eles que possibilita o encontro e a troca – de olhares, dizeres e saberes...</p><p>Na diversidade, a certeza de saber-se único e ao mesmo tempo múltiplo</p><p>– “O seu olhar melhora o meu”, diz o poeta. A partilha com o outro fica</p><p>aqui evidenciada na busca de respostas às questões: o que é arte? Para</p><p>que a arte? O que é feio ou bonito? Qual a intenção dos artistas? Qual o</p><p>papel da escola na educação estética?</p><p>Outro aspecto a ser ressaltado dessa segunda parte é a ousadia de</p><p>dizer o talvez indizível. Ao elaborar um discurso que marca o encontro</p><p>de cada um com a obra de arte, cada qual se afirma autor. Mas, antes de</p><p>dizer, foi preciso entrar no museu, autorizar-se a estar diante da obra.</p><p>Estranhar, indignar-se, reagir positiva ou negativamente, acolhendo ou</p><p>rejeitando a obra, emocionar-se às lágrimas, calar-se, surpreender-se,</p><p>maravilhar-se, deslumbrar-se, refletir, indagar: todas ações possíveis,</p><p>que só acontecem a partir do momento em que cada um se autoriza a</p><p>entrar no espaço do museu – tão comumente encarado como pertencente</p><p>a alguns, uma minoria, os escolhidos, ilustrados, eruditos... Não há,</p><p>pois, aqui, o discurso do especialista. Todavia, vai ficando evidente, por</p><p>meio do conjunto desses ensaios no livro, que, se a obra fala, desperta</p><p>em nós o desejo de saber seu idioma. A cada vez que estamos diante</p><p>dela, trabalhamos a educação dos sentidos – e essa educação não é</p><p>imediata; ela vai se sofisticando, se complexificando, a cada olhar.</p><p>Por fim, resta dizer que, para nós, é desafiador publicar textos de</p><p>estilos, abordagens e tamanhos diversos. Na verdade, nesse projeto,</p><p>uma característica forte é o desafio: primeiro, de socializar e fazer</p><p>circular produções tão distintas – na forma e no conteúdo – que</p><p>aproximam o autor do leitor; depois, o de provocar o leitor a</p><p>desacomodar suas percepções e, quem sabe, despertar sua sensibilidade</p><p>adormecida para que ele também se sinta convidado a, rompendo com a</p><p>inércia, ver-se como contemplador ativo de obras de arte e demais</p><p>objetos culturais.</p><p>Tudo pode ser... Temos uma certeza apenas: há que haver</p><p>disposição para o encontro com a obra! Vale dizer, há que haver o</p><p>desejo, muitas vezes a coragem, de</p><p>cansados e dormimos. (André,</p><p>Adair, Lina, João e Tiago)</p><p>O passeio tava muito bom, vimos um monte de coisas novas, a gente quer voltar de</p><p>novo. (Silvia, Rafaela, Rita e Pedro)</p><p>O percurso realizado pela turma – um turbilhão de sentimentos e</p><p>imaginações – suscita muitas questões atinentes à visualização e à</p><p>fantasia. No Mercado Público, o cotidiano, os cheiros, os sons, o dia a</p><p>dia das pessoas; no Museu de Arte, um “castelo”, o faz de conta, a</p><p>experiência vivenciada que provoca deslumbramento.</p><p>Nessa combinatória de experiências, de informações recebidas, o</p><p>que fica para o conhecimento das crianças? Como dar continuidade ao</p><p>trabalho? É possível relacionar a arte com o cotidiano dos educandos?</p><p>O que aprendemos com as imagens? Como desenvolver um trabalho</p><p>educativo partindo das tantas imagens, informações e novidades</p><p>encontradas fora do ambiente escolar até então desconhecidas?</p><p>Quem somos nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de</p><p>leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um</p><p>inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser</p><p>continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis. (Calvino</p><p>1990, p. 138)</p><p>Na tarefa de produzir conhecimento, o ensino de arte organiza</p><p>também a pesquisa, com base em elementos concretos e pertinentes à</p><p>vida e à cultura dos envolvidos. Estabelece uma relação dialética dos</p><p>saberes com os diferentes contextos culturais, e, com base neles, produz</p><p>atitudes pedagógicas que podem reforçar e instigar a construção de</p><p>significações. Estudos que desafiam o desenvolvimento do sensível e a</p><p>percepção do olhar. Certamente muitos são os fatores que justificam</p><p>essas relações e nos levam a refletir e aprender com nossos acertos e</p><p>desacertos. Um processo criativo assim constituído, embasado nas</p><p>práticas vividas, tem o potencial de fazer com que a realidade seja</p><p>olhada indiretamente e, assim, transformada no presente para</p><p>consolidarmos e avançarmos o conhecimento e a experiência do ensino</p><p>da arte, pela educação do olhar.</p><p>Para finalizar, remetemo-nos a Anísio Teixeira:</p><p>A única finalidade da vida é mais vida. E se me perguntarem o que é essa vida, eu</p><p>lhes direi que é mais liberdade e mais felicidade. São vagos os termos. Mas nem</p><p>por isso eles deixam de ter sentido para cada um de nós. Na medida em que formos</p><p>mais livres, que abrangermos em nosso coração e em nossa inteligência mais</p><p>coisas, que ganharmos critérios mais finos de compreensão, nessa medida nos</p><p>sentiremos maiores e mais felizes. A finalidade da educação se confunde com a</p><p>finalidade da vida. (Nova Escola 2003, p. 64)</p><p>Bibliografia</p><p>ARTE BR (2003). São Paulo: Instituto Arte na Escola. Coordenação: Anamelia Bueno Buoro.</p><p>Curadoria: Paulo Herkenhoff.</p><p>BUORO, Anamelia Bueno (2002). Olhos que pintam: A leitura da imagem e o ensino da arte.</p><p>São Paulo: Educ/Fapesp/Cortez.</p><p>CALVINO, Ítalo (1990). Seis propostas para o próximo milênio: Lições americanas. São</p><p>Paulo: Companhia das Letras.</p><p>DEWEY, John (1980). A arte como experiência. São Paulo: Abril Cultural.</p><p>MORIN, Edgar (2002). Os sete saberes necessários à educação do futuro. 6ª ed. São</p><p>Paulo/Brasília: Cortez/Unesco.</p><p>OLIVEIRA, Sandra Regina Ramalho (1998). “Leitura de imagens para a educação”. Tese de</p><p>doutorado em Comunicação e Semiótica. São Paulo: PUC.</p><p>PILLAR, Analice Dutra (org.) (1999). A educação do olhar no ensino das artes. Porto Alegre:</p><p>Mediação.</p><p>TEIXEIRA, Anísio (2003). “Por que escola nova?”. Nova Escola. A revista do professor. São</p><p>Paulo: Fundação Civita, abr.</p><p>5</p><p>O SEU OLHAR MELHORA O MEU: O</p><p>PROCESSO DE MONITORIA EM EXPOSIÇÕES</p><p>ITINERANTES[36]</p><p>Adriana de Almeida Machado</p><p>Aprenda a olhar em silêncio se você não quiser que o</p><p>barulho espante, diante de seus olhos,</p><p>a beleza das coisas frágeis.</p><p>François Place 2004, p. 63</p><p>O cenário apresentado inicia-se no ano 2000, quando, pensando nas</p><p>questões que envolvem a reprodução de obras de arte com a finalidade</p><p>de propor um museu itinerante composto por reproduções, fui indicada</p><p>para atuar como coordenadora da Ação Educativa da mostra “Lasar</p><p>Segall – Exposição digital”.[37] O tema do trabalho explorava uma</p><p>biografia, fundamentando-se na vida do artista e trazendo imagens de</p><p>suas principais obras em todas as técnicas pelas quais se manifestou</p><p>artisticamente. Aceito o desafio, levei essa exposição a sete cidades do</p><p>interior do estado de São Paulo. Quando do término dessa itinerância,</p><p>fui convidada a atuar como curadora de uma nova exposição com</p><p>reproduções, agora abordando a arte brasileira do século XIX,[38] com</p><p>base em relações artístico-históricas com obras de mais de 30 artistas,</p><p>privilegiando sua produção pictórica, abrangendo panoramicamente a</p><p>história da arte de um século e valendo-se da reprodução de 100</p><p>trabalhos em pintura.</p><p>A experiência com essas exposições modificou perguntas, outrora</p><p>teóricas, que orientavam minha pesquisa de mestrado, que estava em</p><p>andamento na mesma época, e instigou reflexões sobre a relação</p><p>sujeito/obra baseada em reproduções. Interessou-me, sobretudo, o modo</p><p>pelo qual o meu olhar e o dos monitores que integraram as exposições</p><p>foram mutuamente modificados pelo olhar dos outros, sobretudo do</p><p>público visitante.</p><p>O texto que se segue foi formulado tendo por base reflexões</p><p>geradas sobre o uso de reproduções de obras de arte em exposições de</p><p>réplicas, com a função principal de divulgar a arte valendo-se da</p><p>tecnologia. Para tanto, procurarei, ao longo do capítulo, situar o leitor</p><p>sobre a ideia que desencadeou esse trabalho e sobre aspectos da</p><p>monitoria em mostras de arte, aliando a descrição e a análise das duas</p><p>experiências com exposições digitais itinerantes, já citadas, tendo como</p><p>tema o artista Lasar Segall, e, em seguida, a arte brasileira do</p><p>Oitocentos, mais especificamente elegendo o gênero pintura.</p><p>Ao final, busco abordar algumas reflexões desencadeadas com a</p><p>prática itinerante dos referidos projetos, sinalizando que a possibilidade</p><p>de promover a capacitação de pouco mais de uma centena de pessoas –</p><p>que formaram as equipes de monitoria – modificou e ampliou o meu</p><p>olhar a cada cidade, revendo e ressignificando imagens de obras que eu</p><p>pretensamente acreditava já vistas e, até mesmo, “desvendadas”.</p><p>Nas palavras de Mário de Andrade, o início</p><p>Hoje qualquer Mogi das Cruzes pode ter a sua</p><p>Gioconda, impossível à primeira vista de distinguir da</p><p>legítima. Não sou dos que vêem, nas utilíssimas</p><p>malazartes da técnica moderna, a desvalorização dos</p><p>quadros legítimos. (...) o valor cultural da reprodução é o</p><p>mesmo, ou quase, nos ensinam as coleções científicas de</p><p>estudo, em que se aprende o atraente colorido (diria o</p><p>meu amigo Flávio de Carvalho, que admiro) dum tumor,</p><p>tanto no caso vivo como na sua reprodução em cera.</p><p>Andrade 1938, p. 54</p><p>As palavras do escritor deixam claro que ele não acredita que as</p><p>reproduções de obras tragam prejuízos em relação ao original; mais</p><p>adiante, no mesmo artigo, ele reforça sua posição, ao dizer: “O que de</p><p>principal nós podemos tirar da Gioconda, a reprodução dela nos dá”</p><p>(idem, p. 55). Ao defender a proposta de um museu com reproduções,</p><p>certamente Mário não está pensando que uma reprodução possa</p><p>substituir de modo absoluto a obra original. Sua preocupação maior é</p><p>difundir as imagens de arte para um grande número de pessoas.</p><p>Da época de Mário aos dias de hoje, houve muitas modificações no</p><p>panorama das artes e instituições museológicas no Brasil. Se a</p><p>preocupação de Mário em falar sobre a importância de museus francos,</p><p>visando à educação estética, era pertinente em 1938, será que ainda o é</p><p>atualmente? Já não temos excelentes museus em todo o território</p><p>nacional? Não temos a Internet e a difusão de obras por meio de sites</p><p>dos principais museus mundiais? Qual é a relevância de expor</p><p>reproduções num contexto em que megaexposições estão acontecendo</p><p>com bastante frequência, desde 1995, no país, principalmente no eixo</p><p>Rio-São Paulo? O que essa proposta poderia acrescentar, ou mesmo</p><p>instigar, nesse contexto? Os museus existem, mas com qual frequência</p><p>nos permitimos entrar neles, apreciar</p><p>o seu acervo, prestigiar as mostras</p><p>temporárias? Essas são algumas questões que a leitura do artigo sobre</p><p>os “Museus populares” suscita e provoca.</p><p>Foi esse sentimento de provocação que surgiu após ter recebido o</p><p>convite para atuar em uma mostra itinerante composta por reproduções</p><p>– 62 anos depois de Mário!</p><p>“Lasar Segall – Exposição digital”</p><p>O projeto da mostra “Lasar Segall – Exposição digital” contou com</p><p>a organização e a supervisão do Museu Lasar Segall, a realização do</p><p>Instituto de Tecnologia Brasil Brazilian Network (IBBNET) e o</p><p>patrocínio da Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), por meio da</p><p>lei 8.313/91 (Lei Rouanet – Ministério da Cultura) e do mecanismo de</p><p>mecenato – que tornava o custo do evento gratuito para a população e</p><p>remunerava os profissionais envolvidos na concretização do trabalho.</p><p>A mostra foi projetada para atender a localidades distantes dos</p><p>centros urbanos, visando possibilitar ao público o contato com imagens</p><p>de obras de arte dos principais museus brasileiros. Desse modo, a</p><p>exposição itinerante do acervo nacional digitalizado serviria como um</p><p>convite, estimulando o público à apreciação de obras originais em</p><p>museus e galerias.</p><p>O acervo geral da exposição, formado por um conjunto de 70</p><p>imagens, foi selecionado, organizado e disposto de forma cronológica.</p><p>Para a apresentação dessas imagens, os aspectos considerados foram as</p><p>técnicas originalmente empregadas por Segall na criação de suas obras:</p><p>pintura a óleo sobre tela, gravura, desenho, escultura e pintura sobre</p><p>papel (aquarela).</p><p>Foram percorridas sete cidades do interior do estado de São Paulo</p><p>entre os meses de março e agosto de 2000. O projeto ficava</p><p>parcialmente em férias durante o período de recesso escolar; nossas</p><p>atividades eram atreladas ao calendário das escolas, já que o público-</p><p>alvo era formado, fundamentalmente, por estudantes e professores.</p><p>Na escolha dos monitores, inicialmente o projeto desejava eleger</p><p>estudantes ou profissionais formados em arte, com experiência em</p><p>monitoria, atuação no magistério, conhecimentos em história da arte e</p><p>prática de produção artística. Entretanto, entre o ideal e o real existem</p><p>diversas possibilidades. Ao mesmo tempo que nas cidades visitadas</p><p>havia excelentes profissionais com padrão semelhante ao pretendido</p><p>(normalmente eu os conhecia durante a palestra realizada para os</p><p>educadores locais e no decorrer da mostra), mas que raramente tinham</p><p>horário disponível, pessoas com formação distante do perfil idealizado</p><p>mostravam-se dispostas ao aprendizado.</p><p>Era diretriz fundamental da Ação Educativa compor a equipe de</p><p>monitores com moradores das localidades visitadas pela mostra. Assim,</p><p>a cada cidade, o projeto deixou cerca de dez profissionais com vivência</p><p>em monitoria prontos para propagar o trabalho realizado.</p><p>Todo o processo de capacitação durava entre 12 e 13 horas de</p><p>encontros com os participantes selecionados. Como exigência do Museu</p><p>Lasar Segall, era realizado um dia de treinamento em São Paulo; a</p><p>equipe de monitores se deslocava, então, da cidade-sede da mostra para</p><p>a capital do estado, visando possibilitar o encontro dos monitores com</p><p>as obras originais do artista, no espaço físico da antiga residência da</p><p>família Segall, transformado em museu, situado no bairro de Vila</p><p>Mariana.</p><p>Possibilitar a experiência estética diante do original era</p><p>fundamental para a fruição e a leitura das imagens digitais da exposição.</p><p>Os monitores conheciam uma outra atmosfera, estavam diante da aura</p><p>que só o original possui. Era notória a mudança de enfoque dos</p><p>monitores antes e depois de conhecerem o museu.</p><p>Ter conhecido o espaço onde Segall morou e produziu sua obra foi</p><p>fundamental para o desempenho dos monitores diante do público das</p><p>mostras digitais. Eles passaram a se mostrar mais entusiasmados e</p><p>estimulados, falando com os visitantes não apenas de um modo vago</p><p>sobre algo visto em um livro de arte, mas interagindo com eles de</p><p>maneira vibrante, contando-lhes detalhes que só poderiam ter sido</p><p>contemplados diante dos originais.</p><p>Se “todas as experiências do olhar fazem parte de nossa educação</p><p>visual”, como nos diz Leite (2001, p. 42), torna-se evidente que estar</p><p>diante do original e no espaço-casa da obra, o museu, provoca outros</p><p>sentidos no contemplador, bem diferentes dos experimentados diante</p><p>apenas de uma reprodução. Podem-se comparar essas duas situações</p><p>com a diferença das possibilidades estéticas oferecidas quando</p><p>assistimos a um vídeo e quando frequentamos o cinema, pois “a</p><p>imensidão da tela, a poltrona, as pessoas, o volume do som, sua</p><p>distribuição, o cheiro (de pipoca?) – esses, só no cinema”; ou, ainda,</p><p>com a enorme diferença existente entre um grupo teatral apresentar-se</p><p>na escola e estudantes terem acesso ao teatro, afinal, “o teatro não vai à</p><p>escola – toda a sua ambientação, sua arquitetura, cheiro, temperatura,</p><p>glamour, as pessoas que ali estão... isso é insubstituível” (idem, ibidem).</p><p>A possibilidade de ir aos museus, fazer seus próprios percursos e</p><p>suas seleções pessoais torna os monitores mais autônomos, confiantes,</p><p>atentos e dinâmicos em sua relação com o público. Mário já nos dizia,</p><p>em 1938, “que cultura não vai sem seleção” (p. 53), e posso dizer agora,</p><p>ampliando sua fala: a formação estética e os repertórios visuais também</p><p>não acontecem sem a seleção obtida com a experiência diante de obras</p><p>originais.</p><p>Freqüentar os diferentes espaços de cultura e expressar-se culturalmente é direito</p><p>de todo cidadão; mais do que tornar-se melhor professor/educador, todos têm o</p><p>direito a aceder ao conhecimento. Sem dúvida, um sujeito com experiências mais</p><p>variadas, mais plurais, terá também possibilidade de oferecer/favorecer</p><p>experiências diversas às crianças com as quais convive. (Leite 2001, pp. 42-43)</p><p>A privilegiada posição de mediadora da apresentação de Lasar</p><p>Segall para os grupos de monitores gerou reflexões e uma revisão dos</p><p>conceitos que estabeleci ao longo dos anos, sobre o estudo de</p><p>observação de imagens. Se inicialmente acreditava que a</p><p>instrumentalização dos monitores passava por conhecimentos técnicos</p><p>de dados e datas sobre o artista, movimentos da história da arte e</p><p>contextualização histórica do período em que ele viveu e produziu, foi</p><p>com a prática da coordenação da Ação Educativa que percebi a menor</p><p>importância dessas informações teóricas.</p><p>Afinal, os monitores precisavam motivar o olhar das pessoas que</p><p>visitavam a mostra, pois eles seriam responsáveis por estabelecer uma</p><p>relação prazerosa do público com as imagens. Ou seja, para provocar</p><p>prazer, o monitor tinha que sentir e ter prazer em buscar conhecimento,</p><p>associar dados sobre as obras, a vida e a produção de Segall, partindo de</p><p>uma ordenação pessoal e muitas vezes afetiva sobre o artista.</p><p>Quando falo em relação prazerosa do público com as imagens,</p><p>refiro-me à possibilidade desejada de que eles saiam dessa visitação</p><p>monitorada estimulados a voltar a uma exposição, motivados pelo fato</p><p>de as imagens apreciadas terem sido significativas em sua formação,</p><p>proporcionando-lhes uma experiência estética de qualidade. Isso só é</p><p>possível pela fruição.</p><p>A esse respeito vale mencionar Barthes (1977), que define prazer</p><p>aliando-o à fruição. Para ele, o sujeito chega à fruição pela coabitação</p><p>das linguagens. Argumentando sobre o prazer, o referido autor</p><p>questiona:</p><p>O prazer não é uma pequena fruição? A fruição é apenas um prazer extremo? O</p><p>prazer é apenas uma fruição enfraquecida, aceita – e desviada através de um</p><p>escalonamento de conciliações? A fruição não é senão um prazer brutal, imediato</p><p>(sem mediação)? Da resposta (sim ou não) depende a maneira pela qual iremos</p><p>contar sobre a nossa modernidade, digo também que a história está pacificada (...)</p><p>Mas se creio ao contrário que o prazer e a fruição são forças paralelas, que elas não</p><p>podem encontrar-se e que entre elas há mais que um combate: uma incomunicação,</p><p>então me cumpre na verdade pensar que a história, a nossa história, não é pacífica,</p><p>nem mesmo pode ser inteligente, (...) o prazer é dizível, a fruição não o é. (pp. 29-</p><p>31)</p><p>“Brasil século XIX: Imagens da cultura</p><p>– Exposição digital”</p><p>Esse projeto foi proposto como um desdobramento das ações</p><p>institucionais que a CPFL havia iniciado com a itinerância da mostra</p><p>sobre Lasar Segall. Tal como a mostra anterior, esta foi viabilizada pelo</p><p>Instituto de Tecnologia Brasil Brazilian Network (IBBNET), que contou</p><p>também com a parceria do Instituto Herbert Levy (Rio de Janeiro).</p><p>Agora, no papel de curadora, outra pergunta era colocada: como</p><p>traçar um perfil curatorial, selecionando obras e artistas? Lembrava das</p><p>palavras de Gombrich (1993, p. 11): “Não existe maior obstáculo à</p><p>fruição de grandes obras do que nossa relutância em descartar hábitos e</p><p>preconceitos”. Desse modo, iniciei um processo em busca de novos</p><p>olhares, procurando ver as obras dos artistas oitocentistas por ângulos</p><p>renovados, despida das convenções estereotipadas que construíra ao</p><p>longo dos anos.</p><p>A cada dia era mais indispensável ir ao Museu Nacional de Belas</p><p>Artes (MNBA-RJ) para visitar seu acervo e ver detalhes das obras que</p><p>as imagens em livros não continham. Já aprendera com a experiência de</p><p>Segall que ver ao vivo, o original, é infinitamente mais amplo do que</p><p>ver uma reprodução, em termos de dimensões, cores, moldura, enfim, a</p><p>aura apontada por Benjamin.[39]</p><p>Quase tudo era novidade. Com artistas pouco conhecidos e outros</p><p>que nem de longe formavam meu repertório visual e textual, a pesquisa</p><p>tornava-se cada vez mais instigante, repleta de descobertas. Ir ao Rio de</p><p>Janeiro após meses de trabalho sobre as imagens dos livros revelou o</p><p>quanto o século XIX era assunto vasto e encantador, além de reforçar a</p><p>crença na necessidade de experiência estética com os originais. Mais</p><p>uma vez Gombrich (1993) tinha razão:</p><p>Nunca se acaba de aprender no campo da arte. Há sempre novas coisas a descobrir.</p><p>As grandes obras artísticas parecem ter um aspecto diferente cada vez que nos</p><p>colocamos diante delas. Parecem ser tão inexauríveis e imprevisíveis quanto seres</p><p>humanos de carne e osso. É um mundo excitante, com suas próprias e estranhas</p><p>leis, suas próprias aventuras. Ninguém deve pensar que sabe tudo a respeito delas,</p><p>pois ninguém sabe. (pp. 17-18)</p><p>O tema desse novo trabalho foi encomendado pelo patrocinador: “A</p><p>arte brasileira no século XIX”. Mas qual seria a relevância de estudar,</p><p>em pleno 2001, artistas e obras do século XIX? Que aproximações e</p><p>reflexões pretendiam ser despertadas por esse conjunto de imagens, na</p><p>atualidade? Quais seriam as possibilidades desse tema?</p><p>Foi por meio da pesquisa em diferentes livros que se iniciou o</p><p>processo seletivo das obras, com base em premissas como: tinham que</p><p>ser pinturas realizadas a óleo sobre tela (solicitação do patrocinador), a</p><p>ênfase deveria ser nos artistas considerados mais destacados e</p><p>importantes do Oitocentos e teria que haver um cuidado especial com a</p><p>dimensão dos originais (dado que essas imagens sofreriam reduções na</p><p>reprodução, necessárias para os deslocamentos).</p><p>Não foram apenas os critérios objetivos acima citados que</p><p>determinaram as escolhas curatoriais. Outros critérios, mais subjetivos,</p><p>como afinidades que fui estabelecendo com artistas como José Ferraz de</p><p>Almeida Júnior (1850-1899) e Pedro Américo de Figueiredo e Melo</p><p>(1843-1905), foram determinantes. No caso de Almeida Júnior, quanto</p><p>mais lia sobre sua trajetória e entrava em contato com sua produção,</p><p>mais eu descobria aspectos inquietantes e perturbadores, tanto em sua</p><p>obra, quanto em sua biografia. Do conjunto das inúmeras perguntas</p><p>provocadas no processo, esse artista acaba por se destacar na exposição</p><p>quando dedico um módulo temático à sua produção pictórica.</p><p>O encontro com os originais também foi decisivo. As relações que</p><p>constituí com algumas imagens após ter visitado o MNBA, modificaram</p><p>as escolhas que realizara previamente, tanto que o formato final desse</p><p>projeto foi acrescido de mais 30 imagens.</p><p>Cada imagem selecionada era campo novo, vasto e fértil, repleto de</p><p>possibilidades de pesquisa e entradas de leitura. O que falar para o outro</p><p>sobre isso? O que gostaria de estimular no público com essas imagens?</p><p>Além de obras do MNBA, conseguimos a parceria da Pinacoteca do</p><p>Estado de São Paulo na formação do acervo digitalizado (Módulo</p><p>Almeida Júnior).</p><p>O processo de seleção dos monitores começava no momento em</p><p>que definíamos o local de montagem da exposição. Pretendia-se que os</p><p>interessados estivessem cursando ou possuíssem formação acadêmica</p><p>em ciências humanas, como arte, história, filosofia, pedagogia, entre</p><p>outras; que fossem articulados no tratamento com o público, sobretudo</p><p>escolar; e que tivessem disponibilidade de horários para a monitoria e</p><p>para o processo de treinamento.</p><p>Tornou-se fator primordial, no processo de seleção dos monitores,</p><p>que eles possuíssem experiências estéticas anteriores, além de</p><p>conhecimentos específicos sobre artes plásticas e história da arte. Com</p><p>base no convívio com 13 diferentes equipes de monitoria, ao longo de</p><p>dois anos de exposições itinerantes, posso afirmar que, quanto maiores e</p><p>mais amplas forem as experiências dos monitores nos meios da arte e da</p><p>cultura, melhor se sairão em seu trabalho com o público.</p><p>Ninguém cria do nada e nenhum conhecimento se constrói sozinho – cada</p><p>descoberta é transformação do velho no novo, seu redimensionamento, uma</p><p>variante... vista desta forma, a formação profissional dos educadores deveria</p><p>contemplar outros aspectos que não apenas de aplicabilidade imediata ao fazer</p><p>pedagógico, mas inerentes à cultura como um todo, tais como: artes plásticas,</p><p>música, teatro, fotografia, museus, literatura, dança, entre outros. O profissional é,</p><p>sobretudo, cidadão do mundo que tem direito de conhecer coisas diferentes – a</p><p>relação com a formação deixa de ser, então, imediatista e servil e passa a ser</p><p>entendida sob a égide da cultura – está para além do “livro didático”, para além dos</p><p>aspectos técnico-instrumentais. (Leite 2001, p. 70; grifos meus)</p><p>Um conjunto bastante denso e complexo de textos teve como</p><p>objetivo iniciar diálogos, ainda teóricos, com o assunto-tema da mostra</p><p>a ser monitorada para o público visitante. O curso de preparação para a</p><p>monitoria aconteceu durante vários dias, em períodos diversos,</p><p>conforme cada cidade, contabilizando cerca de 13 horas de capacitação</p><p>que constaram de algumas ações e encontros para leitura e reflexão</p><p>sobre o material. Como parte do treinamento, os monitores deveriam</p><p>estar presentes em algumas das palestras realizadas para os educadores</p><p>das cidades visitadas.</p><p>Como curadora, insisti que deslocássemos as equipes de monitores</p><p>ao menos até a Pinacoteca do Estado de São Paulo, cujo acervo</p><p>referente ao século XIX possui um considerável e importante número de</p><p>óleos sobre tela de Almeida Júnior, entre outros nomes. Diferentemente</p><p>da proposta com o Museu Lasar Segall, na exposição sobre o século</p><p>XIX essas visitas não foram viabilizadas; o processo de capacitação dos</p><p>monitores ocorreu apenas com transparências, vídeos, textos teóricos e</p><p>slides das obras.</p><p>Enfatizo a importância da visitação de museus, sobretudo das obras</p><p>que compõem os acervos digitais a serem monitorados, apropriando-me</p><p>das considerações de Leite (2001):</p><p>(...) nosso olhar não é ingênuo nem neutro – ele congrega as marcas de nosso</p><p>tempo, a experiência vivida, ideologia etc. O próprio local onde se encontra a obra</p><p>já é, para o contemplador, um a priori que dirige o olhar – estar num museu</p><p>confere, à obra, um status diferenciado que conduz/induz sua contemplação pelo</p><p>espectador. (p. 49)</p><p>Ação Educativa</p><p>A Ação Educativa foi um elemento muito importante dentro da</p><p>estrutura geral desse projeto. Por meio dela mobilizamos e capacitamos</p><p>professores e treinamos moradores locais que atuaram na monitoria.</p><p>Possibilitamos, com essa parceria entre educadores e equipe de</p><p>monitoria, visitas orientadas com qualidade de informação e leitura de</p><p>imagens artísticas para muitos estudantes de escolas municipais,</p><p>estaduais e particulares. Atendemos a grupos de crianças a partir de</p><p>cinco anos de idade.