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1 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA Paolo Becchi Sumário: 1. Introdução. – 2. Uma sintética reconstrução histórico-filosófica. – 3. A longa onda do debate pós-guerra. – 4. Novas tendências. – 5. Do abstrato ao concreto. Da pessoa ao indivíduo. – 6. A vida humana na época de sua reprodutibilidade técnica. – 7. O nó da dignidade humana. – Bibliografia. 1. Introdução Nos momentos mais dramáticos do século passado, o homem voltou a refletir sobre o sentido de sua dignidade. Agora, no início do novo século, parece estar fazendo o mesmo, ainda que de modo diverso. O tema da dignidade humana está, de fato, novamente recebendo atenção, assumindo uma posição central no debate público, seja no âmbito cultural europeu, sobretudo (ainda que não exclusivamente) na Alemanha 1 , seja no âmbito anglo-saxão 2 , enquanto que, entre Professor de Filosofia do Direito e Bioética Jurídica da Università degli Studi di Genova (Itália) e da Universidade de Lucerna (Suiça). Tradução: Guilherme Genro. A tradução para a língua portuguesa foi gentilmente financiada pela Universidade de Lucerna. 1 Onde a dignidade humana já se tornou "um novo conceito-chave", tanto que se constitui em um capítulo da nova edição de um importante manual de filosofia do direito. Cfr. K. SEELMANN, Rechtsphilosophie, München, 2004, pp. 212-228. O capítulo oferece uma síntese eficaz de todos os problemas que são discutidos hoje quando se fala de dignidade humana. O manual foi recentemente publicado (2006) também em tradução italiana, organizada por G. Stella, com o título Filosofia del diritto, pela editora Guida di Napoli. Para o capítulo citado, cfr. pp. 251-267. Seelmann dedicou, nos últimos anos, muitos artigos ao tema da dignidade humana. Limitar-me-ei aqui a assinalar aquilo que me parece melhor focalizar o ponto central do debate atual: Menschenwürde zwischen Person und Individuum. Von der Repräsentation zur Selbst- Darstellung?, em Jus Humanum. Grundlagen des Rechts und Strafrecht (Festschrift für Ernst-Joachim Lampe). D. Dölling (org.), Berlin, 2003, pp. 301-316. Para observar a importância que, na Alemanha, o conceito assumiu em âmbito filosófico-jurídico, veja-se o amplo exame de A. KAPUST, Menschenwürde auf dem Prüfstand, em "Philosophische Rundschau", 54, 2007, pp. 279-307. 2 Cfr. Dignity, Character and Self-Respect, R. Dillon (org.), New York, 1995; D. BEYLEVELD - R. BRONSWORD, Human Dignity in Bioethics and Biolaw, Oxford, 2001; E. EBERLE, Dignity and Liberty: Constitutional Vision in Germany and the United States, Westport, 2002. Para o debate internacional, veja-se ao menos a coletânea de escritos Sanctity of Life and Human Dignity, K. Bayertz (org.), Dordrecht, 1996, La dignité de la personne humaine, M.L. Pavia e T. Revet (org.), Paris, 1999, e Biotecnologia, dignidad y derecho: bases para un dialogo, J. Ballesteros e A. Aparisi (org.), Pamplona, 2004. Veja-se também o volume de R. ANDORNO, La bioéthique et la dignité de la personne, Paris, 1997 (já traduzido em espanhol). 2 nós, a recepção daquelas discussões está apenas no início 3 . Este trabalho traça um breve esboço do caminho filosófico no qual se desenvolve a idéia da dignidade humana para, em seguida, indicar suas mais importantes dimensões no âmbito jurídico, entrelaçando a análise dos aspectos essenciais de alguns documentos jurídicos com o debate jusfilosófico da segunda metade do século passado, e com as mais recentes discussões relacionadas à aplicação da medicina e da biologia. 2. Uma sintética reconstrução histórico-filosófica Quando, no mundo romano antigo, a locução "dignidade humana" adquire relevância filosófica 4 , vem empregada em dois significados diversos que, evoluindo no tempo, ainda estão presentes em nossos dias. Por um lado, a "dignidade" indica a posição especial do homem no cosmos; por outro lado, sua posição na esfera da vida pública. A "dignidade" está relacionada ao fato de o homem se diferenciar do resto da natureza porque é o único animal rationale, e também ao fato de se diferenciar de outros homens em razão do papel ativo que exerce na vida pública e lhe confere um valor particular. No primeiro sentido, o homem enquanto tal possuir a dignidade que deriva de sua posição no topo da escala hierárquica da natureza; no segundo sentido, a dignidade depende da posição na escala hierárquica social. Para Cícero, que foi o primeiro a ressaltar ambas as acepções, isto significava que o homem que se abandonasse ao prazer dos sentidos violaria a dignidade de sua natureza racional, enquanto que sua dignidade pessoal dependia das ações realizadas para o bem comum 5 . 3 Além dos ensaios de Hasso Hofmann e de Otfried Höffe, citados mais adiante, deve-se assinalar dois artigos de Roberto Andorno publicados em inglês. O primeiro sob o titulo The paradoxical notino of human dignity, em "Rivista internazionale di filosofia del diritto", LXXVIII, 2001, pp. 151-168. O segundo, mais recente, com o título Dignity of the person in the light of international biomedical law, em "Medicina e Morale", 2005, 1, pp. 91-105. Cfr. também uma contribuição de Winfried Hassemer, publicada em língua italiana em "Ars Interpretandi", com o título Argomentazione con concetti fondamentali. L'esempio della dignità umana, 2005, n. 10, pp. 125-139. Na verdade, há muitos escritos de autores italianos que tenham como objeto a dignidade humana, mas, com a exceção das obras de M.A. CATTANEO que analisa a dignidade humana com referência à filosofia do direito penal e à tradição jusnaturalista (Pena, diritto e dignità umana. Saggio sulla filosofia del diritto penale, Torino, 1998, e, mais recentemente, Giunaturalismo e dignità umana, Napoli, 2006, trad. alemã Naturrecht und Menschenwürde, Berlin, 2007), a grande maioria dos trabalhos afrontam o problema sob uma ótica prevalentemente religiosa. 4 V. PÖSCHL, Der Begriff der Würde im antiken Rom und später, Heidelberg, 1989; M. FORSCHNER, Marktpreis und Würde oder vom Adel der menschlichen Natur, em Die Würde des Menschen, organizado por H. Kössler, Erlangen, 1998, pp. 33-59, e, para um resumo, a parte I do verbete Würde de V. PÖSCHL, na obra Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, organizada por O. Brunner, W. Konze, R. Koselleck, Stuttgart, 1992, vol. 7, pp. 637-645. 5 Cfr. M. T. CICERONE, De officiis, trad. italiana com texto em latim, Dei doveri, Bologna, 1991. Veja-se, em particular, Livro I, Cap. XXX (pp. 109-111 na edição citada): "...só quando quisermos refletir sobre a 3 O primeiro significado de dignidade é universalista, no sentido que, ao menos em princípio, seu titular é o gênero humano que a possui como um dom natural; o segundo é particularista, pois deriva das ações que alguns homens executam e outros não 6 . A dignidade é absoluta no primeiro significado, pois não pode ser adquirida nem perdida; é relativa no segundo, pois se pode tanto adquirí-la quanto perdê-la. No decorrer da história, a segunda acepção passará a indicar a alta posição pública enquanto tal, e não mais a pessoa que o ocupa. Em seguida, indica o título que se possui por pertencer a uma determinada classe social, e não mais os méritos. Finalmente, indica qualquer atividade ou função com a qual o homem contribui para o progresso material ou espiritual da sociedade. Mas é, sobretudo, a primeira acepção que devemos examinar aqui. Esta, na realidade, encontrará um terreno fértil na mensagem cristã. O cristianismo oferecerá um forte incentivo à afirmação do valor universal da dignidade humana 7 . Mesmo que não se possa esquecer que o instituto jurídico da escravidão persistirá ainda por um longo tempo no mundo cristão, é de fato a doutrina dos Padres da Igreja que aplica a todosos homens e não somente ao povo eleito a idéia do Velho Testamento do homem como "imagem de Deus" 8 . A semelhança do homem com Deus explica agora sua posição especial na natureza. Deus criou-nos à sua imagem, honrando-nos com uma dignidade transcendente. A idéia se reforça quando Deus se faz homem em Jesus Cristo; terá uma surpreendente sobrevivência mesmo após a excelência e a dignidade da natureza humana, compreenderemos o quanto é torpe uma vida que nada no luxo e mergulha nas fraquezas, e, ao contrário, quanto é bela uma vida modesta e frugal, austera e sóbria. Além disso, é preciso refletir que a natureza nos dotou de dois carácteres: um é comum a todos, porque todos nós somos partícipes da razão, isto é, daquela excelência onde nós superamos os animais: excelência da qual deriva toda espécie de honestidade e decoro; o outro, por sua vez, é aquele que a natureza proporcionou exatamente a cada pessoa singular" (p. 111). 6 No atual debate, este duplo significado foi bem evidenciado por Hasso Hofmann em uma interessante contribuição: Die versprochene Menschenwürde (1993), trad. italiana, La promessa della dignità umana. La dignità dell'uomo nella cultura giuridica tedesca, em "Rivista internazionale di filosofia del diritto", IV série, LXXVI, 1999, pp. 620-650. Enquanto que, entre nós, o debate ético-filosófico sobre a dignidade humana está ainda no início, na Alemanha parece ser já uma nova moda filosófica. Em 2007, uma das mais influentes revistas alemãs publicou uma resenha sobre o tema, na qual são discutidas cerca de vinte obras surgidos nos últimos anos. Cfr. A. KAPUST, Menschenwürde auf dem Prüfstand, em "Philosophische Rundschau", 54 (2007), pp. 279-307. 