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CURSO:
Especialização em Ensino de História do Brasil e do
Mundo Contemporâneo
DISCIPLINA:
Teoria da História
CARGA HORÁRIA: 30H
PERÍODO: 27/05 a 14/06
DOCENTE: Prof. Dr. Edwar de Alencar Castelo Branco
CEAD-UFPI /2023
CASTELO BRANCO, Edwar de A. A concepção de
tempo histórico sob a história dos annales: uma
estratégia de evasão do tempo terror. Interfaces de
saberes, vol. 1, n. 2, João Pessoa, Ideia, janeiro a
julho de 2001. 53-74.
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Raros e rotos,
restos, rastros e rostos: os arquivos e documentos
como condição de possibilidade do discurso
historiográfico. In: O tecelão dos tempos: novos
ensaios de teoria da história. São Paulo: Intermeios,
2019.
HALL, Stuart. A identidade Cultural na Pós-
modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora. 2000.
CASTELO BRANCO, Edwar. Desvendando a prática
pedagógica em história: o professor frente à história
e seu ensino. Educação, Porto Alegre, v. 31, nº 3, p.
232-238, set./dez., 2008.
TEXTO 05:
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Para que serve
a história? [Transcrição de Edwar Castelo Branco].
Campina Grande: s/e, 2001.
A concepção de tempo histórico sob a História dos Annales: uma
estratégia de evasão do ‘tempo-terror’**
Edwar de Alencar Castelo Branco*
edwar2005@uol.com.br
O tempo, para tornar-se visível, vive à cata de corpos e, mal os encontra, logo deles se apodera, a fim
de exibir a sua lanterna mágica.
Marcel Proust
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RESUMO
Este trabalho discute a concepção de tempo histórico dos Annales a partir de uma ampla reflexão sobre
a trajetória da idéia de tempo em várias sociedades, desde o instante mágico dos arcaicos até a linha
utópica dos iluministas, passando pelo ciclo dos gregos e pela linha escatológica dos cristãos. A
conclusão mais contundente do texto se encaminha para o reconhecimento de que o tempo dos
Annales, a exemplo de seus antecessores, corresponde a uma estratégia de evasão do tempo.
PALAVRAS-CHAVE:
Teoria da história – Historiografia – paradigmas.
__________________________________________________________________________________
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ABSTRACT
This work argues the conception of historical time of Annales from an ample reflection on the path of
the idea of time in some societies, since the magical instant of the arcaic ones until the utopian string
of the iluministas, passing for the cycle of the greeks and the eschatological string of the cristãos. The
conclusion most forceful of the text if directs for the recognition of that the time of Annales, the
exemple of this predecessors, corresponds to a strategy of evasion of the time.
KEY WORDS:
Theory of history – Historiografia – Paradigms
Este texto é o resultado de uma reflexão sobre o método da história, sendo portanto um
esforço para compreender as concepções de história – e em particular de tempo histórico –
que informam atualmente o trabalho do historiador. Os pontos de vista aqui expostos foram
elaborados a partir da leitura de textos de diversos autores que direta ou indiretamente tratam
a questão, entre os quais José Carlos Reis, Peter Burke, Michel Vovelle, Demerval Saviani e
Michel Foucault1.
As leituras foram metodologicamente orientadas em torno das teses de Reis, a saber: (1)
o tempo é inapreensível; (2) o tempo é essencialmente evento; (3) o tempo é vivido como
terror; (4) todas as sociedades criaram estratégias de evasão deste tempo-terror; e, finalmente,
(5) a nouvelle histoire sintetizou, em sua concepção de tempo, todas as estratégias de evasão
que lhe antecederam, beneficiando-se – de modos diferentes – de cada uma delas (cf. 1994b).
Acresça-se que discussões como a que está sendo tratada aqui – a emergência de um
novo consenso em torno da concepção de tempo histórico, portanto de um novo paradigma na
História – só são possíveis a partir da compreensão de que o trabalho científico – desde o
século XIX e a partir do interior das universidades modernas – tem sido organizado em torno
de pelo menos dois pressupostos básicos: (1) a especialização das disciplinas e, (2) a
suposição da autonomia deste trabalho em relação ao contexto de sua produção. São esses
pressupostos, aliás, que definem o ‘paradigma’, segundo a concepção kuhniana. Os Annales,
* * Este texto foi publicado em diferentes revistas. Para algumas destas versões, ver: Linguagens, Educação e
Sociedade – Revista do Mestrado em Educação. Teresina, n. 06, julho a dezembro de 2001. p. 41–51;
Interfaces de saberes, vol. 1, n. 2, João Pessoa, Idéia, janeiro a julho de 2001. 53-74.
* Professor de Teoria da História na UFPI, é Doutor em História e pesquisador do CNPQ.
1 As referências bibliográficas completas das obras consultadas estão listadas no final do texto.
mailto:edwar2005@uol.com.br
2
nesta perspectiva, oferecem um elemento de crise não apenas ao ‘paradigma’ da história, mas
ao próprio conceito de ‘paradigma’ (cf. Plastino, 1996).
Do ponto de vista deste trabalho, o que distingue a História em relação às demais
disciplinas ou “ciências” do homem não é o seu objeto, mas antes o seu método – a maneira
como o objeto é olhado. Este método, por sua vez, assenta-se fundamentalmente na
cronologia, sendo a noção de tempo, que “está no coração do pensamento histórico” (Reis,
1994a: 19), questão crucial para o historiador. Decorre disto a importância de se discutir o
impacto da Nouvelle Histoire sobre as concepções de história que lhe antecederam tomando
como referência a concepção de tempo, posto que
a base profunda de um método histórico é uma ‘representação do tempo histórico’ e
é esta representação que diferencia as diversas escolas e programas históricos....
Uma escola histórica só pode se apresentar como ‘nova’ se apresenta uma outra e
original representação do tempo histórico. (Reis, 1998: 25)
Portanto, como pressuposto para discutir a concepção de tempo de uma escola
historiográfica está o reconhecimento, por um lado, de que a idéia de tempo é a base de uma
teoria em história, enquanto, por outro lado, deve-se reconhecer que as primeiras especulações
epistemológicas sobre o tempo foram as da física – onde a concepção de tempo aparece
referido aos movimentos naturais e tem como conceitos subjacentes os de medida, quantidade
e reversibilidade – e da filosofia – na qual o tempo aparece referido às mudanças no nível da
consciência e tem como conceitos subjacentes os de incomensurabilidade, qualidade e
irreversibilidade. Os tempos da física e da filosofia são, portanto, os parâmetros mais originais
para se pensar epistemologicamente o tema. Pode-se então, com esta perspectiva, acreditar
que existe um tempo natural – cosmológico – e um tempo da consciência – psíquico – que é a
apreensão daquele.
Enquadrando o tema dentro desta perspectiva, é possível verificar que a “consciência do
tempo” não corresponde ao tempo psíquico, nem tampouco ao tempo cosmológico, o que nos
leva à conclusão de que a idéia do tempo-calendário, sintetizando a racionalidade da
intersecção entre aqueles dois tempos, corresponde a uma representação imaginária – no
sentido clássico de Cornélius Castoriadis – do tempo, posto que resulta da intervenção
deliberada do homem na leitura do tempo cosmológico, o que significa que ele é uma
construção social, portanto histórica. Daí a importância de se entender a existência desta
ambiguidade – um tempo natural e outro consciente – como pressuposto para se entender
mesmo o principal fundamento do método histórico – a cronologia.
As intrincadas relações entre tempo individual, tempo coletivo e tempo cosmológico
impõem que uma reflexão histórica sobre o tempo – como esta que estou me propondo a fazer
– devacomo
podem ser evidência, indício através do qual se reconstitui o passado, se
eles mesmos necessitam ser reconstituídos, pensados quanto as operações
que os produziram, se eles mesmos são artefatos fabricados por operações
de rasura, silenciamento, distorção, encobrimento, apagamento? Como
saber o que houve realmente, verdadeiramente entre antónio e alberto
se já na escritura primitiva de nossos corpos ele já usara de disfarces para
falar de seus sentimentos, que preferiu chamar de isso? Se depois nos
quis de volta talvez para nos destruir? Se tudo o que Alberto nos promete
de futuro é sermos publicadas aos pedaços, aos fragmentos, adulteradas,
cheias de escórias feitas por um irmão velho e moralista? Agora entendo
bem porque somos raros, embora também entendamos melhor ainda
porque somos rotos.6
Restos: terceiro movimento
aquelas que entre nós se chamavam cartas, que nos deixaram tão
contentes por pela primeira vez irem sair daquela prisão e daquela situ-
ação de obscuridade, que souberam entusiasmadas que iam até passear
numa coisa chamada automóvel e percorrer as ruas da cidade chamada
lisboa, coisa que só haviam feito uma única vez aos trombolhões dentro
de uma sacola malcheirosa, voltaram assim profundamente desiludidas
com seu destino de documento. Quer dizer que ser documento implicava
sofrer todos aqueles percalços? Já sabiam que para sê-lo alguém precisava
assim as nomear, só passariam de cartas a documentos quando alguém,
quando algum humano assim o decidisse. Não bastava que o demiurgo,
também humano, as tivesse criado, escrito, produzido, não bastava que
tivessem sido guardadas pelo querido alberto, que tivessem constituído
6 Idem, ibidem, p. 11 e 12.
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aaquilo que ele chamava de “seu arquivo”. Descobriram, dolorosamente,
que os documentos estavam sujeitos a passar por outras operações que iam
assim os configurando enquanto tal. Ficaram sabendo que os documentos
são fatos, da mesma forma que aquilo que indiciam, pois estão sujeitos às
peripécias e aconteceres que ocorrem no tempo. Mas também são artefatos,
são produtos de fabricação, de intervenções diversas que se dão ao longo
do tempo. ficaram pensando naqueles que leriam, no futuro, aqueles
arremedos de si mesmas, aquelas cópias, porque não dizer aqueles restos
delas mesmas. Que imagem poderiam fazer do que se passara entre aqueles
dois homens e elas relataram? Escandalizadas contavam que o irmão do
poeta não só desprezara a maioria delas, alegando ser impublicáveis e sem
interesse - imaginem que de dezenas delas, teria copiado apenas dezoito
cartas -, muitas vezes perceberam que ele não conseguia entender o que o
irmão quisera dizer. como o próprio alberto confessara a guilherme, na
correspondência de Nobre havia trechos cifrados, referências a eventos,
pessoas e situações que só os dois conheciam e que usavam disfarces para
a elas se referir. Elas sentiram que, não só aquele ancião que as lia parecia
não dominar mais parte do vocabulário, dos conceitos, o próprio contexto
em que foram produzidas, como que elas próprias haviam envelhecido.
Em seus corpos estavam escritas palavras, conceitos, nomes, significados
que haviam se perdido no tempo. Elas se deram conta que a tarefa que se
colocava para aquele provecto pesquisador se dava não apenas no plano da
leitura e da cópia, mas no plano da decifração. Elas se sentiram como um
velho papiro precisando ser decodificado. Se elas já no nascimento eram
produto de disfarces, de representações do senhor Nobre, de encenações
para chamar a atenção do outro, se já havia nelas o uso de uma linguagem
cifrada, como poderiam ser lidas simplesmente como o relato do que re-
almente, verdadeiramente acontecera, por um homem que parecia sequer
entender, ou não querer entender e ver, o que se passara entre os dois
correspondentes? E se elas desaparecessem, e sentiam que isso era bem pos-
sível, até pelo envelhecimento do qual tomaram consciência, o que fariam
as pessoas com aquilo que delas restaria? Aquelas dezoito cartas mutiladas
fariam que sentido, que mensagem transmitiriam estando amputadas de
seu conjunto? Ficaram mais indignadas quando souberam que o livro a
ser publicado pelo Sr. augusto Nobre chamar-se-ia Cartas de António Nobre
para Alberto de Oliveira7, pensaram consigo mesmas, mas isto é um engodo,
uma falsificação, a um pequeno extrato da correspondência o tal senhor
vai dar este nome pomposo, induzindo as pessoas ao erro de pensar que
aquilo era tudo que os dois amigos haviam escrito! E já lacrimosas, foram
se deitar em seu envelope pardo, lamentando o destino dos documentos.
os que entre nós se chamavam postais ouviram tudo aquilo apreen-
sivos. Entre eles apenas um já tivera esta experiência de ser retirado de seu
esconderijo, enviado ao que chamavam de periódico para a tal publicação.
Ele não chegara a ver o resultado, de como ficou sua silhueta depois de
ser passada pela tal máquina de imprimir, pois logo foi devolvido à sua
condição de prisioneiro. todos haviam escutado naquela manhã, com
certa esperança, o alberto dizer ao guilherme que se Deus lhe desse vida
e saúde pretendia fazer alguma coisa em relação aos postais. Embora fosse
bastante vago esse desejo, chegaram a se animar, afinal sendo a tal publi-
cação feita pelo homem que demonstrava ter por eles tanto afeto e apego,
que os guardara por toda uma vida, não deveria padecer dos mesmos
7 Estas informações e a referên-
cia ao título do livro encontra-
mos em caStilho, guilher-
me de (org.). António Nobre:
correspondência, op. cit., p. 12.
Não sabemos se o livro chegou
efetivamente a ser publicado,
pois em nenhuma biblioteca
portuguesa, nem mesmo na Bi-
blioteca Nacional de Portugal,
encontramos esse título.
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problemas que maculavam a tal publicação das cartas, não seria do modo
que elas acabavam de relatar. Mas este entusiasmo logo se arrefeceu e deu
lugar a maus presságios quando ouviram ele fazer as seguintes ressalvas:
que eram documentos íntimos, o tom em que foram escritos era muito
confidencial, de maneira que só os divulgaria em parte e com notas suas
aclarando passagens de mais delicada interpretação, decifrando o que em
muitos passos era quase linguagem cifrada, revivendo memórias e recons-
tituindo ambientes inteiramente delidos pelo tempo. Principalmente esta
palavra “delidos” lhes causou frio nas colunas, foi assim que se sentiram,
delidos, e este nome não devia significar boa coisa. De um só golpe fica-
ram sabendo que se chegassem a ver a luz da publicação não seria todos
eles a ter essa sorte. assim como as cartas passariam por um processo de
seleção, do qual não sabiam quais os critérios. ou seja, alguns ou talvez a
maioria deles continuariam levando sua vida de armário, dele não sairiam
e, embora o tal armário levasse o nome de cômoda, eles não se sentiam
nada cômodos naquela situação. ficaram sabendo ainda que o alberto
acompanharia a publicação deles de notas explicativas, que ajudassem na
interpretação de dados trechos que ele disse serem mais delicados e serem
escritos disfarçados por uma linguagem cifrada.8 Mas, meditaram com seus
cartões: alberto não estaria assim querendo induzir aqueles que os leriam a
entender dadas passagens da maneira que seria mais interessante para ele?
ao se propor a explicar dadas passagens dos escritos de Nobre, passagens
disfarçadas, alberto não poderia a elas acrescentar novos disfarces, agregar
sentidos e significados que ali não se encontravam? Eles já começavam a
se sentir verdadeiras odaliscas, cobertos de véus ou quem sabe palhaços,
com suas inúmeras máscaras. E é porque tinham ouvido falar que os tais
documentos serviam para desvelar, para desvendar dadas realidades do
passado. Mas como podia ser isso, seeles mesmos pareciam cada vez
mais com um palimpsesto, dada a sucessão de camadas de sentido que
a eles iam sendo agregadas. o que garantiria que ao reviver memórias e
reconstituir ambientes “delidos”, alberto não tentasse fazer com que eles
fossem lidos da maneira que ele gostaria? Quem garantiria que Alberto,
perdoem pela palavra que vou usar senhores pesquisadores, quem garante
que, com licença da palavra, Alberto não ficcionaria suas memórias, não
criaria os tais ambientes delidos? Se o demiurgo já era um grande fingidor,
afinal era um poeta, se já os havia usado para registrar, mas também para
encenar e disfarçar sentimentos, afetos, desejos, emoções, amores, dores,
angústias, saudades, solidões, o que não podia fazer este outro poeta, nos
últimos anos de sua vida, preocupado com a sua memória, com a imagem
que deixaria de si mesmo, ao selecionar quais de nós mereciam se tornar
público e ao escrever as tais notas explicativas. Era evidente que essa notas
tinham a função de induzir a uma dada leitura, a desfazer o que ele julgava
ser possíveis equívocos ou mal entendidos nas leituras que os pósteros
(Nossa! como falamos difícil agora.) pudessem fazer de nós. Seriam falas,
discursos, mas feitos para silenciar, seriam memórias para fazer esquecer,
escritos não só para inscrever mas também para apagar, para reviver e matar
os tais ambientes delidos. Elas, ao mesmo tempo, tratariam de construir e
ocultar um contexto de fala para o entendimento do que dizíamos. Neste
dia os postais aprenderam que ser documento não é ser da ordem da reve-
lação, mas da ordem do disfarce. aprenderam que documento não é para
constatar, documento é para contrastar. aprenderam que documento não
8 informações presentes em
caStilho, guilherme de
(org.). António Nobre: correspon-
dência, op. cit., p. 10.
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aapenas informa, documento deforma. Que os documentos não se oferecem
desnudos e virginais para serem lidos, o documento é feito de camadas de
sentido e significados, muitos deles delidos. O documento tem uma his-
tória de sua própria constituição, enquanto tal, que interfere nos sentidos
que ele possa oferecer. aprenderam, acima de tudo, que documento não é
dado, documento não é achado, documento é fabricado, criado, inventado.
Documento, é como o sertão de um tal rosa, ele vem sempre disfarçado.9
Souberam naquela manhã que, assim como as amigas cartas, deles
só ficariam restos. E se puseram a meditar sobre esta condição de ser res-
to. chegaram à conclusão que esta já era a sua condição desde que foram
atirados para aquela gaveta. Eles eram restos de uma relação afetiva que
parece ter sido intensa, angustiada, conflitiva, atormentada, atribulada,
feita de dessimetrias e desencontros, de mal entendidos, de entreditos, de
encontros e desencontros. Eles eram parte do que havia sobrado de uma
relação que Alberto definia, nas entrevistas que concedia, como sendo
uma amizade amorosa.10 Eles eram restos de um tempo, eram restos de
vivências, de experiências, de emoções, de pensamentos, de lamentos e
de tormentos. Eles eram o que restara de uma vida, da vida de um poeta
que morrera com apenas trinta e dois anos, eram o que restava de sua
vida privada, de sua vida íntima, da sua vida cotidiana, pois, além deles,
ficaram os seus versos, a sua face pública, embora não menos tristonha e
melancólica. E, ainda se perguntaram, o que se pode fazer com restos? Para
que servimos? Para alguma coisa havia de ser pois acabavam de ouvir da
boca do forasteiro pesquisador que eram um tesouro, que eram raros. Mas
será que mesmo naquela condição de raridades rotas pela ação mutilado-
ra dos homens, acentuando a sua condição de restos, eles continuariam
tendo alguma utilidade? Claro que mais raros iam ficando e, talvez, com
o próprio passar do tempo e conforme as condições em que vissem a ser
acondicionados, guardados, utilizados (e sabe-se lá o que fariam com eles
os herdeiros do Alberto quando ele morresse), mais rotos fossem ficando
e amplificando a sua própria condição de restos. Fariam eles ainda algum
sentido no futuro?
E aí esta questão os assaltou: mas afinal o que é fazer sentido? De que
sentidos afinal estariam falando? Haveria algum sentido único e absoluto
inscrito neles mesmos que pudesse ser descoberto, apreendido, revelado,
entendido? O sentido estava alojado no interior mesmo daquelas garatujas
que cobriam os seus corpos? Ou este tal de sentido só passava a existir
quando um chamado leitor, pesquisador, historiador, seja lá que nome
tivesse, sobre eles se debruçassem? Os sentidos eram intrínsecos a eles ou
era da ordem da relação, era relacional? Sabiam que o demiurgo quisera
transmitir sentidos e significados, quisera através deles transmitir uma
mensagem para alberto. ou seja, desde o começo era preciso existir um
outro, o tal destinatário para que o sentido, o significado enviado por Nobre
pudesse acontecer. Sim, acontecer, pois o sentido, pensaram, é também da
ordem do acontecimento, pois ele se produz num dado momento, numa
dada época, num dado contexto, delidos ou não. o sentido se produz no
encontro entre a mensagem, a informação, o dado inscrito no corpo do
documento e os conceitos, as noções, as formas de pensar, de perceber, de
julgar, as noções e pré-noções trazidas pelo leitor. Não existem sentidos
prévios ou dados, eles são produzidos. Por isso mesmo estes restos que
eles eram e poderiam vir a se tornar poderiam fazer sentido, desde que
9 referência a roSa, João gui-
marães. Grande sertão: veredas.
15. ed. rio de Janeiro: José
olympio, 1982.
10 informações presentes em
caStilho, guilherme de
(org.). António Nobre: corres-
pondência, op. cit., p. 21 e 22. Ver
também D’oliVEira, alberto.
Prosa e versos: páginas escolhi-
das. lisboa: aillaud, 1919.
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reinvestidos de significação por homens situados no presente. Porque isso
também aprenderam, só os homens do presente e nele situados os podia
dar sentido. Embora o fizessem em negociação, numa relação agônica,
numa relação de tensão, e porque não de tesão, com os sentidos do passado.
Sabiam agora que, o chamado sentido primitivo, primeiro, que pudessem
ter tido e que, chegavam a duvidar que pudesse ter dele consciência plena
o próprio demiurgo, pois também nele atuava algo sorrateiro e disfarçado
como é o desejo e o inconsciente, jamais seria alcançado pelo leitor do futu-
ro. o sentido nunca se recupera, o sentido se libera, se produz, se constrói,
se atribui. acima de tudo aprenderam que fazer sentido implica o uso de
todos os sentidos humanos. Um documento não faz sentido apenas porque
é submetido ao escrutínio da razão, ele faz sentido porque é sentido, por-
que afeta, toca, atinge, chama a atenção, desperta a sensibilidade daquele
que lê. Ele nos toca em regiões do ser nunca completamente devassáveis e
inteligíveis. Porque um de nós terá mais valor, fará mais sentido, chamará
mais atenção de um dado leitor, nunca é inteiramente atribuível a ordem
da cognição, mas sempre terá algo que ver com a ordem da afecção, da
afeição. Um dado documento torna-se elegível, copiável, reprodutível, ci-
tável (Nossa! Como estamos falando difícil, estamos parecendo filósofos ou
sociólogos da escola paulista!) não apenas porque dadas intenções, dados
problemas, dados temas, dados conceitos, dadas teorias e metodologias,
dadas teses nos movem, mas também, e talvez, principalmente, porque o
tal documento nos comove. Nos faz mover-se em dada direção, nos faz
abalar e nos abalam em determinada direção e nos embalam com dadas
sensações e emoções. Se o sentido acontece no encontro entre os corpus
documentais e os corpos humanos, se acontece no calor dessa refrega, ele é
da ordem não apenas da razão, mas da paixão, pois ele emana de e marca
esses corpos. Se afinal, ele se faz do encontro entre os sentidos humanos
figurados einscritos nos documentos e os sentidos do humano que os
tentar ler, ver, decifrar, entender, escolher, ele é resultado do encontro
diferencial desses sentidos, é um terceiro elemento, nascido como uma
chispa nasce do encontro de duas lâminas, ele é invenção de uma dado
momento e de um encontro preciso. Ele não dormita aqui conosco nesta
gaveta incômoda, ele não está aqui já pronto à espera que alguém o venha
buscar, apanhar, pesquisar, ele se fará em um dado momento e num dado
encontro preciso, ele é eventual, ele não é dado ou achado, é inventado, é
criado. Ele está aqui conosco apenas como possibilidade, como vir a ser,
pois ele é da ordem do fluxo. Nós, documentos, somos não apenas restos,
mas promessas de novos sentidos. Mesmo a mais diminuta migalha que
de nós restar, ela poderá fazer sentido. Vejam bem, ela poderá fazer, pois
o sentido é da ordem do fazer, do fabricar, do construir, pois o sentido só
está neste fragmento como devir, como possibilidade que, claro, como toda
possibilidade tem seus limites, mas limites que também se vão alterando
conforme o tempo e as circunstâncias históricas, sociais, culturais, tecno-
lógicas, estéticas, éticas, ideológicas, etc.
a todo este longo perorar (vê-se bem que somos de Portugal!) o
“Diário” ouvia calado e absorto. algo o fazia cismar profundamente (isso
era o que mais fazia o demiurgo, pelo menos usava muito este verbo em
seus poemas!), afinal na conversa de Alberto com Guilherme seu nome
não fora evocado. Enfim, qual seria seu destino? O que seria dele? Logo
ele que sempre pareceu ser entre eles aquele que era o objeto de predileção
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ado alberto, que mais vezes foi por ele lido e relido, por que não merecia
agora qualquer referência? Se todos eram raros, sempre se julgou a joia da
coroa. No entanto agora ficara intrigado com o fato de que Alberto não
revelara a seu amigo pesquisador o destino que pretendia lhe dar. Um
mal pressentimento atravessou o seu coração, aquele que tantas vezes
havia pulsado tentando falar ao coração de seu destinatário. Ele tentava
entender o significado daquele silêncio, pois sabia por experiência própria
que os silêncios também significam. Em seu próprio corpo trazia muitas
marcas produzidas por silêncios significativos, silêncios sobre coisas que
seu demiurgo não conseguiu dizer, não soube como dizer, não dispunha,
talvez, de palavras para expressar. Em um dos bilhetes que constituía seu
corpus, o demiurgo confessara que não conseguia que alberto entendesse
o sentimento que tinha por ele, que não conseguia a expressão exata do que
ia em sua alma.11 Ele sabia que os silêncios também dizem muito e temia
pelo seu destino. talvez sem querer, sem ter consciência disso, alberto
terminasse por dizer muito ao resolver definitivamente calá-lo, emudecê-
lo, ao fazer dele um grande e significativo silêncio.
Rastos: quarto movimento
Um dia, que não querem ou já não podem lembrar, acordaram sobres-
saltados pela presença extraordinária de inúmeras pessoas naquela casa,
quase sempre silenciosa e soturna. ouviam-se orações, choros, cânticos,
vozes estranhas, alteradas, ruídos incomuns de toda ordem. Notaram
que, no entanto, a voz de alberto não se fazia ouvir. Estranharam, pois,
afinal, sempre que uma visita chegava àquela casa era ele a recebê-la,
notadamente se fossem pessoas do sexo masculino. foi um dia de sobres-
saltos constantes, pessoas iam e vinham naquela saleta onde a tal cômoda
que os abrigava estava instalada. Por vezes achavam que os passos que
se aproximavam a eles se dirigiam, esperavam sobressaltados fazer-se o
ruído característico da chave girando na fechadura, som que, sabiam, sig-
nificava uma baforada de ar fresco e a possibilidade de novas aventuras
em suas vidas de documentos, em sua condição de arquivo. Mas em todas
as vezes o alarme revelara-se falso. No entanto, numa das oportunidades
em que pessoas deles se aproximaram, ouviram aterrados, aquilo que mais
temiam e já desconfiavam: Alberto de Oliveira tinha falecido, aquele que os
guardara com tanto carinho e desvelo, por tanto anos, estava morto.12 Deus
não lhe dera vida e nem saúde para se entregar à tarefa que se propusera
naquela manhã de conversa com guilherme de castilho. os amigos pos-
tais quedariam no anonimato em que viveram toda a vida, assim como o
folhudo diário. as cartas, não sabemos se podemos dizer isso, teriam tido
melhor sorte, pois pelo menos restavam delas aquelas cópias adulteradas
que deveriam aparecer no livro do tal augusto Nobre. Morto aquele que
deles tinha a posse, que destino teriam? Não conheceram durante esses
quarenta e sete anos que viviam naquela condição outra pessoa daquela
casa. Sabiam que outras havia, mas nunca escutaram sequer o alberto a
falar deles com seus familiares; se falara, o fizera sem que pudessem ouvi-
lo. Possivelmente sabiam que existiam, que estavam ali guardados, mas
será que tinham algum significado, será que eram do interesse, será que
tinham algum valor para os herdeiros do autor de Palavras Loucas13? E se
eles fossem só isso, loucas palavras, pronunciadas por um poeta em seu
11 carta de antónio Nobre a
alberto de oliveira, 25 dez.
1891. In: MarQUES, fernando
cármino, op. cit., p. 106.
12 toda a cena é imaginada a
partir de sumárias informações
dadas por caStilho, gui-
lherme de (org.). António Nobre:
correspondência, op. cit., p. 10.
13 D’oliVEira, alberto. Pa-
lavras loucas. coimbra: frança
amado, 1894.
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delírio amoroso, se eles fossem apenas indícios de uma loucura que ocor-
reu no passado de alberto e que ele tivesse desejado, antes de morrer, ver
apagados, destruídos para sempre? O que teria dito Alberto a respeito deles
a sua companheira de muitos anos? Teria deixado alguma ordem expressa
para que ela desse a eles um determinado destino? Pensavam: essa parece
ser a sina dos ditos documentos íntimos, ser joguetes nas mãos de herdei-
ros nem sempre neles interessados ou cônscios de seu valor, herdeiros que
querem fazer dos documentos apenas fonte de ganhos materiais, que não
se preocupam em guardá-los ou preservá-los, que não titubeiam quando
sentem necessidade de se ver livre do que chamam de “papelada velha”
que fica entulhando e enfeando os imóveis que receberam por herança, que
não contam duas vezes na hora de descartar, queimar, malbaratar, vender,
danificar os documentos que foram deixados por seus antecessores. Mesmo
aqueles que se arvoram a ser guardiões da memória de seus queridos e
famosos entes desaparecidos, não duvidam da necessidade de esconder, de
proibir o acesso, de interditar a publicidade de dados documentos, e nisso
estão inclusive juridicamente amparados, quando não os tornam públicos
com as necessárias e indispensáveis omissões, corrigendas, lacunas, adul-
terações, manipulações. os chamados documentos estão sujeitos a todas
estas provações, talvez por isso tenha gente que diz que os documentos
existem para servirem de prova. Eles provariam que algo aconteceu. Mas
se eles mesmos passam por tantas provas, se eles são produto de tantos
acontecimentos, fortuitos e intencionais, como eles poderiam provar algo,
ser aquilo que dirime de vez uma dúvida ou uma questão, se eles pre-
cisam ser encarados, antes de tudo, com espírito de dúvida e postos em
questionamento. Mas seriam uma prova narrativa, indiciária como se faz
no discurso jurídico.14 Este não é definitivamente um bom exemplo, sabe-
mos que no discurso jurídico, até mesmo objetos de materialidade muito
mais incontestável do que a nossa, como uma faca e uma bala, podem
servir de prova tanto para a defesa como para a acusação, podem entrar
em narrativas do crime como argumentos totalmente díspares, pois é no
discurso que fazem sentido, elas mesmas não dizem ou provam nada, a
argumentação é que lhes confere um dado estatuto de prova, que pode vir
a ser contestado e contestávellogo a seguir por outra argumentação. todo
documento é submetido a um conjunto de provas que tem que superar
para chegar a assumir este lugar, esta condição. Documento não é prova,
é provocação, provocação à inteligência e à sensibilidade, provocação à
imaginação e ao sonho, provocação à interpretação e à criação, provocação
à criação de sentido, provocação aos sentidos e aos desejos. Documento
não é prova, é provação, ele coloca à prova a capacidade de quem com
ele lida de analisar, pensar, compreender, imaginar, intuir, criar, criticar,
desconfiar, argumentar, sentir, se deixar afetar.
ao torvelinho daquele dia, seguiram-se dias de silêncio, dias em que
sentimentos se misturavam. Viviam entre o abandono e o temor pelo que
viria. Um dia acordamos sobressaltados pelo girar da chave na fechadu-
ra. como meninos que vão se apresentar diante de um desconhecido, de
uma autoridade que vem visitar o colégio, nos empertigarmos todos em
nossas fatiotas de papel, aguardamos quase congelados o encontro com
aquele ou aquela que seria nosso novo possuidor. Não era uma só pessoa,
pois vindo de encontro àquela que tratava de abrir nosso calabouço, uma
outra se aproximou e perguntou o que iria fazer conosco: respondeu então
14 Este é o argumento apresen-
tado, por exemplo, pelo his-
toriador italiano giNZBUrg.
Sobre aristóteles e a história,
mais uma vez. In: Relações de
força: história, retórica, prova.
São Paulo: companhia das
letras, 2002.
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auma voz feminina, daquela que sabíamos ser a companheira de toda a
vida de alberto, ela disse: vou cumprir o último pedido do meu marido.
E nada mais disse. fomos, então, atirados para fora da gaveta, jogados
inicialmente sobre a mesa, em seguida colocados em uma espécie de cesto,
transportados até o quintal. aí fomos atirados ao chão, tratamento que
nunca havíamos recebido antes. apavorados vimos o fósforo a ser riscado,
a ser atirado sobre nós. Em pouco tempo a temperatura começou a subir,
nossos corpos começaram a arder, desesperados gritávamos e sentíamos
todas as dores que um dia um poeta quis tatuar em nossas peles. Nos
contorcíamos de angústia, dor e desespero. Nossas tintas, nossas lindas
imagens de Paris iam se esvaindo, iam se esfumaçando, se embaçando,
adquirindo tons alaranjadados, amarronzados, para alcançar o definitivo
tom cinza. chorávamos em forma de estalidos e estertorantes nossos pei-
tos chiavam num último suspiro de nossas letras. o valente “Diário” foi o
que mais resistiu, tentou de todas as formas defender os seus segredos e
mistérios se fechando sobre sua grossa capa. Mas as chamas impiedosas
a todos avidamente consumiram, em pouco tempo tudo o que restava
de nós eram cinzas, havíamos nos tornando simplesmente rastos do que
fôramos um dia. ali de rastros, atirados na terra, suplicamos a piedade a
nossa carrasca, sabíamos que, talvez, fôssemos os últimos sobreviventes
de uma heresia, de um amor que nunca poderia ser dito, sabido, um amor
que não poderia dizer seu nome, mas de nada adiantou, o auto de fé se
executou, em nome do apagamento daqueles pecados que o tal santo, o tal
Purinho algum dia pudesse ter cometido, fosse em pensamento, palavras
ou ações, a máxima culpa tinha que ser espiada por aquela fogueira que
consumia nossos corpus, que eram apenas pálidos rastos do que outros
corpos possam ter feito, em outros tempos e lugares.15
além das nossas cinzas, varridas no dia seguinte para o lixo, que
rastos de nós permaneceram? Havia as tais cartas copiadas pelo irmão do
poeta, rotas, adulteradas, corrompidas, mas mesmo assim eram o testemu-
nho de que havíamos existido. Elas apareceriam em um livro, descuidado,
cheio de erros tipográficos, onde as companheiras apareciam ainda mais
desfiguradas do que foram nas cópias originais do velho pesquisador.
isto pôde ser constatado, como vimos, por aquele outro pesquisador, o tal
guilherme de castilho. Mas como pôde ele constatar as adulterações, se
das cartas havia apenas levado aquelas anotações feitas às pressas em seu
caderno de notas? Sabemos que ele efetivamente leu cada um daqueles
papéis que lhe foram apresentados como documentos e fizera anotações de
trechos soltos em seu caderno. o que não sabíamos é de que ele dispunha
de uma memória tão privilegiada que foi capaz de perceber, quando da
leitura da versão das cartas que ia ser impressa, que elas estavam irreme-
diavelmente adulteradas. Pensou então que ele próprio deveria publicar as
cartas escritas por antónio Nobre. Sabia da morte de alberto de oliveira, até
comparecera ao velório, quando ficou a olhar para a cômoda-cemitério em
que nos enterrávamos e também ficou a cismar (como essa gente portuguesa
cisma), sobre o nosso futuro, mas julgou não ser momento propício para
disso tratar. resolveu então voltar à residência de alberto para comuni-
car à viúva o seu projeto. É quando se inteira de nossa execução sumária.