</p><p>A Ação Educativa teve o prazer de atuar com as mais diversas</p><p>realidades socioculturais de cada uma das cidades</p><p>visitadas. Recebemos</p><p>alunos dos ensinos fundamental, médio, supletivo e superior; escolas de</p><p>educação especial (crianças com diferentes níveis de necessidades</p><p>especiais – deficiências auditivas, visuais, físicas e mentais), além de</p><p>grupos específicos de terceira idade e instituições assistenciais. Os</p><p>objetivos fundamentais que nortearam a existência da Ação Educativa</p><p>foram:</p><p>• formar público para museus de arte;</p><p>• proporcionar visitas prazerosas, críticas, instigantes e</p><p>interativas, buscando deixar uma boa lembrança nos</p><p>visitantes para que vivenciassem outras exposições após o</p><p>contato com esses projetos – afinal, para muitos, “Brasil</p><p>século XIX: Imagens da cultura – Exposição digital” ou</p><p>“Lasar Segall – Exposição digital” foi a primeira</p><p>oportunidade de visitar uma mostra com imagens de obras</p><p>de arte;</p><p>• capacitar pessoal para atuar como monitores, mediante</p><p>treinamento específico para a realização de visitas</p><p>orientadas com qualidade de informação e leitura de</p><p>imagens artísticas;</p><p>• capacitar professores para trabalhar o conteúdo</p><p>relacionado à disciplina Arte, com material educativo de</p><p>qualidade, como o “Material do professor” e as palestras</p><p>ministradas nas cidades;</p><p>• possibilitar o acesso a reproduções de obras de arte de</p><p>excelente qualidade gráfica em locais onde os originais</p><p>dificilmente seriam expostos por questões de estrutura</p><p>física (espaço expositivo), segurança e climatização.</p><p>A aceitação do “Material do professor” sempre foi excelente em</p><p>todas as cidades. As palestras para educadores também foram bastante</p><p>elogiadas não apenas por proporcionar informações específicas ao</p><p>universo da arte, mas também por discutir e contextualizar o período</p><p>histórico-cultural da produção artística apresentada.</p><p>Ver tudo o que fora planejado ao longo de meses de estudo sendo</p><p>contemplado por tantos olhos foi algo indescritível. Vivenciar a</p><p>construção desse processo representou tornar realidade sonhos</p><p>projetados desde 1997, quando ainda rascunhava o projeto de pesquisa</p><p>para me candidatar ao mestrado. Estar perto do outro e saber dos muitos</p><p>olhares que modificaram o meu foi uma experiência única.</p><p>O olhar, o tempo e o silêncio</p><p>Pode parecer antagônico admitir que, como frequentadora de</p><p>museus, normalmente não utilizo os serviços de monitoria, mesmo</p><p>tendo capacitado mais de 100 pessoas para essa prática ao longo dos</p><p>projetos itinerantes. Dialogando com a fala de Leite (2001, p. 70) na</p><p>qual ela pondera que “ninguém cria do nada e nenhum conhecimento se</p><p>constrói sozinho”, apresento o desejo de explicitar como os meus</p><p>conhecimentos sobre imagens foram acrescidos a partir do momento em</p><p>que entrei em contato com os monitores em seus treinamentos e durante</p><p>as observações de visitas monitoradas por eles.</p><p>Acredito que as exposições digitais atuaram como uma notação de</p><p>livro, na qual o desejo de saber mais e ir além levou os observadores</p><p>(monitores e público em geral) a buscar outras imagens, fazendo seus</p><p>próprios percursos e seleções, ousando frequentar museus e</p><p>experimentando o contato com a obra de arte por iniciativa própria, com</p><p>ou sem o auxílio de um mediador.</p><p>Pelos depoimentos espontâneos do público visitante, ficamos</p><p>sabendo que aquelas exposições foram, muitas vezes, o primeiro</p><p>encontro entre observador e imagens de arte. Uma parcela considerável</p><p>de pessoas das localidades visitadas pelos projetos afirmou nunca ter</p><p>entrado em museu ou galeria para ver exposições. Esses depoimentos</p><p>ressaltam a importância da atuação do monitor no acompanhamento de</p><p>sua visita, não como alguém que tem respostas definitivas e conduz o</p><p>olhar, mas como alguém cujo olhar dialoga com o seu.</p><p>O seu olhar melhora o meu</p><p>Ao refletir sobre a importância que o olhar coletivo teve na minha</p><p>mudança de percepção sobre imagens, recordo o poema de Arnaldo</p><p>Antunes (1997, p. 65) intitulado “O seu olhar”, que diz:</p><p>o s e u</p><p>o l h a r m e l h o r a</p><p>o m e u</p><p>Eu complementaria essa poesia acrescentando que o seu olhar</p><p>modifica, expande e transforma o meu. No olhar individual, o ser</p><p>solitário pode ter uma relação mais diversa de tempo e espaço, pode</p><p>fazer sua própria seleção de imagens e percursos na exposição, com</p><p>escolhas mais pessoais. Já o olhar coletivo traz a percepção do grupo</p><p>com suas divergências e afinidades.</p><p>Visitas em grupo com o uso de monitoria geram um olhar coletivo,</p><p>socializado, verbalizado. Entretanto, nem sempre se quer falar durante</p><p>um encontro sensível com a obra de arte ou com sua imagem. O silêncio</p><p>e o tempo das visitações coletivas são diferentes dos das visitas</p><p>individuais; geram outro conhecimento e talvez outra percepção da</p><p>imagem vista, pois são acrescidos de múltiplos olhares e opiniões.</p><p>Refletindo sobre o trabalho de curadoria e de coordenação da Ação</p><p>Educativa nas mostras citadas, seleciono o que, a meu ver, foi o traço</p><p>mais marcante: vivenciar, em cada cidade, as descobertas de novas</p><p>possibilidades de olhar entre os monitores. Assim, este texto é voltado</p><p>aos educadores do olhar, aventureiros, professores, monitores e</p><p>estudantes de arte ou de áreas afins. Pessoas com desejo de ver e se</p><p>descobrir no e com o outro, com um gosto por praticar a generosidade e</p><p>a troca de experiências.</p><p>Penso que para educar o olhar é preciso aprender a ver, e isso é</p><p>exercício contínuo de construção e desconstrução por toda a vida, que</p><p>parte de experiências estéticas que, somadas, trazem novas camadas de</p><p>significações e sentidos, associando e modificando informações. Ver é</p><p>trazer junto de si todo repertório pessoal existente e também estar</p><p>disposto a receber novos sentidos de olhar.</p><p>A educação estética constitui-se de modo diverso no trato entre o</p><p>individual e o coletivo. Possibilitar o encontro entre obra de arte e</p><p>público no espaço do museu é bastante diferente de apresentar ao</p><p>observador reproduções de obras com a mediação de um monitor.</p><p>Entre as reproduções de obras e o público existiam não somente o</p><p>monitor, mas a turma do colégio e o tempo de ir e vir no espaço</p><p>expositivo. Tempo este que, de algum modo, é sempre cerceado por</p><p>aquele que conduz o grupo, seja ele o monitor responsável pela visita,</p><p>ou o educador que acompanha os estudantes.</p><p>Distante da prática educativa das exposições digitais, refletindo</p><p>sobre o contexto acima mencionado, questiono: que tipo de acesso a</p><p>experiências estéticas significativas foi oferecido aos visitantes? Os</p><p>meios técnicos de reprodução realmente permitem que o observador</p><p>aprecie uma imagem de qualidade?</p><p>As visitas monitoradas duravam cerca de uma hora. O público,</p><p>formado principalmente por escolares, era agrupado a cada 20 pessoas</p><p>por monitor. Rememorando o trabalho, percebo que, muitas vezes, os</p><p>monitores ofereciam um diálogo restrito aos visitantes. Ansiosos por</p><p>agilizar a visita e pressionados pelos professores que acompanhavam as</p><p>turmas a não comprometer o tempo de retorno à escola, os monitores</p><p>interrompiam a fala e as perguntas dos visitantes.</p><p>Como conciliar os diferentes tempos que envolvem uma visita</p><p>monitorada? O tempo do monitor que deseja dialogar com o público, o</p><p>tempo do visitante que pretende ver e saber sobre todas as imagens e o</p><p>tempo burocrático do horário escolar?</p><p>É fundamental que não se esvazie, nas visitas guiadas, um dos papéis sociais do</p><p>museu, que seria apresentar objetos de cultura de forma crítica, estimulando o</p><p>diálogo deste com o público. Em se tratando de um público de meninos e meninas,</p><p>acredito que deveríamos estar ainda mais atentos ao não-fechamento em torno de</p><p>sentimentos e evocações imagéticas. O repertório da criança é diferente do nosso,</p><p>seu padrão estético e sua lógica são próprios e não devíamos nos supor no direito</p><p>de conduzir seu olhar de forma tão diretiva e monológica. (Leite 2001, p. 75)</p><p>Buscando não “esvaziar” a oportunidade de mediações sensíveis</p><p>com a arte, uma das orientações transmitidas aos monitores durante o</p><p>processo de treinamento era procurar manter o professor próximo ao</p><p>grupo durante o trabalho de monitoria, tornando o diálogo entre</p><p>educador, alunos, imagens e monitor o mais dinâmico possível,</p><p>sugerindo olhares questionadores diante das imagens e favorecendo</p><p>mais perguntas, indagações e hipóteses do que respostas diretivas sobre</p><p>o significado das imagens das obras.</p><p>Estimular a reflexão sobre diferentes possibilidades de significados</p><p>diante de uma imagem é o maior aprendizado do processo de</p><p>capacitação dos monitores. Suas perguntas e hipóteses geraram outras</p><p>interpretações sobre os textos de fundamentação teórica estudados no</p><p>treinamento. A cada cidade o material de leitura fornecido aos</p><p>monitores para ser estudado era avaliado e acrescido por outros textos</p><p>sugeridos pelas equipes anteriores.</p><p>Observo que mesmo no curto espaço de tempo oferecido pelas</p><p>monitorias, o trabalho estimulou o gosto do público por visitar uma</p><p>mostra perguntando às imagens o que elas dizem para aqueles que as</p><p>contemplam. Constatei isso pelos diversos depoimentos do público</p><p>espontâneo que visitava as exposições, bem como pela fala dos</p><p>educadores e de seus alunos.</p><p>É singular registrar que aos sábados e domingos os monitores</p><p>tornavam-se observadores de seu trabalho, pois um expressivo número</p><p>de estudantes que tinham visitado as mostras durante a semana, levados</p><p>pela escola, voltava ao espaço expositivo com sua família, no intuito de</p><p>monitorar a visita de seus pais, irmãos, amigos, avós etc.</p><p>Notar a desenvoltura com a qual esses estudantes se portavam</p><p>diante das imagens, fazendo perguntas sobre detalhes vistos e contextos</p><p>históricos, foi experiência prazerosa e indicativa da importância de um</p><p>projeto desse tipo. Esses escolares se apresentavam aos monitores</p><p>dizendo que eles seriam os responsáveis por monitorar suas famílias,</p><p>ampliando com isso o tempo de observação das imagens, que outrora os</p><p>monitores e a coordenação acreditavam restrito.</p><p>De forma reflexiva, devem ser apontados alguns pontos referidos</p><p>pelos próprios monitores, ou pela coordenação do projeto, nos quais a</p><p>atuação da monitoria apresentou problemas ou foi insatisfatória para o</p><p>público, os coordenadores ou mesmo para os monitores. Por que</p><p>algumas monitorias ou monitores não se adequaram aos propósitos do</p><p>projeto? Seguem abaixo alguns itens sobre esse assunto:</p><p>• pouco tempo para estudo, leitura e reflexão sobre material</p><p>preparatório da mostra (textos de estudo);</p><p>• não permanência, nas cidades, de um responsável direto da</p><p>equipe de Campinas, ou seja, dos coordenadores de</p><p>monitoria da empresa IBBNET;</p><p>• pouco tempo para treinamento dos monitores;</p><p>• impossibilidade de leitura e apreciação de obras originais</p><p>(ida à Pinacoteca do Estado de São Paulo);</p><p>• desentendimentos internos relativos à postura de trabalho</p><p>(modo como recebiam os visitantes e cumprimento de</p><p>horários);</p><p>• cansaço físico no decorrer do período expositivo (alguns</p><p>monitores se excediam nos primeiros dias e ficavam</p><p>afônicos ou doentes próximo ao término do trabalho);</p><p>• leitura muito dirigida sobre as imagens, com pouca ou</p><p>nenhuma possibilidade de diálogo entre monitor, imagens</p><p>e público visitante;</p><p>• pouca possibilidade de intervenção do público visitante</p><p>sobre as imagens;</p><p>• falta de diálogo com a curadora e coordenadora da Ação</p><p>Educativa durante a mostra, tanto por parte do</p><p>coordenador local, como entre os monitores (poucos</p><p>contatos pessoais ou telefônicos com a sede em</p><p>Campinas);</p><p>• abuso de poder do coordenador local sobre a equipe de</p><p>monitoria (intimidação sobre como receber os grupos,</p><p>falar mais ou menos sobre determinadas imagens etc.);</p><p>• ansiedade do monitor em querer mostrar conhecimento</p><p>sobre a exposição mesmo quando o visitante demonstrava</p><p>que gostaria de olhar sozinho e com mais calma;</p><p>• tempo de apreciação das imagens – uma hora de monitoria</p><p>foi considerada como um tempo muito curto por todos os</p><p>monitores de todas as cidades;</p><p>• tempo do visitante – considerado por muitos professores e</p><p>escolas como um pouco cansativo (sugestão do tempo de</p><p>aula: 45 ou 50 minutos).</p><p>O tempo do olhar e a monitoria</p><p>Como responsável pela capacitação dos monitores em cada cidade</p><p>percorrida pelas exposições, avaliei que mais relevante do que a</p><p>formação acadêmica na área de arte – meta que inicialmente julgava</p><p>ideal na qualificação dessas pessoas – era a vivência estética que</p><p>traziam em seu histórico pessoal. Ou seja, frequentar museus, espaços</p><p>culturais e ter realizado algum trabalho como monitor em exposições foi</p><p>um fator diferencial nas monitorias, tornando-se algo muito superior à</p><p>formação acadêmica.</p><p>Avalio que o modo como esse projeto foi pensado, articulado e</p><p>realizado deixou nos monitores o prazer de realizar mediações sensíveis</p><p>que respeitassem o repertório de cada visitante; afinal, em seus relatos</p><p>sobre essa experiência, os monitores ressaltaram boas recordações sobre</p><p>o trabalho realizado com o público.</p><p>Observei que boa parte dos monitores, cuja atuação profissional era</p><p>relacionada à área de educação e/ou produção artística, como</p><p>professores de educação artística e/ou artistas plásticos, possuía um</p><p>modo unilateral de monitorar, apresentando um número excessivo de</p><p>observações técnicas em detrimento de olhar para a imagem junto com</p><p>o observador.</p><p>O maior aprendizado adquirido com as mostras digitais foi observar</p><p>as imagens de arte com o objetivo de traçar estratégias de conversas</p><p>com os monitores e o público das exposições; esse objetivo motivou</p><p>buscas por informações até então não articuladas.</p><p>Recebi uma motivação diferenciada em pesquisar dados</p><p>questionados pelo olhar do outro, fosse ele público ou monitor da</p><p>mostra. As leituras dos livros de história da arte tornaram-se mais</p><p>fecundas e instigantes; entretanto, por diversas vezes, os conteúdos</p><p>escritos por críticos e historiadores não respondiam às indagações</p><p>realizadas. Desse modo, mais do que a fala dos teóricos sobre as obras,</p><p>passei a questionar intensamente o que essas imagens diziam.</p><p>Durante o percurso itinerante, ao longo do processo de in-formar o</p><p>olhar dos monitores locais, as imagens foram ampliando seus</p><p>significados e sua importância na constituição de meu repertório visual,</p><p>modificando minha maneira de ver e de me relacionar com imagens.</p><p>Os projetos valorizaram o prazer da troca estabelecida entre os</p><p>conhecimentos que os monitores possuíam sobre o assunto e as</p><p>informações que poderiam ser transmitidas a eles. Aprendi mais com as</p><p>perguntas provocadas pelo olhar atento e estimulado do grupo, do que</p><p>com o estudo e a leitura solitários de dados teóricos, muitas vezes ainda</p><p>não questionados pela observação das imagens.</p><p>Cada visita ao Museu Lasar Segall acompanhando as equipes de</p><p>monitoria trouxe aspectos de observação novos – detalhes e associações</p><p>pertinentes que sem o outro provavelmente não observaria. Afinal, o</p><p>outro, fosse ele público ou monitor, teve experiências de vida e</p><p>repertórios diferentes dos meus. Assim, o aprendizado foi sendo</p><p>formado pela soma de possibilidades e argumentações sobre as imagens</p><p>que pretensamente acreditava serem conhecidas.</p><p>Dada a impossibilidade de levar as equipes de monitoria do</p><p>“Projeto século XIX” aos museus, foi por meio das imagens impressas</p><p>em canvas[40] expostas em cada uma das cidades que as obras foram</p><p>adquirindo outros significados; cada monitor “dialogava” com essas</p><p>imagens por um viés: alguns eram atraídos pela cor da reprodução,</p><p>outros, pelo tema desenvolvido pelo artista na pintura original, pelo</p><p>título da obra, ou, ainda, pela disposição física dos módulos, pela</p><p>proximidade e pelo afastamento de temas, entre outras afinidades</p><p>individuais.</p><p>Outras falas, outros gestos, outras observações somaram-se à minha</p><p>experiência estética, ampliando questionamentos e maneiras de olhar os</p><p>originais, modificando e enriquecendo a minha privilegiada posição de</p><p>curadora e coordenadora dos treinamentos preparatórios para a</p><p>exposição, responsável pelos recortes e escolhas curatoriais que se</p><p>tornaram mais significativos depois de encontrar o outro (monitores,</p><p>educadores e público espontâneo).</p><p>Voltei ao MNBA, ao Masp e à Pinacoteca depois de concluído o</p><p>tempo das exposições; meu sentimento inicial era de saudade das tantas</p><p>conversas que aquelas imagens incitaram nos</p><p>moradores e monitores</p><p>das cidades. Meu olhar ficou mais solitário, desejando os</p><p>questionamentos de outros observadores.</p><p>Pesquisar não é um ato individual ou solitário no qual apenas</p><p>nossas próprias perguntas importam. A possibilidade de compartilhar</p><p>experiências estéticas com outras pessoas fez o sentido maior de ser</p><p>pesquisador, ou seja, experimentar o sabor da troca.</p><p>Observar sua articulação durante as monitorias enfatizou o quanto</p><p>estar em contato com arte cotidianamente e ter acesso a bens culturais</p><p>cria um repertório de vivências estéticas que nenhum treinamento</p><p>específico pode garantir.</p><p>Apreciar obras originais de qualidade é fator fundamental na</p><p>constituição de sujeitos mais atentos e sensíveis à arte. Mesmo que o</p><p>treinamento para as exposições sobre o século XIX levasse os futuros</p><p>monitores aos museus no intuito de ver os originais, ainda assim essa</p><p>prática seria uma pequena oportunidade de formação específica para os</p><p>objetivos do projeto. A educação estética de uma pessoa só acontece ao</p><p>longo do tempo, a partir do momento em que ela toma gosto por</p><p>dialogar com obras, assistir a filmes, ouvir músicas, ler sobre arte,</p><p>história, cultura, ver imagens, assistir a espetáculos de dança e teatro –</p><p>por experimentar, enfim, as diversas possibilidades de cultura. Desse</p><p>modo, Merleau-Ponty (1980) pondera sobre o ato de ver e sobre a visão,</p><p>quando diz que:</p><p>(...) nossos olhos (...) têm o dom do visível como se diz que o homem inspirado</p><p>tem o dom das línguas. Certamente, esse dom se merece pelo exercício, não é em</p><p>alguns meses, não é, tampouco, na solidão, que um pintor entra na posse de sua</p><p>visão. Não está nisso a questão: precoce ou tardia, espontânea ou formada no</p><p>museu, em todo caso a sua visão só aprende vendo, só aprende por si mesma. O</p><p>olho vê o mundo, e o que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro</p><p>para ser ele mesmo, e, na palheta, a cor que o quadro aguarda; e, uma vez feito, vê</p><p>o quadro que responde a todas essas faltas, e vê os quadros dos outros, as respostas</p><p>outras e outras faltas. (p. 90; grifos meus)</p><p>As mostras digitais foram um convite ao olhar, chamando o público</p><p>a aventurar-se pelos museus desvendando o prazer único do contato</p><p>com os originais. Essas exposições não substituem as instituições</p><p>museológicas, mas podem servir como uma iniciação sensível a elas.</p><p>Afinal, foram projetadas para atender a cidades nas quais, por questões</p><p>técnicas, dificilmente os originais chegariam.</p><p>Talvez nada exista de mais importante do que isto: que para nos deleitarmos com</p><p>essas obras, devemos ter um espírito leve, pronto a captar todo e qualquer indício</p><p>sugestivo e a reagir a todas as harmonias ocultas; sobretudo, um espírito que não</p><p>esteja atravancado de palavras altissonantes e frases feitas. É infinitamente melhor</p><p>nada saber de arte do que possuir uma espécie de meio conhecimento propício ao</p><p>esnobismo. (Gombrich 1993, pp. 17-18)</p><p>Aprendi com os olhares dos outros a descobrir novos modos de ver</p><p>obras que considerava já vistas. Recebi mais das minhas equipes de</p><p>trabalho e dos visitantes do que acredito ter dado a eles, afinal, a cada</p><p>cidade, novos conhecimentos e questionamentos eram associados e</p><p>ressignificados.</p><p>Cada cidade revelou-me novos olhares sobre imagens de obras</p><p>pretensamente vistas. Sem dúvida, sou a maior beneficiária por ter tido</p><p>a oportunidade ímpar de “impregnar-me” e transformar-me com os</p><p>olhares de diversas pessoas, das mais diferentes origens, idades e</p><p>formações estéticas.</p><p>Bibliografia</p><p>ANDRADE, Mário (1938). “Museus populares”. Problemas, n. 5. São Paulo, jan., pp. 53-55.</p><p>ANTUNES, Arnaldo (1997). 2 ou + corpos no mesmo espaço. São Paulo: Perspectiva. (Signos,</p><p>vol. 23)</p><p>BARTHES, Roland (1977). O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva.</p><p>BENJAMIN, Walter (1994). Obras escolhidas I – Magia e técnica. Arte e política. São Paulo:</p><p>Brasiliense.</p><p>GOMBRICH, Ernest H. (1993). A história da arte. Rio de Janeiro: LTC.</p><p>GRINSPUM, Denise e D’HORTA, Vera (1999). “Lasar Segall – Exposição digital”. Material</p><p>do professor e folder da exposição homônima. São Paulo: Museu Lasar Segall/Instituto de</p><p>Tecnologia Brasil Brazilian Network (IBBNET).</p><p>KREMER, Nair (2003). Deslocamentos: Experiências de arte-educação na periferia de São</p><p>Paulo. São Paulo: Edusp/ Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Vitae.</p><p>LEITE, Maria Isabel (2001). “O que e como desenham as crianças? Refletindo sobre as</p><p>condições de produção cultural da infância”. Tese de doutorado. Campinas: FE/Unicamp.</p><p>__________(2002). Ata e desata: Partilhando uma experiência de formação continuada. Rio</p><p>de Janeiro: Ravil.</p><p>MACHADO, Adriana de Almeida (2003). “Convites ao olhar: Experiências de educação e</p><p>vivência estética a partir de reproduções”. Dissertação de mestrado. Campinas:</p><p>FE/Unicamp.</p><p>MACHADO, Adriana de Almeida (curadora) e BLÁSIO, Silvana Di (2001). “Brasil século</p><p>XIX: Imagens da cultura – Exposição digital”. Material do professor e revista-folder da</p><p>exposição homônima. Campinas: Instituto de Tecnologia Brasil Brazilian Network</p><p>(IBBNET)/Instituto Herbert Levy (IHL).</p><p>MERLEAU-PONTY, Maurice (1980). Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural. (Os</p><p>Pensadores)</p><p>PLACE, François (2004). O velho louco por desenho. São Paulo: Companhia das Letrinhas.</p><p>PRO-POSIÇÕES – REVISTA QUADRIMESTRAL DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO</p><p>(1990), vol. 1, n. 1. Campinas: FE/Unicamp, mar.</p><p>__________(2004), vol. 15. n. I (43). Campinas: FE/Unicamp, jan./abr.</p><p>6</p><p>ESPAÇOS DE CULTURA E FORMAÇÃO DE</p><p>PROFESSORES/MONITORES[41]</p><p>Cristina Carvalho</p><p>Prestar atenção em um aspecto faz com que este salte</p><p>para o primeiro plano, invadindo o quadro, como em</p><p>certos desenhos diante dos quais basta fecharmos os</p><p>olhos e ao reabri-los a perspectiva já mudou.</p><p>Ítalo Calvino 1994, p. 10</p><p>A oportunidade de acompanhar, desde o início, e ao longo de três</p><p>anos, como coordenadora pedagógica, a monitoria desempenhada por</p><p>estagiários de graduação em pedagogia e de licenciatura em história, na</p><p>exposição “Palácio Tiradentes: Lugar de memória do Parlamento</p><p>brasileiro”,[42] inaugurada nos corredores da Assembleia Legislativa do</p><p>Estado do Rio de Janeiro (Alerj), evidenciou que a inserção desses</p><p>jovens em um projeto de cunho cultural ampliou os horizontes de sua</p><p>formação, centrada, até então, nas questões acadêmicas.</p><p>Segundo seus depoimentos, a experiência possibilitou que</p><p>articulassem o ensino da história com a própria compreensão da</p><p>história, permitindo que a relação com os visitantes da exposição,</p><p>principalmente com os estudantes, se desse de forma interessante, viva e</p><p>dinâmica, contrariamente às relações que, muitas vezes, se estabelecem</p><p>na sala de aula.</p><p>A visita a algumas exposições no Brasil e no exterior apontou-me</p><p>que a presença de monitores/guias/estagiários tem sido cada vez mais</p><p>frequente. O olhar já interessado para essa questão levou-me a perceber</p><p>o quanto os monitores por mim abordados estavam implicados com os</p><p>conteúdos das exposições, que eram discutidos de forma diferenciada</p><p>com os usuários. Não pude deixar de imaginar que estivesse</p><p>acontecendo com eles o mesmo que ocorreu com aqueles que</p><p>acompanhei de perto na exposição do Palácio Tiradentes.</p><p>Não pude também deixar de refletir se esses indícios não</p><p>apontavam para uma atitude diferente diante do conhecimento desses</p><p>prováveis futuros professores nesses espaços culturais e dos futuros</p><p>professores nos institutos superiores ou nas universidades. O “aprender</p><p>de cor”, de que tanto os alunos quanto os monitores lançam mão, pode</p><p>revelar, relativamente a esses grupos, uma natureza diversa. Enquanto,</p><p>no caso dos alunos, o “aprender de cor” refere-se, em geral, à</p><p>mnemotécnica que se desdobra e se multiplica pela vida escolar afora,</p><p>no caso dos monitores, o “aprender de cor” parece incorporar seu</p><p>sentido etimológico de “aprender pelo coração”. Falando sobre o papel</p><p>da educação pela memória, Neves (2000) diz que</p><p>(...) o “aprender de cor” [em seu sentido etimológico] possibilita uma primeira</p><p>definição que abre à educação e aos educadores uma perspectiva capaz de superar</p><p>os dualismos de que a tradição ocidental é caudatária</p><p>e que situa em pólos</p><p>antitéticos corpo e alma, espírito e matéria, inteligência e vontade, ação e</p><p>contemplação (...) e por intermédio deste movimento de superação postular uma</p><p>integração dialética – dinâmica portanto – que, sem ignorar o conflito e a tensão</p><p>próprios da história humana, liberte o magistério da condenação do agire contra,</p><p>que é o lado menos luminoso de uma herança pedagógica jesuítica talvez mal-</p><p>entendida. (p. 11)</p><p>Pasolini (1990), ao discutir a “linguagem pedagógica das coisas”,</p><p>também acompanha essas reflexões. O autor ressalta que não se pode</p><p>jamais esquecer o que foi ensinado com as coisas, que a educação que</p><p>se recebe dos objetos e da realidade física torna a pessoa corporalmente</p><p>aquilo que é e que será ao longo de sua vida. Portanto, será que, tendo</p><p>em vista a especificidade desses espaços, a “linguagem pedagógica das</p><p>coisas” se faz presente e proporciona uma experiência diferenciada? O</p><p>que contribui, de fato, para um aprendizado significativo?[43] Estar</p><p>inserido em um espaço cultural – ter a possibilidade de um contato</p><p>direto com “as coisas” – configura-se como acontecimento capaz de</p><p>garantir a ampliação de um repertório cultural?</p><p>Longe de afirmar que a experiência com os monitores não</p><p>apresentou falhas, ou que as instituições culturais por si sós representam</p><p>o cerne de uma formação, ou que não apresentam problemas (cf.</p><p>Valente 1995), ressalto apenas a necessidade de repensar o formato e as</p><p>exigências de estágios realizados por futuros professores nos institutos</p><p>superiores ou nas universidades, bem como refletir sobre a formação</p><p>que está sendo ministrada aos profissionais que atuam nos espaços</p><p>culturais – os monitores.</p><p>Portanto, este texto pretende, com base na experiência citada</p><p>anteriormente com estagiários de graduação em pedagogia e de</p><p>licenciatura em história, trazer algumas reflexões sobre monitorias (e</p><p>estágios) em espaços culturais, e buscar elementos que permitam</p><p>aprofundar as discussões sobre a atuação/formação de professores, em</p><p>particular, e de profissionais que atuam nesses espaços, de modo geral.</p><p>As diferentes dimensões culturais em pauta</p><p>Pensamos demasiadamente e sentimos muito pouco.</p><p>Necessitamos mais de humildade que de máquinas. Mais</p><p>de bondade e ternura, que de inteligência. Sem isso, a</p><p>vida se tornará violenta e tudo se perderá.</p><p>Charles Chaplin 1940</p><p>No campo da educação, alguns pesquisadores têm ressaltado o</p><p>papel da dimensão cultural em seus trabalhos (Kramer 1998; Oswald</p><p>1997; Moreira e Macedo 2001; Ostetto e Leite 2004), assim como o</p><p>peso das condições objetivas no processo de formação/atuação e</p><p>construção da identidade profissional de professores (Lelis 1996; Ludke</p><p>1997, apud Candau 1997). Kramer (1998, p. 200), por exemplo,</p><p>reafirma que a experiência de profissionais da educação nos diversos</p><p>espaços culturais pode atuar no sentido de informar seu olhar,</p><p>sensibilizar e flexibilizar seu conhecimento e propiciar situações que se</p><p>configurem como importantes momentos de aprendizagem do ponto de</p><p>vista cultural, político, ético e estético.