7 Para uma visão geral sobre a teologia medieval, cfr. a parte II do verbete Würde, de P. KONDYLIS, na já citada obra Geschichtliche Grundbegriffe, cit., pp. 645-651. 8 "Então Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastem sobre a terra." Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus.” (Gênesis, 1, 26- 27). È a partir de Santo Ambrósio que a semelhança com Deus identifica a dignidade humana. 4 Idade Média 9 , ainda que na época moderna, tomada pela secularização, já não terá mais a revelação como ponto de partida. Mesmo que a idéia da dignidade humana adquira particular relevância no Humanismo italiano 10 , a primeira tentativa de fundar em modo secular a dignidade humana será realizada por um dos autores mais importantes do jusnaturalismo moderno: Samuel Pufendorf 11 . Ainda em Grócio, a dignidade humana apresenta-se apenas no âmbito do direito à sepultura – é o respeito no tratamento do cadáver que confere a dignidade ao ser humano12 –, enquanto que, em Hobbes, a dignidade humana se reduz ao seu significado particularístico, ao valor que todo homem tem por aquilo que faz, e que a comunidade política reconhece: "o prestígio público de um homem, que é o valor atribuído pelo Estado, é aquilo que os homens chamam comumente de DIGNIDADE. Este valor é reconhecido pelo Estado com cargos de comando, de jurisdição, de empregos públicos, ou com os nomes e títulos introduzidos pela distinção de tal valor" 13 . Para Hobbes, o valor de um homem é dado por "seu preço" e este sempre vem estabelecido não pelo vendedor, mas pelo comprador. O verdadeiro valor de cada homem, aquilo que constitui sua dignidade, é, em suma, aquilo que os outros reconhecem a ele. 9 Exatamente a idéia do homem como "imago Dei" que continua a manifestar sua força diante do problema da manipulação genética, e reaparece em autores tão diversos como Jürgen Habermas e Hans Jonas. Cfr. J. HABERMAS, Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik? (2001), trad. italiana organizada por L. Ceppa, Il futuro della natura umana. I rischi di una genetica liberale, Torino, 2002, e H. JONAS, Technik, Medizin und Ethik. Praxis des Prinzips Verantwortung (1985), trad. italiana organizada por P. Becchi, Tecnica, medicina ed etica. Prassi del principio responsabilità, Torino, 1997. 10 Cfr. Giannozzo MANETTI, De dignitate et excellentia hominis (1451-1452), Basilea, 1532 (para uma edição acessível, veja-se aquela organizada por E.R. Leonard, Padova, 1975), e, sobretudo, Giovanni PICO DELLA MIRANDOLA, Oratio de hominis dignitate (1486), Bologna, 1496 (para uma edição italiana, com texto latino incluído, pode-se consultar aquela organizada por G. Tognon, da editora La Scuola di Brescia). Sobre o tema, é fundamental o amplo estudo de Ch. TRINKAUS, In Our Image and Likeness. Humanity and Divinity in Italian Humanist Thought, Chicago, 1970. Sobre Pico, cfr. P.C. BORI, Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana di Pico della Mirandola, Milano, 2000 (a obra também traz o texto do discurso de Pico). 11 Sobre o tema, são fundamentais as análises de Hans Welzel. Veja-se, em particular, H. WELZEL, Die Naturrechtslehre Samuel Pufendorf (1958), trad. italiana organizada por V. Fiorillo, La dottrina giusnaturalistica di Samuel Pufendorf, Torino, 1993. Veja também algumas páginas iluminadoras de K-H. ILTING, Naturrecht und Sittlichkeit, Stuttgart, 1983, pp. 83-89. Cf. a minha contribuição Samuel Pufendorf giurista della modernità, em "Materiali per una storia della cultura giuridica", XXXVI, 1, 2006, pp. 29-38, agora reimpresso no livro Da Pufendorf a Hegel. Introduzione alla storia moderna della filosofia del diritto, Roma, 2007, pp. 15-28. 12 H. GRÓCIO, De jure belli ac pacis (1625), livro 2°, cap. 19, 2 (5 e 6). 13 T. HOBBES, Leviathan (1651), Leviatano, trad. italiana organizada por G. Micheli, Scandicci (Firenze), 1987, pp. 84-85 (citado do cap. X do livro I, intitulado "Do poder, do prestígio, da dignidade, da honra e da disposição"). 5 Uma concepção já bem diversa está presente em Pufendorf. Ele não recorre às idéias de alguma qualidade natural do homem (como a posse da razão) e/ou inerente ao seu status social, nem mesmo diretamente à tradição cristã. Parte da idéia da liberdade que distingue o ser humano. Tal liberdade é o pressuposto para a existência de uma ordem moral que Pufendorf, sobre a base da distinção entre entia physica e entia morale, separa claramente da ordem natural. È a idéia da liberdade moral do homem, e não sua natureza enquanto tal, a conferir-lhe a dignidade 14 . O homem é o único ser realmente em condições de colocar autonomamente os limites de seu próprio agir, de submeter-se a leis que ele mesmo se outorgou. A dignidade do homem não tem um caráter ontológico, que cabe a ele pela posição especial que ocupa na natureza, mas sim deontológico, no sentido que é um título ético-jurídico que cada ser humano pode reivindicar enquanto destinatário de normas universalmente vinculantes. Para entender a importância e originalidade desta proposta, é suficiente confrontá-la com aquela de um pensador do mesmo tempo, da qual se diferencia, e com uma outra de um pensador posterior, que antecipa em grande parte. Para Pascal, toda a dignidade do homem reside no pensamento 15 . Pufendorf certamente não contesta que o homem, no mundo natural, caracterize-se pela capacidade de pensar, mas sua dignidade não consiste nisto, mas naquela faculdade moral que, sozinha, revela a sua verdadeira essência. Não há dúvida que esta idéia pufendorfiana antecipa aquela, mais clara e bem-sucedida, que encontramos no cume do iluminismo europeu, na obra de Immanuel Kant. A distinção pufendorfiana entre entia physica e entia morale corresponde à distinção kantiana entre reinoda natureza e reino dos fins: a dignidade humana não cabe ao homem pela posição que este ocupa no vértice do reino da natureza, mas por ela, a dignidade, pertencer a um reino de fins. Para Kant, como já para Pufendorf, dignidade significa que o homem é um ser capaz de agir sob o respeito de leis morais. É o homem, enquanto capaz de moralidade, a ter dignidade. Ele possui um valor intrínseco absoluto não como animal rationale, mas sim enquanto portador de um imperativo moral incondicionado 16 . Não é o mero fato biológico a constituir fundamento de sua 14 S. PUFENDORF, De iure naturae et gentium, libri octo (1672), I, I, 5: "A dignidade da natureza humana, a sua primazia sobre os outros seres vivos, exigia que as ações humanas fossem realizadas segundo uma certa norma, sem a qual não seriam possíveis ordem, civilidade e beleza". 15 B. PASCAL, Pensèes, (1669), Pensieri, trad. italiana organizada por P. Serini, Torino, 1974, n. 78 (p. 177): "o homem é manifestamente nascido para pensar; aqui reside toda a sua dignidade e todo o seu valor". 16 Assim, em particular, J. HRUSCHKA, Die Würde des Menschen bei Kant, em "Archiv fur Rechts und Sozialphilosophie", 88, 2002, n. 4, pp. 463-480. Para uma discussão da posição kantiana em conexão com o atual debate bioético, remeto a P. BECCHI, L'idea kantiana di dignità umana e le sue attuali implicazioni in ambito bioetico, em Kant e l'idea di Europa, organizado por P. Becchi, G. Cunico, O. Meo, Genova, 2005, pp. 15-37 (com ampla referência à literatura), também em P. BECCHI, Tre studi su Kant filosofo del diritto, Genova, 2007, pp. 95-126. 6 dignidade, mas o "fato da razão" da lei moral, uma razão portanto "moralmente prática", que nos comanda (na segunda formulação do imperatico categórico) de tratar a humanidade, seja na própria pessoa, seja naquela dos outros, "sempre também como fim e nunca simplesmente como meio" 17 . Isso, obviamente, não significa que o homem não possa também fazer-se meio para a realização de objetivos a ele extrínsecos (acontece continuamente na vida social), desde que não venha jamais reduzido apenas a meio. É o seu uso meramente instrumental, a sua redução de pessoa a coisa – como, ainda que de maneira incidental, já havia observado Beccaria 18 duas décadas antes de Kant – a ferí-lo na sua dignidade. Ao contrário do que pensava Hobbes, para Kant todas as coisas tem um preço, mas o homem tem um valor inestimável 19 . Ainda que em Hume e no iluminismo escocese – basta pensar em Adam Smith – surja uma visão da natureza humana diferente daquela hobbesiana, o centro de sua atenção é a noção de simpatia como faculdade que todos possuem para participar dos sentimentos alheios, enquanto o reconhecimento da dignidade humana aparece apenas nos concretos processos de interação, não é por estes pressuposto 20 . É só em Kant que o reconhecimento do outro funda-se como valor moral da pessoa compreendida como fim em si mesma. 17 Cfr. I. KANT, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (1785), trad. italiana Fondazione della metafisica dei costumi, em Scritti morali, organizado por P. Chiodi, Torino, 1970, p. 88: "age de modo a tratar a humanidade, seja na tua pessoa, seja naquela dos outros, sempre também como fim e nunca simplesmente como meio". É explícito o reenvio à dignidade na sucessiva Metaphysik der Sitten (1797), trad. italiana organizada por N. Merker, La metafisica dei costumi, Roma-Bari, 1973, pp. 333-334: "A humanidade em si mesma é uma dignidade; de fato, o homem não pode ser tratado por ninguém (isto é, nem por um outro, nem por si mesmo) meramente como meio, mas deve sempre ser tratado, ao mesmo tempo, como um fim, e exatamente nisso consiste sua dignidade...". Por outro lado, não se deve esquecer que, na Grundlegung, a idéia da dignidade humana parece mais diretamente ligada à terceira formulação do imperativo categórico (ou seja, à idéia da vontade de todo ser racional, considerada como legisladora universal), que à segunda. Referir a dignidade à segunda ou à terceira formulação tem conseqüências evidentes para o atual debate, o que talvez explica por que Kant seja utilizado tanto por aqueles que afirmam que a dignidade cabe ao homem enquanto tal, quanto por aqueles que entendem a dignidade como uma propriedade das pessoas racionais e conscientes. 