Logo Passei Direto
Buscar
Material
páginas com resultados encontrados.
páginas com resultados encontrados.

Prévia do material em texto

Retratos 
do Brasil 
Homossexual
Fronteiras, 
Subjetividades 
e Desejos
Horácio Costa et al.
organização
Horácio Costa et al. (orgs.)
Retratos do Brasil Homossexual
Fronteiras, Subjetividades e Desejos
Secretaria Especial
dos Direitos Humanos
PPG em literatura portuguesa
PPG em estudos comparados
F F L C H - D L C V I C E L P
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Reitora Suely Vilela
Vice-reitor Franco Maria Lajolo
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Diretor-presidente Plinio Martins Filho
COMISSÃO EDITORIAL
Presidente José Mindlin
Vice-presidente Carlos Alberto Barbosa Dantas
Adolpho José Melfi
Benjamin Abdala Júnior
Maria Arminda do Nascimento Arruda
Nélio Marco Vincenzo Bizzo
Ricardo Toledo Silva
Diretora Editorial Silvana Biral
Editoras-assistentes Marilena Vizentin
Carla Fernanda Fontana
Horácio Costa
Emerson Inácio
Wilton Garcia
Berenice Bento
Wiliam S. Peres
(organizadores)
Retratos do Brasil Homossexual:
Fronteiras, Subjetividades e Desejos
 
Retratos do Brasil homossexual : fronteiras, 
subjetividades e desejos / Horácio Costa ... [et al] (org.). 
–- São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo : 
Imprensa Oficial, 2010. 
442 p. ; 23 cm. 
 
 ISBN 978-85-314-1242-4 (Edusp) 
 ISBN 978-85-7060-961-8 (Imprensa Oficial) 
 
1. Homossexualidade-Sociologia. 2. Identidade sexual. 
I. Costa, Horácio, 1954-. 
 
CDD 306.766 
 
 
Copyright © 2010 by organizadores
Ficha catalográfica elaborada pelo Departamento Técnico do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP
Depósito Legal na Biblioteca Nacional, conforme Decreto Nº 10.944, de 14 de dezembro de 2004. 
 
Direitos reservados à 
 
Edusp – Editora da Universidade de São Paulo 
Av. Prof Luciano Gualberto, Travessa J, 374 
6o andar – Ed. da Antiga Reitoria – Cidade Universitária 
05508-010 – São Paulo – SP – Brasil 
Divisão Comercial: Tel.: (11) 3091-4008 / 3091-4150 
SAC (11) 3091-2911 – Fax (11) 3091-4151 
www.edusp.com.br – e-mail: edusp@usp.br 
 
Printed in Brazil 2010 
5
Sumário
Discurso de Abertura do IV Congresso da ABEH
HORÁCIO COSTA...................................................................................... 15
Parte I
Homocultura e Direitos Humanos
A União Homoafetiva e a Constituição Federal
MARIA BERENICE DIAS ............................................................................. 27
El Matrimonio Heterosexual: ¿Un Mito?
FERNANDO GRANDE MARLASKA ................................................................ 33
¿Peligrosos y Normales? Sobre la Situación de la España
Democrática Respecto de la Diversidad Sexual
JUAN VICENTE ALIAGA .............................................................................. 43
Homocultura & Política Homossexual no Brasil:
do passado ao por-vir
JOÃO SILVÉRIO TREVISAN ......................................................................... 55
Direitos Humanos e Estudos Gays e Lésbicos: O que nós e Michel
Foucault Temos a Ver com Isso?
MÁRIO CÉSAR LUGARINHO ........................................................................ 67
Constâncias
PAULA VITURRO ...................................................................................... 77
Homofobia Letal: A Violência Velada contra a Liberdade de
Orientação Sexual no Brasil
DANIELLE ROSE, HELENA BARCELOS, LEA SANTOS, MARILENE DURÃES
E TÂNIA CARNEIRO................................................................................... 87
Programa Vitória sem Homofobia
DURVALINA MARIA SESARI OLIOSA ............................................................. 99
6
Os Homossexuais e a Adoção
RAFAELLI LINS DANTAS ........................................................................... 107
Parte ii
Homocultura e Literatura
O Cânone Impermeável: Homoerotismo nas Poesias Brasileira,
Portuguesa e Mexicana do Modernismo
HORÁCIO COSTA .................................................................................... 119
Para uma Estética Pederasta
EMERSON DA CRUZ INÁCIO ..................................................................... 129
Comédia de Bristo, o Fanchono
FRANCISCO MACIEL SILVEIRA .................................................................. 143
Humor e Homofobia no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende
MARCIA ARRUDA FRANCO ....................................................................... 151
Teatro e Paródia no Mito de Inês de Castro
FLAVIA MARIA CORRADIN ........................................................................ 163
Solidão e Relações de Poder na Obra de Gasparino Damata
ROBERT HOWES .................................................................................... 177
A Homossociabilidade Erótica de João Silvério Trevisan
NELSON MARQUES ................................................................................ 187
Corpo e Memória na Obra de Caio Fernando Abreu
ANTONIO EDUARDO DE OLIVEIRA ............................................................. 197
Representações de Gênero e de Homoerotismo nas Literaturas
Infantil e Juvenil: Uma Leitura de O Gato que Gostava de
Cenoura e Sempre por Perto
LUCIANO FERREIRA DA SILVA ................................................................... 209
Uma Certa Retórica Homoerótica
LATUF ISAIAS MUCCI .............................................................................. 227
7
Quarenta Anos de Histórias de Amor
ANA MARIA DOMINGUES DE OLIVEIRA ....................................................... 239
Homoerotismo e Performance em “O Iniciado do Vento”,
de Aníbal Machado
CARLOS HENRIQUE BENTO ..................................................................... 247
Lugar de Romance é Fora do Armário: Gênero, Espaço e Corpo
em Bom Crioulo, de Adolfo Caminha
CARLOS EDUARDO BEZERRA ................................................................... 255
As Bases de Eu Sempre Tive a Ilusão que um Dia Você
ia me Abraçar
DJALMA THÜRLER .................................................................................. 269
O Corpo e a Escrita: Acenos e Afagos, de João Gilberto Noll
FÁBIO FIGUEIREDO CAMARGO ................................................................. 277
Cartografias da Experiência Urbana em Contos
de Caio Fernando Abreu
FLÁVIO PEREIRA CAMARGO ..................................................................... 289
A Personagem Diluída: “Tigrela”, uma Mulher e um Instinto
FRANCIS DE LIMA AGUIAR ....................................................................... 299
Balaio de Gatos ou um Olhar Rachildeano sobre o Gênero em
Les Hors Nature
MÁRA LUCIA FAURY ............................................................................... 311
A Confissão de Lúcio e o Aprendizado da Arte Decadentista
RAFAEL SANTANA GOMES ....................................................................... 321
Ficcionalização de Si: Uma Estratégia de (Re)velação
RENATA PIMENTEL ................................................................................. 333
A Diversidade Sexual na Versão Mitodramática de Édipo, de
Armando Nascimento Rosa
ROSANA BAÚ RABELLO ........................................................................... 343
A Intertextualidade em “Ex-crucior” e “Poema a Safo”,
de Aguinaldo Gonçalves
ROSANGELA MANHAS MANTOLVANI ........................................................... 353
8
Entre Exu e o Apocalipse: Notas para uma Leitura do
Homoerotismo em Valdo Motta e Paulo Teixeira
SINEI FERREIRA SALES ........................................................................... 365
“Na Torpeza Nauseante Havia Alguma Coisa Muito Pura”:
Algumas Visões Sobre a Homossexualidade na Moderna
Literatura Brasileira
TELMA MACIEL DA SILVA ......................................................................... 375
parte iii
Homocultura e Artes
La Colección Visible: Motor y Memoria de un Tiempo de Cambio
PABLO PEINADO .................................................................................... 389
Andróginos, Hombres Vestidos de Mujer, Maricones...
El Museo Travestí del Perú
GIUSEPPE CAMPUZANO ..........................................................................se refieren estos artículos sólo pueden producirse en el caso de matri-
monios heterosexuales.
Por otra parte, y como resultado de la disposición adicional primera de
la presente ley, todas las referencias al matrimonio que se contienen en
nuestro ordenamiento jurídico han de entenderse aplicables tanto al matri-
monio de dos personas del mismo sexo como al integrado por dos personas
de distinto sexo.
Es una de las pocas veces en que uno no sólo acata una ley nacida de
la soberanía popular, sino que se emociona cada vez la nombre.
Y partiendo de la misma realidad social, así como del estudio de la
institución del matrimonio, analizando los derechos fundamentales en litigio,
entiendo que su no reconocimiento a las personas homosexuales, no lo es en
base a cuestiones técnico jurídicas, sino a prejuicios disfrazados de ciencia y
a una ausencia de coraje democrático.
Muchas gracias y os deseo lo mejor por vuestra lucha a favor de nues-
tros derechos, porque en esta materia, como en cualquiera otra hipotética
donde podría vulnerarse alguno, yo también me siento brasileño. Y espero que
seáis la punta de lanza en Latinoamérica en la lucha por los derechos de los
homosexuales, y que haya muchas personas que se vean reflejados en vosotros.
Porque la batalla no es fácil. En España han pasado escasos treinta años desde
que se internaba en centros especiales a homosexuales.
43
1. Facultad de Bellas Artes, Universidad Politécnica de Valencia.
2. Raquel Osborne, “Entre el Rosa y el Violeta (Lesbianismo, Feminismo y Movimiento Gay).
Relato de unos Amores Difíciles”. Texto reproducido en Raquel Platero (coord.), Lesbianas.
DiscurSos y Representaciones, Barcelona, Melusina, 2008, p. 85.
¿Peligrosos y Normales? Sobre la Situación
de la España Democrática Respecto de
la Diversidad Sexual
JUAN VICENTE ALIAGA1
En los últimos tres años es frecuente encontrarse con titulares y artículos de
periódicos y comentarios diversos que hablan de lo mucho que ha cambiado
España. Son textos que vienen seguidos de halagos y elogios. No me refiero
solamente a la literatura que, con mayor o menor rigor, se ha publicado en el
estado español sino sobre todo a la aparecida en distintos foros en el extran-
jero (en Francia, Italia, Reino Unido, Alemania, México, Chile…). Unánima-
mente lo escrito o divulgado a través de distintos medios de comunicación
(periódicos, televisiones, radio, internet…) parte de un hecho clave: la apro-
bación por el Congreso de los Diputados el 30 de junio de 2005 de una ley que
equipara los matrimonios y la paternidad/maternidad de personas homose-
xuales con respecto a las heterosexuales.
La profesora Raquel Osborne comenta
[...] que hemos pasado en 35 años […] de leyes represivas y que además
se cumplían porque iban unidas a actitudes enraizadas de profunda into-
lerancia hacia la diferencia/disidencia respecto de la heteronorma, a una
de las leyes más avanzadas del mundo […]2.
44
Juan Vicente Aliaga
No olvida Raquel Osborne en su análisis que al año siguiente:
[...] y tras algunas vacilaciones el gobierno (obviamente me refiero al
capitaneado por José Luis Rodríguez Zapatero) aprobó en Consejo de
Ministros y envió al Parlamento el proyecto de Ley de Identidad de
Género, que regula el proceso del cambio de nombre y sexo en los
documentos oficiales de las personas transexuales.
El interés informativo suscitado en muchos medios de comunicación de
las llamadas democracias asentadas y de otras más inestables venía en parte
provocado por la sorpresa de que un país latino, del sur de Europa, cercano a
África, se hubiera convertido en un “laboratorio de cambio social” en cues-
tiones LGTB, adelantándose a otros como Francia, Alemania, Estados Unidos,
y así un largo etcétera.
¿Cómo se había alcanzado dicha situación, se ha preguntado insisten-
temente a los y las representantes españoles del movimiento gay, lésbico y
transexual en distintos puntos del planeta? ¿Cómo entender esos vertiginosos
cambios?
La respuesta, de haberla, no puede ser ni única ni unilateral (por
ejemplo, aquélla que habla de un Zapatero magnificado como salvador de los/
as homosexuales, o la que abunda en la pujanza y efectividad de los colectivos
LGTB). La respuesta debe atender a distintos flancos, a diferentes razones que
podrían explicar el intríngulis del cambio, sin obviar un estudio de la signifi-
cación real de ese cambio, es decir, cuál es el alcance de los avances legales y lo
que es más relevante si estos avances suponen una transformación palpable de
la vida cotidiana de maricas, bolleras, trans, personas intersexuales, y de los
sujetos que huyen de las categorías al uso o prefieren otras denominaciones.
Para ello, creo imprescindible mirar hacia atrás en busca de las ense-
ñanzas de la historia.
En 1970, concretamente el 4 de agosto, se aprobó en España la Ley de
Peligrosidad y Rehabilitación social (LPRH). Un año antes, en 1969, en las calles
de Greenwich Village, homos, lesbianas, travestis y transexuales se enfrentaron
a la policía neoyorquina dando paso a la formación de un movimiento de libe-
45
¿Peligrosos y Normales?
ración. El aire empezaba a parecer más limpio en algunas partes del mundo
mientras que en España la dictadura de Franco lo hacía irrespirable. La LPRH
suponía que serían declarados en estado de amenaza social y se les aplicará las
correspondientes medidas de seguridad a quienes se aprecie en ellos una
peligrosidad social. Son supuestos de estado peligroso los siguientes: entre
otros (prostitución, proxenetismo…) los que realicen actos de homosexualidad.
Las medidas de seguridad se concretan en el “internamiento en un estable-
cimiento de reeducación (hasta un máximo de cinco años) y en la prohibición
de residir en el lugar o territorio en que se designe (el destierro)”.
Durante muchos años los presos condenados bajo esta ley fueron
ignorados. Incluso se puede afirmar que en los pactos de la Transición espa-
ñola (1975-1982) a la democracia o monarquía parlamentaria en los que hubo
indultos por delitos de orden ideológico (excarcelaciones, regreso de refugia-
dos políticos…), la izquierda española privilegió la dignificación de los mili-
tantes antifranquistas, pasando por delante de los “desviados “sexuales”.
Obviamente de la derecha franquista imbuida de moral católica no se puede
esperar otra cosa pero la moralina y los prejuicios también estaban arraigados
en la izquierda, incluso en la extraparlamentaria.
En los últimos años, y en la primera legislatura de Zapatero, se han
hecho estudios sobre la persecución de los homosexuales y transexuales
durante el franquismo y se ha producido un reconocimiento por parte del
Parlamento (véase El País, 20 de diciembre de 2004) y el inicio de indemni-
zaciones como víctimas del franquismo (a propuesta de Izquierda Unida).
Dicho reconocimiento de los presos y algunos estudios han dignificado la me-
moria de lo sucedido aportando datos sobre las personas juzgadas por homo-
sexualidad, sobre el trato vejatorio y humillante que sufrían en un centro de
reeducación de homosexuales varones, en Huelva (activos) y en Badajoz
(pasivos), y acerca de las terapias aversivas aplicadas (descargas eléctricas,
vomitivos, lobotomía)3.
3. Véase: Arturo Arnalte, Redada de Violetas. La Represión de los Homosexuales durante el
Franquismo, Madrid, La Esfera de los Libros, 2003. La memoria de la represión ha sido
reivindicada, entre otros, por Antoni Ruiz, presidente de la Asociación de Ex-Presos Sociales.
46
Juan Vicente Aliaga
Como he señalado, tras la muerte del dictador y en plena transición, los
indultos y la amnistía de 1976, que afectaba a delitos de cariz político e
ideológico, no incluyeron a los considerados “peligrosos sociales”.
En 1978 se aprueba una nueva Constitución (antes se había legalizado al
Partido Comunista, uno de los demonios de la derecha española), pero a pesar
de las primera manifestaciones en la vía pública de organizaciones homo como
elFAGC (Front d’Alliberament Gai de Catalunya), en 1977, la primera habida, la
LPRH pervive hasta 1979. En 1978 hubo tres expedientes judiciales, sin
embargo, como afirma Alberto Mira, la desaparición de los obstáculos legales
fue muy gradual: el delito de escándalo público, verdadero cajón de sastre, es
parte de la ley hasta 1988, lo que dificulta, por decirlo suavemente, los actos de
visibilidad homosexual, con o sin ley que castigase los comportamientos
homosexuales de manera explícita4. Paralelamente a los cambios políticos y
legislativos en una España de profundo sustrato franquista y de una reli-
giosidad conservadora los movimientos de liberación homosexual proliferan.
La efervescencia se debe en parte al objetivo de derogar y abolir la LPRH, aunque
ya habían surgido anteriormente algunos grupos en la clandestinidad. En junio
de 1977 se celebraba en Barcelona la primera manifestación (ilegal, de hecho)
del Día del orgullo gay convocada por el FAGC. Poco a poco los colectivos se
extienden por la geografía española sobre todo en las grandes ciudades.
La presencia de las activistas lesbianas es minoritaria – como han recor-
dado Beatriz Suárez y Empar Pineda – y pronto se escindirán para incorpo-
rarse al movimiento feminista. En las filas homosexuales los grupos de
lesbianas critican la misoginia de los gays, lo que les lleva a incorporarse de
pleno al feminismo. Así sucedió con el colectivo de feministas lesbianas de
Madrid, fundado en 1983. Sin embargo las lesbianas se encontrarían con otro
escollo: el heterosexismo de muchos sectores feministas.
4. Alberto Mira, De Sodoma a Chueca. Una Historia Cultural de la Homosexualidad en
España en el Siglo XX, Madrid/Barcelona, Ed. Egales, 2004, p. 419.
47
¿Peligrosos y Normales?
La derogación de la LPRH y la aparente normalización democrática
posterior marcó, según Ricardo Llamas y Fefa Vila5 , “una crisis en el movi-
miento de gays y lesbianas en el Estado español”. Algunos grupos desaparecie-
ron y otros se restructuraron. Durante la década de los 80 lesbianas y gays
corren de forma separada.
Se podría decir que las comunidades de gays en los 80 están mas
pendientes del ocio comercial vivido en el mal llamado gueto – otros como el
escritor Eduardo Mendicutti lo considera espacio de libertad –, del que
despotrican los activistas, que de las querellas políticas de entonces, sin
embargo las razones para combatir no faltan: la discriminación de los pro-
fesores gays, la derogación de un articulo del código militar (delito contra el
honor), el escándalo publico, la corrupción de menores, la retirada de la ho-
mosexualidad del catálogo de enfermedades de la OMS, el fin de las redadas,
la destrucción de las fichas policiales presentadas por la COFLHEE (Coordina-
dora de Frentes de Liberación Homosexual del Estado Español). Estas
reivindicaciones serán tenidas en cuenta por los socialistas lentamente, más
la voluntad de eliminar los rastros de la dictadura que por verdadera empatía
con las necesidades de la población LGTB.
El 23 de octubre de 1986, derogada ya la LPRH pero vigente la figura de
escándalo público, dos mujeres, Arantxa y Esther fueran detenidas por la
policía por haberse besado en la boca cuando pasaban delante de la Dirección
General de la Seguridad del Estado, en la Puerta del Sol de Madrid. Nunca un
beso había sido tan demoledor. Durante dos días estas mujeres fueron some-
tidas a malos tratos y vejaciones. La respuesta tardó pero se produjo: el 23 de
enero de 1987 cientos de lesbianas ocuparon las plazas de distintas ciudades.
La invisibilidad lésbica se había roto. Las lesbianas existían.
En julio de 1987 otro motivo más para la revuelta: un juez de familia,
José Luis Sánchez Díaz, dicta una singular sentencia: la retirada de la custodia
5. Véase, Ricardo Llamas y Fefa Vila, “Spain. Passion for Life. Una Historia del Movimiento de
Lesbianas y Gays en el Estado Español”, en Xosé M. Buxán Bran (ed.), ConCIENCIA de un Singular
Deseo, Barcelona, Laertes, 1997, pp. 189-224.
48
Juan Vicente Aliaga
de la hija a una mujer llamada Montserrat Garrart en beneficio del padre ante
la sospecha de su posible lesbianismo.
Los prejuicios homófobos y lesbófobos estaban pues a la orden del día.
Bajo mandato socialistas se aprueban reformas parciales, algunas
impulsadas por Izquierda Unida (subrogación de contratos de alquiler a la
pareja no casada…).
La década de los ochenta no fue particularmente brillante en lo que se
refiere a las conquistas de derechos civiles para LGTB. Sin embargo, visto desde
una perspectiva histórica más amplia, no puede olvidarse las enormes difi-
cultades vividas, los momentos de crisis tan significativos como el golpe de
estado de febrero de 1981, que dejaba patente que las fuerzas fácticas fascistas
estaban lejos de haber desaparecido.
Durante los gobiernos dirigidos por Adolfo Suárez de la UCD se aprobó
la Ley del Divorcio (1981), y con Felipe González en 1985 la del aborto con tres
supuestos (violación, malformación del feto, peligro para la salud mental de
la madre). Fueron años en que la epidemia del Sida se fue haciendo cada vez
más asfixiante. La lenta respuesta de los colectivos gays es significativa en
parte debido a los temores de estigmatización, que se produjo en los medios
de comunicación sensacionalistas y en las filas reaccionarias. Todo ello
propició cierta inoperancia a la hora de lanzar campañas sobre las medidas
preventivas a adoptar. Por otro lado, estaba el perfil bajo de los responsables
del ministerio de Sanidad temeroso de enfrentarse a las diatribas y los ataques
de la Conferencia episcopal, que proclamaba la castidad como medida
profiláctica para evitar a toda costa el uso del condón. Todo ello no ayudaba
a concienciar a la población española acerca del Sida.
Si bien es cierto que en los 80 tras la victoria socialista (1982), y la desilu-
sión que conllevaron algunas medidas políticas, se dio lo que se denominó el
desencanto (desmovilización de sectores contestatarios…) no sería justo afir-
mar que en distintos ámbitos de la sociedad española no se produjeron algunos
cambios. Habría que buscarlos sobre todo fuera de la política oficial.
Tras muchos años de cerrazón, de puritanismo religioso y moral en las
calles de Madrid y Barcelona, pero también en otros lugares (Valencia, Vigo),
49
¿Peligrosos y Normales?
por señalar los casos más nombrados, cristalizó paulatinamente una trasfor-
mación de las costumbres y un aperturismo sexual en una generación que
evitaba los dogmas políticos de la izquierda esclerotizada y que buscaba el
hedonismo y el disfrute del cuerpo. Estas necesidades en parte se aglutinaron
en el fenómeno de la llamada movida madrileña, desde finales de los 70 y antes
de la mercantilización que se produjo cuando las cadenas de televisión, las
revistas y los periódicos capitalizaron un movimiento inconcreto, sin horizonte
claro, sin programas ni organización, que hacía de la noche, de la indumentaria
alocada y rebelde, de la música alternativa su santo y seña y en el que se zam-
bulleron los avasallados por la asfixiante normativización.
Fabio MacNamara, las Costus, Carlos Berlanga, Ceesepe, Alaska, Pedro
Almodóvar, en Madrid o Nazario, Camilo y Ocaña, en la Barcelona libertaria,
son algunos nombres significativos.
La provocación, que recogieron las cámaras del programa televisivo La
Edad de Oro (Paloma Chamorro), las ganas de divertirse y de huir de una
España rancia, restrictiva y meapilas, es un valor a considerar. Y en ese sentido
descuella la aportación del cine de Pedro Almodóvar – recuérdese su película
Entre tinieblas (1983) con sus monjas irreverentes – que con sus incohe-
rencias, disparates y muchos aciertos presentaba a la sociedad española
realidades y ficciones insospechadas hasta entonces.
En se sentido cabe resaltar una película como La Ley del Deseo (1986)
en unos años en que Almodóvar jugaba a la ambigüedad (una constante entre
muchos famosos españolesque evitaban las etiquetas), pues no había hablado
explícitamente de su orientación sexual a pesar de ser invitado sistemáti-
camente a participar en los festivales de cine gay de todo el planeta.
La Ley del Deseo, que no voy a analizar en clave cinematográfica, tuvo
el mérito de mostrar a un público todavía bastante recatado en materia de sexo
realidades, deseos y anhelos que el cine mayoritario heterosexista español y
de otros países despreciaba e ignoraba sistemáticamente.
En otros espacios de la cultura, aunque con un eco relativo entre las
audiencias mayoritarias, poco leídas y cultas, se fueron abriendo paso los
textos de Luis Antonio de Villena, Eduardo Mendicutti, Juan Goytisolo,
50
Juan Vicente Aliaga
Alberto Cardín. Las mujeres como Esther Tusquets, Carme Riera, Isabel Franc
contemplaban el deseo lésbico en sus escritos pero rechazaban cualquier
implicación o traslación personal.
En esos años el feminismo apenas penetraba en las aulas y era impen-
sable que estudios sobre la homosexualidad, el lesbianismo y la transexualidad
tuvieran respaldo. Hubo que esperar a mediados de los 90 para que alguna
intelectualidad gay comenzara a escribir la historia ignorada y a dar valor al
pensamiento heterodoxo en materia de sexualidad – un ejemplo adelantado
lo depara el malogrado Eduardo Haro Ibars, autor de Gay Rock, 1975.
Todavía en los 90 la estigmatización del Sida caía sobre la población
homosexual. En 1992 las calles de San Sebastián y de Madrid fueron escenario
de la performance Carrying del artista Pepe Espaliú que denunciaba la incuria
del Estado ante los numerosos muertos, los miles de seropositivos, la ne-
gligencia de las autoridades y de las gentes. Ese mismo año, el 1 de diciembre,
Pepe Espaliú publicó un texto en El País (“Retrato del artista desahuciado”)
hablando abiertamente de su homosexualidad. Fue una de las primeras salidas
del armario de un personaje público en años en que muchos ocultaban su se-
xualidad de modo vergonzante.
Para quienes pensaban que la homofobia había desaparecido de España
el caso Arny fue una auténtica sorpresa… harto desagradable. Unas acusa-
ciones de prostitución de menores se convirtieron en un auténtico lincha-
miento de famosos – Jesús Vázquez, entre otros… – por su (siempre presunta)
depravada sexualidad6. El Arny era un club de Sevilla al que acudían chaperos,
supuestamente pervertidos por homosexuales libidinosos. Todo fue un engaño
masivo que, eso sí, permitió medir que España no era tan moderna como se
decía. La homofobia vendía y corrieron ríos de tinta.
En 1996 gana la derecha de Aznar las elecciones y se produce un parón
en cuestiones de derechos en un momento en que las organizaciones LGTB
pedían la ley de parejas de hecho o las uniones civiles. No se planteaba entonces
6. Alberto Mira, De Sodoma a Chueca, p. 576.
51
¿Peligrosos y Normales?
la posibilidad del matrimonio. 1996 es el año en que en Sitges, cerca de Barce-
lona, un manifestación gay organizada como protesta ante la paliza de carácter
homófobo sufrida por un hombre es recibida con piedras y abucheos.
Me parece pertinente asociar el crecimiento de los colectivos de gays y
lesbianas, de nuevo unidos, y la mayor visibilidad de estos sectores con los
ocho años de letales políticas de derecha, siempre acompañadas y santificadas
por la Iglesia y el papado.
Las manifestaciones del orgullo gay, en Madrid, van adquiriendo en
este periodo enorme presencia sobre la que se vuelcan las televisiones,
abundantes tras la ley que permitía la aparición de cadenas privadas: algunos
por insano morbo y puro chismorreo, por rellenar programas, otras con mayor
sentido de la ecuanimidad informativa.
La creación de zonas que la prensa denomina como barrios gays, sobre
todo Chueca, en Madrid y el Gaixample, en Barcelona, atrae la curiosidad de
propios y extraños. Ya no se trata sólo de locales de ocio sino de todo tipo de
establecimientos pensados para una comunidad abierta y plural en donde se
ofrecen distintos servicios sin dejar de lado el componente comercial. Señalo
como un lugar que ayudó a diversificar el carácter del barrio la apertura de la
librería gay-lésbica-trans Berkana, en Madrid.
Chueca fue denominada “Centro de Recuperación de una Autoestima
Dañada”, según Ricardo Llamas y Paco Vidarte, que habría que extender a
todos los rincones de la ciudad.
La segunda mitad de los 90 y principios del siglo XXI se produce una
sobreexposición mediática de gays, lesbianas y transexuales, al decir de Beatriz
Preciado, autora del Manifiesto Contrasexual. Prácticas Subversivas de
Identidad Sexual (2002), lo cual no significa que no haya muchos aspectos de
las sexualidades minoritarias que sigan ignorándose, especialmente la de los
sectores más inconformistas. No todos los gays, lesbianas, transexuales o
personas transgénero aspiran a la respetabilidad que supuestamente otorga
el matrimonio como modelo exclusivo de vida y organización familiar o de pa-
reja. Tampoco la normalización, desde una perspectiva queer, es un concepto
que todo el mundo comparte.
52
Juan Vicente Aliaga
No se ha hecho ningún estudio sobre el impacto que las producciones
cinematográficas y televisivas han podido tener entre la población a la hora
de modificar su percepción de la homosexualidad. Tema complejo y espinoso
donde los haya pero estoy convencido que series españolas como Aquí no hay
quien Viva, o el desfile de parejas homosexuales en distintos programas
televisivas dejan su poso aunque prime el amarillismo y la información
sesgada. La presencia en la televisión de presentadores y personajes famosos
(Boris Izaguirre, Jesús Vázquez) o de personalidades como el juez Fernando
Grande Marlaska, sin duda ha contribuido al proceso de normalización. Las
clases medias españoles han ido acostumbrándose a apariciones, fugaces o no
de sujetos reales o de ficción ajenos a la ortodoxia heterosexista.
Un aluvión de películas de interés dispar y desigual también ha podido
contribuir. Cito algunas: Más que Amor Frenesí, 1996, de David Menkes;
Sobreviviré, de Menkes y Albacete; Perdona Bonita pero Lucas me Quería a
mí, 1997, de Dunia Ayaso y Felix Sabroso; Amic/Amat, de Ventura Pons, 1999;
Cachorro, 2004, de Miguel Albaladejo; Costa Brava, 1994, de Marta Balletbó-
Coll (una de las escasísimas incursiones lésbicas que tuvo poca repercusión);
y por supuesto algunas producciones norteamericanas (Brokeback Mountain,
2005) y europeas.
La victoria en 2004 del PSOE supuso la aceleración de un conjunto de
reformas sociales. Rodeado de un influyente grupo de asesores entre los que
se contaban algunos representantes del movimiento LGBT (Pedro Zerolo) y de
mujeres feministas, el presidente Zapatero, aunque con alguna vacilación y
rectificación (no parecía muy convencido de que la adopción de niños por par-
te de parejas de gays y lesbianas fuese posible, como confesó a la revista Zero),
fue un convencido impulsor de la ampliación de derechos que en nada per-
judican a quienes ya disfrutaban de ellos. Sin duda, el mérito de la aprobación
del matrimonio gay, como se le llama en la prensa, a él se le debe en parte, a
sabiendas de que contaba con el respaldo de otros grupos políticos en la
cámara (Izquierda Unidad, Esquerra Republicana de Catalunya, BNG…).
Esta conquista social no se ha logrado de la noche a la mañana y sin
oposición. Una de las derechas más arcaicas y beatas de Europa, con el res-
53
¿Peligrosos y Normales?
paldo mediático de la emisora de los obispos y de muchos grupos ultracató-
licos ha dado la batalla en las calles y en otros espacios públicos.
Transcurridos tres años el PP no ha aflojado su presión moralista
(mantiene un recurso de inconstitucionalidad contra la denominación de
matrimonio homosexual) y se opone con uñas y dientes a la asignatura de
Educación para la ciudadanía, que se está implantando, poco a poco en los
institutos, en la que se imparten conceptos como igualdad entre mujeres y
hombres, el respetoa la diferencia, la crítica a la homofobia y al racismo.
Además, la persistencia de la homofobia no es una entelequia sino real
y durará muchos años todavía. Se palpa en los institutos, en la calle, en los
insultos de muchos machitos de turno, en la esfera del fútbol y del motoci-
clismo y de la Fórmula I, en las reacciones jurídicas de algunos magistrados
como los que se niegan a casar a parejas homos, en el lenguaje, en las exclu-
siones, en las mofas…
Ser marica, bollera o trans no está en la lista de cosas que se consideran
deseables en nuestra sociedad. No es un modelo fomentado por el sistema
educativo, que se presente como apetecible desde posiciones “objetivas” o de
autoridad, ni por los principales discursos culturales o institucionales.
Ser hetero sigue siendo infinitamente preferible. Y muchos homos, les-
bianas y trans españoles que viven en pueblos se ven empujados a emigrar
todavía hoy.
Aunque ha desaparecido la persecución de los 70 y la violencia extrema
y hay mucha más visibilidad (sobre todos de gays), y se ha progresado verti-
ginosamente en materia de derechos (la ley de identidad de género es mani-
fiestamente mejorable pues los trans siguen considerados enfermos al tener
que demostrar que quieren una reasignación de sexo ante un psiquiatra como
si la mal llamada disforia de género fuese un capricho), las estructuras homó-
fobas, lesbófobas, tránsfobas y heterosexistas siguen en su sitio. No conviene
pasarlo por alto. La lucha por la diversidad sexual continúa.
55
Homocultura & Política Homossexual no Brasil:
do Passado ao Por-vir
JOÃO SILVÉRIO TREVISAN
De um ponto de vista histórico comparativo, resulta muito revelador esta-
belecer um paralelo entre os primórdios dos movimentos americano e
brasileiro na luta pelos direitos homossexuais. As diferenças são muitas e, por
vezes, gritantes – já pelo fato de que o Gay Movement americano foi desbra-
vador e o Movimento Homossexual brasileiro veio quase a reboque de prece-
dentes internacionais. No caso americano, já de saída, salta aos olhos a busca
e consecução de um discurso próprio. No caso brasileiro, percebe-se a inexis-
tência (e mesmo despreocupação) de um discurso específico da homocultura,
que se continua tateando até hoje. Trata-se de um detalhe fundamental, que
revela o caráter específico de cada um dos movimentos e sua articulação em
relação a políticas homossexuais. Para compreender melhor esse dado, é pre-
ciso contextualizá-lo.
Autonomia política
O elemento que deflagra as especificidades em ambos os casos é jus-
tamente a diferença de autonomia política entre os ativismos americano e bra-
sileiro. Em ambos os casos, o nascimento e características de uma consciência
homossexual adveio da relação com as esquerdas de cada país. Nos Estados
Unidos, os setores progressistas trabalhavam com uma postura mais tolerante
e menos centralizadora. Talvez por existir nos Estados Unidos um partido
56
João Silvério Trevisan
comunista mais frágil, a chamada new left americana dos anos 1960 resultava
num conglomerado de pequenas agremiações descentralizadas que, ao mesmo
tempo, articulava-se como uma rede de vasos comunicantes formada pela
contracultura, dentro da qual se aglomeravam diferentes matizes de socia-
listas democráticos e marxistas (trotskistas, inclusive), anarquistas, hippies,
pacifistas, militantes dos direitos civis, ativistas negros e feministas. Isso se
refletiu num movimento homossexual menos centralizado em grupos e nomes
carismáticos. Já a eclosão do movimento, no bar Stonewall Inn de Nova York,
em 28 de junho de 1969, refletia essas características: ausência de lideranças
fortes e, em contrapartida, farta participação popular, considerando que a
revolta contra a polícia foi iniciada espontaneamente pela população homos-
sexual proletária e de classe média baixa que frequentava o local. A partir daí,
alastrou-se por todo o país um movimento homossexual nascido das bases:
as consciências individuais vinham somar-se dentro do coletivo e não diluir-
se em detrimento de um líder ou de uma organização. Com isso, a comuni-
cação entre a comunidade e suas eventuais lideranças era muito mais direta.