</p><p>Oswald (1997) também enfatiza a acuidade do enfoque cultural da</p><p>formação quando defende a necessidade e o direito dos futuros</p><p>professores de se relacionarem com a literatura em sua dimensão da arte</p><p>– liberta, portanto, do caráter instrumental que a escola impõe ao texto</p><p>literário; e Lelis (1996) aponta a dificuldade de acesso aos bens</p><p>culturais como um dos fatores que interferem na prática pedagógica do</p><p>professor e no seu estilo de ensinar. Ostetto e Leite (2004, p. 23)</p><p>destacam o quanto a possibilidade de sensibilizar o movimento, o olhar</p><p>e a escuta do professor, no que diz respeito à produção artístico-cultural,</p><p>contribui para torná-lo um sujeito mais aberto e plural, mais atento ao</p><p>outro.</p><p>Profissionais de museus,[44] principalmente dos de ciências,[45]</p><p>também têm realizado investigações sobre a formação dos professores</p><p>(inicial e continuada) e ressaltado o quanto a educação não formal está</p><p>ausente dos currículos docentes de qualquer área. Segundo esses</p><p>autores, a experiência cultural suscita perguntas, provoca a reflexão</p><p>crítica de valores e contribui para a formação não só do profissional de</p><p>educação, mas do sujeito. Mas de que maneira as instituições culturais</p><p>(museus, centros culturais, casas de leitura, bibliotecas etc.) têm sido</p><p>pensadas? Será que também como espaços de formação? Será que a</p><p>“cultura escolar” pode ser repensada e expandida? Sacristán (1995)</p><p>afirma que o currículo real é mais amplo do que qualquer “documento”</p><p>no qual se reflitam os objetivos e planos que temos. A cultura escolar,</p><p>para Forquin (1993, p. 167), representa “o conjunto de conteúdos</p><p>cognitivos e simbólicos que, selecionados, organizados, ‘normalizados’,</p><p>‘rotinizados’, sob o efeito de imperativos de didatização, constituem</p><p>habitualmente o objeto de uma transmissão deliberada no contexto das</p><p>escolas”. O museu tem como pressuposto não pertencer ao domínio da</p><p>educação escolar, portanto, suas práticas educacionais não são</p><p>processadas de forma seriada, sistemática e regular, situando-se no</p><p>âmbito da educação extraescolar, ou seja, fora do sistema formal de</p><p>ensino.</p><p>Sem pretender transformar a prática museológica na do magistério,</p><p>vale tecer algumas considerações sobre as diferentes tipologias da</p><p>educação como elementos de identificação de parte dessa</p><p>especificidade. Fávero (1980, apud Alencar 1987) observa que as</p><p>distinções entre educação formal e não formal são insuficientes para</p><p>explicar as diferentes formas de educação, e que essa falta de consenso</p><p>se deve, basicamente, à semelhança nos objetivos e compromissos com</p><p>a formação dos indivíduos. Fazendo uso das reflexões de Coombs e</p><p>Manzoor, apresenta as seguintes definições (p. 23): educação formal é</p><p>aquela “(...) altamente institucionalizada, cronologicamente gradual e</p><p>hierarquicamente estruturada, englobando desde a escola até os mais</p><p>altos níveis universitários”; educação não formal é “(...) qualquer</p><p>tentativa educacional organizada e sistemática que se realiza fora dos</p><p>quadros do sistema formal (de ensino) para fornecer determinados tipos</p><p>selecionados de aprendizagem a subgrupos específicos da população,</p><p>tanto de adultos como de crianças”; e educação informal é o</p><p>(...) processo permanente pelo qual qualquer pessoa adquire e acumula</p><p>conhecimentos, habilidades, atitudes e perspicácia, através de experiência diária e</p><p>contato com o meio ambiente em casa, no trabalho e no lazer, através do exemplo e</p><p>das atitudes dos parentes e amigos; por meio de viagens, leitura de jornais e livros;</p><p>ou ouvindo rádio, vendo filmes e televisão.</p><p>Igualmente refletindo sobre esses espaços, Alencar (1987) destaca</p><p>que a articulação entre educação formal e não formal deve ser uma</p><p>preocupação constantemente trabalhada, pois a maioria das discussões</p><p>sobre educação se restringe ao âmbito da educação formal, em uma</p><p>concepção limitada ao espaço escolar. A autora ressalta a necessidade de</p><p>examinar propostas e a operacionalização de programas de museus com</p><p>o objetivo de contribuir para o delineamento de uma linha filosófica</p><p>global de ação em relação ao trabalho educativo desses programas.</p><p>Em uma afirmação que pode ser considerada radical e polêmica,</p><p>Torres (1958, apud Trigueiros 1958) adverte que os resultados</p><p>alcançados na colocação do acervo e dos usos de museus a serviço da</p><p>educação talvez tivessem sido maiores e melhores se o educador fosse</p><p>considerado, desde o início, parceiro do museólogo nos seus esforços de</p><p>educação geral. Cabe refletir, então: que contribuições o profissional da</p><p>área de educação tem a apresentar no diálogo com outros profissionais</p><p>que historicamente já têm atuado nesses espaços?</p><p>Conforme já foi ressaltado, pude entrever, na coordenação do</p><p>estágio, a possibilidade de que futuros professores se percebam como</p><p>sujeitos construtores de sua prática. O depoimento[46] de uma das</p><p>estagiárias, relativo ao trabalho desenvolvido na exposição, explicita a</p><p>importância da discussão da dimensão cultural da formação:</p><p>Apesar da pouca experiência que tenho em sala de aula, o estágio aponta</p><p>a</p><p>possibilidade de desafiar os muros da própria escola e ainda observar a prática</p><p>educativa como algo mais amplo, que transcende não somente a uma matéria, a</p><p>um quadro ou a um prazo, mas a possibilidade do ensino de história viva, no</p><p>espaço e no tempo, nas instituições, nas diferenças, com liberdade de movimentar-</p><p>se do interior para o exterior daquela Casa Legislativa e mostrar naquele espaço o</p><p>quanto se tem de história e que estamos no interior dela. (Fabíola, 23 anos; grifos</p><p>meus)</p><p>No processo de formação permanente dos estagiários também pude</p><p>constatar a importância de analisar as questões que surgiam com base</p><p>nas visitas e na relação dos monitores com a exposição, o que reforça a</p><p>necessidade de formação contínua dos profissionais de ensino, assim</p><p>como dos demais profissionais de diferentes áreas. É possível dizer que</p><p>a “cultura escolar” se expandia e o “currículo” era</p><p>construído/modificado de acordo com as vivências, a demanda e as</p><p>inquietações dos alunos, principalmente no que se diferenciava de suas</p><p>realidades.</p><p>A possibilidade de um contato diário com diferentes culturas –</p><p>crianças, jovens, idosos, grupos religiosos, população rural, população</p><p>urbana, indígenas, funkeiros, dançarinas clássicas, integrantes do</p><p>movimento dos sem-terra, grupos de turistas das mais distintas</p><p>localidades do Brasil e do exterior etc. – evidenciava a necessidade de</p><p>conscientização da diversidade cultural existente no mundo. Certamente</p><p>temos avançado nessa perspectiva, com a participação dos movimentos</p><p>sociais apontando para a importância das relações entre culturas.</p><p>Entretanto, até que ponto permite-se que as diferenças culturais se</p><p>façam presentes na escola? Moreira (1998) ressalta que as tensões são</p><p>inerentes ao multiculturalismo[47] e não há por que apagá-las – elas</p><p>deverão continuar a percorrer as análises e as práticas.</p><p>Não basta apenas reconhecer as diferenças, pois é em nome das</p><p>diferenças que se tem, com frequência, justificado discriminações e</p><p>perseguições sofridas por indivíduos ou grupos. Para McLaren (1997),</p><p>vivemos um tempo de ceticismo, de desconfiança, de desilusão e de</p><p>desespero, caracterizado por injustiças econômicas, concentração de</p><p>riqueza, ganância, consumo desenfreado, individualismo. Segundo o</p><p>autor, estamos diante de uma cultura em desintegração. Diante dessa</p><p>afirmação, o que é possível dizer sobre a formação de profissionais dos</p><p>mais variados campos? E sobre a formação do professor e sua prática?</p><p>A prática docente para além dos muros da escola</p><p>(...) não, eu não tenho um caminho novo, o que tenho de</p><p>novo, é o jeito de caminhar.</p><p>Thiago de Mello 1985, p. 19</p><p>Reconhecendo as dificuldades históricas, políticas e sociais do</p><p>exercício da profissão docente (cf. Vorraber 1995), pode-se ressaltar a</p><p>falta de registro, por parte dos professores, de suas experiências; e não é</p><p>suficiente perguntarmos o que fazem, porque, entre as ações e as</p><p>palavras, há, por vezes, grandes divergências. Acredito que os registros</p><p>permitem uma descrição do comportamento e uma reconstrução das</p><p>intenções, das estratégias e dos pressupostos e apontam para um dos</p><p>caminhos possíveis para organizar e refletir o próprio trabalho. Desse</p><p>modo, apresento algumas reflexões sobre a prática docente valendo-me</p><p>de um diálogo com fragmentos retirados de relatórios[48] elaborados</p><p>pelos monitores responsáveis. Vale esclarecer essa estratégia: em um</p><p>sistema de rodízio, a cada período um estagiário era o responsável pela</p><p>exposição – encaminhava decisões, lidava com imprevistos, apresentava</p><p>soluções, discorria acerca do trabalho dos colegas – e construía o seu</p><p>relatório por escrito. Contudo, a solicitação baseava-se também na</p><p>perspectiva de Benjamin (1994, p. 205) sobre a narrativa:</p><p>A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo,</p><p>no mar e na cidade –, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de</p><p>comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa</p><p>narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do</p><p>narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do</p><p>narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.</p><p>A possibilidade de relatar e partilhar as experiências retornava</p><p>como momento de reflexão não apenas da própria prática, mas se</p><p>apresentava também como construção coletiva do trabalho. No entanto,</p><p>até que ponto permitimos que a narrativa esteja presente na sala de aula,</p><p>nos relatos dos estágios de futuros professores de institutos superiores</p><p>ou de universidades? Na mesma analogia feita às práticas de leitura e</p><p>escrita, que se tornam significativas quando o professor abre espaço</p><p>para a troca, quando assumem uma dimensão que não se esgota</p><p>(Carvalho 2001), considero importante que os estágios se configurem</p><p>em experiência no sentido benjaminiano, ou seja, que os estágios se</p><p>apresentem para além do vivido. Para Benjamin (1994), diante do</p><p>turbilhão de informações efêmeras, fragmentadas e aceleradas, o</p><p>homem moderno vê-se incapaz de incorporar à sua memória as</p><p>impressões do vivido. O conhecimento adquirido na experiência, ao</p><p>contrário, se acumula e se prolonga, vai para além do próprio tempo.</p><p>Foi interessante notar que os estagiários realmente tomavam o</p><p>trabalho que realizavam como uma prática educativa, e o fato de não</p><p>estarem em sala de aula não os distanciava da profissão de professor; ao</p><p>contrário, eles acreditavam em um fazer diferenciado. Nóvoa (1992, p.</p><p>9) aponta para a necessidade dessa profissão de se dizer e de se contar,</p><p>pois é uma maneira de “a compreender em toda a sua complexidade</p><p>humana e científica. É que ser professor obriga a opções constantes, que</p><p>cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar, e que</p><p>desvendam na nossa maneira de ensinar a nossa maneira de ser”.</p><p>Antes eu tinha medo de sala de aula, de ser professora. Com essa possibilidade não</p><p>tenho mais. (Érica M., 21 anos)</p><p>Quero ressaltar a importância deste projeto e sua contribuição para minha</p><p>formação acadêmica, porque a cada dia encontro com turmas diferentes, salas de</p><p>aula diferentes, alunos diferentes, pontos de vista diferentes, enfim, uma</p><p>diversidade cultural inigualável. Acredito que participo de uma experiência</p><p>enriquecedora para mim e para os visitantes. (Sabrina, 22 anos)</p><p>As dúvidas surgiam e, assim como os professores, os estagiários</p><p>agiam de acordo com o que acreditavam, percebendo sempre o alcance</p><p>de seu trabalho, ou, mais do que isso: viam-se como autores,</p><p>autônomos, também sujeitos:</p><p>Neste domingo recebemos uma visitante que não sabia assinar seu nome, ou seja,</p><p>era analfabeta, não sei se fiz certo, mas tomei a liberdade de dar a ela um endereço</p><p>para a alfabetização de adultos, achei que seria meu papel não só como educadora,</p><p>mas principalmente como cidadã. (Érica B., 21 anos)</p><p>Além disso, o retorno do trabalho realizado com professores,</p><p>principalmente da rede pública, durante e após as visitas, apontou para</p><p>um diálogo possível de se estabelecer entre a escola e as instituições</p><p>culturais, com vistas a escapar do que Lopes (1991) chamou de</p><p>“escolarização dos museus”, em que as visitas ficam reduzidas a</p><p>ilustrar os programas das diversas disciplinas a serem ministradas:</p><p>Esta semana voltou um professor que disse que tudo o que falamos ajudou muito</p><p>no seu trabalho com as crianças. (Cristiane, 24 anos)</p><p>Os professores e alunos mostram-se contentes de estar ali – a atenção e os</p><p>questionamentos indicam. (Sabrina, 22 anos)</p><p>É bom caminhar junto: nós, os professores, os alunos, a escola – porque tem</p><p>diretora que liga para dizer que ficou sabendo tudo sobre a visita. (Viviane, 22</p><p>anos)</p><p>Certamente foi possível constatar que a procura pela visita decorria</p><p>da possibilidade – muitas vezes única – de sair do espaço da escola.</p><p>Cientes de uma cultura escolar que resiste em se abrir e transpor seus</p><p>próprios muros, além das dificuldades e da falta de condições da</p><p>maioria das escolas em oferecer um ensino de qualidade, os estagiários</p><p>buscavam explorar o que aquele espaço oferecia – aspectos históricos,</p><p>políticos, arquitetônicos,</p><p>culturais, sociais – visando contribuir, assim,</p><p>para que não só o aluno/professor, mas os visitantes de modo geral se</p><p>aproximassem do poder público, entendessem sua participação na</p><p>construção da história e exercessem sua cidadania. Conforme aponta</p><p>Sacristán (1995, p. 86), o currículo real é a consequência de se viver</p><p>uma experiência e um ambiente prolongados que propõem/impõem todo</p><p>um sistema de comportamento e de valores e não apenas de conteúdos e</p><p>de conhecimentos a assimilar.</p><p>Mais do que uma aula de história, procuramos mostrar às escolas que recebemos</p><p>que cada aluno é cidadão e que a política não é algo distante de cada um, mas</p><p>determinante na vida de todos nós. Por isso, é importante saber como funciona o</p><p>parlamento. (Érica B., 23 anos)</p><p>Muitas vezes, revivemos junto com eles emoções vindas do passado, e o mais</p><p>interessante é saber que somos nós, através da exposição, que despertamos esses</p><p>sentimentos. (Joselita, 21 anos)</p><p>Tendo como ponto de vista o espaço político onde está inserida a exposição,</p><p>podemos explorar toda a importância da atividade política, como a escolha de</p><p>representantes, o papel destes, a participação popular nesse processo...</p><p>incentivando, assim, a luta pelos direitos deles no atual momento. Os alunos</p><p>também são convidados a fazer “projetos de leis” onde estes relatam as mudanças</p><p>por eles almejadas. (Paulo, 22 anos)</p><p>Ainda ressaltando a necessidade de explorar o que o espaço</p><p>oferecia, dentre as atividades realizadas pelos estagiários, os “projetos</p><p>de lei” mencionados no depoimento acima apresentaram-se como uma</p><p>possibilidade efetiva de realização de um trabalho entre as crianças.</p><p>Além disso, os exemplos[49] destacados a seguir apontam para a</p><p>necessidade de ouvir um pouco mais o que as crianças acreditam que</p><p>seja necessário mudar neste país:</p><p>• Que as pessoas parem de brigar, eu não quero que ninguém mais brigue.</p><p>• Em vez de fazer só lei para proibir que o pit bull ande nas ruas, vamos fazer</p><p>uma lei para que as crianças não durmam nas ruas.</p><p>• Acabar com a média 4,0 nas escolas. Como o prefeito pode permitir isso?</p><p>Ele quer uma nação de burros?</p><p>• É obrigatório votar, então também é obrigatório que todos tenham emprego.</p><p>• É proibido pichar em lugares públicos, então também é proibido deixar as</p><p>crianças nas ruas.</p><p>• Criar presídios agrícolas, ou seja, os detentos teriam que plantar e produzir</p><p>para comer. Com isso teriam mais verbas para investir em outras causas</p><p>mais importantes, como creches, albergues, escolas mais modernizadas,</p><p>mais oportunidade de empregos para todos do Brasil.</p><p>• Criar um teto salarial justo para os políticos igualando com a maioria dos</p><p>trabalhadores.</p><p>O desafio que se faz presente para o professor nas salas de aula</p><p>também se impôs no trabalho dos monitores: em março de 2000, a visita</p><p>de um professor do Instituto Benjamin Constant – instituição para</p><p>deficientes visuais – que desejava levar seus alunos à exposição</p><p>desestabilizou uma das monitoras: “Como mostrar uma exposição</p><p>fotográfica a um cego?”. Tal indagação também ressoa nas falas de</p><p>inúmeras professoras que se perguntam o que fazer quando deparam</p><p>com crianças portadoras de deficiências múltiplas em suas salas de aula.</p><p>Perrenoud (1993, p. 108) ressalta que são inúmeras as questões que o</p><p>professor tem de resolver rapidamente, sem dispor de tempo nem de</p><p>meios para pesar os prós e os contras, e que hesitar é também decidir.</p><p>Vale conhecer o depoimento da estagiária:</p><p>Fomos visitados por um professor de história e por uma professora de artes</p><p>cênicas, ambos do Instituto Benjamin Constant. Monitorei a visita e confesso que</p><p>foi muito difícil, a princípio, mostrar uma exposição de fotos a um cego... No</p><p>começo pensei em fazer uma história narrativa sobre os módulos da exposição, e</p><p>aprendi com o professor que esse tipo de história podia ser obtida através dos</p><p>livros; deveria priorizar a parte arquitetônica, que poderia ser tocada, descobrindo</p><p>o espaço através do relevo, colunas, esculturas, a textura dos materiais, como o</p><p>mármore, madeira, o bronze, peças encaixadas nas paredes. Foi uma situação</p><p>totalmente nova e pude perceber uma nova maneira de ver aquele espaço que antes</p><p>me era tão familiar, vi o quanto estava limitada a métodos e focando meu trabalho</p><p>em uma única direção, ou seja, o uso predominante da visão, em se tratando de</p><p>uma exposição de fotos e a observação da arquitetura, não o toque. Aprendi como</p><p>deveria descrever uma charge, segundo o professor, é um humor do tipo do</p><p>programa “Casseta & Planeta”, que é acessível por meio da audição. Pude aprender</p><p>a postura e a impostação da fala que deveria ter diante de um deficiente visual,</p><p>sempre falando de frente. Foi um desafio, e por isso achei uma experiência muito</p><p>proveitosa, não pela “limitação” do professor Vítor, mas pela superação da minha</p><p>própria limitação em lidar com o desconhecido, o diferente, além do meu próprio</p><p>enriquecimento a respeito das diversas visões sobre a exposição. A principal</p><p>beneficiada pela visita do professor fui eu. Aprendi muito mais do que ensinei.</p><p>(Érica B., 23 anos; grifos meus)</p><p>Contudo, esse depoimento também ressalta a necessidade de uma</p><p>formação continuada para os profissionais de educação, pois a formação</p><p>nunca está pronta e acabada. Ou seja, é preciso reforçar a necessidade</p><p>constante de aprofundamento teórico, assim como a importância da</p><p>participação e da parceria com profissionais de diferentes áreas. Dessa</p><p>forma, por meio de textos, vídeos, palestras e oficinas foi possível</p><p>aprofundar questões relativas às necessidades de diferentes grupos e</p><p>buscar uma preparação para lidar com situações similares, ampliando,</p><p>assim, as possibilidades de atendimento. Bakhtin (1995) adverte que o</p><p>nascimento físico não é suficiente para o ingresso na história. O homem</p><p>precisa de um segundo nascimento: o nascimento social. E é por essa</p><p>localização social e histórica que se define o conteúdo da ligação do</p><p>homem à vida e à cultura. Alguns relatos após a visita do Instituto</p><p>Benjamin Constant:</p><p>Acho que o mais importante foi saber que eles são pessoas normais, só que, como</p><p>todos nós, com algumas diferenças. Pensava em encontrar pessoas tristes e eles são</p><p>alegres. (Cristiane, 21 anos)</p><p>É interessante perceber que a linguagem das coisas independe da diversidade de</p><p>mundo, torna as trocas de conhecimento possíveis. (Kelly, 23 anos)</p><p>A visita do Instituto me causou preocupação de início... Não tinha tido contato</p><p>direto com pessoas cegas. Tinha receio de falar expressões como: “estão vendo?”,</p><p>“olha só”, e ofendê-los. Por fim, descobri que sabemos e podemos fazer mais do</p><p>que achamos e que os cegos são pessoas comuns, como nós, acostumadas aos seus</p><p>limites e à dificuldade que os outros podem ter com relação a elas, assim como</p><p>nós, com defeitos e limitações. (Maryan, 23 anos)</p><p>Sem dúvida a presença de alunos de licenciatura em pedagogia e</p><p>em história mostrou a possibilidade de uma prática interdisciplinar.</p><p>Candau (1997, p. 40) assinala as dificuldades e a necessidade dessa</p><p>prática, afirmando que sua importância é uma das urgências de nossa</p><p>época. Os complexos problemas que a sociedade atual enfrenta</p><p>(desequilíbrios socioeconômicos, ecologia, saúde...) só podem ser</p><p>equacionados com a colaboração de diferentes campos do</p><p>conhecimento. E essa possibilidade foi vislumbrada pelos estagiários:</p><p>Essa integração do curso de pedagogia e de história não só desmistifica valores,</p><p>conceitos e preconceitos, mas também favorece uma tomada de consciência da</p><p>importância da troca de experiência, desafio da interdisciplinaridade. (Fabíola, 22</p><p>anos)</p><p>A possibilidade de estudarmos os conteúdos da exposição mesclando enfoques</p><p>tanto da história quanto da pedagogia muito tem contribuído para o nosso trabalho.</p><p>(André, 24 anos)</p><p>Além disso, a necessidade de união no grupo e o entendimento da</p><p>dimensão e do papel de cada um em suas respectivas funções exigem</p><p>constante reflexão no exercício de qualquer profissão. Calvino (1994, p.</p><p>106) destaca que “o conhecimento do próximo passa necessariamente</p><p>através do conhecimento de nós mesmos”, e os estagiários apontavam</p><p>para</p><p>essa questão:</p><p>É necessário a todo o momento ver e rever a nossa atuação. Se não temos</p><p>autocrítica não sabemos lidar com a coletividade. (Fabíola, 22 anos)</p><p>Foi importante o rodízio da responsabilidade de cada monitor. É bom para nós</p><p>sentirmos a responsabilidade que é nossa mesma. (Cristiane, 21 anos)</p><p>Precisamos entender que somos um grupo, e que nossas atitudes refletem em</p><p>todos. (Maryan, 23 anos)</p><p>As diferenças culturais, já mencionadas anteriormente, também se</p><p>faziam presentes e os estagiários explicitavam estereótipos, enfrentavam</p><p>os próprios preconceitos, reconstruíam conceitos preconcebidos:</p><p>Turista japonês é mesmo tudo igual. (Tarcísio, 23 anos)</p><p>Eram funkeiros, não baderneiros. Eles, de fato, se interessaram. (Paulo, 22 anos)</p><p>Eu achava que todo cego era triste. (Maryan, 22 anos)</p><p>Mesmo que as reflexões sobre currículo e formação de professores</p><p>desconsiderem as questões da diversidade cultural, elas estarão</p><p>presentes nos sistemas escolares. Giroux (2000) ressalta que os</p><p>educadores não poderão ignorar as duras questões que as escolas terão</p><p>que enfrentar, referentes a cultura, raça, poder, identidade, significado,</p><p>ética, trabalho. E tais questões exigem a redefinição do sentido e dos</p><p>propósitos da escolarização.</p><p>Contudo, os estagiários mencionavam o quanto gostavam do</p><p>trabalho, realizando-o com alegria, orgulho e confiança nas</p><p>possibilidades que tal projeto oferecia. Por vezes, os relatórios</p><p>apresentaram-se como uma forma de desabafo, comunicação,</p><p>questionamento. Calvino (1994) ressalta que os jovens, mais do que</p><p>afirmar suas verdades, gostariam de fazer perguntas, ou, antes,</p><p>desejariam que os outros lhes fizessem perguntas; mas ninguém está</p><p>disposto a sair dos trilhos de seu próprio discurso:</p><p>Dia 2/12/99 – Neste dia eu completava 22 anos de vida, o que me levou a pensar:</p><p>“Maravilha! Não vou trabalhar hoje, vou ficar sentado só pensando na vida,</p><p>esperando um turista para monitorar!”. Este não deveria ser um dia de escolhas?</p><p>Mas infelizmente era o monitor responsável daquela semana, o movimento foi</p><p>grande e tive que monitorar alguns grupos, mas foi com muita felicidade e</p><p>capricho. (Paulo, 22 anos)</p><p>O dia em que não há movimento parece que tudo fica estagnado, o tempo não</p><p>passa. (Cristiane, 21 anos)</p><p>Alguns desafios que acontecem durante o percurso deste trabalho representam</p><p>certas dificuldades que, quando comparadas com as novidades e alegrias que</p><p>construímos a cada dia, tornam-se ridiculamente simples e estornáveis. (Sabrina,</p><p>22 anos)</p><p>Os depoimentos, que não se esgotam com esses exemplos, apontam</p><p>para a necessidade de buscarmos alternativas que permitam pensar a</p><p>formação de professores não somente em sua dimensão pedagógica.</p><p>Lopes (1991) destaca que o universo cultural restrito da maioria das</p><p>pessoas deve-se, em parte, à deficiência de cursos de formação, que não</p><p>informam sobre as potencialidades e os recursos de instituições</p><p>culturais.</p><p>A cidadania cultural define o direito à cultura</p><p>Se as coisas são inatingíveis...ora!</p><p>Não é motivo para não querê-las...</p><p>Que tristes os caminhos, se não fora</p><p>A mágica presença das estrelas!</p><p>Mario Quintana (apud</p><p>Franco de Carvalho 1997, p. 76)</p><p>A preocupação com a formação de professores tem norteado um</p><p>campo de investigação sobre o qual vários autores têm-se debruçado, o</p><p>que tem contribuído, em diferentes eixos, nas reflexões que se colocam</p><p>para a formação desse profissional.</p><p>Contudo, em geral, percebe-se que os professores e futuros</p><p>professores não se veem como construtores de seus saberes, pois</p><p>convivemos com uma formação que se constitui por uma abordagem</p><p>normativa: o que se deve fazer, pensar, ensinar, com a preocupação</p><p>central de construir um modelo de professor, desconhecendo a</p><p>heterogeneidade da categoria profissional, assim como a dimensão</p><p>ética, estética, cultural e política do fazer educativo. A perda gradativa</p><p>do saber e do saber fazer historicamente imposta aos professores</p><p>“resulta não só da expropriação de bens materiais e culturais que uma</p><p>sociedade desigual impõe, como também, e por causa dela, do próprio</p><p>empobrecimento da experiência humana na contemporaneidade”</p><p>(Kramer e Jobim e Souza 1996, p. 9).</p><p>Com Walter Benjamin (1994) é possível pensar o empobrecimento</p><p>da experiência não só de professores, mas do próprio homem que,</p><p>estabelecendo uma relação outra com a tradição, não se reconhece mais</p><p>como sujeito da história, imerso na cultura, criado por ela e também</p><p>criador de cultura.</p><p>Entendendo que o empobrecimento da experiência está presente</p><p>também no processo de formação de professores, é preciso pensar</p><p>alternativas para que futuros professores se percebam como sujeitos</p><p>construtores de sua prática. A ausência ou a falta de continuidade de</p><p>políticas de investimento cultural que permitam ao professor, em</p><p>complementaridade à formação pedagógica, o acesso a bens culturais</p><p>são dados construídos pelo exercício de uma prática de desvalorização e</p><p>de descompromisso com uma política social consistente. “Só podemos</p><p>preencher o ‘porvir’ a partir do presente com projetos, e estes estão</p><p>enraizados nos ideais do passado e do presente (...) Resgatamos, pois, o</p><p>presente real para que as imagens que elaboramos sirvam para nos</p><p>vermos refletidos” (Sacristán 2000, p. 39; grifo meu).</p><p>Portanto, conforme já foi ressaltado, é possível perguntar: por que</p><p>as instituições culturais (museus, centros culturais, casas de leitura,</p><p>bibliotecas etc.) não têm sido mais frequentemente pensadas como</p><p>espaços de formação? Que benefícios tais espaços poderiam trazer aos</p><p>futuros professores, àqueles que já estão atuando no magistério ou aos</p><p>futuros profissionais de diferentes áreas? Por que a “cultura escolar”</p><p>não pode ser repensada e expandida? A democracia, do ponto de vista</p><p>cultural, não pode ser contemplada como algo que sobra, mas como</p><p>algo imprescindível para o próprio processo de aprendizagem. Ou,</p><p>conforme ressalta Chaui (1999), é imperioso um projeto de ação que</p><p>marque a articulação interna e necessária entre cultura e democracia.