18 Cfr. C. BECCARIA, Dei delitti e delle pene (1764), organizado por F. Venturi, Torino, 1965, p. 50: "Não existe liberdade toda vez que as leis permitem que, em algumas situações, o homem cesse de ser pessoa e torne-se coisa...". 19 Cfr. I. KANT, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, trad. italiana cit.: "aquilo que concerne às inclinações ou necessidades gerais dos homens tem um preço de mercado; (...) mas aquilo que constitui a condição necessária para que qualquer coisa possa ser um fim em si não tem apenas um valor relativo, um preço, mas um valor intrínseco, isto é, dignidade" (p. 94). 20 Cfr. D. HUME, Essays, Moral and Political (1741), trad. italiana Saggi e Tratatti, organizada por M. Dal Pra e E. Ronchetti, Torino, UTET, 1974, cap. XI, pp. 265-271. Cfr. também D. HUME, Enquiries Concerning Human Understanding and Concernig the Principles of Morals (1751), trad. italiana de R. Gilardi, Ricerche sull'intelletto umano e sui principi della morale, Milano, 1980. Um grave defeito de dignidade impede o homem somente bom e justo de ser considerado virtuoso (p. 523). De A. SMITH, cfr. The Theory of Morals Sentiments (1759), trad. italiana de C. Cozzo, organizada por A. Zanini, Roma, 1991. Sobre o ponto, são ainda fundamentais as pesquisas de L. BAGOLINI, La simpatia nella morale e nel diritto, Torino, 1966. 7 Na época em que foi formulada, esta idéia oferecia uma válida contribuição à abolição da tortura e ao abandono de penas degradantes e cruéis, embora o excessivo rigor penal de Kant às vezes o colocou em clara contradição com seu próprio pensamento 21 . Esta instância humanitária está seguramente em sintonia com as célebres Declarações do século XVIII sobre os direitos do homem e do cidadão, ainda que o conceito de dignidade não esteja presente nem na Déclaration des droits de l'homme et du citoyen, de 26 de agosto de 1789, nem na Declaration of Independence, deliberada nos Estados Unidos da América na década anterior (4 de julho de 1776), e nem mesmo nas Cartas de direitos que, começando por aquela da Virgínia, são proclamadas na América do Norte naquele momento 22 . Historicamente, o primeiro documento é a Declaration of Rights da Virgínia (12 de junho de 1776), que começa com a enunciação dos "direitos inerentes" (inherent rights), dos quais os homens "entrando no estado de sociedade, não podem, mediante convenção, privar ou espoliar sua posteridade; isto é, o gozo da vida, da liberdade, mediante a aquisição e a posse da propriedade, e a perseguição e obtenção de felicidade e segurança". Mesmo que a idéia já esteja presente, como se notará, não aparece ainda o adjetivo "inalienáveis", que, invés, encontra-se no início da Declaration of Independence: "Nós cremos nesta verdade auto-evidente: que todos os homens são criados iguais; que são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis (inalienable rights); que entre estes direitos estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade". Pouco depois (28 de setembro de 1776), na Constituição da Pensilvânia acrescenta-se também o adjetivo "natural". Na Déclaration des droits de l'homme et du citoyen, consolida-se a locução "direitos naturais e imprescritíveis do homem" (droits naturels et imprescriptibles de l'homme). Estes direitos são agora identificados na "liberdade", "propriedade", "segurança" e "resistência à opressão",enquanto que a "procura da felicidade" não vem mencionada. Ainda disso tratará o "jacobino alemão" Georg Forster, para indicar, nos passos de Kant, a necessidade de retirar de seu pedestal a "felicidade" e colocar em seu lugar a dignidade humana, "verdadeiro indicador da vida" (echter Wegweiser des Lebens) 23 . Este indicador, contudo, permanecerá por muito tempo ainda escondido, pelo menos no âmbito jurídico. Mesmo que Hegel, 21 Aspectos bem evidenciados em vários trabalhos de M.A. Cattaneo. Limito-me aqui a recordar a sua obra Dignità umana e pena nella filosofia di Kant, Milano, 1981. 22 Para uma análise geral dos documentos aqui sucintamente aludidos, ainda são úteis as páginas que deixou Giovanni Tarello no fim do primeiro volume de sua obra (inacabada) Storia della cultura giuridica moderna. Vol. 1: Assolutismo e codificazione del diritto, Bologna, 1976, pp. 559-620. 23 Cfr. G. FORSTER, Über die Beziehung der Staatskunst auf das Glück der Menschheit (1794), em G. FORSTER, Philosophische Schriften, organizado por G. Steiner, Berlin, 1958, p. 223. 8 efetivamente concebendo o dever de respeitar os homens como imperativo jurídico 24 , já coloque as premissas para seu desvelamento, deve-se esperar o fim da Segunda Guerra Mundial para encontrar uma plena legitimação jurídica da dignidade humana. 3. A longa onda do debate pós-guerra A partir do Estatuto (ou Carta) da Organização das Nações Unidas (1945), da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), da Constituição italiana (1948) e da Lei Fundamental da República Federal Alemã (1949), são múltiplos os documentos jurídicos nos quais se encontra uma referência à dignidade humana 25 . Diante do flagelo de duas guerras mundiais, a Carta reafirmava a "fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana" e a Declaração abria-se com o "reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos, iguais e inalienáveis". Não é por acaso que a Lei Fundamental alemã – Constituição de um país no qual tinha sido lei a sistemática perseguição de pessoas em razão de sua fé religiosa, suas opiniões políticas, e até mesmo de seus problemas mentais – seja um dos principais documentos onde a referência à dignidade humana, como reação aos horrores do regime nacional-socialista, adquira um papel de absoluta proeminência. O reconhecimento da dignidade humana torna-se uma espécie de Grundnorm ao estilo kelseniano, colocada no vértice do ordenamento jurídico: uma norma jurídica objetiva, não ela mesmo um direito subjetivo fundamental, e exatamente por isso incondicionada, isto é, não submetida – diferentemente dos direitos fundamentais – a ponderações e limitações26. O art. 1°, 24 Cfr. G.W.F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts (1821), trad. italiana organizada por G. Marini, Lineamenti di filosofia del diritto. Roma-Bari, 1999, p. 48: "O imperativo jurídico é portanto: sê uma pessoa e respeita aos outros como pessoa". 25 Uma seleção dos documentos jurídicos nos quais vem explicitamente mencionada a dignidade humana encontra-se no volume Dignity, Ethics and Law, organizado por J. Knox e M. Broberg, Copenhagen, 1999. 26 Esta é, pelo menos, a interpretação que tradicionalmente foi dada ao art. 1°, item 1, a partir de Günter Dürig, em um dos mais conhecidos comentários de direito constitucional (cfr. T. MAUNZ, G. DÜRIG, Grundgesetz, München-Berlin, 1958). Uma ótima reconstrução do processo de formação de tais disposições, assim como o debate sobre a dignidade humana na Constituição alemã (tanto na doutrina quanto na jurisprudência), encontra-se no volume de C. AMIRANTE, A dignidade do homem na Lei fundamental de Bonn e na Constituição italiana, Milano, 1971 (contrariamente ao declarado no título, inexiste qualquer referência à Constituição italiana). Deve-se também assinalar que a interpretação, de evidente inspiração jusnaturalista, de Günter Dürig foi recentemente, na nova edição do manual acima citado, substituída por outra, escrita por Matthias Herdegen, com a qual o autor precedente dificilmente poderia concordar. Sobre isso, cfr. E.W. BÖCKENFÖRDE, Die Würde des Menschen war unantastbar. Abschied von den Verfassungsvätern. Die Neukommentierung von Artikel 1 des Grundgesetzes markiert eine Epochenbruch, em "FAZ", 3.9.2003, n. 204, p. 33-35. 9 item 1 da Lei Fundamental declara: "A dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo poder estatal", e o item 2 acrescenta: "O povo alemão professa, portanto, os direitos humanos invioláveis e inalienáveis como fundamento de cada comunidade humana, da paz e da justiça no mundo". Observe-se: um novo adjetivo é introduzido para qualificar a dignidade humana. Se os direitos fundamentais são "invioláveis e inalienáveis", a dignidade é "intangível" (unantastbar). Isso deixa clara a relação de derivação que subsiste na Constituição alemã entre a dignidade humana e os direitos fundamentais. A partir do momento em que o homem possui dignidade, que o distingue de qualquer outro ser vivo, é titular de direitos fundamentais. Procurando fixar no tempo a referência à dignidade humana, a Lei fundamental prevê também, no art. 79, item 3, sua imodificabilidade, confirmando o caráter absoluto daquele princípio, sua imutabilidade e indisponibilidade. Reflorescem na Constituição alemã, como também nos atos internacionais antes citados, os elementos que vimos surgir na doutrina jusnaturalista moderna e que, agora, adquirem positividade normativa. Por isto, não surpreende que o tema do respeito à dignidade humana seja ligado à renascença do direito natural e que, na Alemanha daquela época, houve um debate particularmente fecundo sobre ambos 27 . Que cada ser humano deva, antes de tudo, valer como pessoa igual a qualquer outro foi a questão dominante após a Segunda Guerra Mundial. Ser tratado como pessoa e reconhecer a qualquer outro ser humano – independentemente de sexo, raça, língua, religião ou opiniões políticas, condições de nascimento, econômicas e sociais – o direito a um tratamento igual significava recuperar aquele conceito de humanitas explicitamente combatido pela ideologia nazista com a introdução da categoria de Untermensch (sub-humano) e com a mitologia da raça ariana. Assim, o novo ordenamento internacional, saído dos escombros do totalitarismo, encontra no reconhecimento da dignidade humana, como valor absoluto e incondicionado, o seu ponto de partida 28 . 