Frequentemente, as ações liberacionistas nem precisavam de grupos agre-
gadores. A voz dos indivíduos homossexuais fazia-se ouvir num modo poli-
fônico. Quando havia necessidade de porta-vozes, os/as representantes não
marcavam distância profunda com os/as representados/as. Evidência disso
é o boicote da comunidade a produtos e empresas ligadas a algum fator dis-
criminatório. Em inúmeros casos, essa pressão verdadeiramente popular con-
seguiu mudar situações e atitudes.
No caso do Brasil, desde o início as esquerdas se nuclearam em torno
de partidos centralizadores, autoritários e rigidamente organizados, geral-
mente ao estilo stalinista. A manipulação dos extratos populares, via lideran-
ças, tornou-se prática usada e propugnada pelos comitês centrais dos partidos,
o que no limite distanciava a população do debate político, cujos termos eram
estipulados e definidos de cima para baixo. Essa tradição migrou para o
movimento homossexual brasileiro, praticamente desde o início, com predo-
minância de ativistas de classe média, distanciados da grande massa homos-
sexual e sem real representatividade. Os grupos locais e as entidades asso-
57
Homocultura & Política Homossexual no Brasil
ciativas GLBT tornaram-se feudos, frequentemente disputados por partidos e
tendências políticas de esquerda. Nesse contexto, proliferaram lideranças
baseadas em centralismo, disputa de poder, autoritarismo e personalismo
(quando não, puro estrelismo, de olho na mídia). Em vez da pressão por mo-
bilização comunitária, preferiu-se a estratégia dos lobbies instalados nos
corredores do poder central, de modo que poderes locais se prevaleceram de
uma somatória de poderes em níveis mais altos, para chegar à proposição de
leis e de políticas homossexuais. Com frequência, lideranças homossexuais se
tornaram funcionários/as de governos e partidos, neste último caso funcio-
nando como correias de transmissão partidária. Quando entraram em cena
financiamentos governamentais para os direitos homossexuais ou para a luta
antiaids (ameaçando perpetuar a associação da doença à prática homosse-
xual), então se configurou um quadro perfeito para as disputas dentro do
movimento liberacionista GLBT. A solidariedade, que deveria ser a base dos
movimentos sociais, acabou sobrando apenas para as situações em que o
inimigo externo comum (a homofobia) exige algum tipo de união circuns-
tancial. Em última instância, a dependência governamental e/ou partidária
provocou a ausência de autonomia política – ainda que muitas vezes disfar-
çada em congressos e seminários supostamente organizados pelas lideranças
GLBT, mas constrangedoramente convocados e financiados por órgãos gover-
namentais, como se tem visto nos últimos anos. Com o tempo, políticas go-
vernamentais adquiriram autoridade para traçar não só programas e estra-
tégias como também impor mudanças e prioridades na própria linguagem. Foi
nesse sentido que, no quadro da luta antiaids, ainda no governo de Fernando
Henrique Cardoso, o Ministério da Saúde tentou implantar o conceito de
“homem que faz sexo com homem”, supostamente para “evitar” o estigma de
outros termos considerados menos nobres, como “homossexual”. Pode-se
entender, assim, como o discurso da militância homossexual frequentemente
acabou se confundindo com o discurso oficial, já que na prática sua especifi-
cidade como movimento social se mostrava dispensável, para não dizer des-
prezível. Evidência disso é o servilismo renitente das lideranças GLBT frente aos
comitês partidários mais progressistas que apoiam os direitos homossexuais.
58
João Silvério Trevisan
Para ficar num só, entre inúmeros exemplos, durante a gestão da prefeita
petista de São Paulo, Marta Suplicy (entre 2000 e 2004), a subserviência che-
gou ao ponto de, muitasvezes, lideranças do ativismo GLBT negarem as neces-
sidades específicas da comunidade homossexual em nome das prioridades
definidas pelo partido. No período, um líder militante desculpava publicamen-
te o descaso da prefeita de São Paulo frente às questões da comunidade GLBT,
brandindo o argumento de que ela “não pode governar só para os gueis” –
argumento falacioso que até então só se ouvira da boca de heterossexuais sem
consciência dos direitos homossexuais.
No caso brasileiro, a contumaz ausência de autonomia política foi se
refletir também na produção intelectual, fato que impediu uma maior elabo-
ração conceitual e acabou retardando em muito abordagens de viés homocul-
tural. Isso se evidencia, por exemplo, na inexistência quase sistemática, em
pleno século XXI, de núcleos ou departamentos de estudos homossexuais em
nossas universidades – ao contrário de universidades europeias e americanas,
que em inúmeros casos possuem programas avançadíssimos nessa área há
quase duas décadas. De um lado, a consciência política homossexual, no
Brasil, reduziu-se a importar seus referenciais das esquerdas locais. De outro
lado, quando precisou de ferramentas para análise da realidade homossexual,
o ativismo GLBT brasileiro não teve alternativa senão pedir socorro inter-
nacional, acabando por se contentar em importar ideias nem sempre acor-
dantes à situação brasileira. Nada a estranhar, portanto, que a ausência de
uma produção intelectual autóctone tenha levado, em inúmeras circuns-
tâncias, à mera implantação de modismos conceituais que nem sequer em-
butiam uma adaptação (fosse ela uma mera tradução) adequada à realidade
GLBT do país. A adoção automática de vocábulos de referências tão díspares
quanto, por exemplo, gay, aids, queer, pride, bareback, advocacy e a atual
guerra por primazia entre as letrinhas G, L, B e T (sem solução à vista) são ape-
nas sintomas da parca profundidade de nossa elaboração conceitual e de como
nos colocamos a reboque de soluções mecanicamente impostas.
59
Homocultura & Política Homossexual no Brasil
Política homossexual e homocultura
A partir desse resumo histórico analítico, pode-se fazer a pergunta
primal para uma prospecção sobre o porvir: em que sentido a elaboração de
políticas homossexuais verdadeiramente representativas poderá alimentar
uma homocultura expressiva – e vice-versa? Antes de tudo, é preciso dizer que
existe aí um claro movimento de interação, em que políticas homossexuais e
homocultura se refletem mutuamente, como num espelho. Por outro lado, o
gesto de criar cultura a partir da experiência homossexual é o mesmo que
impele à elaboração de políticas específicas. Resguarde-se que, tanto num caso
quanto no outro, a voz desejante é que toma seu espaço e floresce, num entor-
no de parcas elaborações, considerando-se que até hoje a homossexualidade,
quase sem exceção, vem sofrendo sob sistemas repressivos, em diferentes
graus e circunstâncias. Daí o inevitável ineditismo dos muitos fenômenos
sociais e culturais que cercam uma comunidade de cidadãos e cidadãs até en-
tão tratada como se fosse invisível, quer dizer, ignorada. Como exemplo em-
blemático dessa invisibilidade, pense-se no Carnaval e sua histórica relação
com o travestismo, que por sua vez remete a sintomas homoeróticos, e suas
inflexões nos mais diversos contextos socioculturais. Na melhor das hipóteses,
o Carnaval tem sido visto como um pecadilho de três dias, quando sua expres-
sividade cultural amplia os limites homoeróticos no espaço heteronormativo
e deveria constituir um referencial de primeira grandeza para análise do fenô-
meno homocultural como um todo.
Inúmeras vezes, a sensação que se tem é de começar essas elaborações
do zero – mesmo quando haja inúmeros sinais contrários. A carência de
conceitos expressos e canais expressivos cria uma situação de urgência ímpar,
graças à qual ser homossexual implica elaborar-se individualmente, ao mesmo
tempo em que se elabora seu entorno social. Trata-se de uma experiência que
se poderia chamar de autêntica androginia cultural: homossexuais somos
obrigados a exercer os papéis de aprendizes autodidatas e simultaneamente
de pedagogos de seu meio, tornados agentes e pacientes, ativos e passivos. Se,
por um lado, aprendemos por nós mesmos a explorar contextos historica-
60
João Silvério Trevisan
mente inéditos no território do desejo, por outro lado somos obrigados a siste-
matizar de algum modo essa implementação inédita e assim “ensinar” a socie-
dade a ver e ouvir a legitimidade de uma nova evidência social, à medida que
se vão constelando os vários aspectos de uma cultura homossexual. Ser ho-
mossexual é ser, concomitantemente, filho e pai de si mesmo.
Nesse complexo quadro vivencial de necessidades e urgências, pode-se
compreender como o círculo vicioso da falta de representatividade das lideran-
ças precisa ser rompido para que a comunidade homossexual brasileira tenha
finalmente voz autônoma que lhe permita adquirir uma dimensão política
fundamental à sobrevivência do desejo e seus múltiplos desdobramentos,
inclusive culturais. Só através desse duplo movimento em que se entroncam
representatividade e autonomia é que se poderá abrir espaço para uma elabo-
ração homocultural e, ato contínuo, poder sistematizar políticas de acordo com
a realidade homossexual expressa nas e pelas elaborações homoculturais.
A dimensão política da experiência homossexual precisa coincidir com
a criação de um projeto de sociedade na qual cidadãos/ãs homossexuais
caibam com suas diferenças e novidades, em todos os sentidos. Aí se devem
incluir fatores diversificados. Primeiro, políticas públicas que contemplem as
necessidades da comunidade homossexual, no sentido de atingir os pres-
supostos de uma sociedade democraticamente representada. Esse projeto
deve incluir também a autonomia da comunidade homossexual se organi-
zando em esquemas autossustentáveis, como a criação de redes de solidarie-
dade e comunicação (inclusive na Internet). Mais ainda: deve ampliar o espaço
para estudos homossociais e homoeróticos, cujo exemplo mais significativo é
a ABEH. Nesse sentido, urge criar canais para publicação e escoamento da cada
vez mais ampla produção de pesquisas e estudos de abordagem homoerótica
ou queer, seja através de revistas físicas, seja através de sites na Internet.
Acrescente-se ainda a necessidade de mapear os modos de homocultura nas
diversas regiões brasileiras, o que inclui o resgate da memória GLBT do país,
por meio de registros audioimagéticos. E assim se seguirá um longo et coetera.
Neste ponto, recorro ao testemunho de minha longa experiência como
ativista dos direitos homossexuais, pela qual venho sempre pontuando a
61
Homocultura & Política Homossexual no Brasil
necessidade e características libertárias de uma política homossexual. Olhan-
do para o passado, a fim de iluminar o presente, ouso dizer que será preciso
resgatar práticas dos primórdios do grupo Somos-SP, para de seus lamen-
táveis escombros resgatar a ideia de autonomia dos movimentos sociais. A
autonomia política era um ponto chave, corolário da orientação libertária do
grupo, que nos guiava de modo soberano, no período inaugural do movimento
brasileiro pelos direitos GLBT. O foco dominante era nosso repúdio a porta-
vozes que secularmente tinham nos “representado” e interpretado – fossem
eles padres, psiquiatras, juízes e acadêmicos no passado, ou partidos e
lideranças no presente. Nossa compreensão era que se tratava de “usurpa-
dores” que vinham usurpando as vozes individuais e ocupando indevidamente
o lugar dos sujeitos de suas próprias histórias. Já em sua estrutura, o grupo
Somos-SP se organizava nessa direção. Para evitar lideranças catapultadas por
carisma ou por jogadas políticas, elegiam-se representantes dentro de cada
subgrupo de trabalho, que iam compor o coletivo diretor do grupo. Mais ain-
da: a cada três ou quatro meses, fazia-se uma reciclagem de poder, renovandoesse coletivo. Havia dentro do grupo uma constante preocupação política de
diluição do poder – a partir, inclusive, do conceito (já então disseminado) de
micropoderes, de Michel Foucault. Um dos termos discutidos e rejeitados era
o chamado gay power, muito em voga no final dos anos 1970 e começo dos
1980. Acreditávamos que a concentração de poder começava pela delegação
de poderes individuais. Portanto, considerávamos repugnante substituir um
poder por outro, ainda que fosse pretensamente um “poder de dentro” – o que
nos parecia um impedimento para diluir ao máximo os poderes e para manter
a condição de sujeito desejante – dentro da comunidade homossexual. O
embate fatal ocorrido dentro do Somos foi justamente entre essa corrente, que
postulava uma inovadora prática libertária/autonomista, e outra corrente,
que buscava a tradicional centralização do poder em torno de um partido
político aliado – que, no caso, foi o recém-fundado Partido dos Trabalhadores,
ao qual o Somos se alinhou e dentro do qual acabou desaparecendo.
62
João Silvério Trevisan
Políticas homossexuais e novas práticas políticas
Esse embate iria marcar o percurso e as características do movimento
GLBT no Brasil, com a consolidação do alinhamento partidário que inúmeros
militantes consideravam fundamental para a consecução democrática dos
direitos homossexuais. Mas cabe aqui a pergunta óbvia, ainda que raramente
feita: seria possível implementar políticas homossexuais só através dos
partidos, delegando a eles a tarefa e o poder de lutar contra injustiças sociais?
Claro que não. Caso contrário a sociedade civil seria mera espectadora da cena
política e os movimentos sociais se tornariam dispensáveis, ao serem coopta-
dos – como tem acontecido algumas vezes, quando partidos de esquerda to-
mam o poder democraticamente. Nesse caso, apesar das aparências, esta-
ríamos beirando um quadro de ditadura política, pela concentração de poder
e manipulação das massas. Ao contrário da opinião disseminada, sobretudo
entre as esquerdas ortodoxas, é preciso admitir que partidos não são a única
maneira de fazer política. Basta verificar a decadência das ideologias mani-
queístas que dividiam os partidos entre progressistas e conservadores. Muito
além dos rótulos antigos, hoje o que se vê são partidos, supostamente de dife-
rentes cores, agindo cada vez mais parecidos entre si. Podem até apresentar
um discurso específico, mas sua prática acaba caindo na vala comum em que
as ideologias alardeadas morreram. Isso tem ficado claro na gestão petista do
governo federal, com paradoxos assustadores em relação àquilo que o partido
prometia antes de chegar ao poder. Por um lado, a partir da derrocada dos
sistemas comunistas, vem ocorrendo uma fragmentação ideológica e diver-
sificação das lutas sociais que os partidos políticos não conseguem mais acom-
panhar. Por outro lado, novos movimentos sociais começam a surgir como
viveiros de ações políticas inéditas, independentemente e até contra orien-
tações partidárias. Basta lembrar os movimentos antiglobalização que mar-
caram época em todo mundo a partir dos anos 1990, com sua determinação
combativa e espontaneidade organizativa, impulsionados pela indignação
política de cidadãos/ãs comuns.
63
Homocultura & Política Homossexual no Brasil
Faz-se premente a necessidade de inventar novas maneiras de fazer
política, para rejeitar os métodos consagrados e já ultrapassados na política
ortodoxa. Caso contrário, corre-se o risco de implantar na política homosse-
xual os mesmos lemas que norteiam tendências, como o malufismo, com seu
“rouba mas faz” e “estupra mas não mata”. Isso ocorre sempre que se pratica
a perigosa orientação de que “os fins justificam os meios”. No interior do movi-
mento GLBT têm ocorrido inúmeros casos que evidenciam como a capacidade
de manipulação por parte das velhas lideranças está sendo confundida com
perspicácia política. Lideranças GLBT surgidas na década de 1990 viveram uma
contradição entre o atrevimento e a autossabotagem: mesmo diante de ativi-
dades coletivas (como paradas GLBT), muitas vezes cultiva-se a ideia da visibi-
lidade ao mesmo tempo em que se castram potenciais expressões individuais,
graças ao gargalo estreito da própria militância homossexual.
Para tanto, alguns pontos devem ser considerados. É fundamental
romper o círculo vicioso da centralização das lideranças, que leva a seu iso-
lamento, que por sua vez provoca o esvaziamento dos grupos liberacionistas
e a pequena participação de sujeitos outros – tendo como corolário final a fra-
gilização política da comunidade GLBT em si. Para tanto, será preciso que
surjam novos tipos de liderança, mais conscientes de seu papel solidário, no
sentido de modificar o padrão de grupos centralizados em torno de líderes
caudilhescos – que já cumpriram sua função na história do movimento GLBT
brasileiro e foram atropelados pelos fatos. Enquanto houver líderes de pre-
sença centralizadora, o espaço da comunidade tenderá a encolher e, portanto,
será mais medíocre a consciência política coletiva. Com base em experiências
anteriores, é preciso reinaugurar o projeto de representatividade através de
diretoria colegiada, com porta-voz rotativo. Também contam políticas de
visibilidade efetiva, que se abram para a comunidade e privilegiem um ativis-
mo amplo e irrestrito. Nessas propostas de renovação, algumas providências
práticas podem ser tomadas. Destaco a importância de criar cursos de capa-
citação de novos ativistas GLBT – projetos que podem ser levados a cabo pelas
coordenadorias GLBT e entidades de direitos humanos, dentro ou fora do poder
público, visando às necessidades da comunidade homossexual.
64
João Silvério Trevisan
Hoje, felizmente, já existem exemplos concretos de políticas públicas
voltadas para a comunidade GLBT, assim como importantes precedentes
criados nas instâncias jurídicas. Mas, dentro dessas políticas públicas, é pre-
ciso criar espaço institucional específico para implementar programas de
política homossexual voltados para várias áreas carentes. Assim, é preciso pro-
jetos de política anti-homofóbica na área da educação – atingindo escolas,
polícias e serviços públicos, entre outros. Na área da saúde, é preciso ir muito
além dos programas antiaids, para elaborar políticas que atendam mais direta-
mente à comunidade homossexual – por exemplo, focando no problema social
dos/as adolescentes homossexuais, dos michês e das travestis. Em relação às
mídias, é preciso acionar o Judiciário ou utilizar as leis antidiscriminatórias
já existentes para se contrapor à difamação da homossexualidade nos órgãos
noticiosos – como já aconteceu em relação à Rede TV, em 2003, exemplar-
mente punida pelo Ministério Público Federal, por ridicularizar homossexuais
no programa de João Kleber. E, por último, mas não menos importante, ela-
borar projetos públicos e privados que visem ao combate da discriminação nos
locais de trabalho.
Conclusão
De qual política se está falando? Antes de mais nada, trata-se de romper
o círculo vicioso da inclusão que leva à diluição. Como sermos socialmente
incluídos sem perder nossa capacidade de transformar? No atual momento de
articulação democrática, em que já se iniciou a implementação de políticas
GLBT, o movimento pelos direitos homossexuais encontra-se na encruzilhada
entre o mercado e as razões governamentais ou partidárias. Tem diante de si
duas alternativas: a subserviência ou as alianças. Isso quer dizer que continua
palpitante a questão da autonomia política. Em outras palavras: integrar-se
ou desintegrar? Tal dicotomia precisa ser rompida. Somos parte da sociedade
e precisamos de alianças/parcerias para conquistar nossos direitos. Portanto,
a única possibilidade de sobrevivência de nosso desejo é nos integrar para
65
Homocultura & Política Homossexual no Brasil
poder manter nosso potencial desintegrador da injustiças contra o amor – em
relação tanto ao Estado quanto aos partidospolíticos. A partir daí, conquistar
espaço social para que nosso desejo ultrapasse os parâmetros culturais impos-
tos para freá-lo. Governos e partidos aliados têm que assumir definitivamente
que “a problemática homossexual é uma poderosíssima metáfora dos direitos
humanos nas décadas futuras”, conforme as palavras da socióloga Sílvia
Ramos. Aí está nosso ponto identitário básico: a luta pelo direito humano de
amar. Tenho convicção de que a participação transformadora da comunidade
GLBT na vida social, com suas potencialidades disruptivas, poderá ser um
instrumento para desintegrar os velhos vícios que oprimem o nosso amor e
também outras questões relacionadas à subjetividade em si. A partir da expe-
riência de discriminação que sofremos, nós homossexuais podemos transfor-
mar em objetivo político a arte de aceitar as diferenças. Trata-se de uma uto-
pia, no sentido de um sonho irrealizável? Obviamente não. Trata-se tão-
somente da nossa capacidade de alavancar a subversão desejante, na busca de
um mundo melhor e mais democrático. Que não se menospreze a força do
desejo, capaz de mover montanhas.
67
1. Universidade de São Paulo.
Direitos Humanos e Estudos Gays e Lésbicos:
O que Nós e Michel Foucault Temos
a Ver com Isso?
MÁRIO CÉSAR LUGARINHO1
Em tempos de crise do processo de globalização, que até há alguns meses
poderia ser qualificado como incontornável e irreversível, o tema dos direitos
humanos ganha força para além das formações discursivas em que se apoiou
nas últimas seis décadas. A genealogia do tema confronta-nos com a história
da humanidade, na medida em que pode ser traçada desde antes da revolução
de 1789, ao serem requeridas como seus antecedentes o direito romano e as
grandes religiões do oriente, como o hinduísmo, o judaísmo, o budismo, o cris-
tianismo e o islamismo. Em todos esses momentos da história da humanida-
de, a dignidade humana foi colocada acima de qualquer outro preceito, es-
tabelecendo formas de convivência seguras e pacíficas para as diversas
comunidades.
No entanto, é importante deixar claro que entre a Declaração dos Direi-
tos do Homem e do Cidadão, que data de 26 agosto de 1789, e a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, adotada como a carta maior das Nações
Unidas, pela Resolução nº 217 da Assembleia Geral, em 10 de dezembro de
1948, encontra-se um imenso terreno pleno de eventos e transformações
históricas que não nos cabe arrolar neste pequeno espaço. Vale apenas assi-
nalar que a declaração francesa era composta por dezessete princípios que
norteariam a organização do novo Estado revolucionário francês. A Carta da
68
Mário César Lugarinho
ONU, como ficou conhecida, em contrapartida, passou não apenas a reger as
relações inter-Estados, mas também a organização interna dos Estados
membros da ONU, na medida em que a promoção da dignidade humana, após
o terror da Segunda Grande Guerra, teria o reconhecimento mútuo das nações
como o princípio gerador dos Estados. Contudo, e por isso tudo, o tema dos
direitos humanos tornou-se discurso e moeda de troca entre a instituição
“Estado” e a própria humanidade2.
O consenso internacional a respeito da legitimidade do tema dos direi-
tos humanos é hoje, mais do que nunca, moeda de troca (Mullins, 2005). Seja
quando esses direitos são invocados para justificar a intervenção internacional
na política interna de um Estado, seja quando são invocados por movimentos
de resistência àquelas intervenções. Justificam, sustentam, garantem, supor-
tam, avalizam ou simplesmente detonam reações internacionais às mais
diversas e contraditórias causas, desde a independência do Timor Leste à
invasão do Iraque, demonstrando que a humanidade não compôs a seu res-
peito um solo comum no qual o discurso em torno do tema dos direitos huma-
nos poderia deitar raízes.
Contemporaneamente, após seis décadas desde sua promulgação, o dis-
curso e a ação relativos aos direitos humanos tornaram-se um traço central da
globalização. Greg Mullins sublinha que muitos partidários da globalização
econômica alegam que mercados livres levarão a sociedades livres, e que o res-
peito pelos direitos humanos aumentará nessas sociedades. Mullins assinala,
ainda, que os críticos respondem que a globalização econômica corrói direitos
humanos fundamentais, e que deveriam ser garantidos pelos Estados sobera-
nos, tais como o direito à educação, saúde, moradia, emprego, um meio am-
biente limpo, o direito à livre expressão e à livre associação em sindicatos tra-
balhistas. Em contrapartida, alguns ativistas antiglobalização usam a força da
linguagem dos direitos humanos para resistir à privatização, proteger o meio
2. Um dos diversos casos paradigmáticos foi a ação do Estado português, que, em 1951, visando
a atender às disposições da Carta da ONU, passou a denominar o Império colonial português de
“províncias ultramarinas”, numa desesperada tentativa de preservá-lo ao alçar seus territórios
coloniais à categoria de espaço nacional.
69
Direitos Humanos e Estudos Gays e Lésbicos
ambiente, exigir transparência e prestação de contas dos Estados e das corpo-
rações, e para reivindicar o direito de organização sindical. O autor conclui que,
por esse ponto de vista, os direitos humanos são uma tática usada para promo-
ver a “globalização vinda de baixo”. Por outro lado, outros ativistas antigloba-
lização entendem que os direitos humanos são uma parte do problema, já que,
para eles, o discurso dos direitos humanos está demasiado ligado à ideologia
liberal dos Estados ocidentais – os mesmos Estados que promoveram vigoro-
samente as políticas econômicas neoliberais que provaram ser devastadoras às
populações vulneráveis de todo o mundo. Desse modo, as demandas ocidentais
por democracia e direitos humanos são uma forma de imperialismo cultural
que dá um verniz moralista (e hipócrita) ao imperialismo político, econômico
e militar, tal como se verificou no alvorecer do século, quando os Estados Uni-
dos invadiram, sem consenso internacional, o Estado soberano do Iraque.
Apesar de toda essa discussão, no entanto, a efetivação evidente de uma
política interna que promova os direitos humanos no interior dos Estados, e o
modifique de maneira que atenda às necessidades de seus cidadãos, ainda é
fato passível de dúvida para a maior parte das nações. Poucos Estados, ou cer-
tamente nenhum, poderão ser apontados como aqueles que cumpriram sua
parte no desenvolvimento de uma política que promova a dignidade humana
em todos os seus matizes. Mesmo se pensarmos nas nações mais ricas do pla-
neta, como acentua Mullins, observaremos que faltam políticas claras para a
recepção de populações oriundas de movimentos de emigração ou para outras
formas de minorias que não comungam imediatamente dos ideais de homoge-
neização que se encontram no cerne da formação do Estado-nação moderno.
Porque certo é que, enquanto o modelo de Estado estiver calcado no modelo da
nação homogeneizada e identificada por etnias ou por certas práticas culturais,
haverá a exclusão de indivíduos e grupos de seus direitos fundamentais.
Nos tempos em que vivemos, de um Estado democrático de direito,
padrão internacional que atende tanto às demandas do capital quanto às
sociais e individuais humanas, um senso de justiça se espraia para além dos
aparatos políticos e encontra na própria sociedade e no indivíduo o suporte
natural. Mas é preciso ter em conta que aqui também nos defrontamos com
70
Mário César Lugarinho
atitudes e perspectivas contraditórias, incapazes de estabelecerem uma dire-
triz segura para a convergência de interesses. Daí a constituição de grupos so-
ciais organizados que buscam a legitimação de suas demandas, notadamen-
te por justiça, na medida em que o conceito político de cidadão se confundiu,
decididamente, com o conceito de indivíduo. Assim, qualquer grupo orga-
nizado, em torno de uma demanda comum, pode requerer à sociedade e ao
Estado seu estatuto de reconhecimento, eestabelecer políticas claras que
atendam às suas aspirações, agora, legítimas.
No entanto, por nos inserirmos na instituição universitária, na qual a
crítica literária parece se desenvolver de maneira autônoma à série social, é
preciso constituir uma reflexão que se desenvolva bem além da experiência
cotidiana e do senso comum que envolvem os discursos.
A cultura, espaço macroestrutural em que se movem os discursos
cambiantes a respeito dos direitos humanos, urge um maior comprometi-
mento e uma sinalização para as contradições que engendram os equívocos
discursivos e ações que violentam sobremaneira quaisquer esforços de promo-
ção da dignidade humana. Sem sombra de dúvidas, é preciso assinalar que o
engajamento neste esforço não poderá ser desqualificado por quaisquer dis-
cursos que se oponham a um comprometimento das forças promotoras da
cultura em nome de algum valor estético destituído de sentido. A arte pela arte
só poderá ser compreendida como momento de experimentação e invenção
de procedimentos capazes de libertar os sentidos das forças conservadoras que
o aprisionam na manutenção do status quo.
Dessa maneira, quando a arte, em geral, e a literatura, em especial,
promovem um sentido calcado na dignidade humana, podemos observar, com
os mecanismos possibilitados por uma crítica destituída de pudores, que se
está levando ao centro da discussão, sobretudo, a capacidade de a obra gerar
algum sentido que retorne a seu receptor, de maneira que ele se veja confron-
tado com as estratégias de silenciamento de sentidos que forças dominantes,
comprometidas com o status quo, são capazes de levar a cabo. Assim, é pos-
sível se ler, ao mesmo tempo, em Os Lusíadas, por exemplo, tanto o canto de
louvor à conquista do Império, quanto à sua crítica, tanto o canto da violência,
71
Direitos Humanos e Estudos Gays e Lésbicos
quanto o canto da brandura, deixando clara a inerente contradição humana
e a perseguição pela felicidade.
Assim, invocamos o Saint Foucault, de David Halperin (1986), para
podermos realmente observar como a obra de arte literária, e principalmente
a sua crítica, podem e devem se confrontar com o engajamento claro, sem os
pudores que envolveram a crítica nos últimos anos. Recordo aqui a querela
entre modernos e pós-modernos, entre estruturalistas e culturalistas, entre a
tradição e a vanguarda, de maneira que os embates teóricos simplesmente
silenciavam demandas legítimas de grupos que ansiavam por formas de
representação no estatuto literário.
Carecemos no Brasil de reflexão acadêmica mais extensa que dê suporte
aos movimentos sociais, demonstrando o claro divórcio entre a universidade,
espaço privilegiado para o desenvolvimento de um pensamento crítico a
respeito da sociedade, e os movimentos sociais, capazes de alavancarem as
transformações políticas, sociais e culturais por eles almejadas. Muitos moti-
vos podem ser arrolados para tanto, mas, certamente, do lado da crítica lite-
rária, o divórcio é resultado do apego à tradição e do desprezo pela ousadia
do contemporâneo.
A recepção da obra de Michel Foucault no Brasil introduziu-o no circui-
to canônico das ciências humanas, porquanto a pedra de toque de seu pensa-
mento teria sido sua revisão destas mesmas ciências. Não se trata de discor-
dar ou concordar, mas de observar que nos faltou uma dimensão mais ampla,
mais social e politicamente engajada do pensamento de Foucault. Talvez nos
tenha faltado sua dimensão mais apropriada de historiador do presente, como
queria Antoine Griset (1986), de pensador da contemporaneidade.
Michel Foucault, o historiador do presente, revela-se como um manan-
cial de instrumentos para a crítica de nossa sociedade e de nossa cultura
contemporâneas, seja na revisão de Toni Negri e Michael Hardt (2000), seja
na própria perspectiva de David Halperin (1986), que é a que mais nos inte-
ressa, na medida em que reinvindica o pensamento de Foucault tanto para o
desenvolvimento dos estudos gays e lésbicos na universidade norte-americana
quanto para o movimento homossexual norte-americano.
72
Mário César Lugarinho
Halperin assinala a importância fundamental que a História da Sexua-
lidade, I – A Vontade de Saber desempenhou para os ativistas homossexuais
na luta pela vida diante da epidemia de aids nos Estados Unidos. A instru-
mentalização do conceito de poder, entendido não como uma relação unívoca
entre o opressor e oprimido, mas como o que caracteriza as relações comple-
xas entre as partes de uma sociedade e a interação entre indivíduos de uma so-
ciedade, através de ações radicais como o Act up3, foi mais eficaz política e
socialmente para mudar a atenção por parte do Estado norte-americano à
epidemia de aids do que talvez toda a discussão a respeito da morte do sujeito,
que custara às universidades, nos anos 1970, inúmeras páginas de artigos, te-
ses ou monografias e horas incontáveis de seminários. O que Foucault ofere-
ce aos grupos que são alijados das relações de poder é efetivamente o acesso
às práticas discursivas, o que, desde pelo menos a composição de sua genea-
logia e sua atenção à Nietzsche, significava a possibilidade de dominar o jogo
da história, como em um de seus mais citados trechos:
O grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem
tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para
pervertê-las, utilizá-las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as
tinham imposto; de quem, se introduzindo no aparelho complexo, o fizer
funcionar de tal modo que os dominadores encontrar-se-ão dominados
por suas regras (Foucault, 1979, p. 46).
3. Em meados dos anos 1980, ante o descaso do governo norte-americano com a epidemia de
aids, que naquela altura era reconhecida como exclusiva dos chamados “grupos de risco”,
homossexuais organizados lançaram a campanha do Act up, que consistia em ações efetivas de
“denúncia” de indivíduos “into the closet”, isto é, que escondiam sua orientação sexual. A ação,
considerada num primeiro momento como difamatória, levou inúmeras figuras públicas da
sociedade norte-americana a manifestarem publicamente sua solidariedade aos homossexuais
e apoiarem a reivindicação de mais apoio e financiamento a pesquisas para a cura da aids. Vale
assinalar que os efeitos do Act up foram potencializados pela morte de várias figuras públicas por
conta da doença.
73
Direitos Humanos e Estudos Gays e Lésbicos
Quando são nomeados em sua excepcionalidade, ou perversidade, é que
os homossexuais podem acessar as formações discursivas e requererem não
só sua identidade específica, mas também as próprias formações discursivas
que, no interior da História, os conforma e por eles são suplantados. Os mili-
tantes norte-americanos apropriaram-se, em vista disso, do termo queer para
designar o sujeito que se constitui a partir de sua diferença. Não é demais
assinalar que a palavra queer, em inglês, costumava designar o excêntrico e
o abjeto, o estranho e o ínfimo, e que, por isso, designava, pejorativamente, o
homossexual. O processo de apropriação do termo resultou numa ressigni-
ficação expressiva, dando um novo estatuto aos indivíduos identificados a
partir de uma sexualidade excêntrica que se convertia em sujeito e objeto da
produção de conhecimento. Nesse sentido, quando Halperin assinala a impor-
tância para os militantes homossexuais americanos do primeiro volume
da História da Sexualidade, não está simplesmente se utilizando de um jogo
retórico. A ação política possível encontrada por este grupo segue de perto a
lição foucaultiana, desviando decididamente seu pensamento das cátedras
universitárias para as práticas sociais e políticas, bem além do que se encon-
trava convencionado entre esquerda e direita naqueles anos.
É a partir desta reflexão que podemos ler, interpretar, problematizar,
ou mesmo desconstruir algumas obras de arte num contexto diverso do que
aquele que a crítica costuma ler. Se abandonarmos os critérios estipuladospor
uma história interna da literatura e da arte e nos dirigirmos para as lições
tardias do formalismo russo, quando Tinianov observou a íntima relação entre
as séries literárias e social, recuperaremos formas vigorosas do pensamento
crítico que deslocam a atenção do intrinsecamente literário para a compreen-
são de que as formas de representação da cultura são, na verdade, modos de
interpretação da cultura que problematizam, sobretudo, o status quo. Sem
sombra de dúvida, tal procedimento crítico coloca em evidência o caráter revo-
lucionário e excêntrico de toda obra de arte, seguindo de perto tanto as lições
do formalismo russo, quanto da chamada Escola de Frankfurt ou dos cul-
turalistas contemporâneos. A ressalva única que deve ser feita é, como atenta
Terry Eagleton (1993), o comprometimento com o inconformismo diante da
74
Mário César Lugarinho
urgência histórica determinada pelos (des)caminhos do capitalismo tardio. A
ação produtiva do crítico, em vez de retornar para o campo de onde a crítica
se origina, passa, assim, a apontar para os círculos mais exteriores e amplos
da cultura, visando ao amálgama do campo estético com o político. Se em
décadas anteriores essa perspectiva teórica determinava um alinhamento
partidário e ideológico, hoje, decididamente, deve estabelecer o comprometi-
mento com a dignidade humana.
A História da Sexualidade I, no momento de sua publicação, a segunda
metade dos anos 1970, época de um discurso de liberação homossexual, não
correspondia aos anseios de liberação e de contracultura daquele momento.
Halperin dá-nos a entender que apenas diante da urgência histórica da epide-
mia foi que se compreendeu o sentido de sobrevivência e resistência que a
“vontade de saber” apresentava frente à onda de homofobia que varreu os anos
1980 e que insiste em se manter viva ainda hoje.