</p><p>Desse modo, cidadania cultural significa, antes de tudo, que a cultura</p><p>deve ser pensada como um direito do cidadão.</p><p>Assim sendo, tomando a dimensão cultural na formação do</p><p>professor como eixo, procurei construir com os alunos-monitores o</p><p>trabalho na exposição. Seus depoimentos me levaram a ter certeza da</p><p>importância de outros espaços – que não só a escola – na formação de</p><p>profissionais, ou, ainda, que a escola, sem abrir mão de garantir a</p><p>apropriação sistemática do conhecimento, não o reduza à sua dimensão</p><p>científica/escolar. A elaboração de currículos nos quais experiências de</p><p>estágio dessa natureza sejam incorporadas à formação pode se</p><p>apresentar como possibilidade de, por que não dizer, uma “cultura</p><p>escolar” expandida.</p><p>Para García-Canclini (2000), vivemos em contextos de</p><p>hibridização cultural, com processos múltiplos e variados que colocam</p><p>para a educação, assim como para as outras práticas sociais, novas</p><p>interrogações e novos desafios. Desse modo, cabe destacar a</p><p>importância de valorizar a esfera cultural, sua natureza, suas funções,</p><p>suas características, suas manifestações e suas desigualdades, e colocar-</p><p>se em defesa de uma orientação cultural na formação de professores.</p><p>No entanto, a participação da área da educação em encontros e</p><p>eventos que abordam essas temáticas é ainda pequena, e as questões</p><p>culturais e seu impacto sobre a escolarização não têm sido incluídos de</p><p>forma explícita e sistemática nos processos de formação docente. É</p><p>preciso considerar também que a análise das questões curriculares, no</p><p>âmbito das políticas públicas, não pode estar ausente, pois as reformas</p><p>curriculares se atrelam sempre a medidas que buscam afetar e modificar</p><p>os diferentes momentos e processos na formação do professorado.</p><p>Uma proposta de formação docente multicultural não implica</p><p>aceitação irrestrita de diferentes manifestações culturais, mas sim</p><p>aprendizagem das habilidades necessárias à promoção de um diálogo</p><p>que favoreça uma dinâmica de crítica e autocrítica (Moreira 1998). Mas</p><p>como isso é possível? Que habilidades são essas?</p><p>Alguns</p><p>ficar frente a frente com a obra,</p><p>pois, ao ficar diante da obra, pode acontecer a experiência da alteridade:</p><p>eu encontro o outro e recebo sua diferença, e, então, encontro-me</p><p>comigo mesmo.</p><p>Maria Isabel Leite e</p><p>Luciana Esmeralda Ostetto</p><p>PARTE I</p><p>MUSEU, EDUCAÇÃO E CULTURA</p><p>1</p><p>MUSEUS DE ARTE: ESPAÇOS DE EDUCAÇÃO E</p><p>CULTURA[2]</p><p>Maria Isabel Leite</p><p>(...) A expressão reta não sonha. Não use o traço</p><p>acostumado. A força de um artista vem de suas derrotas.</p><p>Só a alma atormentada pode trazer para a voz um</p><p>formato de pássaro. Arte não pensa: O olho vê, a</p><p>lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso</p><p>transver o mundo. (...)</p><p>Manoel de Barros 1996, p. 35</p><p>Museus de arte podem abraçar manifestações artístico-culturais que</p><p>se substantivem por meio dos movimentos, de suas relações</p><p>bi/tridimensionais ou do som, tais como pinturas, teatro, música, dança,</p><p>desenhos, cinema, expressão corporal, fotografias, escultura etc.,</p><p>levando em conta que as diferentes linguagens expressam-se de forma</p><p>singular com seus veículos próprios de significação. Mas qual seria a</p><p>função desses museus? Que possibilidades os diferentes sujeitos – em</p><p>especial, as crianças – têm tido para se apropriar das obras ali expostas?</p><p>De que maneira eles têm contribuído na manifestação artística de seus</p><p>contempladores?[3] Essas respostas estão ligadas à concepção que</p><p>tivermos de arte, de museu e de educação...</p><p>Arte: Conceito em construção permanente</p><p>Não se acomodando às normas,</p><p>a arte sempre se desvia de caminhos incontroláveis,</p><p>mesmo quando aparentemente obedece (...). Não</p><p>devemos esquecer que há um poder “subversivo” mais</p><p>profundo em sua insubordinação irreprimível.</p><p>Jorge Coli</p><p>A obra de arte é sempre social – o próprio artista é, também,</p><p>espectador de sua obra. Ela carrega em si suas próprias categorias de</p><p>veracidade; forma e conteúdo caminham juntos.</p><p>Os quatro principais elementos da arte são, segundo Mário de</p><p>Andrade (s.d.), sublimação e comunhão social – de ordem psíquica, e</p><p>que reunimos como sentimento –, e técnica e forma – elementos</p><p>derivados do material, que visam à expressão do sentimento. Para ele, o</p><p>valor da arte está principalmente no fato de ela ser ao mesmo tempo</p><p>obra de sentimento e expressão.</p><p>Para Read (1976, p. 23), o objetivo da arte consiste na comunicação</p><p>do sentimento – a arte, em suas muitas manifestações, mostra-se como</p><p>elo de representação de sentimentos –, na leitura e escrita de mundo.</p><p>Como diz Tolstoi (apud Read 1976, p. 161): “a atividade da arte</p><p>consiste em evocar em si próprio certo sentimento que se experimentou</p><p>e, tendo-o evocado, transmiti-lo por meio de movimentos, linhas, cores,</p><p>sons ou formas expressas em palavras, para que outros experimentem o</p><p>mesmo sentido”.</p><p>Seria, pela ótica desses autores, a arte, pura expressão de</p><p>sentimentos? Entendê-la como fruto exclusivo da subjetividade não é</p><p>ponto de unanimidade – muito pelo contrário. O entendimento de arte</p><p>do século XX para cá não separa a técnica da expressão. A história da</p><p>arte moderna é a trama de seguidas oposições à arte estabelecida.</p><p>Alguns artistas desenvolvem suas pesquisas e seus projetos na direção</p><p>oposta às preocupações estéticas em curso e passam a trabalhar com</p><p>questões anteriormente impensáveis, “seja ao integrar um movimento,</p><p>ao pedir a intervenção do espectador (que deixa, então, de ser</p><p>simplesmente espectador), ao aceitar a precariedade, o efêmero, ou</p><p>ainda ao provocar o acaso” (Galard 1999b, p. 5) – a arte moderna</p><p>detona as esferas de competência vigentes de tal modo que “a</p><p>aniquilação da arte é um dos [seus] mais profundos desejos” (idem, p.</p><p>1).</p><p>Esse movimento sucessivo de ruptura/reorganização incide sobre os</p><p>processos de criação, a concepção de obra de arte e, especialmente, o</p><p>papel do observador – “é sobre aquele que vê a obra, em última</p><p>instância, no eixo da recepção, que acabam por repousar as grandes</p><p>metamorfoses” (Oliveira 1999, p. 89).</p><p>Na história da arte do século XX, o esfacelamento das fronteiras da</p><p>arte faz com que um objeto qualquer possa ser elevado ao status de obra</p><p>de arte, se não pela intenção do artista, pelo menos por sua intervenção,</p><p>por menor que ela seja. No caso da arte contemporânea, a obra deixa de</p><p>sair pronta dos ateliês ou oficinas para se colocar em relação direta e</p><p>integral com o público, cuja função passa a ser mais do que aquela de</p><p>dar significação, para dela participar inteiramente (cognitiva e</p><p>sensorialmente) – só assim a obra se completa. Ao artista cabe convocar</p><p>o olhar para o que não era anteriormente visto. Muda a relação</p><p>discursiva, que solicita uma redefinição dos objetos e da própria obra de</p><p>arte impregnada, hoje, de novas técnicas, de produções coletivas e</p><p>interativas etc.</p><p>A idéia de obra implica a idéia de acabamento. A obra é fechada, isolada de seu</p><p>ambiente. Suas limitações são nitidamente marcadas no espaço. Em relação ao</p><p>tempo, a obra existe quando é concluída até seus últimos detalhes. Certamente,</p><p>falaremos de uma obra “aberta” para designar a multiplicidade indefinida das</p><p>interpretações que podemos dar. Mas, por sua estrutura e sua forma, a obra</p><p>descarta o porvir. Realizada, suficiente, ela se firma fora do tempo. Não</p><p>demandando nenhum complemento, refratária a modificações, ela inibe qualquer</p><p>tentativa de atuação sobre ela. É por isso que se mantém à distância; oferecida à</p><p>contemplação muito mais que ao uso, ela torna-se livre de funções externas,</p><p>intransitiva. (Galard 1999b, p. 5)</p><p>Compreenderemos, então, que contemporâneo não se prende a uma</p><p>questão puramente cronológica, de tempo factual – será contemporâneo</p><p>aquilo que o tempo selecionar como tal (Galard 1999b).</p><p>Jorge Coli (2002) aponta que o sentido mais profundo da arte é “o</p><p>de instrumento de fazer cultural de riqueza inesgotável” (p. 104).</p><p>Também salienta que “as obras, em sua fecundidade concreta, são</p><p>sempre mais do que nos dizem as pretensas definições” (p. 35). Se antes</p><p>se poderia tentar definir arte como sendo “certas manifestações da</p><p>atividade humana diante das quais nosso sentimento é admirativo” (p.</p><p>8), atualmente essa conceituação está alicerçada, basicamente, no</p><p>discurso sobre o objeto artístico e a partir do local específico onde se</p><p>manifesta a expressão, isto é, críticos de arte e artistas separam objetos</p><p>não artísticos dos artísticos e ainda criam uma hierarquia entre eles.</p><p>Como professora e pesquisadora da área, trabalho com a ideia de</p><p>que a arte é um sistema de manifestações e códigos que se</p><p>interpenetram e se recodificam a cada momento; uma forma particular</p><p>de ver e expressar o mundo, que atua como uma reação emocional e</p><p>conceitual à vida. A linguagem artística busca resolver o problema</p><p>artístico no qual se encontra o artista, possibilitando-lhe o pensamento e</p><p>a expressão de si e de sua época, por imagens – sonoras, visuais,</p><p>corporais, poéticas... O que vigora, hoje, na arte não é apenas o</p><p>conhecimento sensível ou mesmo a beleza – é a inteireza, a</p><p>significação. É um campo privilegiado da experiência estética.</p><p>Cabe à experiência estética valorizar o fazer artístico, a práxis</p><p>criadora; o implícito é uma silenciosa abertura para o outro, por isso</p><p>traz à luz a alteridade. A arte é a manifestação de um dizer fugidio; traz</p><p>consigo sempre algo irrepresentável, indizível – mesmo pronta, a obra</p><p>está sempre em vias de se fazer (Frayse-Pereira 2004). “A significação é</p><p>invisível, mas o invisível não está em contradição com o visível: o</p><p>visível tem uma estrutura interior invisível; e o invisível é a</p><p>contrapartida secreta do visível” (Merleau-Ponty 1980, p. 89).</p><p>Os museus como espaços de cultura</p><p>O museu é uma instituição permanente sem finalidade</p><p>lucrativa, a serviço da sociedade e do seu</p><p>desenvolvimento, aberta ao público, que realiza</p><p>pesquisas sobre a evidência material do homem e do seu</p><p>ambiente, as adquire, conserva, investiga, comunica e</p><p>exibe, com a finalidade de estudo, educação e fruição.</p><p>Conselho Internacional de Museus (Icom) 1986</p><p>Diante da abertura em torno do que é arte, fica mais difuso o papel</p><p>dos museus que se propõem a abrigá-la. Os sujeitos, em suas interações</p><p>diversas, circulam em</p><p>caminhos são apontados por Candau (1997, pp. 247-248):</p><p>(...) ampliar a concepção de pedagogia e compreendê-la como modo de produção</p><p>cultural implicado na forma como o poder e o significado são utilizados na</p><p>construção e na organização de conhecimentos, desejos, valores; considerar a</p><p>cultura como constructo central de nossos currículos e sala de aula, focalizando a</p><p>aprendizagem em torno de questões relacionadas às diferenças culturais, ao poder e</p><p>à história; colocar uma forte ênfase em vincular o currículo às experiências que</p><p>os/as estudantes trazem para seus encontros com o conhecimento</p><p>institucionalmente legitimado; promover o estudo, a produção, a recepção e o uso</p><p>situado de variados textos.</p><p>Diante da flexibilidade das fronteiras entre currículo e formação de</p><p>professores, é preciso apontar para a necessidade de uma orientação</p><p>cultural nos currículos de formação dos docentes bem como a urgência</p><p>de políticas públicas de formação nessa perspectiva, pois reformas</p><p>curriculares estão sempre atreladas a medidas que buscam modificar os</p><p>diferentes processos na formação de professores.</p><p>Ainda algumas questões... tentando ampliar o diálogo</p><p>Se você sabe exatamente</p><p>o que fazer, para que fazer?</p><p>Pablo Picasso</p><p>Embora este texto tenha dado ênfase aos processos de</p><p>formação/atuação de professores – até porque essa é a área em que atuo</p><p>–, meu objetivo foi ampliar o diálogo com outros campos com base na</p><p>experiência com os estagiários aqui narrada.</p><p>Não há, certamente, a pretensão de apresentar-se como modelo,</p><p>mas, ao contrário, de criar canais de comunicação, de debate, de críticas</p><p>não só com as diferentes áreas de formação profissional, mas também</p><p>com as diversas instituições culturais existentes em nossa sociedade – a</p><p>começar pela própria escola, também ela uma instituição cultural.</p><p>Assim, este texto buscou apenas relatar/partilhar, em diálogo com</p><p>alguns autores, uma experiência de monitoria e destacar a contribuição</p><p>que instituições culturais podem representar para a formação (no seu</p><p>sentido mais amplo), desde que esta se dê de forma permanente e que</p><p>seja acompanhada de perto pelas questões que se colocam pelo público</p><p>que frequenta essas instituições – seja como visitante ou como</p><p>profissional.</p><p>De certa forma, gostaria de chamar a atenção para a necessidade de</p><p>perceber o aumento no número de pessoas que atuam nesses espaços e</p><p>de refletir sobre quem são essas pessoas, que formação possuem, de que</p><p>maneira realizam as atividades oferecidas pelos diferentes espaços</p><p>culturais e que atividades são essas. Em entrevista[50] recente, um dos</p><p>responsáveis por projetos culturais da Secretaria de Educação do</p><p>Município do Rio de Janeiro afirma:</p><p>É muito complicada a relação museu e escola. Aliás, não é nada simples. A</p><p>perspectiva do museu é uma e a nossa é outra. (...). A gente tem uma dificuldade</p><p>com esses setores educativos. Não são os mais brilhantes. Depois interessa muito</p><p>ao museu a ida do aluno lá. A questão da qualidade dessa visita não é uma coisa</p><p>muito discutida nos museus. Quem está atendendo o público? A gente não quer</p><p>essa visita, não quer só a exposição na mídia, e ter 400 meninos indo por hora. A</p><p>gente quer mais um pouquinho.</p><p>Penso que a percepção de que queremos mais, ainda que um</p><p>pouquinho, já é um começo para avançarmos, de forma a almejarmos</p><p>muito, para que possamos, assim, chegar à qualidade desejada por</p><p>todos. Reconhecer os descompassos, as diferenças de perspectivas, a</p><p>falta de projetos etc. já é um primeiro passo para o diálogo com as</p><p>diferentes instituições culturais: escolas, museus, centros culturais,</p><p>bibliotecas etc.</p><p>Bibliografia</p><p>ALENCAR, Vera Maria Abreu de (1987). “Museu-educação: Se faz caminho ao andar”.</p><p>Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: DE/PUC.</p><p>BAKHTIN, Mikhail (1995). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec.</p><p>BENJAMIN, Walter (1994). Obras escolhidas I – Magia e técnica. Arte e política. São Paulo:</p><p>Brasiliense.</p><p>CALVINO, Ítalo (1994). Palomar. São Paulo: Companhia das Letras.</p><p>CANDAU, Vera (org.) (1997). Magistério: Construção cotidiana. Petrópolis: Vozes.</p><p>CARVALHO, Cristina (2001). “Cidadania cultural e a formação de professores”. Educação e</p><p>Realidade, vol. 26, n. 2. Porto Alegre, jul./dez., pp. 75-87.</p><p>CHAPLIN, Charles (1940). “Final speech of The great dictator”. Disponível em:</p><p>www.dictateur.com/great_dictator.htm.</p><p>CHAUI, Marilena (1999). “Cidadania e cultura”. Novamérica, n. 82. Rio de Janeiro, jun.</p><p>FORQUIN, Jean-Claude (1993). Escola e cultura. Porto Alegre: Artmed.</p><p>FRANCO DE CARVALHO, Tânia (org.) (1997). 80 anos de poesia. 8ª ed. São Paulo: Globo.</p><p>GARCÍA-CANCLINI, Nestor (2000). Culturas híbridas. São Paulo: Edusp.</p><p>GIROUX, Henri (2000). “Pedagogia crítica como projeto de profecia exemplar: Cultura e</p><p>política no novo milênio”. In: IMBERNÓN, Francisco (org.). A educação no século XXI:</p><p>Os desafios do futuro imediato. Porto Alegre: Artmed.</p><p>GOUVÊA, Guaracira et al. (orgs.) (2003). Educação e museu. Rio de Janeiro: Access.</p><p>HUNTINGTON, Samuel (2001). O choque de civilizações. Rio de Janeiro: Objetiva.</p><p>KRAMER, Sonia (1998). “Produção cultural e educação: Algumas reflexões críticas sobre</p><p>educar com museus”. In: KRAMER, Sonia e LEITE, Maria Isabel (orgs.). Infância e</p><p>produção cultural. Campinas: Papirus.</p><p>KRAMER, Sonia e JOBIM e SOUZA, Solange (orgs.) (1996). Histórias de professores. São</p><p>Paulo: Ática.</p><p>LELIS, Isabel (1996). “A polissemia do magistério – Entre mitos e histórias”. Tese de</p><p>doutorado. Rio de Janeiro: DE/PUC.</p><p>LOPES, Margareth (1991). “A favor da desescolarização dos museus”. Educação e Sociedade,</p><p>vol. 40, dez., pp. 443-455.</p><p>McLAREN, Peter (1997). Multiculturalismo crítico. São Paulo: Cortez.</p><p>MELLO, Thiago de (1985). Faz escuro mas eu canto. 10ª ed. Rio de Janeiro: Civilização</p><p>Brasileira.</p><p>MOREIRA, Antonio Flávio (1998). “Multiculturalismo, currículo e formação de professores”.</p><p>(Mimeo.)</p><p>MOREIRA, Antonio Flávio e MACEDO, Elizabeth (2001). “Em defesa de uma orientação</p><p>cultural na formação de professores”. In: MOREIRA, Antonio Flávio (org.). Ênfases e</p><p>omissões no currículo. Campinas: Papirus.</p><p>NEVES, Margarida de Souza (2000). “A educação pela memória”. Teias: Revista da Faculdade</p><p>de Educação/UERJ, n. 1. Rio de Janeiro: FE/Uerj, jun.</p><p>NÓVOA, Antonio (org.) (1992). Vida de professores. Porto: Porto Ed.</p><p>OSTETTO, Luciana e LEITE, Maria Isabel (2004). Arte, infância e formação de professores:</p><p>Autoria e transgressão. Campinas: Papirus.</p><p>OSWALD, M. Luíza M.B. (1997). “Aprender com a literatura: Uma leitura benjaminiana de</p><p>Lima Barreto”. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: DE/PUC, jul.</p><p>PASOLINI, Pier Paolo (1990). “Gennariello: A linguagem pedagógica das coisas”. In:</p><p>PASOLINI, Pier Paolo. Os jovens infelizes: Antologia de ensaios corsários. São Paulo:</p><p>Brasiliense.</p><p>PERRENOUD, Philippe (1993). Práticas pedagógicas, profissão docente e formação.</p><p>Perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote.</p><p>SACRISTÁN, Gimeno (1995). “Currículo e diversidade cultural”. In: SILVA, T.T. e</p><p>MOREIRA, A.F. (orgs.). Territórios contestados. Petrópolis: Vozes.</p><p>________ (2000). “A educação que temos, a educação que queremos”. In: IMBERNÓN, F.</p><p>(org.). A educação no século XXI: Os desafios do futuro imediato. Porto Alegre: Artmed.</p><p>SCHALL, Virginia (2003). “Educação nos museus de ciência: A dimensão das experiências</p><p>significativas”. In: GUIMARÃES, Gilson Antunes (org.). Workshop: Educação e centros</p><p>de ciências. Rio de Janeiro: Techniquest/British Council.</p><p>TRIGUEIROS, F. dos Santos (1958). Museu e educação. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti.</p><p>VALENTE, Esther (1995). “Educação em museu: O público de hoje no museu de ontem”.</p><p>Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: DE/PUC.</p><p>VORRABER COSTA, Marisa (1995). Trabalho docente e profissionalismo. Porto Alegre:</p><p>Sulina.</p><p>PARTE II</p><p>ENCONTROS DE CRIANÇAS E</p><p>PROFESSORES COM A ARTE: OLHARES E</p><p>DIZERES</p><p>1</p><p>DE LUZES E DE VOOS: EM BUSCA DA BELEZA</p><p>PARA SER HUMANO</p><p>Luciana Esmeralda Ostetto</p><p>No Jardim da Luz, a Pinacoteca</p><p>Visitar a Pinacoteca do Estado de São Paulo é, para mim, um</p><p>passeio muito prazeroso e estimulante. É, mesmo, um</p><p>dos meus</p><p>programas favoritos, neste período em que estou morando pertinho de</p><p>São Paulo. Há sempre algo para ver e apreciar por lá. Entrar no prédio</p><p>já é um acontecimento. Como é lindo! O chão de madeira, o teto alto, as</p><p>escadas, as paredes, o vão central, o claro e o escuro – enfim, as</p><p>sensações que experimentamos caminhando pelos seus compartimentos,</p><p>tudo é majestoso. Somos transportados para outros tempos e, neles,</p><p>descobrimos outros espaços. Além do que, a Pinacoteca está lá, no</p><p>Jardim da Luz, compondo com ele uma bela paisagem paulistana.</p><p>Depois de percorrer corredores e salas, subindo e descendo escadas</p><p>que nos conduzem ao encontro da arte brasileira, do século XIX aos</p><p>nossos dias – entre Almeida Júnior, Pedro Alexandrino, Eliseu Visconti,</p><p>Tarsila, Anita Malfatti, Pancetti, Segall, Milton Dacosta, Brecheret,</p><p>Amílcar de Castro, Lygia Clark, Manabu Mabe, Tomie Ohtake e tantos</p><p>outros –, nada mais gostoso e relaxante do que sentar para um</p><p>cafezinho, na parte térrea da Pinacoteca, no simpático Café que se abre</p><p>para o Jardim da Luz. É um programa tão simples e, no entanto, dos</p><p>mais deliciosos. Ali se pode ficar de bem com o tempo, dando o tempo</p><p>para o bem sentir. É um desfrute inigualável. Serenidade e calma, em</p><p>plena “Pauliceia desvairada”.</p><p>Quando há alguma palestra sobre o acervo também é maravilhoso.</p><p>Uma obra é colocada em evidência, trazida para o auditório, e somos</p><p>convidados a novos olhares, mediados pelo olhar do palestrante. A obra</p><p>fica ali na nossa frente, retirada da parede da sala de exposição, e, sobre</p><p>um cavalete, ganha outros ares, como que solenemente reconduzida ao</p><p>meio das pessoas – só ela, em primeiro plano iluminada, todos os olhos</p><p>dirigidos então para os detalhes da criação. Nessas ocasiões, o público</p><p>pode tomar contato com a história da arte brasileira e compartilhar, com</p><p>pesquisadores, historiadores ou críticos de arte, saberes a respeito das</p><p>obras escolhidas. É uma oportunidade para abrirmos e aprofundarmos</p><p>nosso olhar, enriquecendo-o com mediações significativas, que trazem</p><p>informações e ampliam não só o conhecimento sobre a obra e o artista,</p><p>mas a possibilidade de fruição. Ouvir sobre uma obra do acervo, em sua</p><p>“companhia”, é, sem dúvida, oportunidade ímpar de educação do olhar</p><p>e dos sentidos, pois somos convidados a rever o já visto ou, ainda,</p><p>somos convidados a rever o já visto com novas luzes, iluminando zonas</p><p>antes talvez desconhecidas, pouco iluminadas. Há, nessa prática de</p><p>palestras, a informação, mas ela não substitui o estar presente diante da</p><p>obra. Isso faz toda a diferença entre ações como apenas falar ou</p><p>contemplar, fruir.</p><p>A essa altura vou me dando conta de que a função de um museu –</p><p>sua contribuição para a cultura e a educação de todos – não tem dia nem</p><p>hora, não tem limites. É coisa que não acaba nunca. No caso da</p><p>Pinacoteca, o acervo está lá, diariamente, pacienciosamente esperando,</p><p>generosamente aberto para nosso encontro com as paisagens do Brasil,</p><p>com o século XIX, com os modernistas, o abstracionismo, o movimento</p><p>concretista, as esculturas francesas e tanto mais... Que tanto mais! Não</p><p>são apenas nossos olhos, mas o corpo inteiro é que vai descobrindo e</p><p>dando vida às obras que moram lá. Pode-se ver muitas vezes e nunca</p><p>ver o mesmo – mesmo que se esteja repetidamente diante de uma obra</p><p>supostamente já conhecida. Jamais a experiência se repete porque,</p><p>certamente, de uma visita para outra, somos outros – outro olhar, outro</p><p>tempo, outros.</p><p>Em setembro de 2003 visitei a Pinacoteca para ver especialmente</p><p>duas exposições temporárias: as fotografias do peruano Martín Chambi</p><p>e a instalação dos artistas alemães Horst Hoheisel e Andréas Knitz.</p><p>Fiquei tão impressionada com o que vi, foi tão sereno meu encontro</p><p>com os retratos “em ouro” de Chambi e causou-me tanto impacto meu</p><p>encontro com a instalação Pássaro Livre, que, ao sair de lá, fui escrever</p><p>sobre a experiência. Eu quis escrever, como um registro de uma</p><p>vivência singular, profunda. Despretensiosamente fui juntando</p><p>sentimentos, pensamentos, sensações, impressões – poderiam ser</p><p>revelados em palavras? Numa espécie de livre expressão, criei um</p><p>pequeno texto, ao qual fui agregando reflexões sobre temas que têm me</p><p>interessado nos últimos tempos – obra, artista, arte, vida, criação,</p><p>beleza.</p><p>Depois de tudo, compartilhei meu pequeno texto com colegas da</p><p>pós-graduação da USP, com as quais estava cursando a disciplina da</p><p>professora doutora Marina Célia Dias – “O lúdico e as linguagens</p><p>expressivas na educação da infância: Implicações para a formação do</p><p>educador”. Ao mostrar meus escritos para a turma, ao socializar e</p><p>compartilhar ideias, impressões, histórias, experiências, algo se revelou.</p><p>Naquele momento, ao constituir interlocutores, a matéria do meu</p><p>pequeno texto foi significada, ressoou e fez ressoar em mim a vida</p><p>afirmada nas entrelinhas. Agradeço à professora Marina Célia e às</p><p>minhas queridas colegas, pela troca e pela acolhida na USP.</p><p>Hoje, ao colocarmos em discussão temas como concepções e papel</p><p>dos museus na educação e na cultura do povo, processos de apropriação</p><p>e conhecimento em arte, relações entre público e obra de arte, no âmbito</p><p>deste livro, amplio minha interlocução, trazendo o texto original,</p><p>falando de voos e de luzes, afirmando a necessidade da arte e da beleza</p><p>para ser humano.</p><p>A gaiola no vão</p><p>um clarão</p><p>um vão</p><p>uma gaiola</p><p>pássaros.</p><p>vão pessoas</p><p>pessoas vêm</p><p>passam</p><p>passos</p><p>repassam</p><p>um passado</p><p>no presente.</p><p>há vozes</p><p>lamentos</p><p>dores</p><p>solidão.</p><p>onde estão?</p><p>quem são?</p><p>aflição</p><p>impacto</p><p>espanto</p><p>uma prisão!</p><p>paredes antigas</p><p>tijolos expostos</p><p>mostramescondem</p><p>(quem pensaria?)</p><p>retratos</p><p>digitais.</p><p>pessoas?</p><p>condição reduzida de ser</p><p>pálidas figuras</p><p>comprimidas</p><p>esquecidas</p><p>(quase) apagadas</p><p>violência</p><p>opressão.</p><p>pássaros</p><p>na gaiola</p><p>no clarão</p><p>no vão.</p><p>em vão?</p><p>denúncia</p><p>afirmação</p><p>contra a ordem</p><p>do esquecimento.</p><p>passado presente</p><p>(futuro não)</p><p>provocação</p><p>romper a prisão</p><p>violar a gaiola</p><p>voar</p><p>viajar</p><p>outras terras, céus e mares</p><p>fazer-se humano</p><p>pássaro livre</p><p>marcado</p><p>vivo</p><p>vivido</p><p>(não desesperado)</p><p>tecendo a vida</p><p>aprendendo a continuar...</p><p>De longe, entre uma abertura e outra do espaço central da</p><p>Pinacoteca, a obra já se anunciava. Vislumbrei grades. Uma gaiola? Foi</p><p>preciso chegar mais perto para ver. E não era tudo.</p><p>Na aproximação, primeiro foi olhar. Olhar mais, mais além. O olhar</p><p>se expandia e o corpo todo sentia, buscava, queria ouvir a obra: fala!</p><p>Depois, numa mistura de sentir e de pensar, surgiam relações,</p><p>descobertas do contexto. Texto. Informação e imaginação forneciam os</p><p>fios para costurar diferentes significados, alinhavar múltiplos sentidos,</p><p>com os riscos da arte, no grande bordado da vida. Arte. Não importa a</p><p>matéria, o suporte, a técnica. Sempre risco!</p><p>Pássaro Livre/Vogel Frei é uma gaiola de pássaros que reproduz, em escala real, o</p><p>Pórtico tombado pelo Patrimônio Histórico Nacional, do extinto Presídio</p><p>Municipal Tiradentes, um dos mais antigos da cidade de São Paulo, localizado a</p><p>poucos metros da Pinacoteca e lugar identificado com a história da repressão</p><p>política e social durante os governos militares no Brasil contemporâneo. (...) Nele</p><p>estão colocados pombos que são liberados semanalmente, numa referência à</p><p>liberação dos prisioneiros que passaram pelo presídio. (Ivo Mesquita 2003)</p><p>Imenso portal gradeado.</p><p>No passado. Entrada.</p><p>Pórtico do presídio. Cativeiro.</p><p>Gaiola de pássaros. Minúsculas celas. Confinamento.</p><p>Pássaro Livre – Vogel Frei.</p><p>Do passado no presente. Memória. Conflitos de memória...</p><p>A instalação dos artistas alemães Horst Hoheisel e Andréas Knitz é uma evocação</p><p>poética de uma passagem da história recente do Brasil. Trabalhando em</p><p>colaboração por quase uma década, os dois artistas desenvolvem propostas de</p><p>intervenções e construções em espaços públicos e privados a partir de referentes</p><p>históricos e lugares de conflitos sociais, políticos e culturais, como o Campo de</p><p>Concentração de Buchenwald, a Chefatura de Polícia de Kassel ou o Porto de Tel-</p><p>Aviv. Esses trabalhos colocam em questão noções de memória e monumento,</p><p>cativeiro e libertação, problematizam as narrativas históricas, envolvem arquivos</p><p>e</p><p>testemunhos e propõem o que eles chamam de memoriais/contramemoriais, por</p><p>confrontarem a História institucionalizada. (Ivo Mesquita 2003)</p><p>Imagens. Informação. Não saber. Implicação. Desejo. Imaginação.