27 Os escritos mais significativos encontram-se no volume, organizado por W. MAIHOFER, Naturrecht oder Rechtspositivismus?, Darmstadt, 1962. Para uma reconstrução jusfilosófica do debate, cfr. A. KAUFMANN, Naturrechtslehre nach 1945. Die Naturrechtsrenaissance der ersten Nachkriegsjahre - und was daraus geworden ist, em Die Bedeutung der Wörter. Studien zur europäischen Rechtsgeschichte, M. Stolleis (org.), München, 1991, pp. 105-132. 28 A expressão filosófica-jurídica paradigmática desta orientação é dada pela figura e pela obra de Gustav Radbruch. Sobre esse tema, é célebre seu ensaio Gesetzliches Unrecht und übergesetzliches Recht (1946), em G. RADBRUCH, Rechtsphilosophie, organizado por E. Wolf e H.-P. Schneider, Stuttgart, 1973, pp. 339- 350, também em tradução italiana no volume Filosofia del diritto, organizado por P. Di Lucia, Milano, 2002, pp. 149-163. Para destacar a importância desta posição, deve-se perceber que ela está na base daquela "Verbindungsthese", isto é, a tese daconexão entre direito positivo e justiça, sustentada por Robert ALEXY, em Begriff und Geltung des Rechts (1992), trad. italiana R. ALEXY, Concetto e validità del diritto, introduzione di G. Zagrebelsky, Torino, 1997. Sobre Radbruch, cfr. G. VASSALLI, Formula di Radbruch e 10 Por outro lado, no entanto, não é este o único significado de dignidade a afirmar-se: já naquele período, junto àquela noção, emerge uma outra que se apresenta com menor ênfase e foi objeto de menor atenção, mas que resulta bem evidenciada na Constituição italiana. Na Constituição de 1948 encontramos referência à dignidade. Mas essa não assume o valor proeminente que constatamos na Constituição alemã, sendo apresentado um conceito diverso de dignidade humana. A Itália é uma República "fundada sobre o trabalho" (art. 1°) e não sobre a "intangibilidade" da dignidade humana. Já o art. 3°, § 1°, relaciona a dignidade não ao homem entendido abstratamente, mas sim ao homem em suas relações econômico-sociais. A "igual dignidade social" mencionada naquele artigo é entendida no sentido que todos os cidadãos são iguais perante a lei, sem distinções com base em títulos (as disposições transitórias afirmam explicitamente que os títulos nobiliárquicos não são reconhecidos) ou posição social. A dignidade – conforme o art. 4°, § 2° - consiste em desenvolver "segundo as próprias possibilidades e a própria escolha, uma atividade ou uma função que concorra ao progresso material e espiritual da sociedade". Este é o único título de dignidade em uma República fundada sobre o trabalho: é o trabalho, que permite o pleno desenvolvimento da personalidade e com isso possibilita a dignidade. A ênfase está na dimensão social da dignidade também nos outros dois loci nos quais vem explicitamente mencionada na Constituição italiana: no art. 36, afirmando que o trabalhador tem direito a remuneração suficiente "para assegurar a si e à sua família uma existência livre e digna"; e no art. 41, § 2°, onde o não causar dano à dignidade humana aparece como limite ao exercício das atividades econômicas. Portanto, o conceito de dignidade está ligado tanto ao papel que cada cidadão é chamado a realizar na sociedade, quanto ao fato que o Estado deve assegurar a todos a possiblidade de desenvolver dignamente um papel. A dignidade não é apenas algo protegido de comportamentos que possam lesioná-la, mas algo que deve ser promovido e permite medir o progresso social. Em síntese: enquanto na Constituição alemã "dignidade" é um valor absoluto que se dirige abstratamente à pessoa em si e por si, na Constituição italiana é um valor relativo que se relaciona com a concreta colocação da pessoa no tecido social (ainda que a sociedade devesse, de algum modo, garantir a todo indivíduo condições mínimas de subsistência, abaixo das quais jamais poderia estar). O primeiro significado está culturalmente baseado no jusnaturalismo moderno e o segundo nos leva à antiga noção de dignidade que emerge do mundo romano. Mesmo que agora a dignidade não se refira mais, como na Roma antiga, apenas àqueles homens que se distinguiam pelas funções públicas que os recobriam, mas a todos os cidadãos com aquela "igual dignidade diritto penale: note sulla punizione dei "delitti di Stato" nella Germania post-nazista e nella Germania post- comunista, Milano, 2001. 11 social" que deriva do (dever) contribuir com o trabalho para o progresso da sociedade, trata-se ainda daquela mesma idéia de dignidade humana ligada ao papel social que reaparece com força na Constituição italiana, mesmo que aqui com a intenção de abolir privilégios e oferecer uma vida melhor à classe operária. Não obstante, também a Constituição italiana conhece o significado absoluto de dignidade, quando o art. 2°, reconhecendo e garantindo os "direitos invioláveis do homem" – não apenas enquanto fazendo parte de uma formação social "onde se desenvolve sua personalidade", mas também "como indivíduo" – reenvia implicitamente ao art. 32, § 2°, onde se afirma que "ninguém pode ser obrigado a um tratamento médico se não por disposição legal", e também que "a lei não pode em nenhum caso violar os limites impostos pelo respeito à pessoa humana". Mesmo não aparecendo neste contexto o vocábulo "dignidade", encontramos assim também na Constituição italiana uma referência ao valor absoluto da dignidade, mas é, sem dúvida, sobre o valor relativo que ela insiste explicitamente, como já evidenciamos. É interessante observar como estes dois diferentes usos conceituais são encontrados na jurisprudência dos dois países. Limito-me aqui apenas a uma indicação resumida. Logo após a Segunda Guerra, a jurisprudência constitucional alemã destaca a tutela da dignidade humana como proteção contra "humilhações, perseguições, proscrições e assim por diante", enquanto a jurisprudência comum trata fundamentalmente da defesa do homem contra comportamentos discriminatórios 29 . Na Itália, logo depois da introdução da Carta constitucional, a dignidade não é assunto relevante, e também, em seguida, a jurisprudência da corte constitucional foi parca na utilização autônoma do conceito de dignidade humana, enquanto que, na jurisprudência comum, foram múltiplos os pronunciamentos nos quais aparece a referência à dignidade, e a maioria destes se preocupa significativamente em salvaguardar a dignidade do empregado no ambiente de trabalho. Mesmo que, com o tempo, tais usos variem também nos dois países, o papel fundamental desenvolvido na Alemanha pelo princípio da dignidade humana continuará constante, envolvendo os esforços de análise doutrinária, enquanto que, na Itália, a doutrina irá ignorá-lo injustamente por muito tempo 30 . 29 Na ampla literatura constitucionalística sobre o tema, cfr. ao menos T. GEDDERT-STEINACHER, Menschenwürde als Verfassungsbegriff. Aspekte der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts zu Art. 1 Abs 1 Grundgesetz, Berlin, 1990, e CH. ENDERS, Die Menschenwürde in der Verfassungsordnung. Zur Dogmatik der Art. 1 GG, Tübingen, 1997 (ambas as obras contêm muitas referências jurisprudenciais e doutrinárias). Para ter uma idéia do debate atual, é interessante o ensaio de Hasso Hofmann já citado acima (nota 6). Entre os escritos filosófico-jurídicos mais recentes, cfr. D. JABER, Über den mehrfachen Sinn von Menschenwürde-Garantien. Mit besonderer Berücksichtigung von Art. 1 Abs. 1 Grundgesetz, Frankfurt a.M., 2003. 