O nascente movimento homossexual brasileiro no fim dos anos 1970
não ficou alheio à História da Sexualidade I. A primeira edição brasileira veio
a público em 1977, pela editora Graal, do Rio de Janeiro, e mereceu a atenção
quase que imediatamente da nascente classe dos intelectuais homossexuais
daqueles anos. Em julho de 1978, ainda em plena ditadura militar, o Lampião
da Esquina, jornal da imprensa alternativa, de circulação nacional, dirigido
principalmente ao público homossexual, publicou uma pequena resenha sobre
o volume primeiro da História da Sexualidade. A resenha é despretensiosa,
porque muito acadêmica, mas não deixa de destacar a importância daquela
publicação para a melhor compreensão não apenas da recepção do pensamen-
to de Foucault no Brasil, mas, sobretudo, para a compreensão, na universi-
dade, do próprio fenômeno histórico da homossexualidade – que, naquela
altura, ainda era tema tabu, com rara frequência nas áreas médicas, jurídicas
e psicológicas. No entanto, a tradição acadêmica foi mais poderosa e a vontade
de saber não conseguiu operar uma ação efetiva imediata, como veio a se dar
na década seguinte nos Estados Unidos.
Com essa perspectiva, fica evidente o epíteto de “década perdida” que
os anos 1980 receberam. Talvez porque precisássemos aprofundar a reflexão
75
Direitos Humanos e Estudos Gays e Lésbicos
acerca do pensamento de Foucault e decidir, após o fim da ditadura militar,
entre os variados modelos de instituição universitária; talvez porque se obser-
vassem os impasses filosóficos a que chegávamos pela excessiva adesão ao
pensamento pós-estruturalista francês. De qualquer maneira, é certo que
apenas no correr dos anos 1990 foi possível operar uma mutação expressiva
no cerne da crítica literária a fim de que sua contribuição fosse efetiva para a
própria reconstituição do conceito de literatura e sua aplicabilidade, além da
própria reconstrução social almejada.
À parte Antonio Candido, quem mais pensou em direitos humanos e
literatura no Brasil? A resposta é certamente reticente... Ou nos debruçamos
com dificuldades sobre o banco de dados do currículo lattes, ou ficamos em
silêncio, envergonhados. Parece-me que, há muito tempo, o engajamento da
crítica literária saiu de moda e ficamos, nós críticos, confortavelmente, refes-
telados em almofadas. Onde a ousadia da crítica, onde a ousadia da literatura?
Não fosse Roberto Schwarz, onde estaria ainda a obra de Paulo Lins? Pre-
cisaremos, para os estudos gays e lésbicos, no Brasil, de um crítico desta esta-
tura para acreditarem que a obra e a crítica existem e resistem? Até quando
precisaremos das redes subterrâneas da solidariedade?
Não creio na utopia e tampouco nas utopias, mas creio na atividade
diária da revisão de paradigmas possibilitada pela experiência cotidiana. A
oportunidade de, agora, pensar de como a literatura, digo, a crítica literária
pode promover os direitos humanos no solo dos estudos gays e lésbicos é por
demais necessária e bem-vinda; enfim, é a ousadia sonhada.
Ações isoladas e mesmo coletivas não conseguiram ainda estabelecer
formas homogêneas de ação dos aparelhos estatais e tampouco dos aparelhos
sociais e culturais. Tudo parece um jogo de cena. Como o da ditadura do
Estado novo português diante da Carta da ONU, construímos a maior passeata
gay do mundo, mas seus efeitos são invisíveis no dia seguinte. Preferimos a
festa ao massacrante cotidiano da luta pela emancipação social e política.
Pensamos na visibilidade da comunidade, festiva e celebrativa, mas deixamos
de lado a visibilidade do indivíduo, que é seu direito incontornável de cida-
dania. Construímos um dos mais ambiciosos programas de prevenção e tra-
76
Mário César Lugarinho
tamento da aids no mundo, mas deixamos de lado a memória e a reflexão
acerca da epidemia que já atingiu quatro gerações de homossexuais brasilei-
ros. Quantas teses e artigos poderemos contar diante do crescente número de
publicações e produção acadêmicas dos últimos trinta anos acerca do tema da
aids e da diversidade (homo)sexual? Quantas vezes um pesquisador se reco-
nheceu diante do tema? Até quando só daremos o privilégio a Bom Crioulo ou
a Caio Fernando Abreu? Onde, enfim, a ousadia pelo engajamento? É direito
de todo homem o conhecimento, o saber e a educação. É esse nosso papel, en-
fim, cumprirmos tal requisito? 
Referências bibliográficas
EAGLETON, Terry. A Função da Crítica. São Paulo, Martins Fontes, 1993.
FOUCAULT, Michel. “Nietzsche e a genealogia”. In __________. Microfísica do Poder.
Rio de Janeiro, Graal, 1979, pp. 25-26.
GRISET, Antoine. “Foucault: Um Projeto Histórico”. In LE GOFF, Jacques et al. A Nova
História. Lisboa, Edições 70, 1986, pp. 57-65.
HALPERIN, David. Saint Foucault: Towards a Gay Hagiography. New York, Oxford
University Press, 1995.
HARDT, Michael & NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro, Record, 2000.
MULLINS, G. Novos Horizontes para a Literatura e os Direitos Humanos. Conferência
no Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, 31 ago. 2005.
TORRES, S. & MULLINS, G. (eds.). “Letras e Direitos Humanos”. Cadernos de Letras da
UFF, n. 33, 2006.
77
1. Coordinadora del área “Tecnologías do género” del Centro Cultural Rector Ricardo Rojas
(Universidad de Buenos Aires). Docente de Teoría General del Derecho (UBA), codirectora del
proyecto UBACYT “Narración y Representación de los Cuerpos y de la Violencia” del Instituto de
Investigaciones Gino Germani de la Facultad de Cs. Sociales (UBA).
Constâncias
PAULA VITURRO1
¿Qué pasa cuando la “experiencia” se vuelve ontología,
cuando la “perspectiva” se vuelve verdad, y cuando
ambas devienen una en el Sujeto Mujer y se codifican en
el derecho como derechos de las mujeres?
Wendy Brown, Lo que se Pierde con los Derechos.
El conocimiento naturalizado del género funciona como
una circunscripción con derecho preferente y violenta de
la realidad.
Judith Butler, El Género en Disputa.
El presente trabajo es una reflexión acerca del uso que se hace en ámbitos
institucionales – en especial los académicos – de la expresión “perspectiva de
género”. El objetivo es mostrar, apartir de la utilización de herramientas
teóricas propias de las teorías feministas, queer y trans, cómo el uso acrítico
de la expresión da lugar a un truismo que genera construcciones dogmáticas
de complejas – y a veces disvaliosas – con consecuencias jurídico-políticas
para el activismo antidiscriminación.
Desde hace un tiempo – más o menos largo según la latitud y longitud de
la coordenada geopolítica en la que nos encontremos – circula insistentemente
78
Paula Viturro
por los ámbitos institucionales una expresión – “perspectiva de género” – cuya
significación epistemológica e implicancias políticas suele ser soslayada.
Tal vez ello se deba a que se trata de una frase respecto de la cual,
cualquier persona del ámbito jurídico cree tener por lo menos alguna vaga idea
o intuición acerca de lo que su uso parece implicar: el reconocimiento de la
Mujer, las mujeres, las mujeres feministas, el Feminismo, los feminismos, la
diferencia sexual...
Al parecer, también es extendida la creencia según la cual cualquier
política pública, sentencia judicial, publicación doctrinaria, congreso, confe-
rencia, o diseño curricular – por citar solo algunos ejemplos –, que hoy en día
aspire a un lugar entre las producciones progresistas de la cultura, debe tener
la precaución de incorporarla. Es por lo tanto una expresión que prima facie
parece contar con una carga valorativa favorable aunque más no sea en el
registro de lo políticamente correcto.
Sin embargo, y no obstante el halo de autoevidencia que parece rodear
a la frase “perspectiva de género”, cualquiera que se inicie en las discusiones
teórico políticas respecto del concepto de género, rápidamente advertirá que
se trata de una expresión resbaladiza, que suele funcionar en los discursos
institucionales – en especial el jurídico – como un truismo que oculta más de
lo que muestra, y que da lugar a complejas y gravosas consecuencias políticas
para quienes pretende favorecer.
Si treinta años atrás la discriminación por género podía tal vez inge-
nuamente remitir a la discriminación de “las mujeres”, hoy en día dicha
asociación tácita sólo se sostiene por la persistente invisibilización de la
violencia que implica el presupuesto normativo según el cual el género no sería
más que los atributos culturales asociados a los sexos. Así, al asumir como
fundamento de la representación una definición de género que deja en
suspenso preguntas referidas a cómo se asignan los sexos, instauramos la
diferencia sexual como un dato natural irreductible y excluido del debate en
torno de los valores y la justicia.
Dicho en otras palabras, la consecuencia de establecer como base de un
reclamo legal un concepto de género que no cuestiona la distinción natura-
79
Constâncias
2. “Es evidente que existe un crecimiento progresivo de normas, instituciones y procedimientos
que tiene como fin alcanzar la efectiva protección de todos los derechos y libertades de mujeres
y hombres. Este desarrollo es lento, porque muchas veces los gobiernos no se ponen de acuerdo”.
Cf.: Fabián O. Salvioli para IIDH, Curso Básico sobre el Sistema Universal de Protección de los
Derecho Humanos de la Organización de Estados Americanos, disponible en: www.iidh.ed.cr/
CursosIIDH. “He argumentado para demostrar que la progresividad es una nota propia y
resaltante del sistema de protección de derechos humanos. ¿Se trata de una nota exclusiva?
Seguramente no. Ella está presente a menudo en lo que podría llamarse el Derecho protector,
como el Derecho del Trabajo, que se ha abierto paso a través de la ilegalidad, o el Derecho de
Menores”. Cf.: Pedro Nikken, Introducción a la Protección Internacional de los Derechos
Humanos, XIX Curso Interdisciplinario en Derechos Humanos, 19 al 28 de julio de 2001, San
José, Costa Rica.
leza/cultura, es la legitimación de la jerarquización, la discriminación y la
violencia que sufren todas aquellas personas cuyos cuerpos no son inteligibles
bajo ese esquema. Los cuerpos no son el último reducto de la naturaleza, sino
“pantallas en las que vemos proyectados los acuerdos momentáneos que
emergen, tras luchas incesantes en torno a creencias y prácticas dentro de las
comunidades académicas” (Stone, 2004, p. 28).
Aquí obviamente es ineludible la remisión a la crisis fatal que los cues-
tionamientos de las feministas negras y lesbianas – y más contemporánea-
mente del activismo queer, trans e intersex, entre otros –, plantearon a las
concepciones de los estudios tradicionales de género.
No se trata por lo tanto de sostener el mito de una historia lineal que
en su desarrollo iría sumando progresivamente subalternos a la lucha por la
ciudadanía, como por ejemplo, parece irreflexivamente afirmar cierta
dogmática de los derechos humanos mientras se desentiende del costo
humano efectivo causado por la selectividad temporal entre diferentes planes
de vida, que dicha progresividad esconde2.
Como sostiene J. Butler, no contamos con una historia acerca de cómo
se pasa de la teoría feminista a la queer y de allí a lo trans (Butler, 2004, pp.
4 y sig.). De hecho sería un error creer que se trata de un gran relato en el que
los diferentes marcos teóricos se suceden temporalmente de forma comple-
mentaria. Por el contrario, estos relatos están sucediendo de manera simul-
80
Paula Viturro
3. “¿Cuál es la regla de formación del discurso jurídico que al mismo tiempo entrelaza y criba
otros discursos, los incorpora y expulsa a la vez de su dominio, los aplica y debilita, los integra
y frustra, organiza su campo semántico con ellos y los desconoce acto seguido para lograr la
identidad de su especificidad?”. Cf.: Enrique E. Mari, Moi, Pierre Rivière… y el Mito de la
Uniformidad Semántica de las Ciencias Jurídicas y Sociales. Papeles de Filosofía, Buenos Aires,
Biblos, 1993, p. 252.
4. Una buena compilación de trabajos referidos a esta cuestión es la de Wendy Brown y Janet
Halley (eds.), Left legalism/left critique, Durham/London, Duke University Press, 2002.
tánea, superpuesta y contradictoria en un complejo entramado político en per-
manente disputa.
Nuestra tesis es que la forma en la que se disciplinan en el ámbito aca-
démico, los saberes referidos al vasto campo de lo que hasta el momento – en
un gesto de simplificación – hemos denominado género, tiende a la instaura-
ción de un canon que incorpora ciertos saberes a costa de la negación de otros
(Franke, 2003), que quienes nos comprometemos con la educación antidiscri-
minatoria debemos resistir.
Tal vez ello se deba al particular funcionamiento del discurso jurídico,
basado en el “mito de la uniformidad semántica de las ciencias sociales”, tal
como sugestivamente lo teorizara Enrique Marí. Según este autor, la identidad
o coherencia interna del campo semántico del discurso del derecho es el resul-
tado de un proceso de producción caracterizado por un incesante tráfico de
discursos disciplinares de diferente origen, forma y función que si bien fijan
y determinan las condiciones de posibilidad de surgimiento material del dis-
curso jurídico, son finalmente eludidos o desconocidos por este3.
Si además tomamos en serio la hipótesis del movimiento Critical Legal
Studies (Kennedy, 2001, p. 373), según la cual las facultades de derecho son
la primera usina del orden jerárquico que rige el funcionamiento de los siste-
mas jurídicos contemporáneos, quienes pertenecemos al activismo sociose-
xual antidiscriminación estamos frente a un situación difícil.
De forma ineludible, la crítica al derecho nos remite a la angustiante y
recurrente pregunta referida a la conveniencia política de la utilización del
mismo ante situaciones concretas de exclusión4.
81
Constâncias
5. “[...] país donde el reconocimiento de la identidad de género de las personas trans requiere
la realización imperativa de cirugías de modificación corporal, incluida la esterilización; donde
niños intersex son sometidos a cruentos procedimientos de normalización, que incluyen,
sistemáticamente,405
Coisas de Viado!
YANN BEAUVAIS ..................................................................................... 419
Cenas Paralelas: Do Arcaico ao Pós-moderno nas Representações
do Gay no Teatro Brasileiro Contemporâneo
FERDINANDO MARTINS ........................................................................... 433
Camp, Paródia e Violência em Astrid Haddad
por Las Hermanas Vampiro
MAURÍCIO DE BRAGANÇA ........................................................................ 445
Corpo e Fotografia em Erwin Olaf: Estudos Contemporâneos
WILTON GARCIA .................................................................................... 457
Retratos
“Intersecção no Concreto” – FERNANDO MARQUES PENTEADO ............... 471
“Fernando Penteado: Das Sutilezas Esmagadoras” –
MARCELO AMORIM ................................................................................. 476
“So Hard” – VITOR MIZAEL ................................................................... 480
9
Brokeback Mountain e a Desconstrução do Ideal Homoafetivo
VALTER BARROS MOURA ........................................................................ 485
Parte IV
Homocultura e Mídia
Impressões de Identidade: Os Caminhos da Imprensa Gay Nacional
JORGE CAÊ RODRIGUES ......................................................................... 499
Eu Sou Homem com “H”: As Representações de Virilidade
nas Capas da G Magazine
FÁBIO RONALDO DA SILVA E ROSILENE DIAS MONTENEGRO ........................ 509
A Propaganda Contraintuitiva e seus Efeitos na (Des)construção
do Estereótipo Homossexual
FRANCISCO LEITE .................................................................................. 519
Homossexualidade e Nudez em Revistas Brasileiras
GRAZIELA ZANIN KRONKA ....................................................................... 529
Identidade Capturada: A Parada do Orgulho Gay de São Paulo
de 2007 nos Telejornais
IRINEU RAMOS RIBEIRO .......................................................................... 539
Os Homossexuais na Mídia Segundo Militantes, Acadêmicos e
Jornalistas
FERNANDO LUIZ ALVES BARROSO ............................................................ 549
A Representação da Homossexualidade na Telenovela Duas Caras
LEANDRO COLLING E CAIO BARBOSA ....................................................... 561
Um Romeu e Julieta para Evelyn? Romances e Tragédias
Urbanos em Páginas Policiais
LUIZ CLÁUDIO KLEAIM E MARIA INÊS VANCINI SPERANDIO ........................... 583
Homoerotismo nas Tirinhas de Jornal
LUIZ GUILHERME COUTO PEREIRA ........................................................... 599
10
Desejo, Imagem e Cultura Gay Contemporânea: Uma
Antropologia da Comunicação Marginal
MARCOS AURÉLIO DA SILVA..................................................................... 605
Identidade de Gênero e Discriminação Social: A Representação
da TV em Questão
MARY RANGEL E MARCIO CAETANO ......................................................... 617
Mídia e Homofobia: Aproximações
MICHELLE MÁRCIA COBRA TORRE............................................................ 627
Publicidade e Heteronormatividade
VINICIOS KABRAL RIBEIRO ...................................................................... 637
Parte V
Homocultura e Contexto Escolar
“Monalisa” e Homossexualidades: Jogos Discursivos e de
Poder na Construção das Identidades no Contexto Escolar
ANDERSON FERRARI .............................................................................. 647
Homosexualidad, Educación y Discriminación: Escuelas Inclusivas
JUAN CORNEJO ESPEJO ......................................................................... 657
Diversidade Sexual na Escola
ALEXANDRE BORTOLINI ........................................................................... 667
Professores Frente à Diversidade Sexual: Uma Questão dos
Sujeitos na Formação Profissional
ANDRÉ HELOY AVILA .............................................................................. 687
Novos Desafios e Demandas à Comunidade Escolar: A Escola e a
Educação de Crianças Adotadas por Famílias Gays
ADOLFO IGNACIO CALDERÓN, MICHEL MOTT, ANGÉLICA A. CURVELO ALVES E
ANA CAROLINA DE LIMA .......................................................................... 695
Corpos Estranhos à Margem: A Homossexualidade no Cotidiano
Escolar Brasileiro
EDER R. PROENÇA E MARCOS ANTONIO DOS S. REIGOTA .......................... 705
11
A Arte-Educação como Instrumento Significativo de Diminuição
da Evasão Escolar da População LGBT
JOÃO BATISTA DA SILVA JUNIOR ............................................................... 717
Aspectos da Homossexualidade sob a Ótica da Dominação
Masculina de Bourdieu
 JOSÉ GUILHERME DE O. FREITAS E MÔNICA PEREIRA DOS SANTOS ............ 727
Parte VI
Homocultura, Psicologia e Saúde Pública
Homoparentalidade e Práticas Sutis de Discriminação à
Diversidade Sexual: Um Estudo de Caso
LINDOMAR EXPEDITO S. DARÓS .............................................................. 741
Psicologia, Homofobia e Processos de Subjetivação: Impactos da
Resolução 001/99 do Conselho Federal de Psicologia
LUAN CARPES BARROS CASSAL, CAROLINA MOREIRA RIBEIRO, RAQUEL MARIA
FERREIRA DE MENEZES, LUCIANA FRANCEZ CARIELLO,
CARLOS EDUARDO LOURENÇO DOS SANTOS NÓRTE E PEDRO PAULO
GASTALHO DE BICALHO .......................................................................... 753
Club Drugs e Homocultura
VIRNA TEIXEIRA ..................................................................................... 763
Conhecimento de Jovens Homens que Praticam Sexo com Outros
Homens Sobre Doenças Sexualmente Transmissíveis/Aids e
Aderência ao Sexo Protegido
HUGO FERNANDES ................................................................................. 775
Parte VII
Homocultura e Catolicismo
Homossexualidade e Contra-Hegemonia no Catolicismo
LUÍS CORRÊA LIMA ................................................................................ 791
Sociedade Moderna e Conceito do Mal: Socialização e Inclusão
Perante a Escolha Homossexual
HERMIDE MENQUINI BRAGA .................................................................... 799
12
Religião, Gênero e Diversidade Sexual: Refletindo Sobre
Violência Simbólica e Exclusão
VALÉRIA MELKI BUSIN ............................................................................ 811
Parte VIII
Homocultura e Universo Trans
Criando Gênero, Fazendo História
CLAUDIA WONDER ................................................................................. 833
Travestis: Retratos do Brasil
ELIANE BORGES BERUTTI ....................................................................... 843
O Cliente Militar
SARUG DAGIR RIBEIRO........................................................................... 853
Travestis, Cuidado de si e Serviços de Saúde: Algumas Reflexões
WILIAM S. PERES .................................................................................. 869
Mover-se é Luxo: Travestis Brasileiras e o Mercado Transnacional
do Sexo. Restrições, Desafios e Direito no Cenário Europeu
Contemporâneo
LARISSA PELÚCIO .................................................................................. 887
Parte IX
Homocultura e Lesbianidades
Assimetrias de Poder na Militância entre Gays e Lésbicas
TÂNIA PINAFI ......................................................................................... 899
Códigos de Sociabilidade Lésbica no Rio de Janeiro dos Anos 1960
NADIA NOGUEIRA ................................................................................... 909
Na Sexualidade, o Homem é Referência: Lésbicas Tiveram uma
Relação Frustrada com Homens e Aguardam um Homem que
as Satisfaça
LÍVIA GONSALVES TOLEDO E FERNANDO SILVA TEIXEIRA FILHO .................... 921
13
Carla que Ama Vera, Mãe de Paula: A Circulação Pulsional
neste Arranjo Familiar
SIMONE APARECIDA NORONHA................................................................. 931
Safo de Lesbos e a Homocultura
JOSÉ ROBERTO DE PAIVA GOMES ............................................................el ocultamiento de su historia; donde los sitios reservados a las travestis en
el espacio público son, indefectiblemente, la prostitución, el circo mediático o la cárcel. El mismo
país donde la travesti Vanesa Ledesma muriera en un precinto policial cordobés, mostrando en
su cuerpo signos visibles de tortura”. Cf.: Mauro Cabral, “Las Transformaciones de Tiresias”.
Nombres. Revista de Filosofía, Córdoba, año XV, n. 19, abr. 2005, pp. 153-155.
Una alternativa que se nos ofrece es el prescindir de la lucha por los
derechos en nombre de una política antinormalización que evite los riesgos de
una estrategia centrada exclusivamente en la identidad. Sin embargo, se trata
de una alternativa extremadamente costosa cuando la falta de derechos equi-
vale a la inexistencia civil. En la Argentina, la situación de las personas trans a
quienes no se les reconoce ni el derecho a un nombre acorde a su identidad
genérica, es un buen ejemplo de ello5. Como señala Patricia Williams: “El
Olimpo del discurso de los derechos puede ser efectivamente una altura apro-
piada desde la cual quienes están en el extremo rico de la desigualdad, quienes
ya tienen el poder de los derechos, pueden querer saltar” (Williams, 203, p. 64).
Si no optamos por esa alternativa, debemos entonces preguntarnos qué
características particulares adquiere esta modalidad de funcionamiento del
discurso del derecho cuando se enfrenta al desafío de dar cuenta de los
múltiples, diversos y muchas veces contradictorios reclamos articulados en
torno a uno de los conceptos teórico-políticos más disputados de la última
mitad del siglo XX. Y más específicamente, ¿qué particularidades adquiere hoy
este desafío para quienes nos dedicamos a la investigación y a la enseñaza del
derecho, si tomamos en cuenta su funcionamiento ideológico?
Tal vez una buena pista sea volver sobre la frase: “perspectiva de géne-
ro”. Es evidente que se trata de una metáfora visual altamente efectiva, de
hecho curiosamente parece tener un sentido unívoco – sinónimo de “mujer” –
aún para aquellas personas que nunca reflexionaron respecto de lo que género
pueda querer decir con exactitud.
Sabido es que la introducción de la perspectiva en la pintura como
técnica para representar una escena tal como se vería desde cierto punto, se
82
Paula Viturro
6. En un sentido similar véase: Katherine M. Franke, “The Central Mistake of Sex Discrimi-
nation Law: the Disaggregation of Sex from Gender”. 144 U. Pa. L. Rev. 1, 70, 1995.
produjo en el Renacimiento. La dimensión del cambio en el régimen de
visibilidad que implicó la incorporación de la perspectiva, parece haber sido
tal, que dio lugar a la proliferación de discusiones contemporáneas acerca de
si se trató o no de un reflejo del surgimiento de la nueva filosofía centrada en
el hombre y en una nueva concepción racional del espacio (Gombrich, 1997,
pp. 411-436).
En efecto, la perspectiva plantea la necesidad de un sujeto situado en
un punto de vista ideal cuya mirada ordena la escena representada la cual, a
su vez, debe cumplir con las expectativas de fidelidad o veracidad respecto del
objeto representado que la cosmovisión de la época impone. Dicho de otra
manera, la perspectiva permitiría ver los objetos representados a través de ella,
como creemos que son en la realidad. Creencia reforzada por el funciona-
miento de un mecanismo estabilizador de la percepción denominado “cons-
tancias”, que en parte asegura ese resultado (Gombrich, 1997, p. 433).
La recurrente utilización de esta metáfora con relación al género parece
tener el mismo efecto. Ella permite instaurarlo discursivamente como un prin-
cipio epistémico privilegiado que permitiría el surgimiento de hechos signi-
ficativos para el nuevo régimen de visibilidad que esta perspectiva inaugura6.
Sin embargo, la utilización de la metáfora de la perspectiva, al estable-
cer al género como clave fundante de un nuevo conocimiento y origen de un
nuevo sujeto, redunda en su estabilización ontológica. El influjo de las cons-
tancias producidas por las concepciones bioanatómicas que clasifican a los
cuerpos como masculinos y femeninos es de tal magnitud que, paradójica-
mente, un concepto surgido del ánimo político de oponerse a la máxima “la
anatomía es el destino”, queda reducido a un simple correlato cultural de los
cuerpos sexuados como si estos fueran naturalmente dados.
De esa manera, el género se naturaliza y se convierte en aquello que
todas las mujeres compartimos produciendo una reificación del binomio
naturaleza/cultura. Tal vez los ejemplos más acabados de dicho funcionamien-
83
Constâncias
to naturalizador de la metáfora sean la “ideología de la opresión común” de
las mujeres (Hooks, 2004, p. 42), y la noción de patriarcado.
Como señala J. Fernández, el presupuesto según el cual todo lo que
tenemos en común las mujeres debido al sexo, genera todo lo que tenemos en
común en términos de género, explica la tendencia a pensarlo como repre-
sentativo de lo que todas las mujeres compartimos. De esa manera, aspectos
como la etnia, la clase etc., pasan a ser indicativos de lo que tenemos de
diferente. Sin embargo, este modelo aditivo no da cuenta de, por ejemplo, las
importantes diferencias entre las mujeres blancas y las negras respecto de sus
experiencias frente al sexismo (Fernández, 2003, pp. 138-154). Como conse-
cuencia, termina ocultando o subalternando las diferencias a través de la
imposición de una identidad basada en una experiencia común ficta: la
femineidad.
De esa manera, las preguntas referidas al carácter construido de dicha
experiencia, a las formas en que los sujetos son constituidos de manera dife-
rente, y al modo en que nuestra propia visión es estructurada por el discurso,
son dejadas de lado. Joan W. Scott sostiene que esta forma de entender la expe-
riencia, ya sea concebida a través de la metáfora de la visibilidad o de cualquier
otro modo que la muestre como transparente, reproduce los esquemas ideoló-
gicos que asumen que los hechos hablan por si solos. Como resultado, se obtura
la posibilidad de analizar críticamente el funcionamiento del sistema ideológi-
co en el que se desarrollan, sus categorías de representación (homosexual/
heterosexual, hombre/mujer, negro/blanco como identidades fijas), las pre-
misas acerca de lo que estas categorías significan y la forma en la que operan.
Presuponiendo que quienes nos dedicamos a la investigación, a la edu-
cación y al activismo antidiscriminación somos conscientes de que debemos
responder por las consecuencias de nuestras teorías, parece evidente entonces
la necesidad de renunciar a la metáfora de la “perspectiva de género”. Si los
universalismos de la humanidad nos resultan sospechosos, debemos también
asumir que los universalismos de género también lo son.
Seguramente esta propuesta, en el marco de una academia que hasta
la fecha no le ha prestado mayor atención a estos temas, puede producir cierta
84
Paula Viturro
perplejidad e irritación, máxime si tenemos en cuenta que los abogados y
abogadas tendemos “a ver las ‘cosas’ – trátese de salarios bajos, la violación
o el feticidio femenino – como algo más significativo que, por ejemplo, la
construcción discursiva de la marginalidad” (Barret, 2002, p. 213).
La escasa recepción disciplinaria que han recibido los estudios de
género por parte de los espacios universitarios – en especial las facultades de
derecho del contexto latinoamericano – debe ser aprovechada como una
oportunidad para reflexionar respecto de la forma en que estamos dispuestas
y dispuestos a hacerlo de aquí en más. La historia de la pintura nos ofrece una
metáfora alternativa a quienes no aceptamos el valor de verdad que la repre-
sentación en perspectiva pretende tener: el cubismo.
Los cubistas abandonaron el punto de vista ideal y estable que dominó
la pintura europea desde el Renacimiento, en favor de la representación
simultánea de los objetos desde múltiples puntos de vista. Loscuadros resul-
tantes son una acumulación de fragmentos de visión que representan el objeto
desplegado en todas sus facetas, que establece una trama compleja de rela-
ciones espaciales heterogéneas constituídas a partir de la yuxtaposición y la
dislocación de las distintas vistas.
De esa manera, los cubistas pusieron de manifiesto que el espacio
pictórico articulado por la perspectiva central, es un producto cultural que sólo
trasluce las intuiciones espaciales humanas de un determinado momento
histórico conocido como naturalismo o realismo visual (Marchán Fiz, 2005).
Si nos animamos a abandonar la perspectiva de género tal vez podamos
contar con alumnos que no sólo sean sensibles al dolor producido por la dis-
criminación, sino que además sean capaces de resistir y desarticular el orden
del discurso jurídico que le da sentido y continuidad.
Futuros profesionaes capaces de contemplar Las Meninas de Veláz-
quez, y entender por qué “ninguna mirada es estable o, mejor dicho, en el
surco neutro de la mirada que traspasa perpendicularmente la tela, el sujeto
y el objeto, el espectador y el modelo cambian su papel hasta el infinito”
(Foucault, 1969, p. 14).
85
Constâncias
Referências bibliográficas
BARRETT, Michele. “Las Palabras y las Cosas: el Materialismo y el Método en el Análisis
Feminista Contemporáneo”. In BARRET, Michele & PHILLIPS, Anne (comps.).
Desestabilizar la Teoría: Debates Feministas Contemporâneos. Méjico, PUEG/
Paidós, 2002, pp. 213-240.
BERKINS, Lohana. “Eternamente Atrapadas por el Sexo”. In VITURRO, Paula et al.
(comps.). Cuerpos Ineludibles: Un Diálogo a Partir de las Sexualidades en
América Latina. Buenos Aires, Ediciones de Ají de Pollo, 2004, pp. 19-24.
BUTLER, Judith. El Género en Disputa. Méjico, PUEG/Paidós, 2001.
. Undoing Gender. New York/London, Routledge, 2004.
CABRAL, Mauro. “Persistencias”. In VITURRO, Paula et al. (comps.). Cuerpos Ineludibles:
un Diálogo a Partir de las Sexualidades en América Latina. Buenos Aires,
Ediciones de Ají de Pollo, 2004, pp. 199-212.
DE LAURETIS, Teresa. “La Tecnología del Género”. Diferencias, Madrid, Horas y Horas,
2000, pp. 33-70.
FERNÁNDEZ, Josefina. “Los Cuerpos del Feminismo”. In MAFFÍA, Diana (comp.).
Sexualidades Migrantes: Género y Transgénero. Buenos Aires, Feminaria,
2003, pp. 138-154.
FOUCAULT, Michel [1969]. Las Palabras y las Cosas. 29ª ed., Méjico, Siglo XXI, 1999.
FRANKE, Katherine M. “On Discipline and Canon”. 12 Columb. J. Gender & Law, 639,
2003.
GOMBRICH, E. H. “Del Renacimiento de las Letras a la Reforma de las Artes: Niccolo
Niccolini y Filippo Brunelleschi”. In __________. Gombrich Esencial.
Madrid, Debate, 1997, pp. 411-436.
HOOKS, Bell. “Mujeres Negras. Dar Forma a la Teoría Feminista”. In AAVV. Otras
Inapropiables: Feminismos Desde las Fronteras. Madrid, Traficantes de
Sueños, 2004, pp. 33-50.
KENNEDY, Duncan “La Educación Legal como Preparación para la Jerarquía”. In
COURTIS, Christian (comp.), Desde Otra Mirada. Textos de Teoría Crítica del
Derecho, Buenos Aires, Eudeba, 2001, pp. 403-418.
LORDE, Audre. La Hermana. La Extranjera. Madrid, Horas y Horas, 2003.
MARCHÁN FIZ, Simón. Meditaciones Estéticas Sobre las Poéticas del Cubismo.
Disponible en: www.fundacion.telefonica.com/arte_tecnologia/colecciones_
arte/cubismo. Consulta en: 28/4/2005.
86
Paula Viturro
SCOTT, Joan W. “Experience” in BUTLER, Judith & SCOTT, Joan (eds.). Feminist Theorize
the Political. New York/London, Routledge, 1992, pp. 22-40.
STONE, Sandy. “El Imperio Contraataca. Un Manifiesto Postransexual”. SeriAs para el
Debate n. 3, Lima, Campaña por la Convención de los Derechos Sexuales y los
Derechos Reproductivos, nov. 2004, pp. 14-32.
WILLIAMS, Patricia. “La Dolorosa Prisión del Lenguaje de los Derehos”. In ________.
La Crítica de los Derechos. Bogotá, Universidad de los Andes/Instituto Pensar/
Siglo del Hombre Editores, 2003, pp. 45-73.
WITTIG, Monique. The Straight Mind and Other Essays. Boston, Mass., Beacon Press,
1992.
87
Homofobia Letal: A Violência Velada Contra a
Liberdade de Orientação Sexual no Brasil
DANIELLE ROSE, HELENA BARCELOS, LEA SANTOS,
MARILENE DURÃES E TÂNIA CARNEIRO1
O presente artigo resulta de uma pesquisa de campo objetivando conhecer
a problemática da violência letal contra homossexuais. O Brasil ocupa um
lugar de destaque no cenário mundial quando o assunto é homofobia letal que
nada mais é que a consequência lógica de uma violência moral e física a qual
são submetidas diuturnamente pessoas que se declaram homossexuais. A
violência brutal praticada no Brasil não comove as instâncias nacionais que
se declaram defensoras dos direitos humanos, como se o homossexual, à luz
da cultura machista prevalecente, não fizesse jus aos direitos históricos
proclamados, a longas datas, na história da humanidade, quais sejam: a vida
e a igualdade.
Introdução
Objetiva-se com o presente artigo proceder a uma análise, à luz da
antropologia, da violência produzida na sociedade brasileira contra os
homossexuais.
A violência que se faz investigar está voltada para aquela que acontece
na sua forma mais extrema: a letal. Embora seja esse o aspecto a ser
1. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
D. Rose, H. Barcelos, L. Santos, M. Durães e T. Carneiro
88
trabalhado, não há como desvincular a violência letal contra homossexuais das
demais espécies de violência da qual são acometidas, diariamente, as pessoas
cuja afetividade ou sexualidade é direcionada para o mesmo sexo.
Justifica-se o tema tendo em vista que o assistente social deve ter um
olhar mais amplo que o que paira sobre o senso comum, pautando a sua
prática pela defesa intransigente dos direitos humanos, evitando a perpe-
tuação de práticas homofóbicas.
A metodologia utilizada consiste em pesquisa bibliográfica e de campo
utilizando-se da técnica da entrevista.
Foram entrevistados três homossexuais, a saber: B. J. e C., alunos das
unidades de Contagem e Barreiro, da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, com a intenção de perceber a forma como essas pessoas se
situam ante a violência a que estão expostas.
B. é um jovem, do sexo masculino, estudante de Serviço Social. C e J.,
ambas do sexo feminino, onde C. é estudante do curso de Serviço Social e J.
é estudante do curso de nutrição, e mantêm entre si uma relação homoafetiva,
que, para além dos contratempos enfrentados, possui uma certa duração.