</p><p>Essencial foi estar lá, vendo, sentindo, pensando, estranhando,</p><p>perguntando, compreendendo, sonhando, compartilhando o espanto,</p><p>rompendo limites. A arte pode levar-nos até onde nosso controle perde o</p><p>domínio. Basta querer, deixar-se tomar pelo convite da obra – a imagem</p><p>está sempre nos chamando. Ouvimos sua voz? Atendemos ao seu</p><p>pedido? Imaginamos-voamos?</p><p>Se não há limites para a imaginação, há, sim, no contexto da</p><p>educação, muitos muros ainda... Prisões?</p><p>Quando nos aproximamos da arte e nos permitimos ser tocados por</p><p>ela, uma gaiola se rompe, uma corrente se quebra, um voo começa a ser</p><p>ensaiado para serem vencidos aqueles limites, para que a imaginação</p><p>possa correr livre, a alimentar muitas e muitas aventuras de</p><p>“inventação” – da escola, do cotidiano, da pessoa, da vida.</p><p>O poeta da luz revelando essencialidades: O humano do ser</p><p>A arte realiza-se pela forma. Marca, define, cria, transgride. O que</p><p>vejo diante da obra, da fotografia, do retrato?</p><p>Busco, de corpo inteiro, captar a atmosfera do instantâneo. Foi. Já</p><p>passou. Um instante que se mostra, que vem à luz. Quem poderá dizer</p><p>ao certo? Foi não foi... Tudo é o que dissermos que foi, no campo da</p><p>memória. E a foto evoca a memória, um ponto no tempo, um lugar.</p><p>Uma memória inventada...</p><p>Alço voo, feito o condor, a sobrevoar a América do Sul. Andes.</p><p>Peru. Cuzco. Não conheço essas terras. Sei pouco desse povo. Pressinto</p><p>sabedoria, mistérios, território sagrado. Assim os tenho no meu não</p><p>saber...</p><p>Martín Chambi (1891-1973) permite-me uma aproximação ao</p><p>mistério pressentido, oferecendo-me inúmeros caminhos que me levam</p><p>à entrada do território sagrado do povo do altiplano.</p><p>Na memória, retratos: jeitos de viver que se apresentam estáticos</p><p>para, na imaginação, começarem a rodar, movimentos contínuos,</p><p>ritmados, dinâmicos, dando forma a uma imagem, mostras da vida nos</p><p>Andes peruanos.</p><p>Uma pose. Um close. Surgem cenas, paisagens humanamente</p><p>habitadas – o homem pertence àquele espaço. O espaço lhe pertence. Há</p><p>um ar de sagrado recobrindo a paisagem, envolvendo homens,</p><p>mulheres, crianças captadas na luz, no ouro, no retrato, no claro</p><p>instante. Revelam-se olhares marcantes, dignos, entre a tristeza e a</p><p>certeza de saber-se andino, situado, enraizado.</p><p>Índios? Nativos? Campesinos? Elite?</p><p>Simplicidade. Pompa. Descontração. Sisudez. Dureza, rudeza.</p><p>Todos e tudo lá. Tempos idos.</p><p>Cultura ameaçada? Preserva-a o olhar do artista, eternizando-a na</p><p>fotografia? O que é? O que não é? O que foi e o que não foi previsto na</p><p>lente do fotógrafo?</p><p>Antes de tudo estava o olhar do artista.</p><p>Então clique. Imagem capturada. Filme revelado.</p><p>Sobre o olhar do artista, outros olhos: o que veem? São muitos.</p><p>Veem o mesmo? Não. Cada qual dirá por si e em si. Cada qual fará suas</p><p>conexões – para objetivar a imagem, mergulhará na subjetividade. O</p><p>que poderá vir à tona? Preciosidades, cacos, despejos, lixos, segredos,</p><p>dores, amores...</p><p>Lá do fundo, quando somos tocados pela arte, vibra a nossa</p><p>condição humana, tantas vezes esquecida. Olhar a obra é olhar a si</p><p>mesmo – o artista faz refletir seu espelho de imagens múltiplas</p><p>(podemos não querer ver...). O que cada um captará? O que mobilizará</p><p>em cada um? Qual o foco do olhar de cada um que fica diante da obra?</p><p>Mistérios...</p><p>Encontro com a obra, reencontro com a alma...</p><p>Ao contemplar a obra de Martín Chambi – chamado poeta da luz,</p><p>observar e apreciar a instalação Pássaro Livre – de Horst Hoheisel e</p><p>Andréas Knitz, ambos na Pinacoteca do Estado, e, mais ainda, num</p><p>enlace perfeito, assistir ao documentário, na USP, Frans Krajcberg, o</p><p>poeta dos vestígios, vendo, ouvindo e lendo sobre sua obra e sua vida,</p><p>ressurge a velha pergunta: arte para quê?</p><p>No processo de aproximação com diferentes linguagens, no</p><p>encontro com diferentes artistas, suas obras e histórias de vida, vai</p><p>tomando forma uma razão, simples e profunda: para ser humano!</p><p>Revelar a alma. Possibilitar o encontro com a alma – as profundezas do</p><p>ser.</p><p>Nos dias de hoje, mais do que nunca, é difícil ser humano. Não é</p><p>essa uma das tristezas de Krajcberg?</p><p>Então a arte também ajuda a denunciar e anunciar.</p><p>Tomar consciência. Eu. Outro. Mundos.</p><p>Mexer, remexer, bagunçar, estranhar.</p><p>Abrir-se para o desconhecido, questionar certezas.</p><p>Sentir. Pensar. Sonhar. Buscar. Brincar. Aventurar-se! Ver a arte,</p><p>perceber a vida – na sua totalidade, constituída de polaridades.</p><p>Nem só a cor, o bom, o claro, a superfície, o prazer, a emoção, o</p><p>gostoso, o amor, o belo. Igualmente os contrários, o outro lado do</p><p>inteiro ser, cinzento, mau, escuro, o fundo, o desprazer, a razão, o</p><p>desgostoso, o ódio, o feio. Tudo. Todo o mais genuíno material do qual</p><p>pode ser feita uma-vida-uma-obra... inventada uma-vida-uma-obra...</p><p>criadas no encontro com os outros e que, ao final, nos conduz a nós</p><p>mesmos.</p><p>Bibliografia</p><p>HILLMAN, James (1993). “Anima mundi – O retorno da alma ao mundo”. In: HILLMAN,</p><p>James. Cidade & alma. São Paulo: Studio Nobel, pp. 9-27.</p><p>MESQUITA, Ivo (2003). http://www.hoheisel-knitz.net. Site consultado em 20/5/2004.</p><p>PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO (2003). Martín Chambi – Poeta da luz.</p><p>Catálogo da exposição.</p><p>SALLES, Walter (1987). Frans Krajcberg, o poeta dos vestígios. Documentário. Direção de</p><p>Walter Salles.</p><p>SOKOLOVSKY, Benami (2001). “A arte como resposta à brutalização do homem e da natureza</p><p>pelo homem – Entrevista com Frans Krajcberg”. In: SOUSA, Edson Luiz André de et al.</p><p>(orgs.). A invenção da vida: Arte e psicanálise. Porto Alegre: Artes e Ofícios, pp. 83-90.</p><p>http://www.hoheisel-knitz.net/</p><p>2</p><p>AMPLIANDO MEU REPERTÓRIO VIVENCIAL,</p><p>VIAJANDO E ENTRANDO NO MUSEU</p><p>Magda Ugioni do Livramento</p><p>Estar em uma cidade com outra estética, com outras imagens. Sentir</p><p>outros odores, outros sabores. Ver outra cor de céu e de terra. Perceber</p><p>ruídos e sons diferentes daqueles que ouvimos cotidianamente. Lidar</p><p>com sensações diversas como o medo, o espanto, o estranhamento, a</p><p>admiração, o deslumbramento, o maravilhamento diante de situações</p><p>antes nunca experimentadas, porém conhecidas oralmente ou</p><p>visualmente através das imagens televisivas ou cinematográficas. Tudo</p><p>isso representa vivências ampliadoras de nosso repertório. Visitar outra</p><p>cidade – sair do conhecido chão – é poder alargar experiências</p><p>emocionais, culturais, estéticas e imagéticas importantíssimas para o</p><p>nosso contínuo desenvolvimento e aprendizagem.</p><p>A cidade em que nasci e cresci possui a terra preta, devastada pelos</p><p>dejetos do carvão, chamado “pirita”. Quando o sol aquece o solo</p><p>degradado, este exala um odor indescritível, inesquecível à memória de</p><p>quem já o sentiu. Os rios são poluídos pelas águas que vertem das</p><p>profundas minas de carvão, ficando os banhos e as pescarias na</p><p>memória daqueles que viveram sua infância no início do século</p><p>passado. A vegetação é composta por muitos eucaliptos, árvores que</p><p>vieram da Europa e resistiram à mineração desordenada do homem. As</p><p>crianças podem correr e brincar com suas bicicletas, de esconde-</p><p>esconde, pata-cega ou taco pelas ruas. O trem apita lá longe, avisando</p><p>que já está chegando para levar mais uma carga de carvão. No inverno a</p><p>grama fica toda branca, coberta pela geada, e na primavera o cheiro das</p><p>flores das laranjeiras anuncia que já é quase verão.</p><p>Em 2003, tive a oportunidade de viajar para a cidade de São Paulo,</p><p>para fazer um curso. Lá, pude perceber que o rio possui outro cheiro, a</p><p>terra é de outra cor, a vegetação e o clima são diferentes, a cidade possui</p><p>outra estética e o ritmo dela é mais acelerado. Acompanhada por uma</p><p>amiga, fui convidada a visitar a Pinacoteca do Estado e o Museu de Arte</p><p>Contemporânea da USP. A princípio fiquei surpresa com o convite,</p><p>pensando se aquilo que eu veria naqueles espaços seria tão importante</p><p>quanto aquilo que aprenderia no congresso.</p><p>Ao adentrar na Pinacoteca e no MAC, vi obras “conhecidas”, já</p><p>vistas em revistas, livros, encartes e vídeos, por isso</p><p>familiares ao meu</p><p>olhar e reconhecidas pelo estilo de cada artista – Rodin, Miró, Tarsila do</p><p>Amaral, Anita Malfatti, Cândido Portinari, Di Cavalcanti. Vi também</p><p>outras diferentes, estranhas, nunca vistas – não sei ainda se belas ou</p><p>absurdas. Ver muitas toalhas penduradas num varal, grampos de roupas</p><p>juntinhos, meias femininas lado a lado, o uso da ferrugem de objetos</p><p>variados dando diferentes tonalidades às obras, o pedaço de pano</p><p>marcado pela ferrugem, slides nas paredes, redes penduradas, balões ao</p><p>chão, almofadas de diferentes cores e formas, mala pintada, letras,</p><p>rabiscos, pano rebuscadamente manchado com diversas cores parecendo</p><p>até desenho de criança... Tudo isso me causou um certo estranhamento.</p><p>Pela primeira vez estava tendo contato com tantas coisas diferentes</p><p>ao mesmo tempo, e, em meio a esse estranhamento, admiração e até</p><p>certo repúdio, fiquei analisando o conceito de “arte” que aprendi.</p><p>Afinal, o que é uma obra de arte? E ao passar pelos corredores dos</p><p>museus, diante daquelas coisas diferentes, perguntava-me: isso é arte?</p><p>Era uma experiência nova para mim e, com ela, percebi que o que</p><p>eu sabia a respeito de arte era muito pouco. Simplesmente ignorava as</p><p>múltiplas possibilidades existentes e que, ao contrário do que pensamos,</p><p>não estão tão distantes de nós. Lembrei-me dos objetos que,</p><p>estrategicamente ou não, eram instalados no campus da universidade em</p><p>que eu estudava. Eu ficava parada diante deles, tentando decifrar que</p><p>mensagem os acadêmicos do curso de artes visuais queriam nos</p><p>transmitir. Será que havia alguma mensagem? Ou será que deveríamos</p><p>apenas apreciar aquelas obras? Que significado possuía a utilização</p><p>daquelas sucatas amontoadas – ou seriam reutilizadas? Precisávamos</p><p>refletir sobre elas ou estavam lá postas apenas para embelezar o</p><p>ambiente? Haveria uma história ou um fato a ser contado ou lembrado?</p><p>Antes, obra de arte para mim eram telas de pintores famosos que</p><p>retratavam paisagens e figuras humanas como se fossem fotografias, de</p><p>tão perfeitas. Museu era o lugar onde ficavam guardados móveis,</p><p>documentos e utensílios de gerações passadas e servia para ser visitado</p><p>pelas novas gerações no intuito de fazer o confronto do que existia no</p><p>passado com o que temos no presente. Visitando a Pinacoteca e o</p><p>Museu de Arte Contemporânea da USP é que consegui ressignificar</p><p>esses espaços; apreciando outros tipos de obras, comecei a ter outro</p><p>olhar sobre elas. Percebi, então, que não existe uma padronização e que</p><p>os estilos e as formas das obras de arte foram ressignificados ao longo</p><p>do tempo, permitindo outras possibilidades. O que conhecemos não é</p><p>único nem verdadeiro. Estamos desconstruindo e reconstruindo nossos</p><p>conceitos sempre que temos a oportunidade de vivenciar, ver e ouvir</p><p>experiências diferentes das que vivemos cotidianamente, podendo,</p><p>assim, ampliar nosso olhar para o mundo que nos cerca.</p><p>Como professora que sou, entendo que, em se tratando de</p><p>educação, é necessário mais do que nunca vislumbrar outras</p><p>possibilidades de aprendizagens, de experiências e de vivências, para</p><p>que possamos ter um espaço escolar que transponha os cadernos e os</p><p>livros, que supere a mecanização e/ou a mera transmissão de</p><p>conhecimentos e que dê outro significado ao papel do professor como</p><p>mediador desse processo.</p><p>Mas como os professores podem possibilitar essas experiências a</p><p>seus alunos se eles próprios muitas vezes não têm oportunidade – ou</p><p>mesmo condições – de ir ao teatro ou ao cinema? De assistir a um show,</p><p>de adquirir bons CDs e livros? De frequentar um restaurante mais</p><p>exótico, visitar um museu ou de desfrutar uma viagem, conhecer uma</p><p>cidade nova? É difícil pensar que podemos fazer diferente se não</p><p>experimentamos o diferente... Não podemos imaginar outras formas de</p><p>trocar conhecimentos se não vivenciamos outras formas de aprender, se,</p><p>cotidianamente, não acrescentamos nada em nosso repertório vivencial.</p><p>Ninguém dá o que não tem!</p><p>Quando ocupamos espaços diferentes e temos a oportunidade de</p><p>experimentar coisas diferentes, ou, ainda, de explorar situações</p><p>diversas, estamos abrindo novas possibilidades, indo para além do que</p><p>já temos e/ou conhecemos. Podemos, então, estabelecer novas relações</p><p>com o mundo, construindo e reconstruindo saberes diferentes dos que</p><p>temos, dando outro sentido e outro significado para as coisas – do</p><p>mundo, da educação...</p><p>Por isso, é imprescindível que os professores multipliquem cada</p><p>vez mais as possibilidades para seus alunos, sem se esquecerem de que</p><p>precisam primeiramente (re)descobrir a beleza do mundo, na arte e em</p><p>tudo de diferente que os cerca, pois é sentindo, vendo e experimentando</p><p>o novo e o diferente que poderão se apropriar de outros conceitos, de</p><p>outras formas de pensar, de agir, de sentir; que poderão, enfim, dar</p><p>outros caminhos para sua própria história, dar outro sentido para sua</p><p>vida e, então, para a vida de seus alunos.</p><p>3</p><p>MEU ENCONTRO COM PICASSO... E COMIGO</p><p>Samantha Fernandes da Silva</p><p>Em janeiro de 2004 vivi o que para mim foi uma verdadeira</p><p>aventura. A força motivadora: ver a exposição de Picasso em São Paulo.</p><p>Saí de minha cidade, Biguaçu (SC), para, na Oca, no Parque Ibirapuera,</p><p>encontrar-me com Pablo Picasso. E posso dizer que foi simplesmente</p><p>novo e emocionante.</p><p>Até encontrar o artista, ficar frente a frente com sua obra, passei por</p><p>um ritual que pode ser chamado de iniciação. Por isso digo que foi</p><p>novo: porque ir ao encontro de Picasso envolveu experiências até então</p><p>não vividas: viajar de avião, pegar metrô, ir a São Paulo, ver obras de</p><p>um grande e renomado artista, ao vivo e em cores, longe dos catálogos e</p><p>gravuras de revistas e livros.</p><p>Hoje sei: ter a consciência do novo é algo surpreendente. Dá a</p><p>sensação de poder ser grande. E ser grande é criar e fazer acontecer</p><p>possibilidades na vida. É ter a certeza de que tudo pode aquele que se</p><p>atreve. Para a sorte de uma iniciante, tive a companhia maravilhosa de</p><p>uma amiga-mestra, fundamental ao encorajamento. Enfim, viver o que</p><p>nunca foi experimentado e vivido marca profundamente...</p><p>São Paulo. Ibirapuera. Picasso. Novidade. Emoção.</p><p>O emocionante entra nas lembranças que me vieram ao entrar na</p><p>Oca. Ao admirar todas aquelas obras, minha memória me reportou à</p><p>infância na escola, às obras dos artistas que contemplava e namorava</p><p>nas revistas (em casa), ao sentimento de paixão pela arte e pelas cores.</p><p>Eu estava ali. Deslumbrada, com sentimentos vivos, apesar da escola.</p><p>Apesar da escola, sim. Pois tive uma infância escolar bem</p><p>complicada, para não dizer traumática. Na época, pintar os desenhos</p><p>mimeografados era a atividade principal da aula. Ao mesmo tempo, era</p><p>o único momento em que podíamos ter contato com lápis de cor, giz e</p><p>tintas. Eu achava aqueles desenhos estranhos. Como se já tivesse uma</p><p>opinião crítica, questionadora, não gostava deles, e minha maior</p><p>vontade era mudá-los, fazendo o meu desenho. Mas se para</p><p>experimentar as cores o desenho pronto era a única saída, então eu</p><p>“adorava” os tais desenhos – de coelhinhos, ursinhos, indiozinhos,</p><p>cestinhas de frutas, Papai Noel – que as professoras passavam horas</p><p>reproduzindo no mimeógrafo. Porém, o pior não era isso. Nada mais</p><p>terrível do que o maldito “varal dos mais bonitos”, onde os desenhos</p><p>eram colocados em ordem: do mais bonito ao mais feio, no olhar da</p><p>professora. Feio era uma das palavras usadas na escola para discriminar</p><p>– levava qualquer autoestima ao chão!</p><p>Agora me vem forte a lembrança daquele dia, véspera de Páscoa.</p><p>Momento da pintura. Todos em silêncio – mesmo tendo seis anos,</p><p>sentados em dupla e enlouquecidos para pintar o desenho da Páscoa. O</p><p>coelhinho com cestinha de ovos é colocado em minha mesa. Pego os</p><p>poucos lápis que eu tinha – pequenos e com algumas pontas quebradas.</p><p>O meu sonho era ter uma caixa, linda, de lápis com todas as cores.</p><p>Lápis grandes, com as pontas bem fininhas... Bem, o apontador também</p><p>era objeto de luxo. O único que eu poderia ter para apontar os meus</p><p>pequenos lápis pertencia à professora. A professora só chamava os mais</p><p>quietinhos para apontar seus lápis. Nossa! Chega a ser engraçado, mas</p><p>lembro</p><p>com tanta clareza a tristeza da cena: eu não ficava quieta, queria</p><p>pintar; de tanto incomodar o meu colega para emprestar o seu</p><p>apontador, a professora me castigou, deixando-me sem apontar os lápis.</p><p>Tive de pintar o maldito do coelho com os lápis que estavam com ponta.</p><p>Nem pude escolher as cores, que era tudo o que poderia haver de</p><p>“criação”, já que o desenho estava pronto. Sensação horrível. Eu sabia</p><p>como pintar e queria pintar o coelho. Ele estava lindo na minha cabeça.</p><p>Mas naquela realidade, um desenho bonito não poderia ter uma orelha</p><p>laranja e outra parte verde... E o meu coelho acabou ficando assim, todo</p><p>malhado, riscado da raiva e da indignação por ver aquela produção, que</p><p>era minha e ao mesmo tempo não era. Final da história: qual foi a</p><p>posição do meu coelho no “varal dos mais bonitos”? Claro, o último,</p><p>bem encostado na parede, escondido no canto! Aí senti a dor da</p><p>impotência de uma criança diante do adulto, diante da pobreza e do não</p><p>ter, diante da discriminação e do descaso. Ao lembrar, meus olhos se</p><p>enchem de lágrimas – talvez as mesmas lágrimas daquela criança que</p><p>sentiu aquela dor.</p><p>Talvez possamos nos perguntar: o que isso tem a ver com Picasso?</p><p>Picasso está na fase adulta, na pedagoga que sou, tentando</p><p>recuperar o tempo perdido, revitalizando a paixão – que tentaram cortar</p><p>de mim –, querendo descobrir o meu traço, a minha expressão plástica.</p><p>Na verdade, toda essa história não me tornou uma aluna quieta, passiva</p><p>e tolerante. Ao contrário, fez-me lutar pelas cores, pela pintura, pelo</p><p>meu amor à arte e à beleza. Assim vou cada vez mais me</p><p>reaproximando de mim mesma, do meu espírito criador, da capacidade</p><p>de sentir e viver a brincadeira das cores e das formas.</p><p>Como professora, o meu trabalho com as crianças está baseado</p><p>nesses sentimentos: eu e as crianças estamos buscando, juntas, como</p><p>experimentar e vivenciar a expressão plástica e estética, o conhecimento</p><p>dos diferentes artistas, o contato com museus e galerias. Nessa procura,</p><p>vou ressaltando que existem muitas maneiras de expressar o que se</p><p>deseja, pois a arte é condição humana de criação. Considero que as</p><p>crianças não fazem, necessariamente, arte. Mas analiso essa</p><p>aproximação da criança com a arte como ampliação do seu olhar e do</p><p>seu conhecimento de mundo: quanto mais contato elas tiverem com o</p><p>universo artístico-cultural, quanto mais questionamentos puderem</p><p>formular e quanto mais puderem experimentar “fazeres” de expressão</p><p>plástica e estética, mais imaginativas e criativas as crianças serão.</p><p>Não podemos negar esse encontro da criança com a arte, e como</p><p>fazer isso é uma busca constante, hoje me engajo nos encontros e</p><p>discussões sobre arte e estética, organizo-me para ver exposições e</p><p>mostras, não perco mais nenhuma viagem para admirar e conhecer</p><p>obras de artistas. Vou ao encontro do olhar profundo, da beleza, do</p><p>conhecimento, da discussão, da experimentação – da minha educação</p><p>estética.</p><p>Por isso, para poder mostrar os caminhos da arte aos meus alunos,</p><p>para viver com eles as diferentes linguagens, preciso, sim, aventurar-</p><p>me, sair, viajar e me encantar com as obras de Picasso, esse artista</p><p>genial que, ao fazer, desfazer e voltar a fazer o seu traço, criou estilos,</p><p>mudou tendências sem se preocupar com elas. Marcou a história com</p><p>sua originalidade e seu compromisso com a arte que era dele, Picasso.</p><p>Ouvi críticas que diziam: existe a arte moderna e existe Picasso. Se</p><p>ele foi o criador do cubismo, que marcou o modernismo, só isso não</p><p>caracteriza Picasso. Ele foi desenhista, pintor, escultor, gravador e</p><p>ceramista. Eu não conhecia essa multiplicidade de Picasso; eu a</p><p>descobri na visita à exposição da Oca. Cada vez mais descubro Picasso,</p><p>agora lendo suas biografias, críticas e livros de arte. Com ele, com sua</p><p>arte, pude formular a pergunta: o que é feio? Qual o olhar para</p><p>questionar um traço, uma expressão plástica? Talvez se a minha</p><p>professora do jardim de infância tivesse conhecido Picasso, não</p><p>colocaria o meu desenho em último lugar, nem existiria o varal dos mais</p><p>bonitos. Se ela tivesse conhecido Picasso, que abusa das cores, deforma</p><p>rostos e corpos, violenta e agride, encanta e tranquiliza, não teria sido</p><p>assim; não existiriam os mimeógrafos. Desenhar seria um prazer, uma</p><p>necessidade, e não uma atividade simplesmente escolar.</p><p>E eu pude ver Picasso! Quando, ao andar pela Oca, dentro da</p><p>exposição, olhei para duas obras expostas, sentei diante delas e</p><p>simplesmente chorei... chorei... Aquele choro estava lavando a minha</p><p>alma, que clamava pela vida das cores e da expressão. A tela Nu couché</p><p>(1932), mostrando uma figura humana – uma mulher – deitada e</p><p>definida por círculos, cores e movimento, provocou em mim o</p><p>transbordar dos sentimentos. Igualmente forte foi meu encontro com</p><p>Enfant jouant avec un camion (1953), que apresenta uma criança</p><p>brincando, inspirado em Henri Matisse. A graciosidade, o impacto, a</p><p>beleza dessas duas obras encantaram o meu olhar, que já estava repleto</p><p>e maravilhado com toda a exposição. Um filme de oito milímetros</p><p>passou na minha memória... As obras eram originais, verdadeiras,</p><p>autênticas, com todas as cores, formas, texturas, com todos os</p><p>tamanhos, molduras, volumes, estilos. Não eram reproduções, nem</p><p>gravuras de revistas ou livros. Eram as obras no seu todo! E é aí que</p><p>está a diferença... Ver de verdade.</p><p>Ver tudo aquilo foi lindo. Saí de lá outra pessoa, mais completa,</p><p>com mais certeza do que busco: mostrar às crianças a expressão da arte,</p><p>o movimento humano da transgressão e da ousadia de criar e descobrir;</p><p>ensinar às crianças maneiras de se maravilhar com as cores e as formas,</p><p>dos sonhos, dos desejos...</p><p>4</p><p>O ESCOLAR[51] – COMO VAN GOGH ME FEZ</p><p>PENSAR SOBRE ESCOLA</p><p>Celia Lucia Baptista Flores</p><p>Ao produzir este texto, tive como principal objetivo compartilhar a</p><p>importância de vivenciarmos experiências estéticas significativas,</p><p>compreendendo que a ampliação de nosso repertório imagético, sonoro,</p><p>corporal (e de tantas outras linguagens) nos permite o estabelecimento</p><p>de relações outras com o mundo que nos circunda, a vivência de</p><p>emoções diversas e, mesmo, a abertura de novas possibilidades de</p><p>reflexão e ação sobre o fazer pedagógico.</p><p>O acontecimento que relato aqui me traz a certeza de que sempre</p><p>que entramos em contato com expressões artísticas, neste caso com uma</p><p>obra de arte, somos remetidos a alguma informação ou vivência que já</p><p>possuíamos anteriormente. Essa possibilidade de sermos levados a</p><p>pensar sobre as questões que nos inquietam com base na experiência</p><p>estética é o ponto de partida deste capítulo, que segue caminho próprio</p><p>ao trazer à tona a reflexão que fiz quando do meu encontro com a obra</p><p>O escolar, de Vincent Van Gogh. Na verdade, entrei em contato com</p><p>uma pequena reprodução dessa obra e isso me fez pensar: se a</p><p>reprodução causou-me tanto impacto e levou-me a produzir este texto,</p><p>imagine o que me causaria a obra original...</p><p>Em 2002, visitei a exposição “História em quadrões – Pinturas de</p><p>Maurício de Sousa”, no Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) do</p><p>Rio de Janeiro, junto com meus alunos da 1ª série do ensino</p><p>fundamental e suas famílias. Essa exposição trazia pinturas de Maurício</p><p>de Sousa em que a Turma da Mônica (seus personagens dos quadrinhos)</p><p>era protagonista em telas de pintores consagrados, numa espécie de</p><p>“releitura”.</p><p>Ao lado de cada tela do artista brasileiro estava exposta, também,</p><p>uma pequena reprodução do quadro que servira de base para o seu</p><p>trabalho, demonstrando a origem de seus “quadrões”. Foi possível</p><p>observar, em todas as obras, a preocupação de Maurício de Sousa com a</p><p>reprodução/cópia de quase todos os detalhes, cores, sombras, sendo “os</p><p>personagens” o único diferencial gritante nas imagens. Assim, por</p><p>exemplo, fazendo referência à escultura de Rodin, O pensador, lá estava</p><p>o Cebolinha na posição do pensador. Na imagem que me despertou a</p><p>fazer este texto – O escolar – tínhamos também o Cebolinha ocupando</p><p>o lugar do menino representado por Van Gogh na obra original, sentado</p><p>na mesma posição, numa cadeira igual, com as roupas iguais, assim</p><p>como foram copiados os outros</p><p>elementos da obra.</p><p>Não vou tecer, aqui, comentários a respeito dessa exposição em si</p><p>nem sobre as obras que foram expostas na ocasião – isso mereceria uma</p><p>outra discussão. Minha intenção, conforme citei anteriormente, resume-</p><p>se à explicitação do que vivi/senti nesse contato com a reprodução da</p><p>imagem O escolar, e de minhas reflexões acerca dela; na verdade, esse</p><p>contato, em todo o percurso da exposição, marcou um momento</p><p>realmente significativo. Ao deparar com a reprodução, pequena, daquele</p><p>quadro de Van Gogh, que não tive oportunidade de conhecer antes, algo</p><p>aconteceu. O encontro com essa imagem causou um grande impacto em</p><p>mim.</p><p>Devo deixar claro que não pretendo analisar essa produção por</p><p>nenhum aspecto artístico, até porque nem possuo elementos teóricos</p><p>para isso. Proponho-me, sim, a dividir com você, leitor, o que essa</p><p>minha experiência estética provocou e o que esse contato despertou em</p><p>mim – como me fez refletir. Entendendo que o sentido – ou os sentidos</p><p>– dado por cada pessoa à contemplação de uma obra de arte pode ser</p><p>muito diverso, ressalto, ainda, que não pretendo trazer verdades, mas</p><p>levantar questões que permitam inaugurar um diálogo sobre o espaço</p><p>escola ao qual me remeti por meio dessa pintura.</p><p>Logo que olhei para a pequena reprodução da tela O escolar, o que</p><p>mais me chamou a atenção foi a expressão do rosto da criança retratada.</p><p>Um olhar distante, que não encara o outro nos olhos. Sua posição na</p><p>cadeira também me deixou incomodada. A criança de lado, com as</p><p>costas da cadeira servindo de apoio para o braço. Pareceu-me mesmo</p><p>que o menino não estava com nenhuma disposição para o contato com o</p><p>outro...</p><p>E as cores que vi? Um menino amarelo em contraste com um fundo</p><p>vermelho. Aqui me lembro de um trecho do livro Chapeuzinho amarelo,</p><p>de Chico Buarque (1979, p. 1), que diz: “E a Chapeuzinho foi ficando</p><p>amarela, amarelada de medo...”.</p><p>Que meio é esse tão forte – vermelho (a escola, de acordo com o</p><p>que sugere o título da obra) –, ocupado por um indivíduo tão pálido –</p><p>amarelo (o aluno; medroso, talvez...)?</p><p>Unindo todas essas impressões e juntando a isso meu trabalho</p><p>como educadora, as discussões e preocupações que tenho no dia a dia, a</p><p>significação que dei ao que vi foi a de um “escolar” cansado, entediado</p><p>e sozinho.</p><p>Um tanto de alívio invadiu-me quando li a descrição da “releitura”</p><p>dessa obra feita por Maurício de Sousa para a exposição, que mostrava</p><p>as mesmas cores e os mesmos detalhes na expressão e na posição de</p><p>Cebolinha: “Cansado de bolar planos que nunca funcionam...” (grifos</p><p>meus). Ufa! Não sou a única a interpretar no quadro aquele “ar” de</p><p>cansaço no menino. Tendo todas essas informações diante dos olhos,</p><p>inevitavelmente comecei a indagar-me: que escola é essa que deixa tal</p><p>expressão na criança? Se os conhecimentos são construídos por meio do</p><p>contato e das trocas sociais, como o aluno pode se encontrar tão só?