30 É indicativo que, nas enciclopédias jurídicas italianas, não se registre o verbete "dignidade", a não ser com a referência específica à dignidade do trabalhador. Cfr. A. CATAUDELLA, Dignità e riservatezza del 12 4. Novas tendências A onda longa do debate pós-guerra sobre a dignidade humana estende-se até o fim dos anos 1960. Enquanto que, na Alemanha, ainda no curso daquela década, surgem mais três obras de grande relevo, na Itália não há escrito jurídico ou filosófico que, nesse tempo, possa ser comparado àqueles 31 . Do tema da dignidade humana se ocupam, naquele período, um filósofo da importância de Ernst Bloch, um jurista e filósofo do direito da grandeza de Werner Maihofer e um dos mais importantes sociólogos do século XX: Niklas Luhmann. Tanto em Bloch quanto em Maihofer, a idéia da dignidade humana está ainda conectada com a mensagem universalística proveniente do jusnaturalismo, enquanto que, com Luhmann, aparece a primeira crítica radical àquela proposta, que então era largamente dominante. Contudo, o recurso às doutrinas jusnaturalistas não é mais realizado na ótica negativa e defensiva que tinha caracterizado o pós-guerra, mas sim em uma ótica positiva e propositiva: se, para Bloch, a "dignidade humana é impossívelsem o fim da necessidade humana, como a felicidade conforme ao homem é impossível sem o fim da sujeição velha e nova" 32 , para Maihofer a tutela da dignidade humana estende-se para além da "personalidade do homem" e implica "a solidariedade entre os homens", isto é, a superação das relações econômico- sociais que são obstáculo para sua realização 33 . Em outras palavras, para ambos a tutela da lavoratore (tutela della), em Enc. giur. Treccani, XI, Roma, 1989 (1ª ed.). Ainda hoje, são poucas as pesquisas específicas sobre o tema. Cfr. F. BARTOLOMEI, La dignità umana come concetto e valore costituzionale, Torino, 1987, A. RUGGIERI-A. SPADARO, Dignità dell'uomo e giurisprudenza costituzionale (prime notazioni), em "Politica del diritto", XXII, n. 3, setembro de 1991, pp. 343-377, e G. ALPA, Dignità. Usi giurisprudenziali e confini concettuali, em "Nuova giur. civ. comm.", 1997, pp. 415- 426. Entre a literatura mais recente, além do ensaio de Giorgio RESTA (cfr. infra, nota 44) e aquele de G. CARUSO (cfr. infra, nota 41), veja-se: G. PIEPOLI, Dignità e autonomia privata, em "Politica del diritto", XXXIV, I, 2003, pp. 45-67; F. GAMBINI, Il principio di dignità, em I diritti della persona. Tutela civile, penale, amministrativa, organizado por P. Cendon, vol. I, Torino, 2005, pp. 231-242, F. UNNIA, Danno della dignità della persona umana da pubblicità, em I diritti della persona, vol. II, cit., pp. 199-225, M.C. LIPARI, La dignità dello straniero, em "Politica del diritto", XXXVII, n. 2, 2006, pp. 283-319, e D. CARUSI, Non solo procreazione assistita: il principio di pari dignità e la costituzione minacciata, em "Politica del diritto", XXXVIII, n. 3, 2007, pp. 413-450. Reenvio também à minha contribuição Il principio della dignità umana, em Realizzazione personale e risarcimento del danno, organizado por P. Cendon e R. Torino, de próxima publicação pela editora Giuffrè. 31 Na França, no clima existencialista, assinale-se o volume de G. MARCEL, La dignitè humaine et ses assises existentielles, Paris, 1964 (trad. italiana La dignità umana e le sue matrici esistenziali, Torino, 1983). 32 Cfr. E. BLOCH, Naturrecht uns menschliche Würde, Frankfurt a.M., 1961, pp. 14 (trad. italiana de G. Russo, Diritto naturale e dignità umana, Torino, 2005, p. XIV). 33 Cfr. W. MAIHOFER, Rechtstaat und menschliche Würde, Frankfurt a.M., 1968, cit. a pp. 40-41. A primeira edição é do ano precedente e aparece com o título Die Würde des Menschen, Hannover, 1967. 13 dignidade humana não pode prescindir da satisfação das concretas necessidades humanas, das quais o Estado social é chamado a se encarregar. Luhmann, por outro lado, em um dos seus primeiros trabalhos, apresenta-nos uma crítica radical daquela interpretação da dignidade que a liga, de algum modo, a um dom que os homens possuam pelo simples fato de serem homens. Ao contrário, para Luhmann, a dignidade é uma coisa que se deve construir socialmente: é o resultado de "prestações de representações", com as quais o indivíduo conquista a própria dignidade na sociedade 34 . Assim interpretada, a dignidade ganha um significado dinâmico: possui dignidade quem realiza o processo de individualização da auto-representação, mediante o qual o homem, em comunicação com os demais, adquire consciência de si, torna-se pessoa e, de tal forma, constitui-se em sua humanidade. No começo dos anos 1970 a atenção se desloca: o debate filosófico (jurídico e político) é dominado por uma obra que terá uma grande repercussão, aquela de John Rawls, que dá atenção à construção de uma sociedade bem ordenada e mais justa 35 . Mas já no curso dos anos 1990 e até hoje, sempre com maior insistência, a dignidade humana retorna ao centro da discussão. Tanto o argumento defendido por Bloch e Maihofer, quanto aquele levantado por Luhmann estão presentes nas discussões atuais. Mas, enquanto a referência a Luhmann é explícita, em âmbito ético-filosófico ou filosófico-jurídico, o mesmo não pode ser dito, em geral, dos outros dois autores. Mas como não ver exatamente em Bloch e Maihofer a primeira chamada ao fato de que a dignidade humana não pode ver apenas a pessoa abstrata enquanto sujeito jurídico, mas também o indivíduo concreto enquanto sujeito subordinado a relações econômico-sociais que não podem lhe garantir nem mesmo o mínimo de subsistência indispensável para viver? Quando o homem é obrigado a viver abaixo daquele limiar e cai na extrema pobreza, então se pode falar de violação da dignidade humana. Não apenas isso: a conexão entre dignidade e necessidade torna-se central hoje, naquela proposta fundada sobre as capacidades, que encontrou sua sistematização filosófica na orientação neo- aristotélica de Martha Nussbaum 36 . O homem não é antes de tudo animal rationale e nem mesmo animal morale, mas sim "animal com necessidades", e, quanto mais a sociedade é capaz de satisfazê-las, tanto mais nela se realiza a dignidade humana. Não apenas inexiste dignidade humana quando falta o alimento para 34 Cfr. N. LUHMANN, Grundrechte als Institution. Ein Beitrag zur politischen Sociologie, (1965), Berlin, 1999, pp. 53-83, trad. italiana organizada por G. Palombella e L. Pannarale, I diritti fondamentali come istituzione, Bari, 2002, pp. 98-138. 35 J. RAWLS, A Theory of Justice (1971), Una teoria della giustizia, trad. italiana organizada por S. Maffettone, Milano, 1982. 36 Sobre o tema, são importantes os três ensaios reunidos por Chiara Saraceno no volume M. NUSSBAUM, Giustizia sociale e dignità umana. Da individui a persone. Bologna, 2002, e sobre o qual veja-se, em particular, D. CARUSI, Dignità umana, capacità, famiglia: la giustizia sociale nei più recenti scritti di Martha Nussbaum, em "Politica del diritto", XXXIV, n. 1, 2003, pp. 103-113. 14 nutrir-se, mas também quando o exercício prático das próprias capacidades está sufocado por condições sociais de exploração. A dignidade é algo que pertence a todos os homens, mas é preciso empenhar-se para criar as condições para que ela desenvolva-se efetivamente. Não é coincidência que a referência a Marx, encontrada em Bloch e Maihofer, também esteja presente na neo- aristotélica Nussbaum. O discurso da dignidade carrega aqui um conteúdo fortemente emancipatório. Destinatários da dignidade não são mais os indivíduos racionais conscientes e independentes, mas crianças, mulheres, idosos, pessoas que não apenas vivem em condições degradantes, mas que não são colocadas nas condições de exprimirem as próprias capacidades. Se, nesta direção, insiste-se na dimensão social da dignidade, naquela de matriz luhmanniana é decisiva a dimensão individual. Luhmann ganhou grande importância porque, de um lado – como bem evidenciou Ralf Stoecker –, criticando a orientação jusnaturalista moderna, voltou-se, talvez de modo inconsciente, ao significado antigo de dignidade conectado ao papel que o indivíduo desempenha na sociedade 37 , e, de outro lado, como sublinhou Kurt Sellmann, individuou na noção "representação" um elemento fundamental da dignidade humana 38 . Ambos colocam em estreita relação este modo de entender a dignidade humana como dignidade individual com uma obra que, na Alemanha, assumiu centralidade nas atuais discussões sobre o conceito: trata-se de The Decent Society, de Avishai Margalit 39 . Segundo este original filósofo israelense, o ponto decisivo não é mais a "sociedade bem ordenada", sobre a qual Rawls tinha concentrado sua atenção, mas a "sociedade decente", que ele tinha, por sua vez, deixado de lado. Para Margalit, uma sociedade é decente quando as instituições que a formam não ofendem o respeito que todo indivíduo deveria ter sobre si. Adignidade, assim, não é outra coisa que "a representação do respeito de si". A conexão entre dignidade humana e respeito de si é, contudo, insuficiente. Pressupõe que o objeto da dignidade não seja a pessoa abstrata enquanto sujeito jurídico titular de direitos e deveres iguais aos de qualquer outra pessoa, mas o homem enquanto indivíduo concreto que se auto- representa como participante da interação social. Segundo a orientação que, relacionando-se ao 37 Cfr. R. STOECKER, Die Würde des Embryon, em Ethik in der Medizin in Lehre, Klinik und Forschung, D. Gross (org.), Würzburg, 2002, pp. 53-71. 38 Cfr. K. SELLMANN, Repräsentation als Element von Menschenwürde, em "Studia Philosophica", 63/2004, pp. 141-158 (o volume da revista é dedicado ao tema da dignidade humana). 39 Cfr. A. MARGALIT, The Decent Society, Cambridge (Mass.), 1996, (trad. alemã Politik der Würde. Über Ächtung und Verachtung, Frankfurt a.M., 1999. Já é significativo o título escolhido para a tradução alemã, que põe acento diretamente sobre a dignidade. O texto foi também traduzido em italiano, mas não suscitou a atenção que merecia: La società decente, organizada por A. Villani, Milano, 1998. Do mesmo autor veja-se, agora em língua italiana, também o ensaio La dignità umana fra kitsch e deificazione, em "Ragion pratica", 25, dezembro de 2005, pp. 507-521. 