Apesar do pequeno número de entrevistados percebe-se que não houve
prejuízo para a finalidade da pesquisa que é analisar a realidade investigada
e compará-la com a teoria, mormente com o artigo do autor Luiz Mott (2000)
cujo titulo é “Homossexuais: As Vítimas Principais da Violência”, bem como
o escrito de Louro (2001) sobre a pedagogia da sexualidade, além de outras
obras e escritos abordados ao longo do texto.
Analisar a forma como os homossexuais são tratados em nossa cultura
implica, em uma análise preliminar do discurso existente no plano interno,
na Constituição da República Federativa do Brasil que eleva a nível de princí-
pio, a dignidade da pessoa humana.
Além da proteção genérica constante da Lei Maior, a qual a doutrina
especializada chama de Direitos Humanos Fundamentais, proteção seme-
lhante encontra-se nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário,
a saber: a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948 e a Decla-
ração Americana de Direitos e Deveres do Homem, também de 1948, textos
Homofobia Letal
89
que garantem direitos que são chamados de direitos humanos; e que, por sua
vez, influenciaram sobremaneira a Constituição brasileira de 1988.
O direito à igualdade e à liberdade, estão juridicamente protegidos no
ordenamento brasileiro, fato que por si só resolveria o problema das desi-
gualdades, não fosse um aspecto extremamente relevante: o direito não pode
ignorar a cultura onde o mesmo será aplicado. Esse o erro fatal que tantos
legisladores e governantes teimam em ignorar!
Os direitos do homem em uma cultura homofóbica
DireitosHumanos são, segundo melhor doutrina, os direitos protegidos
na esfera internacional que, ao serem transportados para a esfera do Estado-
nação ganha o status de direitos fundamentais; eis que protegidos em sua Lei
Fundamental: a Constituição.
De acordo com Ruth Benedict in Laraia (1986) “a cultura é uma lente
através da qual o homem vê o mundo”. E, essa visão de mundo que cada
cultura possui, leva o homem a agir de maneira etnocêntrica, já que o modo
de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes
comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos
de uma herança cultural (Laraia, 1986).
A questão da violência contra minorias, e entre elas a que é praticada
contra homossexuais afigura-se como uma questão cultural:
A nossa herança cultural, desenvolvida através de inúmeras gerações,
sempre nos condicionou a reagir depreciativamente em relação ao
comportamento daqueles que agem fora dos padrões aceitos pela
maioria da comunidade. Por isto discriminamos o comportamento
desviante. Até recentemente, por exemplo, o homossexual corria o risco
de agressões físicas quando era identificado numa via pública e ainda é
objeto de termos depreciativos. Tal fato representa um tipo de
comportamento padronizado por um sistema cultural. Esta atitude varia
D. Rose, H. Barcelos, L. Santos, M. Durães e T. Carneiro
90
em outras culturas. Entre algumas tribos das planícies norte-ameri-
canas, o homossexual era visto como um ser dotado de propriedades
mágicas, capaz de servir de mediador entre o mundo social e o
sobrenatural, e portanto respeitado (Laraia, 1986)
Homofobia caracteriza “o medo e o resultante desprezo pelos homos-
sexuais; descreve uma repulsa face às relações afetivas e sexuais entre pessoas
de mesmo sexo, um ódio generalizado aos homossexuais e todos os aspectos
do preconceito heterossexista e da discriminação anti-homossexual” (Moraes,
2008).
Louro (2001) ensina que:
Consentida e ensinada na escola, a homofobia expressa-se pelo desprezo,
pelo afastamento, pela imposição do ridículo. Como se a homossexua-
lidade fosse “contagiosa”, cria-se uma grande resistência em demonstrar
simpatia para com sujeitos homossexuais: a aproximação pode ser
interpretada como uma adesão a tal prática ou identidade.
Mott (2000), no texto acima referendado, inicia a sua exposição afir-
mando o seguinte:
Nem todos os povos odeiam os gays e lésbicas. Em certas tribos da
América do Norte, as mães torcem para ter um filho “invertido” e em
64% das sociedades humanas pesquisadas por Ford & Beach os
homossexuais eram respeitados. Em algumas partes do mundo, como
na Grécia e na tradição Yorubá, até os deuses praticam o homoerotismo
ou são metade do ano homem, metade mulher. Infelizmente fazemos
parte dos 36% dos povos que consideram o amor entre pessoas do
mesmo sexo um problema. Problema tão sério que no Brasil, segundo
pesquisas do Data Folha, de todas as minorias sociais, os mais odiados
são os homossexuais
Homofobia Letal
91
Pesquisas realizadas pelas mais confiáveis agências de opinião confir-
mam que os homossexuais representam o segmento social mais discriminado
e odiado pelos brasileiros, sendo muitas vezes rejeitados até por entidades de-
fensoras dos direitos humanos (Mott, 2001).
Não bastasse a violência que assola o cotidiano dos homossexuais, estes
quando se sentem violados em seus direitos acabam reclamando em juízo,
onde, não raro, tornam-se mais uma vez insultados. Foi o que aconteceu com
o jogador Richarlyson do São Paulo Futebol Clube, que ao ser chamado de
homossexual pelo diretor administrativo do Palmeiras o sr. José Cyrillo
Júnior, procurou a justiça e apresentou queixa contra o mesmo por crime
contra a honra já que a sua orientação sexual não diz respeito a mais ninguém,
senão a ele próprio. O juiz que recebeu o feito para julgar assim se pronunciou:
A presente queixa não reúne condições de prosseguir [...] se fosse
homossexual, poderia admiti-lo, ou até omitir, ou silenciar a respeito.
Nesta hipótese, porém, melhor seria que abandonasse os gramados.
Quem é ou foi boleiro sabe muito bem que estas infelizes colocações
exigem réplica imediata, instantânea, mas diretamente entre o ofensor
e o ofendido num “TÈTE-À-TÉTE”. Trazer o episódio à Justiça, outra coisa
não é senão dar dimensão exagerada a um fato insignificante se
comparado à grandeza do futebol brasileiro. [...] Já que foi colocado,
como lastro, este Juízo responde: futebol é jogo viril, varonil, não
homossexual. Há hinos que consagram esta condição “OLHOS ONDE SURGE
O AMANHÃ, RADIOSO DE LUZ, VARONIL, SEGUE SUA SENDA DE VITÓRIAS”. Esta
situação incomum do mundo moderno, precisa ser rebatida [...]. Não
que homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas
forme o seu time e inicie uma Federação. Agende jogos com quem
prefira pelejar contra si. O que não se mostra razoável é a aceitação de
homossexuais no futebol brasileiro, porque prejudicariam a uniformi-
dade de pensamento da equipe, o entrosamento, o equilíbrio, o ideal
(Juqueira Filho, 2007).
D. Rose, H. Barcelos, L. Santos, M. Durães e T. Carneiro
92
O episódio acima demonstra bem como as pessoas vítimas de precon-
ceitos são ignorados em seus direitos.
A violência letal contra homossexuais
A homofobia praticada no Brasil é tão extremada que, segundo dados
apontados por Mott (2000) a cada cinco dias um homossexual é barbara-
mente assassinado, o que implica o uso desmedido de violência, como se o
agressor quisesse expurgar a culpa do desejo sentido pelo mesmo sexo.
A abordagem da presente questão passa pelo drástico caso relatado por
Mott (2000) do vereador da cidade de Coqueiro Seco, município de Alagoas,
Renildo José dos Santos que após declarar-se homossexual em uma entrevista
na rádio local passou a sofrer perseguições que resultaram em um ato de
barbaridade e covardia:
Na madrugada de 10 de março de 1993, Renildo foi arrancado de sua
casa e sequestrado por quatro policiais e inimigos políticos de Coqueiro
Seco [...] levado para local ermo, Renildo foi vítima de uma das mais
cruéis seções de tortura jamais registrada nos anais da violência
humana: foi violentamente espancado, teve suas orelhas, nariz e língua
decepados, as unhas arrancadas e depois cortados os dedos, as pernas
quebradas, foi castrado e teve o ânus empalado, levou tiros nos dois
olhos e ouvidos, e, para dificultar o reconhecimento do cadáver, atearam
fogo em seu corpo, degolaram-lhe a cabeça e a jogaram dentro de um rio
(Mott, 2000).
A discriminação homofóbica que sofrem gays e lésbicas, levam agres-
sores a situações extremas. Chama muito a atenção a apologia ao crime feita
por um estudante da Universidade de Juiz de Fora que divulgou na internet
a seguinte “convocação”:
Homofobia Letal
93
Estou criando um grupo antigay no país. Eu darei todo tipo de ajuda e
até mandarei dinheiro se você se propuser a matar os gays. Quero
representantes no Rio, S. Paulo, BH, Brasília, Curitiba, Porto Alegre,
Salvador, Recife e Fortaleza. Estou de precisando gente para meter
porrada nos infelizes homossexuais e causar pânico no meio deles.
Preferencialmente bichas da cor negra. Pretendo também incendiar a
sede do Grupo Gay da Bahia. Os baianos geralmente são negros e por
isso merecem apanhar dobrado [...].
Em outro e-mail, de 3 de junho de 1997, Rancora declarou:
Não é difícil espancar um gay. O ideal para espancar um gay é sair com
pelo menos três amigos: use algum tipo de capuz para não ser reconhe-
cido e leve um porrete. Quando ele estiver passando por alguma rua
deserta, você o segura e o põe dentro do carro tipo furgão. Então vai até
uma estrada para foder com o infeliz. Nunca deixe que perceba quem é
você, pois do contrário terá que matá-lo para não ser denunciado. Dê
chutes nele, na cabeça, barriga, saco escrotal e na espinha. Não tenha
medo de aleijá-lo. Você estará fazendo um bem social. Deixe então o cor-
po do cara no mato sem que ninguém teveja. Se matá-lo, afunde o corpo
num rio. E não esqueça de tirar as vísceras para o infeliz poder afundar
e ninguém encontrá-lo. Ninguém deve te ver e saber quem você é!
A Reitoria da UFJF abriu sindicância, mas até dezembro de 1997 ainda
não revelou os resultados (Jornal do Brasil, 19 ago. 1997).
Lidando com a homofobia
É em meio a essa discriminação que os entrevistados da pesquisa de
campo realizada, expressam a angústia que sofrem por viver em uma cultura
que os impede de manifestar publicamente o afeto que sentem por seus
amantes do mesmo sexo.
D. Rose, H. Barcelos, L. Santos, M. Durães e T. Carneiro
94
A homofobia manifesta-se nos mais diversos espaços, públicos e
privados, bem como no seio do lar, onde, espera-se seja um espaço de amparo
aos seus membros.
Enquanto B. afirma que a agressão que sofre em família é proveniente
dos irmãos, C. e J. encontram em suas genitoras as maiores opositoras da rela-
ção. C. afirma que sua mãe, quando ficou sabendo de sua orientação sexual
proferiu a seguinte declaração: “prefiro ter uma filha drogada que lésbica. Não
bastasse a total falta de apoio, impôs-se ao casal a separação sob a ameaça de
levar o fato ao conhecimento de seus pais. Assim, C. e J. declararam à família
o rompimento da relação. Porém, ambas sonham com a independência finan-
ceira, muito bem retratada na fala de C.: “Não possuo condições financeiras
para me sustentar, formando e conseguindo um emprego eu e minha namora-
da pretendemos morar juntas e assumir definitivamente a nossa situação”.
Muitas são as expectativas dos entrevistados em relação a aprovação de
uma lei que reconheça a união de homossexuais e que venha a coibir a
homofobia.
Quanto ao papel do assistente social na presente discussão ressalta-se
a fala de B. que assim se pronunciou:
O Assistente Social deve adotar uma postura diferenciada perante as
relações de gênero, isso é fundamental uma vez que, como profissional
das ciências humanas e educador político, vai se deparar com muitas
orientações sexuais e problemas advindos desta. Sendo assim,
compreender tais relações é extremamente necessário para contribuir
com a criação de políticas públicas e estratégias de inclusão e respeito
aos homossexuais. Levar a essa parte da população tão discriminada os
seus direitos, intervindo como intermediários de conflitos, faz parte
desta formação.
C., sobre a temática anterior, possui a seguinte opinião:
 Os profissionais que conheço têm uma visão bem ampla sobre o
assunto. Mostram que vêem os homossexuais, como pessoas dignas de
Homofobia Letal
95
serem respeitadas e terem seus direitos também respeitados. E como
profissionais sociais têm a postura de garantir aos homossexuais o
direito de se expressar e de viver com dignidade, sem preconceitos.
Liberdade de orientação sexual: a profissão discute o tema
Há muito tem sido objeto de preocupação do Conjunto CFESS/CRESS*, a
sensibilização dos assistentes sociais sobre o debate necessário a respeito da
liberdade de orientação e expressão sexual.
Em julho de 2006 o Conjunto CFESS/CRESS em parceria com o DIVAS
(Instituto em Defesa da Diversidade Afetivo-Sexual), a Liga Brasileira de
Lésbicas, a Articulação Brasileira de Lésbicas e a ABGLT (Associação Brasileira
de Gays, Lésbicas e Transgêneros) lançou a campanha intitulada “O Amor Fala
Todas as Línguas: Assistente Social na Luta contra o Preconceito” que foi
muito bem aceita em amplos setores e movimentos da sociedade civil.
A campanha resultou na elaboração da Resolução CFESS 489/2006 com
a finalidade de “proibir condutas discriminatórias ou preconceituosas, por
orientação sexual por pessoas do mesmo sexo, no exercício profissional do
assistente social”(Brasil, 2006).
Essa resolução estabelece em seu artigo 4º o seguinte:
Art. 4 – É vedado ao assistente social a utilização de instrumentos e
técnicas para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas ou
estereótipos de discriminação em relação a livre orientação sexual entre
pessoas do mesmo sexo.
A presente ação política traduz a importância de se conscientizar o
profissional a contribuir na formação de uma cidadania libertadora e uni-
versal, capaz de inserir no espaço público todas as pessoas, inclusive aquelas,
* Conselho Federal de Serviço Social/Conselho Regional de Serviço Social.
D. Rose, H. Barcelos, L. Santos, M. Durães e T. Carneiro
96
cuja orientação sexual não corresponde ao padrão construído pela cultura
brasileira.
O Conjunto CFESS/CRESS, ao discutir o tema da liberdade de orientação
sexual, o faz por um imperativo que orienta a profissão, pois, o código de ética
dos assistentes sociais, pauta-se, dentre outros, pelo seguinte princípio: “exer-
cício do serviço social sem ser discriminado, nem discriminar, por questões
de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, opção
sexual, idade e condição física”.
A campanha possui como objetivos, dentre outros, sensibilizar a
categoria para o debate em torno da livre orientação e expressão sexual como
direito humano.
Conclusão
A homofobia que se pratica na terra brasilis é legitimada por uma so-
ciedade excludente que marginaliza as suas minorias, entre elas os homosse-
xuais. A matriz cultural que aqui se estabeleceu construiu uma série de
padrões de comportamento, sendo que, todo aquele que não se adequar ao
mesmo, pagará o preço da exclusão e da “inferiorização”. É essa cultura que
leva tantos brasileiros a atentar, brutalmente, contra pessoas que, aos olhos
do agressor, não podem manifestar publicamente uma orientação sexual
homoerótica.
É necessário que os espaços destinados à formação de opinião sejam
chamados a discutir o preconceito contra a liberdade de orientação sexual. Um
povo que vive sob o amparo de uma lei que prega a igualdade de todos, não
pode legitimar, nenhuma prática voltada para a discriminação, principal-
mente daquela que leva à perda dos maiores bens que o indivíduo possui: a
vida e a liberdade.
Valiosa é a contribuição do Conjunto cFESS/cRESS ao normatizar a
proibição de discriminação por parte do assistente social. Sabe-se que a lei por
si só não é capaz de mudar a realidade, mas, ela pode ser o início de uma
Homofobia Letal
97
mudança de postura que se consolidará se as pessoas não se furtarem à
obrigação de fazer valer a tão sonhada liberdade. Liberdade essa que, segundo
Cecília Meirelles, é “um sonho que a alma humana alimenta, que não há
ninguém que explique, e ninguém que não entenda”.
Referências bibliográficas
BERENGUER, Raquel. 2007. Disponível em: http://versosepoesias.spaces.live.com.
Acesso em: 5 jun. 2008.
BRASIL/CONJUNTO CFESS/CRESS. Resolução 489, de 03 de junho de 2006. Estabelece
normas vedando condutas discriminatórias ou preconceituosas, por orientação
e expressão sexual por pessoas do mesmo sexo, no exercício profissional do
assistente social, regulamentando princípio inscrito no Código de Ética Profis-
sional. Brasília, 2006.
. Campanha pela Liberdade de Orientação e Expressão Sexual. O Amor
Fala Todas as Línguas: Assistente Social na Luta Contra o Preconceito.
Brasília, junho de 2008. Disponível em: www.cress-mg.org.br/noticias.htm.
Acesso em: 7 set. 2008.
LARAIA, Roque de Barros. “Cultura: Um Conceito Antropológico”. In __________.
Como Opera a Cultura. Rio de Janeiro, Zahar, 1986, pp. 69-73.
LOURO, Guacira L. “O Corpo Educado”. In __________. Pedagogias da Sexualidade.
Belo Horizonte, Autêntica, 2001.
MOTT, Luiz. “Os Homossexuais: As Vítimas Principais da Violência”. In VELHO, Gilberto
e ALVITO, Marcos. Cidadania e Violência. Rio de Janeiro, Ed. Fundação Getúlio
Vargas, 2000.
SÃO PAULO/PODER JUDICIÁRIO. Crime Contra a Honra. Juiz estadual Manoel Maxi-
miniano Junqueira Filho, 5 jul. 2007.
99
Programa Vitória sem Homofobia
DURVALINA MARIA SESARI OLIOSA1
Tendo como referência o Programa da Secretaria Especial de Direitos Huma-
nos da Presidência da República, “Brasil Sem Homofobia: programa de
combate à violência e à discriminação contraGLBT e de promoção da cidadania
homossexual”, a Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos do município de
Vitória (ES), por meio da Gerência de Políticas de Direitos Humanos, implan-
tou em 2005 uma política afirmativa voltada para o segmento LGBT (lésbicas,
gueis, bissexuais, travestis e transexuais). Com a perspectiva de garantir
direitos iguais, respeito às diferenças e construir uma sociedade mais justa
para todos/as, o Programa Vitória Sem Homofobia visa fortalecer a cidadania,
promover e garantir direitos humanos da população LGBT, prevenir a violência
e a discriminação contra esse segmento e superar a homofobia.
A Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos do município de Vitória
(SEMCID) foi criada em 2005. Portanto, a temática dos direitos humanos é
recente na agenda das políticas públicas do governo municipal, assim como
é recente a institucionalização desta temática no nível federal, uma vez que a
criação do primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos e uma estrutura
administrativa de gestão datam da década de 1990.
A fim de promover e proteger direitos bem como reparar suas violações,
a SEMCID desenvolve um conjunto articulado de políticas afirmativas que visam
desconstruir e desnaturalizar três matrizes de dominação ainda muito presentes
nos processos de interação social em nosso país. As instituições sociais e polí-
1. Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos da Prefeitura de Vitória-ES.
Durvalina Maria Sesari Oliosa
100
ticas se sustentam por valores morais, religiosos e jurídicos que presos a padrões
culturais racistas, heterossexistas e heteronormativos discriminam, negam e
violam direitos, geram e reproduzem violência. Busca-se desenvolver uma
política de resistência ao poder dominante branco, machista e heterossexual e
que seja ao mesmo tempo uma política transformadora e emancipatória.
Para isso a SEMCID atua nos seguintes eixos: educação em direitos hu-
manos; política afirmativa de igualdade de gênero e racial; política afirmativa
voltada para o segmento LGBT; mediação de conflitos e acesso à justiça; prote-
ção e defesa do consumidor; acesso à documentação civil básica.
Cinco princípios fundamentam a política municipal de direitos huma-
nos de Vitória. Partindo da concepção de política pública como uma das vias
possíveis para a realização de direitos, independentemente do modelo de Esta-
do em questão, o primeiro princípio a ser considerado é que “direitos humanos
são direitos de tod@s”. Entendemos conceitualmente direitos humanos na sua
dimensão histórico-crítica, o que significa concebê-los como “construcciones
sociales, históricamente orientadas por necesidades humanas” (Lima Jr.,
2005, p. 151). Portanto, direitos são produtos da ação humana, requeridos por
situações vividas de opressão, dominação, exploração. São conquistas. Fazem
parte de um processo histórico no qual a democracia também é parte, como
ideário, bandeira de luta, desejo, conquista. Direitos humanos constituem algo
que é devido. Não é favor, concessão ou doação.
Alguns grupos sociais necessitam de mais garantias do que outros por
vivenciarem processos históricos e culturais de discriminação e violação de di-
reitos. Alguns grupos sociais experimentam diferentes fontes de desigualdade
e exclusão, que se somam, reforçam e se mantêm no cotidiano, como as desi-
gualdades e consequentes exclusões produzidas nas relações de gênero,
étnico-raciais, classe, orientação sexual, geração, localização geoespacial em
nosso país. Assim, a equidade é o segundo princípio orientador da política de
direitos humanos em Vitória. A universalização de uma política pública só fará
sentido se universalizar direitos, se considerar que é preciso focalizar certos
grupos para diminuir a desigualdade econômica, a social e a invisibilidade
cultural desses grupos. A equidade, que sucintamente diz respeito ao tra-
Programa Vitória sem Homofobia
101
tamento diferenciado aos diferentes, permite que os formuladores de políticas
públicas enxerguem e intervenham na hierarquização provocada pela desi-
gualdade que, escondida nos processos que a naturalizam, gera discriminação,
violação e negação de direitos, exclusão e mata a vida em certos grupos sociais
como de mulheres, população negra, LGBT, índios, ciganos, idosos, crianças e
adolescentes, prostitutas, trabalhadoras domésticas entre outros. Esse prin-
cípio permite, portanto, o reconhecimento e a valorização das diferenças, da
dignidade do sujeito de direitos. Permite questionar o poder hegemônico e
intervir nas ausências por ele produzidas.
Uma estratégia política que consideramos eficaz para o questionamento
e consequentemente o reconhecimento das diferenças e da pluralidade huma-
na é a educação em direitos humanos. A centralidade da educação em direitos
humanos constitui o terceiro princípio da política municipal de direitos huma-
nos. Uma política da alteridade, com pretensão de construir novas subjetivi-
dades comprometidas com o reconhecimento e o respeito ao Outro, ao
diferente. É necessário conhecer os processos históricos de socialização cujos
padrões de dominação se estabeleceram em nosso país para que possam ser
desconstruídos e construído o sujeito de direitos.
A indiferença é marca de um tempo que já não tem espaço para o outro,
de um sem-tempo do outro, cheio do mesmo. A diferença é marco de
uma compreensão plural do humano e de sua realização. Ser é ser
diferente, ser diferente é não-ser o mesmo. A mesmice preenche; a
alteridade abre(-se). Como somente se pode construir e se construir na
abertura, é a alteridade que abriga o humano como construção do ser
humano, mais humano (Carbonari, 2007, p. 169).
O quarto princípio trata da integralidade e da transversalidade da polí-
tica pública de direitos humanos. Esses princípios constituem exigência das
políticas públicas contemporâneas no geral, devido à complexidade dos fenô-
menos sociais a serem por elas enfrentados e também pelo processo de frag-
mentação que as constituem que têm origem nas ciências modernas. Apenas
Durvalina Maria Sesari Oliosa
102
uma secretaria não conseguirá dar conta de promover direitos na medida em
que os direitos humanos são considerados interdependentes e indivisíveis em
suas várias dimensões: civis, políticas, econômicas, sociais, culturais, ambien-
tais. A realização de todos esses direitos é necessária para que o ser humano
tenha uma vida, individual e coletiva, digna.
Por fim, o último princípio orientador que destacamos é o da gestão
democrática. A participação e o controle social são requeridos e praticados pa-
ra o desenvolvimento da política municipal de direitos humanos. A SEMCID im-
plantou e/ou implementou a participação da sociedade civil por meio dos
conselhos da mulher, do negro, de direitos humanos, do fundo municipal de
proteção e defesa do consumidor e dos fóruns municipais de educação em di-
reitos humanos e de defesa da cidadania LGBT.
Programa Vitória sem Homofobia
Efetivando um dos eixos de governo que trata da “defesa da vida e
promoção dos direitos humanos”, os princípios tratados na primeira parte
deste artigo e orientando-se pelo Plano Nacional de Direitos Humanos,
especialmente as diretrizes do “Brasil Sem Homofobia: programa de combate
à violência e à discriminação contra GLBT e de promoção da cidadania homos-
sexual”, a Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória criou no final
de 2005 o Programa Vitória Sem Homofobia. Os objetivos do programa são
fortalecer a cidadania; promover e garantir direitos humanos da população
LGBT, prevenir a violência e a discriminação contra esse segmento, e superar
a homofobia internalizada pelos próprios membros do grupo LGBT, a
homofobia social e a institucionalizada. É preciso possibilitar que a diversi-
dade sexual e de gênero se expressem, simplesmente para que as pessoas
possam viver suas sexualidades.
A política afirmativa para a população LGBTs e concretiza num conjunto
de ações que se dividemem cinco eixos de atuação: fortalecimento e apoio às
atividades do movimento LGBT, garantia de direitos e legislação, trabalho e
Programa Vitória sem Homofobia
103
geração de renda, saúde, estudos, pesquisas e educação para a diversidade
sexual e prevenção da homofobia. Em termos de efetivação da política, alguns
eixos estão mais avançados do que outros. Isso poderá ser verificado nos
resultados do programa, que serão apresentados posteriormente.
Outras secretarias da prefeitura, como Cultura, Educação, Saúde, Assis-
tência, Geração de Trabalho e Renda, assim como entidades LGBT, participam
da formulação dessa política e do controle da sua execução, por meio do
Fórum Municipal em Defesa da Cidadania LGBT. As reuniões do fórum têm
periodicidade mensal. Observa-se maior mobilização para participar nos
momentos de organização do manifesto LGBT, tendo sido realizadas três edi-
ções no município no período de 2006 a 2008. Em apenas duas houve apoio
institucional do governo municipal devido às restrições da legislação eleitoral
em 2008, em função da candidatura do prefeito da capital do Espírito Santo
à reeleição.
A educação para a diversidade sexual e de gênero e para a superação da
homofobia constitui a estratégia político-pedagógica do Programa. Em todas
as ações desenvolvidas são desencadeados processos educativos com o obje-
tivo de desnaturalizar o heterossexismo e a heteronormatividade e contribuir
para o reconhecimento e o respeito às diferenças de gênero e de orientação
sexual.
Resultados
A seguir serão registrados os principais resultados dos três primeiros
anos do programa considerando seus cinco eixos de atuação. Antes, porém,
vale registrar que as ações do programa são implementadas por uma assis-
tente social, de contrato de trabalho temporário, e um estagiário de ciências
sociais. Durante um ano, ao longo dos três de existência do programa, a equipe
contou com mais um membro na condição de cargo comissionado.
Em relação à “saúde da população LGBT” há um diálogo com a Secretaria
Municipal de Saúde para realização de curso de educação em direitos huma-
Durvalina Maria Sesari Oliosa
104
nos, que contempla a temática da diversidade sexual e prevenção da homo-
fobia, para trabalhadores da saúde, com prioridade para aqueles que fazem
atendimento. Há também um diálogo sobre a hormonioterapia; o uso do
silicone e; a inclusão do nome social de travestis e transexuais nos prontuários
do Sistema Único de Saúde. Buscamos, até o momento sem sucesso, o diálogo
com o Hospital das Clínicas – Hospital Universitário Cassiano Antônio de
Moraes – para o retorno do programa das cirurgias de adequação de sexo. A
despeito de o referido hospital ter sido referência nacional nesse tipo de proce-
dimento e encontrar-se realizando cirurgias, várias são as demandas que che-
gam ao Programa Vitória Sem Homofobia de pessoas que não conseguem
entrar no programa da citada cirurgia por terem a informação de que se en-
contra desativado.
No eixo “estudos, pesquisas e educação para a diversidade sexual e
prevenção da homofobia”, registra-se avanço na realização de oficinas com
essa temática. Em articulação com o Programa de Educação em Cidadania e
Direitos Humanos, também da Gerência de Políticas de Direitos Humanos da
Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória, tais oficinas atingem
a diversos públicos como moradores do município, servidores públicos muni-
cipais, dentre esses, trabalhadores da educação e guardas civis, policiais mili-
tares, defensores públicos, apenados beneficiários de medidas alternativas e
membros do próprio segmento LGBT. Ainda não foi possível desencadear ação
para estabelecer parceria com instituições de ensino superior para o desen-
volvimento de estudos e pesquisas.
Algumas ações foram concretizadas no sentido de garantir direitos,
reparar violações e sensibilizar as/os representantes do Poder Legislativo para
a necessária e urgente “garantia de direitos para a população LGBT e legislações
que criminalizem ou sancionem administrativamente condutas homofóbicas”.
Nesse eixo, há um processo de advocacy por militantes LGBT junto à Assem-
bleia Legislativa do Espírito Santo a fim de criar uma frente parlamentar em
defesa dos direitos e da cidadania LGBT. Desde 2006, uma vez por ano, pela
passagem do dia do “orgulho gay”, é realizada audiência pública com temática
relativa à diversidade sexual e à violência contra o segmento LGBT, em parceria
Programa Vitória sem Homofobia
105
entre a prefeitura da Capital, a Assembleia Legislativa e os fóruns Municipal
e Estadual em Defesa da Cidadania LGBT. Em 2008, foi realizada a primeira
audiência pública com essa temática na Câmara de Vereadores de Vitória. Para
além dessas ações, ainda nesse eixo, registra-se o acompanhamento a três
travestis visando inserção no espaço escolar sem discriminação e com respeito
à sua identidade de gênero e orientação sexual, tendo sucesso em dois deles
na Escola Técnica Federal e, no outro, houve evasão pelo fato da Secretaria de
Estado da Educação ter se mostrado muito resistente e não ter cumprido com
o que foi acordado. Uma única ação de reparação foi registrada, mas digna de
ser relatada pelo impacto que gerou. Foi judicializada uma ação por discri-
minação homofóbica e a autora foi condenada a participar de seis reuniões do
Fórum Municipal em Defesa da Cidadania LGBT.
No eixo “trabalho e geração de renda” foi feita articulação com a Secre-
taria Municipal de Trabalho e Geração de Renda que resultou na realização
do curso de qualificação profissional para membros do segmento LGBT, em
parceria com a Associação de Gays do Espírito Santo. Foram capacitadas cerca
de quarenta pessoas divididas em dois cursos: Cozinheiro e Imagem Pessoal.
Seguindo as diretrizes da política municipal de qualificação os cursos tiveram
mais de trezentas horas, contemplando carga horária de educação em direitos
humanos, inclusão digital, teatro e expressão corporal e a qualificação pro-
priamente dita.
Visando ao “fortalecimento e apoio às atividades desenvolvidas pelo
movimento LGBT”, no período de 2006 a 2008, a prefeitura apoiou a realização
de atividades como o Manifesto do Orgulho LGBT de Vitória (2006 e 2007);
ENUDS (2006), encontro do projeto Tulipa (2006), encontro regional de tra-
vestis e transexuais (2006), curso do projeto Somos (2006), conferências
regionais e estadual LGBT (2008). Apoiou a criação e vem apoiando o funcio-
namento dos fóruns Municipal e Estadual em Defesa da Cidadania LGBT.
Por fim, vale registrar que em agosto de 2006, a Secretaria de Cidadania
e Direitos Humanos de Vitória, implantou o Centro de Atendimento às Víti-
mas de Violência e Discriminação: doméstica e de gênero, racial e por orien-
tação sexual. O CAVVID atua com equipe multiprofissional formada por
Durvalina Maria Sesari Oliosa
106
psicólogos, assistentes sociais e estagiários de direito, tendo como estratégia
de atendimento a mediação de conflitos. De agosto de 2006 a julho de 2008,
foram atendidos cerca de vinte casos de discriminação e violência homofó-
bicas. Essa demanda baixa pode estar relacionada com a necessidade de cons-
trução do sujeito de direitos nesse segmento, de criação de vínculo com um
profissional que não vivencia a realidade da vítima e com a ausência de legis-
lação que criminalize a prática da homofobia ficando na dependência da sensi-
bilidade de profissionais da área de segurança e justiça.
Com a política afirmativa para a população LGBT em particular, e a polí-
tica de direitos humanos em geral, buscamos transformar olhares e fazeres,
construir novas subjetividades e novas práticas que respeitem as diferenças,
promovam a igualdade de direitos, fortaleçam o exercício da cidadania e a
democracia. Ninguém nasce homofóbico, racista, sexista, portanto uma outra
sociedade é possível, mais justa e democrática, e esse é o nosso compromisso.
A apresentação dessa política pública no IV Congresso da ABEH significoua pos-
sibilidade da ecologia dos saberes, isto é, a troca de experiências teóricas e
práticas, que numa dialética se fazem e refazem a partir da valorização dos
diferentes saberes, e, esperamos e desejamos que essa troca contribua para a
construção dessa nova sociedade.
Referências bibliográficas
CARBONARI, Paulo César. “Sujeito de Direitos Humanos: Questões Abertas e em
Construção”. In SILVEIRA, Rosa M. G. et al. Educação em Direitos Humanos:
Fundamentos Teórico-Metodológicos. João Pessoa, Editora Universitária,
2007.
LIMA JR., Jayme B. (org.). Plataforma Interamericana de Derechos Humanos,
Democracia y Desarrollo. Derechos Humanos: Econômicos, Sociales y Cultu-
rales. Recife, PIDHDD, 2005.
107
1. FTC.
Os Homossexuais e a Adoção
RAFAELLI LINS DANTAS1
Este artigo busca discutir a possibilidade da adoção homoafetiva a partir de
um conceito constitucionalizado das formas de organizações familiares, o que
demonstra o reconhecimento implícito da união homossexual como entidade
familiar. Consequentemente, a possibilidade jurídica da adoção por casal
homoafetivo torna-se uma realidade através da instrumentalização analítica
do corpo legislativo, associado a fatores de ordem socioculturais. Pensar em
contrário significa negar direitos fundamentais (garantidos em sede consti-
tucional), já que a família contemporânea fundamenta-se no afeto como mola
propulsora da dignidade de seus membros.
O direito de família ao longo dos anos vem se modificando, se recom-
pondo, adequando-se as necessidades humanas correspondente aos valores
que inspiram cada tempo, com escopo de superar exclusões jurídicas em seu
seio: mulheres submissas aos homens, famílias ilegítimas, filhos ilegítimos etc.
Analisando o conceito da família no contexto atual, observa-se a sua reinven-
ção em face das alterações ocorridas no modelo tradicional dos vínculos fami-
liares, desvinculando-se de seus paradigmas originários como o casamento,
o sexo e a procriação. Ainda assim, aliar adoção e homossexualidade é um
assunto extremamente polêmico, que tem sido alvo de inúmeras discussões
e controvérsias, seja nos meios jurídico, religioso e social.
Nesta conjuntura, este artigo visa estudar as transformações ocorridas
na organização social, especialmente no tocante à constituição da família,
Rafaelli Lins Dantas
108
analisando o instituto da adoção sob o ponto de vista da legislação vigente, uti-
lizando-se de uma hermenêutica sociolegislativa que ultrapasse o corpo legis-
lativo e alcance as ideologias “unânimes” e “divergentes”, verificando assim
a possibilidade da adoção homoafetiva, identificando os pontos favoráveis ao
seu deferimento e a problemática jurídica e social em torno do assunto.
Faz-se necessário esclarecer a possibilidade jurídica da adoção ho-
moafetiva, já que são crescentes as discussões que despertam o interesse não
só dos operadores do direito e dos ativistas de movimentos homossexuais, mas
que vem mobilizando toda a sociedade. Uma vez que a heterossexualidade é
a norma, existe uma grande dificuldade em determinados meios sociais no que
diz respeito a aceitar a possibilidade de parceiros do mesmo sexo estarem
aptos a habilitarem-se para a adoção. A relevância do tema encontra-se nas
inúmeras e rápidas transformações pelas quais a sociedade passou e vem
passando, e que o direito não pode ignorar.