</p><p>Você, leitor, pode estar pensando no quanto minha imaginação é</p><p>fértil ou, mesmo, que estou levantando todas essas possibilidades sem</p><p>situar a pintura no tempo/espaço em que foi produzida. Mas me assusta,</p><p>justamente, que ela me seja tão presente, que me traga impressões tão</p><p>próximas.</p><p>As certezas que procuro carregar em meu trabalho de educadora são</p><p>avessas ao que me brota na contemplação dessa imagem e, infelizmente,</p><p>até ao que ouço sobre nossas escolas nos espaços que percorro. A</p><p>imagem de aluno que identifico na produção de Van Gogh não se</p><p>mostra estranha para mim, aliás, parece que vejo esse “escolar” no</p><p>contexto de muitas escolas...</p><p>Acredito que a escola, como espaço de construção de</p><p>conhecimentos, precisa propiciar encontros e trocas. De acordo com os</p><p>estudos de Vygotsky (1984), e conforme pontuei anteriormente, é no</p><p>contato com o outro que aprendemos. E conhecer compartilhando</p><p>saberes, não temendo os não saberes, nos proporciona alegria.</p><p>Apropriar-nos do que acontece na vida, ter com quem dividir</p><p>questões do dia a dia, não dissociar escola e vida – tudo isso nos faz</p><p>pessoas mais felizes. Se é assim, precisamos ir em busca da</p><p>consolidação da escola que tem como base esses ideais. Escola que</p><p>propicie vivências significativas às crianças e que não as deixe</p><p>“marcadas” pelo cansaço, pelo tédio.</p><p>Afinal, que escola queremos? Eu não tenho nenhuma dúvida: quero</p><p>a escola como espaço de alegria!</p><p>Bibliografia</p><p>BUARQUE, Chico (1979). Chapeuzinho amarelo. Rio de Janeiro: José Olympio.</p><p>VYGOTSKY, Lev S. (1984). A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes.</p><p>5</p><p>COMI O ABAPORU COM OS OLHOS: UM</p><p>MERGULHO ANTROPOFÁGICO NAS CORES</p><p>DE TARSILA</p><p>Rita Márcia Magalhães Furtado</p><p>Difícil experiência essa de relatar com palavras, a convite de</p><p>Luciana Esmeralda Ostetto, uma visita a um museu ou a uma obra de</p><p>arte. O difícil não é o relato, mas a expressão do sentimento. Agora sim,</p><p>estou certa de que é preciso muito mais do que palavras – e se são</p><p>imprescindíveis, é preciso então muito cuidado no trato com elas – para</p><p>traduzir a plenitude do encontro com a arte.</p><p>Escolhi relatar minha experiência na exposição “Da antropofagia a</p><p>Brasília”, realizada no Museu de Arte Brasileira, que fica na Fundação</p><p>Armando Álvares Penteado, em São Paulo, e que aconteceu de</p><p>dezembro de 2002 a março de 2003, em comemoração aos 80 anos da</p><p>Semana de Arte Moderna. Por que essa exposição? Porque, dentre todas</p><p>as outras que visitei, foi a que mais me emocionou. Rever a história,</p><p>olhar para o passado com os olhos do presente, acompanhando a</p><p>evolução do movimento modernista no Brasil foi uma experiência</p><p>ímpar. A abrangência histórica compreendeu um rico período cultural do</p><p>Brasil dos anos 20 aos anos 50, com documentos originais, registros</p><p>históricos, partituras, livros, revistas, projetos arquitetônicos, gravuras,</p><p>documentários, esculturas e telas de inúmeros artistas – dentre eles,</p><p>Anita Malfatti, Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias, Di Cavalcanti,</p><p>Cândido Portinari, Tarsila do Amaral, Maria Martins –, tudo isso</p><p>espalhado por salas que obedeciam à ordem cronológica que dava título</p><p>à exposição. Uma obra em especial deteve minha atenção; trata-se de</p><p>um ícone do movimento antropofágico: o Abaporu,[52] de Tarsila do</p><p>Amaral. É possível perceber nessa obra a clara influência das estruturas</p><p>cubistas que tinham emergido na Europa, onde Tarsila havia estudado,</p><p>incorporadas à temática nativista[53] que ela adotara.</p><p>As cores simples, extravagantes até, se juntam à complexidade das</p><p>formas. Inicialmente o que se vê é uma tela com poucos detalhes, limpa,</p><p>sem rebuscamentos, que destoa das ideias de harmonia e volume</p><p>predominantes na pintura acadêmica até o começo do século XX. O</p><p>índio, figura totalmente assimétrica, cujo corpo parece querer se</p><p>projetar para fora da tela, posa para nós em postura talvez de ocasional</p><p>descanso, ao lado de uma árvore e com fundo azul. E aqui me lembro</p><p>do poeta Manoel de Barros, que escolhi para me emprestar algumas de</p><p>suas palavras neste ensaio: As coisas que não existem são mais bonitas.</p><p>[54] A vegetação dá mais “brasilidade” ao conjunto e o Sol irradia uma</p><p>luz que exala o brilho que, a princípio, parece limitado pela linha que</p><p>separa o azul e o amarelo. Mas posteriormente já é possível afirmar: o</p><p>Abaporu tem aura.[55] Foi a primeira vez que senti o conceito</p><p>benjaminiano de forma tão chocante, tendo-o apreendido antes por meio</p><p>de abstrações, e compreendi: As coisas não querem mais ser vistas por</p><p>pessoas razoáveis: elas desejam ser olhadas de azul. Acho mesmo que</p><p>lancei um olhar azul, e o quadro, mesclado de cores inventadas pela</p><p>alquimia de Tarsila, retribuiu-me o azul em maior intensidade, pois que,</p><p>para mim, há nele um azul em abuso de beleza.</p><p>E comecei a dialogar com a obra. Reconheço que no começo foi um</p><p>monólogo. Só a obra falava, do alto de sua autoridade de objeto estético</p><p>que já tem uma experiência de quase 80 anos e que, portanto, já possui</p><p>um estatuto de objeto cultural.[56]</p><p>O Abaporu me impregnou de significados, mostrando, muito além</p><p>do óbvio, as formas que uniam silêncio e som. Nesse momento, todas as</p><p>informações, as características técnicas sobre a artista,</p><p>sua sofisticação</p><p>estética, suas fases, sua temática, sua expressividade, seu estilo são</p><p>como que suspensos temporariamente – não que tenham deixado de ser</p><p>imprescindíveis, apenas contribuem para que a apreensão se dê</p><p>inicialmente no nível do sensível, nesse primeiro contato. É como se</p><p>agora só o silêncio da obra falasse...</p><p>Assim, parada diante daquela obra que até então eu conhecia</p><p>apenas por inúmeras reproduções, percebo que ela tem uma moldura,</p><p>[57] o que nenhuma reprodução havia me mostrado antes. A moldura</p><p>dourada, larga, cravada de quadradinhos foscos e brilhantes dispostos</p><p>alterna-damente acolhe com austeridade a preciosidade que lhe foi</p><p>confiada a guardar. A moldura – limite entre o real e o imaginário –</p><p>preenche ainda de silêncio o nosso possível diálogo.</p><p>Decido então continuar minha visita e percorro todas as outras</p><p>salas, repletas de obras de artistas adoráveis, detendo-me mais em umas</p><p>e menos em outras. Finalizo a exposição com lágrimas nos olhos.</p><p>Quanto tempo fiquei por lá? Não sei ao certo, é que a luz das horas me</p><p>desproporciona, e, por conta disso, não sei mais calcular a cor das</p><p>horas.</p><p>Após algum tempo sentada no hall de entrada, resolvo retornar ao</p><p>museu[58] com o intuito de revisitar... o Abaporu.</p><p>Fico parada novamente, por alguns instantes, diante do quadro, e é</p><p>nesse momento que se estabelece, efetivamente, um diálogo.</p><p>Pressupondo que só voltei porque o quadro me chamou de volta, eu, que</p><p>antes estava desprovida de qualquer preocupação racional, vejo-me</p><p>agora tentando buscar elementos estéticos que justifiquem meu</p><p>encantamento, buscando as peculiaridades presentes na tessitura de toda</p><p>a obra. E é aí que o trabalho artesanal do artista nos remete a pensar em</p><p>coisas antes impensadas, a buscar em sua obra uma cumplicidade, já</p><p>que há nela a congruência de nossos gostos.</p><p>Então, um perfume vermelho me pensou; comecei a me perguntar</p><p>ainda sobre um possível diálogo e fluíram indagações: o que um quadro</p><p>poderia me ensinar? Como a linguagem artística me atinge? O que a</p><p>artista quis dizer? Qual sua intenção ao criar essa obra? Ruptura?</p><p>Continuidade? É expressão de seu inconsciente? Ou a plena consciência</p><p>de sua realidade, inclusive social, que seria o reflexo de uma</p><p>significação mais profunda? Aqui, reflexão e emoção se entrelaçam para</p><p>aguçar minha imaginação[59] a partir da imaginação da artista, que foi a</p><p>gênese de sua obra. Imaginar quantas pinceladas foram necessárias para</p><p>preencher de cores o vazio das formas acabadas e quantas linhas se</p><p>uniram para concluir a forma final e quais técnicas foram usadas e/ou</p><p>inutilizadas até sua conclusão. Quantos pensamentos, quanta relação</p><p>entre saberes estéticos, educacionais, culturais... E, num último olhar,</p><p>senti como se a obra ecoasse meus sentimentos de tal modo depurados</p><p>que mais do que o acolhimento de uma expressão artística havia uma</p><p>expressão do humano que há em mim. É pelo significado imanente das</p><p>formas e das cores que a tela começa seu percurso, que ocorre a</p><p>clarificação do significado da experiência estética. E à beleza que me é</p><p>dada eu retribuo em forma de reverência. E a artista, cujas mãos podem</p><p>inventar matérias e formas, presta-se também a desinventar objetos.</p><p>Repetir, repetir – até ficar diferente – sabe falar de mim muito mais do</p><p>que eu mesma. Então descobri: a arte cria vínculos...</p><p>Bibliografia</p><p>ARENDT, Hannah (1997). “A crise na cultura: Sua importância social e política”. In:</p><p>ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, pp. 248-281.</p><p>BARROS, Manoel de (2001). O livro das ignorãças. São Paulo: Record.</p><p>BENJAMIN, Walter (1980). A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. São</p><p>Paulo: Abril Cultural, pp. 3-28. (Os Pensadores)</p><p>COLI, Jorge (2003). O que é arte. São Paulo: Brasiliense.</p><p>GULLAR, Ferreira (1993). “Caráter nacional da arte”. In: GULLAR, Ferreira. Argumentação</p><p>contra a morte da arte. Rio de Janeiro: Revan, pp. 83-87.</p><p>LANGER, Susanne (1971). “Importância cultural da arte”. In: LANGER, Susanne. Ensaios</p><p>filosóficos. São Paulo: Cultrix, pp. 81-90.</p><p>OSTROWER, Fayga (1988). “A construção do olhar”. In: NOVAES, Adauto (org.). O olhar.</p><p>São Paulo: Companhia das Letras/Abril Cultural, pp. 167-182.</p><p>NOTAS</p><p>[1] Membro do Conselho e da Comissão de Arte do Instituto Brasil-Estados Unidos (Ibeu) e</p><p>diretor da Escolinha de Arte do Brasil. Foi vice-presidente da Associação dos Amigos do</p><p>Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (AAMNBA) de 1970 a 2004.</p><p>[2] Este texto foi estruturado com base em minha tese de doutorado intitulada “O que e</p><p>como desenham as crianças? Refletindo sobre as condições de produção cultural da</p><p>infância”, defendida em março de 2001 na Faculdade de Educação da Unicamp.</p><p>[3] Sobre as possibilidades de apropriação e produção cultural oferecidas, ler também Leite</p><p>(2004c, pp. 121-128).</p><p>[4] Essa ideia, inserida numa discussão específica sobre o cinema, também está presente em</p><p>Leite (2004a).</p><p>[5] Esta discussão está presente em Machado, neste mesmo livro.</p><p>[6] “O primeiro museu a revolucionar os conceitos de relacionamento com o público foi o</p><p>Louvre (...). Ele foi considerado desde o início o ‘Museu do Povo’, onde qualquer pessoa</p><p>podia ir sem pagar” (Angeli 1993, p. 28).</p><p>[7] Não é verdade que não há espaço para a criança e que a cultura da infância é a cultura do</p><p>silêncio – nós é que pouco sabemos ouvi-la!</p><p>[8] Essa ideia, inserida numa discussão específica sobre o cinema, também está presente em</p><p>Leite (2004a).</p><p>[9] Agradeço a Angelice Marins pelo apoio nessa empreitada.</p><p>[10] Essa discussão acerca do processo alquímico e mágico da arte foi trazida por Milton José</p><p>de Almeida em sua palestra “As idades, o tempo”, proferida no Seminário Internacional de</p><p>Educação Estética (Unicamp 2004), entendendo alquimia como grande trabalho de, na e</p><p>para a imaginação, uma vez que transforma a matéria levando-a de uma forma à outra.</p><p>[11] A análise crítica dessa proposta é objeto de pesquisa de Santos (1997).</p><p>[12] Autores como Bessa (1969), Barbosa (1995; 1997), Garuti (1998) e Dias (1999) muito se</p><p>empenharam para justificar a visitação de crianças, jovens e adultos aos museus.</p><p>[13] No caso: autor-texto-leitor.</p><p>[14] Um recorte dessa análise encontra-se em Leite (2004b).</p><p>[15] Apesar de localizado no porão do Centro Cultural Solar Grandjean de Montigny, o</p><p>Projeto Portinari é uma iniciativa totalmente independente deste. Criado com o objetivo de</p><p>mapear as obras do pintor, o Projeto Portinari logo ampliou sua alçada e passou a partilhar</p><p>das preocupações estéticas, artísticas, culturais, sociais e políticas de sua obra. Em 18 anos,</p><p>catalogou mais de 4.600 pinturas, desenhos e gravuras do artista, além de depoimentos,</p><p>documentos, objetos, fotografias, filmes, recortes de jornal, livros, cartazes, monografias,</p><p>teses e textos em geral que preservam a memória de Cândido Portinari. Sobre o projeto:</p><p>http://www.portinari.org.br.</p><p>[16] Exemplifico com os painéis Guerra e Paz – óleo sobre compensado de cedro –, medindo</p><p>14 m de altura por 10 m de base, pintados no Rio de Janeiro, entre 1954 e 1956, montados</p><p>no saguão da ONU em Nova York, que aparecem bem reduzidos nessa exposição de</p><p>réplicas.</p><p>[17] Para ler sobre outras experiências de exposições itinerantes, procure Machado, neste</p><p>mesmo livro.</p><p>[18] Segundo Portela (2004), o Museu de Arte de São Paulo (Masp) oferece a chamada visita</p><p>simples, só com visitação, e a visita completa, que inclui, depois, ida ao ateliê de arte. Em</p><p>ambos os casos há de se considerar o visitante como sujeito dialógico.</p><p>[19] Sobre esse projeto, ler Carvalho, neste mesmo livro.</p><p>[20] Texto que faz parte deste mesmo livro.</p><p>[21] “500 anos – Artes visuais. SP-Brasil” – Anteprojeto de programa de ação cultural (s./d.).</p><p>(Mimeo.)</p><p>[22] Nessa perspectiva, Roberto Carvalho de Magalhães, em sua palestra “El Greco no sonho</p><p>de Chagall” (proferida no Seminário Internacional de Educação Estética, na Unicamp, em</p><p>2004), diz que a obra é um ser vivo e não um objeto inanimado.</p><p>[23] Sobre isso, ler Ostetto (2004, pp. 41-60).</p><p>http://www.portinari.org.br/</p><p>[24] Embora exista o Museu</p><p>do Brinquedo como um setor da Brinquedoteca do Laboratório</p><p>de Brinquedos e Materiais Pedagógicos (Labrimp) na USP, em São Paulo, em universidade</p><p>federal, esse é o primeiro.</p><p>[25] Parte do acervo do museu já foi exposta em cidades como Jaraguá do Sul e São José</p><p>(SC), e em instituições como o Colégio de Aplicação de Florianópolis. Atualmente</p><p>algumas coleções podem ser vistas na Biblioteca Central da UFSC, sendo que futuramente</p><p>serão também expostas na ala de pediatria do Hospital Universitário.</p><p>[26] Situamos o boitatá e o saci-pererê como exemplos de influência escrava africana</p><p>adaptada às crenças indígenas. Cf. Kishimoto (1993, p. 36) e Piacentini (1995, p. 11).</p><p>[27] Pesquisas arqueológicas realizadas nas regiões onde se desenvolveram civilizações da</p><p>Antiguidade revelam que foram encontrados piões, dados, bolas, bonecas e outros</p><p>brinquedos no interior de túmulos em sepulturas de crianças. Com a morte da criança, que</p><p>lhes conferia significado, também findava a utilidade daqueles objetos. Assim,</p><p>ultrapassando o limite do tempo, numa visão universal e, ao mesmo tempo, localizada, o</p><p>brincar está ligado a um sentimento que faz parte da infância e do ser criança em murais,</p><p>desenhos, esculturas e pinturas nos quais as diferentes gerações registraram os variados</p><p>aspectos da vida cotidiana. Podemos observar a presença de jogos, brincadeiras e</p><p>brinquedos como elementos que geralmente caracterizam como crianças os indivíduos ali</p><p>representados, que quase sempre revelam sua condição brincando ou segurando</p><p>brinquedos.</p><p>[28] Damos ao mundo infantil um entendimento mais amplo, no sentido cultural daquilo que</p><p>é especificamente infantil relacionado com o mundo existente, ultrapassando, assim, o</p><p>reducionismo que o termo pode significar.</p><p>[29] Em 2003 esse grupo foi formalmente cadastrado no CNPq como Gedest – Grupo de</p><p>pesquisa, ensino e extensão em Educação Estética –, coordenado pela professora doutora</p><p>Maria Isabel Leite (Unesc) e pela professora doutora Ana Angélica Albano (Unicamp). Cf.</p><p>http://www.gedest.unesc.net.</p><p>[30] A escola utilizou o transporte público da cidade.</p><p>[31] Múmia: escultura viva. Pessoa com o corpo todo pintado.</p><p>[32] O Margs foi fundado em 1954 e ocupou inicialmente o foyer do Teatro São Pedro. No</p><p>início dos anos 70, passou para a Avenida Salgado Filho e, no ano de 1978, houve a</p><p>transferência definitiva para o prédio atual.</p><p>[33] Escultura do artista plástico uruguaio Gustavo Nackle. Cotidiano: Caminho das águas,</p><p>1995/1996. Bronze, ferro e azulejos.</p><p>http://www.gedest.unesc.net/</p><p>[34] Escultura de Rodolfo Bernardelli. Moema, 1895. Bronze patinado.</p><p>[35] Pintura de Jean Geofroy. A Creche, 1889. Óleo sobre tela.</p><p>[36] Este texto é baseado em minha dissertação de mestrado intitulada “Convites ao olhar:</p><p>Experiências de educação e vivência estética a partir de reproduções” (Machado 2003).</p><p>[37] “Lasar Segall – Exposição digital” – Projeto coordenado pelo Museu Lasar Segall, com</p><p>curadoria de Pierina Camargo e coordenação de Denise Grinspum. A mostra percorreu dez</p><p>cidades. Assumi a Ação Educativa a partir da terceira cidade até o encerramento do projeto,</p><p>passando por Piracicaba, Araraquara, Bauru, Americana, Franca, Barretos e Espírito Santo</p><p>do Pinhal. Informações no site: http://www.expodigital.com.br/contexto.htm.</p><p>[38] “Brasil século XIX: Imagens da cultura – Exposição digital” esteve em Piracicaba,</p><p>Americana, São Carlos, Marília, Bauru e São José do Rio Preto. Visitas à mostra no site</p><p>indicado na nota acima.</p><p>[39] Walter Benjamin (1892-1940) foi um dos mais notáveis intelectuais alemães do século</p><p>XX. Sobre a relação original x réplica, ler o ensaio “A obra de arte na época de sua</p><p>reprodutibilidade técnica”, escrito entre 1935 e 1936, na Dinamarca. In: Benjamin (1994).</p><p>[40] Tecido de algodão com textura semelhante à tela utilizada em pintura. A superfície de um</p><p>de seus lados recebe tratamento especial que permite a absorção de sete canais de tintas de</p><p>um plotter para impressão em grandes formatos.</p><p>[41] Uma versão anterior deste texto, intitulada “Cidadania cultural e a formação de</p><p>professores”, foi publicada na revista Educação e Realidade, vol. 26, n. 2. Porto Alegre,</p><p>jul./dez. de 2001, pp. 75-87.</p><p>[42] A exposição foi criada por iniciativa da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj)</p><p>e organizada pelo Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense e pelo Centro de</p><p>Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação</p><p>Getúlio Vargas. Trata-se de uma exposição fotográfica, cronológica, dividida em 14</p><p>módulos organizados nos corredores do 2º andar do prédio. Os módulos resgatam um</p><p>pouco da história não só do estado, mas do Brasil, destacando, por meio de fotografias,</p><p>alguns fatos dessa história, e ainda podem ser vistos no mesmo local. Os monitores</p><p>assumiram a responsabilidade pelas visitas de estudantes, professores e do público em</p><p>geral. O convênio foi firmado entre a Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de</p><p>Janeiro e a Alerj de novembro de 1998 a julho de 2001. A supervisão ficou a cargo da</p><p>professora Sonia Kramer.</p><p>[43] Para Schall (2003), aprendizagem significativa representa uma integração construtiva</p><p>entre pensamento, sentimento e ação, que conduz ao engrandecimento humano.</p><p>http://www.expodigital.com.br/</p><p>[44] Neste livro há diversos textos que tratam da formação de monitores, em especial os de</p><p>Leite, Machado e Argolo.</p><p>[45] Cabe lembrar que os museus de ciências, tradicionalmente, estão conectados com a</p><p>cultura escolar. Cf. Gouvêa (2003).</p><p>[46] Os depoimentos escritos foram retirados de relatórios elaborados semanalmente durante</p><p>a realização do projeto.</p><p>[47] Para aprofundar as questões relativas ao multiculturalismo cf. McLaren 1997, Moreira</p><p>1998, Candau 1997, Moreira e Macedo 2001, dentre outros.</p><p>[48] Agradeço aos estagiários que possibilitaram a construção deste texto.</p><p>[49] Os “projetos” foram realizados por alunos de diferentes escolas das redes municipal e</p><p>estadual de ensino.</p><p>[50] Entrevista realizada em maio/2004 para a elaboração de minha tese de doutorado, em</p><p>andamento. O entrevistado esclarece que quando menciona museu refere-se também a</p><p>outros espaços culturais. Uma versão anterior deste texto, intitulada “Cidadania cultural e a</p><p>formação de professores”, foi publicada na revista Educação e Realidade, vol. 26, n. 2.</p><p>Porto Alegre, jul./dez. de 2001, pp. 75-87.</p><p>[51] A obra referida pela autora – O escolar (O filho do carteiro – Gamim au Képi), óleo</p><p>sobre tela pintado por Vincent Van Gogh em 1888 – pertence ao acervo permanente do</p><p>Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp). (Nota das organizadoras)</p><p>[52] Tarsila pintou o Abaporu em 1928 para presentear Oswald de Andrade em seu</p><p>aniversário, e este, juntamente com o poeta Raul Bopp, nomeou a tela que inspiraria o</p><p>Movimento Antropofágico, que foi um dos marcos do Modernismo no Brasil. A etimologia</p><p>da palavra abaporu, de acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, deriva do</p><p>tupi awa a´wa, “homem, índio”, e poru, “comer carne humana”.</p><p>[53] Ferreira Gullar afirma que o caráter nacionalista da pintura de Tarsila foi crucial para o</p><p>encontro de sua “personalidade artística” e para sua transcendência para o universal.</p><p>Segundo ele, “dificilmente a obra de Tarsila teria a significação que tem, se ela, em vez de</p><p>retornar às fontes regionais, decidisse desenvolver a linha abstratizante implícita no</p><p>Cubismo e na pintura de Léger daquela época. A valorização do nacional, que era o</p><p>propósito da geração de 22, foi um fator determinante na orientação tomada por Tarsila e</p><p>no desenvolvimento futuro de sua obra” (1993, pp. 85-86).</p><p>[54] Ao longo do texto recorro várias vezes a Manoel de Barros (2001); para ressaltar suas</p><p>falas, evitando que a força poética nelas contida fosse ofuscada pela técnica acadêmica,</p><p>optei por utilizar o itálico em vez de citar diretamente a fonte a cada frase. Assim, as</p><p>páginas citadas obedecem à ordem de suas citações (pp. 77, 21, 39, 49, 67, 69 e 11).</p><p>[55] Walter Benjamin conceitua aura como sendo “a única aparição de uma realidade</p><p>longínqua, por mais</p><p>próxima que ela esteja” (1980, p. 10).</p><p>[56] Em seu ensaio intitulado “A crise da cultura: Sua importância social e política”, Hannah</p><p>Arendt nos diz que “a cultura relaciona-se com objetos e é um fenômeno do mundo; o</p><p>entretenimento relaciona-se com pessoas e é um fenômeno da vida. Um objeto é cultural na</p><p>medida em que pode durar; sua durabilidade é o contrário mesmo da funcionalidade, que é</p><p>a qualidade que faz com que ele novamente desapareça do mundo fenomênico ao ser usado</p><p>e consumido. (...) Do ponto de vista da mera durabilidade, as obras de arte são claramente</p><p>superiores a todas as demais coisas; e, visto ficarem no mundo por mais tempo do que tudo</p><p>o mais, são o que existe de mais mundano entre todas as coisas. Elas são, além disso, os</p><p>únicos objetos sem qualquer função no processo vital da sociedade; estritamente falando,</p><p>não são fabricadas para homens, mas antes para o mundo que está destinado a sobreviver</p><p>ao período de vida dos mortais, ao vir e ir das gerações” (1997, pp. 260-262).</p><p>[57] A delimitação que aqui resolvi transpor para a moldura é, segundo Ostrower, um pré-</p><p>requisito para a percepção das formas; assim, “o que não conseguimos delimitar não</p><p>conseguimos perceber” (1988, p. 174).</p><p>[58] E aqui penso ser imprescindível a reflexão de Jorge Coli: “A arte tem assim uma função</p><p>que poderíamos chamar de conhecimento, de ‘aprendizagem’. Seu domínio é o do não</p><p>racional, do indizível, da sensibilidade: domínio sem fronteiras nítidas, muito diferente do</p><p>mundo da ciência, da lógica, da teoria. Domínio fecundo, pois nosso contato com a arte nos</p><p>transforma. Porque o objeto artístico traz em si, habilmente organizados, os meios de</p><p>despertar em nós, em nossas emoções e razão, reações culturalmente ricas, que aguçam os</p><p>instrumentos dos quais nos servimos para apreender o mundo que nos rodeia. (...) na obra</p><p>há uma organização astuciosa de um conjunto complexo de relações, um mundo único feito</p><p>a partir do nosso. (...) ela nos ensina muito sobre nosso próprio universo, de um modo</p><p>específico, que não passa pelo discurso pedagógico, mas por um contato contínuo, por uma</p><p>frequentação que refina nosso espírito” (2003, pp. 109 e 111).</p><p>[59] Comumente a imaginação é associada ao devaneio, a uma interrupção da ação racional.</p><p>Langer nos lembra que, antes de ser tomada como expressão e como linguagem, a arte é</p><p>concebida pela imaginação, pois esta exerce um papel preponderante no trabalho artístico,</p><p>e enfatiza: “A imaginação é provavelmente o mais antigo traço mental tipicamente humano</p><p>– mais antigo do que a razão discursiva; é provavelmente a fonte comum do sonho, da</p><p>razão, da religião e de toda observação geral verdadeira. É esta primitiva força humana – a</p><p>imaginação – que engendra as artes e é, por seu turno, diretamente afetada por suas</p><p>produções” (1971, p. 88).</p><p>SOBRE AS AUTORAS</p><p>Adriana Aparecida Ganzer, bacharel e licenciada em Artes Plásticas</p><p>(Universidade de Passo Fundo) e aluna especial do Programa de Pós-Graduação</p><p>em Educação da Faced/UFRGS, desde 2000 é professora de artes do ensino</p><p>fundamental e médio da rede pública estadual (RS). Desde 1994 atua como</p><p>pesquisadora de programas pedagógicos e ações educativas no Museu de Arte do</p><p>Rio Grande do Sul – Ado Malagoli.</p><p>Adriana de Almeida Machado é licenciada em Educação Artística, bacharel em</p><p>Artes Plásticas (IA/Unicamp) e mestre em Educação (FE/Unicamp). Desde 1998 é</p><p>professora de Educação Artística da prefeitura de Paulínia (SP) e coordena, desde</p><p>2000, o Espaço Mundo da Arte. Trabalhou em curadorias e na coordenação de ação</p><p>educativas de exposições.</p><p>Celia Lucia Baptista Flores é pedagoga (UERJ), especialista em Educação</p><p>Infantil (PUC-Rio) e mestranda em Educação (UFSC). Trabalhou de 1994 a 2003</p><p>nas redes pública e privada do Rio de Janeiro, com turmas de educação infantil e</p><p>com as séries iniciais do ensino fundamental. Desde 2004 vem se dedicando à</p><p>formação de professores. É pesquisadora do Gedest e do Gepiee.</p><p>Gabriela Salles Argolo é pedagoga e mestre em Psicologia Escolar (PUC-SP). Foi</p><p>professora de educação infantil da rede privada de São Paulo por 12 anos. Desde</p><p>2001 atua na coordenação pedagógica também da rede privada.</p><p>Luciana Esmeralda Ostetto (org.) é pedagoga (UFSC), mestre em Educação</p><p>(UFSCar) e doutoranda em Educação (Unicamp). Docente do Departamento de</p><p>Metodologia de Ensino CED/UFSC, já foi professora de educação infantil e</p><p>coordenadora pedagógica da rede pública de Florianópolis e pedagoga de creche</p><p>da rede municipal de São Paulo.</p><p>Magda Ugioni do Livramento é pedagoga (Unesc). Foi professora de educação</p><p>infantil da rede municipal de Criciúma de 1985 a 2001, quando assumiu a</p><p>Coordenação Geral Pedagógica de Educação Infantil dessa rede. É vice-presidenta</p><p>do Conselho Municipal de Educação de Criciúma.</p><p>Maria Cristina M. Pereira de Carvalho é economista (Uniceub), pedagoga,</p><p>especialista em Educação Infantil, mestre em Educação e doutoranda em Educação</p><p>(PUC-Rio). Desde 1997, é professora do curso de especialização em Educação</p><p>Infantil da PUC-Rio e desde 2004 do curso de pedagogia dessa instituição.</p><p>Maria Isabel Leite (org.) é professora de Arte (Atelier Hélio Rodrigues),</p><p>pedagoga e mestre em Educação (PUC-Rio), com doutorado em Educação</p><p>(Unicamp). Professora titular do PPGE/Unesc e do curso de Artes Visuais da</p><p>Unesc. Foi professora de educação infantil, coordenadora, supervisora e diretora de</p><p>escola no Rio de Janeiro. É pesquisadora do Olho (Unicamp); do Gepie (UFSC) e</p><p>coordenadora do Gedest (Unesc).</p><p>Monica Fantin é doutoranda em Educação (UFSC) e pesquisadora do grupo</p><p>Infância, Comunicação, Cultura e Arte, além de trabalhar na formação de</p><p>educadores e na assessoria a projetos educativo-culturais. Foi docente no curso de</p><p>Pedagogia da UFSC e ainda professora e coordenadora pedagógica de educação</p><p>infantil na rede pública municipal de Florianópolis.