Mesmo assim, por considerar ser ele, por circunstâncias fortuitas, o único
que estaria em condições de estabelecer a versão mais próxima possível
dos originais das cartas, lançando mão de suas anotações, das cópias ori-
15 toda a cena é imaginada a
partir de informações sumá-
rias dadas por caStilho,
guilherme de (org.). António
Nobre: correspondências, op. cit.,
p. 10 e 11, onde ficamos saben-
do da ordem para a destruição
de toda a correspondência de
antónio Nobre.
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ginais de augusto de Nobre, que a ele foi dado acesso, e à sua memória
prodigiosa, resolve publicar as dezoito cartas que haviam assim, através
destas diversas operações e provações, sobrevivido à fogueira.16
Em seu livro intitulado António Nobre: correspondência, estes pálidos
rastos de nós mesmos vieram encontrar alojamento e registro definitivo. O
autor teve o cuidado de assinalar, usando as convenções usuais, as lacunas
que conseguiu perceber nas cópias feitas pelo irmão do poeta. Mas o que
ali estivera escrito se perdera completamente. O que afinal restara de nós,
a cópia da cópia, a publicação de cópias corrigidas de memória por um
homem que nos leu uma única vez, que fez de nós anotações esparsas. o
que está registrado nesse livro são apenas rastros do que fomos, mas rastos
no duplo sentido da palavra: algo que sobrou, que é uma pálida sombra
do que fomos, mas que assim mesmo indicia que existimos, é uma marca,
é uma impressão que não deixam de remeter para a existência outra, an-
terior que tivemos. Embora rasurada figura do que fomos, ela ainda causa
incômodo, ela ainda interpela, ainda pede sentido, explicação, ela ainda
convoca significado, quando é colocada sob os olhos de alguém. Essas
cartas, adulteradas ou adúlteras, ainda, marotas, safadas pelo tempo e pe-
los homens, piscam para nós, pedem deciframento, porque são da ordem
daquilo que um tal Saussure chamou de signo.17 Signo que se desdobraria
em dois termos que estariam presentes mesmo em nossos corpus, agora
quase apagados: um significante e um significado. Sim, continuamos a ser
significantes pois mesmo tendo nossos corpus ardido em chamas, essas
cópias, esses simulacros do que fomos, que agora circulam com a forma e
nome de livro, possuem de nós uma figura, uma imagem, que continuam a
convocar os parceiros dos significantes: os significados. Mesmo estes rastos
do que fomos continuam exigindo significação, continuam atingindo cor-
pos, mentes, sentidos e consciências, continuam afetando, fazendo efeito,
ao ser contemplados, lidos, por aqueles que se dispõem a encará-los. Eles
continuam a ter mistérios a desvendar, agora mais ainda, depois de todas
as peripécias porque passaram até chegar a esta condição livresca. Eles
continuam a ser esfinges em busca de quem decifre seus segredos. Mas,
sabemos agora, esta é uma tarefa infinda, sempre novos sentidos poderão
ser atribuídos aestes rastros. Dizem que há uns tais seguidores de um
chamado paradigma indiciário (deve ser uma seita ou religião) que desde
a mais remota antiguidade são capazes de através de rastros reconstituir
a imagem completa, inteira e perfeita de algo ou alguém, do animal que a
produziu, que a deixou inadvertidamente ao passar por dado lugar, em um
dado momento.18 Um tal Zadig era capaz de ver a imagem de um camelo,
talqualmente, diria rosa, ele era, só bastando deparar-se com suas marcas
deixadas na areia.19 há inclusive um personagem de um romance chamado
O nome da rosa que bastou ver os rastros deixados por um cavalo que fugira
de um mosteiro para ser capaz de saber o seu paradeiro.20 Mas afinal ele era
discípulo de aristóteles, do método indutivo por ele utilizado, coisa muito
aconselhada recentemente a historiadores, pois dizem, embora o próprio
texto do estagirita não diga isso, que indício pode ser prova.21 como o
tal saber histórico seria indiciário, rastro pode ser prova e através dele se
poderia recompor não somente um camelo, um cavalo ou uma cachorra
prenha, mas todo um pedaço do passado ou quem sabe, suma pretensão, o
passado inteiro. E nós que, modestos, queremos ser apenas signos, sinais,
restos, rastros, rotos e raros, a interpelar, a afetar, a forçar os homens a criar,
16 informações presentes em
caStilho, guilherme de
(org.). António Nobre: correspon-
dência, op. cit., p. 12.
17 referência a SaUSSUrE, fer-
dinand de. Curso de linguística
geral. São Paulo: cultrix, 1999.
18 a referência ao dito paradig-
ma indiciário e sua remissão à
pré-história é feita por pelo his-
toriador italiano giNZBUrg.
Sinais: raízes de um paradigma
indiciário. In: Mitos, emblemas
e sinais: morfologia e história.
São Paulo: companhia das
letras, 1989.
19 o historiador brasileiro Sid-
ney chalhoub serve-se dessa
fábula para fazer reflexões
teórico-metodológicas de
cunho realista em seu livro
chalhoUB, Sidney. Visões
da liberdade. São Paulo: compa-
nhia das letras, 1990.
20 referência a Eco, Umberto.
O nome da rosa. São Paulo: re-
cord, 1986.
21 Esta confusão entre as no-
ções de indício e de prova, de
testemunho e de prova é feita
por carlo ginzburg. Ele mes-
mo admite, em nota à edição
italiana de seu livro Relações de
Força, que o historiador inglês
Perry anderson já o alertara
para o uso indevido que fazia
da noção de prova, atribuindo-
a a aristóteles e usando a obra
do estagirita para discutir a
noção de prova na historio-
grafia. o autor, no entanto,
opta por manter a confusão
indevida. Ver giNZBUrg,
carlo. Relações de força, op. cit.,
p. 11. Para aristóteles, porém,
só se poderia falar em prova
quando se tratava da análise de
fenômenos da natureza, pois os
fenômenos humanos ofereciam
apenas indícios, testemunhos.
Ver ariStÓtElES. Retórica. 7.
ed. Madrid: alianza, 2007.
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aa inventar novos sentidos e significados. Nunca tivemos a pretensão que
servíssemos para se recuperar, resgatar, desvendar, desvelar, decifrar, o
passado, mas apenas que servíssemos para interpelar, interpretar, analisar,
inventar, criar versões e imagens do passado, para servir aos homens do
presente, às perguntas, problemas, questões, dores e angústias do presente.
Dizem que nós, documentos ditos íntimos, servimos bem para fazer uma
chamada micro-história, logo nós que sabemos que tamanho não é docu-
mento e que documento nada tem que ver com o tamanho que se queira
dar ao objeto, ao problema, ao tema que se quer tratar.22
hoje, depois de todos estes percalços, sabemos que os arquivos são
constituídos, que nascem tanto daquelas operações de acúmulo e guarda
de documentos, de classificação, nomeação, acondicionamento, de dados
conjuntos de documentos, como também destas operações de seleção, se-
paração, ordenamento, distribuição, e até mesmo de atividades de descarte,
destruição e adulteração de documentos. o arquivo e os documentos se
fabricam, tanto quanto as narrativas que deles se utilizam.
Rostos: quinto e último movimento
Mas como vocês sabem destas coisas? Vocês desapareceram há
muitos anos, vocês viraram cinzas desde o ano de 1940 e como podem
ter se inteirado destes modernos desenvolvimentos da chamada ciência
histórica? Como podem estar a par de questões tão momentosas (gosta-
ram da palavra?) que dividem os profissionais de história, que abalam
os alicerces desta sacrossanta instituição de Milão a Paris, de Nova York
a Lisboa, de Londres a Uberlândia? Uai, diria um documento mineiro, e
nós não estamos mortos? E não dizem que o espírito dos mortos tem o
dom da transcendência, da onisciência e da onipresença? Não se costuma
acreditar, nestas terras que navegaram em nome da cruz ou naquelas em
que as caravelas aportaram, que os espíritos são eternos, imortais e a tudo
veem? Que eles não conhecem mais os limites de tempos e espaços? Por
que você estranha que documentos portugueses possam continuar a ver,
ouvir, pensar e falar através dos tempos e dos espaços?
Não há gente que diz que nós documentos somos a garantia de que
a alma, o espirito, o pensamento, as vontades, as aspirações, as esperanças,
as paixões e as ações das pessoas de antanho não venham a morrer? Mes-
mo aqueles pobres restos em que nos tornamos, até os simples rastros da
existência que deixamos, guardariam em seu interior pelo menos os rostos
daquele que nos criou e daquele para o qual fomos escritos, fora outros
rostos que mais fugazmente foram em nós figurados. Nós seríamos a sua
cara, teríamos mesmo nas cópias pálidas que nos tornamos o seu jeitão,
permitiríamos vê-lo através de nós. Nós seríamos uma espécie de janela
sobre a qual ao se debruçar se enxergariam os perfis destes homens que
o passado levou.
Ei, mas quem é esta voz que agora nos interpela? De onde ela apare-
ceu? É a minha voz, a voz do autor do texto. Narrativas além de desenhar
rostos, perfis, figuras de sujeito, delinear personagens, também são feitas
de vozes. fui eu que desde o início deste texto convoquei a vocês docu-
mentos e os coloquei para falar, fui eu, como gostam de dizer muitos de
meus colegas historiadores, que deixei vocês falarem, que fiz de vocês os
personagens centrais deste texto, que dei a vocês um rosto humano, posto
22 Sobre os procedimentos me-
todológicos e a relação com as
fontes propostos pela chamada
micro-história, ver roJaS,
carlos antónio aguirre. Micro-
história italiana: modos de uso.
londrina: Eduel, 2012, e liMa,
henrique Espada. A micro-his-
tória italiana: escalas, indícios,
singularidades. rio de Janeiro:
civilização Brasileira, 2006.
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que por humanos foram criados e são ecos de vozes e sombras de rostos
que se perderam no passado. Mas vocês pensaram que tinham o controle
do que aqui se dizia? Pois estavam bastante enganados. Ao contrário do
que costuma dizer alguns de meus colegas, documento não fala, documento
não pensa, documento não mostra, documento não demonstra, documento
não desmente, documento não desvela, documento não resgata, documento
não diz nada que não seja através de uma outra voz, a voz de quem os
consulta, os lê, os analisa, os recorta, os atribui sentido e significado. O
documento aparece no texto quando o autor assim o permite, no contexto
de argumentação que ele prepara, na trama narrativa que ele enreda. o
documento não faz sentido em si mesmo, só faz sentido nessa relação com o
outro. Como fiz aqui, é o historiador que infunde vida aos documentos que
analisa, faz a transfusão de sangue para que se reanimem, os torna huma-
nos. É ele que faz novamente o documento significar, que faz os rostos que
estes documentos desenham em traços rápidos ou excessivos, novamente
ganhar movimento. Mas então você esteve a fazer ficção? É possível que
algum artefato humano exista sem a sua capacidade de imaginar, criar,
inventar, construir? E tudo issopode ser chamado de ficcionar. Há ficção
maior do que dizer-se que os documentos fizeram ver, que os documentos
disseram, que os documentos revelaram o real, que os documentos obri-
garam a que algo fosse dito? Não sei se vocês notaram, mas eu dividi este
texto em cinco partes e as denominei de cinco movimentos, porque queria
enfatizar esse sentido do movimento que se estabelece entre o documento,
o arquivo e o historiador. a pesquisa histórica se inicia com o movimento
na direção de se constituir um arquivo, de se produzir documentos (não
de achá-los, de encontrá-los, pois vocês são testemunhos disso, não é pelo
simples fato de existirem e de estar guardados numa cômoda que vocês
podem ser considerados documentos, nem porque um dia podem ter
sido achados pela esposa de alberto ao fazer a limpeza doméstica - e ela
bem podia considerá-los uma sujeira -, é preciso a intencionalidade do
pesquisador para que algum artefato possa ser considerado documento, é
preciso uma série de operações para que ele venha a assim se constituir),
a pesquisa histórica avança num movimento de entrada e saída do corpo
do documento. É o historiador que faz o movimento que se inicia no texto
do documento e o liga a várias outras informações de que dispõe, a outros
documentos, a outros relatos, memórias, a outras anotações para que o
documento faça sentido. Eu usei esta estratégia de fazê-los personagens
do texto porque costuma-se dizer que um personagem histórico é aquele
que efetivamente teve existência no passado, esse seria um limite do nosso
discurso, só poderíamos falar de personagens reais, de rostos que possamos
ter a certeza de que tiveram presença real nos tempos que se foram. Mas
vocês efetivamente existiram, pelo menos é o que indica os rastros e restos
que deixaram. Mesmo rotos e raros, por que não poderiam ser personagens
de um texto de historiador? Mas é que não somos humanos, e se exige que
os personagens históricos sejam humanos. Não necessariamente, para que
se possa dar o estatuto de personagem histórico a algo basta que ele tenha
tido uma relação privilegiada com o humano, basta ter tido uma relação
com a ação humana no tempo, por isso podemos fazer do clima ou da
paisagem um personagem.
Eu os utilizei aqui, e documentos são para ser utilizados e só se
tornam documentos ao ser utilizados, nestes termos, como pretextos para
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auma discussão acerca do estatuto mesmo do documento e do arquivo. Sim,
como pretexto, porque isso é o que vocês são: textos prévios, narrativas
que vêm primeiro, agregado de sentidos que estão no princípio, que ser-
vem de ponto de partida para a criação de uma outra narrativa, de novos
sentidos, de novas versões e interpretações. Mas então quer dizer que o tal
historiador pode fazer conosco o que bem entender? Sim e não, o arquivo,
o documento são para os historiadores condição de possibilidade de sua
narrativa, mas também o limite ao que pode nela ser dito. o fato de que
grande parte de vocês tenha sido queimada, limita aquilo que podemos
saber, pensar, imaginar acerca do que foram os sentimentos que ligaram
António e Alberto, limita o que podemos afirmar sobre as ações que foram
por eles praticadas. Mas o próprio conteúdo das dezoito cartas que resta-
ram, sem esquecer os cortes cirúrgicos de que foram vítimas, impede que
nós historiadores, do século XXi, possamos dizer com o mínimo de certeza
o que se passou entre estes dois homens, o que não impede que possamos
imaginar, intuir, elucubrar, sugerir, insinuar. aliás, tudo o que foi escrito
até hoje sobre a relação entre esses dois homens só fica no plano da insinu-
ação. Por que isso? Porque, amigos, ouve uma operação de silenciamento,
que teve quase que sucesso absoluto. Ela começou na própria forma como
vocês foram escritas pelo demiurgo, usando linguagem cifrada, evitando
pronunciar certas palavras, registrar possíveis emoções e acontecimentos.
Por isso o arquivo e os documentos são as condições de possibilidade de
que haja discurso do historiador, afinal se não tivessem sobrado de vocês
aquelas pálidas e mutiladas cópias eu não poderia ter sequer escrito este
texto em que o rosto de vocês figuraram como personagem principal. Foi
a sombra de vocês projetada a partir daquele pequeno simulacro que de
vocês sobraram que me permitiu, como historiador, esculpir e dar rosto a
vocês neste texto, imaginar suas dores, sabores e dissabores. Mas as suces-
sivas operações de apagamento, de esquecimento, de silenciamento que
foram constitutivas de vocês mesmos como documento e como arquivo me
impõem limites. Até por motivos éticos não posso ir além de afirmações da
ordem da probabilidade, da possibilidade, não posso mais do que fazer de
meu texto uma interrogação e uma suspeita. Mas afinal não é isso também
papel do texto historiográfico?
Vou acabar este texto pregando uma peça em vocês, lhes fazendo
uma surpresa, como tantas que vocês documentos pregam e fazem na
gente. Vocês sabiam que não são o único testemunho que ficou do forte
sentimento que António Nobre devotou a Alberto de Oliveira? Não sabiam?
Pois fiquem sabendo. Nesta mesma época, em Paris, Nobre compôs um
poema em homenagem a oliveira. Este poema causou no amigo português
a mesma reação que muitos de vocês parecem ter lhe causado: ele ficou
preocupado com a repercussão que poderia ter a publicação desse poema,
escreveu ao amigo dizendo que temia que fossem vítimas de falatório e de
calúnias. Nobre lhe respondeu um tanto quanto magoado com os cuidados
do amigo, disse que publicaria o poema seguido de notas explicativas onde
deixaria esclarecida a natureza do sentimento que nutria pelo homenage-
ado, sentimento tão puro e belo que deveria ser motivo de publicidade.
Disse que se ele quisesse modificaria certas passagens do poema.23 Não
sabemos se isso foi feito. o que sabemos é que ele realmente publicou o
poema na primeira edição de seu único livro, o Só, mas sem as devidas
notas explicativas. Não sabemos se isto gerou desagrado a alberto, se deu
23 Ver carta de antónio Nobre
à alberto de oliveira, 10 dez.
1891. In: MarQUES, fernando
cármino, op. cit., p. 94-104.
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origem ao falatório e às calúnias que esse temia, se por isso ou por ter rom-
pido a relação que mantinha com o autor de Palavras loucas, Nobre retirou
o poema da segunda edição do livro. Mais um episódio de silenciamento,
de apagamento da memória de algo, daquilo que se passara entre os dois,
que sabemos poderia levar a ruína moral dos dois, mas do qual nada mais
sabemos. leiam o poema e reconhecerão o tom, o estilo e estarão diante,
talvez, dos mesmos disfarces que deram vida a todos vocês e que permi-
tiram que eu escrevesse este texto:
Terças-Feiras
Ao Alberto
Ó condezinho de Tolstoi (Alberto)
Santo da minha extrema devoção,
Alma tamanha que adorei de perto,
Lá na Thebaida do Sr. João
Meu Cálix do Senhor! Meu Pálio eterno!
Luar branco na minha escuridão!
Ó minha Joana D’Arc! Amigo certo
Na hora incerta! Águia! Meu Irmão!
A ti, as Terças-feiras, neste Inferno
D’aquele que nasceu, em terça-feira
E em terça-feira morrerá, talvez...
Quando eu for morto já, noites de inverno,
Aos teus filhinhos, conta-as à lareira
Para eu ouvir de lá:
Era uma vez...24
℘
Texto recebido e aprovado em maio de 2013.
24 Idem, ibidem,, p. 38.
A identidade cultural na pós-modernidade
Stuart Hall - 11" edição
Título original:
"The question of cultm·al identity",
in: S. Hall, D. Held e T. McGrew. Modernity and its fatures.
Politic Press/Open University Press, 1992.
Projeto gráfico e diagramação
Bruno Cruz
Tradução
Tomaz Tadeu da Silva
Guacira Lopes Louro
Capa
Rodrigo Murtinlw
Catalogação na fonte cio Departamento Nacional cio Livro
Hl79i
Hall, Stuart
A identidade culttffal na pós-modernidade
Stuart Hall; tradução Tomaz Tadeu da Silva,
Guaracira Lopes Louro-11.ed. -Rio de Janeiro:
DP&A, 2006.
104p.; 12xl8cm
ISBN 85-7'190-402-3
Tradução de: The question of cultural
identity.
1. Identidade social. 2. Etnologia I.
Título.
STUART HALL
A IDENTIDADE CULTURAL
NA PÓS-MODERNIDADE
Tradução: Tomaz Tadeu da Silva
Guacira Lopes Louro
1 ls edição
• ~ DP&A.
edite>ra.
© Blackwell Puhlisher
©da tradução: De Paulo Editora
Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio
ou processo, seja reprográfico, fotográfico, g,Táfico,
rnicrofihnagem etc. Estas proibições aplicarn-se, também
às características gráficas e/ou editoriais.
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(Código Penal, art. 184 e§§; Lei 6.395 de 17112/1980).
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Endereço eletrônico: dpa@dpa.com.br
Sítio: www.dpa.com.br
SUMÁRIO
1. A IDENTIDADE EM QUESTÃO, 07
Três concepções de identidade. O caráter
da mudança na modernidade tardia.
O que está em jogo na questão das
identidades?
2. NASCIMENTO E MORTE
DO SUJEITO MODERNO, 2J
Descentrando o sujeito.
3. As CULTURAS NACIONAIS COMO
COMUNIDADES IMAGINADAS, 47
Narrando a nação: uma comunidade
imaginada. Desconstruindo a
"cultura nacional": identidade e diferença.
4. GLOBALIZAÇÃO, 67
Compressão espaço-tempo e identidade.
Em direção ao pós-moderno global?
5. 0 GLOBAL, O LOCAL
E O RETORNO DA ETNIA, 77
The Rest in the West.
A dialética das identidades.
6. fUNDAMENTALISMO,
DIÁSPORA E HIBRIDISMO 91
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS,. 99
1
A IDEN'flDADE EM QUESTÃO
A questão da identidade está sendo
extensamente discutida na teoria social.
Em essência, o argumento é o seguinte: as
velhas identidades, que por tanto tempo
estabilizaram o mundo social, estão em declínio,
fazendo surgir novas identidades e fragmentando
o indivíduo moderno, até aqui visto como um
sujeito unificado. A assim chamada "'crise de
identidade" é vista como parte de um processo
mais amplo de mudança, que está deslocando as
estruturas e processos centrais das sociedades
modernas e abalando os quadros de referência
que davam aos indivíduos uma ancoragem estável
no mundo social.
O propósito deste livro é explorar algumas
das questões sobre a identidade cultural na
modernidade tardia e avaliar se existe uma "crise
de identidade", em que consiste essa crise e em
que direção ela está indo. O livro se volta para
questões como: Que pretendemos dizer com "crise
de identidade"? Que acontecimentos recentes nas
sociedades modernas precipitaram essa crise? Que
formas ela toma? Quais são suas conseqüências
potenciais? A primeira parte do livro ( caps. 1-2)
7
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
lida com mudanças nos conceitos de identidade e
de sujeito. A segunda parte ( caps. 3-6) desenvolve
esse argumento com relação a identidades
culturais- aqueles aspectos de nossas identidades
que surgem de nosso ''pertenciniento" a culturas
étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e, acima
de tudo, nacionais.
Este livro é escrito a partir de uma posição
basicamente simpática à afirmação de que as
identidades modenias estão sendo "descentradas",
isto é, deslocadas ou fragmentadas. Seu propósito
é o de explorar esta afirmação, ver o que ela
implica, qualificá-la e discutir quais podem ser
suas prováveis conseqüências. Ao desenvolver o
argumento, introduzo certas complexidades e
examino alguns aspectos contraditórios que a
noção de "'descentração", em sua forma mais
simplificada, desconsidera.
Conseqüentemente, as fonnulações deste
livro são provisórias e abertas à contestação. A
opinião dentro da comunidade sociológica está
ainda profundamente dividida quanto a esses
assuntos. As tendências são demasiadamente
recentes e ambíguas. O próprio conceito com o qual
estamos lidando, "'identidade", é demasfa.damente
complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco
compreendido na ciência social contemporânea para
ser definitivamente posto à prova. Como ocorre
com muitos outros fenômenos sociais, é impossível
oferecer afirmações conclusivas ou fazer julgamentos
8
A IDENTIDADE EM QUESTÃO
seguros sobre as alegações e proposições teóricas
que estão sendo apresentadas. Deve-se ter isso
em mente ao se ler o restante do livro.
Para aqueles/as teóricos/as que acreditam
que as identidades modernas estão entrando em
colapso, o argumento se desenvolve da seguinte
forma. Um tipo diferente de mudança estrutural
está transformando as sociedades modernas no
final do século XX. Isso está fragmentando as
paisagens cuhurais de classe, gênero, sexualidade,
etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos
tinham fornecido sólidas localizações como
indivíduos sociais. Estas transformações estão
também mudando nossas identidades pessoais,
abalando a idéia que temos de nós próprios como
sujeitos integrados. Esta perda de um "sentido
de si" estável é chamada, algumas vezes, de
deslocamento ou descentração do sujeito. Esse
duplo deslocamento-descentração dos indivíduos
tanto de seu lugar no mundo social e cultural
quanto de si mesmos - constitui uma "crise de
identidade" para o indivíduo. Como observa o
crítico cultural IV>bena Mercer, "a identidade
somente se torna uma questão quando está em
crise, quando i;Llgo que se supõe como fixo,
coerente e estável é deslocado pela experiência
da dúvida e da incerteza" (Mercer, 1990, p. 43).
Esses processos de mudança, tomados em
conjunto, representam um processo de
transformação tão fundamental e abrangente que
9
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
somos compelidos a perguntar se não é a própria
modernidade que está sendo transformada. Este livro
acrescenta mna nova dimensão a esse argun1ento: a
afirmação de que naquilo que é descrito, algumas
vezes, como nosso mundo pós-moderno, nós somos
também "pós" relativamente a qualquer concepção
essencialista ou fixa de identidade-algo que, desde
o Iluminismo, se supõe definir o próprio núcleo ou
essência de nosso ser e fundamentar nossa existência
como sujeitos humanos. Afim de explorar essa
afirmação, devo exa:mi1iar primeiramente as
definições de identidade e o caráter da mudança na
modernidade tardia.
Três concepções de identidade
Para os propósitos desta exposição,
distinguirei três concepções muito chf erentes de
identidade,asaher,asconcepçõesdeidentidade
do:
a) sujeito do Iluminismo,
b) sujeito sociológico e
c) sujeito pós-moderno.
O sujeito do Iluminismo estava baseado numa
concepção da pessoa humana como um indivíduo
totalmente centrado, unificado, dotado das
capacidades de razão, de consciência e de ação,
cujo '"centro" consistia nmn núcleo interior, que
emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia
10
A IDENTIDADE EM QUESTÃO
e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo
essenciabnente o mesmo - contínuo ou ''idêntico"
a ele- ao longo da existência do indivíduo. O centro
essencial do eu era a identidade de uma pessoa.
Direi mais sobre isto em seguida, mas pode-se ver
que essa era uma concepção muito ''individualista"
do sujeito e de sua identidade (na verdade, a
identidade dele: já que o sujeito do Iluminismo era
usuahnente descrito como masculino).
A noção de sujeito sociológico refletia a
crescente complexidade do mundo moderno e a
consciência de que este núcleo interior do sujeito
não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado
na relação com" outras pessoas importantes para
ele", que mediavam para o sujeito os valores, sentidos
e símbolos - a cultura-dos mundos que ele/ela
habitava. G.H. lVIead, C.H. Cooleyeosinteracionistas
simbólicos são as figuras-chave na sociologia que
elaboraram esta concepção "interativa" da
identidade e do eu. De acordo com essa visão, que
se tornou a concepção sociológica clássica da questão,a identidade é formada na "interação" entre o eu e
a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou
essência interior que é o "eu real", mas este é
formado e modificado num diálogo contínuo com os
mundos culturais "exteriores" e as identidades que
esses mnndos oferecem.
A identidade, nessa concepção sociológica,
preenche o espaço entre o "'interior" e o "exterior"
entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato
11
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
de que projetamos a "nós p~óprios" nessas
identidades culturais, ao mesmo tempo que
interna1izamos seus significados evalores, tornando
os "parte de nós", contribui para alinhar nossos
sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que
ocupamos no mundo social e cultural. Aidentidade,
então, costura (ou, para usarumametáforamédica,
"sutura") o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os
sujeitos quanto os mundos culturais que eles
habitam, tornando ambos reciprocamente mais
uni:ficadosepredizíveis.
Argumenta-se,entret.anto,quesãoexatamente
essas coisas que agora estão "mudando". O sujeito,
previamente vivido como tendo uma identidade
unificada e estável, está se tornando fragmentado;
composto não de uma única, mas de várias
identidades, algumas vezes contraditórias ou não
resolvidas. Correspondentemente, as identidades,
que compunham as paisagens sociais "lá fora"
e que asseguravam nossa conformidade subjetiva
com as "necessidades" objetivas da cultura, estão
entrando em colapso, como resultado de
mudanças estruturais e institucionais. O próprio
processo de identificação, através do qual nos
projetamos em nossas identidades culturais,
tornou-se mais provisório, variável e
problemático.
Esse processo produz o sujeito pós-moderno,
conceptualizado como não tendo uma identidade
fixa, essencial ou permanente. A identidade
12
A IDENTIDADE EM QUESTÃO
torna-se uma '~celebração móvel": formada e
transformada continuamente em relação às formas
pelas quais somos representados ou interpelados nüJ
sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). E
definida historicamente, e não biologicamente. O
sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao
redor de um ''eu" coerente. Dentro de nós há
identidades contraditórias, empurrando em diferentes
direções, de tal modo que nossas identificações estão
sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que
temos uma identidade unificada desde o nascimento
atéamorteéapenasporqueconstruímosumacômoda
estória sobre nós mesmos ou uma confortadora
"narrativa do eu" (veja Hall, 1990). A identidade
plenamente unificada, completa, segura e coerente é
uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os
sistemas de significação e representação cultural se
multiplicam, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de
identidades possíveis, com cada uma das quais
poderíamos nos identificar - ao menos
temporariamente.
Deve-se ter em mente que as três
concepções de sujeito acima são, em alguma
medida, simplificações. No desenvolvimento do
argumento, elas se tornarão mais complexas e
qualifi~adas. Não obstante, elas se prestam como
pontos de apoio para desenvolver o argumento
central deste livro.
13
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
O caráter da mudança na
modernidade tardia
Um outro aspecto desta questão da
identidade está relacionado ao caráter da mudança
na modernidade tardia; em particular, ao processo
de mudança conhecido como "globalização" e seu
impacto sobre a identidade cultural.
Em essência, o argumento é que a mudança
na modernidade tardia tem um caráter muito
específico. Como Marx disse sobre a modernidade:
é o permanente revolucionar da produção, o
abalar ininterrupto de todas as condições sociais,
a incerteza e o movimento eternos ... Todas as
relações fixas e congeladas, com seu cortejo de
vetustas representações e concepções, são
dissolvidas, todas as relações recém-formadas
envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo
que é sólido se desmancha no ar ... (Marx e Engels,
1973, p. 70).
As sociedades modernas são, portanto, por
definição, sociedades de mudança constante,
rápida e permanente. Esta é a principal distinção
entre as sociedades "tradicionais" e as
"modernas". Anthony Giddens argumenta que:
14
nas sociedades tradicionais, o passado é venerado
e os símbolos são valorizados porque contêm e
perpetuam a experiência de gerações. A tradição
é um meio de lidar com o tempo e o espaço,
inserindo qualquer atividiide ou experiência
particular na continuidade do passado, presente
A IDENTIDADE EM QUESTÃO
e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados
por práticas sociais recorrentes (Giddens, 1990,
pp. 37-8).
A modernidade, em contraste, não é
definida apeuas como a experiência de
convivência com a mudança rápida, abrangente
e continua, mas é uma forma altamente reflexiva
de vida, na qual:
as práticas sociais são constantemente examinadas
e reformadas à luz das informações recebidas
sobre aquelas próprias práticas, alterando, assim,
constitutivamente, seu caráter (ihid., pp. 37-8).
Giddens cita, em particular, o ritmo e o
alcance da mudança - "'à medida em que áreas
diferentes do globo são postas em interconexão
umas com as outras, ondas de transformação social
atingem virtuahnente toda a superfície da terra" -
e a natureza das instituições modernas ( Giddens,
1990, p. 6). Essas últimas ou são radicahnente
novas, em comparação com as sociedades
tradicionais (por exemplo, o estado-nação ou a
mercantilízação de produtos e o trabalho
assalariado), ou têm uma enganosa continuidade
com as formas anteriores (por exemplo, a cidade),
mas são organizadas em torno de princípios
bastante diferentes. Mais importantes são as
transformações do tempo e do espaço e o que ele
chama de "'desalojamento do sistema social" - a
'"extraç'.ão" das relações sociais dos contextos locais
de interação e sua reestruturação ao longo de
15
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
escalas indefinidas de espaço-tempo" (ihid., p.
21). Veremos todos esses temas mais adiante.
Entretanto, o ponto geral que gostaria de enfatizar
é o das descontinuidades
Os modos de vida colocados em ação pela
modenridade nos livraram, de uma forma bastante
inédita, de todos os tipos tradicionais de ordem
social. Tanto em extensão, quanto em intensidade,
as transformações envolvidas na modernidade são
mais profundas do que a maioria das mudanças
características dos períodos anteriores. No plano
da extensão, elas serviram para estabelecer formas
de interconexão social que cobrem o globo; em
termos de intensidade, elas alteraram algumas
das características mais íntimas e pessoai3 de nossa
existência cotidiana ( Giddens, 1990, p. 21).
David Harvey fala da modernidade como
implicando não apenas "um rompimento
impiedoso com toda e qualquer condição
precedente", mas como "caracterizada por um
processo sem-fim de rupturas e fragmentações
internas no seu próprio interior" (1989, p. 12).
Ernest Laclau (1990) usa o conceito de
''deslocamento". Uma estrutura deslocada é
aquela cujo centro é deslocado, não sendo
substituído por outro, mas por ''uma pluralidade
de centros de poder". As sociedades modernas,
argumenta Laclau, não têm nenhum centro,
nenhum princípio articulador ou organizador
único e não se desenvolvem de acordo com o
desdobramento de uma única ''causa" ou "lei".