É necessário nos questionarmos sobre o assunto, uma vez que não há
na legislação específica sobre a adoção qualquer restrição expressa relativa à
orientação sexual do adotante. Sendo assim, a ausência de uma norma espe-
cífica restringiria o direito de um casal homofoafetivo em adotar um indi-
víduo? Assim, pode-se sustentar a possibilidade jurídica da adoção homoafe-
tiva por meio de uma análise que extrapole os limites legais e alcancem fatores
de ordem psicoculturais e sociojurídicos?
A resposta a tais questões é fundamental, na medida em que não se
pode fechar os olhos para a existência de entidades familiares homoafetivas
e dos naturais reflexos jurídicos desta união, como, por exemplo, a possibi-
lidade de adoção. Ainda que o assunto seja um tabu, se faz necessário des-
vincular-se de discursos moralizantes e preconceituosos para que consigamos
nos aproximar de um ideal de justiça.
A pesquisa não se limita a um olhar unicamente jurídico, na medida em
que questão jurídica discutida é fruto das transformações sociais no trans-
correr do tempo e da ideologia por elas criada, fazendo-se necessário neste
caso uma visão interdisciplinar.
Os Homossexuais e a Adoção
109
Possibilidade jurídica da adoção homoafetiva
As mudanças dos valores e tendências influenciam a sociedade contem-
porânea e vêm rompendo e modificando a concepção tradicional de família,
que está sempre se reinventando, se reconstruindo. A família hoje é um núcleo
descentralizado, igualitário e não necessariamente heterossexual, predomi-
nado, assim, um modelo familiar eudemonista, que tem como fundamento a
busca da felicidade, a realização plena do ser humano.
Como explica Farias (2004, p. 33):
[...] viola o princípio da dignidade da pessoa humana a interpretação que
exclui da proteção legal qualquer entidade familiar, seja ela fundada no
casamento na união estável, em modelos monoparentais em uniões
homoafetivas e no que mais o homem escolha para se organizar em
núcleos elementares.
As uniões homossexuais, preenchidos os requisitos de afetividade,
estabilidade e ostensibilidade, devem ser entendidas e respeitadas como
entidades familiares constitucionalmente protegidas enquanto tais, por sua
própria natureza. Farias e Rosenvald (2008, p. 395) asseveram que
[...] a união entre pessoas homossexuais poderá estar acobertada pelas
mesmas características de uma entidade heterossexual, fundada, basi-
camente, no afeto e na solidariedade. Sem dúvidas, não é a diversidade
de sexos que garantirá a caracterização de um modelo familiar, pois a
afetividade poderá estar presente mesmo nas relações homoafetivas.
Outrossim, não se pode olvidar que mesmo os casais homossexuais
poderão, eventualmente, experimentar a paternidade, através de repro-
dução assistida, e da adoção, conforme vem reconhecendo a jurispru-
dência mais recente. [...] Não se pode fechar os olhos para a existência
de entidades homoafetivas, pessoas (eventualmente de um mesmo gêne-
ro sexual) que se unem ao derredor de objetivos comuns, que dedicam
Rafaelli Lins Dantas
110
amor recíproco e desejam felicidade como qualquer agrupamento
heteroafetivo, impondo-se tutelar juridicamente tais grupos familiares,
não limitando a constituição de entidades convencionas.
A proteção ao núcleo familiar deve ter como fundamento os próprios
cidadãos, seres humanos, que merecem uma tutela especial para se garantir
o respeito à dignidade e igualdade.
Neste sentido, como lembra Carbonera (1999, p. 23):
[...] o direito não deve decidir de que forma a família deverá ser consti-
tuída ou quais serão suas motivações juridicamente relevantes [...].
Formando-se uma [...] que respeite a dignidade de seus membros a
igualdade nas relações entre eles, a liberdade necessária ao crescimento
individual e a prevalência das relações de afeto entre todos, ao operador
jurídico resta aplaudir como mero espectador.
Assim, onde há família deve atuar o Estado, prestando proteção espe-
cial com objetivo de garantir o desenvolvimento e a valorização dos seus mem-
bros de forma igualitária.
A ausência de lei, no sentido de vetar o pedido de adoção formulado por
um casal homossexual, segundo a doutrina, aponta para a tendência do surgi-
mento de precedentes jurisprudências no direito pátrio, na acepção de acolher
a adoção formulada por casal homossexual com fundamento na estabilidade
da união.
Entende-se, portanto, pelo que acima afirmou Carbonera, que não há
um modelo padrão familiar instituído pela Constituição, o que possibilita
compreender que não caberia excluir outras formas de arranjos familiares,
nem tampouco entendê-lascomo equiparações de um modelo padrão, uma
vez que tal padronização inexiste na realidade da instituição familiar brasileira
(monoparental, homoparental, heteroparental); igualmente, negar a plu-
ralidade das entidades familiares ofende diretamente os princípios basilares
da Constituição Federal.
Os Homossexuais e a Adoção
111
 A Constituição, ao se referir expressamente a três formas de compo-
sições familiares (casamento, união estável e comunidade formada por
qualquer dos pais e descendentes), demonstra a multiplicidade de modelos
familiares, o que vincula o Estado ao cumprimento do comando constitucional
no sentido de prestar especial atenção às famílias (art. 226, caput final), no
qual fica claro que tal tutela deve ser prestada a todas entidades familiares em
igualdade de condições.
Segundo Fachin (1997, p. 114):
[...] a partir do texto constitucional brasileiro que assegura a liberdade,
a igualdade sem distinção de qualquer natureza (art. 5 da Constituição
Federativa de 1988), a inviolabilidade da intimidade e da vida privada
(art. 5, inciso X), a base jurídica para construção do direito à orientação
sexual como direito personalíssimo, atributo inerente e inegável da pes-
soa humana. Assim, como direito fundamental, surge um prolonga-
mento de direitos da personalidade imprescindíveis para construção de
uma sociedade que se quer livre, justa e solidária.
Além do que afirma Fachin, não existe qualquer proibição legal no
sentido de vetar a colocação do menor em lar substituto formado por casal
homossexual. O que se ratifica frente à clareza legal do artigo 42 do Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), bem como o artigo 1.186 do Código Civil
de 2002. Sendo assim, nenhum óbice é colocado diante da pretensão de
adoção por casais homossexuais. Até porque a orientação afetivo-sexual não
constitui requisito subjetivo, ou tampouco objetivo, para o deferimento da
adoção.
Logo no seu artigo 1º, o ECA é taxativo ao afirmar que foi acolhida a
doutrina da proteção integral a criança e ao adolescente. Deste modo, pode-
se dizer que o requisito mais relevante para colocação do adotado em lar
substituto está previsto no artigo 43 desse mesmo estatuto, ao prever que a
adoção somente será concedida quando se apresentarem reais vantagens para
adotado, fundando-se em motivos legítimos.
Rafaelli Lins Dantas
112
Outro critério de avaliação quanto à possibilidade da adoção, estatuído
no artigo 29 do ECA, se refere a incompatibilidade ou não do requente em
relação à natureza da medida pleiteada, ou que não ofereça ambiente familiar
adequado.
Já Silva (1995, p. 116) entende que:
[...] o homossexual pode sim, adotar uma criança, desde que avaliado
seu comportamento frente à comunidade, isto é dependerá do juiz
apurar a conduta social do requerente em casa, no trabalho, na escola,
no clube, enfim, no meio social onde vive. Ou seja, o que impedirá, pois,
o acolhimento do pedido de colocação em família substituta será, na
verdade, o comportamento desajustado do homossexual, jamais a sua
homossexualidade. Assim, se ele cuidar e educar a criança dentro dos
padrões aceitos pela sociedade brasileira, a sua homossexualidade não
poderá servir de pretexto para o juiz indeferir a adoção [...] pleiteada.
Apesar do ordenamento jurídico pátrio não colocar nenhum óbice em
relação a duas pessoas do mesmo gênero constituírem uma entidade familiar,
no que se refere à possibilidade de pleitearem juntamente o pedido de adoção,
muitos magistrados têm indeferido o referido pedido por entender que tal
união não se configura com entidade familiar.
O desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, em acórdão, demonstra
que:
[...] reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção
estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características
de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família,
decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes pos-
sam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconve-
niente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais
importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio fami-
liar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de
Os Homossexuais e a Adoção
113
abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base
científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prio-
ridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças
e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o
laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as
crianças e as adotantes (Apelação Cível nº 70013801592, TJRS, 7ª
Câmara Cível, julgado em 5.4.2006).
Destarte, a adoção, tanto para menores (art. 47 do ECA), como para os
maiores de dezoito anos (art.1.623 do Código Civil) só poderá ocorrer median-
te ação judicial, e levar-se-á em conta os benefícios deste novo lar para o
desenvolvimento saudável a este indivíduo, e as implicações psicológicas de-
corrente desta nova relação familiar.
Conclusão
Conclui-se que a Constituição de 1988 alterou profundamente o con-
ceito jurídico de família patriarcal, hierarquizada e matrimonializada, para
eudemonista e repersonalizada, como se observa através da análise do artigo
226, caput, que adotou um conceito amplo, de inclusão, abrangendo todos os
moldes de vida familiar, sendo assim reconhecidas, expressa e implicitamente,
outras formas de entidades familiares.
A constitucionalização do direto da família demanda uma compreensão
além da norma, passando assim a família ter um conceito flexível e instru-
mental, norteando-se pelo afeto. O que demonstra que à luz do texto consti-
tucional não se pode chegar a outra compreensão senão a de que a entidade
familiar deve ser entendida essencialmente pelos laços de afetividade.
Ao consagrar a dignidade da pessoa humana como fundamento da
República (art. 1º, III) a Constituição afirma a dignidade dos seus membros,
que devem ser protegidos de forma igualitária, promovendo o bem de todos
sem discriminações de qualquer natureza. Neste sentido, há que se reconhecer
Rafaelli Lins Dantas
114
que duas pessoas do mesmo sexo podem constituir família, uma vez que cada
indivíduo é livre para escolher a sua orientação sexual, e qualquer tipo de res-
trição neste sentido estaria ferindo diretamente os princípios constitucionais.
Não se pode deixar de incluir a união homoafetiva com características
de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família à mar-
gem do mundo jurídico, pois se estaria inviabilizado a promoção da dignidade
humana desses grupos. Atendendo aos preceitos constitucionais, que deman-
dam uma interpretação que esteja em consonância com a realidade, mostra-
se perfeitamente possível o deferimento da adoção homoafetiva, desde que
preenchidos todos os requisitos e exigências legais para regular o processa-
mento do feito.
Tendo em vista que, não existe nenhum óbice legal no sentido de vedar
o pedido de adoção formulado por par homossexual, deve- se orientar no caso
concreto pelo o princípio do melhor interesse do menor (artigo 43 do ECA).
Deve-se apreciar também o disposto no artigo 29 do ECA, no sentido de
se averiguar se a pessoa do requerente mostra-se compatível com a natureza
da medida pleiteada e ofereça ambiente familiar adequado.
Desta forma, o que se torna crucial verificar é se os pretendentes a
adoção estão aptos a oferecer ao adotado um ambiente familiar adequado,
afetivo e materialmente estruturado, ou seja, toda a família que de fato tiver
meios de promover a dignidade humana de seus membros merecerá tutela
jurídica e especial proteção do Estado. Inviável é uma valoração tão-somente
moral; preconceitos não devem servir de justificativa para alijar direitos, pois
toda construção jurídica que se pretende fazer supostamente científica não se
compadece de tal subjetivismo
Nem a ausência de leis, nem a omissão doJudiciário podem levar à
exclusão da tutela jurídica as famílias homoafetivas. Sendo assim, deve-se
buscar uma hermenêutica sociolegislativa, associando o texto da Constituição
Federal às realidades de diversas organizações familiares.
Os Homossexuais e a Adoção
115
Referências bibliográficas
BRASIL/TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível n.º 70013801592, da
7ª Câmara Cível do TJRGS. Rel. Des. Luis Felipe Brasil Santos, julgado em: 5
abr. 2006. Disponível em: http://www.tj.rs.gov. br/site_php/jprud2/
ementa.php. Acesso em: 20 jun. 2006.
CARBONERA, Silvana M. “O Papel Jurídico do Afeto nas Relações de Família”. Revista
Jurídica. Foz do Iguaçu, SCETF, vol. 1, n. 1, jul./dez., 1999.
FACHIN, Luiz E. “Aspectos Jurídicos da União de Pessoas do Mesmo Sexo”. In BARRETO,
Vicente (org.). A Nova Família: Problemas e Perspectivas. Rio de Janeiro,
Renovar, 1997.
FARIAS, Cristiano C. “Direito Constitucional à Família”. Revista Brasileira de Di-
reito de Família, Porto Alegre, Síntese/IBDFAM, vol. 6, n. 23, abr.-maio 2004, pp.
5-21.
FARIAS, Cristiano C. & ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro, Lumen
Juris, 2008.
SILVA, José L. M. A Família Substituta no Estatuto da Criança e do Adolescente. São
Paulo, Saraiva, 1995.
PARTE II
Homocultura e Literatura
119
O Cânone Impermeável: Homoerotismo
nas Poesias Brasileira, Portuguesa e
Mexicana do Modernismo
HORÁCIO COSTA1
A temática homoerótica é uma das vertentes distintivas da poética da moder-
nidade. O tema de caráter homoerótico, como é sabido, perpassa algo da lírica
clássica e encontra seu lugar mesmo na sobriedade do Velho Testamento;
insemina, na Idade Média, alguns dos mais espicaçantes momentos da produ-
ção dita “escarninha”, e encontra alguns cultores no Renascimento e no Bar-
roco. Tal caminho tem sido recuperado com notável pertinácia pela crítica.
Entretanto, é arguível dizer-se que, no Ocidente, a partir do século XIX, e com
a invenção do “sujeito” moderno – do cidadão liberto de sanções religiosas e
partícipe de sistemas mais ou menos democráticos e representativos – a afir-
mação dessa vertente temática confunde-se com a liberdade de expressão e
de opinião, no processo de valorização da publicização dos registros da inti-
midade individual que acompanha a implantação de sistemas crescentemente
igualitários de convivência social e política.
Nesse sentido, e não surpreendentemente, será um poeta da jovem
democracia norte-americana, Walt Whitman, quem, em seu torrencial Leaves
of Grass – justamente no “Song of Myself” –, primeiro situa o amor pelo
mesmo sexo na linha fronteira da poesia moderna. Como tive a oportunidade
1. Universidade de São Paulo.
Horácio Costa
120
de estudar em outro ensaio2, em que pese o fato de que Whitman não reco-
nheça nenhum caráter de homossexualidade, e menos ainda de genitalidade
na experiência amorosa entre companheiros (comrades) do mesmo sexo –
como ressalta de sua resposta indignada ao questionário que lhe é enviado por
J. A. Symonds, chefe do grupo dos “poetas uranianos” ingleses (os quais, como
agrupação, foram os primeiros em assumir publicamente sua identidade
homossexual no Ocidente), quem lhe sugerira que corroborasse uma sua
leitura homossexual de Calamus –, é justamente com a força da voz whitma-
niana que a temática homoerótica adquire status de cidadania literária na “alta
poesia” da modernidade.
Tal estimativa não deve ter deixado de acompanhar a escolha de Fer-
nando Pessoa/Álvaro de Campos, quem, em “Ode Marítima” e em “Saudação
a Walt Whitman”, deixa claro seu débito não apenas linguístico, isto é, no
sentido de modelo escritural, como também temático (ainda que pelo viés da
paródia, no caso de “Ode Marítima”) para com o nova-iorquino, como se tor-
na claro neste último poema-homenagem, quando o trata de “Grande pede-
rasta roçando-te contra a diversidade das coisas”, entre outros epítetos, depois
de dizer-lhe que ele próprio é “dos teus, bem o sabes, e compreendo-te e amo-
te […]/ E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,/
De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma”.
Por essa aproximação literária, melhor dito: este “homoerotismo
intertextual”, como o caracterizei, entre outros aspectos, esteve Pessoa bem
preparado para responder, como Álvaro de Campos, aos ataques que à publi-
cação das Canções, de António Botto (1922), tinham sido feitos pelo líder da
protofascista Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa, Álvaro Maia, sob forma
de um manifesto – Literatura de Sodoma – cujo episódio completo caracte-
riza a entrada, por assim dizer “oficial”, da vertente homoerótica, assumida
2. “Homoerotismo Intertextual, ou: Que Diálogo é Esse? Álvaro de Campos ‘conversa’ com Walt
Whitman”. In Berenice Bento et al. (org.). Imagem e Diversidade Sexual. São Paulo, Nojosa Edi-
tores, 2004, pp. 254-260; anteriormente publicado, em versão mais compacta, como “La tra-
dición olvidada: la poesia homoerótica en Whitman y Pessoa” (México, La Gaceta del Fondo de
Cultura Econômica vol.1, 1996, pp. 12-17); e em Voz Lusíada (São Paulo, 2004, pp. 48-60).
121
O Cânone Impermeável
como tal, isto é, como uma deriva da dicção moderna, na poesia em língua
portuguesa. O Aviso por Causa da Moral, que responde ao referido manifesto,
assinado por Campos e ironicamente datado de “Europa, 1923”, seguiu à
publicação, assinada pelo Pessoa ortônimo, de “António Botto e o ideal
estético em Portugal”, artigo que não defende a temática homoerótica direta-
mente, mas trata o tema como um efeito da liberdade de esteta que caberia a
Botto (“o único português, dos que conhecidamente escrevem, a quem a desig-
nação de esteta se pode aplicar sem dissonância”)3. Nesse artigo, Pessoa fala
em tom magistral do tema homoerótico, e as autoridades que cita são estetas
do século anterior, Winckelmann e Pater à frente, cujos conceitos sobre o
“amor grego” foram fundamentais para o estabelecimento da moderna cons-
ciência homodirigida no período tardo-vitoriano. De forma conexa, Pessoa
também defende a liberdade de expressão na questão da publicação de
Sodoma Divinizada, opúsculo com o qual o “Profeta Henoch”, isto é, o escritor
Raul Leal, tinha por sua vez defendido as mesmas Canções de Botto e o men-
cionado artigo de Pessoa sobre elas, atacando, por sua vez, o já referido mani-
festo de Álvaro Maia. Vale dizer, aqui, que Pessoa o faz com a autoridade que
sabe ter como o poeta de proa da vanguarda lusa.
Em poucas palavras, o duplo affaire das Canções de Botto e de Sodoma
Divinizada nos permitem observar tanto a implantação da temática homoeró-
tica na poesia escrita em português, mas também, devido ao peso de Pessoa,
à sua “canonização” no âmbito da poesia portuguesa. Aqui, o poeta não acom-
panha a recusa de seu mentor Whitman frente aos poetas ingleses. Nos trinta
e tantos anos entre as respostas de Whitman a Symonds e a defesa pública de
Pessoa de Botto e Leal, observamos uma mudança de mentalidade: o tema,
cuja expressão passa a ser defendida como um direito do poeta, passa a ter
cabida no reino do propriamente literário e daí, no espaço social e político.
Isso não quer dizer que qualquer dos envolvidos portugueses tivesse tido sua
vida facilitada por essa tomada de posição. Se a Pessoa cabe o papel mais
3. Cf. Aníbal Fernandes (org.), Sodoma Divinizada, Lisboa, Hiena Editora, 1989, p. 37. Com
introdução e cronologia elaboradas pelo organizador.
Horácio Costa
122
confortável de canonizador que escolhe o viés que privilegia naquilo que cano-
niza – ao preferir não tratar do tema como transgressão das normas do decoro
literário, mas como manifestação hodierna de uma constante estética –, Botto
passaria por mil revezes, entre eles seu exílio perfunctório no Brasil entre os
anos 1940 e 1950 e sua morte por atropelamento em condição de miséria na
avenida Nossa Senhora de Copacabana, ao passo que Raul Leal viveu
andrajosamente toda sua maturidade e velhice. Maisimportante do que isso,
talvez, é importante frisar que ambos receberam pouca atenção literária, nem
de público nem de crítica, em Portugal ou no Brasil, mesmo depois de terem
sido defendidos por Pessoa, este sim objeto de enxurradas críticas em ambos
os lados do Atlântico e pelo mundo afora4. Apesar do intento de Pessoa, não
se pode dizer com propriedade que Botto e Raul Leal façam parte do cânone
da poesia moderna em Portugal.
Algo não fundamentalmente diverso, porém com resultado expressi-
vamente diferente, acontece no México alguns anos depois. Por volta de 1928,
assistimos à polêmica da “desvirilização da poesia mexicana”, que enfoquei em
outro ensaio5. Essa polêmica opôs os participantes de “Contemporáneos”,
grupo de poetas jovens que havia participado na publicação de uma antologia
da poesia mexicana moderna (organizada pelo poeta Jorge Cuesta), e que
publicava a revista homônima, a alguns membros do “Estridentismo”, movi-
mento da primeira vanguarda mexicana (1921).
O “grupo sem grupo”, como a si próprios se referiam os membros de
Contemporáneos, ocupa um lugar excepcional entre as vanguardas latino-
americanas: antes de qualquer definição estético-ideológica, sequer desejavam
serem reconhecidos como “uma geração”. Não desfraldavam posições comuns
que estimavam devessem ser tomadas como bandeiras desse coletivo que
4. Sobre o primeiro, ver, por exemplo, António BOTTO, Canções e Outros Poemas. Edição,
cronologia e introdução de Eduardo Pitta. Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2008. Sobre
o segundo, consulte-se Sodoma Divinizada, cf. nota anterior.
5. Escritos Llenos de Molicie: Notas acerca da Polêmica sobre a “Desvirilização” da Poesia
Mexicana de 1928. Comunicação apresentada no Encontro Regional da ABRALIC – Associação
Brasileira de Literatura Comparada (Rio de Janeiro, 2005).
123
O Cânone Impermeável
relutava em assumir-se como tal, afora a defesa da liberdade de expressão
individual e da abertura a informações culturais cosmopolitas, o que os expôs
a todo tipo de patrulhamento ideológico. Um bom número de intelectuais
mexicanos, entre eles os estridentistas, via nessas posturas desvios burgueses,
no seio de um processo revolucionário que começara com a revolução mexi-
cana de 1910, que buscava construir uma república de traços socialistas ao
lado dos Estados Unidos da América.
Não era fácil, nesse contexto, tal defesa, e é justamente ela que singula-
riza, a meu ver, a intervenção de Contemporáneos na história cultural do perío-
do. Essa defesa dificilmente poderia esquivar o tema da sexualidade. Alguns
participantes de Contemporáneos foram assumidamente homossexuais –
Carlos Pellicer, Salvador Novo e Xavier Villaurrutia –, e têm como um de seus
principais núcleos temáticos justamente a afirmação do homoerotismo. Em-
bora o temperamento de cada um desses poetas fosse consideravelmente dife-
rente, a experiência homossexual invade sua poesia assim como a questão de
sua sexualidade torna-se pública e é por eles publicamente defendida.
Tal defesa, tal assunção não se deram sem custos para os envolvidos.
Por exemplo, Xavier Villaurrutia morreu aos 48, vivendo exilado de seu país
como professor de literatura hispânica em uma universidade norte-americana.
Por sua vez, a biografia de Salvador Novo é surpreendente: tornou-se, apesar
de todos os augúrios contrários, uma espécie de “homossexual oficial” do
partido político do poder, o PRI (Partido Revolucionário Institucional), nas
décadas finais de sua vida; sua posição no contexto do poder mexicano é uma
exceção, como menciona Carlos Monsiváis em seu estudo Salvador Novo: Lo
Marginal en el Centro6. Não houve, no contexto latino-americano, outro
poeta homossexual que tenha conseguido arrebanhar tanto prestígio munda-
no – e dinheiro… – como Novo. Ainda, sua autobiografia, na qual desce a deta-
lhes sobre a vida homossexual no México revolucionário, La Estatua de Sal7,
6. México, Editorial Era, 2000.
7. Salvador Novo, La Estatua de Sal (com prólogo de Carlos Monsiváis). México, Consejo
Nacional para la Cultura y las Artes-Conaculta, 1998.
Horácio Costa
124
conforma outra exceção. Entretanto, como era de se esperar, a produção lite-
rária de Novo sofre com essa proximidade aos mundos da alta sociedade e da
política: ao final de sua vida, nos anos 1960, é visto como um hierarca pelos
jovens, e tarda em que a crítica literária volte a ocupar-se dela; nesse sentido,
a leitura recente de sua obra e de sua figura feita à luz dos estudos homosse-
xuais vem resgatá-la em sua originalidade literária e sociopolítica. Mas volte-
mos à nossa polêmica.
Aqueles que não agridem os membros homossexuais de Contempo-
ráneos, dentre os intelectuais, tornam-se suspeitos. Começa o que Carlos
Monsiváis caracteriza como um “linchamento moral”: “Vilipendiarlos no sólo
es proteger el patrimonio genital de la República; es también certificar la pro-
pia virilidad” (Monsiváis, 2000, p. 71). Conforme menciona Guillermo
Sheridan em Los Contemporáneos Ayer8, tudo acontece em função de uma
colocação acusatória contra elementos de Contemporáneos de produzir “uma
literatura não-viril”, feita por Manuel Maples Arce e Germán List Arzubide,
poetas-próceres do Estridentismo, defensores expressos de uma belicosíssima
forma de machismo cultural. Em 1934, seis anos depois da polêmica que foca-
lizamos, o primeiro desses poetas irá pedir, como deputado, ao Congresso
Nacional do México, que se proceda a uma ação legal contra “la comedia de
los maricones y el cinismo de los pederastas que se amparan bajo la naciente
publicidad de Proust y Gide” (Sheridan, 1985, p. 132), para que deixem de
publicar obras que alega serem “danosas” à poesia mexicana. Felizmente, tal
iniciativa não se concretizou; entretanto, a cisão entre estridentistas e contem-
poráneos, devido a semelhantes ataques, impediu o diálogo entre ambos os
grupos. Sem dúvida, é esta ausência que responde pela pequena importância
dada, hoje, no cânone literário mexicano, ao Estridentismo, fato que, uma vez
mais, singulariza a literatura do México no contexto latino-americano e, parti-
cularmente, em seu confronto com a brasileira, toda ela estruturada pela capaz
intervenção dos modernistas chamados “heroicos” na década de 1920.
8. Guillermo Sheridan. Los Contemporáneos Ayer. México, Fondo de Cultura Econômica,
1985.
125
O Cânone Impermeável
Como sói acontecer, a palavra machista “pega”. Em 1928, uma das
várias revistas literárias de então, o jornalista Jorge Mañach acusa Contem-
poráneos de produzir “escritos llenos de molicie” – “escritos cheios de molí-
cia”, de onanismo (Cf. Sheridan, 1985, p. 243). De chofre, o debate estético
sobre os caminhos da experimentação literária incluía golpes dados na are-
na da república das letras entre “machos” nacionalistas e “afeminados”
cosmopolitas.
Evidentemente, os membros homossexuais de Contemporáneos apres-
saram-se em se defender. Villaurrutia e Novo seguiram na frente, manejando,
o primeiro, em suas respostas, principalmente critérios literários e, o segundo,
uma panóplia de sátiras e burlas de seus opositores. Por outro lado, José
Gorostiza, o mais equilibrado do “grupo sem grupo”, poeta cuja obra, com a
de Villaurrutia, traduzi ao português9, quem não poupara simpatia a seus
companheiros de geração desde o princípio dos ataques, consciente do que
estes escondiam em termos de ordenamento estético-ideológico, e desde a
segurança de sua indubitável heterossexualidade, assinala o caminho para
balizar o antagonismo assinalado, ao dizer, em 1932, em sua resposta a uma
pesquisa jornalística sobre a pergunta “Está em crise a literatura de vanguar-
da?”, que “lo verdaderamente ‘universal’ es lo original, y lo original es lo que
cada uno lleva en sí, en origen y capacidad creadora para expresar y sensible
para recibir” (Gorostiza, 1996, p. 330)10. Em resumo, a “originalidade” de seus
companheiros de geração passava por sua identidade sexual, que nunca foi
objeto941
Parte X
Homocultura e Masculinidade Gay
A Crise da Masculinidade Contemporânea
FRANCISCO MACIEL SILVEIRA FILHO ......................................................... 949
Vivendo no Entre-Lugar: Raça e Homossexualidade na
Construção de Identidades
JOSÉ ESTEVÃO ROCHA ARANTES ............................................................. 959
Entre a Margem e a Linha: Produção de Subjetividades
Homonormativas e Práticas Sociais Homofóbicas entre
Homossexuais Masculinos
MÁRCIO ALESSANDRO NEMAN DO NASCIMENTO E
FERNANDO SILVA TEIXEIRA FILHO ............................................................ 973
Amores Clandestinos, ou o Sonho da Cinderela
ELCIO NOGUEIRA DOS SANTOS ................................................................ 983
Do Bishônen aos Bears: Diálogos de Estética e Recepção
nos Mangás
GLÁUCIO ARANHA E JOSÉ MARIA PUGAS-FILHO ......................................... 991
Representações Sociodiscursivas da Homossexualidade
IRAN MELO ......................................................................................... 1005
Memória Gay e Segunda Guerra Mundial
TIAGO ELÍDIO ...................................................................................... 1015
Os Sentidos da Aceitação: Sexualidade, Emoção e Relações
com a Família de Origem entre Jovens Gays
LEANDRO DE OLIVEIRA ......................................................................... 1025
14
Homens, Homens Gays
LUIZ FELIPE ZAGO ............................................................................... 1035
Diálogos com a Cultura Pop
LUIZ FERNANDO LIMA BRAGA JÚNIOR ..................................................... 1045
Existe Preto e Branco para Além do Arco-Íris? Um Estudo da
Interseccionalidade de Raça, Gênero e Sexualidade da
Rua da Lama
RODRIGO ANTÔNIO REDUZINO ............................................................... 1053
Homossexualidade e Identidade: Um Estudo do Homossexual
Frente ao Preconceito Sutil
SAULO SANTOS MENEZES DE ALMEIDA ................................................... 1059
O Ato Performativo Masculinizado no Transatlântico e o Mito
da Virilidade do Homem Negro Ocidentalizado
SUELY ALDIR MESSEDER ...................................................................... 1069
História Sexual Brasileira: Uma Perspectiva Foucaultiana sobre
a Sexualidade e a Homossexualidade no Brasil do
Descobrimento à Atualidade
ZENILTON GONDIM SILVA E NÚBIA REGINA MOREIRA ............................... 1081
15
1. Universidade de São Paulo.
Discurso de Abertura do IV Congresso da ABEH
HORÁCIO COSTA1
Há oitenta anos o paulistano Paulo Prado publicava um Retrato do Brasil que
a sociologia, e mesmo a historiografia literária, consideram um dos pilares do
pensamento moderno brasileiro, junto com Casa Grande e Senzala, de 1933,
de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, de
1936. Há oito décadas esta universidade não existia, e menos ainda o museu
no qual nos congregamos. São Paulo era uma cidade em plena expansão
devido ao influxo de imigrantes, mas estava, contudo, longe de ser o polo de
expansão capitalista de hoje. O Brasil daquela época tinha um cariz agrário-
exportador notável e, a bem dizer, apenas um décimo de nossa população
habitava em centros urbanos de alguma importância.
Ainda assim, mesmo que tendo sido escrito numa sociedade e num
mundo tão diverso do atual, o estudo de Paulo Prado lê-se ainda hoje com
proveito, tanto por seus acertos, não poucos, na titânica tarefa de interpretar
um país elusivo como o nosso, como também pelos algo desconcertantes desa-
certos que enfileira. Na soma de ambos, tem aquele Retrato do Brasil o grande
mérito de permitir, ao leitor atual, entrar na forma mentis dominante de uma
época, nas camadas bem pensantes da nação em formação; pelos olhos críticos
de Paulo Prado, aquele Brasil se desnuda à nossa percepção contemporânea.
Entretanto, ao passo que a tentativa de interpretação da história e da
gênese da nacionalidade ainda nos parecem significativos e certeiros, deter-
minadas avaliações do escritor ressaltam hoje como perfeitamente caducas.
Horácio Costa
16
Ainda dispondo de um olhar próprio do século anterior, Prado refere-se à
humanidade brasileira como sendo o resultado da fusão de três raças tristes, no
que anuncia, a bem dizer, um duplo desacerto: primeiro, no relativo à fusão,
revela possuir um ponto de vista antimiscigenação, ainda sucedâneo dos pre-
conceitos puristas e eugenistas do século anterior; segundo, no que tange à
nossa putativa “tristeza”, observamo-lo em perfeita desconexão com o espírito
predominante do povo brasileiro, não sendo capaz de sintonizar-se então com
o grande potencial fundamentalmente energético e álacre com o qual, ao longo
dessas oito décadas, cada vez mais associamos nosso modo de ser.
Em ambas as avaliações, sobressalta um quociente de enraizado precon-
ceito contra a “coisa” nacional que, valha dizer a seu favor, apenas fazia quaren-
ta anos havia formalmente superado a lacra da escravatura. Já em sua nota
sobre Retrato do Brasil, Oswald de Andrade, nosso impagável pai-antropófa-
go, dizia que não podia “compreender como um homem à la page” como Prado
“escrevesse sobre o Brasil um livro pré-freudiano”. Em nenhum momento esta
observação soa tão acertada como quando percebemos um ranço de puritanis-
mo sobre a vida sexual do Brasil. Para corroborar o dito, cito um trecho que ele
retirou do Tratado Descritivo do Brasil em 1587, de Gabriel Soares de Sousa:
[...] e não contentes estes selvagens de andarem tão encarniçados neste
pecado, naturalmente cometido, são mui afeiçoados ao pecado nefando,
entre os quais se não tem por afronta; e o que serve de macho se tem por
valente, e contam esta bestialidade por proeza; e nas suas aldeias pelo
sertão há alguns que têm tenda pública a quantos os querem como
mulheres públicas.
Paulo Prado relata ainda que, das 120 confissões feitas ao Santo Ofício
às partes do Brasil, 45 referiam-se ao “pecado sexual”. Ele ilustra os “depoi-
mentos de seus vícios” com uma descrição deveras longa, da qual extraio as
seguintes passagens:
Discurso de abertura do IV Congresso da ABEH
17
[...] Sodomita, esse vigário de Matoim, de 65 anos, cometendo atos
desonestos com mais de quarenta pessoas, ou esse outro clérigo,
Frutuoso Álvares, “homem velho que já tem as barbas brancas”,
pederasta passivo, assim como o cônego Bartolomeu de Vasconcelos,
apaixonado pelos negros de Guiné; e o sodomita incestuoso Bastião de
Aguiar, menor de dezesseis anos que se ajuntava com o irmão mais velho
e com um bacharel em artes, natural do Rio de Janeiro; [...] e João
Queixada, morador em casa do governador d. Francisco de Sousa, e que
dormia em Lisboa com os pajens do deão da Sé. Tríbade, essa famosa
Felipa de Sousa, que conhecia como um Safo parisiense a arte de “falar
muitos requebros e amores e palavras lascivas melhor ainda do que se
fora um rufião à sua barregã” e que conseguiu penetrar, para saciar o
vício, num mosteiro de monjas; tríbade também Luísa Roiz, que
perseguia na sua fúria as negras da cidade.
Mais de trezentos anos depois, Paulo Prado ainda avaliza os dizeres e
valores dos primeiros cronistas. Isto é o que permite a Oswald de Andrade
apontar uma componente “de português de governança e fradaria” nos pontos
de vista morais do aristocrata paulistano.