15 jusnaturalismo moderno, insiste na dignidade da pessoa abstratamente entendida, um homem pode continuar a ter respeito de si também quando é submetido a condições degradantes que violam sua dignidade, e, por outro lado, pode perder o respeito de si ainda que não seja submetido àquelas condições. As coisas mudam se concebemos, como Luhmann, a dignidade humana como individualização da auto-representação: sob esta ótica, um homem pode ser realmente lesado na sua dignidade todas as vezes que um comportamento externo é capaz de ferí-lo no respeito de si, na medida em que, com aquele comportamento, há intromissão no âmbito totalmente privado da auto- representação. Neste âmbito, o homem tem um domínio absoluto – é ele que decide qual imagem (= representação) de si tornar pública – que só em situações excepcionais pode ser licitamente violado. Cada homem não tem apenas o direito de ser respeitado positivamente por aquilo que representa na sociedade, mas também negativamente, por aquilo que de si não quer fazer conhecer aos outros, e sobre o que deseja que seja mantida absoluta reserva. E, quanto mais nos tornamos publicamente transparentes, tanto mais cresce a necessidade de defender o núcleo mais profundo de intimidade que deveria permanecer inviolado. O reconhecimento de uma esfera íntima própria, privada, encontra aqui seu fundamento filosófico 40 . A problematização dos aqueles casos nos quais ocorre uma intromissão na vida privada – por exemplo, mediante uso de interceptações tefefônicas ambientais, a publicação não-autorizada de escritos, documentos pessoais e imagens, ou o uso de máquinas da verdade para fins processuais – deriva do fato que todas estas coisas conflitam com o monopólio da representação de si que compete a cada indivíduo. Não há dúvida que tudo isso comporta uma significativa dilatação no campo de aplicação da dignidade humana a toda uma nova série de comportamentos (por outro lado, como logo veremos, este modo de entender a dignidade poderia também significar uma restrição). Dessa forma, as "limpezas étnicas" que ensangüentaram a ex-Iugoslávia, o genocídio de Ruanda, os casos de tortura e degradação a que foram submetidos alguns prisioneiros iraquianos por parte de soldados americanos na prisão de Abu Ghraib e as condições desumanas nas quais estão detidos supostos terroristas afegãos na base de Guantánamo – para citar só alguns dos casos mais 40 Sob a ótica filosófica, na Itália, a privacidade foi recentemente objeto de um interessante estudo de Vittorio Mathieu, que, no entanto, na sua originalíssima interpretação, refere-se exclusivamente (e, na verdade, unilateralmente) ao pensamento clássico alemão. Cfr. V. MATHIEU, Privacy e dignità dell'uomo. Una teoria della persona, organizado por R. Sanchini, Torino, 2004. Sob a ótica jurídica, na literatura mais recente, cfr. S. NIGER, Le nuove dimensioni della privacy: dal diritto alla riservatezza alla protezione dei dati personale, Padova, 2006. 16 recentes que mexeram com a opinião pública mundial –, demonstram quanto é importante insistir sobre o "velho" conceito de dignidade humana 41 . O aspecto mais inquietante não é o fato que a tortura venha ainda sendo praticada hoje, mas que ela seja até mesmo justificada como arma para combater o terrorismo. A idéia que, por razões de segurança, a tortura possa novamente ser utilizada como um meio para conduzir investigações policiais representa um perigoso passo para trás, que não devemos absolutamente realizar se não queremos voltar à barbárie. Neste contexto, recorrer à dignidade humana como escudo para a defesa de qualquer pessoa (mesmo daquela que é acusada dos crimes mais selvagens) faz jus ao caráter fundamental de tal princípio. E, contudo, é incontestável que o conceito de dignidade tenha assumido novos significados hoje. Pode-se lesar a dignidade de uma pessoa não apenas torturando-a ou submetendo-a a condições degradantes, mas também fazendo-a envergonhar-se publicamente, relevando situações particularmente delicadas de sua vida privada ou publicando imagens comprometedoras, ou ainda comentários que são incompatíveis com seu papel institucional e lesam sua reputação. A falta de respeito é, neste caso, lesiva à dignidade a partir do momento que a pessoa foi violada na representação que queria dar publicamente de si. Essa pessoa deve encontrar uma outra chance de representação, se não sua existência está arruinada. A moderna idéia de dignidade humana, que nos proíbe substancialmente de reduzir a pessoa à coisa, não permite compreender situações nas quais a lesão à dignidade depende do fato que a vítima pode sentir-se ofendida no respeito de si mesma se a sua auto-representação for colocada publicamente em discussão. 5. Do abstrato ao concreto. Da pessoa ao indivíduo Com a dignidade humana aconteceu, no curso da segunda metade do século passado, algo parecido com aquilo que se verificou com os direitos humanos. Se, no começo, estes vislumbravam o homem em abstrato, como ente genérico, independentemente de determinação concreta (sexo, cor, língua, etc), reservando a todo homem o direito a ser tratado como qualquer outro homem, depois passou-se a considerar o homem em concreto, na especificidade de seus diversos status, 41 Ainda que, em todos esses casos, falou-se sobretudo de "violações dos direitos humanos", enquanto que o tema da dignidade humana não recebeu a importância que merecia. O único volume em língua italiana no qual aparece uma referência à dignidade humana é Diritti senza pace. Difendere la dignità umana nei conflitti armati, organizado pela Amnesty International, Fiesole, 1999. O mesmo se pode dizer com referência às "velhas" e "novas" formas de redução à escravidão. Contudo, veja-se sobre isso: G. CARUSO, Delitti di schiavitù e dignità umana. Contributi per un'ermeneusi della legge 11 agosto 2003, n. 228, Roma, 2004. 17 diferenciados segundo sexo, idade, condições físicas ou sociais. O primeiro processo insiste sobre a necessidade de igual tratamento dos seres humanos. O segundo destaca a necessidade de um tratamento diferente: a mulher diversamente do homem, a criançado adulto, o adulto do idoso, o saudável do doente, e assim por diante, com diferenciações ulteriores sempre mais específicas. Basta observar as diversas Cartas de direitos que se seguiram no curso dos anos 42 para dar-se conta rapidamente deste desenvolvimento 43 . Este processo de proliferação dos direitos humanos considerou direitos a conteúdo econômico e social (por exemplo, ao trabalho, à saúde, à instrução, a um mínimo de subsistência vital), que se referem a indivíduos considerados não enquanto singulares, mas como pertencentes a grupos e, por fim, direitos que se referem ao homem nas diferentes fases da vida ou nas suas condições físicas particulares. Este processo modificou a preocupação do homem considerado em abstrato, igual a qualquer outro homem, para o homem considerado em concreto, com todas aquelas diferenças que derivam de fazer parte de um grupo e não de outro, ou de encontrar-se em uma fase da vida e não em outra. Isto explica os direitos das mulheres, dos negros, das minorias étnicas ou de outro gênero, as intervenções humanitárias nos confrontos de populações reduzidas à pobreza extrema e, com referência às diferentes fases da vida, os direitos da criança, do idoso, do doente (e especificamente do doente mental), das pessoas deficientes. Mais recentemente, a atenção deslocou-se para as diferentes fases da vida pré-natal (em conexão às técnicas de reprodução medicamente assistida e à manipulação genética) e para as diversas fases que acompanham uma morte cada vez mais submetida ao controle tecnológico. Direitos do embrião e/ou do feto e direitos do doente terminal (a partir do reconhecimento do "testamento biológico") estão, hoje, no centro do debate. E é exatamente nestes últimos contextos que é freqüente o apelo à dignidade humana. Às Cartas de direitos, acima citadas, seguiram outras nas quais a proclamação dos direitos humanos é precedida do reconhecimento do valor da dignidade humana. Agora, o chamado à dignidade humana ocorre tanto no sentido da tutela da pessoa em abstrato quanto no sentido da tutela do indivíduo concreto. Para observar isso, basta tomar em consideração o Capítulo I da Carta dos direitos fundamentais da União Européia, proclamada solenemente em Nice, em dezembro de 42 Recorde-se, entre outros, estes documentos fundamentais da ONU: Convenção sobre o estatuto dos apátridas (28 de setembro de 1954); Convenção sobre a abolição do trabalho forçado (25 de junho de 1957); Convenção para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres (18 de dezembro de 1979); Convenção contra a tortura e outras penas e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes (10 de dezembro de 1984); Convenção sobre os direitos das crianças (20 de novembro de 1989); Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência (30 de março de 2007). 43 Como tinha evidenciado Norberto Bobbio em alguns ensaios fundamentais, reunidos na obra L'età dei diritti, Torino, 1992 (veja-se particularmente pp. 68-70, mas a questão retorna também em outras partes do texto). 