16
http:CULTURAL.NA
A IDENTIDADE EM QUESTÃO
A sociedade não como os sociólogos pensaram
muitas vezes, mn todo unificado e bem delimitado,
uma totalidade, produzindo-se através de
mudanças evolucionárias a partir de si mesma,
como o desenvolvimento de uma flor a partir de
seu bulbo. Ela está constantemente sendo
"'descentrada" ou deslocada por forças fora de si
mesma.
As sociedades da modernidade tardia,
argumenta ele, são caracterizadas pela
"diferença"; elas são atravessadas por diferentes
divisões e antagonismos sociais queproduzem uma
variedade de díferentes "posições de sujeito" -
isto é, identidades -para os indivíduos. Se tais
sociedades não se desintegram totalmente não é
porque elas são uníficaclas, mas porque seus
díferentes elementos e identidades podem, sob
certas circunstâncias, ser conjuntamente
articulados. :Mas essa articulação é sempre parcial:
a estruttffa da identidade permanece aberta. Sem
isso, argumenta Laclau, não haveria nenhuma
história.
Esta é uma concepção de identidade muito
diferente e muito mais perturbadora e provisória
do que as duas ante1iores. Entretanto, argumenta
Laclau, isso não deveria nos desencorajar: o
deslocamento tem características positivas. Ele
desarticula as identidades estáveis do passado,
mas também abre a possibilidade de novas
17
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
articulações: a criação de novas identidades, a
produção de novos sujeitos e o que ele chama de
"recomposição da estrutura em torno de pontos
nodais particulares de articulação" (Laclau, 1990,
p.40).
Giddens, Harvey e Laclau oferecem leituras
um tanto diferentes da natureza da mudança do
mundo pós-moderno, mas suas ênfases na
descontinuidade, na fragmentação, na ruptura e
no deslocamento contêm uma linha comum.
Devemos ter isso em mente quando discutirmos o
impacto da mudança contemporânea conhecida
como "globalização".
O que está em iogo na questão
das identidades?
Até aqui os argumentos parecem bastante
abstratos. Para dar alguma idéia de como eles se
aplicam a uma situação concreta e do que está
""em jogo" nessas contestadas definições de
identidade e mudança, vamos tomar mn exemplo
que ilustra as conseqüências políticas da
fragmentação ou "pluralização" de identidades.
Em 1991, o então presidente americano,
Bush, ansioso por restaurar uma maioria
conservadora na Suprema Corte americana,
encaminhou a indicação de Clarence Thomas,
um juiz negro de visões políticas conservadoras.
18
A IDENTIDADE EM QUESTÃO
No julgamento de Bush, os eleitores brancos (que
podiam ter preconceitos em relação a um juiz
negro) provavelmente apoiaram Thomas porque
ele era conservador em termos da legislação de
igualdade de direitos, e os eleitores negros (que
apóiam políticas liberais em questões de raça)
apoiariam Thomas porque ele era negro. Em
síntese, o presidente estava '"jogando o jogo das
identidades".
Durante as "'audiências" em torno da
indicação, no Senado, o juiz Thomas foi acusado
de assédio sexual por uma mulher negra, Anita
Hill, urna ex-colega de Thomas. As audiências
causaram un1 escândalo público e polarizaram a
sociedade americana. A1g11ns negros apoiaram
Thomas, baseados na questão da raça; outros se
opuseram a ele, tomando como base a questão
sexual. As mulheres negras estavam divididas,
dependendo de qualidentidadeprevalecia: sua
identidade como negra ou sua identidade como
mulher. Os homens negros também estavam
divididos, dependendo de qual fator prevalecia:
seu serismo ou s.eu liberalismo. Os homens
brancos estavam divididos, dependendo, não
apenas de sua política, mas da forma como eles
se identificavam com respeito ao racismo e ao
sexismo. As mulheres conservadoras brancas
apoiavam Thomas? não apenas com base em sua
inclinação política, mas também por causa de sua
oposição ao feminismo. As feministas brancas,
19
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIPADE
que freqüentemente tinham. posições mais
progressistas na questão da raça, se opunham a
Thomas tendo como base a questão sexual. E, uma
vez que o juiz Thomas era um membro da elite
judiciária e Anita Hill, na época do alegado incidente,
umafuncionáriasuhalterna,estavamemjogo,nesses
argumentos, também qt1estões de classe social.
A questão da culpa ou da inocência do juiz
Thomas não está em discussão aqui; o que está
em discussão é o ''jogo de identidades" e suas
conseqüências políticas. Consideremos os
seguintes elementos:
20
• As identidades eram contmditórias. Elas se
cruzavmn ou se "deslocavrun" mutuamente.
.. As contradições atuavam tanto fora, na
sociedade, atravessand9 grupos políticos
estabelecidos, quanto "'denh·o" da cabeça
de cada indivíduo.
• Nenhuma identidade singular - por
exemplo, de classe social- podia alinhar
todas as diferentes identidades com uma
"identidade mestra" única, abrangente,
na qual se pudesse, de forma segura,
basear uma política. As pessoas não
identífícam mais seus interesses sociais
exclusivamente em termos de classe; a
classe não pode servir como um
dispositivo discursivo ou uma categoria
mobilizadora através da qual todos os
variados interesses e todas as variadas
; A IDENTIDADE EM QUESTÃO
identidades das pessoas possam ser
reconciliadas e representadas.
• De forma crescente, as paisagens políticas
do mundo moderno são fraturadas dessa
forma por identificações rivais e
deslocantes - advindas, especialmente,
da erosão da "identidade mestra" da
classe e da emergência de novas
identidades, pertencentes à nova base
política definida pelos novos movimentos
sociais: o feminismo, as lutas negras, os
movimentos de libertação nacional, os
movimentos antinucleares e ecológicos
(Mercer, 1990).
• Uma vez que a identidade muda de acordo
com a forma como o sujeito é interpelado
ou representado, a identificação não é
au tomática, mas pode ser ganhada ou
p erdida. Ela tornou-se politizada. Esse
processo é, às vezes , descrito como
constituindo mna mudança de uma política
de identidade (de classe) para uma política
de diferença.
Posso agora esquematizar, de forma breve,
o restante do livro. Em primeiro lugar , vou
examinar, de uma forma um pouco mais profunda,
como o conceito de identidade mudou: do conceito
ligado ao sujeito do Iluminismo para o conceito
sociológico e, depois, para o do sujeito "pós
moderno" . Em seguida, o livro explorará aquele
21
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
aspecto da identidade cultura~ moderna que é
formado através do pertencimeuto a uma cultura
nacional e como os processos de mudança - uma
mudança que efetua um deslocamento -
compreen-didos no conceito de "globalização"
estão afetando isso.
22
NASCIMENTO E MORTE
DO SUJEITO MODERNO
Neste capítulo farei um esboço da descrição,
feita por alguns teóricos contemporâneos,
das principais mudanças na forma pela
qual o sujeíto e a identidade são conceptualizados
no pensamento moderno. Meu objetivo é traçar
os estágios através dos quais uma versão particular
do "sujeito humano" - com certas capacidades
humanas fixas e um sentimento estável de sua
própria identidade e lugar na ordem das coisas -
emergiu pela primeira vez na idade moderna;
como ele se tornou ""centrado", nos discursos e
práticas que moldaram as sociedades modernas;
como adquiriu uma definição mais sociológica ou
:interativa; e como ele está sendo "descentrado"
na modernidade tardia. O foco principal deste
capítulo é conceitual, centrando-se em concepções
mutantes do sujeito humano, visto como uma
figura discursiva, cuja forma unificada e
identidade racional ermn pressupostas tanto pelos
discursos do pensamento moderno quanto pelos
processos que moldaram a modernidade, sendo
lhes essenciais.
23
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
Tentar mapear a história da noção de sujeito
moderno é mn exercício extremamente dificil. A
idéia de que as identidades eram plenamente
unificadas e coerentes e que agora se tornaram
totalmente deslocadas é uma forma altamente
simplista de contar a estória do sujeito moderno.
Eu a adoto aqui como um dispositivo que tem o
propósito exclusivo de uma exposição conveniente.
Mesmo aqueles que subscrevem inteiramente a
noção de um descentramento da identidade não
a sustentariam nessa forma simplificada. Deve-se
ter essa qualificação em mente ao ler este capítulo.
Entretanto, esta formulação simples tem a
vantagem de me possibilitar (no breve espaço deste
livro) esboçar um quadro aproximado de como,
de acordo com os proponentes da visãodo
descentramento, a conceptualização do sujeito
moderno mudou em três pontos estratégicos,
durante a modernidade. Essas mudanças
sublinham a afirmação básica de que as
conceptualizações do sujeito mudam e, portanto,
têm uma história. Uma vez que o sujeito moderno
emergiu num momento particular (seu
''nascimento") e tem mna história, segue-se que
ele também pode mudar e, de fato, sob certas
circunstâncias, podemos mesmo contemplar sua
''morte".
É agora mnlugar-comum dizer que a época
moderna fez surgir wna fonna nova e decisiva de
individualismo, no centro da qual erigiu-se uma
24
NASCIMENTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO
nova concepção do sujeito individual e sua
identidade. Isto não significa que nos tempos pré
moclernos as pessoas não eram indivíduos mas
que a individualidade era tanto "vivida" quanto
"conceptualizada" de forma diferente. As
transformações associadas à modernidade
libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas
tradições e nas estruturas. Antes se acreditava que
essas eram divinamente estabelecidas; não
estavam sujeitas, portanto, a mudanças
fundamentais. O status, a classificação e a posição
de uma pessoa na "grande cadeia do ser" - a
ordem secular e divilla das coisas-predominavam
sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse
um indivíduo soberano. O nascimento do
"indivíduo soberano", entre o Humanismo
Renascentista do século XVI e o Iluminismo do
século xvrn, representou uma ruptura importante
com o passado. Alguns argumentam que ele foi o
motor que colocou todo o sistema social da
"modernidade" em movim.ento.
Raymond Williams observa que a história
moderna do sujeito individual reúne dois
significados d.istintos: por um lado, o sujeito é
"indivisível" - uma entidade que é unificada no
seu próprio interior e não pode ser dividida além
disso; por outro lado, é também uma entidade
que é "singular, distintiva, única" (veja Williams,
1976; pp. 133-5: verbete "individual"). Muitos
movimentos importantes no pensamento e na
25
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
cultura ocidentais contribuíram para a emergência
dessa nova concepção: a Reforma e o
Protestantismo, que libertaram a consciência
individual das instituições religiosas da Igreja e a
expuseram diretamente aos olhos de Deus; o
Humanismo Renascentista, que colocou o Homem
( sic) no centro do universo; as revoluções
científicas, que conferiram ao Homem a faculdade
e as capacidades para inquirir, investigar e decifrar
os mistérios da Natureza; e o Iluminismo, centrado
na imagem do Homem racional, científico,
libertado do dogma e da intolerância, e diante do
qual se estendia a totalidade da história humana,
para ser compreendida e dominada.
Grande parte da história da filosofia
ocidental consiste de reflexões ou refinamentos
dessa concepção do sujeito, seus poderes e suas
capacidades. Uma figura importante, que deu a
essa concepção sua formulação primária, foi o
filósofo francês René Descartes (1596-1650).
Algumas vezes visto como o "pai da Filosofia
moderna", Descartes foi um matemático e
cientista, o fundador da geometria analítica e da
ótica, e foi profundamente :influenciado pela "nova
ciência" do século XVU. Ele foi atingido pela
profunda dúvida que se seguiu ao deslocamento
de Deus do centro do universo. E o fato de que o
sujeito moderno "nasceu" no meio da dúvida e
do ceticismo metafísico nos faz lembrar que ele
nunca foi estabelecido e unificado como essa forma
26
NASCIMENTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO
de descrevê-lo parece sugerir (veja Forester,
1987). Descartes acertou as contas com Deus ao
torná-lo o Primeiro Movímentador de toda criação;
daí em diante, ele explicou o resto do mundo
material inteiramente em termos mecânicos e
matemáticos.
Descartes postulou duas substâncias
distintas - a substância espacial (matéria) e a
substância pensante (mente). Ele refocalizou,
assim, aquele grande dual'ismo entre a "mente" e
a "matéria" que tem afligido a Filosofa desde
então. As coisas devem ser explicadas, ele
acreditava, por mna redução aos seus elementos
essenciais à quantidade mínima de elementos e,
em última análise, aos seus elementos
irredutíveis. No centro da "mente" ele colocou o
sujeito individual, constituído por sua capacidade
para raciocinar e pensar. "Cogito, ergo sum" era
a palavra de ordem de Descartes: "Penso, logo
existo" (ênfase minha). Desde então, esta
concepção do sujeito racional, pensante e
consciente, situado no centro do conhecimento,
tem sido conhecida como o "sujeito cartesiano".
Outra contribuição critica foi feita por John
Locke, o qual, em seu Ensaio sobre a compreensão
humana, definia ·o indivíduo em termos da
"mesmidade ( samehess) de um ser racional" - isto
é, uma identidade. que permanecia a mesma e
que era contínua com seu sujeito: "a identidade
da pessoa alcança a exata extensão em que sua
27
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
consciência pode ir para trás, pa'raqualquer ação
ou pensamento passado" (Locke, 1967, pp. 212-
213). Esta figura (ou dispositiv'o conceitua!)- o
"iu_divíduo soberano" - está iuscrita em cada um
dos processos e práticas centrais que fizeram o
mundo moderno. Ele (sic) er:a o "'sujeito" da
modernidade em dois sentidos: a origem ou
"sujeito" da razão, do conhecimento e da prática;
e aquele que sofria as conseqüências dessas
práticas - aquele que estava "'sujeitado" a elas
(veja Foucault, 1986 e também Penguin
Dictionary ofSociology: verbete "subject").
Algumas pessoas têm questionado se o
capitalismo realmente exigiu uma concepção de
indivíduo soberano desse tipo (Ahercromhie et
alli, 1986). Entretanto, a emergência de uma
concepção mais individualista do sujeito é
amplamente aceita. Raymond Williams sintetizou
essa imersão do sujeito moderno nas práticas e
discursos da modernidade na seguiu te passagem:
28
A emergência de noções de individualidade, no
sentido moderno, pode ser relacionada ao colapso
da ordem social, econômica e religiosa medieval.
No movimento geral contra o feudalismo houve
uma nova ênfase na existência pessoal do homem,
acima e além de seu lugar e sua função numa
rígida sociedade hierárquica. Houve uma ênfase
similar, no Protestantismo, na relação direta e
individual do homem co~ Deus, em oposição a
esta relação mediada pefa Igreja. Mas foi só ao
final do século XVII e no ;século XVIII que um
NASCIMENTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO
novo modo de análise, na Lógica e na Matemática,
postulou o indivíduo como a entidade maior ( cf. as
"mônadas" de Leibniz), a partir da qual outras
categorias ( especial:m~ente categorias coletivas)
eram derivadas. O pensamento político do
Iluminismo seguiu principalmente este modelo.
O argumento começava com os indivíduos, que
tinham uma existência primária e inicial. As leis
e as formas de sociedade eram deles derivadas:
por submissão, como em Hobbes; por contrato
ou consentimento, ou pela nova versão da lei
natural, no pensamento liberal. Na economia
clássica, o comércio era descrito através de UJn
modelo que supunha indivíduos separados que
[possuíam propriedade e] decidiam, em algum
ponto de partida, entrar em relações econômicas
ou comerciais. Na ética utilitária, indivíduos
separados calculavam as consecrüências desta ou
daquela ação que eles poderiam empreender
(Williams, 1976, pp.135-6).
Ainda era possível, no século XVIII,
imaginar os grandes processos da vida moderna
como estando centrados no indivíduo "sujeito-da
razão". Mas à medida em que as sociedades
modernas se tornavam mais complexas, elas
adquiriam uma forma mais coletiva e social. As
teorias clássicas liberais de governo, baseadas nos
direitos e consentimento individuais, foram
obrigadas a dar conta elas estruturas do estado
nação e das grandes massas que fazem uma
democracia moderna. As leis clássicas da economia
política, da propriedade, do contrato e da troca tinham
de atuar, depois da industrialização, entre as grandes
29
Anecessariamente contemplar uma subreflexão sobre as relações entre tempo e memória
– ou ainda, no mesmo sentido, sobre história e memória, entendidos ambos como processos
de introspecção (cf Lowenthal, 1998) –, justamente no sentido de reconhecer que se somos
preenchidos e cercados pelo passado, só temos consciência deste passado “como um âmbito
que coexiste com o presente ao mesmo tempo que se distingue dele” (Lowenthal, 1998: 65).
A despeito das disputas acadêmicas – particularmente entre Le Goff e Vovelle – sobre o
termo mais adequado para designar este região escondida e funda em nós, isto é, se as
sociedades humanas teriam um ‘inconsciente coletivo’ ou um ‘imaginário coletivo’, uma nova
concepção de passado, ou da relação entre presente e passado, conforme vamos ver, é uma
das bases da concepção de tempo dos Annales.
Um vasto conjunto de reflexões sobre a História – e em particular sobre as relações
entre História e Tempo – vem ocorrendo nos últimos anos dentro deste contexto teórico que
expusemos. No geral estas reflexões se encaminham no sentido de perceber que há uma
interação entre a percepção ou apreensão individual do tempo e a maneira como este tempo é
percebido social e coletivamente. A dialética da relação entre o tempo individual e o tempo
das sociedades é o que dá forma ao tempo-calendário. A esse respeito Reis nos lembra que
3
cercando o tempo individual por todos os lados e, ao mesmo tempo, cercado por
esse tempo psicológico, encontra-se o tempo coletivo, o tempo das sociedades, de
suas mudanças e construções coletivas: o tempo histórico... A primeira ponte que a
História lança sobre estes dois tempos é o calendário. (1994b: 72)
Tomado nesta perspectiva, é possível dizer, acompanhando Ricouer, que o tempo
histórico – tanto como experiência vivida quanto como conhecimento reconstruído do passado
– representa um terceiro tempo em relação aos tempos do cosmo e da consciência (cf.
Ricouer, 1983-1985).
Em textos que já se tornaram referência entre os profissionais de História2, Reis faz uma
incursão sistemática pela concepção de tempo histórico emergida com os Annales. Faz,
também, uma reflexão sobre as “revoluções” sofridas pela idéia de tempo apresentando o
impacto dos Annales como a terceira destas revoluções. As outras, pela ordem, seriam a
provocada pela religião sobre o mito e aquela provocada pela filosofia sobre a religião. Os
tempos teológico e filosófico, portanto, seriam os precursores da concepção de tempo dos
Annales.
Sobre a concepção teológica do tempo, apresentada como uma “teleologia
transcendente”, Reis observa que o tempo religioso rompe com o tempo cíclico e reversível
dos gregos, tornando-se irreversível, linear, singular e dotado de sentido e finalidade. Esta
idéia cristã de um centro – Jesus – com passado e futuro nós vamos retomar aí adiante. Em
termos epistemológicos pode-se dizer que a idéia de tempo linear é devida principalmente a
Santo Agostinho. Refletindo sobre “o que é de César e o que é de Deus”, isto é, buscando
definir a fronteira entre o poder temporal e o poder espiritual, Santo Agostinho fez uma
reflexão histórico-sociológica tomando o Velho Testamento como orígem da História e
apresentando o “Pecado Original” como o evento que justificou, historicamente, as diferentes
atribuições políticas do Auctoritas – poder espiritual – e do Potestas – poder temporal. Com
tal reflexão o pensador do início dos tempos medievais fundou epistemologicamente o tempo
linear (cf. Chatelet, 1975), libertando o tempo do ciclo de ferro de Platão. Apesar disto tudo,
porém, sob esta concepção de tempo a história permanece como um evento exterior ao tempo,
posto que os fatos permanecem acima e imunes à vontade dos homens, isto é, os eventos se
dão no sublunar mas só podem ser entendidos a partir do supralunar. É esta característica e o
decorrente aprisionamento do tempo dentro de um sentido pré-conhecido – a redenção cristã –
que justifica o enquadramento desta concepção como uma estratégia de evasão.
Sob a influência da filosofia o tempo é, então, transformado em uma “teleologia
imanente”, o que significa que apesar de também linear e irreversível, a história passa a ser
interior ao tempo, posto que sob esta concepção consciência e ação, isto é, fazer história e
fazer a história passam a se recobrir, o que permite o surgimento da idéia de uma história
feita pelos homens. Nesse contexto
a História emerge... como não apenas um problema prático, mas também teórico. O
homem, além de ser histórico, busca agora apropriar-se de sua historicidade. Alem
de fazer história, aspira a se tornar consciente dessa sua identidade. (Saviani, 1998:
08)
Esta compreensão do tempo acabou por permitir a instauração de um modelo segundo o
qual o homem é sujeito da história, ou seja, a história-realidade e a história-conhecimento se
recobrem. O resultado é um conceito de história “completamente dominado pelos de sujeito e
de consciência” (Reis, 1994a: 14). Valoriza-se o evento e a crença de que é possível controlá-
lo, passando o tempo a ser uma categoria abstrata que subordina presente e passado à
teleologia. A história-conhecimento passa, então, a ser a expressão da história-realidade,
criando como consequência a dificuldade teórica de compreender a narrativa histórica como
2 José Carlos Reis publicou, além de sua tese de doutoramento – Nouvelle Histoire e tempo histórico – vários
outros textos sempre discutindo a temática “tempo”. A referência bibliográfica completa destes trabalhos será
oferecida no final do texto.
4
um discurso – no sentido de Foucault, isto é, “o discurso não é simplesmente aquilo que
manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo” (Foucault, 1996:
10) – que silencia sobre outras tantas versões históricas latentes. Sobre esta questão é bastante
elucidativo o alerta de Albuquerque Junior:
O campo historiográfico, como campo de produção do saber, está recortado por
relações de poder que incidem sobre o discurso historiográfico. Ele é a positividade
de um lugar no qual o sujeito se articula, sem, no entanto, se reduzir a ele. Ele é
produto de um lugar antes mesmo de o ser de um meio ou de um indivíduo. E é este
lugar que deve ser questionado constantemente pelo especialista em história. A
operação historiográfica deve se constituir também desta volta crítica sobre si
mesma. (Albuquerque Jr, 1999: 29)
É, portanto, no rastro desta história impregnada de ‘sujeito’ e de ‘consciência’ que se
afirma a idéia de um “singular coletivo, reunindo todas as histórias particulares” (Reis, 1994a:
12), num modelo sob o qual “todas as diferenças de uma sociedade podem ser reconduzidas a
uma forma única, a uma coerência tranquilizadora” (ibidem: 24). Esta idéia de uma sociedade
harmoniosa, por sua vez, acaba por negar que
As dificuldades (...) marcam o desenhar das relações sociais. A cultura não é
resultado do acaso, mas de uma luta constante, cotidiana que faz do homem um
animal audacioso e, ao mesmo tempo, angustiado. Negar o conflito, as contradições,
é negar as múltiplas e as complexas dimensões do fazer humano. (Rezende, 1997:
02)
O tempo da história sob a influência da filosofia é, portanto – assim como as
concepções que lhe antecederam – uma estratégia de evasão do tempo, na medida em que
nega valor ao presente e ao passado e, ao mesmo tempo, projeta no futuro a própria redenção
da condição humana. Sob esta concepção o mundo moderno quer
implantar o futuro no presente. O presente é uma eterna novidade, pois tomado pelo
futuro. E, ao mesmo tempo, este presente tomado pelo futuro não é mais novidade
nenhuma, pois o futuro já é conhecido antecipadamente. O espaço da experiência – o
presente que contém o passado – é abreviado e interrompido para que o horizonte de
espera seja então espaço da experiência.IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
formações de classe do capitalismo moderno.
O empreendedor individual da Riqueza das "ações
de Adam Smith ou mesmo d'O cttpital deMarx foi
transformado nos conglomeradçs empresariais da
economia moderna. O cidadãoihdividual tornou
se enredado nas maquinariab burocráticas e
administrativas do estado moderno.
Emergiu, então, uma conçepção mais social
do sujeito. O indivíduo passou a ser visto como
mais localizado e ''definido" rio interior dessas
grandes estruturas e formaçõe~ sustentadoras da
sociedade moderna. Dois importantes eventos
contribuíram para articular um conjunto mais
amplo de fundamentos conceptuais para o sujeito
moderno. O primeiro foi a biologia darwiniana. O
sujeito hmnano foi "biologizado" - a razão tinha
umabasenaNamreza e a mente um '"fundamento"
no desenvolvimento físico do cérebro humano.
O segundo evento foi o surgimento das novas
ciências sociais. Entretanto, as transformações que
isso pôs em ação foram desiguais:
30
• O "indivíduo soberano'', com as suas (dele)
vontades, necessid~des, desejos e
interesses, permaneceu a figura central
tanto nos discursos da economia moderna
quanto nos da lei moderna.
" O dualismo típico do pensamento cartesiano
foi institucionalizado nadivisão das ciências
sociais entre a psicologia e as outras
NASCIMENTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO
disciplinas. O estudo do :indivíduo e de seus
processos mentais tornou-se o objeto de
esh1do especiale privilegiado da psicologia.
.. A sociologia, entretanto, forneceu uma
crítica do "'individualismo racional" do
sujeito cartesiano. Localizou o :indivíduo
em processos de grupo e nas normas
coletivas as quwis., argumentava, subjaziam
a qualquer contrato entre sujeitos
:individuais. Em conseqüência, desenvolveu
uma explicação alternativa do modo como
os indivíduos são formados subjetivamente
através de sua participação em relações
sociais mais amplas; e, inversamente, do
modo como os processos e as estruturas
são sustentados pelos papéis que os
indivíduos neles desempenham. Essa
"internalização" do exterior no sujeito, e
essa "externallização" do interior, através
da ação no mtmdo social (como discutida
antes), constituem a descrição sociológica
primária do sujeito moderno e estão
compreendidas na teoria da socialização.
Como foi observado acima, G. H. Meade
os interacionistas simbólicos adotaram uma
visão radicalmente interativa deste
processo. A integração do indivíduo na
sociedade tinha sido mna preocupação de
longa data da sociologia. Teóricos como
Goffman estavam profundamente atentos
31
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
ao modo como o "eµ" é apresentado em
d:if erentes situações sociais, e como os
conflitos entre estt:s diferentes papéis
sociais são negociados. Em um nível mais
macrossociológico,, Parsons estudou o
"ajuste" ou complementaridade entre "o
eu" e o sistema social .. Não obstante, alguns
críticos alegariam que a sociologia
convencional mantivera algo do dualismo
de Descartes, especialmente em sua
tendência para construir o problema como
uma relação entr,e duas entidades
conectadas mas separadas: aqui, o
"indivíduo e a sociedade".
Este modelo sociológico interativo, com sua
reciprocidade estável entre "mterior" e "exterior",
é, em grande parte, um produto da primeira
metade do século XX, quando as ciências sociais
assmnem sua forma disciplinar atual. Entretanto,
exatamente no mesmo perfot;lo, um quadro mais
perturbado e perturbador do sujeito e da
identidade estava começando a emergir dos
movimentos estéticos e intelectuais associado com
o surgimento do Modernismo.
Encontramos, aqui, a figura do indivíduo
isolado, exilado ou alienado, colocado contra o
pano-de-fundo da multidão ou da metrópole
anônima e impessoal. Exemplos disso incluem a
32
r-- --
.... _ ... ~ .. ....---. ......... ~
'.
NASCIMENTO E MO RTE DO SUJEITO MODERNO
famosa descrição do poeta Baudelaire em "Pintor
da vida moderna'', que ergue sua casa "no coração
único da multidão , em meio ao ir e vir dos
movimentos, em meio ao fugidio e ao infinito'' e
que ''se torna um único corpo com a multidão",
entra na multidão "como se fosse um imenso
reservatório de energia elétrica"; o flaneur (ou o
vagabundo), que vagueia entre as novas arcadas
das lojas, observando o passageiro espetáculo da
metrópole, que Walter Benjamin celebrou no seu
ensaio sob re a Paris de Baudelaire, e cuja
contrapartida na, modernidade tardia é,
provavehriente, o tur ista (cf. Urry, 1990); "K", a
vítima anônima, confrontado por uma burocracia
sem rosto, na novela de Kafka, O Processo; e aquela
legião de figuras alien:àdas da literatura e da critica
social do século XX que visavam representar a
experiência singular d a modernidade. Várias
dessas "instâncias ex~mplares da modernidade",
como as chama Fríshy , povoam as páginas dos
principais teóri,cos sociais d~ virada do século,
como George SimmeÍ, Alfred Schutz e Siegfried
Kracauer (todos os.quais tentaram capturar as
características essenciais d a modernidade em
ensaios famosos , tais como · The Stranger ou
Outsider) (vej,a Frisby, 1985, p .109). Estas
imagens mo~traram-se proféticas do que iria
acontecer a() sújeito cartesiano e ao sujeito
sociológico na modernidade tar dia.
33
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
Descentrando o suieito
Aquelas pessoas que sµstentam que as
identidades modernas estão sendo fragmentadas
argumentam que o que acon(eceu à concepção
do sujeito moderno, na modernidade tardia, não
foi simplesmente sua desagregação, mas seu
deslocamento. Elas descrevem esse deslocamento
através de uma série de ruptiiras nos discursos
do conhecimento moderno. Nesta seção, farei um
rápido esboço de cinco grand~s avanços na teoria
social e nas ciências humánas ocorridos no
pensamento, no período da n1odernidade tardia
(a segunda metade elo século XX), ou que sobre
ele tiveram seu principal impacto, e cujo maior
efeito, argumenta-se, foi o descentramento final
do sujeito cartesiano.
A primeira descentração importante refere
s e às tradições do pensamento marxista. Os
escritos de Marx pertencem, naturalmente, ao
século XIX e não ao século XX. Mas um dos
modos pelos quais seu trabalho foi redescoberto
e reinterpretado na década de sessenta foi à luz
da sua afirmação de que os '"homens ( sic) fazem
a história, mas apenas sob as condições que lhes
são dadas". Seus novos intérpretes leram isso no
sentido de que os indivíduos não poderiam de
nenhuma forma ser os '"autores" ou os agentes
da história, uma vez que eles podiam agir apenas
com base em condições históricas criadas por
34
NASCIMENTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO
outros e sob as qu.ais eles nasceram, utilizando os
recursos materiais e de cultura que lhes foram
fornecidos por gerações anteriores.
Eles argumentavam que o marxismo,
corretamente entendido, deslocara qualquer noção
de agência individual. O estruturalista marxista
Louis Althusser (1918-1989) (ver Penguin
Dictionary ofSociology: verbete '"Althusser")
afirmou que, ao colocar as relações sociais (modos
de produção,, exploração da força de trabalho, os
circuitos do capital) e não tuna noção abstrata de
homem no centro de seu sistema teórico, Marx
deslocou duas proposições-chave da filosofia
moderna:
• que há uma essência universal de homem;
• que essa essência é o atributo de "cada
indivíduo singular", o qual é seu sujeito
real:
Esses dois postulados são complementares e
indissolúveis. Mas sua existência e sua unidade
pressupõem toda uma perspectiva de mundo
empirista-idealista. Ao rejeitar a essência do
homem como sua base teórica, Marx rejeitou todo
esse sistema orgânico de postulados. Ele expulsou
as categoria:'! filosóficas do sujeito do empirismo,
da essência ideal, de todos os domínios em que
elas tmham reinado de forma suprema. Não
apenas da economia política (rejeição do mito do
homo economicus, isto é, do indivíduo, com
faculdadese necessidades definidas, como sendo
o sujeito da economia clássica); não apenas da
história; .. ~ llão apenas da ética (rejeição da idéia
35
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
ética kantiana); mas também da própria filosofia
(Althusser, 1966,p. 228).
Essa ''revolução teórica total" foi, é óbvio,
fortemente contestada por muitos teóricos
humanistas que dão maior peso, na explicação
histórica, à agência humana. Não precisamos
discutir aqui se Althusser estava total ou
parciahnente certo, ou inteiramente errado. O fato
é que, embora seu trabalho tenha sido
amplamente criticado, seu "anti-humanismo
teórico" (isto é, um modo de pensar oposto às
teorias que derivam seu raciocínio de alguma
noção de essência universal de Homem, alojada
em cada sujeito individual) teve um impacto
considerável sobre muitos nu.nos do pensamento
moderno.
O segundo dos grandes ''descentramentos"
no pensamento ocidental do século XX vem da
descoberta do inconsciente por Freud. A teoria
de Freud de que nossas identidades, nossa
sexualidade e a estrutura de nossos desejos são
formadas com base em processo& psíquicos e
simbólicos do inconsciente, que funciona de
acordo com uma "lógica" muito diferente daquela
da Razão, arrasa com o conceito do sujeito
cognoscente e racional provido de uma identidade
fixa e unificada - o "penso, logo existo", do sujeito
de Descartes. Este aspecto do trabalho de Freud
tem tido também um profundo impacto sobre o
pensamento moderno nas três últimas décadas.
36
NASCIMoNTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO
A leitura que pe:nsadores psicanalíticos, como
Jacques Lacan, fazem de Freud é que a imagem
do eu como inteiro e unificado é algo que a criança
aprende apenas gt·aduahnente, parcialmente, e com
grande dificuldade. Ela não se desenvolve
naturalmente a partir do interior do núcleo do
ser da criança, mas é formada em relação com os
outros; especialmente nas complexas negociações
psíquicas inconscientes, na primeira infância,
entre a criança .e as poderosas fantasias que ela
tem de suas figuras paternas e maternas. Naquilo
que Lacan chama de "fase do espelho", a criança
que não está ainda coordenada e não possui
qualquer auto-imagem como uma pessoa "inteira",
se vê ou se ''imagina" a si própria refletida - seja
literalmente, no espelho, seja figurativamente, no
"espelho" do olhar do outro-como uma "pessoa
inteira" (Lacan, 1977). (Aliás, Althusser tomou
essa metáfora emprestada de Lacan, ao tentar
descrever a operação da ideologia). Isto está
próximo, de certa forma, da concepção do
"espelho", de Mead e Cooley, do eu interativo;
exceto que para eles a socialização é uma questão
de aprendizagem consciente, enquanto que para
Freud, a subjetividade é o produto de processos
psíquicos inconscientes.