Oito décadas passadas, a situação mudou, e nós sentimos, talvez equi-
vocada e ilusoriamente, que já fazemos parte de qualquer retrato do Brasil que
se queira comprometido com a avaliação objetiva de nossa realidade. Multi-
dões se reúnem a cada mês de junho em várias cidades de norte a sul, e parti-
cularmente nesta, para festejar nossa dificilmente conquistada visibilidade no
espaço social. Apesar disso, contamo-nos entre os primeiros, ou somos o país
com o maior número de crimes de ódio contra homossexuais e direitos básicos
nos são legalmente negados. Por tais razões de peso, portanto, temos bem
presente que sob a aparênciade derrisão por parte dos participantes heterossexuais do “grupo sem
grupo”.
Ao contrário de Portugal, que ignorou António Botto e Raul Leal até há
pouco, no México as obras dos homossexuais Salvador Novo, Xavier
Villaurrutia e Carlos Pellicer são parte fundamental do cânone da poesia
9. Veja-se José Gorostiza. Morte sem Fim e Outros Poemas, São Paulo, Edusp, 2003, e Xavir
Villaurrutia. Nostalgia de la Muerte/Nostalgia da Morte, Lisboa, Diário de Notícias, Programa
Periolibros, 1994.
10. José Gorostiza: Poesía y Poética, Edição crítica de Edelmira Ramírez, México, Fondo de
Cultura Económica/Unesco, Coleção Arquivos, 1996.
Horácio Costa
126
moderna: objeto de culto nos dias que correm, entre outras razões pela defesa
de sua opção sexual e da livre expressão, tiveram suas obras completas editadas
por editoras oficiais de prestígio, como a Fondo de Cultura Económica, e são
incluídos nos currículos escolares. Como vemos, a permeabilização do cânone
pode implicar uma série de medidas, entre elas as do reconhecimento oficial,
para o que à intelectualidade, à academia, pode perfeitamente corresponder
tarefas de reciclagem e dimensionamento do acervo poético jazente.
Seja como for, a existência de tais debates em Portugal e no México na
década de 1920 podem e devem alertar-nos sobre a relativa defasagem da
cultura e, particularmente, do registro subjetivo que pode significar a palavra
poética em relação a temas de ampla ressonância, como o da exploração da
diversidade sexual no contexto do Modernismo brasileiro. E podem e devem
alertar-nos também para a necessidade de releitura do cânone em nosso
âmbito doméstico, tratando na medida do possível de sua ampliação ou, em
todo caso, de sua problematização crítica real: a nossos olhos atuais, o fato de
que não tenha havido até a obra de um Mário Faustino ou um Roberto Piva,
já nos anos 1950 e 1960, respectivamente, um registro homoerótico nítido no
reino da “alta” poesia brasileira representa um problema de difícil porém
imperativo deslinde, antes que uma simples constatação historiográfica.
Nesse sentido, vale comparar as atitudes de Fernando Pessoa na polê-
mica da “Sodoma divinizada” e de Gorostiza na da “desvirilização da poesia
mexicana” com a de alguns poetas modernistas brasileiros frente à “ciliciante”
(utilizo o termo de Haroldo de Campos para referir-se ao tópico que passo a
tratar) questão da ainda putativa vivência homossexual de um Mário de
Andrade, por exemplo, tema este transformado em anátema por alguns dos
intelectuais que se dedicaram à crítica de sua obra, bem como por alguns de
seus parentes. Se, por um lado, a correspondência de Mário ainda está clas-
sificada como sigilosa na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, graças ao
que a posteridade jamais terá acesso a aspectos de sua vida privada, por outro
lado há que recordarmo-nos de apenas dois acontecimentos, para situar, com
evidente prejuízo para a cultura brasileira do Modernismo, a resposta de seus
companheiros de geração.
127
O Cânone Impermeável
O primeiro diz respeito a uma anedota algo consabida: a ruptura entre
Mário e Oswald se dá em função de vários fatores, entre os quais incidem os
de ordem temperamental e social, mas o estopim é o fato de este haver tratado
aquele derrisoriamente como “Miss São Paulo de costas”; a ofensa impediu
que o autor de Macunaíma perdoasse a blague de seu companheiro de armas,
e, apesar das tentativas deste, o “arlequinal” Mário jamais voltou a tratar o
“palhaço da burguesia” Oswald. Homofobia de palhaço contra arlequim? Ho-
mofobia internalizada deste à luz sádica daquele? A terminologia contempo-
rânea não deslinda o problema, uma vez que o quadro civilizacional que se vive
hoje é muito diferente. O que cabe ao crítico, o intérprete do Brasil na atuali-
dade, é verificar a malaise que o tema da homossexualidade desperta nesses
próceres culturais, que poucas vezes são de fato considerados sob este viés, o
que em si não deixa, por sua vez, de causar pasmo. A modernização pela que
lutaram e por cuja implantação foram em boa medida responsáveis elide o
tópico: quando não silencia sobre ele, faz troça. O que será pior?
O segundo acontecimento a que me refiro indica que sim, existe algo
pior: a concessão aos bons costumes, a autocensura induzida por um par da
mesma geração. Trata-se da supressão de um verso de um poema de Mário,
“Girassol da Madrugada”, publicado em Livro Azul (1940), mas cuja escritura
remonta aos primeiros anos da década de 1930. Em função desse verso hoje
desconhecido, Mário é instado por Manuel Bandeira, seu correspondente no
Rio de Janeiro – e, recordemo-nos, o decano dos modernistas da primeira
geração, cuja autoridade estética e moral nunca foi disputada entre os dife-
rentes subgrupos destes, sim, valentes renovadores da cultura nacional – a
não publicar o que escrevera, devido a seu provável cariz homossexual. Na pas-
sagem em questão de “Girassol da Madrugada”, quando Mário arrola seus
“amores eternos”, incrusta-se um verso cuja excepcionalidade intriga: “Ecli-
pse, boi que fala, cataclisma”. Algumas evidências levam a crer que este verso
substitua, como disse, um anterior, rasurado da correspondência entre os dois
poetas, e objeto de extensa negociação entre Bandeira e Mário, e que leva
quase três anos para ser estabelecido, numa espécie de pacto entre eles. Assim,
Mário não mencionaria seu amor por um homem, porém substitui o verso que
Horácio Costa
128
Bandeira considera impublicável por esse que repito: “Eclipse, boi que fala,
cataclisma”.
Termino aqui minhas observações no presente ensaio, não sem pro-
meter para breve uma análise de todo esse especioso imbróglio. Por enquanto,
vale tecer uma última consideração: pelo que foi arrolado anteriormente, não
é demais aferir a impermeabilidade do registro homoerótico no âmbito do
cânone da poesia brasileira moderna como um fenômeno não desprezível dos
limites de nosso processo de modernização como um todo. As convenções do
dizer, ou ainda, o exercício caviloso da autoridade da heterossexualidade
compulsória pesaram mais, para nossos modernistas, do que a lealdade para
com o poeta possivelmente hipossuficiente em termos sociossexuais.
Mário não teve seu Pessoa nem seu Gorostiza, como Botto e Novo. Mas,
no aspecto que nos ocupa, Mário não foi nem Botto nem Novo. A palavra ho-
mossexual teria que esperar outros trinta ou quarenta anos para plasmar-se
na dita “alta” poesia brasileira.
Por quê?
129
Para uma Estética Pederasta
EMERSON DA CRUZ INÁCIO1
O marginal do marginal pode virar central.
Isso o Cânone adora. [...]
Que fará com seres que tais daqui para a frente
O Cânone?
Horácio Costa
Considerando os questionamentos e proposições apresentados por ocasião
deste colóquio, ou seja, repensar os rearranjos, ressignificações e novas articu-
lações tanto das subjetividades contemporâneas, como das demandas impos-
tas pela hipermodernidade, o trabalho a seguir intenta estabelecer as possíveis
relações entre o cânone literário e uma conformação estética baseada na expe-
riência e na subjetividade homossexuais. Esclarecemos, antes, que o pensa-
mento aqui descrito resulta de convergências, aproximações e confrontos,
entre abordagem corrente do campo literário, como a de Antonio Candido, o
pensamento de Michel Foucault e a Teoria Queer, como horizontes aqui vistos
em sua possibilidade de interação.
O cânone: relativizações
Em seus artigos “Linguagem e Literatura” (Machado, 2001) e “Lingua-
gem ao Infinito” (Foucault, 2002), Foucault teoriza a respeito das implicações
da linguagem e de como esta se articula de maneira a estabelecer o que se
convenciona chamar literatura. Para o filósofo, a literatura – como fenômeno
1. Universidade de São Paulo.
130
Emerson da Cruz Inácio
moderno que se constitui como discurso – é fruto do poder disciplinar dos
séculos XVIII e XIX, mesmo poder que, aliás, influi sobre os dizeres do corpo e
do sexo. É esse o período da históriamoderna em que a vida comum passa a
ser “discursivizada” e a tomar domínios específicos dentro dos discursos
vigentes. Assim, é nesse ínterim que a literatura, como os outros saberes de e
sobre o homem, começa a se diferenciar dos demais textos, articulando-se
como um domínio específico da linguagem, por um lado, e como uma forma
de institucionalizá-la, por outro.
No primeiro artigo, o filósofo alude ao fato de que a pergunta tão cor-
rente no momento da produção de seu artigo – “o que é a literatura?” – é uma
questão que está no cerne da própria literatura, uma vez que nenhuma obra
nasce com tal rótulo, mas são as injunções históricas e culturais que a deter-
minam como um arranjo particular em sua relação com a linguagem. Ou seja,
quer afirmar que o texto não “nasce” literário, mas, torna-se função das estra-
tégias de leitura, abordagem da crítica e dos discursos que procuram justificar
a presença da obra no interior de um sistema mais restrito.
Analogamente, poderíamos pensar que nada do que constatamos per-
tencer aos cânones literários está ali por acaso, mas, antes, pelas dinâmicas
diversas que consagram ou despriorizam os diversos aspectos estéticos que
concorrem numa mesma época. Nesse sentido, todos e quaisquer cânones são
excludentes por natureza, visto que denotam sempre uma eleição do que pode
e deve fazer veicular uma “verdade”, seja ela divina, estética, literária ou legal.
Retomando Foucault, o cânone literário funcionaria como um disciplinador
dos diversos discursos autodeclarados estéticos, mas que por diversas razões
tornar-se-ão excêntricos, marginais e/ou periféricos, procurando responder
aprioristicamente à demanda “o que é literatura?”
E o a priori aqui estabelece a confusão: quem define quem? É o cânone
que responde, chancelando e incorporando a produção, ou seria a produ-
ção que, pelo caráter “literariedade”, acaba por reivindicar seu lugar naquele
espaço? Coincidência ou não, os dois processos se dão simultaneamente, se
confundindo nessa dinâmica, inclusive com fatores que as abordagens mais
tensas consideram extraliterários, como classe social, permeabilidade do autor
131
Para uma Estética Pederasta
ou da obra em determinados contextos e espaços, gênero, raça e etnia, ou
ainda com o tipo de suporte utilizado na divulgação da obra.
Aliás, o trinômio gênero-sexo-orientação sexual talvez seja de todos os
elementos citados aqui o que mais cause (ou tenha causado) desconfortos ao
cânone, considerando sua inscrição nas histórias literárias. Mas é oportuno
destacar que, embora os tais fatores externos a que aludimos anteriormente,
dentre os quais a tríade sugerida, sejam veemente negados, muito salta aos
olhos o fato de a seqüência masculino, homem e heterossexual ser silencio-
samente o modus operandi dos cânones literários. De certo que, como aponta
Pierre Bourdieu, esta trindade seja o resultado das modernas formulações bur-
guesas do século XIX e, consequentemente, pode estar ligada àquilo que o filó-
sofo descreveu sobre o patriarcado: o coroamento do homem, ser do sexo mas-
culino, como origem, destino, forma e padrão epistemológico. Logo, a ideia de
cânone que se estabelece definitivamente entre nós nos oitocentos, perpetua-
se também em sua intrínseca ligação com a forma de se conceber o mundo,
logicamente (e não havia outro modo) filtrada pela subjetividade majoritária
de então.
Contraditória é a situação da literatura nesse contexto: grande espaço
da subversão das linguagens e do discurso, transgressora por natureza, por um
lado, e efetivo elemento de confirmação de um modo burguês de ser, em que
tudo o que fere aquela moral será efetivamente extirpado de seu corpo. No
caso, a literatura, expressão do cânone – porque veículo de circulação de
discursos e ideologias – acaba por colaborar também para o controle dos
corpos, para a perpetuação do interdito sobre a sexualidade, e por silenciar ou
punir tudo e todos os que não são contemplados pela moralidade burguesa ou
que nela não se enquadrem. Não nos causa estranheza o fato de que o cânone
a que aludimos do século XIX tenha apenas conservado em seu arranjo autores
e textos que enfatizaram os valores vigentes de então, como Eça de Queirós,
Aluísio Azevedo ou José de Alencar. Em grande parte, esta literatura vai
representar controle dos corpos, assim como, ao apropriar-se do discurso
médico-patológico, assumindo com isso o lugar de juiz social, moral e cultural,
ocupar o espaço pedagógico de formação do espírito.
132
Emerson da Cruz Inácio
Em lado oposto, uma produção cujos vieses tensionaram com os
modelos vigentes, seja por contemplarem conteúdos cuja circulação feria
“moralidades”, ou por adotarem procedimentos estéticos não normativos, ou,
ainda, temas menores. Assim, foram expurgadas dos cânones de língua
portuguesa produções que denotavam a rasura dos valores do patriarcado,
como A Silveirinha, de Julia Lopes de Almeida, Lésbia, de Maria Benedita
Bormann, O Barão de Lavos, do português Abel Botelho; e as Canções, de
António Botto, até hoje considerado um poeta menor no arranjo literário
português. Por outro lado, a crítica formadora dos cânones procurou obliterar
em determinados autores, como no já clássico caso do Elixir do Pajé, de
Bernardo Guimarães, aqueles conteúdos que não se conformavam aos jogos
discursivos sobre os quais se apoiavam os interesses dessa crítica. Nesse dia-
pasão, ainda, as Odes de Álvaro de Campos, e o inglês, a língua do Eros de
Fernando Pessoa, cujo viés homoerótico explícito ou deixou de ser mencio-
nado ou foi esvaziado em favor do discurso da identidade nacional.
Implicitamente já está sugerido que no jogo canônico alguns temas e
algumas subjetividades foram, por questões históricas e sociais, excluídas do
processo. Mas o que mais reclama sentido é que os avanços históricos e sociais
não representaram necessariamente a mudança ideológica no cânone. O que se
quer aqui é promover o processo de dessubalternização a que alude Spivak
(apud Landry & Maclean, 1995), não pelo desmanche do cânone, mas por sua
abertura às dinâmicas identitárias mais contemporâneas. E, para tanto, se a in-
serção nesse campo demanda uma formulação estética específica, propomos co-
mo base naquilo que já nos foi dado pela própria literatura a criação de um arca-
bouço estético capaz de compreender a presença de homossexuais masculinos
e femininos no texto literário, assim como sua intervenção como produtor.
Uma estética pederasta
Na Grécia antiga, a pederastia consistia numa relação de aprendizagem
a que todo cidadão deveria estar submetido em uma determinada fase de sua
133
Para uma Estética Pederasta
vida. Não revelava necessariamente um comportamento ou subjetividade, mas
sim um procedimento necessário à formação dos cidadãos do sexo masculino,
livres e gregos, permitida entre homens já maduros e adolescentes imberbes
(Dover, 1994). Nesse jogo incluía-se, ainda, a aprendizagem amorosa em que
o sexo também estaria envolvido, sem que isso implicasse prejuízo moral ou
social ao preceptor ou ao efebo, pois se consideravam que todos os indivíduos
(homens) respondiam a estímulos eróticos distintos em momentos distintos
da vida. Findo o período de formação, com o aparecimento dos traços de ma-
turidade, o jovem retornaria à sua família e não seriam mais permitidas rela-
ções homoeróticas, pelo menos não oficialmente. No correr da História, o ter-
mo deixa de designar uma fase da vida do homem e passa a ser análogo ao
comportamento sexual entre homens, perdendo com isso seu sentido original.
O pederasta passa a ser, então, aquele cujos hábitos sexuais traem sua essência
masculina, sua identidade, sua religião, seu corpo e seu natural desejo, como
sinaliza Eve Sedgwick (1985). Observamos aqui a migração do sentido de
prática social para a descrição de um comportamento que, segundo Foucault,
será talvez o modo mais observado pelas formas de controle, discurso, ideo-
logia e do saber no correr da IdadeModerna, ainda que a pederastia compre-
endesse, no passado, o aprendizado de uma maneira estética de ser e se portar.
Os séculos XVIII e XIX definitivamente transformam o pederasta em “iden-
tidade”, em crime, em exemplo de comportamento capaz de comprometer os
então Estados-nações em processo, como também os já estabelecidos, como
apontaria Teófilo Braga, poeta, político e historiador português.
Portugal, por exemplo, experimenta dessas duas concepções por oca-
sião da polêmica (1922-1923) em torno da publicação das Canções de António
Botto, de teor notadamente homossexual. Fernando Pessoa e Raul Leal e,
posteriormente, José Régio, procuraram tecer um conjunto teórico-crítico que
propunha um modo de ser baseado nas experiências particulares do indivíduo
e que se desdobrariam, inclusive, em preceitos estéticos capazes de serem
detectados na obra do artista. Pessoa e Leal, em princípio, partem em defesa
de António Botto, acusado publicamente de fazer difundir em Portugal o vício
trácio, a prática sodomítica, o amor grego, o pecado nefando, visto que veicu-
134
Emerson da Cruz Inácio
lava em seus poemas declaradamente seu amor por rapazes desconhecidos,
exploradores e de aluguel. A polêmica gera fortes reações na sociedade, cul-
minando com a publicação do ensaio Sodoma Divinizada (Bragança, 1989),
em que Leal defendia a pederastia como uma forma moderna de, pela prática
da sodomia, pela mudança no comportamento sexual dos homens portugue-
ses, pela bestialidade pura e pela diversidade das sensações, alcançar a inte-
gração do homem com o cosmos, o universo, todo ele “vertigem”, como o que-
ria Pessoa. Tinha na sodomia o meio mais curto e certo de proporcionar ao
indivíduo, pederasta, a ascese. Para que essa elevação fosse alcançada, era pre-
ciso, pela pederastia, tornar a vida uma experiência estética constante.
José Régio, por sua vez, ocupa-se, a partir de 1927, da publicação da
revista Presença, em que descerra o conceito de literatura viva, que bordejava
questões muito ligadas à expressão de uma sensibilidade autoral e do revelar
da subjetividade (poética e pessoal) do artista no interior de sua obra. Esse
poeta aproveita-se do precedente intelectual aberto por Pessoa e Leal, e de sua
também simpatia por Botto (mais como performativo que era que como poe-
ta), para, a partir daí, teorizar sobre como “existir” de acordo com seu próprio
desejo (ainda que ficcional) no espaço da literatura. Atentemos para a lista de
autores “vivos” para o poeta – Oscar Wilde, Jean Cocteau, Sá-Carneiro, André
Gide, Marcel Proust, Botto, Pessoa, Shakespeare, Noel Coward –, todos auto-
res inscritos na cultura como realizadores de uma escrita em que os pressu-
postos eróticos e ligados a uma vivência sexual do corpo estão em questão e,
por que não dizer, são o objeto principal de sua arte. A única ressalva é a ine-
xistência de autoras na lista tecida por Régio, o que confere à sua postulação
estética, num juízo mais contemporâneo, um tom perigosamente masculinista
e excludente.
Por extensão, majoritariamente, os exemplos de vida insuflada à litera-
tura e à arte contemplam artistas que experimentaram esteticamente não só
a exposição do corpo, mas, principalmente, o homoerotismo e a homosse-
xualidade, demonstrando como a forma de existência dos indivíduos pode
interferir ou determinar os discursos que produziam, tendendo à criação de
uma política ontoestética. O que a arte viva põe em tela é não só a esteticização
135
Para uma Estética Pederasta
da vida, como também a vivificação da arte, baseada nas experiências ficcio-
nais ou não do indivíduo, e que pode ser acrescida pela orientação sexual que
o constitui e que pode influenciar em seu trabalho estético. Pode ser também
uma história do corpo no espaço literário, uma vez que, ao destacar como
exemplo autores como Jean Cocteau e Oscar Wilde, o que está sendo discutido
também é a configuração que tais artistas conferiam à corporeidade como
forma de traduzir os dramas humanos e particularmente os pessoais, os
desejos eróticos e a existência. Em todos os artistas arrolados no correr dos
catorze anos da revista, Régio detectou um certo compromisso artístico e
estético, um cuidado com o procedimento literário que os distinguia da série
temporal em que se inseririam. Coincidência ou não, autores que amplamente
tematizaram questões ligadas à experiência homossexual ou identificados/
relacionados ao que então se entendia por pederastia, ou que, em algum grau,
eram, foram ou tornaram-se reconhecidos pela orientação homoerótica bio-
gráfica ou estética.
Há, pois, em Régio, a detecção de que seu conceito de literatura abre-
se também à compreensão estética da vida, do corpo e da homossexualidade,
convertida em pederastia pela esteticização da existência e do corpo, escre-
vendo assim um texto do desejo, que por consequência revela sexualidades e
formas de erotismo. Tal fato pode apontar para a tentativa de se criar também
a ideia de uma “estética pederasta”, ou de ler, considerando o eixo paradig-
mático, literatura produzida por pederasta na mesma sequência da literatura
viva, no sentido em que essa conceituação estética apontaria para um conjunto
de procedimentos que estariam atentos a representar, apresentar e configurar
o homossexual/pederasta na literatura e em seus recursos.
Entretanto, é recorrente na crítica de gênero que um conceito como o
de homossexualidade tenda a apontar a formação de identidades específicas.
Como não se pode afirmar a princípio a formulação de uma identidade sexual
homoerótica, em termos modernos, na crítica ou na poesia de Régio, ou em
quaisquer outros modernistas e, sim, de um modelo de ordem estética, opta-
se, pois, pelo uso de pederastia, visto que esta, em seu arcabouço pedagógico
e moral, pode melhor caracterizar o ideal implementado através da literatura
136
Emerson da Cruz Inácio
viva. Até porque, como bem nos indica Judith Butler (2003, pp. 186-187), a
destruição do corpo pela história “é necessária para produzir o sujeito falante
e suas significações”, já que, descrito pela linguagem, se enfraquece pela e na
dominação dos discursos sobre si próprio. Nesse sentido, assumir a produti-
vidade de um termo como pederasta é também ressignificá-lo, não só pela ló-
gica do gay pride, como também pela subversão que tenderia a indicar dos
valores atribuídos pela cultura heterossexual e homofóbica, revalorizando-os
como recurso político, particularmente se consideramos a genealogia de
destruição do corpo pederasta ao longo da História e de sua particular repres-
são, como destaca Foucault no século XIX.
A estética pederasta, nesse sentido, seria uma rearticulação da
perspectivação de gênero para além do par formal masculino-feminino, parti-
cularmente das homossexualidades, no interior da literatura, e propiciadora
de uma descompressão do silenciamento da (homo)sexualidade como para-
digma possível e protocolo de leitura. A estética pederasta constituir-se-ia
como um somatório de aspectos biográficos, ficcionais e estéticos, e seria ba-
seada na experiência homoerótica, seja na ordem do vivido, seja na ordem do
ficcionalmente literário, contribuindo para a caracterização da pederastia co-
mo recurso estético e forma de vida. Seus princípios basilares constituir-se-
iam a partir da esteticização da vida e a cotidianização da arte – gesto próprio
das vanguardas –, propiciados pelo confronto das experiências dos artistas
com aspectos de suas obras e de sua ética, como sujeitos em sua relação com
o mundo e com a arte.
Cotejando as duas perspectivas de estética da existência – a de Foucault
e a dos modernistas portugueses –, pode-se perceber que em ambas há a pre-
ponderância do dado ético na constituição de um modo de vida particular do
sujeito – literário ou histórico – em sua relação com a própria experiência. Em
outras palavras, quando Régio e Leal defendem a liberdade do indivíduo frente
às imposições estéticas e/ou sociais,põem em questão as normas sociocul-
turais que lhe são impostas, questionando seu estatuto, sua validade como
modelo totalitário e seu arranjo dentro dos mecanismos discursivos vigentes.
Leal, ao propor como meio de elevação pessoal a prática da sodomia, e Régio,
137
Para uma Estética Pederasta
defendendo um princípio de liberdade e revolta frente à vida, colocam também
em xeque o paradigma do gênero binariamente fechado, atribuindo aos sujei-
tos a possibilidade de “serem” para além daquilo que lhes é esperado. Se, por
um lado, podemos detectar nessa formulação tanto atitudes próprias das van-
guardas quanto das urgências do século XX, não se pode negar, entretanto, que
denotam uma preocupação precoce de se tentar dar vazão e visibilidade a fenô-
menos que não poderiam ser compreendidos nem pelo arranjo sociocultural
mais corrente, nem pelas conformações literárias assentes.
Boa parte do que hoje se constitui como nosso cânone efetivamente
pautou-se num projeto estético criterioso e dedicado a estabelecer bases
sólidas sobre as quais determinadas produções, mesmo que oriundas de um
só autor, pudessem se apoiar, como muito bem ocorreu com os movimentos
de vanguarda, que, desejosos de estabelecer a ruptura da arte nova, dedi-
caram-se à composição, por exemplo, de manifestos capazes de traduzir sua
capacidade criativa. Como o ideal da vanguarda, a proposta de criação de uma
estética pederasta pode e deve espraiar-se para além dos fenômenos com os
quais originalmente se relaciona, a fim de efetivamente constituir-se como um
conjunto analítico e produtivo capaz de, inclusive, pôr em questão as bases de
formação do cânone literário. Nesse sentido, é oportuno apontar aqui algumas
possibilidades constitutivas dessa formulação estética, ressignificando
categorias próprias do campo literário a partir dos elementos próprios à comu-
nicação literária:
a) PRODUTORES: como suposta fonte e origem do que diz, o enunciador
decalca no que produz aquelas experiências que o plasmaram como indivíduo.
Ainda que não compartilhe experiências diretamente ligadas ao homoerotis-
mo ou à homossexualidade, o artista pode tematizar aquilo que para si vive
no espaço do ficcional, retraduzindo na própria ficção essas experiências como
vivências literárias. Nesse caso, obras como “Ode Marítima” (Pessoa), “Pilates
e Orestes” (Machado de Assis), Crônica da Casa Assassinada (Lúcio Cardoso),
Em Busca do Tempo Perdido (Proust) podem passar a constituir um cânone
de representações de experiências eróticas não necessariamente partilhadas
por sua autoria, mas que ganham, no ficcional, a independência necessária
138
Emerson da Cruz Inácio
para dar vazão ao desejo entre iguais. Por outro lado, a autoria faz a obra e,
nesse caso, autores homossexuais cujas obras tematizem a homossexualidade
muitas vezes podem agregar seu próprio sentido sexual àquilo que produzi-
ram. Aqui se soma, por exemplo, Mário de Sá-Carneiro, cujo comportamento
de ruptura com os padrões de masculinidade doa à Confissão de Lúcio um
novo sentido e coopta a obra para o universo da tematização homoerótica. Ou
mesmo Bernardo Carvalho, como se atesta na recente entrevista dada a revista
Junior (abril de 2009).
b) RECEPTORES: algumas obras, como O Barão de Lavos (Abel Botelho)
ou a série erótica apócrifa portuguesa As Lúbricas, As Sáficas, O Ganimedes,
não nasceram obras de compromisso com a tematização identitária, mas, an-
tes, como formas de denúncia de comportamentos ditos “obscenos” pela socie-
dade do momento em que começaram a circular. Entretanto, o deslocamento
temporal associado aos avanços sociais e a necessidade de certos setores, como
os homossexuais, de se verem tematizados, acabou provocando a migração
dessas obras do campo da denúncia para o campo da representação homosse-
xual, atuando o receptor na leitura de si mesmo na obra lida. Por exemplo, na
atualidade, a comunidade gay portuguesa reconduziu e consagrou tanto a
obscura série oitocentista, quanto o romance naturalista supracitados como
efetivos textos de representação homossexual, ainda que em sua origem não
estivessem nesse campo de intencionalidades. Nesse caso, texto e receptor,
silenciosamente, trabalhavam num mesmo diapasão, que era o de tanto reunir
os sentidos dispersos social e culturalmente, quanto o de provocar a necessária
identificação da obra, não só com seu público, mas com os desejos desse mes-
mo público.
c) MENSAGEM/TEXTO: segundo Jacob Stockinger (1978), todo texto
literário é uma tomada de posição dentro do campo das políticas sexuais,
transmitindo assim marcas sígnicas capazes de identificá-lo com um gênero
ou orientação sexual específica. Para tanto, Stockinger teceu a noção de “ho-
motextualidade”, a fim de demarcar literariamente que a posição do homos-
sexual na sociedade e na cultura poderia ser percebida através dos textos, no
caso, dos “homotextos”. Priorizar-se-ia, com isso, uma abordagem da homos-
139
Para uma Estética Pederasta
sexualidade pelo texto, que, segundo o crítico, seria o espaço próprio para
encenar a aproximação entre a literatura e as (homo)sexualidades. Recen-
temente, Denílson Lopes, no ensaio “Escritor, Gay”, retoma a noção para
referir-se às questões que envolviam a escrita homossexual, considerando que
alguns textos estão prenhes de sentidos capazes de serem decodificados por
uma determinada comunidade leitora. Em outras palavras, romances como
Cabelos de Metal ou Copacabana Posto 6, de Cassandra Rios, mais que ape-
nas servirem de entretenimento pornográfico para homens (e mulheres),
constituíam àquela altura (anos 1960 a 1980), por seu conteúdo, como uma
forma de se fazer circular os desejos femininos interditos, apoiando-se nem
que fosse no conhecido fetiche masculino por mulheres lésbicas e no rótulo
“pornográfico” para com isso fazer circular romances cujo conteúdo era e são
perceptivelmente hoje veiculadores de uma lesbianidade.
d) AGENTES DE TRANSFORMAÇÃO/INTERMEDIÁRIOS: as novas abordagens
teóricas no campo dos estudos literários, assim como a emergência de atores
sociais antes silenciados criam uma nova reivindicação de representatividade
cultural por parte desses estratos sociais discriminados social e culturalmente.
Muitas dessas demandas têm sido atendidas pela intervenção da crítica
literária em objetos já consagrados, como Fernando Pessoa e as recentes
descobertas de poemas marcadamente homoeróticos, e pela revisão e subs-
tituição de leituras consagradas, como a que Antonio Candido fez do par
Riobaldo/Diadorim, por outras agora construídas sobre novos sentidos. Além
disso, editores, editoras, blogues, linhas editoriais têm investido pesadamente
na formação de um público e de nichos de mercado capazes de abranger a pro-
dução literária LGBTT ou com ela identificada. Da mesma forma que a ascenção
do romance no século XIX solicitou, como indica Sandra G. Vasconcellos
(2007), a criação de teorias mais específicas, a intervenção desses intermediá-
rios na produção, circulação e consagração das obras aqui referidas redundará
na criação de abordagens mais atentas às particularidades desses fenômenos.
Podemos, também, ao lado dos elementos descritos, compreender a
estética pederasta, ainda, como um conjunto de recursos que envolvem a auto-
ria, o conteúdo expresso pela obra, leitor-modelo, sentidos construídos e até
140
Emerson da Cruz Inácio
marcas, como dialeto, podendo ser entendida como uma unidade de sentido
para o texto homoerótico e/ou que tematize a diversidade sexual. Também é
nosso intuito, a fim de tornar essa compreensão algo mais abrangente,
compreender nesse concerto as mulheres lésbicas, as transexuais, as travestis
e demais subjetividades, a fim de continuar no sentido de construir uma esté-
tica entendida, mais capaz de atender performances para além do homoero-
tismo masculino.
Do direito à diferença ao direito à literatura
Aqui, cabe lembrar Antonio Candido, no já clássico “Direito à Lite-
ratura”, emque versa sobre a relação da literatura com os direitos humanos:
“[...] aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável
para o próximo. Na verdade, a tendência mais funda é achar que nossos direi-
tos são mais urgentes que os do próximo” (Candido, 2004, pp. 169-190). Se a
literatura é um direito do homem, ela precisa necessariamente atender às
diversas nuances que constituem esse homem na contemporaneidade. Parti-
cularmente porque sabemos que o cânone e a instituição literária ainda não
foram repensados de forma a atender às novas imposições socioculturais.
Nessa perspectiva, os homossexuais, lésbicas, travestis e transgêneros têm
engendrado seu processo de dessubalternização, rasurando a ideia de que os
grupos “minoritários” não têm direito à plena expressão, como atesta Spivak
(em Landry & Maclean, 1995). Direito à formulação de uma identidade
específica também como procedimento do campo literário; direito de acesso
ao cânone a partir dos mesmos elementos que perpetuam o cânone como
horizonte de sentido literário; se a literatura é uma performance, as perfoman-
ces de gênero e identidade também precisam e podem constituir o todo mais
amplo da perspectiva literária.
Não se trata aqui apenas de pensar que o segmento LGBTT tenha tanto
direito ao acesso à literatura, como produtor, conteúdo e recepção, ou que,
como ensina o mestre, seus direitos sejam mais urgentes que os do próximo.
141
Para uma Estética Pederasta
Trata-se, sim, de pensar que se a literatura constitui pela marca zero, ou a for-
ma não marcada a que alude Saussure, quando se fala em gênero, raça e classe
pode-se inferir que existam, consequentemente, pares opositivos que denotam
um para além dessa concepção mais dura do que é literatura. Em outras pala-
vras: aquilo que nega a literatura ou a crítica é o que talvez esteja no bojo das
questões principais da literatura hoje. Ainda, não se trata aqui de defender a
validade maior ou menor de um direito, nem de acreditar somente na urgên-
cia dos direitos homossexuais, visto que há negros, índios e toda a periferia
ainda por dizer. Trata-se, talvez, de procurar sintonizar a experiência estética
e de crítica às demandas sociais hoje instaladas.
Atendendo ao que diz Candido, às funções humanizadoras, psicológi-
cas, formadoras e morais da literatura, estaremos necessariamente, no que se
aplica aos homossexuais, exercendo o direito a uma articulação estética que
lhe seja própria. Assim como as mulheres desde fins dos anos 1960 trabalha-
ram na construção e na constituição de uma crítica literária descolonizada das
questões masculinas, é preciso também instalar, no âmbito dos saberes lite-
rários, uma nova epistemologia capaz de criar condições de entendimento de
obras literárias cuja autoria, recepção, conteúdo ou espaço de circulação prio-
rize o universo das homossexualidades.
Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999.
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão de Identidade. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
CANDIDO, Antonio. “O Direito à Literatura”. In __________. Vários Escritos. São
Paulo, Duas Cidades, 2004.
DOVER, K. J. A Homossexualidade na Grécia Antiga. São Paulo, Nova Alexandria, 1994.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade III: O Cuidado de Si. 5ª ed., Rio de Janeiro,
Graal, 1988.
. “Linguagem e Literatura”. In MACHADO, Roberto. Foucault, a Filosofia
e a Literatura. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001.
142
Emerson da Cruz Inácio
. “Linguagem ao Infinito”. In MOTTA, Manoel B. (org.). Michel Foucault –
Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 2001.
FERNANDES, Aníbal (org.). Raul Leal: Sodoma Divinizada. Lisboa, Hiena, 1989.
LANDRY, Donna & MACLEAN, Gerald. The Spivak Reader. London, Routledge, 1995.
LOPES, Denílson. O Homem que Amava Rapazes e Outros Ensaios. Rio de Janeiro,
Aeroplano, 2002.
LUGARINHO, Mário C. Literatura de Sodoma: o Cânone Literário e a Identidade Homos-
sexual. Gragoatá, Niterói, UFF, n. 14, 2003, pp. 133-145.
MOTTA, Manoel B. (org.). Michel Foucault – Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 2004.
PRESENÇA (edição fac-similada). Lisboa, Contexto, 1993, 3 vols.
SEDGWICK, Eve K. Between Men: English Literature and Male Homosocial Desire. New
York, Columbia University Press, 1985.