</p><p>Rita Márcia Magalhães Furtado é pedagoga (Universidade Católica de Goiás),</p><p>mestre em Educação (Universidade Federal de Goiás) e doutoranda em Educação</p><p>(Unicamp). Nos últimos 14 anos exerceu o magistério nos ensinos fundamental,</p><p>médio e superior em diversas instituições.</p><p>Samantha Fernandes da Silva é pedagoga (UFSC). Professora da Creche do</p><p>Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina (HU/UFSC).</p><p>Telma Anita Piacentini é pedagoga (UFSC), especialista em administração e</p><p>sistemas educacionais (USP/Unicef), mestre em Educação (Unicamp), com</p><p>doutorado em Educação (USP). Foi professora do PPGE/CED UFSC de 1971 a</p><p>1992. Criou o Museu do Brinquedo de SC como pesquisadora do CNPq. Secretária</p><p>Municipal de Educação de Florianópolis (1986-87).</p><p>OUTROS LIVROS DA COLEÇÃO ÁGERE</p><p>ARTE, INFÂNCIA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: AUTORIA E TRANSGRESSÃO</p><p>Luciana Ostetto e Maria Isabel Leite</p><p>EDUCAÇÃO E ARTE: AS LINGUAGENS ARTÍSTICAS NA FORMAÇÃO HUMANA</p><p>Celdon Fritzen e Janine Moreira (orgs.)</p><p>EDUCAÇÃO INFANTIL: SABERES E FAZERES DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES –</p><p>E-BOOK</p><p>Luciana Ostetto (org.)</p><p>EDUCAÇÃO SOMÁTICA E ARTES CÊNICAS – E-BOOK</p><p>Márcia Strazzacappa</p><p>ENSINO DAS ARTES (O): CONSTRUINDO CAMINHOS</p><p>Sueli Ferreira (org.)</p><p>ENTRE A ARTE E A DOCÊNCIA: A FORMAÇÃO DO ARTISTA DE DANÇA – E-BOOK</p><p>Márcia Strazzacappa e Carla Morandi</p><p>ENTRE LINHAS, FORMAS E CORES: ARTE NA ESCOLA</p><p>Tatiana F. Gonçalves e Adriana R. Dias (orgs.)</p><p>INFÂNCIA: IMAGINAÇÃO E EDUCAÇÃO EM DEBATE</p><p>Celdon Fritzen e Gladir S. Cabral (orgs.)</p><p>JOGOS TEATRAIS: EXERCÍCIOS PARA GRUPOS E SALA DE AULA</p><p>Maria C. Novelly</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3801</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3682</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=4106</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=4094</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3818</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=4101</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3467</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=2124</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=4027</p><p>LIGA, RODA, CLICA: ESTUDOS EM MÍDIA, CULTURA E INFÂNCIA – E-BOOK</p><p>Monica Fantin</p><p>e Gilka Girardello (orgs.)</p><p>METODOLOGIA DO ENSINO DE TEATRO</p><p>Ricardo Japiassu</p><p>MONTANHA E O VIDEOGAME (A): ESCRITOS SOBRE EDUCAÇÃO</p><p>João-Francisco Duarte Júnior</p><p>PEDAGOGIA DO TEATRO: PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS NA SALA DE AULA</p><p>Narciso Telles</p><p>POR QUE ARTE-EDUCAÇÃO?</p><p>João-Francisco Duarte Júnior</p><p>SOBRE ARTE E EDUCAÇÃO: ENTRE A OFICINA ARTESANAL E A SALA DE AULA</p><p>Sumaya Mattar</p><p>USO DOS JOGOS TEATRAIS NA EDUCAÇÃO (O): POSSIBILIDADES DIANTE DO</p><p>FRACASSO ESCOLAR</p><p>Libéria Rodrigues Neves e Ana Lydia B. Santiago</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=4095</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3653</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3494</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=4034</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3574</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3464</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3124</p><p>Siga-nos nas redes sociais:</p><p>>> >> >> >></p><p>Acesse também nosso catálogo on-line</p><p>http://www.facebook.com/PapirusEditora</p><p>http://www.twitter.com/PapirusEditora</p><p>http://papiruseditora.blogspot.com.br/</p><p>https://www.youtube.com/user/EditoraPapirus</p><p>http://issuu.com/papiruseditora</p><p>Capa: Fernando Cornacchia</p><p>Foto de capa: Rennato Testa</p><p>Coordenação: Beatriz Marchesini</p><p>Copidesque: Lúcia Helena Lahoz Morelli</p><p>Revisão: Antônio Carlos R. da Silva Jr., Maria Lúcia A. Maier e Solange F. Penteado</p><p>ePUB</p><p>Coordenação: Ana Carolina Freitas</p><p>Produção: DPG Editora e Papirus Editora</p><p>Revisão: Edimara Lisboa</p><p>eISBN 978-85-449-0052-9</p><p>Exceto no caso de citações, a grafia deste livro está atualizada segundo o Acordo</p><p>Ortográfico da Língua Portuguesa adotado no Brasil a partir de 2009.</p><p>Proibida a reprodução total ou parcial da obra de acordo com a lei 9.610/98. Editora afiliada</p><p>à Associação Brasileira dos Direitos Reprográficos (ABDR).</p><p>DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA:</p><p>© M.R. Cornacchia Livraria e Editora Ltda. – Papirus Editora</p><p>editora@papirus.com.br | www.papirus.com.br</p><p>mailto:%20editora@papirus.com.br</p><p>http://www.papirus.com.br/</p><p>MUSEU, EDUCAÇÃO E CULTURA</p><p>COLEÇÃO ÁGERE</p><p>SUMÁRIO</p><p>PREFÁCIO</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>PARTE I - MUSEU, EDUCAÇÃO E CULTURA</p><p>1. MUSEUS DE ARTE: ESPAÇOS DE EDUCAÇÃO E CULTURA</p><p>2. MUSEU DO BRINQUEDO COMO CENTRO CULTURAL INFANTIL</p><p>3. OLHARES E SABERES DO ENCONTRO COM A ARTE</p><p>4. TURBILHÃO DE SENTIMENTOS E IMAGINAÇÕES: AS CRIANÇAS VÃO AO MUSEU, OU AO CASTELO...</p><p>5. O SEU OLHAR MELHORA O MEU: O PROCESSO DE MONITORIA EM EXPOSIÇÕES ITINERANTES</p><p>6. ESPAÇOS DE CULTURA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES/MONITORES</p><p>PARTE II - ENCONTROS DE CRIANÇAS E PROFESSORES COM A ARTE: OLHARES E DIZERES</p><p>1. DE LUZES E DE VOOS: EM BUSCA DA BELEZA PARA SER HUMANO</p><p>2. AMPLIANDO MEU REPERTÓRIO VIVENCIAL, VIAJANDO E ENTRANDO NO MUSEU</p><p>3. MEU ENCONTRO COM PICASSO... E COMIGO</p><p>4. O ESCOLAR - COMO VAN GOGH ME FEZ PENSAR SOBRE ESCOLA</p><p>5. COMI O ABAPORU COM OS OLHOS: UM MERGULHO ANTROPOFÁGICO NAS CORES DE TARSILA</p><p>NOTAS</p><p>SOBRE AS AUTORAS</p><p>OUTROS LIVROS DA COLEÇÃO ÁGERE</p><p>REDES SOCIAIS</p><p>CRÉDITOS</p><p>variados espaços culturais e experienciam,</p><p>também, diferentes formas de produção cultural. É no diálogo com o</p><p>outro e com a cultura que cada um é constituído, desconstruído,</p><p>reconstruído, cotidianamente. O acesso aos bens culturais é meio de</p><p>sensibilização pessoal que possibilita, ao sujeito, apropriar-se de</p><p>múltiplas linguagens, tornando-o mais aberto para a relação com o</p><p>outro, favorecendo a percepção de identidade e de alteridade.</p><p>Sendo a obra de arte resultado de um processo livre de criação, expressão e</p><p>produção eminentemente humano, através dela, tanto seu criador quanto o público</p><p>fruidor têm oportunidade de desenvolver e aprimorar sua humanidade, ao crescer e</p><p>se enriquecer como seres humanos pela expressão e socialização de uma visão de</p><p>mundo unificada, que abarca a totalidade das determinações históricas da qual o</p><p>ser humano é, simultaneamente, síntese determinada e determinante. (Peixoto</p><p>2003, p. 95)</p><p>Entretanto, ressalto que, quando se fala de relação sujeito-obra, não</p><p>se podem confundir idas ao museu com a possibilidade de ver um CD-</p><p>ROM com as obras de arte; assim como ir ao cinema é diferente de ver</p><p>vídeo; ou ir ao teatro não é o mesmo que assistir a um grupo teatral</p><p>encenando uma peça numa escola, e assim por diante. O teatro não vai</p><p>até a escola – sua ambientação, sua arquitetura, seu cheiro, sua</p><p>temperatura, seu glamour, as pessoas que ali estão... isso é</p><p>insubstituível.[4] No dizer de Coli (2002, p. 129), “não é apenas</p><p>necessário termos acesso às artes pelos álbuns, pelo rádio, pelos discos,</p><p>pela televisão; é necessário também ir a museus, a concertos, a teatro, a</p><p>cinema, a exposições. É necessário visitar monumentos. É necessário</p><p>poder ler”.</p><p>Em suma: que bom que possamos ter acesso a vídeos, CD-ROMs</p><p>etc., para ampliar nossas possibilidades e nosso contato com as</p><p>diferentes linguagens. Mas uma experiência indireta com a obra não</p><p>substitui a experiência direta. Uma biblioteca volante com bons livros</p><p>de arte seria uma coisa ótima de se desenvolver nas comunidades</p><p>distantes dos museus – mas, certamente, não poderia esvaziar nossos</p><p>esforços para que aqueles cidadãos pudessem, eles também, ir aos</p><p>museus propriamente ditos. Assim também a exposição itinerante de</p><p>réplicas é uma iniciativa interessante, mas que não pode “substituir” o</p><p>museu, porque não o é. Assim como a réplica não é a obra...[5] “É</p><p>possível encontrar exemplos representativos de arte mesmo no menor</p><p>dos museus, o que serve para ajudar os alunos a participarem do ato de</p><p>criticar e descobrir conexões individuais entre o seu modo pessoal de</p><p>pensar e os valores estéticos da humanidade” (Ott 1997, pp. 117-118).</p><p>Os museus, historicamente, foram criados por e para os setores</p><p>dirigentes, na maioria das vezes com objetos provenientes de saques e</p><p>conquistas. Sua estrutura guardava, e suas mensagens ideológicas</p><p>objetivavam, a manutenção do status quo. O acesso era restrito a eleitos</p><p>mediante a argumentação de que o povo não se interessava pelos</p><p>instrumentos de cultura, não sabendo comportar-se nos museus.[6]</p><p>Na América Latina, os primeiros museus datam do século XIX.</p><p>Mais do que a serviço da ideologia do colonizador, veiculavam ideias</p><p>que objetivavam “trazer o que seus idealizadores entendiam como</p><p>progresso, no sentido positivista, a um país considerado atrasado”</p><p>(Angeli 1993, p. 10).</p><p>Todas as obras trazem, de alguma maneira, questões sociais,</p><p>religiosas ou políticas de sua época. “Seja através de comemorações e</p><p>narrativas visuais que ressaltam e festejam o poder vigente, seja,</p><p>inversamente, em especial com a arte moderna, através de contestações</p><p>das instituições em curso. A barbárie e a violência estão, de certa forma,</p><p>sempre perpassando-as” (Leite 2004a, p. 105). Entretanto, os museus</p><p>parecem querer obscurecer esse aspecto de lutas e forjar a paz entre as</p><p>imagens ali presentes, colocando-as lado a lado em seus espaços – o</p><p>critério para a seleção é, muitas vezes, ter qualidade artística,</p><p>desvinculando-as de seus papéis sociais, de suas origens.</p><p>A ideia de museu como conservatório de obras consagradas resulta</p><p>de discussão datada, na França, do final do século XVIII. A mudança de</p><p>sistema político trouxe à tona a problematização acerca do destino das</p><p>telas e esculturas que retratavam o poder: destruí-las por seu caráter</p><p>ideológico, ou mantê-las por sua qualidade artística e, assim, neutralizá-</p><p>las, isolando-as de seu contexto simbólico (Galard 2000)?</p><p>Tirar as obras das praças públicas é mais do que transportá-las para</p><p>os museus, também públicos, e dar um espaço que destaque, nessas</p><p>obras, o seu valor artístico intrínseco e não sua carga simbólica.</p><p>Diversificar espaços é estabelecer um novo código que informará</p><p>diferentemente o olhar. O olhar solicitado numa praça pública não será</p><p>o mesmo daquele solicitado em um espaço museológico. Existe uma</p><p>semiologia do olhar que não é sempre a mesma: dependendo do lugar</p><p>(ou contexto) em que se encontra a obra de arte, o olhar que ela vai</p><p>exigir (ou não) do contemplador será diferente. São inúmeras as formas</p><p>de ver as obras, dependendo de onde elas se encontram e de por que lá</p><p>se encontram. Retirando-as de uma praça, colocando-as no interior de</p><p>um museu, o olhar já será outro.</p><p>O local onde se encontra a obra já é, para o contemplador, um a</p><p>priori que dirige o seu olhar – estar num museu confere, à obra, um</p><p>status diferenciado que conduz/induz sua contemplação pelo espectador.</p><p>Nosso olhar não é ingênuo nem neutro – ele congrega as marcas de</p><p>nosso tempo, a experiência vivida, ideologias etc.</p><p>Santos (1997) destaca que a própria seleção dos objetos, num</p><p>museu, é ideológica:</p><p>(...) desconfio que o museu raramente guarda a farda de um operário (nem mesmo</p><p>a do operário padrão), mas tenho certeza de que guarda a casaca que o Sr. Fulano</p><p>de Tal usou em determinada cerimônia. Decorre daí um outro poder que o museu</p><p>possui: o de comunicar aos seus visitantes o poder de uma determinada classe</p><p>social, ou de uma etnia, ou de uma geração. (p. 19)</p><p>A mesma autora defende a ideia de que o museu é um espaço de</p><p>memória e poder, assim como da “criação e do espírito humano a</p><p>serviço da sociedade” (p. 20) – mesmo “que o bem cultural seja</p><p>significante de um momento histórico ou de uma determinada classe</p><p>social, política e econômica de uma sociedade” (p. 23).</p><p>Essas discussões vêm, até hoje, colocando-se, em parte, pelo papel</p><p>que o Estado representa na vida artística de alguns países, em razão de</p><p>sua política patrimonial: por um lado, o Estado é acusado de encorajar,</p><p>por tanto tempo, uma cultura oficial, subvencionada e repetitiva, que</p><p>esteriliza a verdadeira criação; por outro, é acusado de favorecer a arte</p><p>contemporânea, julgada elitista e esnobe, incompreensível ao grande</p><p>público (Galard 2000). A produção contemporânea, em particular, tem</p><p>ficado defasada nos museus.</p><p>A discussão que permanece se situa no papel do próprio museu</p><p>como depositário de obras tão diversas quanto adversas, parecendo, aos</p><p>olhos de muitos, uma incoerência inadmissível. Visto assim, tudo o que</p><p>é colocado no museu, em vez de conservado, é condenado à morte por</p><p>essa falsa ideia de objeto inofensivo, inativo, que, em local específico,</p><p>conjura a violência.</p><p>A crítica acima esbarra em outra, simultânea: que o museu, ele</p><p>próprio, é espaço de sacralização. Originalmente comparado a templos</p><p>ou santuários, protege, torna intocáveis e preciosos os objetos. Note-se</p><p>que o sagrado, por sua vez, instiga a transgressão, ao mesmo tempo que</p><p>a interdita – falamos, assim, de um jogo de sacralização,</p><p>dessacralização, ressacralização.</p><p>Entretanto, no século XX, em especial na França a partir de 1950, o</p><p>conceito de museu foi sendo ressignificado. Assim, frentes renovadoras</p><p>buscaram intensificar as relações museu-público (fazendo a população</p><p>sentir-se no direito e no dever de participar livre e voluntariamente das</p><p>exposições); tentaram romper com a estrutura tradicional de museu</p><p>(utilizando técnicas que viabilizassem a consciência da população sobre</p><p>seus problemas cotidianos e possíveis alternativas a eles); projetaram o</p><p>museu sobre seu contexto social</p><p>imediato (apontando a necessidade de</p><p>engajamento da população, transformando-a em guardiã de seu</p><p>patrimônio); e enfatizaram a dimensão pedagógica dessas instituições.</p><p>“Aprender a entender as idéias e as aspirações de uma civilização e o</p><p>reconhecimento das inúmeras idéias artísticas como das maiores</p><p>contribuições para a sociedade requer uma ativa, e não passiva, atuação</p><p>em relação à arte” (Ott 1997, p. 112).</p><p>Parece-me que não temos hoje, no Brasil, uma cultura de museu</p><p>constituída. Vale lembrar que o próprio termo era, até bem pouco tempo</p><p>atrás, associado a coisas velhas, desatualizadas, inertes... Entretanto, é</p><p>nítida uma política de visitações com o intuito de formação de plateia,</p><p>de contempladores. O fato de o número de visitantes de museus estar</p><p>aumentando é ótimo, mas para que isso não se resuma a uma estatística</p><p>de saldo positivo nos balanços e relatórios anuais das instituições ou do</p><p>governo é preciso que cuidemos da qualidade do atendimento:</p><p>acessibilidade das obras, informações veiculadas, formação dos</p><p>monitores e atividades oferecidas às crianças após a visitação – para não</p><p>falar de horários, preços, policiamento etc.</p><p>O papel educativo dos museus de arte</p><p>A arte não reproduz o visível.</p><p>Mas torna visível.</p><p>Paul Klee</p><p>Especialmente desde 1951, o Conselho Internacional de Museus</p><p>(Icom) e a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e</p><p>Cultura (Unesco) vêm lutando pela consciência desse papel educativo</p><p>nos museus – uma proposta que tenha como pressuposto o direito de</p><p>todos os cidadãos à educação permanente, em todas as dimensões</p><p>culturais, sem esquivar-se da dimensão crítica do conhecimento. O</p><p>museu é, então, uma das instâncias educativas da sociedade –</p><p>entendendo educação como indissociável da cultura. Sua particularidade</p><p>(...) reside na qualidade e no embasamento científico dos conteúdos comunicados e</p><p>no fato de que o papel dos museus não é meramente recreativo mas essencialmente</p><p>educativo. O desafio maior dos museus é transformar os resultados de pesquisa em</p><p>algo ameno e acessível ao público, sem empobrecer a linguagem científica.</p><p>(Angeli 1993, p. 9)</p><p>Certamente por sua especificidade – por sua associação direta à</p><p>elite e pela aura de que se revestem as obras de arte –, os museus mais</p><p>resistentes a prepararem-se para receber o público leigo foram os de</p><p>arte. Uma das formas de fazê-lo foi instigar a população a conhecer</p><p>melhor a pessoa do artista. As exposições são, então, complementadas</p><p>com atividades paralelas realizadas pelos chamados setores educativos</p><p>ou serviços educativos, e variam com a temática: oficinas de criação,</p><p>vídeos informativos, dramatizações, experimentação direta, atividades</p><p>lúdicas etc. Esses setores não deveriam ater-se exclusivamente ao</p><p>atendimento às escolas, mas pensar em estratégias que favorecessem a</p><p>apropriação cultural do público em geral. Entretanto, não é consensual a</p><p>qualidade do trabalho desenvolvido pelos serviços educativos em alguns</p><p>museus, chegando a ter seu dinamismo comparado ao de um parque de</p><p>diversões.</p><p>Alguns museus, ao se abrirem explicitamente ao público infantil,</p><p>esmeram-se em recursos quase circenses e pirotécnicos para atraí-lo.</p><p>Quando se objetiva levar crianças às exposições, normalmente se cria</p><p>uma atividade anterior, um “chamariz”, uma “sedução” para atrair a</p><p>presa à sua jaula – teatros, danças, filmes, brincadeiras ligadas ao pintor</p><p>cuja obra está exposta... Será que precisamos criar “iscas” ou</p><p>“disfarces” para as crianças se interessarem pelos espaços culturais?</p><p>Parece que a obra como tal não é suficientemente atrativa. Mas coloco</p><p>uma questão: os fins justificam os meios? Isto é: devemos fazer teatro</p><p>de fantoches, jogos etc. e atrair o público abrindo uma possibilidade de</p><p>experiência estética com as obras de arte, ou permanecer firmes no</p><p>princípio de que as obras, por si, devem continuar sendo o foco central e</p><p>serem atrativas por elas próprias?</p><p>Não defendo que seja necessário um happening para atrair crianças</p><p>– digo, sim, que aqueles que partilham sua visita têm que ser</p><p>interessados e curiosos pelas obras, passar prazer, pulsão, naquilo que</p><p>estão contemplando, saber ouvir suas perguntas[7] (que partem de um</p><p>lugar outro, com uma lógica própria...), procurar respondê-las de forma</p><p>clara, coerente e verdadeira – sem infantilizar o discurso, sem</p><p>diminutivos nem diminuições. Para a experiência estética, o que</p><p>interessa é a construção de significados pelo sujeito-contemplador –</p><p>criança ou adulto –, portanto, a escuta deveria ser a base para a</p><p>mediação. Nesse sentido, cabem outras indagações: as obras estão</p><p>colocadas numa altura visível pelas crianças? É possível rever essa</p><p>questão? Seria viável colocar um tablado diante das obras para que</p><p>crianças pequenas pudessem ter um melhor ângulo de visão? Os guias</p><p>ou monitores têm não só repertório específico sobre a exposição, mas</p><p>possibilidade de discutir aspectos relacionados à infância? Os</p><p>guardas/vigilantes entendem a fala das crianças como troca e forma de</p><p>construção de saber, ou como ruído indesejável? Os textos que</p><p>acompanham as obras são claros e objetivos? Será que alguma das</p><p>esculturas expostas pode ser não apenas olhada, mas também tocada – o</p><p>que proporcionaria uma experiência sensorial diferenciada?</p><p>Organizando uma viagem de férias que faríamos em família,</p><p>comprei uma revista especializada em turismo que continha as “dicas”</p><p>para a empreitada. Qual não foi a minha surpresa quando li que,</p><p>“tirando os Museus da Criança”, meninos e meninas “até” poderiam ser</p><p>levados aos demais, “desde que por pouco tempo, para não ficarem</p><p>entediados”. Sugeriam, então, que os pais procurassem uma lanchonete</p><p>onde pudessem deixá-los enquanto contemplassem o restante das obras.</p><p>O que incomoda, neste caso, é a tutela: que concepção de museu e de</p><p>criança está aqui explicitada?</p><p>Quando se fala especificamente da infância, encontram-se também,</p><p>em várias partes do mundo, os chamados “Museus para crianças” ou</p><p>“Museus da Criança”. Dentro de uma perspectiva de criança como</p><p>sujeito histórico e social, contextualizado, cidadão-de-pouca-idade,</p><p>cabe questionar se esses museus se tornam espaços de segregação... É</p><p>preciso que crianças disponham de espaço museal separado e</p><p>exclusivo?[8] Pensando na especificidade da infância, Angeli (1993, p.</p><p>33) problematiza a favor de que o museu seja “amplo, aberto, cheio de</p><p>mensagens ocultas em suas obras, que a criança vai retirando pouco a</p><p>pouco e interpretando livremente”. Em outras palavras: não se trata de</p><p>ser exclusivamente das crianças, mas que proporcione condições de</p><p>descobertas para todos, incluindo, nesse todos, as crianças. Está, assim,</p><p>referindo-se à criança-sujeito, aquela que se relaciona criticamente com</p><p>a cultura e que nela se constitui.</p><p>Segundo Santos (1997), a bibliografia especializada já dá sinais de</p><p>que o público infantil tem merecido maior atenção nos museus,</p><p>ressaltando, entretanto, que os meninos e meninas menores (da</p><p>educação infantil, com idade entre zero e seis anos) e os adolescentes</p><p>estão menos contemplados nas propostas educativas. A diferença central</p><p>reside na base científica que fundamenta a ideia de instigar a</p><p>curiosidade e a vontade de aprender do visitante, afinal, poderíamos</p><p>dizer que o que falta nos museus é a possibilidade de acolher a</p><p>capacidade imaginativa dos visitantes, sejam eles crianças ou adultos.</p><p>Angeli (1993, p. 54) resume o dilema: “Muito entretenimento e o museu</p><p>deixa de ser interessante; muita ciência e ele não recebe visitas”.</p><p>O que se vê neste século é que o próprio espaço físico dos museus</p><p>está menos imponente e intimidador – tem-se tornado, cada vez mais,</p><p>espaço de educação informal, de troca de opiniões e emoções, de</p><p>convivência. A palavra de ordem parece ser acessibilidade:</p><p>arquitetônica, física, cultural e intelectual – esta última procurando</p><p>favorecer, ao visitante, melhor compreensão das obras. Nesse bojo, os</p><p>espaços de circulação se tornam novos espaços de lazer, com livrarias,</p><p>restaurantes, lojas etc.</p><p>A polêmica sobre o espaço híbrido dos museus – comumente</p><p>travestidos por roupagem de shopping center cultural</p><p>– é elucidada por</p><p>Santos (1997, p. 14), que se posiciona defendendo que livraria, lojinha,</p><p>cinema etc. “podem e devem acontecer nos museus porque, como</p><p>instituição de interesse público e patrimonial, devem estar atentos e</p><p>disponíveis com seus espaços para a realização de outras experiências e</p><p>de outros saberes”. Entretanto, pondera que jamais essas outras</p><p>atividades podem obscurecer “suas coleções e sua natureza”, sendo</p><p>necessária “uma consciência e postura social críticas” (idem, ibidem).</p><p>Isto é, essa “cultura do espetáculo” não pode impedir reflexões sobre “a</p><p>temporalidade, a subjetividade, a identidade e a alteridade”, ao mesmo</p><p>tempo que deve levar em conta “o desejo do espectador e as inscrições</p><p>do sujeito, a resposta do público, o interesse dos grupos (...)” (idem,</p><p>ibidem).</p><p>Como espaço cultural aberto e plural, aumenta o fluxo de</p><p>contempladores aos museus: turistas, amadores, estudiosos, crianças...</p><p>Para o grande público resta, então, a imensidade de produtos da indústria cultural,</p><p>que gera uma arte muitas vezes de grande aparato tecnológico, mas esteticamente</p><p>empobrecida e, basicamente, sem qualidade humana ou marcada por apelos a</p><p>emoções rasteiras, que é difundida-impingida, em larga escala, por redes de</p><p>comunicação de massa, em especial pelos meios de maior penetração, como o</p><p>rádio, a televisão e o cinema. (Peixoto 2003, p. 82)</p><p>Assim, os conflitos se colocam por outros prismas – tipos de</p><p>informação, guias, ruídos, interatividade, comercialização –, passando a</p><p>fazer parte dos questionamentos cotidianos acerca dos museus. As</p><p>informações veiculadas são, a meu ver, ponto para debate, assim como</p><p>os serviços educativos, de que tratarei, mais especificamente, num item</p><p>adiante.</p><p>Quando pensamos nas informações veiculadas, a pergunta que não</p><p>quer calar é: o que informar? Opto por conduzir esta reflexão com base</p><p>nos exemplos da exposição “Esplendores da Espanha – De El Greco a</p><p>Velásquez”, realizada no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de</p><p>Janeiro (MNBA/RJ). Observei que as placas indicativas ao lado de cada</p><p>obra apontavam algo além do nome do autor, das datas de seu</p><p>nascimento e de sua morte, do título de sua obra, do local em que se</p><p>encontrava preservada, de seu tamanho e do material que utilizava.</p><p>Havia uma espécie de descrição da obra. O que me chamou mais a</p><p>atenção foi o tipo de informação veiculada.[9]</p><p>Algumas eram informações descritivas da obra, dadas de maneira</p><p>quase isolada, que em nada contribuíam na contemplação e que, por</p><p>vezes, dirigiam o olhar para detalhes, diluindo a força do todo imagético</p><p>ali presente. Não fica claro o objetivo de relatos desta natureza:</p><p>Pintor cortesão, ganhou celebridade pelas suas obras religiosas, como esta, que</p><p>representa o conhecido tema da Anunciação e que se destaca pela serenidade no</p><p>tratamento da Virgem e pela beleza dos detalhes, como a soberba floreira e a</p><p>almofada com bordado. (Anunciação – Bartolomé González)</p><p>Outras mostravam informações carregadas de adjetivação e de</p><p>caráter subjetivo, que explicitavam supostos “sentimentos” vividos</p><p>pelos personagens retratados na obra, em nada ampliando o</p><p>conhecimento ou o acervo imagético do observador, e induzindo, de</p><p>certa forma, a um olhar único, dirigido, monológico, restringindo o</p><p>diálogo contemplador-obra:</p><p>Nesta esplêndida pintura, o Santo aparece vestido de túnica azul e manto rosa</p><p>pálido, todo animado com sombras avermelhadas e toques embranquecidos. Seu</p><p>rosto, forte, individualizado, com poderoso nariz e olhar ausente, apresenta uma</p><p>expressiva virtuosidade. (São Paulo – El Greco)</p><p>Havia, ainda, informações sobre os sujeitos ali representados e o</p><p>contexto da cena e informações que extrapolavam o quadro, fazendo</p><p>relações com movimentos artísticos da época – textos simples, mas que</p><p>podem enriquecer o repertório do observador e favorecer o</p><p>estabelecimento de possíveis relações com outras obras já vistas:</p><p>Rainha da Espanha (1649-1667), segunda esposa de Felipe IV, mãe de Carlos II,</p><p>sendo regente por ele até sua maioridade. (Mariana de Áustria orando – oficina de</p><p>Velásquez)</p><p>Galard (1999a) considera um luxo poder dispensar o discurso sobre</p><p>as obras. Mas momentos de silêncio também são importantes – cada</p><p>coisa tem seu tempo. É importante ter a dimensão de que há mistérios</p><p>simbólicos na visada de uma obra de arte. Por que tudo tem que ser</p><p>transparente, claro? Por que esvaziar e esmaecer os mistérios?[10]</p><p>As palavras que acompanham as obras de arte não podem ser</p><p>pretensiosas, não podem ultrapassar a obra. Textos auxiliares, por</p><p>exemplo, têm que levar em conta que há visitantes iniciantes, amadores.</p><p>As palavras devem estar disponíveis e não serem os atores principais.</p><p>“É importante não confiar nos textos como desvendadores ou chaves do</p><p>objeto artístico. Eles são instrumentos complementares, auxiliares da</p><p>frequentação, mas não são ‘tradutores’ ou explicadores absolutos da</p><p>obra – mesmo quando, autoritariamente, pretendem sê-lo” (Coli 2002,</p><p>p. 121).</p><p>O texto escrito não pode invadir as artes visuais. Caso contrário, “o</p><p>conhecedor é tão preso à qualidade técnica da obra, que sonha com a</p><p>Arte e o artista, e não com a coisa. Está sempre fora da cena, nunca</p><p>chega até ela” (Galard 1999b, p. 1). Há outros recursos para que o</p><p>discurso de palavras fique acessível sem ser invasor.