A formação do eu no "olhar" do Outro, de
acordo com Lacan, inicia a relação da criança
com os sistemas simbólicos fora dela mesma e é,
assim, o momento da sua entrada nos vários
1 '
37
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
sistemas de representação simb!'):lica _.,.incluindo a
língua, a cultura e a diferença sexual. Os
sentimentos contraditórios e não'-resolvidos que
acompanham essa difícil entrada (o sentimento
dividido entre amor e ódio pelo pai, o conflito
entre o desejo de agradar e o impulso para rejeitar
a mãe, a divisão do eu entre suas partes ''boa" e
"má", a negação de sua parte masculina ou
feminina, e assim por diante), que são aspectos
chave da "formação inconsciente do sujeito" e
que deixam o sujeito "dividido", permanecem com
a pessoa por toda a viela. Entretanto, embora o
sujeito esteja sempre partido ou dividido, ele
vivencia sua própria identidade como se ela
estivesse reunida e "resolvida", ou unificada, como
resultado da fantasia de si niesmo como uma
"pessoa" unificada que ele formou na fase do
espelho. Essa, de acordo com esse tipo de
pensamento psicanalítico, é a origem contraditória
da "identidade".
Assim, a identidade é realmente algo
formado, ao longo do tempo., através de processos
inconscientes, e não algo inato, existente na
consciência no momento do nascimento. Existe
sempre algo ''imaginário" ou fantasiado sobre sua
unidade. Ela permanece sempre incompleta, está
sempre "em processo", sempre "sendo formada".
As partes "femininas" do eu masculino, por
exemplo, que são negadas, permanecem com ele
e encontram expressão inconsciente em muitas
38
NASCIMENTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO
formas não reconhecidas, na vida adulta. Assim,
em vez de falar dn identidade como uma coisa
acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la
como um process? em andamento. A identidade
surge não tanto ~plenitude da identidade que
já está dentro de nós como indivíduos, mas de
uma falta deinte:i:J!eza que é "preenchida" a partir
de nosso exteriot, pelas formas através das quais
nós imaginamc;.s ser vistos por outros.
Psicanalitic'1Uel).fle, nós continuamos buscando a
"identidade'' e construindo biografias que tecem
as diferentes parles de nossos eus divididos numa
unidade porqué procuramos recapturar esse
prazer fantasiadO&da plenitude.
De novo,, o trabalho de Freud e o de
pensadores psic~alíticos como Lacan, que o lêem
dessaforma, têm~dobastantequestionados. Por
definição, os processos inconscientes não podem
ser facilmente vi.Stos ou examinados. Eles têm que
ser inferidos pelas elaboradas técnicas
psicanalíticas dal:teconstrução e da interpretação
e não são fa~ilmente suscetíveis à "prova". Não
obstante, seu impacto geral sobre as formas
modernas de pensamento tem sido muito
considerável. ~;rande parte do pensamento
moderno sobre~ Tida subjetiva e psíquica é "pós
freudiana" ,no s~ptido de que toma o trabalho de
Freud sobre o 4i~onsciente como certo e dado,
mesmo que rej~te algumas de suas hipóteses
específicas.j01tTr vez, podemos avaliar o dano
39
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
1
; 1
que essa forma de pensamentQ ~usaa noções que
vêem o sujeito racional e aiden1i.üade: como fixos e
estáveis.
O terceiro descentramentto qu~ examinarei
está associado com o trab~ho do lingüista
estrutural, Ferdinand de Sap.13sure. Saussure
argumentava que nós não sohll.os, em nenhum
sentido, os "autores" das a.:fir.rnações'quefazemos
ou dos significados que expre~$amos na língua.
Nós podemos utilizar a língd* para produzir
significados apenas nos posicid4ando no interior
das regras da língua e dos sistemas de significado
de nossa cultura. A língua é$ sistema social e
não um sistema individual. Elfl. preexiste a nós.
Não podemos, em qualquer sellitido simples, ser
seusautores.Falarumalínguanii.osigp:ifi.caapenas
expressar nossos pensamentos mai.$ interiores e
originais; significa também ativar a imensa gama
de significados que já estão e~utidos em nossa
língua e em nossos sistemas cul11Urais.
Além disso, os significados, das palavras não
são fixos, numa relação um-a-$ com os objetos
ou eventos no mundo existent~forada língua. O
significado surge nas relaçõesl .J.e similaridade e
diferença que as palavras têm céÍmi outras palavras
no interior do código da língu4. Nós sabemos o
que é a "noite" porque ela niio to "dia". Observe
se a analogia que existe aqui entre língua e
identidade. Eu sei quem "eu" wue:ntrelação com
"o outro" (por exemplo,~ mãe) que eu não
40
posso ser. Como diria Lacan, a identidade, como
oinconscienfe, "tb$táestruturada como a língua".
O que mode:rno~.filósofos da linguagem - como
Jacques Dertida,iQrlluenciados por Saussure e pela
"virada Jingfüsti$à" - argumentam é que, apesar
de seus melhore~ esforços, o/ a falante individual
não pode, nunca~har o significado de uma forma
final, incluiado ~mas que sãà, pd,n assim dizer, conduzidas na
corrente sattgü~ea de nossa língua. Tudo que
di ' " " "d . " zemos tem UIDj ... antes e um ep01s - uma
"margem" na qualloutras pessoas podem escrever.
O significado,é ind:rentemente instável: ele procura
o fechamento :(a identidade), mas ele é
constantemente perturbado (pela diferença). Ele
está constantemeitte escapulindo de nós. Existem
sempre s~cadP:s suplementares sobre os quais
não temos qual#er controle, que surgirão e
subverterão poss~ tentativas para criar mundos
fixos e estávéis (vepaDerrida, 1981).
O quanto ~~scentramento principal da
identidade ~ do ~µjeito ocorre no trabalho do
filósofo J ~is?:. 017r1 ~. o.r fran. cês Michel Fo~cault.
Numa sene ele e~ Jll.dos, Feucault produzm uma
1 ·t ;
41
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
espécie de "genealogia do sujeito moderno".
F oucault destaca mn novo tipo de poder, que ele
chama de "poder disciplinar", que se desdobra ao
longo do século XIX, chegando ao seu
desenvolvimento máximo no início do presente
século. O poder disciplinar está preocupado, em
primeiro lugar, com a regulação, a vigilância é o
governo da espéciehmnana ou de populações inteiras
e, em segundo lugar, do indivíduo e do corpo. Seus
locais são aquelas novas institui1;ões que se
desenvolveram ao longo do século XIX e que
"policiam" e disciplinam as populações modernas -
oficinas, quartéis, escolas, prisões, hospitais, clinicas
e assim por diante (veja, por exemplo, História da
lnucura, O nascimento da clinica e Vigiar e punir).
O objetivo do "poder disciplinar" consiste
em manter "as vidas, as atividades, o trabalho, as
infelicidade e os prazeres do índivíduo", assim
como sua saúde física e moral, suas práticas
sexuais e sua vida familiar, soh estrito controle e
disciplina, com base no poder dos regimes
administrativos, do conhecimento especializado
dos profissionais e no conhecimento fornecido
pelas "disciplinas" das Ciências Sociais. Seu
objetivo básico consiste em produzir "um ser
humano que possa ser tratado como um corpo
dócil" (Dreyfus e Rahinow, 1982, p. 135).
O que é particularmente interessante, do
ponto de vista da histôria do sujeito moderno, é
que, embora o poder disciplinar deFoucault seja
42
NASCIMENTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO
o produto das riovas instituições coletivas e de
grande esc~la ~ modernidade tardia, suas
técnicas envolv~ti uma aplicação do poder e do
saber que "inditldualiza" ainda mais o sujeito e
envolvemaisint~nsamente seu corpo:
Num re~e disciplinar, a individualização é
descM!denttí· Através da vigilância, da observação
constantei,,todas aquelas pessoas sujeitas ao
controle ~ijo individualizadas ... O poder não
apeniis tr~ a individualidade para o campo da
observaÇifo, mas também fixa aquela
individuaJldade objetiva no campo da escrita. Um
imenjm e :n:ielticuloso aparato documentário torna
se UIÍl co:n:iponente essencial do crescimento do
podér [~as sociedades modernas]. Essa
acwnulaç~o de documentação individual num
orde:nam~tlto sistemático torna "possível a
medi,çãoqe fenômenos globais, a descrição de
grupDs, ajoaracterização de fatos coletivos, o
cálculo de di,stâncias entre os indivíduos, sua
distdhui,ç~ numa dada população" (Dreyfus e
Rahinow,\1982, p.159, citandoFoucault).
Não énec~$sário aceitar cada detalhe da
descrição queFd,ucaultfaz do caráter abrangente
dos "regimes di~çiplinares" do moderno poder
administrativo para compreender o paradoxo de
que, quantom~ Çoletiva e organizada a natureza
das instituigões .jl~ modernidade tardia, maior o
isolamento,ia vij;fiância e a individualização do
sujeito indivjduap
O q'dintbi descentramento que os
proponente!s 4t posição citam é o impacto do
43
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
femillismo, tanto como uma crítl~a teórica quanto
como um movimento social O feminismo faz parte
daquele grupo de "novos movimentos sociais", que
emergiram durante os anos sessenta (o grande
marco da modernidade tardia), juntamente com
as revoltas estudantis, os movimentos juvenis
contraculturais e antibelicistas, as lutas pelos direitos
civis, os movimentos revolucionários do "Terceiro
Mundo", os movimentos pela paz e tudo aquilo
que está associado com '"1968". O .que é importante
reter sobre esse momento histórico é que:
44
• Esses movimentos se opunham tanto à
política liberal capitalista do Ocidente
quanto à política "estalinista" do Oriente.
• Eles afirmavam tanto as dimensões
"subjetivas" quanto as dimensões
"objetivas" da política.
• Eles suspeitavam de todas as formas
burocráticas de organização e favoreciam
a espontaneidade e os atos de vontade
política.
• Como argmnentado anterionnente, todos
esses movimentos tinham uma ênfase e
uma forma cultural fortes. Eles abraçaram
o "teatro" da revolução.
" Eles refletiam o enfraquecimento ou o fim
da classe política e das organizações
políticas de massa com ela associadas, bem
como sua fragmentação em vários e
separados movimentos sociais.
NAsCIMENTO E MORTE 00 SUJEITO MODERNO
• Cadamo~ento apelava para aUlentidade
soei~ de'!leus sustentadores. Assim, o
feminismo apelava às mulheres, a política
sexuàl aos gays e lésbicas, as lutas raciais
aos negro~, o movimento antibelicista aos
pac:i:&tas~ e assim por diante. Isso constitui
o nascimttaitto histórico do que veio a ser
c1;mhecido como a política de idenridade
uma identidade para cada movimento.
Mas o feminismo teve também uma relação
mais direta com o descentramento conceitua! do
sujeito cartesianct>e sociológico:
• Ele questiOOou a clássica distinção entre o
"dentro'' ;e 'O "fora", o "privado" e
"público'~. O slogan do feminismo era: "o
pessoal é político".
• Ele abriu!, portanto, para a contestação
política, attnas inteiramente novas de vida
social: a f~a, a sexualidade, o trabalho
domistiNo mundo if,toderno, as culturas nacionais
em que nascemos se constituem em uma das
principais fontes.na verdadeira natureza das coisas",
algumas vezes adormecida, mas sempre
pronta para 8er "acordada" de sua "longa,
persistente e misteriosa sonolência", para
reassunrir sua inquebrantável existência
(Gellner, 1983, p. 48). Os elementos
essenciais do caráter nacional permanecem
imutáveis, apesar de todas as vicissitudes
da história. Está lá desde o nascimento,
unificado e contínuo, "imutável" ao longo
de todas as mudanças, eterno. A sra.
Thatcher ofoservou, na época da Guerra
das Malvinas, que havia algumas pessoas
"que pensavam que nós não poderíamos
mais fazer as grandes coisas que uma vez
53
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS·MODERNIDAD!
54
havíamos feito ... que a (;.rã-Bretanha não
era mais a nação que tiriha construído um
Império e dominadomnquarto do mundo ...
Bem, eles estavam errados ... A Grã
Bretanha não mudou'~ (citado em Barnett,
1982, p. 63).
• Uma terceira estratégia discursiva é
constituída por aquilo queHobsbawm e
Ranger chamam de invenção da tradição:
"Tradições que parecem ou alegam ser
antigas são muitas vezes de origem bastante
recente e algumas v~zes inventadas ...
Tradição inventada significa um conjunto
de práticas ... , denature)la ritual ou simbólica,
que buscam inculcar certos vàlores e normas
de comportamentos a-través da repetição, a
qual, automaticamente, implica continuidade
com um passado histórico adequado". Por
exemplo, "na.da part~ce ser mais antigo e
vinculado ao passado imemorial do que a
pompa que rodeia a monarquia britânica
e suas manifestações cerimoniais públicas.
No entanto ... , na sua forma moderna, ela
é o produto do final do século XIX e XX"
(Hobsbawm e Ranger, 1983, p .1) .
., Um quarto exemplo de narrativa da cultura
nacional é a do mitofundacional: uma
estória que localiza a origem da nação, do
povo e de seu caráter nacional num
passado tão distante que eles se perdem
As CULTURAS NACIONAIS COMO COMUNIDADES IMAGINADAS
nas brUillas do tempo, não do tempo "real",
mas de um tempo "nútico". Tradições
inventadas tornam as confusões e os desastres
da história inteligíveis, transformando a
desordem em "comunidade" (por exemplo,
a Blitz ou a evacuação durante a II Grande
Guerra) e desastres em triunfos (por exemplo,
Dunquerque). Mitos de origem também
ajudam povos desprivilegiados a "conce
berem e expressarem seu ressentimento e
sua satisfa ção em termos inteligíveis"
(Hobsbawm e Ranger, 1983, p. l) . Eles
fornecem uma narrativa através da qual
u m a histó r ia alternativa ou uma
contranarrativa, que precede às rupturas
da colonização, pode ser construída (por
exemplo, o rastafarianismo para os pobres
despossuídos de Kingston, Jamaica; ver
Hall, 1985). Novas nações são, então,
fundadas sobre esses mitos. (Digo "mitos"
por que, como foi o caso com muitas nações
africanas que emergiram depois da
descoloniz a ção , o que precedeu à
colonização não foi "uma única nação, um
único povo" , mas muitas culturas e
sociedades tribais diferentes).
• Aidentidadenacional é também muitas vezes
simbolicamente baseada na idéia de um povo
ou follc puro, original. Mas, nas realidades
do desenvolvimento nacional, é raramente
55
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
esse povo (folk) primordial que persiste ou
que exercita o poder. Como; acidamente,
observa Gellner: "Quando [os ruritananos]
vestiram os trajes do povo e rumaram para
as montanhas, compondo poemas nos clarões
das florestas, eles não 1sonhavam em se
tornarem um dia ta,mbém poderosos
burocratas, embaixadores e ministros"
(1983, p. 61). .
O discurso da cultura nacional não é, assim,
tão moderno como aparenta ser. Ele constrói
identidades que são colocadas, de modo ambíguo,
entre o passado e o futuro. Ele se equilibra entre
a tentação por retornar a gló.rias passadas e o
impulso por avançar ainda mais em direção à
modernidade. As culturas naci9nais são tentadas,
algunias vezes, a se voltar para{,> passado, a recuar
defensivamente para aquele '''tempo perdido",
d - '" . .~ '" ·- d quan o a naçao era grancier ; sao tenta as a
restaurar as identidades pass.adas, Este constitui
1
o elemento regressivo, anacrômco, da estória da
cultura nacional. Mas freqüentemente esse mesmo
retorno ao passado oculta unialuta para mobilizar
as "pessoas" para que purifi4uem suas fileiras,
para que expulsem os "outros'~ que ameaçam sua
identidade e para que se preparem para uma nova
marcha para a frente. Durante os anos oitenta, a
retórica do thatcherismo utilizou, algumas vezes,
os dois aspectos daquilo que '[' om N airn chama
de ''face de Janus" do nacionâl:ismo (Na:irn, 1977):
56
As CULTUl!A& NACIONAIS COMO COMUNIDADES IMAGINADAS
olhar para trás, para as glórias do passado imperial
e para os "valores vitorianos" e, ao mesmo tempo,
empreender uma espécie de modernização, em
preparação para tlm novo estágio da competição
capitalista global. Alguma coisa do mesmo tipo
pode estar ocorrendo na Europa Oriental. As áreas
que se separam da antiga União Soviética
reafirmam suas identidades étnicas essenciais e
reivindicam uma nacionalidade sustentada por
",. "(l estonas a gnmas vezes extremamente
duvidosas) de origens míticas, de ortodoxia
religiosa e de pureza. racial Contudo, elas podem
também estar usando a nação como uma forma
através da qual possam competir com outras
"nações" étnfoas e11oder, assim, entrar no rico
"clube" do Ocidente. Como tão agudamente
observou hnmanueHV allerstein, ''os nacionalismos
do mm1do moderno são a expressão ambígua [de
um desejo] por ... assimilação no universal. .. e,
simultaneamente, por ... adesão ao particular, à
reinvenção das diferenças. Na verdade, trata-se
de um universalismo através do particularismo e
de um particularismo através do universalismo"
(Wallersteín, 1984, pp. 166-7).
Desconstruindo a ucultura nacional":
identidade e diferença
A seção anterior discutiu como uma cultura
nacional atua como uma fonte de significados
57
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS·ll'.ODERNIDAD'f
culturais, um foco de identificação e um sistema
de representação. Esta seção volta-se agora para a
questão de saber se as culturas nacionais e as
identidades nacionais que elas constroem são
realmente unificadas. Em seu famoso ensaio sobre
o tema, Ernest Renan disse. que três coisas
constituem o princípio espiritual da unidade de
uma nação: " ... a posse em éomum de um rico
legado de memórias ... , o clesejo de viver em
conjunto e a vontade de perpetuar, de uma forma
indivisiva, a herança que se recebeu" (Renan,
1990, p. 19). Devemos ter em mente esses três
conceitos, ressonantes daquilo que constitui uma
cultura nacional como uma "comunidade
imaginada": as memórias do passado; o desejo por
viver em conjunto; a perpetuação da herança.
Timothy Brennan nos faz lembrar que a
palavra rwção refere-se ''tanto ao moderno estado
nação quanto a algo mais antigo e nebuloso - a
natio-uma comunidade local, mndomicílio, uma
condição de pertencimento" (Brennan, 1990, p.
45). As identidades nacionais representam
precisamente o resultado da reunião dessas duas
metades da equação nacional- oferecendo tanto
a condição de membro do estado-nação político
quanto uma identificação com a cultura nacional:
"tornar a cultura e a esfera politica congruentes"
e fazer com que '·'culturas razoavelmente
homogêneas, tenham, cada µma, seu próprio teto
político" (Gellner, 1983, p. 43). Gellneridentifica
58
As CULTURA~ NACIONAIS COMO COMUNIDADES IMAGINADAS
claramente esse impulso por unificação, existente
nas culturas nacionais:
... a cultura é agora o meio partilhado necessário, o
sangue vital, outalvez, antes, a atmosfera partiJhada
mínima, apenas no interior da qual os membros de
uma sociedade podem respirar e sobreviver e
produzit. Para uma dada sociedade, ela tem que ser
mna atmosfera :na qual podem todos respirar, falar e
produzir; ela tem que ser, assim, a mesma cultura
(Gellner, 1983, pp. 37-8).
Para dizer de forma simples: não importa
quãodiferentes seus memhros possam ser em
termos de classe, gênero ou raça, uma cultura
nacional busca unificá-los numa identidade
cultural, para representá-los todos como
pertencendo à mesma e grande familia nacional.
Mas seria a identidade nacional uma identidade
mrificadora desse tipo, uma identidade que anula
e subordina a diferença cultural?
Essa idéia está .1'ujeita à dúvida, por várias
razões. Uma culturanacionalnuncafoi um simples
ponto de lealdade, união e identificação simbólica.
Ela é também uma estrutura de poder cultural.
Considerem.os os seguintes pontos:
• A maioria das nações consiste de culturas
separadas que só foram unificadas por um
longo processo de conquista violenta - isto
é, pela supressão forçada da diferença
cultural. '"O povo britânico" é constituído
por uma série desse tipo de conquistas -
59
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS·MODERNlDAD~
60
céltica, romana, saxónica, vikingenonnanda.
Ao longo de toda a Europa, essa estória se
repete ad nauseam .• Cada conquista
subjugou povos conquistados e suas culturas,
costumes, linguas etradiÇões,e tentou impor
uma hegemonia cultural in.ais unificada.
Como observou Ernest )lenan, esses
começos violentos· que se colocam nas
origens das nações modernas. têm, primeiro,
que ser ''esquecidos", antes que se comece
a forjar a lealdade co:rp u~na identidade
nacional mais unificada,, mais homogênea.
Assim, a cultura "'bri~í:hricâ" não consiste
de uma parceria igual entre as culturas
componentes do Remo Unido, mas da
hegemonia efetiva da cultura "inglesa",
localizada no sul, que se r:epresenta a si
própria como a cultuta .britânica essencial,
por cima das culturas escocesas, galesas e
irlandesas e, na verdade, por cima de outras
culturas regionais. Matthew Arnold, que
tentou fixar o caráter essencial do povo
inglês a partir de sua literatura, afirmou,
ao considerar os. celtl::1s, que esses
"nacionalismos provrn.ciaistiveram que ser
absorvidos ao nível do político, e aceitos
como contrihumdo c~tur:almente para a
cultura inglesa" (Dodd, 1936, p. 12).
• Em segundo lugar, as,nações são sempre
compostas de difere.µtes classes socais
e diferentes grupos étnic~s e de gênero.
As CULTURAS NACIONAIS COMO COMUNIDADES IMAGINADAS
O nacionalisn10 britânico moderno foi o
produto de um esforço muito coordenado, no
alto periodo imperial e no periodo vitoriano
tardio.í para wri:ficar as classes ao longo de
divisões soc:i.:1-is, ao provê-las com um ponto
alternativo de identificação-pertencimento
comum à "familia da nação". Pode-se
desenvolver o mesmo argumento a respeito
do gênero. As identidades nacionais são
fortemente generificadas. Os significados e
os valores da "'inglesidade" ( englishness) têm
fortes associações masculinas. As mullieres
exercem. um papel secundário como guardiãs
do lar e do clã, e como "mães" dos ''filhos"
(homem) danação.
" Em terceiro lugar, as nações ocidentais
modernas foram também os centros de
impérios ou de esferas neoimperiais de
influência, exercendo uma hegemonia
cultural sobre as culturas dos colonizados.
Alguns historiadores argumentam,
atuahnente, que foi nesse processo de
comparação entre as "virtudes" da
"inglesidade'' (Englishness) e os traços
negativos de outras culturas que muitas das
características distintivas das identidades
inglesas foram primeiro definidas (veja e.
Hall, 1992).
Em vez de pensar as culturas nacionais
como unificadas, deveríamos pensá-las como
61
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
constituindo um dispositivo discursivo que
representa a diferença Cl:1IDO unidade ou
identidade. Elas são atravessadas por profundas
divisões e diferenças internas, sendo "mllficadas"
apenas através do exercício de diferentes formas
de poder cultural. Entretanto....: como nas fantasias
do eu "inteiro" de que fala a psicanálise lacaniana -
as identidades nacionais continuam a ser
representadas como unificadas.
Uma forma de unificá-las tem sido a de
representá-las como a expressão da cultura
subjacente de "um único povo". A etnia é o termo
que utilizamos para nos referirmos às
características culturais-Jíngua, religião, costume,
tradições, sentimento de/ ''lugar" - que são
partilhadas por um povo. Etentador, portanto,
tentar usar a etnia dessa forma "fundacional".
Mas essa crença acaha, no ID1;1-lldomoderno, por
ser um mito. A Europa Ocidental não tem
qualquer nação que seja con:1posti;L de apenas um
único povo, uma única cultura ou etnia. As nações
modernas são, todas, híbriIMAGINADAS
proporções são particularmente difíceis de
definir'' (Renan,:1990, pp.14-15). E essas são
misturas rela1fvamdntesimples se comparadas com
as encontradas na .Q;uropa Central e Oriental.
Este hlieve e;:fame solapa a idéia da nação
como uma id.entHlade cultural unificada. As
identidades nacionais não subordinam todas as
outras formas de diferença e não estão livres do
jogo de poder, de dtrisões e contradições internas,
de lealdades e de dierenças sobrepostas. Assim,
quando vamo$ disc&tir se as identidades nacionais
estão sendo desloc1tdas, devemos ter em mente a
forma pela qqal as ~ulturas nacionais contribuem
para "costutar" .as diferenças numa única
identidade.
65
4
GLOBALIZAÇÃO
O capí!tulo a\l'.lterior questionou a idéia de
que Jl.. s identidades nacionais tenham
sidos alguma vez tão unificadas ou
homogêneas quantoffazem crer as representações
que delas se lfaze1'· Entretanto, na história
moderna, as cllltur$s naciopais têm dominado a
"modernidade'' e as identidades nacionais tendem
a se sobrepor a tmtrat; fontes,mais particularistas,
de identificação culttiral.
O que, éntão;, está tão poderosamente
deslocando as identidades culturais nacionais,
agora, no fim do sé4ulo XX? A resposta é: um
complexo deprocessQs e forças de mudança, que,
por conveniênc$, poamplamente coincidentes, uma vez que as
dimensões espacíais da vida social eram, para a
maioria da população, dominadas pela presença''.'_
por uma atividade localizada ... A modernidade
separa, cada vez mais, o espaço do lugar, ao
reforçar relações entre outros que estão
"ausentes", distantes ( elfll termos de local), de
qualquer interação face-a-face. Nas condições da
modernidade ... , os lo e.ais são inteiramente
penetrados e moldados por influências sociais
bastante distantes deles. O que estrutura o local
não é simplesmente aquilo que está presente na
cena; a "forma visível" do local oculta as relações
distanciadas que determinam sua natureza
(Giddens, 1990, p. 18).
Os lugares permanecem fixos; é neles que
temos "raízes". Entretanto, o espaço pode ser
72
GLOBALIZAÇÃO
"cruzado" nú:m piscar de olhos -por avião a jato,
por fax ou por satélite. Harvey chama isso de
"destruição do espaço através do tempo" (1989,
p. 205)
Em direção ao
pós-moderno global?
Alguns teóricos argumentam que o efeito
geral desses i>rocessos globais tem sido o de
enfraquecer ou solapar formas nacionais de
identidade cultural. Eles argumentam que existem
evidências de um afrouxamento de fortes
identificações com a cultura nacional, e um
reforçamento de outros laços e lealdades culturais,
"acima" e " abaixo" do nível do estado-nação. As
identidades n acionais per manecem fortes ,
especialmente com r espeito a coisas como direitos
legais e de cidadania, mas as ídentidades locais ,
r egionais e comµnitárias têm se tornado mais
importantes. Colocadas acima do nível da cultura
nacional, as iden tificações "globais" começam a
deslocar e, algumas vezes, a apagar, as identidades
nacionais.
Alguns teóricos culturais argumentam que
a tendência em direção a uma maior
interdependência global está levando ao colapso
de todas as identidades culturais fortes e está
produzindo aquela fragmentação de códigos
culturais, aquela n;lultiplicidade de estilos, aquela
73
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
ênfase no efêmero, no flutuante, no impermanente
e na diferença e no pluralismo cultural descrita
por Kenneth Thompson (1992), mas agora numa
escala global- o que poderíamos chamar de pós
moderno global. Os fluxos culturais, entre as
nações, e o consumismo global criam
possibilidades de "identidades partilhadas"
c01no "consumidores" para os mesmos bens,
"clientes" para os mesmos serviços, "públicos"
para as mesmas mensagens e imagens - entre
pessoas que estão bastante di~tantes umas das
outras no espaço e no tempo. A medida em que
as culturas nacionais tornmn-se mais expostas a
influências externas, é difícil conservar as
identidades culturais intactas ou impedir que elas
se tornem enfraquecidas através do
bombardeamento e da infiltração cultural.
As pessoas que moram em aldeias
pequenas, aparentemente remotas, em países
pobres, do "Terceiro Mundo", iwdem receber,
na privacidade de suas casas, as mensagens e
imagens das culturas ricas, consumistas, do
Ocidente, fornecidas através de aparelhos de TV
ou de rádios portáteis, que as prendem à "aldeia
global" das novas redes de comunicação. Jeans e
abrigos -o "unifonne" do jovem na cultura juvenil
~cidental- são tão onipresentes no sudeste da
Asia quanto na Europa ou nos Estados Unidos,
não só devido ao crescimento da mercantilização
em escala mundial da imagem do jovem
74
GLOBALIZAÇÃO
consumidor, mas porque, com freqüência, esses
itens estão sendo realmente produzidos em Taiwan
ou em Hong Kong ou na Coréia do Sul, para as
lojas finas de Nova York, Los Angeles, Londres
ou Romaº É difícil pensar na "comida indiana"
corno algo característico das tradições étnicas do
subcontinente asiático quando há um restaurante
indiano no centro de cada cidade da Grã
Bretanha.
Quanto :mais a vida social se torna mediada
pelo mercado global de estilos, lugares e imagens,
pelas viagens internacionais, pelas imagens da
mídia e pelos sistemas de comunicação
globalmente interligados, mais as identidades se
tornam desvinculadas - desalojadas - de tempos,
lugares, histórias e tradições específicos e parecem
"flutuar livremente". Somos confrontados por uma
gama de diferentes identidades (cada qual nos
fazendo apelos, ou melhor .1 fazendo apelos a
diferentes partes de nós), dentre as quais parece
possível fazer uma escolha, Foi a difusão do
consumismo, st~ja como realidade, seja como
sonho, que contríbuiu para esse efeito de
"supermercado cultural". No interior do díscurso
do consumismo global, as diferenças e as
distinções culturais, que até então definiam a
identidade, ficam reduzidas a uma espécie de
língua franca internadonal ou de moeda global,
em termos das quais todas as tradições específicas
e todas as diferentes identidades podem ser
75
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
traduzidas. Este fenômeno é conhecido como
"homogeneização cultural".
Em certa medida, o que está sendo discutido
é a tensão entre o "'global" e o "local" na
transformação das identidades. As identidades
nacionais, como vimos, representcultural é a questão de se saber
o que é mais afetado por ela. Uma vez que a
direção do fluxo é desequilihrada, e que
continuam a existir relações desiguais de poder
cultural entre "o Ocidente" e "o Resto", pode
parecer que a globalização - embora seja, por
definição, algo que afeta o globo inteiro- seja
essencialmente um fenômeno ocidental.
78
Kevin Robins nos faz lembrar que:
Embora tenha se projetado a si próprio como
trans-histórico e transnacional, como a força
transcendente e uníversalizadora da modernização
e da modernidade, o capita.lismo global é, na
0 GLOB.1'.l, O LOCAL E O RETORNO DA ETNIA
verdade, um processo de ocidentalização - a
exportação das mercadorias, dos valores, das
prioridades, das formas de vida ocidentais. Em
um proces.so de desencontro cultural desigual, as
populações "estrangeiras" têm sido compelidas a
ser os sujeitos e os subalternos do império
ocidental, ao mesmo tempo em que, de forma
não menos importante, o Ocidente vê-se face a
face co:m a cultura "alienígena" e "exótica" de
seu "Outro". A globalização, à medida que
dissolve as barreiras da distância, torna o encontro
entre o centro colonial e a periferia colonizada
imediato e intenso (Robins, 1991, p. 25).
Na última forma de globalização, são ainda
as imagens, os artefatos e as identidades da
modernidade ocidental, produzidos pelas
indústrias culturais das sociedades '"ocidentais"
(incluindo o Japão) que dominam as redes globais.
A proliferação das escolhas de identidade é mais
ampla no "centro" do sistema global que nas suas
periferias. Os padrões de troca cultural desigual,
familiar desde as primeiras fases da globalização,
continuam a existir na modernidade tardia. Se
quisermos provar as cozinhas exóticas de outras
culturas em um único lugar, devemos ir comer
em Manhattan, Paris ou Londres e não em Calcutá
ou em Nova Dellri.
Por outro lado, as sociedades da periferia
têm estado sempre abertas às influências culturais
ocidentais e, agora, mais do que nunca. A idéia
de que esses são lugares "fechados" -etnicamente
79
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS· MODERNIDADE
puros, culturalmente tradicionais eintocados até
ontem pelas rupturas da modernidade - é uma
fantasia ocidental sobre a ''alteridade": uma
"fantasia colonial" sobre a periferia~ mantida pelo
Ocidente, que tende a gostar de seus nativos apenas
como "puros" e de seus lugares exóticos apenas
como ''intocados". Entretanto, as evidências
sugerem que a globalização está teudo efeitos em
toda parte, incluindo o Ocidente, e a "periferia"
também está vivendo seu efeito pluralizador,
embora mun ritmo mais lento e desigual.
The Rest in the West
(O Resto no Ocidente)
As páginas precedentes apresentaram três
qualificações relativamente à primeira das três
possíveis conseqüências da globalização, isto é, a
homogeneização das identidades globais. Elas são:
80
a) globalização caminha em paralelo com um
reforçamento das identidades locais,
embora isso ainda esteja dentro da lógica
da compressão espaço-tempo.
b) A globalização é um proct)SSO desigual e
tem sua própria "geometria de poder".
c) A globalização retém alguns aspectos da
dominação global ocidental, mas as
identidades culturais estão, em toda parte,
0 GLOBAL, O LOCAL E O RETORNO DA ETNIA
sendo relativizadas pelo impacto da
compJ:'essão espaço-tempo.
Talvez o exemplo mais impressionante desse
terceiro ponto seja o fenômeno da migração. Após
a Segunda Guerra Mundial, as potências européias
descolonizadoras pensaram que podiam
simplesmente cair fora de suas esferas coloniais
de influência, deixando as conseqüências do
imperialismo atrás delas. Mas a interdependência
global agora atua em ambos os sentidos. O
movimento para fora (de mercadorias, de imagens,
de estilos ocidentais e de identidades consumistas)
tem uma correspondência num enorme
movimento de pessoas das periferias para o centro,
num dos períodos mais longos e sustentados de
migração ''não-planejada" da história recente.
Impulsionadas pela pobreza, pela seca, pela fome,
pelo subdesenvolvimento econômico e por
colheitas fracassadas, pela guerra civil e pelos
distúrbios políticos, pelo conflito regional e pelas
mudanças arbitrárias de regimes políticos, pela
dívida externa ac1mmlada de seus governos para
com os bancos ocidentais, as pessoas mais pobres
do globo, em grande número, acabam por
acreditar na ''mensagem" do consumismo global
d l 0 d d A "b " e se mu mn para os wcms e on e vem os ens
e onde as chm1ces de sobrevivência são maiores.
Na era das comunicações globais, o Ocidente está
situado apenas à distância de uma passagem aérea.