STOCKINGER, Jacob. “Homotextuality: a Proposal”. In CREW, Louie (ed.). The Gay
Academic. Palm Springs, CA., ETC Publications, 1978, pp. 135-151.
VASCONCELOS, Sandra G. A Formação do Romance Inglês: Ensaios Teóricos. São Paulo,
Hucitec, 2007.
143
Comédia de Bristo, o Fanchono
FRANCISCO MACIEL SILVEIRA1
O papel de terceiro é comumente atribuído às mulheres, a ponto de “A
Celestina” tornar-se metonímia de alcoviteira comediografia. Mas a clássica
portuguesa no século XVI registra a presença de homens no desempenho da
alcovitice. É o que se lê, por exemplo, em duas comédias que Sá de Miranda.
Merece, contudo, aqui, registro, pela originalidade do enfoque, a presença sui
generis do alcoviteiro Bristo, que acabou por emprestar seu nome para
intitular uma comédia do sr. António Ferreira. Responsável por conduzir os
cordelinhos da trama, o alcoviteiro Bristo, para ganhar a confiança de todos
e todas e tirar melhor proveito de sua atividade, se passa por homossexual.
De alcoviteiras e alcoviteiros
Importante é o papel desempenhado pelas alcoviteiras nos enlaces e
desenlaces amorosos de farsas e comédias que, ao longo do século XVI ibérico,
se inspiraram no modelo latino. Que o diga Celestina (Comedia de Calisto y
Melibea, Fernando de Rojas, 1499), que se imortalizou nos dicionários
espanhol e português como metonímico sinônimo de alcoviteira. E quem não
se lembra das gil-vicentinas Leonor Vaz (Farsa de Inês Pereira), Branca Gil
(O Velho da Horta), Brígida Vaz (Auto da Barca do Inferno)?
1. Universidade de São Paulo.
144
Francisco Maciel Silveira
Outro exemplo no Quinhentismo português é o de Jorge Ferreira de
Vasconcelos, que nos deixou três comédias: Eufrosina, Ulissipo e Aulegrafia.
Na primeira, uma alcoviteira, de nome Filtra, está a serviço de Cariófilo, que
pretende seduzir Pelônia, uma moça do povo. Em Ulissipo, temos uma mãe
(Macarena) que é a alcoviteira da própria filha (Florença), além de Constança
de Ornelas, que é solicitada por dois galantes (Otonião e Régio) para que lhes
facilite os encontros e amores com Tenólvia e Glicéria, filhas do rico cidadão
Ulissipo. Dará título à terceira comédia de Jorge Ferreira de Vasconcelos, uma
velha dama do paço, alcoviteira por desfastio e libertinagem, de nome
Aulegrafia.
Não obstante o papel de terceiro seja comumente atribuído às mulhe-
res, a comediografia clássica portuguesa no século XVI registra a presença de
homens no desempenho da alcovitice. É o que se lê nas duas comédias que Sá
de Miranda nos deixou.
Em Os Estrangeiros, escrita por Sá de Miranda à roda de 1527 ou 1528
(Roig, 1983, p. 21), e com que ele teria introduzido a comédia dita clássica em
Portugal, a bela Lucrecia (loura de olhos verdes) é assediada por quatro pre-
tendentes. Cada um deles recorrerá aos préstimos de um terceiro: Amente será
ajudado por Calídio, seu moço de serviço; o soldado fanfarrão Briobris pelo
truão Devorante; Bertrando pelo casamenteiro Dório; o velho doutor Petrônio
pela criada Sargenta. A rigor, apenas Dório tem por ofício a alcovitice.
Em Vilhalpandos, que se supõe escrita pouco depois de 1537 (Roig,
1983, p. 27), o alcoviteiro Milvo acabará por protagonizar os ardis com que
embrulhará e esbulhará todos os pretendentes da cortesã Aurélia, cidadela
que, guardada a sete chaves pela cafetinagem da mãe, Guiscarda, recebe o
assédio não só do bom e ingênuo rapaz Cesarião, como também dos fanfarrões
espanhois, Vilhalpando I e II.
Até aqui nada de novo ou extraordinário na presença de alcoviteiras ou
alcoviteiros em enredos cuja inspiração é o amor segundoa tradição da
comédia latina.
145
Comédia de Bristo, o Fanchono
Um alcoviteiro sui generis
O que chama a atenção na comediografia clássica portuguesa (e merece
aqui registro pela originalidade do enfoque) é a presença sui generis do alco-
viteiro Bristo, que, responsável por conduzir os cordelinhos da trama, nada
mais natural viesse a dar nome a uma comédia do sr. António Ferreira:
Comédia de Bristo.
António Ferreira (quem não o sabe?), corria o ano de 1528, nasceu em
Lisboa, onde também veio a falecer, vitimado pela peste em 29 de novembro
de 1569. Não obstante a curta vida, além de dedicar-se inteira e exclusi-
vamente à medida nova, compondo sonetos, odes, epístolas, epitáfios e can-
ções, Antônio Ferreira desempenhou o importante papel de teórico e divul-
gador do Classicismo em Portugal, além de introduzir com Castro a tragédia
clássica, de inspiração mais latina que grega. Nas horas de folga, nas férias
escolares de 1552, por desenfadamento, compôs, na esteira do mestre Sá de
Miranda, uma comédia que respirava os ares humanistas de Coimbra, tradu-
zindo o incentivo de D. João III ao teatro universitário sob o signo do latim.
Essa comédia foi publicada anônima ainda em vida do autor (1562) por
João de Barreira, com a indicação de que teria sido representada na Univer-
sidade de Coimbra.
Infelizmente não pude confrontar nenhum dos dois exemplares dessa
edição anônima que o dr. Eugenio Asensio descobriu na Biblioteca Nacional
de Madri. Tenho em mãos Obras Completas do Doutor António Ferreira (4ª
ed., anotada e precedida de um estudo sobre a vida e obras do poeta pelo cô-
nego dr. J. C. Fernandes Pinheiro, professor do Imperial Colégio D. Pedro II,
membro do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, da Academia Real das
Ciências de Lisboa, da Sociedade Geográfica e Estatística de Nova York etc.,
tomo segundo, Rio de Janeiro/Paris, Garnier Editor/Augusto Durand Editor,
1865). É por essa edição, com religiosa fé no trabalho do cônego, o dr. Fernan-
des Pinheiro, que cito.
Na edição que compulso, António Ferreira dedica a comédia ao príncipe
d. João, filho de d. João III, agradecido por ter sido “nesta Universidade
146
Francisco Maciel Silveira
[Coimbra] recebida, e publicada”. No prólogo, a costumeira captatio bene-
volentiae. Embora sabedor da diversidade dos gostos e da impossibilidade de
contentar a todos, aproveita que se esteja implantando a comédia clássica em
Portugal para oferecer um trabalho que muito o honrará se vier a satisfazer
uns poucos. Trata-se de uma comédia mista (por misturar o cômico com o
sério) e motória, ou seja, “fundada nos acontecimentos do mundo, que comu-
mente ocorrem”.
A peça não foge à receita da comédia latina posta em voga por Plauto e
Terêncio, seja no argumento, seja nas personagens: uma jovem pobre, bela e
virtuosa (Camília) vive com a mãe (Cornélia) às custas de uns trabalhos de
costura que fazem em casa. O pai de Camília (Píndaro) mais o filho (Arnolfo)
foram para a Índia em busca de trabalho e riqueza; mas há dois anos são tidos
como mortos, surpreendidos por uma tempestade quando voltavam para casa.
A beleza e a virtude de Camília despertam não só o amor de Leonardo, (filho
de Roberto) e de Alexandre (filho de Calidônio), mas também de Aníbal,
soldado fanfarrão devidamente coadjuvado pelo parasita Montalvão. Para a
conquista de Camília todos os pretendentes hão de recorrer aos préstimos do
alcoviteiro Bristo.
Ocorre que Bristo, em reconhecimento ao desaparecido pai de Camília,
que já o tinha livrado das garras e açoites da Justiça, tudo fará para que
Leonardo, moço sério que é, case com a virtuosa Camília. O que não o impede
de enganar e extorquir o soldado fanfarrão (Aníbal) e o parasita (Montalvão).
No quinto e último ato, o pai e o irmão de Camília regressam a casa, sãos, sal-
vos e ricos. Como toda comédia que se preza, tudo acabará em boda e festa.
Leonardo há de casar-se com Camília, que já não é pobre nem órfã. Alexandre
casar-se-á com a irmã de Leonardo, e Arnolfo com a irmã de Alexandre. Final
feliz que constitui um rearranjo do plano traçado pelos anciãos (Roberto e
Calidônio), mal começara a peça, quando Leonardo estava destinado a casar-
se com a irmã de Alexandre e este com a irmã de Leonardo.
A salvação do gasto enredo está na inovadora caracterização do alco-
viteiro Bristo, estampada no título da edição saída anônima em 1562, quando
ainda vivia António Ferreira: Comédia do Fanchono.
147
Comédia de Bristo, o Fanchono
De preconceitos e pudicícias
O significado da palavra “fanchono”, havemos de encontrá-lo, por
exemplo, no Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa (Rio de
Janeiro, Delta S.A., 1958, vol. 2, p. 2144): “invertido”, “homossexual”. O
registro do termo é exemplificado com a fala que o parasita Montalvão dirige
ao fanfarrão Aníbal no ato V, cena 5 (p. 394 da edição de 1865): “Pasmado
estou de um fanchono se atrever contigo tanto, não o posso crer.”
Para registro do vocábulo não precisaria o dicionarista ir tão longe – ou
seja, ir ao ato V, cena 5. (A não ser que sua incrédula e parasitária homofobia
também estivesse pasmada com o fato de que um fanchono pudesse fazer
frente ao espavento de um soldado fanfarrão.)
Já no ato II, cena 2, Bristo apresenta-se em longo solilóquio, expondo
seu modus operandi, as artes e manhas de seu ofício e natureza:
A primeira coisa que faço como [logo que] chego, é saber o trato todo da
terra, quantas putarias tem, quantos covis, quantas alcoviteiras, quais
são as moças formosas, os mancebos doidos, qual joga, qual gasta, qual
é de mulheres, meto-me com eles e com elas, digo-lhes trinta chocarrices
que me vêm à boca, todos me conhecem logo, todos se me afeiçoam. [...]
A primeira visitação é a casa das lavrandeiras [bordadeiras], meto-me
com aquelas moças como moça, gabo-as de formosas, d’alvas, de bons
olhos, ensino-lhes mezinhas para os cabelos, águas para o carão, mostro-
lhes meus lavores [bordados], minhas cadanetas, de uma visitação só
fico por companheira, às velhas chamo moças, às moças meninas, às
formosas anjos, todas trabalho de contentar, porque [para que] se deem
comigo; os mancebos todos são meus formosos, meus namorados, meus
manos, minhas rosinhas. Um me dá o gravi [coifa de retrós com lavores
de fio de ouro], outro a camisa, outro o saio [espécie de casacão usado
pelos cavaleiros] e o dinheiro. [...] Então sou tão matreiro, que quantas
terras ando, tantos nomes tomo. Aqui me chamo Bristo, acolá Ilário,
porque [para que] me não sigam que eu, por onde quer que ando,
148
Francisco Maciel Silveira
sempre deixo rasto. E eles chamam-me fanchono, marinelo, mas eu
engordo às suas custas, e por derradeiro dou-lhes três figas.
Acompanhemos as marcas da pudicícia e do preconceito na edição que
cito (lembrem-se, a de 1865). O excerto citado da fala de Bristo será subli-
nhado no rodapé por duas intervenções do conspícuo cônego poeta (o doutor
J. C. Fernandes Pinheiro etc. e tal).
1) “A primeira coisa que faço como chego, é saber o trato todo da terra,
quantas putarias tem...”. A propósito de “putarias”, diz o Cônego:
“Estranhamos que um homem tão sisudo, como por certo era o dr.
Ferreira, usasse desta expressão, que, já em seu tempo, tinha obsce-
no sentido”.
2) “E eles chamam-me fanchono, marinelo...”. Para nossa ilustração
semântica, pontifica o cônego doutor que “estes dois vocábulos,
tomados hoje em mau sentido, significavam outrora homem mole,
efeminado”.
Outra marca de pudicícia e preconceito foi o mudar-se o título original
da peça que, saída encapuçada no anonimato de 1562 como Comédia do
Fanchono, passou a ser conhecida e chamada Comédia do Bristo.
Teria tido o dr. Antonio Ferreira alguma responsabilidade no batismo
anabatista do rebento? Teria querido salvar da roda dos enjeitados o filho
fanchono de sua natureza alegre, risonha e franca?
A crermos que a peça foi encenada em Coimbra, como diz a edição anô-
nima (1562); a crermos, como diz a dedicatóriada edição que tenho em mãos
(a de 1865), que “foi nesta universidade recebida e publicada”, o que incen-
tivou o dr. António Ferreira a dedicá-la ao infante d. João (não poderia saber
que dedicava seu texto a um morituro); considerando também que a presença
de termos grosseiros ou de baixo calão faziam parte do linguajar das comédias
e não chegavam a provocar rubores de pejo, somos levados a inferir que a
pudicícia e o preconceito são posteriores ao século XVI.
Que me ajude uma traça-investigadora, com bolsa Fapesp ou CNPq, e me
diga de que expurgada edição (com dedicatória e prólogo) saiu esta que tenho
149
Comédia de Bristo, o Fanchono
a queimar-me as mãos com a palmatória conspícua do doutor cônego J. C.
Fernandes Pinheiro.
Por todos os nomes
Como era comum na dramaturgia da época, sem rubrica alguma a suge-
rir a composição dos caracteres ou a linha de interpretação, a comédia do sr.
António Ferreira deixa nas mãos do ator (e na imaginação do leitor) a caracte-
rização de Bristo, cuja natureza ambígua (alcoviteiro/fanchono) é um ver-
dadeiro achado psicológico para a incipiente (seja com c ou s) comediografia
portuguesa dos quinhentos. Seria Bristo, de fato, fanchono, marinelo? Ou faria
Bristo o papel de fanchono para mais proveitosamente exercer seu ofício de
alcoviteiro? (Que o sugira a cena dois do ato II, em que Bristo, manhoso e ma-
treiro, se apresenta a nosotros...)
Nem os apartes, tão abundantes na dita comediografia clássica e, natu-
ralmente, na peça do sr. António Ferreira, – nem eles, os apartes, inconfidentes,
dão uma pista para a ambiguidade da natureza de Bristo. (Ainda bem que –
demônios íncubos ou súcubos? – Freud, Jung e a psicanálise bela-adorme-
cida nem sonhavam, naquele século XVI, em ser o inconsciente de perdido
espermatozoide.)
Mas teria mesmo sido perdida essa outra semente da comédia clássica
em Portugal?
Considere-se que, consciente ou inconscientemente (isso importa?), a
comédia do dr. António Ferreira ensaia, antecipadamente, uma disquisição
existencialista, do tipo “o que veio primeiro: o ovo ou a galinha?” O ser Bristo
alcoviteiro é essência que precede e determina sua existência como fanchono?
Ou a existência como alcoviteiro é que acaba por lhe revelar e determinar a
essência de fanchono, marinelo?
[...] quantas terras ando, tantos nomes tomo. Aqui me chamo Bristo,
acolá Ilário, porque [para que] me não sigam, que eu, por onde quer que
150
Francisco Maciel Silveira
ando, sempre deixo rasto. E eles chamam-me fanchono, marinelo, mas
eu engordo às suas custas, e por derradeiro dou-lhes três figas (Cf. ato
II, cena 2).
Nada tem de hilário, Bristo, este percurso ôntico em busca de teu verda-
deiro ser – um ser que não queria deixar rasto. Que nos resta, ao fim, se não
parafrasear no frontispício de tua comédia (a comédia do dr. Antônio Ferrei-
ra), em caprichada caligrafia, o que inscreveu o sr. José Saramago às portadas
de um livro seu:
“Conheces, Bristo, o nome que te deram; contudo, não conheces o nome
que tens, Fanchono.”
Referências bibliográficas
FERREIRA, António. Obras Completas do Doutor António Ferreira. 4ª ed. anotada e
precedida de um estudo sobre a vida e obras do poeta pelo cônego doutor J. C.
Fernandes Pinheiro, t. II. Rio de Janeiro/Paris, Garnier Editor/Augusto Durand
Editor, 1865.
ROIG, Adrien. O Teatro Clássico em Portugal no Século XVI. Lisboa, Ministério da
Educação/Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Col. Biblioteca Breve, n. 76,
1983.
151
1. Universidade de São Paulo.
Humor e Homofobia no
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende
MARCIA ARRUDA FRANCO1
Trata-se aqui da leitura de uma composição publicada em 1516, no Cancio-
neiro Geral de Garcia Resende, cujo tema é o homoerotismo feminino no
século XV. Por meio da análise da rubrica e das trovas de salão, como profe-
rimento oral teatralizado, busca-se deixar à mostra não apenas o modo de
circulação em performance, no contexto do sarau do Paço, mas também a
funcionalidade morigerante da prática trovadoresca, como meio de comu-
nicação eficaz, através da interpretação do humor homofóbico que satiriza o
gozo lésbico. As trovas do chefe da cavalariça, vassalo quatrocentista de
Afonso V e de d. João II, foram lidas ou declamadas às damas, numa festivi-
dade palaciana, no registro da sátira.
A composição “O coudelmoor às damas por que deram a ua que casou
a melhor peça que cada ua tinha pera o casamento, antre as quaes lhe deram
o sexo de Dona Lucrecia” será lida não só pela menção a práticas lésbicas na
cultura do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, mas também pela com-
preensão da funcionalidade do gênero poético-musical ou declamatório de tais
trovas, inseridas no contexto edificante do serão do Paço, como sátira erótica,
sendo manifesto o humor homofóbico do coudel-mor às damas.
Por meio da palavra oral teatralizada no serão, como divertimento de
corte, em comemorações como a do casamento da amante de Dona Lucrecia,
152
Marcia Arruda Franco
esta composição nos conta tanto da função social do poético no âmbito do
trovadorismo palaciano como do cotidiano cortesão. Ao lermos as trovas,
pretendemos evidenciar as referências ao tema homoerótico por meio da
tentativa de visualizar sua circulação oral em performance, numa festividade
circunstancial do Paço.
Alguns conceitos caracterizadores da definição clássica da arte de certa
forma sempre estiveram presentes na tradição medieval ibérica. As concep-
ções de poesia no século XV convergem para uma concepção clássica da arte
poética, de base horaciana, em que o caráter divino da expressão poética é,
todavia, o argumento central para sua valorização. O comércio das letras é vis-
to como um ócio edificante para a formação do caráter e da moral do homem
nobre e como um dom agraciado por Deus a seus eleitos. A poesia serve tanto
para passar uma doutrina como para deleitar. Essa visão tem por matriz a dou-
trina horaciana prodesse ac delectare, estrutural na prática poética na cena
medieval.
Tal educação pela arte é possível porque a obra poética no século XV, e
em todo o período clássico anterior ao século XVIII, tem uma função social clara
e inequívoca: serve como meio de comunicação oral e/ou escrito eficaz, e en-
contra sua justificativa no próprio ato enunciativo, desde a corte às damas a
críticas ao rei, passando por situações corriqueiras e cotidianas, como o envio
de presentes acompanhados de poemas e, inclusive, neste exercício da sátira,
ao tecer comentários acerca dos desvios eróticos embutidos na prática da ho-
mossexualidade feminina. Como meio de comunicação social, os poemas satí-
ricos e morigerantes são escritos para as mais variadas situações da vida de
corte. As trovas do coudel-mor foram cantadas ou declamadas às damas no
registro da sátira a práticas lésbicas, no contexto dos festejos das bodas de uma
que se casava e ganhava de presente entre outras peças o sexo de dona
Lucrecia.
Num sarau da baixa Idade Média, a poesia músico-letrada, composta
para ser cantada ou declamada em voz alta, circula evidentemente em per-
formance oral, e adapta-se aos movimentos de uma voz coletiva e anônima,
como se verifica no contexto das trovas do coudel-mor, que correram também
153
Humor e Homofobia no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende
como da autoria de seus filhos (Vasconcelos, 1934, p. 224). Em “Mas um de
nós cinco ou seis/ esta questão fazer ousa”, ao se referir a cinco ou seis cor-
tesãos que o ajudaram na ousadia dirigida às damas acerca do sexo de dona
Lucrecia, o coudel-mor aponta para o caráter coletivo e anônimo das trovas
quatrocentistas. E também alude explicitamente a uma voz satírica consen-
sual, audível pelas praças de Lisboa, na fórmula de um louvor, que exprime,
pela ironia, o vitupério: “Pelas praças de Lisboa/ tantos louvores vos dão/ que
a mão nunca lhe doa/ quem fez tal repartição”.
Como se sabe, em Portugal, na língua vulgar, em português ou caste-
lhano, a produção trovadoresca palacianado século XV foi impressa por Garcia
de Resende em 1516, mas também foi copiada em cancioneiros de mão e
inventada por repentistas nas praças e nos paços. Ao longo dos séculos XV e
XVI, a poesia lírica e satírica, em medida velha e nova, esteve subordinada a
uma circulação em performance, cantada ou declamada, e com um forte cará-
ter teatral, como o que caracteriza as trovas em questão. O poema, sem se
dissociar da palavra espetacular e oral, num português eivado de castelha-
nismos, circula num evento social, para um público em presença, capaz de
experienciar sensorialmente o poético, por meio da escuta do texto e da
música e/ou da voz que o acompanha, e ainda de percebê-lo dentro de sua
teatralidade como ficção. A leitura se dá coletivamente, feita em voz alta, numa
situação concreta do dia-a-dia, ou em comemorações, como um pequeno
espetáculo, cuja intenção é educar pelo deleite.
Dirigindo-se às damas em presença, o coudel-mor, com pares de versos
de hipóteses eróticas contrastantes, ousa questioná-las acerca do formato, das
funções e do gozo do sexo de dona Lucrecia, para a felicidade conjugal daquela
que se casava, talvez nos festejos do casamento, e ainda como porta-voz do
comentário satírico, geral e anônimo, feito nas praças, e entre os cortesãos,
acerca de tais bodas homoeróticas. O amor ou o sexo entre as duas era público
e notório, servindo de motivo a este divertimento do Paço, cuja finalidade era
morigerar a partir do riso.
No caso dessa composição, o diálogo entre trovador e damas, descrito na
rubrica, remete a uma situação concreta de enunciação e circulação das trovas,
154
Marcia Arruda Franco
com a presença de trovadores e damas no Paço. O texto impresso certamente
não é idêntico ao declamado no serão, talvez numa pequena encenação de cin-
co ou seis cortesãos que leriam em voz alta as cinco ou seis cobras das trovas do
coudel-mor; a rubrica que encabeça o poema impresso, entretanto, permite
reconstruir esta situação de comunicação, ou imaginar sua performance.
Em relação à recepção espetacular dos poemas, rubricas ou didascálias
não devem ser tomadas como títulos dos poemas, pois revelam um uso
concreto do texto, em uma enunciação particular, referendada pelo texto da
rubrica, que funciona como um protocolo de leitura da composição. No caso
desta rubrica em particular, afirma-se que o trovador se dirige às damas, in-
dicando o aporte teatral do proferimento no contexto da festa de salão. É
importante pensar esta situação aludida pela rubrica, a fim de se perceber a in-
tencionalidade morigerante das trovas declamadas ou cantadas como uma
crítica que satiriza o gozo homoerótico. No caso dessa composição, a rubrica
refere-se a “ua que se casou” e que continuaria a privar de sua amante, o que
parece significar que o casamento heterossexual, no contexto áulico, podia ser
apenas protocolar.
Tal peça, como presente de casamento, nos apresenta um costume
quase insuspeitado da nobreza quinhentista: o da prática lésbica na corte de
damas. Não eram apenas princesas que possuíam cortes de damas, fazendo-
se acompanhar delas em sua vida de casada, muitas vezes mudando-se para
outro reino ou outra região, mas qualquer dama nobre que se casava no con-
texto palaciano se fazia acompanhar de sua corte particular. Que o homoero-
tismo entre as damas era público depreende-se dos primeiros versos das
trovas do coudel-mor, ao afirmarem que nas praças de Lisboa o presente das
damas é alvo de um louvor, que tem fronteiras porosas com o vitupério, ao
satirizar o coito lésbico, esperando que nunca doa a mão de “quem fez tal
repartição”, isto é, daquela que escolheu o lesbianismo (vv. 1-8).
O chefe da cavalariça, para os contemporâneos um “empresário do
processo de folgar” (Vasconcelos, 1934, p. 224), lança mão do código trovado-
resco e de sua teatralização no espetáculo da corte para se questionar junto
com outros cortesãos acerca da legalidade do presente: “que achastes nesta
155
Humor e Homofobia no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende
cousa/ u se remetam nas leis”, ou seja, acerca do que diz a lei cristã a respeito
do homossexualismo feminino.
Se consultarmos o Tratado de Confissom, publicado ainda em vida do
coudel-mor, em 1489, veremos que o lesbianismo é considerado um pecado de
“luxúria contranatura”, como a sodomia. Citemos, com a ortografia levemente
atualizada, e com o significado de alguns arcaísmos entre colchetes retos, o
trecho da penitência prescrita contra o pecado do homossexualismo feminino:
E da mulher que jouver [jazer/se deitar] com outra mulher com aquele
estormento [instrumento/mão ou outro membro], que fazem as mu-
lheres, jejue sete quaresmas, a primeira a pão e água. E a mulher que isto
sofrer de outra mulher jejue cinco quaresmas, a primeira a pão e água,
e as solte per cartas, e as outras, segundo mandar seu bispo, e jejue às
sextas-feiras a pão e água, tirando dia de Natal e de Santa Maria, [em]
que coma vianda de quaresma (Tratado de Confissom, 1489/1973,
p. 194; col. 2).
A punição com o jejum não destoa muito de outras punições para peca-
dos de luxúria, o que leva a crer que a prática do homossexualismo feminino
era tão tolerada ou reprimida como a sodomia, podendo a punição pelo “peca-
do contranatura” ser redimida (solta ou liberada), generosamente, por cartas
de bispos, os únicos que podiam absolver de tais pecados, salvo à hora da
morte, de modo que a prática é reconhecida como um costume.
No séquito desta que se casava ia dona Lucrecia, sua amante, fato digno
de louvor não como tal, mas como objeto da ação das damas, as quais, por este
ato de acudirem àquela que se casava, se tornaram dignas de serem louvadas
pelo trovador, no registro da sátira. O consenso nas praças de Lisboa e nos
saraus de Portugal, entre damas e cavaleiros, é que qualquer boda sem sexo
é triste: “E pois também acudistes,/ louvor grande vos acuda,/ cá sem sexo se
concruda/ todas bodas serem tristes”. No incunábulo de Chaves, a felicidade
das bodas se subordina ao prazer sexual, mesmo que com outro parceiro, no
contexto heterossexual: “Item se o marido não quer jazer com sua mulher e
156
Marcia Arruda Franco
ela vai jazer com outrem, todo esse pecado fica ao marido” (Tratado de
Confissom, 1489, p. 193; col. 1).
Logo, independente da legalidade religiosa ou não de se manter a rela-
ção homossexual durante o casamento, são questionadas as funções e qualida-
des do sexo de dona Lucrecia em sua “performance” homoerótica. Certamente,
desenha-se nos atributos imaginados a homofobia por meio de um humor que
não podia deixar de ter um fundo patriarcal. Vale participar do espetáculo das
trovas de salão, e não apenas lamentar, de um ponto de vista impossível aos
homens do século XV, a homofobia embutida no tratamento do sexo de dona
Lucrecia com a que se casava. O mero tema homoerótico nos revela uma face
que nos aproxima e nos afasta da poesia palaciana e de seu tempo, de modo
a buscarmos em sua leitura não apenas o passado mas também vínculos in-
suspeitados com o presente.
Para lermos as trovas do coudel-mor às damas, ao fim desse texto, e
transcritas numa ortografia modernizada, a fim de levar adiante a interpre-
tação do humor e da homofobia nesta sátira patriarcal da baixa Idade Média
portuguesa, é preciso esclarecer a linguagem arcaica do século XV. A primeira
dificuldade em sua leitura diz respeito a questões linguísticas em geral e de
vocabulário em particular. Não só o português é povoado de espanholismos
(sobelo/sobre o, ancho/largo, vodas/bodas, carcaxo/carcaz/caixa), como é
dificultoso o entendimento do significado de estruturas sintáticas arcaicas
(que achastes essa cousa/ u [onde/quando] se remetam nas leis; se faz água
a seu salvo/ se produz a própria água com inocência e pureza, para a sua
salvação, ou por sua conta, de forma excepcional); de formas antigas em
desuso (concruda/concluda/conclua, u/onde/quando, ua/uma, almazém/
armazém, cá/porque, coucea/coiceia, através/através); de expressões idiomá-
ticas privativas do passado (a vista panorâmica das construções arquitetônicas
de Palmela, dar punhada ò/ao gato, fazer a sapateta), do valor e funcionali-
dade social dos títulos (coudel-mor) etc.
A designação coudel-mor representa o chefe da cavalariça. Dom Fernão
da Silveira, que desempenhou esta função nos reinados de 1454 a 1493, quando
morreu, deixando o cargo de coudel-mor como herança a seu primogênito. O
157
Humor e Homofobia no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende
coudel-mor é um “oficial da casa real que tinha a seu cargo cuidar da criação de
cavalos castiços e de marca. Também provia e determinava as dúvidas sobre os
acontecimentos e lançamentos dos cavalos aos que tinham quantia ou fazenda
a que fossem obrigados a manter cavalo, para com ele servirem na guerra”
(Dias, 2003, p. 208). Este dom Fernão da Silveira, o Bom, não deve ser confun-
dido com o homônimo “escrivão da puridade, adicto aos Braganças” e que se
opôs a dom João II, sendo “justiçado como traidor” (Vasconcelos, 1934, pp.
223-224). Nas trovas do coudel-mor, uma das cobras recorre a imagens e voca-
bulário equinos para imaginar o prazer do sexo de dona Lucrecia (vv. 34-40).
É justamente nas referências ao campo semântico do erotismo que o
significado precisa ser historicamente compreendido e explicado. Na rubrica,
“peça” designa o sexo e peça de enxoval; “cachondo”, “Palmela”, “fotea”, “dar
punhada ao gato”, “carcaxo” e “moneta” são expressões que provocam o riso
no contexto da sátira justamente pela conotação erótica. Para se captar o
aporte satírico e o questionamento da homossexualidade feminina é preciso
desvendar o arcaísmo das palavras e de expressões vocabulares e sintáticas,
com a consulta a dicionários especializados na linguagem do Cancioneiro de
Resende (Dias, 2003, vol. VI). “Estar sobre cachondo” é estar com o cio;
Palmela é comparada a um sexo feminino arreganhado, que se dá a ver, diga-
mos, ao “marinheiro lesto” (prestimoso), como a própria cidade de Palmela
deixa ver suas construções numa vista panorâmica a partir do Tejo. A imagem
da largura do sexo reaparece no “Fim” ou cabo das trovas pela imagem do
“carcaxo”, espécie de caixa grande onde cabe o estoque total (a soma) de um
armazém. “Dar punhada ao gato”, socá-lo com os punhos fechados, é uma
expressão que não foi desvendada por Aida Fernanda Dias. Ela, no entanto,
cita duas ocorrências da expressão no discurso notarial manuelino e na poesia
seiscentista que nos fazem conjecturar que o sentido da expressão é uma
espécie de necessidade de se apertar o cinto, numa situação de fome, penúria
ou dificuldade, talvez quando o sexo da amante de dona Lucrecia estivesse
sobre cachondo (Dias, 2003, p. 573). A menção à “sapateta”, espécie de dança
de salão em que se bate com as palmas das mãos no próprio sapato, refere-se
à masturbação, “por si e pelo parceiro”, característica daquelas que “fizeram
158
Marcia Arruda Franco
tal repartição”. Não é à toa que as trovas se iniciam com a imagem da mão,
órgão, membro, instrumento ou peça do corpo fundamental na prática do
homoerotismo feminino. Se nos louvores feitos nas praças de Lisboa o humor
surgia através do dístico: “que a mão nunca lhe doa/ quem fez tal repartição”,
no “Fim”, a imagem da sapateta retoma o foco nas mãos.
O vocábulo “fotea” também não é explicado por Aida Fernanda Dias.
Compulsado entre fota e foteado em seu Dicionário do Cancioneiro Geral,
julgamos poder aproximá-los nas trovas do coudel-mor, uma vez que nos pa-
rece haver, nos versos 41 a 48 abaixo, uma especulação acerca do gozo de lés-
bicas, aludindo-se não só à satisfação alcançada, mas também ao formato
cilíndrico e vão da vagina, figurada como uma garrafa ou um poço, com crista
de galo, e que é capaz de emitir sons sem o badalo de um sino.
Ora, “fota”, espécie de touca mourisca, significa “turbante”, e “foteado”,
tiras de pano enroladas na cabeça em forma de turbante. A “fota”, segundo
Morais e Silva é um “tecido fino, listrado, com cadilhos, que se enrodilha na
cabeça em forma de turbante” (apud Cabanas, 2001, p. 230). Cadilhos são
“fios que pendem da extremidade de qualquer coisa”, (Dias, 2003, p. 143). O
turbante ou a fota, touca mourisca com “riscos no gargalo”, pode remeter à
forma pregueada do interior de uma vagina; logo, “fotea”, ao menos pela
semelhança fonológica, pode ser figurada como o poço ou touca vaginal, que
se enrodilha, com suas dobras, listras ou riscos.
Cada vez mais se evidencia a visão patriarcal do chefe da cavalariça, ao
opor o contentamento do prazer, o calor do gozo lésbico (qual parte mais se
emborca), com o medo, frio ou frigidez (quando bate o dente) do coito hete-
rossexual com o fim de procriar: “Quando está de si contente/ a qual parte
mais se emborca?/ Ou se quando bate o dente/ faz bacorinho com porca?”. A
maior crítica acerca das funções do sexo e do gozo entre lésbicas se depreende
justamente da resistência em aceitar que se possa chegar ao clímax do prazer
sem a presença do falo. Na cobra que finaliza as trovas, a falta do pênis é
suprimida pela imagem da “moneta”, vela de pequeno tamanho, numa sátira
que não deixa de causar o riso, até por ser homofóbica.
159
Humor e Homofobia no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende
O coudel-mor às damas, porque deram a uma que casou a melhor peça
que cada uma tinha para o casamento, entre as quais lhe deram o sexo
de dona Lucrecia.
Pelas praças de Lisboa,
tantos louvores vos dão!
Que a mão nunca lhe doa
Quem fez tal repartição!
5 Que no tal tempo das bodas
faça boda quem quiser
mas por certo há mister
que ali lhe acudam todas.
E pois também acudistes,
10 louvor grande vos acuda,
cá sem sexo se concluda
todas bodas serem tristes.
Mas um de nós, cinco ou seis,
esta questão fazer ousa:
15 que achates essa cousa,
u se remetem nas leis?
Era ele sobejo ancho,
ou tira mais de redondo?
Ou também se lança gancho
20 quando está sobre cachondo?
Ou se anda perfilado,
como cumpre a donzela?
Ou se estando arreganhado
se verão dele Palmela?
25 Se é por ventura calvo,
se toca de cabeludo?
Se faz água a seu salvo,
se mija como a sesudo?
Se é faminto, se farto,
160
Marcia Arruda Franco
30 se é pardo, se vermelho?
Se rapa como coelho,
se arranha como a lagarto?
Se é manso, se brigoso,
se lança, coiceia, espora?
35 Ou quando está furioso
se o quer dentro se fora?
Ou se por matar a sede
através toma mil saltos?
Ou se lhe praz dos pés altos
40 arrimados à parede?
Se tem risco no gargalo
do poço lá da fotea?
Ou depois que papa e cea
se fica com bom regalo?