18 2000, e confrontá-la com a Convenção européia para a salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, que entrou em vigor em setembro de 1953 44 . É importante notar como, na Convenção, não aparece referência explícita à dignidade humana, e também onde a referência é implícita, ela considera o homem em abstrato, enquanto na mais recente Carta dos direitos é exatamente o elemento individual a adquirir um relevo particular. A expressão "toda pessoa", dominate na Convenção, vem freqüentemente substituída pela expressão "todo indivíduo". Este não é o lugar para comparar os dois documentos, mas é importante recordar que, na Convenção, o direito à vida de "cada pessoa" não exclui a pena de morte (art. 2°), enquanto que, na Carta dos direitos, o fato que "todo indivíduo" tenha direito à vida comporta que "ninguém pode ser condenado à pena de morte, nem executado" (art. 2°, § 2°). Além disso, é interessante a tutela da intimidade (privacy), que na Carta prevê (art. 8°) disposições detalhadas sobre a proteção dos dados pessoais: "todo indivíduo tem direito à proteção dos dados de caráter pessoal concernentes a ele" (art. 8°, § 1°) 45 . Todo o Capítulo I da Carta, dedicado à dignidade, depois de ter reafirmado, usando os mesmos termos da Lei fundamental alemã, o valor "intangível" da dignidade humana ("ela deve ser respeitada e tutelada"), repropõe a dignidade humana como tutela da dignidade da pessoa enquanto pessoa, proibindo torturas e penas ou tratamentos desumanos e degradantes (art. 4°), assim como escravidão, trabalhos forçados e tráfico de seres humanos (art. 5°), mas deixando também emergir toda a importância da tutela da dignidade da pessoa enquanto indivíduo concreto, não apenas proibindo a pena capital (seja sob a forma de execução ou de simples condenação), mas também 44 Ambos os documentos são reproduzidos no volume Codice dei diritti umani, organizado por G. Conso e A. Saccucci, Padova, 2001, pp. 347-351 (Convenção européia) e pp. 577-584 (Carta dei diritti). Em relação ao nosso tema, e especificamente sobre a Convenção européia, cfr. B. MAURER, Le principe de respect de la dignité humaine et la Convention européenne des droits de l'homme, Paris, 1999, e S. BARTOLE-B. CONFORTI-G. RAIMONDI, Commentario alla Convenzione europea dei diritti dell'uomo e delle libertà fondamentali, Padova, 2001. Sobre a Carta dos direitos, cfr. L'Europa dei diritti. Commento alla Carta dei diritti fiìondamentali dell'Unione europea, R. Bifulco, M. Cartabia, A. Celotto (org.), Bologna, 2001 (pp. 38- 45, comentário de M. Olivetti ao art. 1°); fundamental também R. BIFULCO, Dignità umana e integrità genetica nella Carta dei diritti fondamentali dell'Unione Europea, em "Rassegna Parlamentare", n. 1, 2005, pp. 63-115. A Carta dei diritti foi depois inserida, como segunda parte, no Projeto de Tratado que institui uma Constituição para a Europa, apresentada ao Conselho europeu reunido em julho de 2003, em Tessalonica, e ratificado em Roma, em 29 de outubro de 2004 (à dignidade é aqui reservado o Título I, art. II, 61-65). Uma contribuição importante sobre o tema foi dada por G. RESTA, La disponibilità dei diritti fondamentali e i limiti alla dignità (note a margine della Carta dei diritti), em "Rivista di diritto civile", 2002, pp. 801-848. 45 Disposições análogas encontram-se no novo Código italiano sobre a tutela de dados pessoais (d.Lgs. 30 de junho de 2003, n. 196), pois não é por acaso que o art. 2° coloca em estreita relação a privacidade com a dignidade: o código "garante que o tratamento dos dados pessoais ocorra no respeito aos direitos e às liberdades fundamentais, assim como da dignidade do interessado, com particular referência à privacidade, à identidade pessoal e ao direito de proteção dos dados pessoais". 19 vetando, no âmbito da biomedicina, todas aquelas práticas (como a eugenia, a comercialização do corpo humano, a clonagem reprodutiva) tidas como lesivas da "integridade física e psíquica" de "todo indivíduo" (art. 3°). Tutelar a integridade física e psíquica significa reconhecer a todo ser humano o direito de ser considerado não apenas como ente genérico e, por isso, igual a qualquer outro indivíduo, mas também como ente individual e, portanto, diferente de qualquer outro indivíduo. A Carta, então, fornece uma proteção integral da dignidade humana: é o primeiro documento jurídico em que esta apresenta-se com plena autonomia em relação a outros valores, como a liberdade e a igualdade, às quais vinha associada tradicionalmente. Esta relevância da dignidade humana está ligada – como mostra particularmente o art. 3° – às possíveis aplicações biotecnológicas ao homem, e é extremamente significativa porque recupera,e quiçá aumenta, a centralização da dignidade atribuída por outro documento, pouco anterior, que se ocupa especificamente de tais aplicações: a chamada Convenção de Oviedo do Conselho da Europa 46 . No próprio título deste documento, a dignidade vem associada à proteção dos direitos humanos, ainda que, no Preâmbulo, exista pelo menos uma passagem na qual a dignidade aparece autonomamente, onde se afirma "a necessidade de respeitar o ser humano, seja como indivíduo, seja por pertencer à espécie humana", e se reconhece "a importância de assegurar a sua dignidade". É aqui mais evidente o uso do vocábulo nos dois significados acima destacados: a dignidade do homem como ente genérico e como ente individual. A Convenção de Oviedo constitui o primeiro documento jurídico 47 internacionalmente vinculante que regulamenta, de modo específico, as possíveis aplicações no homem dos progressos da medicina e da biologia, e parte da tomada de consciência que "um uso impróprio da biologia e da medicina pode levar a atos que colocam em perigo a dignidade humana". É diante desta situação que a Convenção propõe-se a adotar as "medidas necessárias para garantir a dignidade humana, assim como os direitos e as liberdades fundamentais do indivíduo". O art. 1° afirma que as partes 46 CONSELHO DA EUROPA, Convenção para a proteção dos direitos do homem e da dignidade do ser humano com relativamente às aplicações da biologia e da medicina (Convenção sobre os direitos do homem e sobre biomedicina), Oviedo, 04 de abril de 1997. O texto oficial, em francês e inglês, conjuntamente com a trad. italiana anotada por L. Carra e M. Mori, foi publicada em "Bioetica", 1998, 4, pp. 581-609. Para um interessante comentário sintético, cfr. R. ANDORNO, The Oviedo Convention: A European Legal Framework at the Intersection of Human Rights and Health Law, "Journal of International Biotechnology Law", 2, 2005, pp. 133-143. 47 A ênfase na noção de dignidade humana que caracteriza a Convenção de Oviedo foi recepcionada pelos mais importantes documentos da Unesco que se ocuparam de questões bioéticas: UNESCO, Declaração universal sobre o genoma humano e os direitos humanos, de 11 de novembro de 1997 (veja-se em particular: art. 1°, art. 2°, art. 10, art. 11, art. 12a, art. 15); UNESCO, Declaração universal sobre a diversidade cultural, de 02 de novembro de 2001 (em particular Preâmbulo e o art. 4°); UNESCO, Declaração universal sobre bioética e os direitos humanos, outubro de 2005 (em particular, art. 2°c e 3°); UNESCO, Establishing bioethics committees, outubro de 2005 (Parte I, pp. 9-10). 20 firmatárias empenham-se a proteger "a dignidade e a identidade do todos os seres humanos", e a garantir "a todo indivíduo, sem discriminação, o respeito à sua integridade e de seus direitos e liberdades fundamentais em relação às aplicações da biologia e da medicina". Também deste importante documento (e dos sucessivos protocolos adotados, ou em curso, sobre questões singulares, como, por exemplo, a proibição da clonagem humana) não é possível fornecer uma análise detalhada. Gostaria, contudo, de dedicar-me a dois aspectos (que, ao mesmo tempo, colocam-me dois limites) e tratá-los em conexão com as diversas posições que atualmente se afrontam no debate bioético. Em um documento que tem por objeto a dignidade humana e toda uma série de direitos humanos fundamentais, não se precisa, de modo adequado, no que consistiria propriamente a proteção da dignidade humana em relação às proteções dos outros direitos fundamentais. Em segundo lugar, no documento jamais vem definido o que se entende por "ser humano": esta ausência pode parecer totalmente irrelevante a partir do momento que todos nós sabemos o que é um ser humano. Contudo, veremos na seção conclusiva (infra, 7) que as coisas não são bem assim. 6. A vida humana na época de sua reprodutibilidade técnica Em relação ao primeiro aspecto, poder-se-ia inicialmente responder que a Convenção, associando a dignidade à identidade, teria de algum modo desejado indicar um limite insuperável: aquele dado pela manipulação do patrimônio genético, com o fim deliberado de planificar a criação de seres humanos com características superiores que daqueles existentes. Esta explicação é confirmada pelos artigos 11-14, dedicados ao genoma humano. Ainda que, naquele contexto, não se encontre a locução "dignidade humana", é evidente que a tutela da identidade genética é fundada exatamente sobre a intangibilidade da dignidade humana, a ser entendida tanto no sentido de um direito de todos os seres humanos (e, portanto, da espécie humana enquanto tal) à integridade do patrimônio genético, quanto no sentido de um direito de cada indivíduo à unicidade de seu genótipo, de não sofrer discriminações por esta razão. Interpretada deste modo, a noção de dignidade humana poderia constituir uma ótima proteção nas questões de todas as tentações (partindo da clonagem reprodutiva) que hoje trazem as biotecnologias aplicadas à espécie humana. Não está ameaçada apenas a dignidade dos homens singulares ou de grupos de homens – que hoje seguramente encontram mais tutelas que no passado – mas a dignidade da espécie a que pertencem, na medida em que eles mesmos tentam manipulá-la. E, ainda sobre este ponto, no debate bioético 21 atual existe menos acordo do que pareceria à primeira vista. A seguir, apenas um breve resumo da discussão. Há alguns anos atrás, Stefano Rodotà escrevia que, mesmo admitindo a liberdade de acesso às técnicas reprodutivas, isso não significa que tal liberdade "traduza-se também ao direito de predeterminar as características do nascituro, de interferir no seu material