81
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
Tem havido migrações contínuas e de grande
escala, legais e "ilegais", para os Estados Unidos, a
partir de muitos países pobres da América Latina e
da bacia car:ihenha (Cuba, Haiti, Porto Rico,
República Dominicana, ilhas do Carihe Britânico),
bem como grande número de '"migrantes
eco~ômicos" e de refugiados políticos do Sudeste
da Asia e do Extremo Oriente- chineses, coreanos,
vietnamitas, crunbojianos, :indianos, paquistaneses,
japoneses. O Canadá tem mnasuhstancialminoria
de população caribenha. Uma conseqüência disso é
uma mudança dramática na "mistura étnica" da
população dos Estados Unidos - a primeira desde
as migrações em massa das prilneiras décadas deste
século. Em 1980, mn em cada cinco americanos
tinha origem afro-americana, asiático americana ou
indígena. Em 1990, essa estatística era de um em
cada quatro. Em muitas cidades grandes (incluindo
Los Angeles, San Francisco, Nova York, Chicago e
Miami), os brancos são agora mnaminoria. Nos anos
80, a população da Califórnia cresceu em 5,6
milhões, 43 por cento dos quais ernm pessoas de
cor - isto é, incluindo hispânicos e asiáticos, bem
como afro-americanos ( com1)arados com 33 por
cento em 1930)- e um quinto tinha nascido no
estrangeiro. Em 1995, previa-se que um terço dos
estudantes das escolas públicas americanas seria
constituído de "não-brancos'" (Censo dos Estados
Unidos, 1991, citadoemPlau, 1991).
Ao longo do mesmo período, houve uma
"migração" paralela de áraheE- do Maghreb
82
0 GLOBAL, O LOCAL E O RETORNO DA ETNIA
(Marrocos, Argélia, Tunísia) para a Europa, e de
africanos do Senegal e do Zaire para a França e
para a Bélgica; de turcos e norte-africanos para a
Alemanha; ele asiáticos das Indias Ocidentais e
Orientais (ex-colônias holandesas) e do Suriname
para a Holanda; de norte-africanos para a Jtália;
e, obviamente, de pessoas do Carihe e da India,
Paquistão, Bangladesh, Quênia, Uganda e Sri
Lanka para o Reino Unido. Há refugiados políticos
da Somália, :Etiópia, Sudão e SriLanka e de outros
lugares, em pequenos números, em toda parte.
Esta formação de "enclaves" étnicos
minoritários no interior dos estados-nação do
Ocidente levou a uma "'pluralização" de culturas
nacionais e de identidades nacionais.
A dialética das identidades
Como e::,;ta situação tem se mostrado na Grã
Bretanha, em termos de identidade? O primeiro
efeito tem sido o de contestar os contornos
estabelecidos da identidade nacional e o de expor
seu fechamento às pressões da diferença, da
''alteridade''' e da diversidade cultural. Isto está
acontecendo, .. em diferentes graus, em todas as
culturas nacionais oddentais e, como conseqüência,
fez com que toda a questão da identidade nacional
e da "centralidade" cultural do Ocidente fosse
abertamente discutida.
83
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MOOERNIDADE
Nmn mundo de fronteiras dissolvidas e de
continuidades rompidas, as velhas certezas e
hierarquias da identidade britânica têm sido postas
em questão. Nmn país que é agora mn repositório
de culturas africanas e asiáticas, o sentimento do
que significa ser britânico nunca mais pode ter a
mesma velha confiança e certeza. Oque significa
ser europeu, nmn continente colorido não apenas
pelas culturas de suas antigas colônias, mas também
pelasculturas americanas e agora pel:as japonesas?
A categoria da ~dentidade não é, ela própria,
problemática? E possível, de algum modo, em
tempos globais, ter-se um senthnento de identidade
coerente e integral? A continuidade e a historicidade
da identidade são questionadas pela imedia tez e
pela intensidade das confrontações culturais globais.
Os confortos da Tradição são fundamentalmente
desafiados pelo imperativo de se for:jar uma nova
auto-interpretação, ba;;;eada nas responsabilidades
da Tradução cultural(Robins, 1991, p. 41).
Outro efeito desse processo foi o de ter
provocado um alargamento do campo das
identidades e mna prollferação de novas posições
de-identidade, juntamente com um aumento de
polarização entre elas. Esses processos constituem
a segunda e a terceira conseqüências possíveis da
globalização, anteriormente referidas - a
possibilidade de que a globalização possa levar a
um fortalecimento ele identidad~~s locais ou à
produção de novas identidades.
84
0 GLOBAL, O LOCAL E O RETORNO DA ETNIA
O fortalecimento de identidades locais pode
ser visto na forte reação defensiva daqueles
membros dos grupos étnicos dominantes que se
sentem ameaçados pela presença de outras
culturas. No Reino;Unido, por exemplo, a atitude
defensiva prod;uziu uma "inglesidade"
( englishnesS) reformada, um "inglesismo"
mesquinho e agresfilvo e UD1 recuo ao absolutismo
étnico, numa te1rtativa de escorar a nação e
reconstruir "uma identidade que seja una,
unificada, e que filt re as ameaças da experiência
social" (Sennett, 1971, p.15). Isso freqüentemente
está baseado no que antes chamei de "racismo
cultural" e é evidente, atualmente, em partidos
políticos legais, tanto de direita quanto de
esquerdq, e em movimentos políticos mais
extremistas em toda a Europa Ocidental.
Algum.as ·v e zes isso encontra uma
correspondência num recuo, entre as próprias
comunidadescommritária.s, a identidades mais
defensivas, erri resposta à experiência de racismo
cultural e de exclusão. Tais· estratégias incluem a
re-identificação com as culturas de origem (no
Caribe, na Índia, emBanglâdesh, no Paquistão);
a construção ae fortes contra-etnias - como na
identificação 'simbólica da segunda geração da
juventude afi:o-caribenha~ através dos temas e
motivos do rastafat ianiSil).O, com sua origem e
herança afric~a; mi o revi'13.al do tradicionalismo
cultural, da ortodoiia religiosa e do separatismo
' ~
85
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS·MODERNIDAl)E
político, por exemplo, entre alguns setores da
comunidade islâmica.
T amhém há algumas evidências da terceira
conseqüência possível da globalização- a produção
de novas identidades. Um hom exemplo é o das
novas identidades que emergiram nos anos 70,
agrupadas ao redor do significante black, o qual,
no contexto britânico, fornece um novo foco de
identificação tanto para as comunidades afro
caribenhas quanto para as asiáticas. O que essas
comunidades têm em comum, o que elas
representam através da apreensão da identidade
black, não é que elas sejam., cultural, étnica,
lingüística ou mesmo fisicamente, a mesma coisa,
mas que elas são vistas e tratadas como '"a mesma
coisa" (isto é, não-brancas, como o"'outro") pela
cultura dominante. É a sua exclusão que fornece
aquilo que Laclau e Mouffe chamam de ''eixo
comum de equivalência" dessa nova identidade.
Entretanto, apesar do fato de que esforços são
feitos para dar a essa identidade black um
conteúdo único ou mllficado, ela continua a existir
como uma identidade ao fungo de uma larga gama
de outras diferenças. Pessoas afro-carilienhas e
indimms continuam a manter diferentes tradições
culturais. O black é, assim, um exemplo não
apenas do caráter político das novas identidades
isto é, de seu caráter posicional e conjuntural (sua
formação em e para tempos e lugares específicos)
mas também do modo como a identidade e a
86
0 GLOBAL, O LOCAL E O RETORNO DA ETNIA
diferença estão ine}i..1:rincavelmente articuladas ou
entrelaçada~; em identidades diferentes, uma
nunca anulando completamente a outra.
Como conclusão provisória, parece então
que a globalização tem, sirn, o efeito de contestar
e deslocar as identidades centradas e "fechadas"
de uma cultura nacional. Ela tem um efeito
pluralizante sobre as identidades, produzii'ldo uma
variedade de possibilidades e novas posições de
identificação, e tornando as identidades mais
posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas;
menos fixas, unificadas ou trans-históricas.
Entretanto, seu efeito geral permanece
contraditório" Algumas identidades gravitam ao
redor daquilo que Robins chama de "'Tradição",
tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir
as unidades e certezas qu.e são sentidas como tendo
sido perdidas. Outras aceitam que as identidades
estão sujeitas ao plano da história, da política, da
representaçào e da diferença e, assim, é
:improvável que elas sejam outra vez unitárias ou
"'puras"; e essas, conseqüentemente, gravitam ao
redor daquilo que Rohins (seguindo Homi
Bhabha) chama de "Tradução".
O capítulo 6 descreverá, brevemente, esse
movimento contraditório entre Tradição e
Tradução, num quadro mais amplo e global, e
perguntará o que isso nos diz sobre o modo como
as identidades devem ser conceptualizadas, em
relação com os futuros da modernidade.
87
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
Naquilo que diz respeito às identidades, essa
oscilação entre Tradição e Tradução (que foi
rapidamente descrita antes, em reJação à Grã
Bretanha) está se tornando mais evidente num
quadro global. Em toda parte, estã.o emergindo
identidades culturais que não sã.o fixas, mas que
estão suspensas, em transição, ent.re diferentes
posições; que retiram seus recursos, ao mesmo
tempo, de diferentes tradições culturais; e que
são o produto desses complicados cruzamentos e
misturas culturais que são cada vez mais comuns
num mundo globalizado. Pode ser tentador pensar
na identidade, na era da globalização, como
estando destinada a acabar num lugar ou noutro:
ou retornando a suas 1''raízes'' ou desaparecendo
através da assimilação e da homogeneização. Mas
esse pode ser um falso dilema.
Pois há uma outra possibilidade: a da
Tradução. Este conceito descreve aquelas
formações de identidade que atravessam e
intersectam as fronteiras naturais, compostas por
pessoas que foram dispersadas para sempre de
sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos
com seus lugares de origem e suas tradições, mas
sem a ilusão de mn retorno ao passado. Elas são
obrigadas a negociar com as novas culturas em
que vivem, sem simplesmente sere1n assimiladas
por elas e sem perder completamente suas
identidades. Elas carregam os traços das culturas,
das tradições, das linguagE:ns e das histórias
88
0 GLOBAL, O LOCAL E O RETORNO DA ETNIA
particulares pelas quais foram marcadas. A
diferença é que elas não são e nunca serão
unificadas 11,t.o velho sentido, porque elas são,
irrevogavelmente, o produto de várias histórias e
culturas intetconectadas, pertencem a uma e, ao
,;. ,, "( -mesmo tempo, a varias casas e nao a uma
"casa" partioµlar ).As pessoas pertencentes a essas
culturas híbridas lêm sido obrigadas a renunciar
ao sonho ou à ambição deredescobrir qualquer
tipo de puteza :Cultural "perdida" ou de
absolutismo émicó. Elas estão irrevogavelmente
traduzidas . .A palavra "tradução", observa Salman
Rushdie, "vem, etimologicamente, do latim,
significandd "transferir"; "transportar entre
fronteiras". Escritores migrantes, como ele, que
pertencem a dois mundos ao mesmo tempo,
"tendo sido transportados através do mundo ... ,
são homens tradll!Zidos" (Rushdie, 1991). Eles
são o produt'I> das novas diásporas criadas pelas
migrações pÓs-col!lmiais. Eles devem aprender a
habitar, no :mJnimo, duas identidades, a falar duas
linguagens cq'lturais, a traduzir e a negociar entre
elas As cult-.itras híbridas constituem um dos
diversos tiposdeidéntidade distintivamente(...) O presente perde a possibilidade de ser
vivido como presente e escapa para dentro do futuro (Reis, 1994a: 13)
Eis a herança cabida aos Annales no concernente à concepção de tempo: sendo um não-
ser que atravessa o ser da humanidade, o tempo é causador de medo, angústia e dor, posto que
as sociedades humanas “aspiraram sempre à eternidade, à estabilidade, à unidade, a um
presente eterno” (Reis, 1994b: 143). Esta aspiração tem historicamente levado estas mesmas
sociedades a evadirem-se deste tempo-terror através de representações de tempo que, apesar
de diversas, são variantes umas das outras.
Nas sociedades arcaicas, em especial, o tempo assume as características de uma
entidade pavorosa, destruidora (cf. Eliade¸1969). Para escapar a esta entidade o homem
procura prender-se ao instante, buscando através do ritual – expresso na repetição ininterrupta
de gestos inaugurais – habitar em uma realidade transcendental que lhe garante uma espécie
de eterno presente. Sob esta concepção de tempo, segundo José Carlos Reis,
o hoje concreto é suspenso e lançado no tempo mítico (...). O tempo do ritual é um
começo sagrado: o presente se une ao passado em um presente intenso, em um
instante eterno. O agora do ritual é o mesmo agora da orígem. (1994b: 144)
Se os arcaicos utilizaram o instante como estratégia de evasão do tempo, entre os
gregos prevalecerá o círculo. A representação de tempo dos gregos está completamente
enformada pelo supralunar, uma vez que a filosofia grega especula sobre o cosmo, os seres
celestes, seu movimento. A idéia de tempo de Platão, por exemplo, é um ciclo que vai da
idade de ouro à idade de ferro, numa repetida decadência que eternamente recomeça (cf
Chatelet, 1975). O pensamento grego – e recorde-se que Heródoto de Halicarnasso, o criador
da História como a ciência do homem em suas mudanças, é grego –, portanto, é anti-histórico,
posto que
5
(...) não trata do transitório, da sucessão, da mudança, do mundo sublunar, reino da
corruptabilidade temporal. O seu olhar e atenção estão voltados para o eterno. O
mito libertava-se do evento e da mudança, procurando manter-se na orígem, no antes
do tempo, buscando a eternidade no presente intenso do tempo sagrado do ritual,
onde o atual reencontra a orígem. A filosofia grega estava voltada para as idéias
eternas, para os movimentos regulares, para o permanente supralunar, único
cognoscível, objeto de episteme. Para os filósofos gregos o mundo temporal
sublunar seria residual e desprezível, pois incognoscível e inabordável pela teoria.
Enfim, o pensamento grego do século V a. C. era paradoxal: fundamentalmente
anti-histórico, criou a ciência da história”. (Reis, 1998: 26)
O Instante mítico do ritual suspendendo e paralisando o tempo, ou o círculo que
apreende o movimento temporal e o projeta numa episteme que toma os movimentos celestes
como paradigmas e garante a rejeição teórica do vivido, foram as duas concepções
precursoras da idéia de tempo linear. Esta idéia, que afirma originalmente a modalidade de
fuga do tempo por sua afirmação e não por sua negação, é devida aos hebreus, embora sua
consolidação teórica tenha se dado com Santo Agostinho, como já dissemos. O pecado
original, primeiro, e depois o Cristo, oferecem um centro que garante a formulação teórica da
linha escatológica: um passado, um futuro e uma direção para a história (cf. Le Goff, 1960).
Sob esta concepção a recusa do tempo não se dá pela fuga, pela negação de sua existência,
mas pela crença de que o tempo é o lugar da intervenção de Deus:
O cristão valoriza a experiência temporal, pois a toma como uma ‘punição merecida’
e tem ‘fé’ na misericórdia de Deus, no seu perdão, que o libertará da miséria
temporal e o recolocará na eternidade. Ao mesmo tempo, valoriza a história como
diálogo com Deus e local da intervenção constante da providência e a desvaloriza,
pois deseja profundamente o seu fim. Diante do evento o cristão é tomado por
sentimentos contraditórios: aceita-o e se inclina, pois expressão da vontade de Deus;
teme-o e sofre-o, pois punição divina, que deseja ardentemente ver terminada.
(Reis, 1994b: 151)
O Renascimento, por sua vez, vai testemunhar a emergência do ‘tempo do mercador’,
isto é, a idéia de tempo entre os séculos XII e XV estará enformada pelo que Max Weber
chamou de o espírito do capitalismo: “um tempo plural, divergente, das esferas diferenciadas”
(Weber Apud Reis, 1994b: 154). A temporalidade renascentista combinará o ciclo, dos
primitivos, com a linha, dos cristãos. Segundo Le Goff, este tempo na verdade são três:
O mercador está submetido e dividido por três tempos: o da natureza –
meteorológico, estações, ritmo das intempéries imprevisíveis; o sagrado – o desejo
de salvação, de saída do tempo; o do mercado – que começa a se organizar, que
exige uma quantificação rigorosa do tempo (1960: 426)
Esta tripla analogia do tempo renascentista, entretanto, não pode ser vista – embora o
tenha sido – como uma euforia do homem renascentista para viver o seu presente, perdendo o
medo da finitude e, finalmente, assumindo o tempo como um ser que compõe a vida humana.
Para Reis,
Na verdade, o europeu renascentista resgatou a estratégia arcaica do retorno a uma
origem mítica. O presente não encontrou seu sentido nele próprio, mas no retorno à
Idade Clássica greco-latina, que é imaginada como uma fase iluminada, criadora, o
oposto da fase imediatamente anterior, considerada escura, sem sentido, caótica. Os
renascentistas abolem esse tempo escuro pela participação em uma história cíclica
(...). O renascentista é, na verdade, duplamente mítico: ele não só retorna ao ciclo
dourado passado, em busca de seu próprio ser, mas profetiza um ciclo futuro
dourado, cria utopias. Ele está suspenso entre o mito do passado e o mito do futuro.
(1994b: 155/156)
Esta concepção utópica de tempo se radicalizará, no século XVIII, por obra dos
iluministas. Sob o iluminismo o passado será negado e, como dito, o presente será projetado
no futuro. A profecia cristã é vencida e substituída racionalmente pela utopia iluminista. Os
homens julgam ser capazes de tomar a história em suas mãos e realizá-la, fazê-la. Afirma-se a
idéia de um singular coletivo, de uma história universal. A idéia de progresso se afirma com
6
uma diferença em relação aos renascentistas: “todos os aspectos da atividade humana
caminhariam para uma perfeição futura” (Reis, 1994a: 12), e não apenas o conhecimento.
As concepções de tempo que antecederam a Escola dos Annales, portanto, apesar de
diversas, convergem em um sentido: são representações do tempo que buscam a evasão e a
fuga em relação à finitude e à irreversibilidade, mesmo quando formuladas como negação
disto. Num primeiro momento a idéia de tempo abarca o mundo supralunar, i.é., uma
entidade divina – o mito para os arcaicos; o cosmo para os gregos; Deus, para os cristãos –
responde pelos eventos da vida terrena e é em seu nome que estes eventos se organizam. Sob
esta concepção, do ponto de vista da relação entre passado e presente há uma separação entre
ambos e, particularmente entre os gregos, uma significativa valorização do passado; para os
renascentistas o passado tem dupla personalidade: o mais distante é bom e deve ser tomado
como modelo, enquanto o passado ‘novo’ é escuro e desprezível, i. é., os renascentistas
articularam em sua representação de tempo o ciclo e a linha; sob influência dos iluministas do
século XVIII, por sua vez, o sublunar emerge como o único espaço onde podem ser
encontradas respostas para a trajetória histórica das sociedades humanas. O tempo é acelerado
numa promoção vertiginosa de eventos que os homens julgam controlar. O passado,
identificado como ‘velho’ e ‘atrasado’ é combatido e desprezado em sua relação com o
presente. Este por sua vez, como já foi dito, escorrega para dentro do futuro que, sendo
idealizado, já é conhecido.novos
produzidos •a era da modernidade tardia. Há
muitos outro~ exei:µplos a serem descobertos.
89
6
fUNDAMENTAUSMO,
DIÁSPORA E HIBRIDISMO
Algumas pessoas argumentam que o
''hibridismo'' e o sincretismo- a fusão entre
diferentes tradições culturais - são uma
poderosa fonte criativa, produzindo novas formas
de cultura, mais apropriadas à modernidade tardia
que às velhas e contestadas identidades do
passado. Outras, entretanto, argumentam que o
hiliridismo, com a indeterminação, a "dupla
consciência''' e o relativismo que implica, também
tem seus custos e perigos. O romance de Sahnan
Rushdie sobre a migração, o Islã e o profeta
Maomé, Versos satânicos, com sua profunda
imersão na cultura islâmica e sua secular
consciência de um "homem traduzido" e exilado,
ofendeu de tal forma os fundamentalistas iranianos
que eles decretaram-lhe a sentença de morte,
acusando-o de blasfêmia. Também ofendeu muitos
muçulmanos britânicos. Ao defender seu
romance, Rushdie apresentou uma defesa forte e
irresistível do '"hibridismo":
No centm do romance está um grupo d e personagens,
a maioria dos quais é constinúda de muçulmanos
britânicos, ou de pessoas não particularmente
91
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
~ }l
religiosas, de orige:çnislâmícii. 1ntan~.o precisamente
com o mesmo tipq de problemas 4ue têm surgido
em torno do livr4i, problejias d~hiliridização e
guetização, de reconcilia~ o vellf.o com o novo.
Aquelas pessoas que se op~em viplentamente ao
romance, hoje, são de opipião df que a mistura
entre diferentes culturais inÍwitavelmente
enfraquecerá e destruirá~ prórtra cultura. Sou
da opinião oposta. O livro V~rsos safâmcos celebra o
hibridismo, aimpureza, a~tura, t transformação,
que vêm de nova$ e inespe~adas 4ombinações de
seres humanos, culturas, iJéias, :folíticas, filmes,
músicas. O livro alegra-se~omof cruzamentos e
teme o absolutismo do Pur~ Méla-tfge, mistura, um
pouco disso e um pouco dailuilo, éfkssaforma que
o novo entra no mando. E'pi grantJ.e possibilidade
que a migração dê massa dá ao m9ndo, e eu tenho
tentado ahraçá-la,r O livro Vtwsos s&,tâmcos é a favor
damudança-por-&são,da~~-por-reunião. É
uma canção de amor pari. nossis cruzados eus
(Rushdie, 1991, p. 394). ..
Entretanto, o livro Verias sc4tânicos pode
perfeitamente ter ficado! pre~o entre as
irreconciliáveis forças da Tradfção eJJ.a Tradução.
Essa é a visão, simpática a Ru$hdieJmas também
critica, de Bhiku Parekh (1989). '
Por outro lado, exisi+m t$hém fortes
tentativas para se reconstr .. íreul identidades
purificadas, para se rest~lurarl a coesão, o
"fechamento" e a Tradição, frf.mte *hibridismo e
à diversidade. Dois exemplos fão o :rfessurgimento
do nacionalismo naEutopa Orittntal ~o crescimento
do fundamentalismo. 1 i
92
fUNDAMENTALISMO, DIÁSPORA E HIBRIDISMO
Numa era ern que a integração regional nos
campos econômicos e políticos, e a dissolução da
soberania nacional, estão andando muito
rapidamente na Europa Ocidental, o colapso dos
regimes comunistas na Europa Oriental e o colapso
da antiga União Soviética foram seguidos por um
forte revival do naçionalismo étnico, alimentado
por idéias tanto de pureza racial quanto de
ortodoxia religiosa. A ambição para criar novos e
unificados estados-nação (que, como sugeri acima,
nunca realmente existiram nas culturas nacionais
ocidentais) tem sido a força impulsionadora por
detrás de movimentos separatistas nos estados
bálticos da Estônia, Letônia e Lituânia, da
desintegração da Iugoslávia e do movimento de
independência de n.mitas das antigas repúblicas
soviéticas (da Geórgia, Ucrânia, Rússia e Armênia
até o Curdistão, Usbequistão e as repúblicas
asiáticas islâmicas do antigo estado soviético). O
mesmo processo, em grande parte, tem ocorrido
nas "nações" da Europa Central, que foram
moldadas a partir da desintegração dos impérios
austro-húngaro e otomano, no final da Primeira
Guerra Mundial.
E . d" _,, sses novos aspirantes ao status e naçao
tentam construir estados que sejam unificados
tanto em termos étnicos quanto religiosos, e criar
entidades poHticas em torno de identidades
culturais homogêneas. O problema é que elas
contêm, dentro de suas "fronteiras", minorias que
93
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
se identificam com culturas iliferentes. Assim, por
exemplo, há minorias russas "étnicas" nas
repúblicas bálticas e na Ucrânia, polbneses étnicos
na Lituânia, um enclave ar:mênio (Nagorno
Karabakh) no Adzerbajão, minorias turco-cristãs
entre as maiorias russas da ~oldávia, e grande
número de muçuhnanos nas repúblicas sulistas
da antiga União Soviética, que partilham mais
coisas, em termos culturais e :religiosos, com seus
vizinhos islâmicos do Oriente Médio do que com
muitos de seus ''conterrâneos''.
A outra forma importante de revival do
nacionalismo particularista e do absolutismo étnico
e religioso é, obviamente, o fenômeno do
"fimdamentalismo" . Isto é evidente em toda parte
(por exemplo, no ressuscitado e mesquinho
"inglesismo", anteriormente mencionado), embora
seu exemplo mais impressionante deva ser
encontrado em alguns estados islãmilios do Oriente
Médio. Começando com a Revolução Iraniana,
têm surgido, em muitas sociedades até então
seculares, movimentos islâmicos fundamentalistas,
que buscam criar estados religiosos nos quais os
princípios políticos de organizlitção estejam
alinhados com as doutrinasreligfosas e com as
leis do Corão. Na verdade, esta tendência é difícil
de ser interpretada. Alguns. analistas vêem-na
como uma reação ao cará.ter ":forçado" da
modernização ocidental: certamente, o
fundamentalismo iraniano foimna :w:.esposta direta
94
fUNDAM!ENTALISMO, DIÁSPORA E HIBRIDISMO
aos esforços do Xá nos anos 70 por adotar, de forma
total, modelos e valores culturais ocidentais. Algtms
interpretam-no como uma resposta ao fato de terem
sido deixados fora da ''globalização". A reafirmação
de "raízes" cultrn·ais e o retorno à ortodoxia têm
sido, desde há muito, uma das mais poderosas
fontes de conb:a-identificação em muitas sociedades
e regiões pós-coloniais e do Terceiro Mundo
(podemos pensar, aqui, nos papéis do nacionalismo
e da cultura nacional nos movimentos de
independência indianos, africanos e asiáticos).
Outros vêem as raízes do ftmdamentalismoislâmico
no fracasso dos estados islâmicos em estabelecer
lideranças ''modernizantes" bem-sucedidas e
eficazes ou partidos modernos, seculares. Em
condições de extrema pobreza e relativo
subdesenvolvimento econômico (o
fundamentalismo é mais forte nos estados islâmicos
mais pobres da região), a restauração da fé
islâmica é uma poderosa força política e ideológica
mobilizadora e unificadora.
A tend[~ncia em direção à "homogeneização
global", pois, tem seu paralelo num poderoso
revival da "etnia", algumas vezes de variedades
mais híbridas ou simbólicas, mas também
freqüentemcmte das variedades exclusivas ou
''essencialistas" mencionadas anteriormente.
Bauman tem-~se referido a esse "ressurgimento da
etnia" como uma das principais razões pelas quais
as versões mais extremas, desabridas ou
95
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
indeterminadas do que acontece com a identidade
sob o impacto do "pós-moderno glohW." exige lllila
séria qualificação:
O "ressurgimento da etnia" ... traz para a linha
de frente o florescimento não-antecipado de
lealdades étnicas no interior das minorias
nacionais. Da mesma fonna, ele coloca em questão
aquilo que parece ser a causa profunda do
fenômeno: a crescente sepa1:ação entre o
pertencimento ao corpo político e o pertencimento
étnico (ou mais geralmente, a conforinidade
cultural) que elimina grailde parte da atração
original do programa de aseimilação cultural ... A
etnia tem-se tornado uma das muitas categorias,
símbolos ou totens, em torno dos quais
comunidades fle'CÍveis e livres de sanção são
formadas e em relação às quais identidades
individuais são construídase afümadas. Existe
agora, portanto, um número muito menor
daquelas força8 centrífugas que uma vez
enfraqueceram a integridade étnica: Há, em vez
disso, uma poderosa demanda· por uma
distintividade étnica pr.munciada (embora
simbólica) e não 1wr uma distinfividade étnica
iustitucionalizada.
O ressurgimento do nacionalismo e de
outras formas de particularismo no final do século
XX, ao lado da globalização e a ela intimamente
ligado, constitui, obviamente, uma reversão
notável, uma virada bastante ineisperada dos
acontecimentos. Nada nas perspectivas illllilinistas
modernizantes ou nas ideologias do Ocidente nem
96
http:gra:ji.de
http:p�s-modern.qi
FUNDAMENTALISMO, DIÁSPORA E HIBRIDISMO
o liberalismo nem, na verdade, o marxismo, que,
apesar de toda sua oposição ao liberalismo,
também viu o capitalismo como o agente
involuntário da "modernidade" previa um tal
resultado.
Tanto o liberalismo quanto o marxismo, em
suas diferentes formas, davam a entender que o
apego ao l ocal e ao particular dariam
gradualmente vez a valores e identidades mais
universalistas e cosmopolitas ou internacionais;
que o nacionalismo e a etnia eram formas arcaicas
de apego - a espécie de coisa que seria" dissolvida''
pela força revolucionadora da modernidade. De
acordo com essas "metanarrativas" da modernidade,
os ape gos ir; acionais ao_ local e ao particular ,_à
tradição.e"'às raízes, aos mitos u_a_çj_onais e às
""coml!nidad'"eT~a~a'dãS", ·seri~ gradu"'almente
substiiuídos p or identidades mais racionais e
universalistas. Entretanto, a globalização não
p~rece -;;;tarproduzindo nem o triunfo do ""global"
nem a persistência, em sua velha forma
nacionalista, do ""local". Os deslocamentos ou os
desvios da globalização mostram-se, afinal, mais
variados e mais contraditórios do que sugerem
seus protagonistas ou seus oponentes. Entretanto,
isto também sugere que, embora alimentada, sob
muitos aspectos, p elo Ocidente, a globalização
pode acabar sendo parte daquele lento e desigual,
mas continuado, descentramento do Ocidente.
97
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102
Por uma escrita bailarina da história1.
Edwar de Alencar Castelo Branco*
Fábio Leonardo Castelo Branco Brito**
Entende-me: escrevo-te uma onomatopeia, convulsão da
linguagem. Transmito-te não uma história, mas apenas palavras
que vivem do som. Mas bem sei o que quero aqui: quero o
inconcluso. Quero a profunda desordem orgânica. Quero a
experiência de uma falta de construção. Embora este meu texto
seja todo atravessado de ponta a ponta por um frágil fio condutor
– qual? O do mergulho na matéria da palavra? O da paixão? Fio
luxurioso, sopro que aquece o decorrer das silabas.
(Clarice Lispector, 1973, p. 27).
Em vez de se comprazer com a cognição, com a antecipação, o
dado, a referência chapada, (...) a escrita como devir envereda por
uma duplicidade-outra, não mais conforme o princípio que rege a
arte, definição clássica da duplicidade, contudo pela intuição e
imaginação que trituram toda ideia de dualidade moral ou
dominação imagética: morte anunciada da escrita, que detesta o
regelo da instituição. Nem frieza nem controle régio, mas calor,
que se adéqua à produção de vírus e à sua multiplicidade
incontrolável.
(Daniel Lins, 2013, p. 15).
.
A cultura é uma categoria central em qualquer estudo de cunho historiográfico. Por
consequência, todo acontecimento histórico possui, evidentemente, uma dimensão cultural.
Ainda que o espaço e o tempo sejam referentes fundamentais da memória, o que articula
estas categorias no interior de um discurso histórico é a sua dimensão cultural.
Entretanto, se tomarmos espaço, tempo e sujeito como dimensões fundamentais da
história e se abstrairmos isto no interior de uma reflexão sobre como estas categorias têm
sido classicamente abordadas nos estudos históricos desenvolvidos, por exemplo, nos
Programas de Pós Graduação pelo Brasil afora, é fácil perceber uma ênfase na dimensão
temporal, ênfase que por vezes chega ao ponto de negligenciar o Espaço e o Sujeito, os
quais são comumente tomados como um a priori, como objetos recobertos de natureza e
1
Este texto constitui espécie de memorial das discussões travadas no âmbito do Simpósio Temático
“Memória, narrativa e invenção: artes, culturas urbanas e escrita da História”, o qual compõe o programa
científico do SNHC desde sua quarta edição.
*
Doutor em História, pesquisador do CNPq e Professor Associado na UFPI. edwar2005@uol.com.br
**
Doutor em História, é Professor Assistente na UFPI. fabioleobrito@hotmail.com
mailto:edwar2005@uol.com.br
mailto:fabioleobrito@hotmail.com
que, exatamente por sua condição de “naturais”, não precisariam ser pensados
historicamente.
Ao propor que é necessário tomar este aspecto como um dos signos que constituem
o nosso campo de atuação na atualidade, estamos procurando favorecer intervenções
qualificadoras no quadro descrito acima sem perder de vista uma longa tradição do ofício
do historiador: desde que surgiu como saber especializado, na Antiguidade – e
especialmente desde que ganhou foros de disciplina científica, no século XVIII –, a história
vem trazendo para o interior de sua oficina reflexões sobre a produção das identidades
culturais, ainda que, pelo menos até o período de entre-guerras, no século passado, esta
reflexão tenha se limitado à necessidade de constituir uma memória que definisse e
legitimasse determinados recortes espaciais, tais como a Cidade, o Império, a Cristandade, a
Nação, a Região, a Província, a Aldeia, o Ocidente, o Oriente, etc.
Mais recentemente, desde que, como acentua Hall (2005), a identidade virou um
problema de ordem histórica, o nosso ofício passou a abarcar, também, o esforço de
responder como se constituem historicamente os sujeitos. Mas resta, ainda, articular estes
passos em uma caminhada.
Fala-se em história cultural e mesmo em nova história cultural, mas parece
permanente a nossa dificuldade em fazer uma inversão de enfoque. Não exatamente
abstraindo completamente a categoria tempo, mas perfilando-a ao lado de outros aspectos
da nossa existência cultural. Se é possível falar-se, por exemplo, em história das
sensibilidades, porque continuamos a reduzir o mundo sensível a um universo no interior
do qual “o conhecimento histórico prioriza a esfera cultural, as ideias, os valores, as
representações, as linguagens” (COSTA, 2008, p. 106) e desperdiça aspectos micrológicos
do cotidiano? Não seria a audição, por exemplo, um aspecto relevante de nossa experiência
histórica? Não estaríamos a tagarelar sobre um suposto trazimento da cultura para o centro
do argumento histórico e ao mesmo tempo insistindo em enxergar o mundo com olhos de
madeira, num aborrecido jogo de espelhos (GINZBURG, 2001) no interior do qual
ficamos a celebrar alternadamente a ausência e a presença?