</p><p>A discussão sobre o objeto e sua comunicação está posta ainda</p><p>hoje, especialmente dentro do espectro de museus. Segundo Chapman,</p><p>há os profissionais “conservadores”, preocupados com os objetos,</p><p>acreditando que, como “falam por si mesmos, os objetos concretos</p><p>dispensam explicações; se desvendarmos o mistério do objeto a</p><p>experiência museal fica perdida” (apud Angeli 1993, p. 60); e os</p><p>“educadores”, que buscam a relação público-objeto, esclarecendo seu</p><p>conteúdo simbólico. Verdade é que a importância dada às informações e</p><p>à forma como elas são veiculadas é enorme, uma vez que “visitantes</p><p>olham rapidamente para as obras nas exposições, sendo que a maior</p><p>parte do breve tempo que o fazem é usada na atividade de leitura da</p><p>etiqueta colocada ao lado da obra” (Ott 1997, p. 122). A tensão é educar</p><p>o próprio museu e o espaço museológico para essa atividade educativa,</p><p>como coroamento de todas as ações que possam favorecer ao público</p><p>uma experiência estética ímpar e exclusiva.</p><p>Essa experiência significativa está, hoje, atravessada pelo chamado</p><p>marketing cultural que se tem traduzido, para os museus de arte</p><p>brasileiros, desde 1995, na realização de megaeventos –</p><p>macroexposições de nomes já consagrados, tais como Monet, Rodin,</p><p>Salvador Dalí –, marcando um novo paradigma espetaculoso (Farias</p><p>2004). A espetacularização dos museus traz para eles um caráter típico</p><p>de shows ou estádios de esporte e as obras se travestem de mercadoria.</p><p>Isso tem causado efeitos perversos que indicam a necessidade urgente</p><p>de solidificar a oportunidade de experiência estética, retornando-a ao</p><p>papel central, e de pensar projetos críticos de educação e cultura que</p><p>possam ocupar essa lógica do entretenimento, não esquecendo a</p><p>necessidade de dedicarmo-nos a políticas de formação cultural.</p><p>Essa dimensão pedagógica que se procura resgatar traduz-se mais</p><p>explicitamente na busca de propiciar ao público uma experiência</p><p>cultural significativa por meio de atividades conhecidas como “serviços</p><p>educativos”. Para Santos (1997), o educador em museu não pode se</p><p>esquecer de que tem o bem cultural como o seu instrumento de trabalho,</p><p>devendo, então, explorar seu potencial pedagógico. Entendendo que as</p><p>práticas pedagógicas devem sustentar-se em teorias do conhecimento e</p><p>do desenvolvimento humano, relata a criação do conceito de “educação</p><p>patrimonial” (em inglês, heritage education), adotado, no estado do Rio</p><p>de Janeiro, pelo Museu Imperial de Petrópolis. Educação</p><p>patrimonial[11] refere-se a um “ensino centrado no objeto cultural, na</p><p>evidência material da cultura. Ou ainda, como o processo educacional</p><p>que considera o objeto como fonte primária de ensino” (Santos 1997, p.</p><p>32). Essa metodologia rompe com o eixo sedução/entretenimento e</p><p>retoma a educação, congregando a observação, a análise</p><p>e a</p><p>extrapolação.</p><p>Os serviços educativos dos museus:</p><p>O recorte de uma pesquisa de campo</p><p>Desenhei um mosquito.</p><p>Veio o vento e soprou.</p><p>Saiu do papel o mosquito e voou.</p><p>Não é caso de briga.</p><p>Mas se o mosquito o picar</p><p>Não diga que não sei desenhar.</p><p>Sinódio Muralha</p><p>O primeiro serviço permanente para escolares de que se tem notícia</p><p>data de 1880, no Museu do Louvre, em Paris. No Brasil, esse trabalho</p><p>está, ainda hoje, senão incipiente, ao menos merecendo discussão e</p><p>estudo. Esse atendimento especializado pode, também, suscitar uma</p><p>leitura crítica, quando se percebe que o caráter educativo acabou se</p><p>tornando, exclusivamente, atendimento às escolas, deixando de fora o</p><p>contingente que não frequenta o sistema formal de ensino, “como se a</p><p>própria existência da exposição museológica não fosse educativa para</p><p>qualquer visitante” (Angeli 1993, p. 44), fazendo parecer que, mais do</p><p>que a qualidade da experiência, o que permeia esse trabalho seria a</p><p>elevação estatística do número de visitantes à instituição.</p><p>Um dos riscos que se corre nessas atividades é o de “escolarizar” os</p><p>museus, impregnando-os com métodos e finalidades escolares,</p><p>confundindo-os e “reduzindo-os a instituições que são usadas apenas</p><p>para ilustração dos conhecimentos ministrados pela escola” (Angeli</p><p>1993, p. 47).</p><p>Kramer (1998, p. 210) contribui com essa reflexão enfatizando:</p><p>(...) para ser educativa, a arte precisa ser arte e não arte educativa; do mesmo</p><p>modo, para ser educativo, o museu precisa ser espaço de cultura e não um museu</p><p>educativo. É na sua precípua ação cultural que se apresenta a possibilidade de ser</p><p>educativo. O museu não é lugar de ensinar a cultura, mas, sim, lugar de cultura.</p><p>Pensando a relação museu-escola, Santos (1997) indica que não são</p><p>instituições complementares, suplementares, nem paralelas, mas</p><p>autônomas. Entende que a educação, de maneira geral, deve ser</p><p>(...) comprometida com o homem e a sociedade da qual faz parte, a partir de uma</p><p>escola e um museu que não sejam sacralizadores de valores herdados sobretudo do</p><p>passado e de valores capazes de manter um certo sistema de direitos e deveres, mas</p><p>uma escola e um museu que sejam um fórum, um espaço de encontro, um espaço</p><p>de debate – um espaço em que as coisas se produzem e não apenas o já produzido</p><p>é comunicado. (p. 24)</p><p>Sinaliza, no entanto, que a “escolarização” do museu seria um</p><p>equívoco, visto que este deveria procurar promover atividades baseadas</p><p>em metodologias próprias – um “fazer educativo-museológico” – que</p><p>também poderia chamar-se de “museologia criativa” (p. 28).</p><p>O desafio é, então, permanente: os museus têm que ser viáveis</p><p>economicamente, prosseguir com as pesquisas e encontrar formas de</p><p>relacionamento com a população de maneira a trazê-la para junto de si,</p><p>atender a suas expectativas, respeitar seus pontos de vista, seus</p><p>conhecimentos anteriores; perceber o público não como um bloco</p><p>homogêneo, mas como pessoas singulares de diferentes grupos sociais,</p><p>étnicos, religiosos, civis, etários etc.</p><p>A despeito da discussão sobre a elitização ou não dos museus,</p><p>visitar exposições de arte é uma das formas de educação estética, de</p><p>educação visual, de formação dos sujeitos:</p><p>A obra plástica, vinculada a questões vitais, quando disponibilizada ao grande</p><p>público, pode propiciar a todos, inclusive pessoas leigas ou desacostumadas ao</p><p>encontro com a arte, condições para a fruição-criação estética, como forma de</p><p>apropriação humana, como parte significativa no processo de autoconstituição do</p><p>homem no processo de construção histórica. (Peixoto 2003, p. 95)</p><p>As escolas têm tomado para si o encargo de oferecer experiências</p><p>culturais para professores e alunos.[12] Muitas vezes a possibilidade é</p><p>bastante reduzida e, geralmente, intramuros. Mas também temos</p><p>experiências extramuros... Parece, outrossim, que os interesses de</p><p>natureza estética e os de natureza científica são os mesmos quando</p><p>dessas atividades. Faz-se necessário, então, um debate acerca das</p><p>questões epistemológicas específicas referentes à produção/circulação</p><p>do conhecimento estético e poético. Essa reflexão não é despregada de</p><p>outras: qual o preparo de professores que acompanham alunos aos</p><p>museus? E dos monitores/guias que recebem os grupos? E o que se</p><p>oferece de experiências significativas antes/durante/depois das</p><p>visitações? Como é entendida a relação entre a criança e a obra de arte?</p><p>Qual a formação desses profissionais? Quais suas próprias condições de</p><p>trabalho, aprendizagem, autoria?</p><p>Educação é um processo dinâmico e ininterrupto que não cabe mais</p><p>num paradigma verticalizado de transmissão de saberes consagrados. A</p><p>revisão do papel dos museus acompanha o redimensionamento do</p><p>conceito de formação e de conhecimento, que não pode mais ser</p><p>reduzido à sua dimensão de ciência, deixando de fora a dimensão</p><p>artística e cultural (Kramer 1998, p. 208).</p><p>Entretanto, a relação da criança com os espaços culturais é, ainda</p><p>muitas vezes, de espectadora distante e não de contempladora ativa. Sua</p><p>produção não é necessariamente exigida – não lhe é solicitada como</p><p>produto cultural. Com que objetivos levamos as crianças aos museus e,</p><p>concomitantemente, com que objetivos esses museus propõem</p><p>atividades “escolares” para elas?</p><p>Estudando a razão pela qual as pessoas deixam de desenhar ao</p><p>longo de sua trajetória de vida, Albano (s./d.) diz que atividades</p><p>propostas após a visitação poderiam trazer significação à própria ida das</p><p>crianças ao museu, visto que “para a criança que desenha porque brinca,</p><p>porque está viva, não há possibilidade de compreender que exista um</p><p>lugar para guardar desenhos de algumas pessoas que desenham para</p><p>serem vistos por outras que não desenham” (p. 52). A autora, entretanto,</p><p>referia-se a propostas autorais e com sentido.</p><p>O filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin (1992) afirma que a arte é</p><p>um ato de comunicação que se distingue do discurso cotidiano por sua</p><p>relativa independência do contexto imediato. Para ele, todo material</p><p>artístico está em diálogo constante não apenas com outros materiais</p><p>artísticos, mas também com seu público. Contribui para a análise da</p><p>compreensão da obra de arte quando elucida o papel da triangulação</p><p>autor-obra-contemplador na constituição de seus diversos significados.</p><p>No caso do discurso oral, para entender o que alguém fala, acionam-se</p><p>as contrapalavras – acervo de palavras dentro de cada um –, e é com</p><p>base nesse embate das contrapalavras com a palavra alheia que vai se</p><p>dar a significação. Observa que, assim como no texto,[13] mudando-se</p><p>um dos vértices do triângulo, altera-se, necessariamente, o sentido da</p><p>imagem.</p><p>Assim, interessada em perceber a relação de meninos e meninas</p><p>com as obras, elegi dois museus no Rio de Janeiro como espaços</p><p>privilegiados de investigação e acompanhei sistematicamente as</p><p>propostas do setor educativo que ocorreram em abril e maio de 1998 –</p><p>parte da pesquisa de campo de meu doutoramento. Uma delas foi “O</p><p>Brasil de Portinari – Uma exposição de réplicas”, no Solar Grandjean de</p><p>Montigny, com visitação dirigida e desenho depois. A outra foi “Dalí</p><p>Monumental”, no MNBA, apenas com atividades após a exposição. A</p><p>opção metodológica de trabalho foi de observação não participante,</p><p>fotografia dos grupos em atividade e de trabalhos feitos por eles,</p><p>entrevistas informais com os monitores, com professores e alunos de</p><p>algumas escolas, e uma análise de desenhos feitos pelas crianças com</p><p>faixa etária entre 6 e 14 anos após a exposição de Salvador Dalí.[14]</p><p>Diversas questões foram se entrelaçando e constituindo uma</p><p>espécie de trama, de tecido, e cada nó, cada enlace, cada fio foi sendo</p><p>puxado, transformando-se e transformando o todo de nossa pesquisa.</p><p>Algumas dessas questões discutirei a seguir.</p><p>A exposição “O Brasil de Portinari” foi organizada pelo Projeto</p><p>Portinari.[15] Vale ressaltar que era uma exposição de réplicas e que,</p><p>portanto, os contempladores não tinham, diante de si, as reais</p><p>dimensões de algumas obras.[16] A técnica não estava sendo</p><p>privilegiada, o modo não estava em foco – o que estava em destaque era</p><p>a obra como um todo imagético, como tema/assunto.</p><p>A justificativa para</p><p>isso situava-se na questão da democratização da obra, sua circularidade,</p><p>facilidade de acesso, de transporte – o que tornava essa exposição</p><p>itinerante –, e até a possibilidade de a exposição estar em vários lugares</p><p>ao mesmo tempo.[17] As escolas e instituições agendavam com</p><p>antecedência seus grupos e estes eram divididos para que seguissem a</p><p>exposição em visitas guiadas[18] com uma monitora selecionada e</p><p>treinada pelo Projeto Portinari.</p><p>A exposição “Dalí Monumental” foi um megaevento realizado no</p><p>Rio de Janeiro, comparado às exposições de Monet, Rodin, dentre</p><p>outros, tendo atraído um enorme público. O MNBA ofereceu um curso</p><p>para os professores interessados em levar suas turmas e, assim, não</p><p>propôs nenhum tipo de visita guiada, o que fez com que eu não</p><p>acompanhasse, nessa pesquisa, a relação criança-obra. Ao final da</p><p>visitação livre, as crianças iam para um espaço chamado “Sala da</p><p>Criança”, organizado por um professor de arte autointitulado artista</p><p>plástico. Lá eram recebidas por monitoras selecionadas e treinadas por</p><p>ele.</p><p>Desse contexto, pensando nas possibilidades de apropriação</p><p>artístico-cultural das crianças, destaco duas questões sobre as quais irei</p><p>me debruçar neste item do texto; para respondê-las, trago, inicialmente,</p><p>a voz das próprias monitoras em diálogo com as crianças. A primeira</p><p>pergunta é: “Há um jeito certo, ou errado, de ver as obras?”.</p><p>Diante do quadro Laçando o boi, a monitora pergunta: “Que região</p><p>do Brasil parece ser esta?”. As crianças de 3ª/4ª séries de uma escola</p><p>particular respondem: “Sul”. Monitora: “Não!”. Crianças tentam de</p><p>novo: “Nordeste”. “Isso!” – aprova a monitora.</p><p>Diante de Último baluarte, uma criança de uma turma de seis anos</p><p>de outra escola privada exclamou: “São sereias!”. Mas imediatamente</p><p>foi corrigida pela monitora: “Não! São as mães segurando os filhos para</p><p>irem à guerra. Essa é uma representação moderna da guerra”.</p><p>Como último exemplo... Achando por bem comparar o Cangaceiro</p><p>com o Índio, a monitora provoca a atenção das crianças de cerca de seis</p><p>anos, também de uma escola particular: “O cangaceiro tem uma coisa</p><p>parecidinha com o índio...”. “A boca!” – exclama uma das crianças.</p><p>“Não! Deste é fina. Do índio é mais grossa” – responde a própria</p><p>monitora diante da resposta recebida.</p><p>Sigo adiante com mais uma questão: “São os sentimentos os</p><p>principais pontos a serem destacados na contemplação de uma obra?”.</p><p>O quadro exposto era A guerra. Monitora: “A guerra é triste ou</p><p>alegre?”. Crianças (classe de alfabetização – escola particular):</p><p>“Triste!”. Monitora: “Então, como estão os rostos destas pessoas?”.</p><p>Crianças: “Estão tristes!”.</p><p>As monitoras, às vezes, nem procuravam dialogar, limitando-se a</p><p>emitir sua opinião. Em relação ao quadro Paz, uma delas traça o</p><p>seguinte comentário: “Este é um quadro bem alegre. Estão todos</p><p>alegres!”; já em relação ao quadro Retirantes, sua percepção é diferente:</p><p>“Pela fisionomia deles a gente vê o sofrimento!”; para finalizar, diante</p><p>do quadro Descobrimento do Brasil, comenta: “Olha como eles estão</p><p>felizes no momento da chegada ao Brasil!”.</p><p>Apreciação de obras não é dom inato – nosso olhar é construído dia</p><p>a dia e essas possibilidades de experiência estética fazem parte de nossa</p><p>formação cultural. A formação é, hoje, uma das maiores dificuldades</p><p>com que deparamos no campo da educação, no Brasil; é um dos</p><p>maiores desafios das políticas públicas de educação. O que estava em</p><p>jogo, naquela exposição, era bem mais do que guiar visitas: era a</p><p>formação e a ampliação do repertório artístico-cultural não só das</p><p>crianças, mas também das monitoras. Como incentivar nas crianças algo</p><p>que me é estranho? Faz-se necessário discutir uma formação de</p><p>monitores – entendendo-a como direito – mais ampla, mais plural,</p><p>menos bancária, menos instrumental, não desvinculada do acesso aos</p><p>bens culturais, por meio da qual eles possam deixar para trás os modos</p><p>de desenvolvimento inatistas ou cognitivistas, acenando com a</p><p>aproximação do poético e do estético, sem, com isso, propor nova</p><p>hegemonia, uma verdade que venha a substituir a anterior.</p><p>Carvalho (2000) explica a diferença entre guia e monitor,</p><p>defendendo que este último deveria realizar um trabalho pedagógico</p><p>que envolvesse relação, interação, e não apenas repetição de fatos. A</p><p>autora traz o relato de uma proposta de formação permanente</p><p>extramuros universitários – o “Projeto Fios e Desafios Culturais” – pela</p><p>qual alunos de pedagogia e história da Pontifícia Universidade Católica</p><p>do Rio de Janeiro (PUC-Rio) atuam como monitores numa exposição da</p><p>Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e têm</p><p>reuniões semanais, trocas de experiências, estudos dirigidos, palestras,</p><p>entre outros recursos. Fazem relatórios que visam registrar e preservar a</p><p>memória da experiência vivida, seus medos, seus sucessos, suas dúvidas</p><p>e seus acertos.[19]</p><p>Machado[20] relata a experiência de formação de monitores para</p><p>duas exposições itinerantes, sublinhando a importância das idas ao</p><p>museu e das experiências estéticas oferecidas aos grupos. Também em</p><p>São Paulo o programa de ação cultural para a “Escola de Formação”,</p><p>que pretende dar subsídios aos monitores das Bienais,[21] tem por</p><p>objetivo fazer o estudante refletir criticamente, partindo de uma</p><p>atualidade em direção ao passado, dando à história um caráter de</p><p>construção cultural, viva e inteligível, viabilizando o pensamento</p><p>divergente, a percepção de especificidades e diferenças. Sua proposta</p><p>está para além das Bienais – pretende-se um centro de formação</p><p>permanente aberto ao público.</p><p>Na trilha da formação cultural, a Secretaria de Educação de um</p><p>pequeno município fluminense tem proporcionado, aos educadores</p><p>municipais, viagens aos demais municípios, não só visitando</p><p>instituições educativas e participando de cursos ou palestras, mas</p><p>fazendo turismo, indo ao cinema ou aos museus. Eles estão pondo em</p><p>prática uma forma possível de formação permanente não descolada da</p><p>cultura, da busca, do prazer, da vida. É importante que se viabilizem</p><p>financeiramente projetos como esse a fim de resguardar a possibilidade</p><p>real de formação de sujeitos críticos e criativos – sejam eles adultos ou</p><p>crianças. Como pode um professor que “não cria” mediar a formação da</p><p>criança criadora?</p><p>Essa dimensão formadora que a arte possibilita foi ressaltada,</p><p>ainda, por Leite e Ostetto (2004), que narram não apenas suas</p><p>experiências em dois cursos de pedagogia, mas em grupos de creches e</p><p>redes públicas. Também atuando numa creche, Dias (1999) propõe uma</p><p>estratégia de formação estética aos educadores que parte, inicialmente,</p><p>da observação e da contemplação de seu universo mais imediato – suas</p><p>roupas, enfeites, a casa onde moram, a rua, o trajeto para o trabalho –, a</p><p>fim de aguçar o olhar, a escuta, o paladar, o olfato, o tato... Aos poucos</p><p>começa a despertá-los para um universo maior, mais amplo e plural: as</p><p>variadas músicas, os espetáculos, filmes, fotografias, exposições.</p><p>Sobretudo, sua proposta é alicerçada nos princípios de identificação e</p><p>prazer como formas de aceder ao conhecimento – “é, antes de tudo,</p><p>reconciliá-los com a própria expressão, resgatar-lhes a palavra, o gesto,</p><p>o traço, as idéias, a autoria” (p. 179).</p><p>No caso dessa primeira exposição aqui trazida, diferentemente de</p><p>uma formação significativa, as monitoras não tiveram experiências</p><p>estéticas. Foi-lhes facultado acesso restrito a diferentes obras de arte, o</p><p>que inviabiliza uma visada singular dessas obras – não se dão conta de</p><p>que é da própria obra que vem o que dela falam, afinal é a obra quem</p><p>orienta o trabalho do artista.[22]</p><p>Portanto, não é nada fácil manter-se aberto à alteridade que</p><p>interrogamos – e a experiência estética pressupõe isso; ela é a relação</p><p>com o outro; exige, do contemplador, a criação de sentido. O tempo da</p><p>experiência é fundamental: o olhar sensível não reconhece</p><p>imediatamente; exige atenção flutuante. Depois, organiza e classifica. O</p><p>contemplador ativo, ultrapassando os limites da obra e do artista, vai</p><p>revelando símbolos, decodificando, estabelecendo sentidos. Com o</p><p>reconhecimento,</p><p>vem a interpretação, conservando a legitimidade do</p><p>objeto estético. Esta exige distância (mas não a vertigem da distância!) e</p><p>aproximação (mas não a cegueira da aproximação!) num movimento</p><p>alternante – e, assim, surgem novas indagações (Frayse-Pereira 2004).</p><p>É fundamental que não se esvazie, nas visitas guiadas, um dos</p><p>papéis sociais do museu, que seria o de apresentar objetos de cultura de</p><p>forma crítica, estimulando o diálogo destes com o público, lembrando</p><p>sempre que a mediação não pode se sobrepor à obra.</p><p>Em se tratando de um público de crianças, acredito que deveríamos</p><p>estar ainda mais atentos ao não fechamento em torno de sentimentos e</p><p>evocações imagéticas. O repertório de meninos e meninas é diferente do</p><p>nosso, seu padrão estético e sua lógica são próprios e não deveríamos</p><p>nos supor no direito de conduzir seu olhar de forma tão diretiva e</p><p>monológica como observado naquelas monitorias.</p><p>Não se trata de defender a ideia de que “gosto não se discute”,[23]</p><p>até porque há critérios histórica e socialmente datados que passam pelo</p><p>belo – que também é constituído, não é dado! –, mas cabe aqui</p><p>problematizar o fato de que, arraigadas aos sentimentos, as monitoras</p><p>também passam subliminarmente seu posicionamento político-</p><p>ideológico, exaltando, por exemplo, a alegria do descobrimento do</p><p>Brasil, ou estabelecendo uma dicotomia entre o “Sul maravilha” e o</p><p>“Nordeste pobrezinho”. Outras falas foram, ainda, carregadas de</p><p>mensagens sobre a importância do trabalho, a poluição do rio Tietê, a</p><p>formação de favelas nos morros etc. Para Almeida (1999, p. 11), são</p><p>“narrações lineares, de entendimento fácil, associações unívocas (...)</p><p>características de produtos que aplainam a memória e aproximam o</p><p>interior do espectador, do exterior social exibido em suas imagens”.</p><p>Assim, “recontam e produzem História e comportamentos e valores</p><p>políticos envoltos em ideologia visual”.</p><p>Apesar do enquadramento proposto pelas monitoras, as diversas</p><p>crianças, com sua capacidade de subversão da ordem, de transgressão,</p><p>muitas vezes embarcavam em suas próprias experiências</p><p>contemplativas e exerciam o papel de sujeitos, fazendo emergirem, no</p><p>grupo, ideias e compreensões singulares acerca das obras. A</p><p>constituição da criança como sujeito histórico, social e cultural pode ser</p><p>percebida nos elementos que traz consigo para a interpretação e a</p><p>decodificação das imagens. Fica flagrante, em alguns casos, o esforço</p><p>de ressignificar, com conhecimentos próprios, aquele novo elemento</p><p>pictórico à sua frente. Nessa busca pela inteligibilidade, as crianças</p><p>recorrem não apenas às suas próprias experiências ou às de seus</p><p>parceiros. Especialmente nas crianças menores, simbolismo e</p><p>imaginação – uma fronteira permeável entre sonho e realidade –</p><p>também ajudam muito.</p><p>Se cada sujeito se constitui na e por meio da sua história de vida, é</p><p>interessante poder observar como as diferentes crianças interpretam</p><p>uma mesma obra de arte. Fica visível que a criança contempladora,</p><p>sujeito-interlocutor da obra, coloca em jogo seus referenciais, todo o seu</p><p>conteúdo de significações, para construir o entendimento da obra com a</p><p>qual interage. Uma vez que a monitora conduz a visita, todo o tempo as</p><p>crianças contempladoras são induzidas a uma perspectiva de</p><p>reconhecimento, de identificação de elementos isolados. Parece, assim,</p><p>desconhecer que o código linguístico de cada um vai sempre interferir</p><p>sobre os demais códigos – o que não é o mesmo que “naturalizar” os</p><p>processos culturais, mas estar alerta para isso. A obra “fala” para o</p><p>imaginário de cada criança de uma forma singular.</p><p>Cada passeio, cada visita, cada experiência suscita no contemplador</p><p>sensações e indagações únicas; desperta desejos, abre portas para novas</p><p>buscas – e isso não poderia ser desperdiçado, encolhido. É o ponto</p><p>central do transbordamento, tanto de crianças, quanto dos educadores. E</p><p>que espaço estamos propiciando para isso?</p><p>Uma vez vivida a experiência da contemplação, isto é, o processo</p><p>de apropriação da obra, os serviços educativos muitas vezes oferecem a</p><p>oportunidade de expressão – tradução da produção artístico-cultural de</p><p>cada sujeito.</p><p>Os processos de apropriação e produção são, então, diferentes,</p><p>porém associados, uma vez que as exposições – assim como os livros, a</p><p>música, os espetáculos de dança ou teatro, entre outros – são</p><p>possibilidades de ampliação de acervos interiores, de material variado</p><p>para reelaboração, favorecendo que o sujeito seja, sempre, autor e tenha</p><p>assegurado seu espaço de criação.</p><p>Em seu papel de educador, o monitor precisa não só estar aberto e</p><p>permeável, como ter estofo teórico para perceber, favorecer e respeitar</p><p>os processos de apropriação e de produção artístico-cultural das</p><p>crianças com as quais convive. Então eu pergunto: é necessário pedir</p><p>que crianças desenhem aquilo de que mais gostaram numa exposição?</p><p>Cada um de nós possui maior ou menor facilidade de se expressar</p><p>pelos diferentes meios que existem para isso. Há pessoas que o fazem</p><p>muito facilmente pela escrita, outras pela música, e assim por diante. Ao</p><p>longo da vida vamos tendo contato com algumas linguagens,</p><p>identificando-nos mais com uma ou com outra e, assim, desenvolvendo</p><p>mais uma do que outra. As oportunidades são muito diferentes, assim</p><p>como são diferentes as experiências de cada grupo familiar, de cada</p><p>núcleo comunitário, de cada região do país.</p><p>Entretanto, a sociedade, de maneira geral, e as instituições</p><p>educativas, em particular, cultivam a ideia de cópia com um tom de</p><p>positividade, de mérito. Valorizam-se respostas dadas iguais às do</p><p>professor, desenhos iguais ao proposto – a estrutura está arquitetada em</p><p>torno da manutenção do modelo; assim, acredito que as tantas cópias</p><p>sejam fruto de uma trajetória escolarizante, que cobra a devolução, a</p><p>avaliação, o certo. Assim como existe um roteiro, aprendido de fora</p><p>para dentro, a ser seguido, a formação das monitoras das exposições</p><p>aqui discutidas parece-me estruturada dessa forma. Como alunas que</p><p>foram de escolas com essa visão limitada do ensino, elas se tornam</p><p>monitoras reprodutoras. Orientam, dirigem, copiam... encolhem-se.</p><p>Tanto na exposição “O Brasil de Portinari”, como na “Dalí</p><p>Monumental”, a proposta é, explicitamente, a de deixar que as crianças,</p><p>depois da exposição, façam um desenho. Pelo que foi observado nessas</p><p>duas exposições, o desenho era sugerido como representação visual da</p><p>memória imagética que teria ficado retida após a apreciação. Com base</p><p>em propostas dessa natureza, a trajetória de crianças como desenhistas</p><p>passa por um processo de esterilização – o desenho ganha contornos de</p><p>língua morta, de expressão gráfica não convencional e plural, fica</p><p>reduzido a um conjunto inexpressivo de símbolos padronizados. Seu</p><p>suporte bidimensional é a marca do conhecimento acadêmico e formal.</p><p>Em ambos os casos observados, era esperado que as crianças</p><p>reproduzissem os quadros, o que foi por elas percebido, muitas vezes,</p><p>como tarefa árdua. Seria possível pintar como Cândido Portinari? Ou</p><p>como Salvador Dalí? Pareciam as crianças, nessa hora, estar sendo</p><p>invadidas por uma sensação de impotência e desânimo, nesse caso,</p><p>diante da proposta inatingível e longe do modelo. Se desenhar o modelo</p><p>de nossas antigas professoras, livros ou cartilhas já era tarefa bastante</p><p>dura, desenhar tendo como modelo Dalí ou Portinari parece-me ainda</p><p>mais complicado. Saímos de um paradigma copista para outro.</p><p>Meninas e meninos reclamavam: “Não sei desenhar...”, ou: “Não</p><p>olha o meu que ficou horrível!”. Às vezes ponderavam, segurando o</p><p>papel em branco: “Não sei o que faço aqui...”, podendo receber como</p><p>resposta da monitora: “Já te dei tanta ideia!”. Considero relevante que,</p><p>ainda no início da década de 1970, Stant (1988) tenha reforçado que as</p><p>crianças, ao desenharem, buscam necessariamente a aprovação do</p><p>outro, dando pistas importantes para que possamos repensar a questão</p><p>dos estereótipos e das cópias, ainda tão presentes em nossas práticas.</p><p>Para Albano (s./d.), a estereotipia do desenho é sinal de submissão: “A</p><p>criança perde a confiança no seu desenho porque perde a confiança</p>