genético. O 'acaso' deve manter seu papel no processo de reprodução" 48 . Contudo, neste gênero de argumentação está presente uma questão crucial: por que o homem não poderia pegar em suas próprias mãos o destino de sua evolução, uma vez que já está em condições de fazê-lo, invés de continuar a confiar no acaso? Dentro de um ponto de vista laico, hoje há gente que o defende abertamente. A revolução da biologia molecular nos dá a capacidade de guiar e controlar a evolução humana, e não se vê, prima facie, por qual razão uma ética laica deveria continuar a confiar no acaso. A manipulação genética é o futuro do homem. Esta é, pelo menos, a conclusão radical, mas coerente, a que chegou John Harris, em um livro emblemático, já traduzido em língua italiana 49 . A isso se poderia contrapor alguns recentes escritos de Jürgen Habermas, que insiste sobre os riscos de uma genética liberal 50 . Ainda que não seja possível aqui um confronto entre estas duas perspectivas opostas, parece-me importante destacar como – diante do problema da manipulação genética por parte daqueles que pretendem evidenciar seus perigos – exatamente o recurso à idéia do homem como "imago Dei" continua ainda a mostrar, não obstante sua fragilidade aparente, toda a sua força. No fundo, o argumento evita a queda ao reducionismo biológico e nas conseqüentes acusações de especismo que, freqüentemente, são colocadas nos confrontos com aqueles que defendem que o homem deveria ser protegido simplesmente porque pertence à espécie humana 51 . Com certeza, poder-se-ia evitar tal obstáculo, como fez em 1999 o povo suiço, inserindo na própria Constituição um artigo que prevê uma proteção contra os abusos da engenharia genética mesmo no âmbito não- 48 Cfr. S. RODOTÀ, Tecnologia e diritti, Bologna, 1995, p. 160. Mais recentemente, esta argumentação foi utilizada para indicar uma "chave interpretativa laica da noção de dignidade". Cfr. M.G. GIAMMARINARO, Lucie ombre della Carta Europea dei diritti, em "Bioetica", 4, 2001, pp. 710-725 (715). 49 Cfr. J. HARRIS, Wonderwoman & Superman, 1992, trad. italiana, com o mesmo título, organizada por R. Rini, Milano, 1997. 50 Cfr. J. HABERMAS, Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik?, 2001, trad. italiana de L. Ceppa, Il futuro della natura umana. I rischi di una genetica liberale, Torino, 2002. 51 O vocábulo "especismo" foi cunhado por R. D. Ryder para indicar (em analogia com "racismo" e "sexismo", que indicam a discriminação com base em raça e em sexo) a discriminação que os homens efetuam nas relações com as outras espécies (cfr. R. D. RYDER, Experiments on animals, em Animals, Men and Morals: an Enquiry into the Maltreatment of Non-Humans, organizado por R. e S. Godlovitch e J. Harris, London, 1971). O termo tem tido grande sucesso sobretudo a partir da publicação de Animal liberation (1975) de Peter Singer (trad. italiana Liberazione animale, de E. Ferreri, organizada por P. Cavalieri, Milano, 1991). 22 humano, que fala expressamente de "uma dignidade da criatura" (Würde der Kreatur, art. 120, § 2°), estendendo assim a tutela da dignidade a todas as criaturas vivas, animais e plantas incluídos. Ainda que possam ser entendidas as intenções que instigaram a introdução deste novo conceito, é claro o risco que se corre: poderia se perder aquela especificidade do valor da dignidade que sempre a caracterizou, isto é, de estar ligada ao ser humano 52 . Para superar a crítica de especismo seria possível também seguir outro caminho. Robert Spaemann defende a seguinte tese: o homem possui uma dignidade específica no mundo da natureza viva, não por sua particular conformação genética, mas porque é o único ser em condições de relativizar a si mesmo, de tomar distância de sua própria subjetividade e de pôr os próprios interesses em um contexto onde outros interesses (humanos e não-humanos) entram em jogo. É porque existem homens que hoje podemos falar de direitos dos animais e até mesmo dos nossos deveres nas relações com a natureza. E é exatamente esta capacidade de relativizar a si mesmo que revela, paradoxalmente, o absoluto do homem, a sua incomensurabilidade em relação aos outros seres vivos. Spaemann cita Santo Agostinho, que considera o homem capaz de "amor Dei usque ad contemptum sui", e conclui: "o conceito 'dignidade' refere-se a alguma coisa de sagrado: é, em substância, um conceito metafísico-religioso" 53 . Dessa forma, é o apelo a algo superior ao homem que funda a sua dignidade. Admitida como capaz de enfrentar a crítica do especismo, esta argumentação dificilmente parece aceitável nas nossas sociedades secularizadas. Aqui está sua (aparente) fragilidade. Mas também, sob esta ótica, as coisas são mais complexas do que parecem. O discurso metafísico pode ser mantido separado daquele religioso. Saído de uma imersão cultural nos movimentos gnósticos antigos e tardo-antigos, Hans Jonas, por exemplo, procura recuperar a metafísica, esforçando-se para mantê-la separada da religião, ainda que, por outro lado, seja obrigado a admitir que tal 52 Para uma discussão do tema, cfr. "Würde der Kreatur". Essays zu einem kontroversen Thema, organizado por A. Bondolfi, W. Lesch, D. Pezzoli-Olgiati, Zürich, 1997, e PH. BALZER-K.P. RIPPE-P. SCHABER, Menschenwürde vs. Würde der Kreatur. Begriffsbestimmung, Gentechnik, Ethikkommissionen, Freiburg- München, 1998. Uma leitura interessante da dignidade humana e animal à luz do "valor intrínseco de criatura que é reconhecido aos animais" encontra-se em F. D'AGOSTINO, Filosofia del diritto, Torino, 1993, 252-261. 53 Cfr. R. SPAEMANN, Über den Begriff der Menschenwürde, em Menschenrechte und Menschenwürde. Historische Voraussetzungen - säkulare Gestalt - christliches Verständnis, E.W. Böckenförde e R. Spaemann (org.), Stuttgart, 1987, pp. 295-313. A importância do ensaio de Spaemann (há muito tempo traduzido em espanhol e recentemente em italiano, R. SPAEMANN, Natura e ragione. Saggi di antropologia, Università della Santa Croce, Roma, 2006) não escapou de F. Viola, que utilizou suas idéias fundamentais na conclusão de seu livro Etica e metaetica dei diritti umani, Torino, 2000, pp. 208-216 ("§ 5° La giustificazione della dignità umana"). É este, entre outros, um dos poucos casos nos quais, no âmbito da filosofia do direito italiana, é afrontado o tema da dignidade humana. Do mesmo autor, cfr. Dignità umana, em Enciclopedia filosofica, Milano, 2006, pp. 2863-2865. 23 fundação "talvez seja impossível sem a religião" 54 . A referência constante deste autor ao homem como imagem de Deus retraduz, no fundo, argumentos teológicos em uma ética laica, antecipando, de tal modo, alguns êxitos do atual debate sobre a dignidade humana que reabrem o discurso sobre o papel ativo das religiões na cena mundial. Penso aqui, em particular, nos escritos de Habermas que, a partir do discurso Glauben und Wissen, de 2001, até a recente discussão com Joseph Ratzinger, insistem, ainda mais que nas obras anteriores do autor, sobre a relação entre religião e Estado liberal-democrático. A linguagem religiosa não é mais simplesmente consolatória, não se refere apenas à esfera privada dos indivíduos, nem mesmo cumpre uma função tão-somente no interior da Lebenswelt ("mundo vital"), mas exprime razões, ocupa um espaço na "esfera pública polifônica" 55 . Confinar Deus exclusivamente no âmbito privado da própria consciência significa esterilizar a contribuição que a religião pode oferecer ao desenvolvimento da sociedade civil. O processo de secularização deveria, então, cumprir-se não de forma destrutiva, mas na forma de tradução: "Traduzir a idéia de um homem criado à imagem e semelhança de Deuz, na idéia de uma igual dignidade de todos os homens, de respeitar-se incondicionalmente, constitui um exemplo de tal tradução preservadora" 56 . Concentrei-me sobre Habermas não porque diga coisas particularmente originais em comparação com Spaemann ou Jonas, mas porque, o que talvez surpreenda à primeira vista, chega a conclusões muito semelhantes às destes autores. Embora movendo-se em um horizonte laico e pós- metafísico, Habermas não encontra nada melhor que apelar à idéia do homem como imagem de Deus para contrastar os riscos de uma genética liberal. Tudo isto confirma a importância deste argumento no debate atual. Ainda que seja necessário observar que, diversamente do último 54 Cfr. H. JONAS, Das Prinzip Verantwortung, (1979), trad. italiana Il principio responsabilità. Un'etica per la civiltà tecnologica, organizada por P.P. Portinaro, Torino, 1990 (a citação encontra-se na p. 17). Neste contexto, é importante assinalar uma conferência de Jonas publicada postumamente, e pela primeira vez em italiano em "Micromega", 5, 2003, pp. 40-54: Come possiamo fondare indipendentemente dalla fede il nostro dovere nei confronti delle generazioni future e della terra?. O original alemão foi publicado com o título Wie können wir unsere Pflicht gegen die Nachwelt und die Erde unabhängig vom Glauben begründen?, em Orientierung und Verantwortung. Begegnungen und Auseinandersetzungen mit Hans Jonas, D. Böhler e J.P. Brune (org.), Würzburg, 2004, pp. 71-84. 55 Cfr. J. HABERMAS, Glauben und Wissen, 2001, trad. italiana Fede e sapere, em J. HABERMAS, Il futuro della natura umana. I rischi di una genetica liberale, cit., pp. 99-112 (a citaçao está na p. 107). 56 Cfr. J. HABERMAS, Vorpolitische moralische Grundlagen eines freiheitlichen Staates (2004), em J. RATZINGER-J.
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