Como nos diz Schafer, a despeito de uma superpopulação de sons que abarrota o
nosso presente,
no Ocidente o ouvido cedeu lugar ao olho, considerado uma das mais
importantes fontes de informação desde a Renascença, com o
desenvolvimento da imprensa e da pintura em perspectiva. Um dos mais
evidentes testemunhos dessa mudança é o modo pelo qual imaginamos
Deus. Não foi senão na Renascença que esse Deus tornou-se retratável.
Anteriormente ele era concebido como som ou vibração. (...) Antes da
era da escrita, na época dos profetas e épicos, o sentido da audição era
mais vital que o da visão (SCHAFER, 2001, p. 27-8).
E o que dizer, no mesmo raciocínio, do olhar? Se “a produção de sentidos é sempre
concomitantemente uma produção discursiva de pessoas em interação” (SPINK;
MEDRADO, 2000, p. 56) , ao desperdiçar a visão como uma máquina produtora de
sentidos sobre o passado não estaríamos a desperdiçar, também, parte dos repertórios
interpretativos no interior dos quais a própria realidade vai ganhando significado? Pois se a
história científica, prevalecente no século XIX, desprezou a imagem e a relegou a um lugar
de inexpressividade significante, a linguistic turn e – para o caso específico do nosso campo –
a cultural turn são acontecimentos intelectuais que nos conclamam a reverter este quadro,
revalorizando a cultura visual e restaurando o discurso imagético como algo importante
para a compreensão da história (CASTELO BRANCO; SOUSA, 2015).
Problemáticas tais como estas da visão e da audição como arranjos maquínicos de
significação trazem para o centro dos nossos interesses a questão da relação entre história e
linguagem. Uma questão que, mesmo não sendo nova, é bastante contemporânea no
âmbito das reflexões dos historiadores. Desde os gregos, que faziam cavalgar a realidade no
lombo da antítese entre logo e ergo, ou desde os escolásticos – entre os quais ressalta Tomás
de Aquino – que vimos dividindo e hierarquizando as coisas, nas suas relações com as
palavras, em termos de coisas verbais (definitio nominis) e coisas reais (definitio rei). As coisas
reais, mais nobres, se referenciariam na essência que presumidamente possuem, enquanto
para as coisas verbais, suposta porta de entrada do falseamento ideológico, não importaria a
essência que a coisa nomeada possuísse, mas o significado que esta coisa assumisse
(CASTELO BRANCO, 2014). Pesavento, por exemplo, propôs que o imaginário social é
um jogo de espelhos onde o verdadeiro e o aparente se mesclam, o que imporia ao
historiador a tarefa de desvendar um segredo que lhe permititiria encontrar a chave para
desfazer a representação de ser e parecer (PESAVENTO, 1995. p. 24). Note-se que nesta
concepção é possível falar-se de uma realidade real (definitio rei) em contraposição a uma
realidade aparente (definitio nominis).
Mas temos ouvido também que a História é um discurso sobre o passado
(JENKINS, 2005) e que, sendo assim, o interesse do historiador deve se deslocar das
grandes verdades universais – o Estado, a Classe, a Economia, etc. – para o murmúrio
quase inaudíveldas palavras que dizem – e ao dizer constituem – aquelas verdades. O
resultado disso é a conclusão, aparentemente óbvia, de que a História, sendo um discurso,
acontece antes de tudo na linguagem, o que nos conduz, à ideia de representação.
Muitas foram as disciplinas que permitiram, no campo histórico, a emergência dessa
noção de representação. Mas certamente a Lingüística e os estudos de linguagem de
maneira geral, especialmente a crítica literária e de arte foram significativos para que nós,
no interior de nossa oficina, começássemos a refletir sobre o noema – esta camada de
sentido que se intercala entre a palavra e a coisa e sem a qual a economia signica não
funciona. Por noema entende-se
aquele forro, ou camada de sentido ou de significação que se intercala
entre a palavra e a coisa, camada tão impalpável quanto o incorporal, que
forma a designação da coisa “como tal”, sem a qual o signo verbal seria
simples sinal ou parte da coisa. A palavra nomeia o objeto por
intermédio de sua significação, ou, para voltar à linguagem estóico-
deleuzeana, de seu sentido de acontecimento. Ela lhe confere sentido
enquanto acontecimento (ALLIEZ, 2000, p. 27.)
A compreensão de que a linguagem é um dos lugares de acontecimento da história
nos lega a possibilidade de fazer uma leitura indireta, não-positiva das fontes, nos
permitindo indagar não exatamente sobre a história de um objeto, mas sobre a história da
constituição daquele objeto. Isso equivale a reconhecer que o historiador não estuda o
objeto, propriamente, mas as camadas de significados que tornaram historicamente possível
aquele objeto. Nesse sentido, resta óbvio que interessam ao historiador, como parte de sua
prática, as linguagens que dão aparência ao objeto e que, ao aparentá-lo, fabricam-no.
De modo mais simples, poderíamos dizer que uma leitura indireta e não-positiva das
fontes históricas pode nos beneficiar com uma positiva amnésia em relação à essência das
coisas e, no outro oposto, com um interesse atento à aparência das coisas. A amnésia e o
interesse, por sua vez, podem, quem sabe, nos conduzir a um lugar da teoria no qual
desfazer a representação de ser e parecer já não seria um problema. Isto porque, se as
linguagens constituem sistemas de significação e o processo de significação é
fundamentalmente social, um significante determinado deve sua forma e sua conexão com
um determinado significado exclusivamente à convenção social (SILVA, 1998).
De uma visão ontológica dos espaços e dos sujeitos, portanto, é preciso caminhar
para uma visão que nos permita entender estas categorias como dimensões das práticas
humanas, cuja historicidade não pode ser subsumida numa presumida e confortadora
natureza. História e Cultura são saber e dimensão que nos permitem enxergar o espaço sem
a fixidez confortadora da física newtoniana, vendo-o, como ensina Certeau (2004), como
um espaço praticado e não apenas observado de fora. Ao mesmo tempo este saber e esta
dimensão nos permitem pensar os sujeitos no âmbito de suas identidades intervalares, tal
como preconizado por Homi Bhabha (1998), entre outros.
É induvidoso que neste último quarto de século temos tido a nossa disposição um
conjunto bastante amplo de referências à luz das quais é possível situar-se além da morte
do autor ou do nascimento do sujeito. Estas referências esgarçam e esmaecem verdades
universais tais como “classe” e “gênero” e acabam por colocar a questão da cultura na
esfera do além. É no âmbito deste além que se pode vislumbrar os “entre-lugares” no
interior dos quais fermentam as posições de sujeito. Mas o desafio permanece, pois
o que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de
passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de
focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na
articulação de diferenças culturais. (...) é na emergência dos interstícios –
a sobreposição e o deslocamento de domínios da diferença – que as
experiências intersubjetivas e coletivas da nação, o interesse comunitário
ou o valor cultural são negociados. De que modo se formam sujeitos nos
“entre-lugares”, nos excedentes das somas das “partes” da diferença
(geralmente expressas como raça/casse/gênero etc.)? de que modo
chegam a ser formuladas estratégias de representação ou aquisição de
poder no interior das pretensões concorrentes de comunidades em que,
apesar de histórias comuns de privação e discriminação, o intercâmbio
de valores, significados e prioridades pode nem sempre ser colaborativo
e dialógico, podendo ser profundamente antagônico, conflituoso e até
incomensurável? A força dessas questões é corroborada pela
“linguagem” de recentes crises sociais detonadas por histórias de
diferença cultural (BHABHA, 1998, p. 20).
Nem os espaços nem os sujeitos preexistem às práticas que os produzem e que lhes
dão significados. Eles são produtos das vivências e da imaginação humanas. Como nos
ensina Bachelard (1989), existe uma poética dos espaços cuja apreensão histórica passa por
uma implicação de sujeitos praticantes nestes espaços. Os lugares, tão caros à história, não
são apenas nem principalmente materiais e objetivos. Eles são atravessados por
sentimentos, afetos, sonhos, fantasias, projetos, utopias e sons que os tornam significativos
de forma diferente para cada época, para cada indivíduo ou para cada grupo social.
Articuladas no interior de uma reflexão que culmine numa escrita-devir da história, as
paisagens históricas se mostrariam mais ao olhar relativo da física einsteineana do que ao
olho certeiro, estável e fixo de Newton. Isto porque, como alguns historiadores vem nos
mostrando, as paisagens dependem dos códigos culturais de cada época, pois “paisagem é
cultura antes de ser natureza; um constructo da imaginação projetado sobre mata, água,
rocha” (SCHAMA, 1996, p.70).
Do mesmo modo, os sujeitos, aqueles que protagonizam a história, não são, como
acreditavam os iluministas, indivíduos idênticos a si mesmos, portadores de uma identidade
essencial com a qual nascem e se desenvolvem. Mestres da suspeita, como Marx, trataram
de mostrar que, ao largo das certezas confortadoras do Cogito cartesiano, a identidade se
forja historicamente, no interior dos arranjos sócio-culturais que articulam e dão existência
aos grupos sociais.
Freud, quase ao mesmo tempo que Marx, recobriu a arrogante racionalidade humana
com uma desconcertante tintura de inconsciente. Estes descentramentos (HALL, 2000), os
quais se somarão a outros, nos ajudam a conceber o Sujeito, tal como acontecera com o
Espaço, como algo dependente da própria história, como algo que não existe desde sempre
e que, portanto, é possível, historicamente, identificar os sobressaltos dos seus começos.
Estas são linhas gerais daquilo que, do nosso ponto de vista, constitui o desafio
mais presente da história: alçar-se para além das disputas intelectuais que colocam “história
cultural” e “história social” como partes irredutíveis uma à outra. O enfrentamento deste
desafio exige, entre outras coisas, uma breve explicação sobre a distinção entre “História
Cultural” e “História e Cultura”.
Conforme as suficientes explicações, respectivamente, de Vainfas (1997) e de
Chartier (2006), a história cultural, enquanto área especializada da história, decorreu em
larga medida de uma migração, nos meados do século passado, de historiadores das
mentalidades para o interior desta nomenclatura. Ao assumir o rótulo de Nova História
Cultural, por sua vez, a disciplina procuraria constituir-se área especializada justamente em
oposição à história das mentalidades. Em uma e em outra explicação a conformação do
campo vai se constituir balizada pelo mental e basicamente articulando um debate –
particularmente presente em Vovelle (1991) – sobre o fato de que enquanto “Ideia” é
elaboração consciente de um espírito singular, “Mentalidade” é semprecoletiva e
impessoal.
Ao aventarmos a necessidade de praticar uma escrita bailarina da história, não
estamos passando ao largo desse debate, mas, ao mesmo tempo, também não estamos
dando a ele o estatuto de centro. Em primeiro lugar porque, mais uma vez com Chartier
(2006), é possível concluir que não existe uma História Cultural no sentido de um campo
coerente que articule sob um mesmo rótulo a grande diversidade dos objetos, das
perspectivas metodológicas e das referências teóricas que vêm sendo desenvolvidas sob
este nome. Mas, ao mesmo tempo – e aí reside uma das principais razões para a defesa que
ora fazemos –, é possível, na articulação entre história, cultura e linguagem, construir um
espaço de intercâmbio e de debates entre historiadores que se sentirão articulados a um
campo de sua disciplina exatamente pela recusa em reduzir os fenômenos históricos a uma
só das suas dimensões.
Nem o primado do político nem o poder absoluto do social. A escrita-devir da
história que aqui se propõe articula-se em torno de uma concepção de história que, por sua
vez, não se propõe a uma descrição positiva do fato em si, mas à apreensão da dinâmica
cultural no interior da qual os acontecimentos são transpostos em fatos e, como tal, vão
configurando o universo historiográfico. Essa leitura indireta, não-positiva dos
acontecimentos, repita-se, permite indagar sobre a história da constituição histórica dos
objetos, mirando, pela via da cultura, as representações sociais ou o capital simbólico que
recobrem a transposição dos acontecimentos em fato.
Desse ponto de vista é possível pensar o saber histórico como habitando uma
fronteira cambiante, a qual Albuquerque Júnior (2007) nomeia terceira margem e que
estaria localizada entre o polo da realidade, objetividade, materialidade e sociedade, de um
lado, e o polo da invenção, da subjetividade, da linguagem e da cultura, de outro. Na
terceira margem de uma história metaforicamente representada como rio caudaloso seria
possível perceber as múltiplas dimensões de nosso ofício, o qual não teria como dever
primaz “partir da realidade”, mas, ao contrário, compreender a realidade como algo
resultante de uma tradução linguística do real, um fluxo, rio caudaloso em relação ao qual é
possível posicionar-se na terceira margem. Afinal,
aquilo que nós chamamos de ‘realidade’, essa espécie de totalidade
genérica que inclui o conjunto das coisas, foi primeiramente
concebido como o terreno do dizer, como o problema de nossas
palavras e de nossas ações, como aquilo que nos concerne e que
está no nosso meio, no meio de nossos dizeres e de nossos fazeres
(LARROSA, 2003, p. 159)
É chegada a hora de lançarmos sobre o ofício do historiador e sobre o próprio
debate em torno do ser da História um desafio ainda pouco explorado. É chegado o tempo
de pensarmos nosso ofício não mais apenas como uma disciplina – compreendida em seu
sentido formal, oitocentista e cartesiano, como saber específico instituído pela lógica
historicista – mas como uma indisciplina, no sentido de compreender que ela, para
constituir-se como um saber especializado, não necessita carregar consigo uma corcunda,
uma dimensão metódica que a fundamente, uma pretensa operação historiográfica, na
perspectiva lançada por Certeau (2013), que não apenas lhe fosse uma possibilidade, mas
sim uma obrigatoriedade. Ao nosso ver este desafio foi bem configurado por Monteiro
(2012), quando este nos ensinou que
Trata-se (...) de um encontro rigoroso do caos e do cosmos. Disciplinas,
trans-disciplinas, indisciplinas. Ressonâncias das melhores lições
extemporâneas de nossos totens que, há muito, e de muitos modos, vem
tentando nos fazer ouvir: o mundo é vasto e em sua vastidão o que o
mundo imundo quer conosco é sempre um mais de sua potência a não
se adaptar em zonas de conforto. É sempre uma natureza indócil que
não se deixa representar em seu puro devir, que não se deixa humanizar,
que tudo une e tudo fere em caos comum. Um caos inevitável que,
justamente por ser inevitável, nos exige, para com ele, toda nossa
precisão [...]. Precisão como capacidade de se criar máscaras provisórias,
suportes finitos para o insuportável infinito do viver: um tanto de Apolo,
um tanto de Ariadne para o que não se pode precisar do todo dionisíaco.
A pena de um poeta, o conceito de um filósofo, a prancha de um
surfista, a ginga de um toureiro, a câmera de um cineasta, a panela de um
cozinheiro podem ser máscaras precisas, ou não. Não importa o suporte
disciplinar em si, a disciplina em si, mas o movimento vital que uma
disciplina qualquer é capaz de traduzir em sua singularidade povoada.
Disciplinas, tais como as penso aqui, não são categorias, são pousos,
repousos provisórios para o indisciplinado texto da vida. E a cada vez
que a vida pede pouso em nós, e ela sempre pede, é preciso, com ela,
precisamente, arrumar, re-arrumar, concertar, desconcertar nossas
moradas disciplinares. Portanto, é preciso indiscipliná-las para melhor
discipliná-las (MONTEIRO, 2012, p. 9)
Ainda é desconcertantemente atual a provocação de Brás Cubas,
personagem de Machado de Assis cujas memórias lecionam
que isso de método, sendo, como é, uma coisa indispensável, (...) é
melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios, mas um pouco à fresca e à
solta, como quem não se lhe dá vizinha fronteira, nem do inspetor de
quarteirão (ASSIS, 1994, p. 20).
Ao borrarmos a fronteira das disciplinas, propondo, portanto, a História como um
saber potencialmente indisciplinado, supomos permirtir a nós mesmo a sugestão de um
ofício que esgarce seus próprios limites, tanto de ser quanto de fazer, não mais temendo a
falésia – metáfora lançada por Michel de Certeau e apropriada por Roger Chartier (2002)
como forma de compreender a perigosa fronteira na qual se lançava o saber histórico e os
historiadores, ao flertarem com a virada linguística norte-americana – mas aprendendo a
descer desta falésia, cuja existência assombrosa se esmaecerá na presença de uma escrita
indisciplinada da história.
Na medida em que somos habitantes dessa metafórica Babel pensada por Larrosa e
Skliar (2011), compreendemos que não mais nos interessam as certezas do homem
anteriores à sua expulsão do Éden, mas sim o avesso da nostalgia do Paraíso e da história
da humanidade como sua tentativa de reconquista. Uma vez que “já não mitificamos o
passado nem projetamos na história nossas utopias, desconfiamos da história, tememos a
todos aqueles que pretendem ‘fazer história’” (LARROSA & SKLIAR, 2011, p. 7), ou, pelo
menos, a todos os que buscam enxergar esse ofício como um exercício de sacralização e
cristalização do passado.
Nesse sentido, retornamos a Chartier e a sua proposição, em meados da década de
1980, de que era necessário buscar o deslocamento de uma história social da cultura para
uma história cultural da sociedade, compreendendo que seria necessário “recusar essa
dependência que relaciona as diferenças nos hábitos culturais a oposições sociais dadas a
priori, seja na escala de contrastes macroscópicos (...), seja na escala de diferenciações
menores” (CHARTIER, 2002, p. 68, grifo no original). Na medida em que se tratava de
uma compreensão bastante pertinente para a sua época, pensamos ser igualmente
pertinente, considerando as questões próprias do nosso tempo, vislumbrar a possibilidade
de produzirmos uma história cultural da cultura, capaz de abarcar, para além das questões
que estão na ordem das representações culturais da sociedade, a própria dimensão da
subjetividade, do discurso e da invenção como categorias que nos atravessam,
potencializando, nesse sentido, diferentes outros regimes de visibilidade do mundo, do
tempo e do nosso próprio ofício.
Relembremos que, mesmo do ponto de vista da escatologia cristã, o primeiro gesto
de criação é o verbo. Sendo assim, os nossos diagnósticos históricos devem sempre partir,
não de umadenúncia lamuriosa sobre o falseamento da realidade, mas de uma reflexão e de
uma crítica sobre como nós, os homens, vamos arrancando de sobre o real – através de
uma toponímia que marca lugares, coisas e corpos – os objetos com os quais compomos a
nossa realidade. Nesse sentido, a realidade, plenamente constituída de cultura, conforma os
objetos históricos e se dá a ver através dos nomes. É, portanto, no mundo da linguagem
que as coisas se passam, na medida em que é a linguagem quem constitui os nossos objetos
e, mesmo, a nós próprios.
Se nos perguntam que caminho efetivamente nos resta, então, em termos de escrita
da história, nós respondemos, para finalizar, com o poeta franco-egípcio Edmond Jabès:
O caminho que resta é o das palavras, a areia de todos os livros.
Eu sopro sobre o pavio que queima em cada palavra.
O deserto é o vazio com sua poeira. No coração deste universo
pulverizado, em sua ausência intolerável, apenas o vazio conserva
sua presença; não mais como vazio, contudo, como respiração do
céu e da areia.
O caminho que resta, então, é aquele das palavras, a areia de todos
os livros. Nunca esqueça que és núcleo de uma ruptura.
Antes existe a água, após existe a água: durante, sempre durante...
jamais a água sobre a água, jamais a água para a água, mas a água
onde não há mais água, mas a água na memória morta da água.
Viver na morte viva, entre a lembrança e o esquecimento da água,
entre a sede e a sede (JABÈS apud LINS, 2013, p. 13).
Mas por que a água, insistem em perguntar. Porque água é fluxo, assim
como a história.
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Para que serve a História?
(Fragmento de aula proferida pelo Prof. Dr. Durval Muniz, em 23.01.2001, para mestrandos e
doutorandos do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco.
Transcrito e revisado por Edwar de Alencar Castelo Branco)
Essa é a questão central hoje na reflexão sobre história. Ensina-se história para quê?
Essa é uma grande questão porque durante muito tempo ensinou-se história para construir o
cidadão da pátria, o cidadão burguês, cívico, patriótico, o soldado da nação. Depois ensinou-
se história para construir o revolucionário, o sujeito emancipador da humanidade. Ora, essas
duas coisas estão em descrédito, então ensina-se história para quê? Para que a história serve?
O Hayden White, num texto chamado “fardo da história”, dá uma resposta: para ele a história
tem a finalidade de nos ensinar exatamente a conviver com a diferença e com o descontínuo.
A história tem essa função de nos fazer cada vez mais perceber a própria historicidade do que
somos e exatamente pôr em questão o que somos. E é exatamente este trabalho que o Jorge
Larrosa propõe, isto é, dentro do que ele propõe o ensino de história seria fundamental para a
gente fazer uma crítica de nós mesmos, daquilo que nos constituiu, isto é, daquilo que nos fez
ser o que somos. A história seria fundamental para você desnaturalizar a sua própria figura de
sujeito. É a possibilidade de você estabelecer um laço crítico consigo mesmo.
A história teria a função de nos livrar do passado e não de nos ligar a ele. A sua função
seria dizer o que em nós é passado e fazer com que a gente se livre disso, do peso do que em
nós é passado. A história é a anulação da memória, é detonação da memória. Ela pode servir
para nos libertar do aprisionamento que a memória significa. A história é introduzir o
descontínuo em nós mesmos, pensando a possibilidade de recriar o tempo para nós mesmos,
construindo uma nova temporalidade para nós mesmos, que não tenha obrigação de ser a
continuidade desse tempo anterior, desse tempo que nos fez, que nos produziu, que nos fez
chegar até onde somos. Então a história teria essa finalidade de fazer as pessoas conviverem,
por exemplo, com o relativo da própria existência, conviver com a relatividade das coisas. A
história na verdade é um aprendizado profundamente ético. A história seria o aprendizado de
uma ética. É o saber que serviria para uma reflexão ética sobre o estar no mundo, o ser no
mundo. É o saber que me possibilita refletir sobre o tipo de laço que eu estabeleço com o
mundo e o tipo de laço que eu estabeleço com o meu semelhante. A história serviria para isso.
É certo que brincando de que volta ao passado, brincandode que utiliza sujeito do passado,
mas eles são na verdade meros pretextos para o nosso presente.
Repensar nossas relações, repensar aquilo que nos fez ser o que somos. Deve ser esse o
papel da história. A história deve ter essa capacidade fantástica de nos impor uma reflexão
sobre como chegamos a ser o que somos.
Em primeiro lugar nós devemos dizer aos alunos que a história não tem nenhuma
finalidade do ponto de vista de aprendizado de um conteúdo. Não tem a menor importância
saber em que ano aconteceu a inconfidência mineira. A história tem uma outra finalidade, que
é a relativização e a desnaturalização daquilo que é apresentado pra gente como sendo a
verdade, o bem, o justo, o belo, o bom. É você colocar as coisas no fluxo temporal e fazer
com que as pessoas se preparem para a finitude das próprias coisas do seu próprio ser. A
história tem a função de nos preparar para encarar a finitude, isto é, a morte. A história é
basicamente uma relação com a morte e, portanto, numa sociedade que nega a morte, como a
nossa, a história é um tanto quanto complicada. Porque a história é você encarar que todas as
coisas são mortais. Tudo passa. Como diz Florbela Espanca, tudo é “fumo leve que foge entre
meus dedos”. O meu amor é finito, minha relação é passageira. A história tem a finalidade de
nos preparar para o fim. Então eu acho que o saber histórico é a radicalização da própria
historicidade. É radicalizar essa convivência com a história que a modernidade nos colocou e
daí porque a modernidade já era problemática, porque ela é o momento da descoberta da
historicidade, da passagem do tempo. E agora a gente chegou ao momento em que essa
consciência chegou ao máximo, isto é, qualquer tipo de continuidade é problemático. Então
estudamos história para saber lidar com o descontínuo do nosso próprio ser. Nós somos fluxo.
A história, tal qual a praticamos, é produto da modernidade e, portanto, ela expressa um
sujeito autoreflexivo. A história nasce de uma reflexão sobre o homem, ela é humanista. Só
que hoje nós vivemos a crise do humanismo, então não é mais uma reflexão sobre este
homem em geral, mas continua sendo uma reflexão sobre sujeitos, sobre a construção da
subjetividade, sobre a construção dos laços sociais, das relações sociais. Porque nós somos
seres sociais, estão a história nos ajuda a refletir sobre que tipo de laços nós estamos
estabelecendo com os outros e com o mundo. Que tipo de sociedade estamos construindo.
Que tipo de relação a gente tem com o outro. É uma disciplina pra ajudar as pessoas a se
produzir enquanto ser. Não é utilitária do ponto de vista técnico e imediato.
A história, então, sempre foi uma disciplina voltada para a construção de sujeitos. Só
que um sujeito dado, específico. Hoje a história é apresentada como aquela que vai
proporcionar a possibilidade da construção de sujeitos variados e múltiplos. É o direito de
você se construir de forma variada, de forma diferenciada. A história, então, seria o
aprendizado da multiplicidade e da diferença. Assim como da singularidade, quer dizer, a
história que lida com o singular. Ora, a história sempre lidou com o singular, a história sempre
lidou com a coisa que é absolutamente excepcional, mas nunca nos preparou para conviver
com o singular porque sempre dissolveu o singular no geral. E sempre disse que o geral era
mais importante que o singular. Então a história também tem uma função de nos ensinar a ser
singular e a valorizar a singularidade. Esta pode ser uma justificativa de porque fazemos
história, de porque ensinamos história, de porque lemos história, etc: por uma sociedade mais
tolerante e menos autoritária. Sujeitos que convivem bem com a diferença.
Educação, Porto Alegre, v. 31, nº 3, p. 232-238, set./dez., 2008
Neste artigo, o pré-texto em torno do qual desenvolvo
o argumento diz respeito ao reconhecimento de que muitos
dos profi ssionais de história exercem sua prática sem ter
adequada consciência das referências conceituais que estão
implicadas em sua Atividade. Suponho, em decorência dis-
so, que o fato de termos, até aqui, situado restritivamente as
nossas refl exões, limitando-nos a indagar sobre o “que” e o
“como” se ensina História, encaminhando nossas refl exões
exclusivamente para as questões atinentes aos conteúdos
e às metodologias didáticas (BASSO, 1985; FONSECA,
1993; CASTELO BRANCO, 1997), nos fez perder de vista
uma complexa rede de determinantes à luz das quais a sim-
plicidade deste esquema se esgarça. As aulas de história são
algo que ocorre em algum lugar entre o individual e o so-
cial e que, portanto, transcendem a questão do método e do
conteúdo para situar-se numa região pantanosa da relação
entre o lado de “fora” da sociedade e o lado de “dentro” da
psique humana (DONALD, 1991: 02). Isto faz com que a
experiência de assistir ou ministrar uma aula de história seja
mais do que algo voluntário ou idiossincrático. A relação
pedagógica implica, nas duas pontas, numa interpelação
de indivíduos em sujeitos a qual é feita a partir “de tipos
particulares de relação entre o eu e o eu, bem como entre o
eu e os outros, o conhecimento e o poder” (ELLSWORTH,
2001: 19).
A esse respeito e a título de exemplo pode-se formular
uma síntese comparativa: assim como nos fi lmes, que são
sempre dirigidos a um público previamente imaginado, o
processo educacional também está recortado por um cam-
po de forças cuja região mais facilmente percebida são os
modos de endereçamento. Numa aula estão implicadas di-
ferentes posições de sujeito as quais estão enroscadas numa
teia de intenções pedagógicas: há o sujeito objeto da aula
que expressa, para o sistema educacional, aquilo que se
Desvendando a Prática Pedagógica em História:
o professor frente à história e seu ensino*.
Deciphering to Practical Pedagogical in History:
the teacher facing the history and his teaching.
EDWAR DE ALENCAR CASTELO BRANCO� �
RESUMO – Este trabalho refl ete sobre a prática pedagógica em história face às transformações ocorridas no âmbi-
to das referências teóricas que informam aquela prática. A realização do trabalho benefi ciou-se de referências con-
ceituais pós-estruturalistas, como Gilles Deleuze e Michel Foucault. A conclusão permitiu ver o ensino de história
como uma região em transição problemática: renovam-se as referências conceituais na produção do conhecimento
histórico, mas esta renovação não repercute adequadamente sobre o ensino da disciplina.
Descritores – História; prática pedagógica; paradigmas.
ABSTRACT – This work refl ects about the pedagogical practice in history, having in mind the theoretical altera-
tions in the area. The achievement of the work benefi ted itself of powders-structuralist references, as Gilles Deleuze
and Michel Foucault. The conclusion permitted to see the education of history as a region in problematic transition:
renew itself the references you evaluate in the output of the historical knowledge, but this renewal does not have
repercussions adequately about the education of the discipline.
Key words – History; teaching; theoretical paradigms.
* Este trabalho recebeu apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi co e Tecnológico – CNPQ.
** Dr. Em História pela UFPE. Professor Adjunto da Universidade Federal do Piauí, onde atua junto ao Programa de Pós-Graduação em História e ao De-
partamento de Geografi a e História. Orientador de trabalhos de Mestrado e Doutorado, Lidera o GT História, Cultura e Subjetividade (Lattes/CNPQ) e é
membro do GT Nacional de História Cultural. E-mail: edwar2005@uol.com.br
Artigo recebido em: novembro/2006. Aprovado em: setembro/2008.
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pensa ser um sujeito-aluno – unidade indivisa de um uni-
verso mais amplo que seriao público-alvo. Esta primeira
posição de sujeito – o público-alvo – favorece o pensamen-
to pedagógico segundo o qual os alunos são idênticos a si
mesmos, isto é, são portadores de personalidades harmôni-
cas e centradas e, portanto, constituem um público determi-
nado e facilmente imaginável; na outra ponta há o profes-
sor, um pobre sujeito atormentado pelo fato de que, apesar
de dirigir-se a um público-alvo facilmente decodifi cável,
tem que conviver com a trágica percepção de que não há
nenhum ajuste exato entre o endereço e a resposta. A tragi-
cidade desta percepção está na sua dupla perversão: por um
lado, o sujeito-professor se sente premido a reconhecer-se
não apenas como um idêntico a si, mas também como por-
tador de um arcabouço conceitual que lhe permitiria saber
com precisão o que/quem é o sujeito aluno. Se algo não
dá certo, se o endereçado não obtém a resposta planejada,
o sujeito-professor, portador do discurso da verdade, pode
diagnosticar que o sujeito-aluno não é o que/quem ele pensa
que é; por outro lado, como o próprio sujeito professor está
implicado naquela região pantanosa que constitui o interva-
lo entre o eu e o mundo, ele próprio é todo tempo lembrado
de que também é alvo de alguns endereçamentos: dos dire-
tores, dos coordenadores, dos pais de alunos, dos próprios
alunos, etc. Estes endereçamentos, traduzidos no conjunto
de nomes, intenções, expectativas que são projetadas no
professor, lhe desarticulam da serena posição que lhe garan-
tiria – ao professor – afi rmar “eu sou eu! Um idêntico a mim
mesmo”. É, portanto, um ente em crise o sujeito-professor.
Mas, maldição das maldições, o sujeito-aluno também o é,
de modo que aquilo que se pode anunciar, com apenas algu-
ma certeza – na medida em que a própria noção de certeza
está abalada –, é que “o sujeito da educação já não é mais o
mesmo. O sujeito racional, crítico, consciente, emancipado
ou libertado da teoria educacional crítica entrou em crise
profunda” (SILVA, 2000: 13).
A leitura às falas que perpassarão este ensaio estará
conformada dentro do quadro descrito. O ensaio, em si, é
resultado de uma pesquisa feita em Teresina, a principal ci-
dade do Piauí, na qual procurei investigar a noção de Histó-
ria e de Educação que informava a prática dos professores
da disciplina em três grandes escolas1. É forçoso registrar
que minhas próprias concepções de História e de Educa-
ção se alteraram profundamente desde que as fontes foram
prospectadas. E nisto talvez resida o interesse deste mate-
rial: ele revela o deslocamento que fi z em termos de minha
própria constituição em sujeito professor mas, também, é
revelador dos pontos de vista de professores da disciplina
história no momento em que mais se tagarelava sobre uma
crise de paradigmas (BRANDÃO, 2005; KUHN, 2003), a
qual constituiria os paradigmas rivais (CARDOSO, 1997).
A suposição geral, ainda hoje presente entre boa parte dos
professores, é a de que as referências teóricas – no cam-
po da História, assim como no campo da Educação – com
as quais organizamos racional, técnica e cientifi camente as
nossas aulas, se tornaram de tal maneira confusas que é pre-
ciso alçarmo-nos para além de um certo irracionalismo que
povoa nosso campo.
A pesquisa foi feita com base em questionários pre-
viamente elaborados com os quais se pretendia estimular
os professores a se posicionarem relativamente a questões
centrais para a defi nição de uma concepção de história, tais
como as noções de tempo, de documento, de processo e de
fi nalidade. Foram entrevistados apenas aqueles professores
que se dispuseram, voluntariamente, a colaborar com a pes-
quisa. O total de professores entrevistados nas três escolas
foi de dezessete. Como se supôs que, neste caso, os nomes
não operariam nenhum benefício adicional, optou-se pelo
anonimato dos professores entrevistados bem como das es-
colas visitadas, para os quais se atribuiu, respectivamente,
números e letras.
Ressalte-se que o tratamento das entrevistas levou em
conta o fato de que, no âmbito da teoria educacional, a so-
ciedade é normalmente vista em torno de uma tensão entre
dois pólos, os quais, conforme estudos como o de Saviani
(1993), resultariam de olhares e contra-olhares que veriam
a sociedade como a expressão de uma existência social har-
mônica ou enxergariam o confl ito social de classes confor-
mando e defi nindo a sociedade. Em qualquer dos olhares,
a questão da marginalidade, entendida como exclusão de
setores sociais do processo formal de ensino-aprendizagem,
estaria evidenciada e seria a medida para a formulação das
teorias em torno da natureza, do objeto e do papel da Edu-
cação. Registre-se, entretanto, que estes dois olhares estão
conformados em uma suposição de que o poder tem um
lócus – o Estado – e só pode ser visto negativamente. Ao
analisar o material pesquisado, eu tive em conta que as re-
lações de poder não se passam fundamentalmente nem no
nível do direito – como o crêem os pensadores liberais –,
nem no nível da violência, como o vêem classicamente as
esquerdas. O poder tem uma positividade cuja expressão é a
sua capacidade de produzir individualidade (FOUCAULT,
1979). Do ponto de vista das teorias da História, especifi ca-
mente, tomei o modelo segundo o qual haveria três grandes
impulsos para se ensinar História: o desejo de formar o ci-
dadão cívico, a intenção de reproduzir, em série, o militante
revolucionário ou, ainda, o esforço para igualar o ensino de
história a um aprendizado ético, através do qual o homem
ordinário (CERTEAU, 1994), consciente de sua condição
de ser histórico, se valeria da História para desnaturalizar
sua condição de sujeito, escolhendo livre e conscientemente
os laços que estabeleceria consigo mesmo e com o mundo.
A interpelação do universo da pesquisa foi feito, ini-
cialmente, a partir da seguinte questão: Para que serve a
história ensinada? As respostas revelaram estratégias polí-
tico-educativas muito diversas, algumas delas ricas e cria-
tivas. Esta criatividade, entretanto, evidencia-se no âmbito
de uma enorme carência teórica por parte de alguns profes-
sores. Percebeu-se que a formação teórica, tanto mais ou
menos seja consistente, vai determinando um distanciamen-
to entre as maneiras de conceber o processo educacional,
embora, de maneira geral, seja o sujeito centrado, unifi cado
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e homogêneo da tradição humanista aquilo que estará a in-
formar a concepção pedagógica da maioria dos professores.
Disto resulta uma espécie de mito da caverna revisitado: o
professor de história seria uma espécie de portador de um
discurso emancipador, capaz de tirar os alunos – e por ex-
tensão a própria sociedade – da escuridão e da ignorância,
constituindo um saber crítico sobre si e sobre o mundo:
Tenho comigo, como uma convicção mesmo, que o
conhecimento histórico nos ajuda a compreender com
mais clareza a realidade na qual estamos inseridos. Não
explica tudo, mas ajuda no esclarecimento das grandes
questões humanas, tais como riqueza versus miséria,
democracia versus autoritarismo, religiosidade versus
ateísmo, sexualidade, etc. (B-4).
A história deve ser sempre um veio, uma crítica para a
compreensão do mundo, ou seja, a história tem sempre,
ao (sic) meu entender, o sentido crítico. O sentido da dis-
ciplina é o de oferecer, mesmo que seja no nível do alu-
no, uma perspectiva crítica do mundo que o cerca. (C-2)
Por outro lado, é possível identifi car no mesmo uni-
verso um outro grupo que não conseguiu ir além do lugar
comum, expressando opiniões nas quais se percebe uma
concepção de sociedade harmônica e uma – ainda que não
deliberada – ignorância do fenômeno da marginalidade. Do
mesmo modo, é transparente nesses depoimentos a idéia de
que o papel da educação seria promover a equalizaçãoe
garantir a integração e coesão sociais, motivo pelo qual é
possível relacionar tais falas com a pedagogia tradicional. A
história, segundo este grupo, serviria para conscientizar (C-
3), preparar (B-2) e suprir a falta de conhecimento (A-2).
Outro grupo reconhece a possibilidade de aparelha-
mento político do ensino de história, por parte dos grupos
sociais, e condiciona o caráter positivo desse ensino às con-
dições – materiais, políticas, institucionais e teóricas – em
que seja desempenhado. Neste sentido aproximam-se das
chamadas pedagogias crítico-reprodutivistas. Ressalta, nes-
tas falas, a micrologia do poder experienciada de maneira
diversa no interior das escolas, na medida em que a quase
totalidade dos entrevistados agrupados nesta série projeta
na escola os limites e horizontes do ensino de história. Para
este grupo, “em algumas escolas, que tem um compromisso
social, a história tem um papel de formar o alunado com
idéias e pensamentos críticos. Em outras, a história não pas-
sa de uma coisa repetitiva e abusiva” (A-1). Projetando para
a micrologia do cotidiano da escola as possibilidades do
ensino de história, os professores tendem a ver ali sempre
uma possibilidade ambígua, segundo a qual a história tan-
to poderia formar “personalidades políticas, participativas,
transformadoras, quanto poderia ser apenas um mecanismo
mantenedor do status quo” (A-4). Esta opinião se reforça
com a leitura dos documentos que circulam no interior das
escolas e estabelecem as diretrizes comportamentais atra-
vés das quais os docentes devem organizar sua prática. O
que transcrevo a seguir é uma síntese muito interessante da
micrologia do poder no interior das escolas, na medida em
que é um gesto no sentido de uniformizar e serializar inclu-
sive o gestual dos professores:
Enquanto estiver dando aula, passeie o olhar pela sala
para ver quantos estudantes estão olhando para você e
parecem interessados. Mantenha todos os alunos sob
constante observação. Seu olhar os manterá atentos e
provavelmente fará com que eles olhem também para
você. Se for um olhar distante e carrancudo, cuidado!
Se for uma expressão de ‘ah’, estou compreendendo!?
Parabéns. Se notar expressões de dúvidas, é hora de vol-
tar atrás e repetir ou explicar as partes mais difíceis da
exposição (INSTITUTO DOM BARRETO, 1994: 3).
É praticamente unânime entre os professores entrevis-
tados que a história é uma ciência. Não apenas opera com
critérios de cientifi cidade como é já uma ciência adulta e
capaz de resolver a problemática do “desenvolvimento da
humanidade” (C-3) e de criar “perspectiva de futuro” (B-4).
Esta consideração da história como ciência terá implicação
no modo como os professores igualmente conceberão as re-
lações entre presente e passado. A história não seria apenas
uma ciência, mas especifi camente uma ciência do passado.
Presente e passado são concebidos como partes distintas, o
que indica um imaginário mais infl uenciado pelas rupturas
propostas pelo estruturalismo marxista do que pela longa
duração braudeliana. Nesse universo, entretanto, há ainda
aquelas defi nições de história que expressam o confl ito pró-
prio desta nossa época de transição e de implosão de para-
digmas. O depoimento seguinte, síntese do terceiro grupo, é
um bom exemplo disto:
Defi no a história como sendo grande fonte de ensina-
mento e de esperança para a resolução dos problemas
humanos. Não podemos afi rmar que a história é uma
ciência. Principalmente agora quando a nova história
impõe o sentido de descontinuidade histórica. Acho que
esta questão da história ser ou não ciência está ligada a
um plano ideológico que evoluiu com a Escola dos An-
nales. É uma questão altamente relevante porque trata
da preservação da história. Não porque queremos provar
se é ciência, mas porque o que está atrás desse desmon-
te da história é essa armadilha projetada para destruir a
concepção de identidade histórica. Imagino ser esta a
encruzilhada da história, em que nela devem ser neces-
sariamente utilizados critérios que nos aproximem da
história vivida, mas que a própria história se nega a fugir
dela porque é o seu motor fundamental: o seu conteúdo
de classe. (C-4)
O fragmento transcrito é bastante elucidativo quanto
à maneira como setores do magistério de história reagem à
redefi nição conceitual da história. Pode-se mesmo perce-
ber uma confusão – a qual por extensão afeta à maioria dos
professores e alunos inclusive no âmbito da graduação e da
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Educação, Porto Alegre, v. 31, nº 3, p. 232-238, set./dez., 2008
pós-graduação (CASTELO BRANCO, 2005) – segundo a
qual a nouvelle histoire seria uma antípoda relativamente ao
marxismo. Esta confusão ignora, obviamente, que a maioria
daquilo que hoje se apresenta como nova história é deriva-
do da referência marxista. É o caso da micro-história italia-
na, da nova história social inglesa e, mesmo, de segmentos
annalistes, como a história das mentalidades praticada por
Vovelle (HUNT, 1992; VOVELLE, 1991).
Um outro instrumento que utilizei na tentativa de diag-
nosticar o posicionamento do professor frente às tendências
que informam a sua prática pedagógica foi o estímulo para
que opinasse sobre qual é o objeto da história. Tipologica-
mente e a exemplo das questões anteriores, estabeleci eixos
que determinariam as tendências positivistas, materialistas
e da história renovada. As respostas tenderam a manter a
regra já observada para as questões expostas anteriormente:
um grupo signifi cativo tem grande difi culdade em elaborar
as respostas; outro, já traduz no seu posicionamento os re-
ferenciais teóricos que fundamentam seu discurso, embora
de maneira implícita; um terceiro grupo assume fi rmemente
a defesa de seu paradigma, traduzindo, explicitamente, seu
referencial teórico. Para o primeiro grupo o objeto da histó-
ria seria “o homem, animal genuinamente político, produtor
de riqueza e cultura”(B-3), enquanto o seu estudo serviria
para “analisar os fatos que fi zeram o processo histórico”
(A-2) e, em consequência, “formar cidadãos e cidadania,
com base nas experiências da formação da sociedade nas
várias épocas históricas” (A-6). Não parece haver, nesse
grupo, esforço em assumir uma posição teórica explícita.
Do mesmo modo, não é possível perceber qualquer preo-
cupação quanto à imagem de desleixo que tais discursos
transmitem. Identifi co este quadro com o que chamo de
“carência teórica”, o que signifi ca que estou relacionando
esta difi culdade de verbalizar coerentemente uma defi nição
de história, ou de justifi car convincentemente a necessidade
de seu ensino, com uma carência teórica decorrente da falta
de conhecimento relativo à teoria da história, à fi losofi a das
ciências e mesmo à teoria da educação.
Entre os professores cujos discursos permitem aferir
as concepções de História e de Educação que estão subja-
centes às suas práticas, ressalta a noção de que a história é
um conhecimento emancipador, cuja principal expressão é
o Documento Histórico.
Quanto ao terceiro grupo, – sempre pensado em ter-
mos da relação que o docente estabelece com a teoria –, evi-
dencia-se o desejo de uma articulação entre teoria e prática.
A práxis histórica consistiria na potencialização da história
em favor de uma revolução que antes de qualquer coisa pre-
cisaria salvaguardar a própria história de uma fragmenta-
ção e de uma dispersão que estariam contaminando o fazer
historiográfi co. O fragmento transcrito a seguir sintetiza as
opiniões deste grupo:
A questão do objeto da história está relacionada com
a própria evolução da historiografi a, especialmente no
século XX. Apoiando-se principalmente nas ciências
sociais, os historiadores permitem uma abertura muito
grande e estão diante de horizontes que oferecem no-
vos objetos particularmente ricos em pesquisas e deta-
lhamentos. Masparalelamente a essa abertura, a histó-
ria corre o risco de perder sua identidade, criando um
processo de múltiplas fragmentações, levando a uma
interpretação mecanicista, que deságua num relativismo
absoluto. Creio que se constitui num grande desafi o para
a história os variados objetos, domínios antes inexplo-
rados. A negação política e econômica, o abandono da
antropologia, nos leva a uma história das mentalidades.
Vemos, então, o desenvolvimento de uma história cujos
múltiplos objetos nos remetem para uma perspectiva
historiográfi ca de negação da história não só como ci-
ência, mas como história. E leva-nos, também, à perca
da perspectiva histórica do homem, da desarticulação da
concepção dialética entre os objetos. Nesse sentido, em
vista da grande valorização das ciências sociais, estamos
enfrentando um desafi o, não para fi rmar posição por esta
ou aquela tendência, mas de sabermos captar esses obje-
tos e integrá-los na nossa análise sem perder a identidade
da história (C-4)
Observe-se que ao defi nir o objeto da história o pro-
fessor fechou questão quanto a negar a validade das no-
vas tendências historiográfi cas, pois, na sua opinião, sob
a égide dessa novas tendências a história correria “o risco
de perder sua identidade”. Não foi objetivo deste trabalho
indagar sobre a noção de identidade entre os professores
entrevistados, mas é um desafi o instigante imaginar que a
remessa a uma “identidade da história” perde de vista a pró-
pria historicidade dos objetos históricos. O historiador, as-
sim como o professor de história, não é um ser sobrenatural
que sobrevoa a história sem se deixar contaminar por ela.
O professor é, ele próprio, um ser atravessado pela história
e cuja existência depende plenamente deste atravessamen-
to. Penso, por exemplo, nas noções teóricas de sujeito, de
lugar e de tempo – especialmente de tempo – com as quais
o professor atua, como um exemplo bastante promissor no
sentido de começarmos a admitir que sofremos a história
tanto quanto a fazemos.
Diante do estímulo para posicionarem-se sobre uma
concepção de tempo histórico, mais uma vez os professo-
res entrevistados puderam ser distribuídos em três grupos:
um teoricamente pobre e fundado no “senso comum”; ou-
tro que pode ser referido às concepções que operam com
base na linearidade; e um terceiro cujos agentes demons-
tram, explicitamente, estar infl uenciados pela dialética das
durações. Observemos, em princípio, os depoimentos do
primeiro grupo:
O tempo histórico ele é de suma importância para enten-
der as diversas relações que se interagem no processo
histórico. (B-2).
O tempo histórico é o norte do historiador. Ele indica o
sentido da história. (A-4)
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Concebo o tempo histórico como sendo o tempo com-
preendido entre a pré história e a história, não havendo li-
mites nesse intervalo, pois as datas são ao mesmo tempo
imprecisas e fl exíveis. (C-2)
No segundo grupo aquilo que aparece mais marcada-
mente é a noção de tempo linear. Diferentemente do grupo
anterior, que se revela atônito diante de uma das questões
centrais para o historiador – o tempo histórico –, este grupo
vai revelando ter sido capturado pela velha lógica de pen-
sar a história dos homens numa linha reta com um distante
começo e um – embora inatingível – sempre presente fi m.
De modo geral, este segundo grupo concebe que o “tempo
histórico é contínuo e dialético” (B-3), o que obrigaria o
historiador, na sua prática, a “operar com a noção de tem-
po linear e tomar muito cuidado para não cometer anacro-
nismo histórico, no momento da pesquisa”(A-1). A análise
das transformações históricas – sempre das transformações,
nunca das permanências, ressalte-se – ocorreriam “dentro
e em função do tempo e [seria] através dele que [percebe-
ríamos] as mudanças dentro do próprio processo histórico
vivido por uma dada sociedade. Pois é só através desse tem-
po que poderemos ter uma análise da história”. (A-3). A
importância do tempo histórico, tanto para o pesquisador
quanto para o professor, estaria no fato de que é “em relação
a ele que se dá o desenvolvimento das sociedades humanas.
Assim, o tempo histórico é fundamental para o ordenamen-
to dos fatos a partir de um referencial” (B-1).
Finalmente, os depoimentos cujo teor permite a sua
identifi cação com o conceito de longa duração. Ressalte-se,
mais uma vez, que aquilo que chamei de “carência teórica”
não apenas expressa a incapacidade de revelar objetivamen-
te um referencial teórico, como também limita a capacida-
de de expressão. A identifi cação que fi z, portanto, em certa
medida tem uma parcela de inferência, esta autorizada pelo
diálogo com o conjunto dos questionários e amparada, ain-
da, na lembrança da bibliografi a de uso didático adotada
pelo professor. A percepção das múltiplas referências em
termos de tempo histórico e mesmo a assunção da infl u-
ência da chamada “dialética das durações”, permite a este
grupo não apenas perceber o tempo como múltiplo mas,
também, como algo que é experimentado em pelo menos
três dimensões – a dimensão das estruturas, a dimensão das
conjunturas e a dimensão dos eventos:
Há uma multiplicidade de noção de tempo, o valor que
lhe é dado depende muito de certos elementos, como a
cultura, a geografi a, as condições sociais e econômicas
que rodeiam o indivíduo. Presentemente, a linearidade
do tempo, com o sentido do progresso das sociedades,
se impõe aos ocidentais. Entretanto, sabemos que cada
‘tempo’ tem sua especifi cidade. (C-1)
O tempo histórico é uma criação do homem, é uma
tentativa de aproximação entre a história vivida e a história
interpretada. O tempo em si é antes de tudo uma existência
independente do homem, ou um princípio de conhecimen-
to, criação da necessidade e da evolução. O tempo vivido
é interpretado pelo homem de civilizações distintas e ade-
quado a seu próprio nível cultural. O homem criou o tem-
po para si, tornando-se dependente dele. Umas civilizações
rumam para o progresso, outras rumam para a decadência.
São momentos de transformações permanentes que o histo-
riador não deve marcar com datas fi xas, mas ver o sentido
de preservação, captando suas características intrínsecas
continuadas. (C-4)
Vários trechos destas falas revelam a infl uência do
conceito de longa duração. O fato, em si, é signifi cativo,
uma vez que sinaliza no sentido de que os professores que
emitiram tais opiniões estão em sintonia com as novas re-
ferências teóricas disponíveis à sua prática pedagógica. En-
tretanto é preciso observar que tal infl uência nunca é gené-
rica: é possível perceber uma razoável confusão por parte
dos professores que, em um sentido, negam validade aos
pressupostos daquilo que se chamou de Nova História e,
em outro, assumem plenamente a infl uência dessa mesma
tendência. Essa confusão certamente diz respeito aos im-
passes teóricos decorrentes, em grande medida, da própria
multiplicidade de referências no interior daquilo que nos
acostumamos a reconhecer – as vezes com algum exagero
– como Nova História. Algo, aliás, que já foi constatado,
como se percebe no fragmento a seguir:
Chame-se a isto como quiser – crise da modernidade,
esgotamento das energias utópicas –, o certo é que no
presente nos encontramos meio ‘embasbacados’ dian-
te do concreto, em estado de empatia constante com a
singularidade. Este mundo do imprevisível parece-nos
preferível do que nos alojar num sistema ordenado de
fi xação e explicação do real, num ‘ismo’ qualquer, numa
teoria. Como Tântalos, procuramos uma armação teóri-
ca, mas temos medo dela, porque adivinhamos a desilu-
são posterior e a espécie de sofrimento psicológico daí
decorrente – o que só aumenta o clima de desencanto e
inutilidade de esforços. (SALIBA, 1992: 31).
É o fato de me reconhecer embasbacadoUma ditadura de Deus é substituída por uma ditadura do progresso
(cf. Reis, 1994a). A história, então, se compromete com certos valores – que apesar de
individuais são representados como coletivos – e passa a tender assintoticamente em direção a
um ideal final.
A primeira modificação provocada pela Escola dos Annales neste método informado
pela teleologia – num primeiro momento a história submetida à vontade de Deus e, depois, à
ditadura do progresso – diz respeito ao próprio conceito de objeto. Voltando o olhar para uma
região “não-acontecimental”, i. é, percebendo haver história para além da esfera do trabalho,
da história das idéias ou da política – territórios que hegemonizaram os interesses dos
historiadores até a revolução produzida pelos Annales –, a Nova História vai preferir a
permanência à ruptura, o que redimensiona o conceito de tempo, que passa a se revestir de
constância, resistência, repetição. Enquanto sob influência da filosofia a história priorizou os
aspectos do indivíduo como “feitor” da história, os historiadores dos Annales vão priorizar a
“necessidade social” num cenário em que a ação livre e individual está limitada.
Na pesquisa do campo econômico-social-mental, o novo historiador encontrará o
tempo da necessidade social. A história não será mais a narrativa de povos e
indivíduos livres, produtores de eventos grandiosos que fazem avançar o espírito
universal em direção à liberdade. Ela é a pesquisa, análise, teoria e cálculo, limitados
em sua validade, de fenômenos necessários, repetitivos e massivos, que limitam a
ação livre individual (Reis, 1994a: 18)
A ênfase, portanto, passa a ser sobre o campo econômico-social-mental, emergindo –
particularmente com a terceira geração dos Annales – o cotidiano em contraposição à
‘coerência tranquilizadora’, já referida, que supõe a supressão do conflito social e da
diferença.
Como modelo, obviamente, este paradigma, rivalizando com seus antecessores, não está
– e nem poderia – imune a críticas. A limitação da ação livre individual, que os Annales – e
particularmente Bloch e seus seguidores – propõem como referencial metodológico válido
para o labor do historiador, repercute na negação da validade de teorias globais. A partir da
leitura desta negação emerge uma crítica substancial `a Nova História, justamente a de que ela
inviabiliza
tanto a história que os homens fazem, se se pretende perceber nela algum sentido,
quanto a história que os historiadores escrevem, entendida como uma explicação
global do social em seu movimento e em suas estruturações (Cardoso, 1997: 12/13)
7
De todo modo, modificando-se o foco do olhar sobre o objeto modifica-se também a
própria noção de fonte histórica: às fontes voluntárias e oficiais prefere-se as involuntárias e
informais. Amplia-se a própria noção de interdisciplinaridade e as demais disciplinas deixam
de ser “auxiliares” para serem parceiras mesmo na construção do conhecimento. A
subjetividade do indivíduo, o mental, deixa de ser apenas uma postura reflexiva sobre o
conhecimento histórico – a velha discussão sobre a objetividade e/ou subjetividade do
conhecimento histórico – e passa a incorporar o próprio objeto de pesquisa do historiador, i.é.,
o homem agora não é compreendido apenas como sujeito, mas também e principalmente
como objeto. Esta postura metodológica, aliás, estimulou críticas à Nova História – e
particularmente a Braudel – como a de que é flagrante nas análises de Braudel uma tendência
ao determinismo geográfico (cf. Said, 1998: 23). No mesmo sentido, o método da história
passa a reconhecer que ‘fazer história’ não é sinônimo de trabalhar. Fazemos história quando
amamos, pintamos, cantamos, praticamos feitiçaria, etc. É esta visão, aliás, que permite
trabalhar com o ‘não-acontecimento’, isto é, com o campo da produção histórica do
imaginário social, da construção subjetiva de uma cartografia sentimental, do delineamento
dos territórios existenciais, da análise das configurações discursivas (Rago apud Albuquerque
Jr., 1999: 13).
Se antes a história preocupou-se com o que os grandes homens fazem (positivismo),
ou com o que todos os homens fazem (marxismo), a Nova História incorporou à análise
historiográfica o que todos os homens fazem e sentem. Neste sentido – e a guisa de exemplo
deste novo molde do olhar historiográfico – transcrevemos trecho de Albuquerque Junior que,
ao estudar a história do nordeste brasileiro, percebe haver – a despeito das “enormes
diferenças entre sí” – uma “visão comum” de nordeste na produção cultural de nordestinos
como Gilberto Freyre, Luiz Gonzaga, Ariano Suassuna, Manuel Bandeira e outros. Para ele
esta produção cultural
É, na verdade, uma tarefa de organização do próprio presente, este presente que
parece deles escapar, deles prescindir. É como se, no passado, seus ancestrais
governassem a si e aos outros, a sua própria história e a dos outros, e eles agora se
vissem perdendo este governo, fossem governados por outros; não conseguissem
sequer governar a si mesmos. A busca por arrumar discursiva e artisticamente estas
lembranças é a forma que encontram para organizar suas próprias vidas. Pensar uma
nova identidade para seu espaço era pensar uma nova identidade para si próprios
(Albuquerque Jr, 1999: 78-79).
É, portanto, na concepção do tempo histórico que os Annales impactarão mais
fortemente. Convivendo com o “problema da relação entre o indivíduo e o grupo, entre a
iniciativa pessoal e a necessidade social”, (Febvre apud Burke, 1991: 32) os novos
historiadores articulam a perspectiva da mudança à perspectiva do movimento, trabalhando
com os conceitos de ‘estrutura’ e ‘conjuntura’ e concebendo um ‘tempo longo’, que permite
entre outras coisas observar que as concepções de tempo e espaço variam de geração para
geração, de um espaço para outro ou entre culturas diferentes. A reflexão sobre estas
diferentes representações de tempo permitiu a Fernand Braudel – representante da ‘segunda’
geração dos Annales e a quem se credita o feito de ter sintetizado as obras de Bloch e Febvre
e afirmado os Annales como uma escola historiográfica – formular o que ele chamou de
‘dialética das durações’, segundo a qual existe um tempo curto, representado pelo
acontecimento; um tempo longo, representado pelas conjunturas; e um tempo longuíssimo,
representado pelas estruturas.
Passando a trabalhar com o conceito de ‘estrutura social’, os novos historiadores
enfraquecem o evento e desaceleram o tempo, pois “os eventos-choque são amortecidos
quando integrados na estrutura social como elementos, que a transformam, mas não a
mudam” (Reis, 1998: 32). Este tempo novo, portanto, é decorrente da percepção de que agir e
conhecer não se recobrem. Inspirados na concepção de ‘estrutura social’ das ciências sociais
8
os Annales, especialmente com Braudel, formulam e aplicam o conceito de ‘longa duração’,
onde
os eventos são inseridos numa ordem não sucessiva, simultânea. A relação
diferencial entre passado/presente e futuro enfraquece-se, i. é., a representação
sucessiva do tempo histórico é enquadrada por uma representação simultânea. As
‘mudanças humanas’ endurecem-se, desaceleram-se. Tornam-se comparáveis aos
movimentos naturais e incorporam as qualidades desses: homogeneidade,
reversibilidade, regularidade, medida (Reis, 1998: 33)
É, aliás, em torno da ‘longa duração’ Braudeliana que vai se concentrar boa parte das
críticas à herança dos annales. Os críticos questionam uma história que abdica da mudança e
aprisiona os acontecimentos em estruturas petrificadas plurisseculares. Sobre as relações entre
‘evento’, ‘conjuntura’ e ‘estrutura’ é magistral a reflexão feita por Michel Foucault, por
ocasião de sua ‘aula inaugural’ no Collège de France, pronunciada em 02 de dezembro de
1970:
Atribui-se muitas vezes à história contemporânea ter suspendido os privilégios
concedidos outroraaquilo que
exige que, à esta altura, eu registre que não busquei propria-
mente identifi car a concepção de história dos professores
pesquisados. A noção de concepção com a qual trabalhei
foi defi nida num sentido amplo e considerou o referencial
teórico do professor não apenas no âmbito historiográfi co,
mas também sua concepção de Educação e de sociedade.
Com esta atenção foi possível encontrar, nas falas analisa-
das, uma preocupação razoavelmente generalizada de bus-
ca de uma melhor qualifi cação profi ssional, bem como de
tentativa de adoção de novos objetos de investigação no ato
de ensinar história, o que signifi ca arrastar para o âmbito do
magistério alguma coisa que aniquila com a segregação en-
tre a pesquisa – pensada como privativa das universidades
– e o ensino, espécie de primo pobre visto como um saber
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baixo. Julgo ser pertinente o registro de como pensam os
professores de história diante desta questão:
Eu acredito na pesquisa como um instrumento para
mostrar a importância do resgate da história. Procuro en-
sinar que o novo, ou a ‘nova’ história não depende só do
professor e do pesquisador, mas também dos alunos, que
de uma forma ou de outra, podem ajudar a renovar a nossa
história. Esta ajuda poderia vir em forma de um prazer em
preservar as coisas que lhes pareçam ter ‘valor histórico’.
Desta maneira, o próprio aluno vai se sentindo implicado
na história (A-4).
Percebi, também, a preocupação política de alguns
professores com a historicidade de sua própria prática pe-
dagógica, o que conduz a uma refl exão sobre uma história
fundada numa realidade do aluno e do próprio professor e
visualizada no cotidiano:
Já faz algum tempo que eu venho tentando sair da sala
de aula, propriamente, e afetar também a comunidade.
Tenho me valido de um vídeo-cassete e da projeção de
fi lmes em casa de alunos, pra envolver também os pais,
etc. Certo dia passei o fi lme “Eles não usam Blackie
Tie”, o qual foi assistido por pouquíssimos alunos. Mas
depois de alguns dias o resultado apareceu: quando che-
guei na escola, uma das alunas procurou-me para dizer
que lembrou-se de mim e do fi lme, pois vira, durante
uma greve, a polícia reprimindo piquetes. A partir deste
fato, passei a comentar os acontecimentos e a relembrar
o fi lme junto dela e de outros estudantes que se encontra-
vam próximos. (C-4)
Como já se percebeu, a implosão dos paradigmas tra-
dicionais colocou a História numa encruzilhada: ao mesmo
tempo em que redimensionou o seu campo objetal, oportu-
nizando a abordagem de novos objetos e de uma problema-
tização também nova, tornou-a “talvez a menos estrutura-
da das ciências do homem” (BRAUDEL, 1990: 42). Esta
pesquisa, portanto, conviveu com o reconhecimento de que
a História está em crise naquilo que diz respeito aos pa-
râmetros da produção do conhecimento histórico, embora
essa crise, ressalte-se, não seja particular, mas parte de um
conjunto de transformações que são próprias deste início
de século. A difi culdade em encontrar um eixo teórico para
a História, decorre, obviamente, do fato de que a história,
fora do âmbito do discurso, não tem apenas um eixo, na
medida em que o passado – o qual só existe enquanto es-
peculação do presente – é composto, na realidade vivida,
por uma infi nita multiplicidade de devires. O ensino de his-
tória, por sua vez, permanece sendo um campo de guerra
das narrativas, a qual expressa a ilusão de que a manipula-
ção dos conteúdos garante a captura das consciências e das
memórias, quando na verdade “a experiência do presente
mostra que está longe de ser tão certo assim quanto tantos
parecem acreditar” (LAVILLE, 1999: 126). O dialogo que
travei com professores de história em Teresina me permite
dizer que esta é uma região em transição problemática: por
um lado, há uma crescente multiplicação e diversifi cação
das referências teóricas informativas da prática do profes-
sor. Mas permanece, a despeito disto, a realidade que reser-
va ao ensino de história um lugar subalterno relativamente
à maioria das demais disciplinas escolares. Percebo, então,
uma relativa estupefação entre os professores. Uma estu-
pefação que é própria do momento histórico que estamos
vivendo, onde tudo – na expressão já consagrada – parece
dissolver-se no ar.
As concepções de Educação e de História expressas
nos questionários indicam a crença em que o ensino de his-
tória serviria para formar o cidadão cívico – o que transpa-
rece nas respostas daqueles professores que parecem operar
com a noção de harmonia social – e/ou o revolucionário, se
a operação é feita a partir da idéia de confl ito social. É certo
que a visão do confl ito social pode conduzir a visões deri-
vadas de escola como espaço de reprodução, por um lado,
ou de transformação, por outro. Mas em qualquer dos casos
a teoria estará informada por categorias modernas como a
de sujeito coletivo e universal. Independentemente de con-
ceber a escola como espaço de reprodução (ALTHUSSER,
2001) ou de transformação (MOCHCOVITCH, 1992) o su-
jeito estará lendo o mundo a partir da classe à qual pertence
e nunca como indivíduo que efetivamente é.
Para efeito de conclusão, quero sugerir que o ensino de
história pode servir para algo mais do que formar o cidadão
cívico e/ou o militante revolucionário: ele pode, também,
“fazer nascer o novo homem ou o homem sem particulari-
dades, [reunindo] o original e a humanidade, constituindo
uma sociedade de irmãos como nova universalidade” (DE-
LEUZE, 1997: 97). Se a escola é, em última instância, um
procedimento de sujeição do discurso (FOUCAULT, 1996),
é possível potencializá-la e em especial o ensino de histó-
ria, para ser acima de tudo um instrumento para “manter
sempre aberta a interrogação a cerca do que se é” (LARRO-
SA, 2003: 40). Visto deste modo o ensino de história seria
um instrumento de desnaturalização do passado: ao invés
de sacrifi car o presente em nome de um futuro utópico, ou
de desacelerar teoricamente o tempo, um ensino de histó-
ria ambientado em referências teóricas pós-estruturalistas
teria a função de liquidar o passado, introduzindo em nós
o descontínuo e o desordenado. Nesse sentido o ensino de
história, longe de produzir o amor cívico ou o sentimento
revolucionário, serviria para uma refl exão ética sobre o ser
e o estar no mundo.
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NOTAS
1. Trata-se do Colégio Estadual Zacarias de Góis e Vasconcelos
(o Liceu piauiense), do Instituto Educacional Antonino Freire
(a Escola Normal), ambos da rede estadual pública, e do Ins-
tituto Dom Barreto, da rede privada. A pesquisa foi feita em
2002, com vistas à apresentação de trabalho no I Encontro de
Pesquisadores do CCHL, e as três escolas-alvo são aquelas que
reúnem, juntas, o maior número de professores de história no
Ensino Médio em Teresina.
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A concepção de tempo histórico sob a História dos Annales: uma estratégia de evasão do ‘tempo-terror’**
Edwar de Alencar Castelo Branco*ao acontecimento singular e ter feito aparecer as estruturas de
longa duração. É verdade. Não estou certo, contudo, de que o trabalho dos
historiadores tenha sido realizado precisamente nesta direção. Ou melhor, não penso
que haja como que uma razão inversa entre a contextualização do acontecimento e a
análise de longa duração. Parece, ao contrário, que foi por estreitar ao extremo o
acontecimento, por levar o poder de resolução da análise histórica até as mercuriais,
às atas notariais, aos registros paroquiais, aos arquivos portuários seguidos ano a
ano, semana a semana, que se viu desenhar para além das batalhas, dos decretos, das
dinastias ou das assembléias, fenômenos maciços de alcance secular ou
plurissecular. A história, como praticada hoje, não se desvia dos acontecimentos; ao
contrário, alarga sem cessar o campo dos mesmos; neles descobre, sem cessar, novas
camadas, mais superficiais ou mais profundas; isola sempre novos conjuntos onde
eles são, às vezes, numerosos, densos e intercambiáveis, às vezes raros e decisivos:
das variações cotidianas de preço chega-se às inflações seculares. Mas o importante
é que a história não considera um elemento sem definir a série da qual ele faz parte,
sem especificar o modo de análise da qual esta depende, sem procurar conhecer a
regularidade dos fenômenos e os limites de probabilidade de sua emergência, sem
interrogar-se sobre as variações, as inflexões e a configuração da curva, sem querer
determinar as condições das quais dependem. Certamente a história há muito tempo
não procura mais compreender os acontecimentos por um jogo de causas e efeitos na
unidade informe de grande devir, vagamente homogêneo ou rigidamente
hierarquizado; mas não é para reencontrar estruturas anteriores, estranhas, hostis ao
acontecimento. É para estabelecer as séries diversas, entrecruzadas, divergentes
muitas vezes, mas não autônomas, que permitem circunscrever o “lugar” do
acontecimento, as margens de sua contingência, as condições de sua aparição.
(Foucault, 1986: 54-56)
Embora longa, a citação de Foucault é necessária porque sintetiza magistralmente um
dos aspectos – o da História serial – do método historiográfico que nos foi legado pelos
Annales. É, também, curiosamente interessante ao tema que estamos tratando quando
lembramos que Foucault foi alguém teoricamente à margem tanto dos Annales quanto do
Marxismo e, apesar disso, ao propor uma História Geral em alternativa à História Total do
Marxismo e dos Annales, deixou transparecer uma renovada concepção de tempo histórico, a
qual, sustentada num método “genealógico” claramente influenciado por Nietzche, propôs
que ao historiador interessa a busca do começo das coisas, e não de sua orígem, o que
implicaria, do ponto de vista da técnica de pesquisa em história, priorizar as ‘diferenças’ em
detrimento das ‘causas’.
É, portanto, com o benefício desta citação que é possível enumerar pelo menos três
transformações verificadas no método da história a partir da ‘revolução’ provocada pela
concepção de tempo dos Annales: em primeiro lugar, houve uma revisão e reconstrução do
conceito de homem, que passa a ser visto em maior medida como objeto do que como sujeito,
i. e., ele passa a ser visto como resultado da história. Aliás reside neste particular uma das
9
diferenças teóricas entre Febvre e Bloch, os fundadores dos Annales. Ambos beneficiaram-se
dos debates entre Ratzel (determinismo geográfico) e La Blache (Geografia Humana).
Enquanto Febvre defendeu o indeterminismo do meio físico sobre o homem, combatendo
Ratzel, Bloch pendeu sempre para uma visão de impotência do homem como feitor da
história; em segundo lugar, o tempo dos Annales reconhece que o tempo do historiador é uma
abstração conceitual construída para tornar o tempo real pensável. O tempo da narração,
portanto, não é o tempo do acontecimento, mas uma representação dele. No mesmo sentido o
tempo histórico novo rejeita a idéia de progresso, pois esta idéia implicaria a apreensão da
história como a realização de certos valores. O tempo histórico dos Annales é neutro em
relação a valores; em terceiro lugar, a relação do passado com o presente também se altera
passado e presente se determinam recicprocamente. O passado só é apreensível se se
vai até ele com uma problemática sustentada pelo presente. O historiador não pode
ignorar o presente ao qual pertence – deve ter a sensibilidade histórica de seu
presente e interrogar o passado a partir dele. O presente tem um interesse vivo pelo
passado: quer se compreender como continuidade e diferença em relação a ele.
(Reis, 1998: 41)
A concepção de tempo dos Annales, portanto, original em sua aproximação com as
novas Ciências Sociais – a Sociologia, a Antropologia, a Linguística, entre outras – e
transpondo a rigidez da “estrutura” levi-strausiana para a semi-móvel “longa duração”,
representa uma nova e utópica modalidade de evasão do tempo. De acordo com Reis, o que
explica, em última instância, esta renovação da “consciência do tempo” é a própria situação
histórica da França e da Europa, ambas continuamente derrotadas no período de 1914 a 1945.
A história francesa e européia na primeira metade do século XX explicaria o estímulo dos
Annales para trocar “o sacrifício do presente em nome de um futuro utópico” – como o
fizeram as concepções de tempo que apreenderam a história dentro da idéia de progresso –
pela “construção de uma utopia viável no presente”, que é a compreensão de que o tempo é
inapreensível, exceto enquanto elaboração teórica. Abolindo a idéia de progresso os Annales,
a meu ver, deram uma grande contribuição à irrupção do novo, do não-determinado, o que,
por sua vez, garantiu a emergência do ‘desejo’ como uma categoria histórica e, em
consequência, impôs uma mudança radical à teoria da história.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
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Editora Cortez, 1999.
CARDOSO, Ciro F. & VAINFAS, Ronaldo Domínios da História. Rio de Janeiro: Editora
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ELIADE, Mircéa. Le mythe de l’eternel retour. Paris, Galimard, 1969.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
LE GOFF, Jacques. Temps de l’église et temps du marchand. In: Annales ESC, nº 03, Paris,
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LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. In: Projeto História nº 17. São Paulo,
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milênio. In: Clio – Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
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SAID, Gustavo Fortes. Mídia, poder e história na era pós-moderna. Teresina: Editora da
Universidade Federal do Piauí, 1998.
Durval Muniz de Albuquerque Júnior
Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas(Unicamp). Professor do
Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e
dos Programas de Pós-graduação em História da UFRN e da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). Pesquisador do CNPq. Autor, entre outros livros, de Nordestino:
invenção do “falo”: uma história do gênero masculino (1920-1940). 2. ed. São Paulo:
Intermeios, 2013. durvalal@hotmail.com
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℘
Raros: primeiro movimento
Eles são raros. assim faz supor a maneira e o cuidado com que são
guardados. Eles dormem acondicionados em envelopes de papel pardo,
Raros e rotos, restos, rastros e rostos: os arquivos e documentos
como condição de possibilidade do discurso historiográfico*
Rare and ratty, rests, traces and faces: archives and documents as conditions of
possibility for historiographic discourse
Durval Muniz de Albuquerque Júnior
resumo
o texto aborda, a partir de um caso
concreto, a correspondência escrita
pelo poeta português antónio Nobre
para o também poeta e escritor por-
tuguês alberto de oliveira, o estatuto
do documento e do arquivo no mundo
contemporâneo e as complexas rela-
ções que eles mantêm com a escrita
historiográfica. Atendendo a pedidos
de colegas de profissão que insistem
em afirmar que os documentos falam,
que os documentos dizem, que os do-
cumentos afirmam, que os documentos
demonstram, que os documentos mos-
tram, que os documentos comprovam,
construí o texto dando aos documentos
estatuto de sujeitos, colocando-os para
efetivamente falar, pensar, discutir,
refletir sobre a sua própria condição
de documentos e de arquivo, sobre as
operações técnicas e políticas que assim
os constituem e instituem e sobre as
relações tensas, complexas e estratégi-
cas que estabelecem com os humanos,
notadamente aqueles nomeados de
historiadores. Eis uma fábula que, ao
contrário da fábula realista, se assume
como tal.
palavras-chave: documento; arquivo;
escrita historiográfica.
abstract
Based on a real case, this text addresses the
correspondence between António Nobre, a
Portuguese poet, and Alberto de Oliveira,
another Portuguese poet e author, the
status of documents and archives in con-
temporary world and the complex relations
between these and historiographic writing.
A number of colleagues insist on claiming
that documents talk, say, state, demons-
trate, show, and prove. At their request, I
structured this text in which I give docu-
ments the status of subjects, making them
speak, think, discuss, reflect on their own
condition as documents and archive, on the
technical and political operations that thus
constitute and institute them and on the
tense, complex, and strategic relationships
they establish with human beings, particu-
larly historians. This fable, unlike realistic
fables, assumes itself as such.
keywords: document; archive; historiogra-
phical writing.
* Palestra proferida em 10 de
março de 2013 durante ativi-
dade promovida pela linha
de Pesquisa história e cultura
do Programa de Pós-graduação
em história da Universidade
federal de Uberlândia (PPghi-
UfU).
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adeitados no interior de uma das gavetas de um velho móvel. gaveta per-
manentemente trancada a chaves. Eles poucas vezes veem a luz ou vêm à
luz. os mais velhos se aproximam de completar quarenta e sete anos. os
mais novos rodam as quarenta e quatro primaveras. Ou será invernos?
como saber, se da escuridão que os envolve e os protege da curiosidade
e olhares alheios poucas vezes tiveram a oportunidade de sair? aquele
que os possui, que se considera dono de suas existências, algumas vezes
recorda-se deles, talvez porque através deles recorde outra pessoa, aquela
que um dia os produziu e os enviou numa aventurosa viagem entre Paris e
Lisboa. Nestes dias finalmente podem sair da prisão daquele quadrado de
madeira, podem bater a poeira que os envolve, podem respirar ar fresco.
Sentem o calor de mãos que os toma com carinho, que finalmente permitem
que seus corpos mudem de posição, que se desdobrem, que se aprumem,
que retesados possam cumprir a missão a que foram destinados: relatarem
eventos de um dia a dia, contarem o cotidiano atribulado, angustiado, triste,
solitário de um jovem, que tinha entre vinte e um e vinte e três anos, de
um poeta português que sentia-se exilado na capital francesa; fazer chegar
ao outro, que deixara com apenas dezessete anos, na capital portuguesa, o
que por ele sentia, aquela amizade, que se dizia maior do que amor, quase
adoração. Por vezes sentiam que algo os umedecia, talvez o suor daquelas
mãos que sentiam estremecer no contato mais prolongado com seus corpos
de papel e tinta, ou talvez, por uma lágrima que, furtiva, viera despencar
daqueles olhos escuros e tristes que os costumavam mirar. Únicos olhos
que até aquele momento os tinha enxergado, desde que, ao nascerem,
contemplaram outros olhos tristes e orvalhados que, ao mesmo tempo
que os observava com a atenção devotada a filhos queridos, já o fazia num
tom de despedida, pois haviam nascido para dele logo se asilarem, pois
nasceram destinados a irem de encontro àquele outro par de olhos, que
agora novamente os mirava. Nasceram destinados ao trânsito, nasceram
destinados a serem como pontes que ligassem duas almas e estabelecessem
entre elas a comunicação.1
Quem os fez nascer, quem os aprisionou pela primeira vez em algo
chamado envelope, quem os fez viajar através do que souberam chamar-
se mala postal, jogados em um porão de navio, aos saltos e solavancos do
mar, os costumava chamar por três nomes, parece que levando em conta
o tamanho e a aparência que possuíam: havia aqueles chamados de car-
tas, talvez por seu jeito, digamos, mais feminino, pois eram derramadas,
alongadas, cheias de curvas e reentrâncias, chorosas, extensas, que muitas
vezes tinham nascido em vários dias de parto dolorido, febril, angustiado.
havia aqueles que chamava de postais, muito mais enxutos de corpo, corpo
mais adensado, corpo já semipreenchido por caracteres e imagens que não
haviam sido ali colocadas pelo demiurgo que os criara; parecendo desti-
nados a levar um recado mais breve, mais rápido. talvez a diferença nos
nomes adviesse do próprio fato de que as chamadas cartas nasciam quase
sempre em casa, eram mais domésticas, talvez por isso também levassem
nome feminino. Já os ditos postais, mais masculinos, eram encontrados
e quase sempre preenchidos na rua, muitas vezes às pressas, em muitas
ocasiões nas mesas de café ou mesmo no balcão da própria agência de
correios. havia, no entanto, entre eles, um tal “Diário” que era tratado
com tanta deferência e mimos que era de causar ciúme em todos. Este dito
“Diário” era composto de pequenos pedaços de papel, pequenas anotações
1 a narrativa que se faz nes-
te parágrafo e nos seguin-
tes baseia-se nas informações
contidas no livro caStilho,
guilherme de (org.). António
Nobre: correspondência. lisboa:
iNcM, 1982.
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que o demiurgo chamava de bilhetes. a este dito “Diário” o poeta parecia
reservar suas confissões mais íntimas, seus sentimentos e desejos mais
secretos, parecia, em certos momentos, segredar-lhes ao ouvido, em sus-
surros quase inaudíveis para ele mesmo, em longos e profundos suspiros,
as dores misteriosas que lhe atravessavam a alma.
Mas não podiam queixar-se da vida, pois com o mesmo carinho com
que eram tratados ao nascer, com o mesmo afeto com que foram gerados,
eram recebidos em terras portuguesas. Depois de serem jogados de um lado
para o outro, se misturarem a toda uma raléchamada de correspondência,
depois de sacolejarem dentro de um sacola transportada por um homem
chamado carteiro, terminavam por ser recebidas por aquelas mãos ansiosas
e receptivas, que as libertavam da prisão do tal envelope e, então, olhos
pressurosos percorriam com expectativa e curiosidade seus corpos de papel
e letra, levando-os quase ao arrepio. Depois cada um era logo esquecido,
jogado naquela gaveta, pois outros logo vinham lhes fazer companhia, já
que aquele que assinava sob o nome de remetente não parava de enviar
filhos recém paridos. Mas, de repente, essas chegadas foram escasseando,
a gaveta em que estavam encerradas era aberta em intervalos de tempo
cada vez maiores, quando já se acotovelavam ali dezenas das chamadas
cartas, umas duas centenas dos ditos postais e o tal “Diário” com todos
os seus bilhetinhos. Raras foram ficando as oportunidades que tinham de
se desnudarem diante de olhos gulosos por se alimentar do que traziam
tatuado na pele. Um dia, assustados, ouviram alguém se aproximar da
prisão onde estavam encerrados e pronunciar dois nomes que, percebe-
ram, a eles se referiam, mas como nunca os tinham ouvido e não sabiam o
que significavam, temeram e tremeram diante deles. Ouvira alguém dizer
que eles eram documentos, que quando iam por aí separados já não mais
chamavam-se cartas, postais ou diário, agora teriam sido rebatizados com
este nome descomunal, eles, acostumados com seus nomes de no máximo
três sílabas, isso porque um deles teve o enxerimento de possuir um hiato,
eram agora rebatizados com este vocábulo, vejam que pedante!, gigante
de quatro sílabas. E ficaram também sabendo que eles todos juntos com-
punham uma coisa chamada arquivo. Não sabiam bem porque, mas neste
momento descobriram que estavam ficando velhos, desconfiaram que
estavam ali naquela condição há muito tempo. E não cessavam de se per-
guntar: o que significa ser um documento? Isso nos torna mais importantes?
Será que isso alterará as condições pouco confortáveis em que vivemos?
Se juntos constituímos um arquivo, isso pode significar, tomara Deus, que
nunca nos separaremos? Mas o que os humanos costumam fazer com os
arquivos? E meditavam: afinal com esta convivência prolongada em que
nos colocaram terminamos por nos afeiçoar. até o tal “Diário”, hoje, nos
parece simpático. Mas o que significa ser um arquivo?
foi aí que ainda ouviram alguém chamá-los de raridade e ligando
uma coisa a outra pensaram com seus borrões: se somos documentos,
se compomos um arquivo, se somos uma raridade, documento deve ser
uma coisa rara, arquivos devem ser uma raridade. Mas por que seriam
raros? Espichando mais as orelhas ouviram uma voz que nunca haviam
ouvido anteriormente dizer que estava ali por causa deles. Que eles lhe
interessavam justamente porque documentavam a vida, os sentimentos,
as emoções, os acontecimentos da vida de um homem do passado, de um
poeta, que escrevera um único livro e dera a ele o nome de Só2, tautológico
2 NoBrE, antónio. Só. Paris:
lèon Vanier, 1892.
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anão!, poeta que já havia morrido há mais de quarenta anos. Esta voz os fez
ficar sabendo do nome do demiurgo, daquele que lhes dera a vida e que,
surpresos, descobrem trazerem inscritos em seu próprio corpo, nome que
parecia assentar bem para aquelas mãos finas e delicadas, aquele rosto
pálido e magro, contornado pelo cabelo escuro e de cachos revoltos, rosto
que chamava atenção por sua tristeza e desolação: antónio Nobre. Eles
seriam uma raridade por documentarem a vida de um homem que viveu
no passado, por serem aquilo que sobrou desta vida, por virem de um
outro tempo, por terem sido aquilo que restou de uma vida que foi um
verdadeiro naufrágio. Eles começaram então até a se sentirem importantes
e, ouvindo a voz que já lhes era familiar falar com muita comoção daquele
que já morrera e que os havia dado nascimento, começaram a entender
profundamente o significado de serem raros. Não eram raros apenas por
serem o pouco que escapara da destruição entre tudo que pertencera e
que remetia à vida e à obra daquele poeta morto que, ficaram sabendo,
com esse único livro, tornara-se uma referência na poesia de seu país; não
eram raros apenas por escaparem da destruição inexorável trazida pelo
tempo; eram raros também por serem o que ficou de uma relação afetiva
que desconfiavam, mas agora tinham certeza diante da comoção de quem
por tanto tempo os guardava, tinha sido também rara, especial, distinta.
o homem que o estranho chama de alberto de oliveira, que é também
nomeado de poeta, ao guardá-los por tanto tempo naquela gaveta escura,
fez com que eles se tornassem raros. Descobrem-se, assim, pedaços de um
passado ainda vivendo no presente, sentem então o peso dos anos em seus
próprios corpos, tomam consciência de que são raros porque carregam na
materialidade do papel e da tinta que os compõem, nas mais de três mil
páginas esborrachadas, tal como dissera o demiurgo, a espessura do próprio
tempo, se descobrem testemunhos deixados por uma época, descobrem
que em meio a destruição generalizada de seus semelhantes, pois sobre isso
conversam longamente aqueles dois homens, eles escaparam, eles estavam
ali, quase sozinhos, na tarefa de indiciar para o presente o que fora esse
passado. Eles eram raros porque descobrem também que não era comum
que dois homens mantivessem num curto espaço de tempo, afinal tinham
sido criados em apenas três anos, entre 1890 e 1893, quando o demiurgo
decidiu interromper sua produção, uma correspondência tão constante e
com o conteúdo que pareciam carregar. Pois já tinham ouvido o tal alber-
to falar no cuidado com que eles deviam ser tratados, sempre parecendo
pelo tom de sua voz que havia medo e pudor em torná-los públicos ou
mostrá-los para outras pessoas. Eles eram assim, raros, tanto pela quanti-
dade, quanto pela qualidade, pelo conteúdo que traziam. Eram raros por
terem escapado da destruição generalizada, por virem de outro tempo, por
estarem ligados à vida e ao nome de um criador e de um receptor também
diferentes, especiais, homens de nome na sociedade e no tempo de que
faziam parte. Eram raros por fim, por serem documentos, por constituírem
um arquivo chamados de privados, íntimos, pessoais, biográficos, que des-
cobrem naquela conversa que escutam, que eram documentos e arquivos
que dificilmente vinham a público e que dificilmente eram conservados na
sociedade que os dois chamam de portuguesa. Quedam, no fim daquele
dia, satisfeitos e enfatuados com a sua própria importância, chegam quase
a se sentirem nobres como o seu demiurgo.
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Rotos: segundo movimento
No dia em que ouviram a conversa entre o tal alberto de oliveira e
o estranho que ficaram sabendo chamar-se Guilherme de Castilho3, que
também se apresentou como sendo, que palavrão!, biógrafo de antónio
Nobre, foi uma das poucas vezes que tiveram a oportunidade de saírem
da escuridão e da solidão daquela gaveta. Quase não acreditaram, seus
corações dispararam, uma excitação tomou conta de todos quando ouvi-
ram a chave girar na fechadura, quando escutaram as vozes cada vez mais
próximas daqueles dois homens invadir o recinto em que estavam. Embora
agrupados, espremidos nos tais envelopes, sentiram seus corpos serem
atravessados pela lâmina do olhar curioso que os olhava pela primeira
vez, fascinado. Se eles, documentos, se ele arquivo, que são tidos por seres
inanimados e não sujeitos a emoção estavam naquele frenesi, imaginem
o que não deveria estar se passando com o coração, as emoções, os senti-
mentos daquele forasteiro que os mirava pela primeira vez. Embora ele
tivesse se apresentado como um estudioso, um pesquisador, como aquilo
que chamara de biógrafo, embora tenha procurado se apresentar como um
homem que teria diante delesuma atitude totalmente racional, de interesse
apenas pelas informações que pudesse deles colher, como não perceber a
emoção, o sentimento, quase a comoção que se apossava dele no momento
que os mirava. Neste dia aprenderam mais esta lição: os documentos não
falam ou se dirigem apenas a razão, eles não impactam aqueles que os leem
apenas através das informações, dos dados a que dão acesso. a relação
dos pesquisadores com os documentos, com o arquivo não é apenas da
ordem do racional, os documentos emocionam, mexem com a sensibilidade
do pesquisador, os documentos se tornam mais ou menos relevantes, se
tornam dignos de eleição, de escolha, de seleção, de recolha, de registro e
de citação pela emoção que causam no pesquisador, pelo impacto sensível
que exercem sobre quem os lê. a ideia de que a relação com o documento é
apenas da ordem do racional é uma mitificação. Estava escrito naquele rosto,
naquela manhã, era perceptível no brilho daqueles olhos, no nervosismo
de suas mãos, na felicidade estampada em seu cenho, nos arrepios que,
notamos, percorriam por instantes toda a sua pele, que nós causávamos
naquele pesquisador mais do que uma simples curiosidade fria e racional.
Ele era pura emoção quando nos recebeu em suas mãos, quando as mãos
de alberto nos retiraram de nosso esconderijo, quando nos despiram dos
envelopes que nos guardavam, quando nos ofereceram para que pudesse
nos desdobrar, pudesse nos abrir, pudesse ter acesso ao nosso conteúdo.
Sentado, nos espalhou sobre a mesa e foi nos percorrendo um a um com
seus olhos sôfregos e enternecidos. como dizer que, mesmo que nos tenha
chamado por estes nomes tão impessoais, tão oficiais: documentos e ar-
quivo, não teve conosco uma relação de intimidade, uma relação mediada
não só pelos conceitos e pré-conceitos carregados em sua consciência, em
sua racionalidade, mas uma relação mediada pelo afeto, pelo sentimento,
pela sensibilidade, pelo que está no plano do inconsciente, da empatia, da
emoção. Durante todo aquele dia ele tomou notas de inúmeras informações,
nenhum de nós escapou de seu escrutínio. Para variar, o “Diário” teve dele
atenção privilegiada, sempre ele, esse exibido! inúmeras vezes o sentimos
estremecer, se emocionar, quase chorar. outras vezes esboçou um sorriso,
porque nosso demiurgo não era daqueles que escrevesse algo que valesse
3 os parágrafos seguintes
contêm informações presen-
tes na biografia de antónio
Nobre escrita por guilherme
de castilho. Ver caStilho,
guilherme de. Vida e obra de
António Nobre. 3. ed. amadora:
Bertrand, 1980.
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auma gargalhada. Mas, neste dia, ficou claro para nós, quando um dito
pesquisador, se debruça sobre nós, os documentos, quando frequenta um
arquivo, ele não o faz destituído de suas outras faculdades, ele não é só
razão e inteligência. Como vocês ficarão sabendo no continuar de nossa
história, a memória foi uma faculdade muito utilizada pelo pesquisador,
nesta manhã, mas ele não compareceu a nosso encontro só munido da razão
e da memória, ele veio ao nosso encontro por inteiro, com todas as suas
outras faculdades. a emoção, a imaginação, o desejo também ali estiveram
presentes e foram convocados e afetados por nossos corpus documentais.
Pois, isso ficou muito claro para nós, naquele dia de trabalho, aquele senhor
foi profundamente afetado por nossa presença, nós não apenas lhe fizemos
ter contato com o afeto que uniu aquele que nos enviara e aquele que nos
recebera, mas ter contato com seus próprios sentimentos, nós fizemos efeito
nesse homem não apenas em sua mente, em seu cérebro, mas também no
seu corpo, no seu espírito. Nós que viemos de outras viagens, permitimos
que aquele homem, usando a imaginação, único meio de transporte à mão
naquela circunstâncias, viajasse até outros tempos, viajasse a um outro
país, a uma outra cidade, permitimos que aquele homem através de sua
sensibilidade e de sua capacidade de imaginar, revisse o rosto, o corpo
daquele homem, a quem deveria devotar afeição e interesse, pois se assim
não fora não se disporia a escrever o que chamava de sua biografia. Ele
pôde, percorrendo as nossas linhas, vendo as figuras que nos ilustravam,
sentindo a própria textura de nossos corpus de papel, inalando o cheiro
que exalávamos, cheiro talvez de bolor, de poeira, de celulose envelhecida,
cheiros através dos quais sua narina ansiosa procurava captar quem sabe
traços, restos de perfume daquele corpo, daquelas mãos que em dado
momento empunhando uma pena resolveram nos fazer nascer, imaginar
a figura daquele sujeito a quem queria, também usando o recurso à tinta
e ao papel, novamente figurar.
Mas uma coisa nos chamou atenção naquele dia, era a tarefa mesma,
a atividade, a operação a que se dedicava o nosso leitor. Percebemos que
ele, talvez pelo pouco tempo de que dispunha ou porque talvez duvidas-
se da disposição de nosso carcereiro e dono em nos libertar para novas
consultas em outras oportunidades, tratava de copiar trechos, pequenos
fragmentos do que trazíamos inscrito e escrito em nossa pele. Não sabíamos
bem seguindo qual critério, supomos que deveria ter algum, talvez quan-
do dávamos a ele a informação que desejava saber ou quando em dados
momentos de nós lhe emocionávamos mais, quando falávamos em coisas
ternas, amorosas, em coisas sensíveis, ou quando nosso demiurgo através
de nós descrevia seu cotidiano parisino, expressava o que pensava sobre
seu tempo, a sociedade francesa ou portuguesa, ou quando comentava suas
dificuldades financeiras ou a relação tensa com o pai e o irmão, ou quando
se derramava em recordações saudosas de coimbra, de leça da Palmeira,
da sua morada na chamada torre de anto, ou quando, quem sabe, falava
da impossibilidade de corresponder às expectativas de casamento de sua
Purinha ou quando amuado, indignado, revoltado acusava seu amigo
de não corresponder ao sentimento que por ele sentia, de ser um homem
frio, que só pensava na carreira de homem de letras, para quem tudo era
literatura, nestes momentos ele copiava em seu caderno de notas pequenos
trechos do que em nós ele lia. temos que confessar que aquilo começou a
nos afligir. Se há pouco soubera-nos raros, agora a sensação é de estarmos
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ficando rotos. Era como se ele nos estivesse rasgando em pequenas tiras.
Nosso corpus era dilacerado para que pequenas partes de nós viessem a
aparecer renovadas em tinta nova e em papel cheirando a novo. Ele parecia
se comprazer naquela operação de despedaçamento. como um cirurgião
com seu bisturi e pinças ia selecionando e seccionando partes de nosso tex-
tura, de nosso texto, e transplantando-as para outro corpus de papel. Nos
entreolhávamos e nos perguntávamos mas o que vai resultar dessa operação
a que estamos sendo submetidos? Para que servirão estes fragmentos soltos
que ele resolveu levar daquilo que trazemos em nós registrado? E s t a
sessão que para nós parecia de tortura, era chamada por ele de momento
da pesquisa e por vezes, algo que nos pareceu muito pedante, levantamento
documental. É verdade que sentimos ser levantados da gaveta até aquela
mesa para o início de sua atividade, mas o que ele fazia agora parecia mais
dessecamento documental que levantamento documental. Parecia estar a
nos desventrar, destripar, nosso pobre corpus documental ia ficando feito
em pedaços. Será por que ele queria nos ver sangrar? Tem gente, um povo
chamado historiador, que de vez em quando vem com esta conversa de
que é preciso dar sangue a historiografia, outro palavrão! que a história
precisa ter personagens de carne e osso. talvez por estar à procura do nosso
demiurgo, como disse que queria dizer a vida desse homem tal como ela
se passara de fato, na realidade e de verdade, ele estivesse à procura de
seu corpo atravésde nós, estivesse tentado beber o seu sangue por nosso
intermédio, afinal na biblioteca do nosso dono havia o livro que dizia ser
de um dos mais famosos homens dessa espécie historiadora, um tal de
Michelet, que dizia que essa espécie de gente pesquisadora adora beber
o sangue dos mortos. talvez fosse por isso que ele nos submetia àquela
operação quase de linchamento. Pensávamos cá com nossos borrões: se
desaparecêssemos hoje, o que restaria de nós seria esses fragmentos, estes
frangalhos de nosso corpus. Neste estado nem mesmo o posudo “Diário”
guardaria a mínima nobreza. como ele conseguiria dizer alguma coisa a
partir destes segmentos que fez em nosso conteúdo? Só mesmo com muita
imaginação para depois reunir estes fragmentos em algum escrito que dê
algum sentido de conjunto a estes rebotalhos de nosso corpo.
Esta sensação de que algo se rompia em nós, essa sensação de
ficar rotos, de que algo de nós se perdia irremediavelmente, de que se
desaparecêssemos de repente o que ficaria de nós era uma pálida figura
do que fomos, só nos havia acontecido anteriormente, uma única vez. É
verdade que entre nós mesmos, havia uma dita carta, justamente a última
que fora criada por nosso demiurgo, a que chegara por último a nossa
convivência, que já trazia escrita, documentada, uma espécie de ameaça a
nossa existência. Nela, em tom muito sério, quase oficial, bem diferente da
forma íntima e carinhosa com que costumava se dirigir a quem chamava
de “meu alberto”, “meu irmão”, “meu amigo”, Purinho, santo, um tal
“abaixo assinado antónio Nobre”, exigia de um tal Sr. alberto de oliveira
que nos enviasse de volta a Paris. Depois de dizer que tinha que acabar
com “isso”, sem que soubéssemos direito o que era isso que acabava, ele
demonstrava muita preocupação que viéssemos cair nas mão de alguém,
não sei se temesse pela discrição daquele que nos tinha sobre sua posse,
o certo é que demonstrava, para não variar, muito receio que, principal-
mente o tal “Diário” viesse a público, pois, segundo ele, isso significaria a
sua “ruína moral” e exigia que nós fôssemos a ele devolvidos.4 como dá
4 Ver carta de antónio Nobre
a alberto de oliveira, fev.
1893. In: MarQUES, fernando
carmino. António Nobre, em
Paris, só: correspondência. Porto:
caixotim, 2005. Este autor co-
menta essa carta na p. 9, nota
1, deste livro.
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ArtCultura, Uberlândia, v. 15, n. 26, p. 7-28, jan.-jun. 2013 15
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apara adivinhar o Sr. alberto não obedeceu ao pedido, talvez porque tivés-
semos para ele um valor muito maior do que o choroso e revoltado poeta
parisino podia supor. Não sabemos se o tal Nobre voltou a insistir neste
pedido, se alberto teve que nos defender bravamente do expatriamento,
o certo é que nos manteve em seu poder, embora nos condenando a viver
nas sombras de uma cômoda fechada a chaves, talvez por também julgar
que éramos mesmo tão ameaçadores à sua moral como pareceu ser à moral
de nosso demiurgo.
Mas retomando o que vínhamos contando. Essa sensação de estarmos
sendo rotos fora sentida uma vez, cerca de três anos antes que o pesqui-
sador biógrafo viesse nos visitar. Nesta época alberto recebera a visita de
um tal augusto Nobre, que se dizia irmão do tal Nobre que carregamos
assinado nas traseiras. Entre os dois travou-se uma conversa que, bisbi-
lhoteiros como somos - afinal porque só os ditos pesquisadores podem
se servir de nós para bisbilhotar a vida, o passado dos outros? Nós não
podemos também dar nossas bisbilhotadas? -, ficamos a escutar. O rumo
da conversa nos deixou muito preocupados, um frio de morte percorreu
nossas colunas, os dois se confessavam muito velhos, se diziam cansados
e perto de morrer. ambos se mostravam cuidadosos em relação ao nosso
destino. o tal augusto disse que devia ao irmão morto a homenagem de
uma publicação antes que ele mesmo partisse. Tendo ficado responsável
por algo com um nome que nos pareceu de doença, o espólio do irmão,
nele não encontrara um volume de documentos de nosso feitio suficiente
para compor uma publicação, que ficamos sabendo seria só de suas cartas.
Nesta hora os postais e principalmente o “Diário” se entreolharam com um
ar de indagação sobre o destino que a eles seria dado. Nesta conversa não
obtiveram a resposta que só teriam quando o tal guilherme de castilho
apareceu três anos depois.5
Para encurtar a história, as ditas cartas foram neste mesmo dia se-
paradas dos postais e do “Diário” e entregues ao tal augusto. Esta já nos
pareceu uma primeira incisão dolorosa em nosso corpus que, mais tarde,
viemos a saber que se chamaria arquivo. Esta operação de amputação de
uma parte de nossos membros pareceu modificar nossa condição mesma
de arquivo, ele já não era mais o mesmo. Entre lágrimas e abraços de des-
pedida ainda escutamos esperançosos que o tal augusto ia apenas copiar
aquelas que julgasse de interesse para publicação e que depois nossas
companheiras cartas voltariam a se juntar a nós. E efetivamente passado
quase um ano, eis que elas retornam, mas chegam visivelmente pertur-
badas e traumatizadas com o que lhes aconteceu. Umas contavam que à
medida que o tal augusto as lia ia sendo tomado por algo que só podia
descrever como sendo perturbação, desorientação, repulsa. Estas dizem,
foram atiradas de volta ao envelope, como se ele quisesse rapidamente as
esconder, vê-las desaparecer de suas vistas. foi aí que elas compreenderam
o sentido do que seria “impróprio para publicação” que ele não cessava
de dizer. outras perceberam que o velho leitor e copista, porque também
se dedicava a copiá-las para um outro caderno de notas, se distraía, ficava
cansado e com preguiça de copiar as longas cartas que o irmão escrevia,
deixando de copiar trechos inteiros das pobres cartas. Ele dizia para quem
quisesse ouvir que iria delas copiar só os trechos interessantes. Quando elas
contemplavam as suas cópias, era como se se vissem num espelho voltado
para produzir deformações caricaturais. faltavam literalmente pedaços
5 informações presentes em
caStilho, guilherme de
(org.). António Nobre: correspon-
dência, op. cit., p. 11.
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ArtCultura, Uberlândia, v. 15, n. 26, p. 7-28, jan.-jun. 201316
inteiros do que traziam escrito em seus corpos, era como se encolhessem e,
o que mais doía, era contemplar os enormes cortes, as enormes lacunas, as
enormes incisões que o tal augusto fazia em seu conteúdo. talvez por julgar
dadas passagens comprometedoras, por considerar dadas palavras, dados
desejos, dados pensamentos, dados sentimentos expressos por seu irmão
através daquelas letras e daquelas linhas, impublicáveis, ele simplesmente
resolvia omitir, apagar, rasurar, silenciar o que ali se escrevera. E o fazia,
como descobrirá mais tarde, escandalizado, o tal guilherme de castilho, ao
ver as provas tipográficas do livro a ser publicado pelo tal Augusto Nobre,
que ele sequer indicava, usando qualquer tipo de convenção, a adulteração
que ali havia sido feita. as cartas voltaram, assim, desiludidas com o des-
tino dos tais documentos. Descobriram que assim como são produzidos
por mãos humanas, estão sujeitos a ser por elas destruídos e adulterados.
Perceberam o quão precário é o estatuto do documento. o ser documento
nada garante, pode até significar um risco. Tinham ouvido algumas vezes
o alberto falar que os documentos eram muito importantes pois eram a
porta de acesso ao passado. Sem eles era impossível se escrever a história
dos povos, recuperar a verdade dos fatos que marcaram a vida de uma
dada nação ou civilização. tinham escutado com atenção ele dizer que os
documentos eram como tesouros, aliás o tal guilherme também assim se
referiu a eles naquela manhã, que eles eram joias raras, sem as quais era
impossível saber o que acontecera de verdade aos homens. Mas agora,
se punham a refletir: como os documentos podem ser garantia de acesso
à verdade, à realidade, podem ser testemunho do que se passou,