45 Ou se tem crista de galo,
ou fala com boca chea?
Ou apagando a candea,
que som fará sem badalo?
Se é de mole carnadura
50 se tem cabelo de rato?
Ou sobre vianda dura
se dá punhada ao gato?
Quando está de si contente
a qual parte mais se emborca?
55 Ou se quando bate o dente
faz bacorinho com porca?
Fim
Quanta soma de armazém
cabe lá em seu carcaxo!?
Ou que tempo se detém
161
Humor e Homofobia no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende
60 em fazê-lo altibaixo?
Se é lesto marinheiro,
em meter uma moneta,
ou se faz a sapateta
por si e pelo parceiro?
Referências bibliográficas
CABANAS, Maria I. M. Traje, Gentileza e Poesia: Moda e Vestimenta no Cancioneiro
Geral de Garcia de Resende. Lisboa, Estampa, 2001.
CANCIONEIRO Geral de Garcia de Resende. Apresentação crítica, selecção, notas,
glossário e sugestões para análise literária de Cristina Ribeiro Almeida. Lisboa,
Editorial Comunicação, 1991.
. Edição de Costa Pimpão e Aida Fernanda Dias. Coimbra, Centro de
Estudos Românicos, vol. 1, 1973, pp. 163-165.
DIAS, Ainda F. (org.). Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Dicionário (comum,
onomástico e toponímico). Lisboa, INCM, vol. VI, 2003.
LOPES, Graça V. A Sátira nos Cancioneiros Medievais Galego-Portugueses e Sátira,
Zombaria e Circunstãncia no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Lisboa,
Estampa, 1998.
TRATADO de Confissom (Chaves, 8de agosto de 1489). Fac-símile, leitura diplomática
e estudo bibliográfico por José V. de Pina Martins. Lisboa, INCM, 1973.
VASCONCELOS, C. Michaelis. Estudos sobre o Romanceiro Peninsular: Romances Velhos
em Portugal. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934.
ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo, Cosac Naify, 2007.
163
1. Universidade de São Paulo.
Teatro e Paródia no Mito de Inês de Castro
FLAVIA MARIA CORRADIN1
O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo.
Fernando Pessoa
História e mito
A temática inesiana vem ocupando espaço nas artes há mais de 650 anos.
Fundamentalmente, páginas da literatura em seu veio poético, narrativo ou
dramático têm dedicado especial atenção ao episódio amoroso entre Pedro e
Inês. Contudo, não podemos nos esquecer de que outras expressões artísticas,
como a ópera, a pintura, e mais recentemente o cinema, para não falar da
escultura (afinal os túmulos de Inês e Pedro em Alcobaça são verdadeiramente
obras de alta expressão artística no plano escultórico) têm dedicado atenção
ao trágico caso de amor. Surpreendentemente, uma história de amor com final
infeliz, repleta de lances um tanto quanto melodramáticos, continua, em pleno
século XXI, a atrair a atenção de um público ávido por desvendar aquilo que a
História insiste em ocultar.
Este texto dedicará atenção a O Eunuco de Inês de Castro: Teatro no
País dos Mortos, de Armando Nascimento Rosa, de 2006, que foca seu texto
na figura de Afonso Madeira, o escudeiro de d. Pedro, que foi castrado pelo
rei por, segundo consta, ter-se envolvido com uma mulher casada. Conforme
164
Flavia Maria Corradin
já deixa patente o subtítulo da peça, o fato histórico é ambientado no “país dos
mortos”, onde contracenam algumas das personagens históricas que estão
ligadas ao trágico casal. O presente ensaio intenta reexaminar o mito de Inês
de Castro sob a ótica da intertextualidade, de modo a apontar os procedimen-
tos que nos permitem afirmar que O Eunuco de Inês de Castro: Teatro no País
dos Mortos dialoga parodicamente com a História.
O diálogo intertextual com a História
A intertextualidade, como é sabido, trabalha com o diálogo entre textos
e/ou contextos, caracterizando-se, no mais das vezes, como um procedimento
crítico, na medida em que vai revelar uma atitude que o intertexto assume
diante do paradigma. No caso em questão, o paradigma é constituído pelo fato
histórico narrado por Fernão Lopes. Mesmo se pensarmos nas crônicas de Rui
de Pina, podemos concluir que ele vai dialogar mais ou menos parafrasi-
camente com aquele que o antecedeu, mesmo que não entremos nas questões
críticas que consideram Rui de Pina um plagiador de Fernão Lopes.
Portanto, como atrás aventamos, fixado o fato histórico, isto é, o para-
digma, os intertextos vão dialogar com ele obedecendo a níveis intertextuais.
Se o diálogo travado é parafrásico, a ideologia proposta no paradigma será
mantida no intertexto, ainda que o tom possa ser alterado, como fica patente,
por exemplo, no episódio de Inês de Castro, em Os Lusíadas. Ali, o fato histó-
rico (Os Lusíadas, canto III, 118-135) não é alterado; não nos esqueçamos de
que o episódio faz parte da narração da história de Portugal ao rei de Melinde,
empreendida por Vasco da Gama; é quando se fala do grande Afonso IV e de
sua vitória frente aos mouros na Batalha do Salado, que se inscreve a história
de Inês de Castro sob uma ótica parafrasecamente lírica.
A estilização caracteriza-se por um acréscimo conteudístico em relação
ao paradigma, ainda perfeitamente pertinente à ideologia do modelo, embora
abrigue a intenção de ser superior ao original. Deste modo, temos que a cos-
movisão obtida pelo intertexto na estilização é, se não superior, ao menos mais
165
Teatro e Paródia no Mito de Inês de Castro
complexa que a do paradigma, porque procura levar às últimas consequências
as entrelinhas do modelo, buscando superá-lo através do preenchimento, do
enriquecimento, enfim do que poderia ter sido dito mas não foi. Como
exemplo desse nível intertextual na mitologia inesiana, poderíamos apontar
a narrativa de Agustina Bessa-Luís, Adivinhas de Pedro e Inês.
Cabe-nos agora pensar no terceiro nível intertextual, segundo a pro-
posta que fizemos alhures. Trata-se da paródia, uma expressão artística elitis-
ta ao extremo, porque, implicando a negação de um mito – o paradigma –, exi-
ge do leitor uma dose de (in)formação literária. Notamos, desse modo, que a
paródia se caracteriza por denegrir mitos, o que nos leva a concluir que apenas
o que está inscrito no cânon é objeto de uma releitura sob a perspectiva paró-
dica, ideia corroborada pelo fato de que o ser humano, e mais o ser humano
que é artista, precisa do reconhecimento público. Portanto, ele irá escolher seu
modelo invariavelmente entre as obras que caíram no domínio do comum das
gentes. Conforme nos deixa patente Linda Hutcheon (1985): “works are
parodied in proportion to their popularity”.
A ideia de emulação de modelo(s) parece estar contida na própria eti-
mologia do termo “paródia”, quer seja na acepção de “canto contrário”, quer
na de “canto paralelo”. No primeiro caso, temos um modelo A (= ode), que tem
um ou vários de seus elementos constitutivos negados, ou melhor, contraria-
dos (= para = contra). Portanto, o nível paródico, ao fim e ao cabo, revela a
intenção deliberada de um determinado autor de desmitificar seu paradigma.
Talvez a formulação esboçada explique, em parte, por que, passados
650 anos da morte de Inês de Castro, só agora o paradigma possa ser objeto
de uma releitura sob a ótica paródica, como vêm corroborar, por exemplo, as
peças de teatro A Boba, de Maria Estela Guedes e O Eunuco de Inês de Castro:
Teatro no País dos Mortos, de Armando Nascimento Rosa, texto que aqui será
objeto de nossa especial atenção.
166
Flavia Maria Corradin
A releitura paródica do mito: O Eunuco de Inês de Castro: Teatro
no País dos Mortos
Inédita também a óptica apresentada por Armando Nascimento Rosa
em O Eunuco de Inês de Castro: Teatro no País dos Mortos, uma vez que, se
observarmos o título da peça, perceberemos já um termo que provoca certa de-
sestabilização ao consideramos o mito. Trata-se do substantivo “eunuco”. O eu-
nuco será Afonso Madeira, o fiel escudeiro de d. Pedro, que foi castrado no afã
de promover a “cruel justiça” pela qual o rei será conhecido pela posteridade.
Comecemos pela História, uma vez que a peça dialoga intertextual-
mente com uma passagem, inscrita em Fernão Lopes, conforme nos deixa
patente seu autor. Ouçamos o que diz o cronista acerca das relações entre
Pedro e Afonso Madeira.
Affonso Madeira tangia e cantava, afóra sua apostura e manhas boas já
recontadas, de guisa que por aso de tal achegamento, com longa affeição
e falas ameude, se gerou entre elles tal fructo, que veiu elle a acabamento
de seus prolongados desejos. E porque semelhante feito não é da geração
das cousas que se muito encobram, houve el-rei de saber parte de toda
sua fazenda, e não houve d’ello menos sentido que se ella fora sua mulher
ou filha. E como quer que o el-rei muito amasse, mais que se deve aqui
de dizer, posta de parte toda bemquerença, mandou-o tomar dentro em
sua camara, e mandou-lhe cortar aquelles membros que os homens
em mór preço tem: de guisa que não ficou carne até aos ossos, que tudo
não fosse corto. E pensaram Affonso Madeira, e guareceu, e engrossou
em pernas e corpo, e viveu alguns annos engelhado do rosto e sem bar-
bas, e morreu depois de sua natural morte (Lopes, s/d; grifo nosso).
O “caso” Afonso Madeira já foi paradigma para outros intertextos que
trataram do mito inesiano2, porém sem nunca assumir papel de protagonista
2. A título de exemplo, poderíamos apontar: Pedro, o Cru, de António Patrício; Pedro, o Cruel,
de Marcelino Mesquita; D. Pedro e Inês de Castro, de Mário Cláudio; Adivinhas de Pedro e Inês,
de Agustina Bessa-Luís; e Inês de Portugal, de Joãoda tolerância social entrincheiram-se velhíssimos
preconceitos.
Neste momento me dirijo a vocês para refletir apenas brevemente sobre
o tema da felicidade que subjaz pendularmente, como busca, entre o afirmar
dessa corrente celebratória e como desafio de validação de uma razão mino-
Horácio Costa
18
ritária no concerto social, ante a insistência da intolerância que, silenciosa e
insidiosamente, a solapa, e que se traduz em ameaça e morte.
A felicidade pode ser um peixe dourado ou uma rua vazia. A felicidade
pode ser encontrar significado no rebrilhar da cabeça de um alfinete. Pode ser,
agora, um estrepitar de silêncio.
De fato, não sabemos exatamente o que é a felicidade. Corrijo-me.
Quero dizer: não sabemos o que é a felicidade, por falta de melhor definição,
feliz. Sabemos, contudo, que em absoluto coincide com aquilo que, irisando-
se em simulacros, se repete, utilizando seu nome em vão, em nossas décadas
pós-modernas, quando o conceito de felicidade se confunde com a “liberdade”
de consumo e reduz-se a um imperativo mercadológico.
A felicidade talvez exista apenas em desejo ou promessa, mas foi isso
precisamente algo que ao longo de milênios significou um fator de coesão
entre indivíduos e gerações. Mas, sim, sabemos que, para livremente inves-
tigar a natureza da felicidade, e talvez para experimentá-la ao cabo de nossas
investigações no longo ou no pequeno prazo, é necessário estarmos apoiados
por um Estado de direito que não impeça esses nossos intentos, em nome de
preconceitos, vale a redundância, herdados. Se, no concerto social, temos
igualdade de obrigações, é apenas justo que tenhamos igualdade de direitos.
O problema, ainda assim, está longe de ser tão só legal; é, mais do que isso,
ético. Um Estado que não prevê, e mesmo garante a sempiterna promessa de
felicidade a todos os seus cidadãos, cria, por isso mesmo, infelicidade aos
excluídos desta sua obrigação ética.
Cá para nós, vale perguntar: poderá esse Estado obstaculizador desse
direito, e daí infelicitante, isto é, criador de infelicidade, algum dia ser feliz?
Em sua Carta sobre a Felicidade, escrita para o ateniense Meneceu, Epicuro
aproximava o horizonte ético da promessa de felicidade, ao afirmar “porque
as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, a felicidade é inseparável
delas”. O Estado moderno, o Estado brasileiro que nos concerne, modela-se
conforme o ideal de virtude cidadã, e considera-se, não é demais afirmar, em
processo de tornar-se virtuosamente cidadão, ou ainda, como é de praxe
designar hoje em dia, republicano. Esta é a imagem que ao comum dos mortais
Discurso de abertura do IV Congresso da ABEH
19
passa nossa gigantesca Constituição, tão milimetricamente acossada de delírio
de normatividade. Entretanto, minorias cada vez mais vocais como a
homossexual e conexas são alijadas desta sua idealidade tão sublime quanto
contraditória ou mesmo hipócrita. Cria-se o que poderia chamar-se de coefi-
ciente infelicitante. Novamente, cabe aqui a pergunta: pode o causador de
infelicidade pretender-se e erigir-se em virtuoso? Parece-me ser este o cerne
da questão. A resposta a esta pergunta retórica não pode mais do que ser
negativa: o causador de infelicidade, seja ele alguém com uma identidade pre-
cisa como um perseguidor homofóbico, ou algo impessoal como um Estado
indiferente às legítimas aspirações de uma minoria, não pode, não deve, ser
feliz, sob pena de comprometer-se todo um milenar processo civilizatório. Por
isso mesmo, não podemos concordar com que o Estado nos cerceie o direito
ao voo da felicidade.
Nesse ponto, a contradição do Estado brasileiro torna-se aparente e a
ética dá lugar à falsa moral: é em nome dela, e não naquele de sua concepção
ideal, que status quo social e legal se erigem. Assim sendo, a aceitação do
exercício pleno da homossexualidade como parte das garantias do direito
coletivo tem, portanto, o caráter de purgação das distorções éticas do Estado
brasileiro em seus fundamentos ideais e o concomitante caráter de sua
recuperação moral.
Com isso quero dizer que tal aceitação, sob o ponto de vista da moral,
não apenas evidenciará a hipocrisia mascarada em boa governança. Também
auxiliará, quando se der, o aperfeiçoamento das bases éticas sobre as quais se
constrói o próprio Estado. Em poucas palavras, ao reclamarmos nossos direi-
tos, nossa razão, não temos como finalidade apenas esta conquista em si e em
si fundamental, mas a transformação em verdade da promessa e do ideal de
exercício da virtude por parte do Estado, e deste por parte de todos os âmbitos
da vida social e política. Já apontou um ilustre filósofo e professor da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP),
Franklin Leopoldo e Silva, referindo-se a Hegel:
Horácio Costa
20
Se identidade e felicidade se correspondem, temos de supor que o
movimento do encontro da Razão consigo mesma é também o movi-
mento de realização da felicidade da humanidade: quando o indivíduo
se reconhece no absoluto que o configura como tal, então ele se reco-
nhece a si mesmo, na medida em que a identidade é, inseparavelmente,
singular e universal.
Assim, se nossa busca de felicidade for respeitada, e daí garantida pelo
Estado e suas leis, a busca da felicidade de todos será mais veraz e, portanto,
todos poderão ser mais felizes. Não nos esquivemos e nem se iludam aqueles
que querem negar, obstruir, diminuir ou conflitar-se com nossa luta: nós tam-
bém lutamos por eles, e quando ganharmos, porque vamos fazê-lo, eles o
saberão porque com nossa vitória serão mais felizes. Neste momento, aqui
agora, nós já estamos encaminhando-os à felicidade. No futuro, não só serão
felizes conosco, mas também, ao menos parcialmente, devido a nós. Porque
a lei que a todos dá cabida e, em princípio, a todos deve proteger e reger por
igual, tem em nós uma fronteira ética que necessita franquear, para terminar
de honrar e de caber em seus pressupostos éticos mais basilares.
Esse processo tem sido longo. Há trinta anos, por exemplo, na mesma
FFLCH-USP, um grupo de homossexuais se reuniu de forma pioneira, insemi-
nando essa temática no tecido universitário. Vivíamos sob uma ditadura. Sem
dúvida, nessa nossa jornada, voltaremos a refletir sobre aquela data, que
parcialmente será o objeto da análise de João Silvério Trevisan, que nela esteve
presente.
Para trilhar tal processo, é fundamental articular formas de pensar,
disciplinar e enriquecer o modo reflexivo da ação. Justamente neste impor-
tante espaço, na articulação deste núcleo conceitual, é que surge e se afirma
como entidade a ABEH, Associação Brasileira de Estudos da Homocultura, da
qual tenho a honra de ser o presidente neste biênio 2006-2008, função que,
com o presente congresso, entregarei à próxima diretoria. A ABEH tem como
propósito, desde sua fundação em 2001, fazer uma análise crítica da homo-
cultura. Nossa associação constitui-se como um dos importantes espaços de
Discurso de abertura do IV Congresso da ABEH
21
reflexão que a sociedade brasileira contemporânea constrói, assim como o
foram, a seu tempo, certas associações acadêmicas, tais como, e apenas para
citar dois exemplos, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC),
instrumental em suas análises e suas propostas contra regime de exceção
instalado em 1964 e, a partir dos anos 1980, no campo da crítica literária, a
Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), que ofereceu aos
letrados brasileiros uma nova abertura, àquela altura, às fronteiras internacio-
nais do pensamento.
É nessa genealogia que vejo inserir-se nossa associação em sua intenção
de fortalecer propositivamente um pensamento brasileiro sobre a realidade
GLBTT. Foi, ainda, considerando este lineamento, que propus como tópico
deste quarto congresso “Retratos do Brasil Homossexual”, no plural, e já não
mais no singular, como aquele primeiro intento de leitura da “coisa” nacional
efetuado por Paulo Prado. De fato, esteAguiar.
167
Teatro e Paródia no Mito de Inês de Castro
como acontece no texto de Armando Nascimento Rosa, que explora um triân-
gulo amoroso bastante inusitado, se considerarmos o mito de Inês – Pedro/
Inês/Afonso –, partindo de sugestão inscrita na crônica de Fernão Lopes. Ou-
çamos o que diz a respeito Armando Nascimento Rosa na Nota Preambular
(2006, p. 25):
Desvendar na cena o hermafroditismo comportamental de Pedro, ainda
que patologicamente vivido (dada o atroz gesto punitivo deste contra
Afonso Madeira), constituirá, decerto, um forte motivo teatral para olhar
com novos olhos um enredo que muitos julgavam sabido e romanticamen-
te explorado por inteiro, e que ganha uma outra amplificação de sentidos,
assim o julgo, nesta peça mitocrítica e mitopoética.
Talvez valha a pena, antes de entrarmos efetivamente na análise da
peça, tratar-lhe da ambientação. Para tanto, encetemos nosso caminho pelo
subtítulo que vem aposto a O Eunuco de Inês de Castro, que é Teatro no País
dos Mortos. Conforme fica sugerido, estamos diante de almas que se encon-
tram em uma das ilhas que constituem o país dos mortos. Tais espaços são
ligados, numa clara alusão ao barqueiro mitológico3, pela Caronte & Filhos
Ltda., que, numa espécie de lei de incentivo à cultura, consegue isenção de
impostos graças ao patrocínio da “arte cênica [que] floresce nesta Veneza dos
mortos” (Rosa, 2006, p. 34). A ilha em que a cena transcorre é construída
artificialmente “para mortos de excepção” (Rosa, 2006, p. 34). Ali “vivem” na
eternidade Inês e Constança, que estão preparando a encenação da peça
protagonizada por Afonso Madeira; ainda contracenarão Pedro e Afonso IV,
além de Fernão Lopes e de haver referência ao grande encenador que é Gil
Vicente que, vez por outra, aparece por ali.
3. Os gregos e romanos da Antiguidade acreditavam que uma barca pequena na qual as almas
faziam a travessia do Aqueronte, um rio de águas turbilhantes que delimitava a região infernal.
Caronte era um barqueiro velho e esquálido, mas forte e vigoroso, que tinha como função atra-
vessar as almas dos mortos para o outro lado do rio. Porém, só transportava as dos que tinham
tido seus corpos devidamente sepultados e cobrava pela travessia, daí o costume de se colocar
uma moeda na boca dos defuntos.
168
Flavia Maria Corradin
Estamos, pois, diante do espaço do teatro, do espaço do fingimento, do
faz-de-conta, que aristotelicamente promove a ilusão, ao encenar o encontro
surreal na eternidade de mortos que são coetâneos e que têm, vamos lá, uma
história comum, como é o caso de Inês, Constança, Pedro, Afonso IV e Afonso
Madeira com Fernão Lopes, aquele que, embora não seja contemporâneo aos
protagonistas da História, concretizou-lhes a história em suas crônicas. Além
disso, Nascimento Rosa, garretianamente, lembra o papel civilizador do
teatro, num tempo que, presentificando o passado, também carece de civili-
zação, quando, pela voz do PRIMEIRO FUNCIONÁRIO que, dialogando com Afonso
IV, no início, transveste-se em SEGUNDO FUNCIONÁRIO e afirma: “precisas de ver
muito teatro para te cultivares” (Rosa, 2006, p. 35).
Partindo da paráfrase da História, embora aqui e ali lhe preencha atra-
vés do acréscimo estilizador com algumas das virtualidades propostas por
Agustina Bessa-Luís e Herberto Helder, Rosa vai, ao fim e ao cabo, propor
uma visão invertida do mito que, embora também parta da paráfrase da
História, parodia-a, na medida em que rebaixa o elevado, ao se propor tratar
não do triângulo Constança/Pedro/Inês, e sim do triângulo Pedro/Inês/
Afonso Madeira:
CONSTANÇA: Mas não se vem ao teatro para ouvir sempre o mesmo. Há
toneladas de peças e poesias escritas sobre Inês. Há óperas onde as
sopranos querem igualar o sofrimento dela. Coitadas... E também há
umas coisas sobre mim. Muito poucas. Sou personagem secundária. Mas
nestes séculos todos, ninguém trouxe ao palco o outro amor do nosso
Pedro sanguinário (Rosa, 2006, p. 40).
Rosa coloca na boca das personagens que estão contracenando a histó-
ria de Pedro, Inês, Constança, a qual servirá de plano de fundo para, num
primeiro momento, encenar a desditosa vida de Afonso Madeira, que, em últi-
ma instância, será responsável pela não realização da frase estampada, na par-
te inferior da rosácea, do túmulo de Inês, em Alcobaça, onde, em uma estátua
jacente, se lê o supremo adeus: “Até ao fim do mundo...”: “AFONSO: Nem a mor-
169
Teatro e Paródia no Mito de Inês de Castro
te reuniu Inês e Pedro. Eu nunca pensei que isto fosse possível: o mito do amor
infinito ser apenas um casal de mortos divorciados” (Rosa, 2006, p. 40).
Se Inês e Constança jamais puderam viver outras vidas, uma vez que,
segundo a protagonista – “Eu não pedi que me transformassem em mito. O
meu infortúnio tornou-se inesquecível. As pessoas adoram as tragédias. Sou
prisioneira da máscara de rainha defunta. E nunca mais saí daqui para viver
outras vidas” (Rosa, 2006, p. 43), – ideia corroborada por Constança, que
afirma “a mim acontece-me o mesmo. Ninguém nos chama para outros pa-
péis” (Rosa, 2006, p. 43), o mesmo não se pode aplicar a Afonso, que reen-
carnou, desempenhando em outra vida a figura de Farinelli4, afinal, já tinha
experiência como castrado, além de ser exímio cantor e músico:
AFONSO: Não sei se foi sorte. Os anjos chamaram-me para uma nova vida.
Mas fiquei na mesma preso ao estigma de castrado. Acharam que eu já
tinha adquirido experiência para o papel. Fui o famoso Farinelli, o cas-
trato que encantou a Europa com a voz incrível, no século XVIII. Caparam-
me numa banheira de leite, tinha eu oito anos (Rosa , 2006, p. 44).
Embora já sugerido na crônica de Fernão Lopes, “e como quer que o
[Afonso Madeira] el-rei muito amasse, mais que se deve aqui de dizer”, Rosa
busca uma óptica inédita para seu diálogo com o paradigma, na medida em
que o torna responsável por impedir a realização amorosa na vida eterna,
portanto no espaço mítico, do amor de Pedro e Inês.
Através do recurso do the play within a play, Afonso Madeira propõe
um psicodrama, para que as personagens, por meio do “jogo do teatro”,
revivam “em drama a origem do conflito” (Rosa, 2006, p. 52), – Inês e Pedro
não “viverem” o amor eterno devido a o que o rei fez com Afonso Madeira.
4. Farinelli (Puglia, 24 de janeiro de 1705 – Bolonha, 15 de julho de 1782), pseudônimo de Carlo
Broschi, mais popular e bem pago cantor de ópera europeu do século XVIII. Foi castrado na
infância, segundo consta, num banho de leite, para preservar a voz aguda, prática a que eram
sujeitos alguns cantores e que era muito comum na época.
170
Flavia Maria Corradin
Constança desempenhará o papel de Catarina Tosse, a mulher que foi seduzida
pelo escudeiro do rei, afinal no teatro, espaço do faz de conta ilusório, a traída
transforma-se no pivô da traição.
Mais uma vez, partindo da paráfrase da crônica, propõem-se acrésci-
mos capazes de elucidar a questão. Ouçamos Inês, que é apresentada como
uma personagem extremamente lúcida, característica de personagem que não
percebemos nos muitos intertextos que dialogaram com o mito:
INÊS: Sim, mas isso era na crônica que te foi encomendada. Aqui vamos
dizer mais, muito mais, porque estamos no teatro, e noutro tempo. Hoje
na Espanha de onde vim, Afonso e Pedro podiam simplesmente casar-
se, e criavam os meus órfãos. Mas Afonso não era apenas o favorito na
caça e no colchão do meu viúvo. As mulheres suspiravam por sentir o
peso do corpo dele sobre as coxas, e adoravam ouvi-lo tanger o alaúde,
com uma voz de barítono. El-rei deitava-se sobre o mocetão mais
disputado da corte lusitana. E isso era motivo de sobra para a cobiça das
mulheres. Era o caso de Catarina Tosse (Rosa, 2006, p. 53).
O diálogo que se segue apresenta Catarina a justificar seu adultério e
Fernão Lopes ao trazer à tona um acréscimo em relação ao paradigma. A causa
do cruel ato do rei deve-se ao fato de que ele, freud e junguianamente, sofre
do complexo de Pedro, ou seja:
El-rei tinhaum mórbido horror a tudo o que fosse violação sexual. Nisto
estamos de acordo. O problema é que ele facilmente confundia a cópula
consentida entre homem e mulher com um acto de violência do macho
contra a fêmea. Era uma espécie de falofobia terrorista. Como se vivesse
nele a mulher violada. E projectava esse trauma vingativo nas relações
dos súbditos. Por estranho que pareça, Pedro tinha repugnância pelo
sexo a que pertencia, o sexo que herdou do pai. A isto eu chamo de
complexo de Pedro (Rosa, 2006, p. 54).
171
Teatro e Paródia no Mito de Inês de Castro
Ao que imediatamente Inês responde:
Bravo, Lopes! Vais dar trabalho aos psicanalistas. O complexo de Pedro
é uma bela invenção. Mais um anel para o meu mito. Estou-te grata.
Mesmo depois de morto, continuas a contribuir para a minha imorta-
lidade (Rosa, 2006, p. 54)5.
Estamos, pois, diante de uma contribuição no âmbito psicanalítico para
a mitologia inesiana.
Armando Nascimento Rosa também explora, depois de as personagens
continuarem a parafrasear o cronista-mor do reino, de modo a apresentar a
versão documental da História, vários outros acréscimos que os intertextos
promovem ao paradigma, como, por exemplo, aquele proposto por Agustina
Bessa-Luís, qual seja, o fato de que Inês também sentiria ciúmes de Afonso, in-
clusive porque no dia derradeiro de sua morte ela foi trocada por Afonso,
conforme nos lembra Pedro:
Nem mesmo nesse dia? Em que troquei a tua companhia pela dele?
Nesse dia em que os lacaios do meu pai te mataram, eu devia estar ali a
proteger-te, em vez de perseguir veados6 com o meu escudeiro. Foi a
imprudência do meu amor dividido. Eu sabia que conspiravam contra
ti em Montemor-o-Velho. E mesmo assim saí inebriado com Afonso
pelas matas de Coimbra. Ainda hoje não me perdoo por essa incons-
ciência. Não fosse ele a acenar-me do cavalo, e eu não te tinha deixado
sozinha na quinta, com as crianças (Rosa , 2006, p. 63).
As virtualidades são levadas às últimas consequências, quando, apoian-
do-se na moderníssima teoria das relações de gênero, Afonso afirma:
5. A ideia de um complexo de Pedro já aparece sugerida em Inês de Castro (Gondim da Fonseca,
1957) e em Adivinhas de Pedro e Inês (Agustina Bessa-Luís, 1983). Vale a pena ressaltar também
o texto O Complexo de Inês formular uma noção arquetípica que vem como apêndice à edição
da peça O Eunuco de Inês de Castro: Teatro no País dos Mortos.
6. Atentem para a ambiguidade do termo.
172
Flavia Maria Corradin
Julgavas que cortando as minhas pendurezas, que tanto gozo te davam,
havia de nascer-me um sexo de mulher. Em linguagem de hoje, o que tu
querias era fazer de mim um transexual. Fui a tua cobaia... Pedro o cru,
o inventor da transexualidade compulsiva! Mas viestes antes do tempo.
A cirurgia medieval é uma arte de açougueiros. É sinônimo da câmara
de horrores. Sou a paródia carnal de Inês de Castro. O teu Frankeinstein
vem reclamar a vida que amputaste. [...] Eis o real eunuco! O eu corpo
é esta ferida monstruosa. Podes enterrar nela o sexo, se quiseres a minha
morte (Rosa, 2006, p. 66).
Como fica patente, o mito é parodicamente invertido, na medida em que
as possibilidades acrescidas ao paradigma por outros intertextos revelam-se
agora ideologicamente contrárias ao que a mitologia inesiana vem desenvol-
vendo ao longo de mais de seis séculos de diálogo. O canto contrário, entre-
tanto, permite-nos a dessacralização do elevado, ou seja, o amor frustrado de
Pedro e Inês em vida continua frustrado na eternidade mítica, devido ao rela-
cionamento politicamente incorreto que Pedro I, o sétimo rei de Portugal,
exercitou em vida. Assim, a inscrição tumular, segundo consta proposta por
ele – Até ao fim do mundo... –, que remete à continuidade da realização amo-
rosa de ambos na eternidade, não se realiza no além, conforme Inês deixa pa-
tente nas falas que se seguem àquela em que manda Pedro embora de sua ilha:
Em Afonso Madeira tu castraste o nosso amor. Ele era o mensageiro que
te cantava a minhas trovas. Afonso deu-te na carne o amor que eu não
podia, por estar morta (Rosa, 2006, p. 71).
Mais do que viúvo, tu foste a minha trágica viúva. Tornaste-me um mito
para além do tempo. Reinar depois de morrer é o complexo de Inês que
tu criaste. [...] isso não apaga a violência que fizeste ao Afonso. Foi como
se a tivesse feito a mim também (Rosa, 2006, p. 72).
Também Pedro convence-se de que o amor entre os dois não será reali-
zado na eternidade, quando afirma que
173
Teatro e Paródia no Mito de Inês de Castro
[...] houve um tempo em que era eu a colocar Afonso entre mim e Inês. O
tempo com ele roubava-me o tempo com ela. Hoje é Inês que coloca Afon-
so entre ela e eu, a separar-nos nesta morte suspensa (Rosa, 2006, p. 72).
À guisa de conclusão
Retomando a ideia de que a paródia é o nível intertextual em que a re-
fração do paradigma é mais acentuada, uma vez que, invertendo o modelo,
chegaremos à sua dessacralização, poderíamos afirmar que a paródia, ou seja,
o canto contrário, é parricida, na medida em que, ao fim e ao cabo, acaba por
matar o pai, isto é, o paradigma.
Ao apresentar esse novo triângulo amoroso – Pedro/Inês/Afonso Ma-
deira –, que inverte dessacralizadoramente o paradigma mítico, Nascimento
Rosa coloca as personagens no psicodrama da História, na medida em que “o
teatro é feito de confrontos” (Rosa, 2006, p. 72).
A chegada de Afonso IV à cena corrobora metaforicamente a ideia do
parricídio, uma vez que, em primeiro lugar, o rei e o escudeiro favorito de Pedro
têm o mesmo nome e, conforme vêm confirmar as falas das personagens, a
castração de Madeira nada mais é do que a castração de Afonso IV, fruto do
ódio do filho desde sua mais tenra idade. Assim, para Madeira, “vingaste-te
[Pedro] de mim como se o castrasses a ele [Afonso IV]”; para Inês, “ele vingou-
se do pai sobre o teu corpo”; para Constança, Pedro queria “mutilar os órgãos
do sexo que geraram metade do teu ser. Mas erraste o alvo. Afonso Madeira
não era Afonso IV”. Todas as intervenções acabam por ser confirmadas pela do
próprio Afonso IV, quando aponta “talvez elas tenham razão, meu filho. Trans-
feriste para este desgraçado o ódio que por mim sentias” (Rosa, 2006, p. 72).
Esse ódio que assola Afonso IV e Pedro I, na verdade, nada mais é do que
outra manifestação do infortúnio que incide sobre a Dinastia Afonsina (ou de
Borgonha), pelo menos desde D. Dinis. O ódio que leva pais e filhos a atitudes
descabidas, como, por exemplo, a guerra civil travada entre o filho legítimo
de d. Dinis, o futuro Afonso IV, e seu meio-irmão, Afonso Sanches, segundo
174
Flavia Maria Corradin
consta, o preferido do rei. A intervenção da rainha Santa Isabel teria posto fim
ao litígio, porém, o texto de Nascimento Rosa, pela boca de Inês, insinua que
Afonso IV teria envenenado Afonso Sanches: “Este irmão que envenenaste...”
(Rosa, 2006, p. 68).
Pedro também parece ter-se sentido sempre preterido em favor de sua
irmã Maria, a menina dos olhos do pai. Ressalta notar que António Ferreira,
em sua Castro, também trata da maldição que incide sobre a família, quando
transforma Afonso IV na grande personagem da peça, ao apresentá-lo diante
de uma aporia, gerada pelo conflito: matar Inês e ver-se odiado pelo filho
versus não matá-la e infringir as razões de Estado.
Se retomarmos o complexo de Pedro, referido anteriormente, percebe-
remos que a castração é, em última instância, uma forma de matar o pai, aquele
que, além de ser o progenitor, é o responsável efetivo pela determinação do se-
xo da criança gerada. Matar o pai implica também acabar com a violação con-
sentida que todo pai exerceria sobre toda mãe. Reinstala-se o complexo de Édi-
po já sugerido por um outro intertexto: Inês de Castro, de Gondim da Fonseca.
Portanto, gostaríamos de finalizar dizendo que O Eunuco de Inês de Cas-
tro: Teatro no País dos Mortos, ao dialogar com o mito, busca sua dessacraliza-
ção, na medida em que, invertendo parodicamente o modelo,acaba por matá-
lo, quem sabe, abrindo caminho para que outros intertextos dialoguem com um
novo paradigma, uma vez que, segundo Gilbert Durand, “o mito é o imaginário
em discurso”, que se concretiza no ilusório espaço do faz-de-conta do teatro.
Afinal, como estamos no país dos mortos, a peça termina, mais uma vez,
exercitando o jogo do faz-de-conta que preside aristotelicamente a encenação
teatral. Fernão Lopes convida todas as almas que estão na ilha de Inês para
representar Pedro, o Cru, de António Patrício, com encenação de Gil Vicente,
uma vez que “não há nada melhor do que o teatro no país dos mortos” (Rosa,
2006, p. 72).
E vamos ao teatro!7
7. Frase proferida insistentemente por Paulo Autran (7/9/1922), grande ator brasileiro, falecido
no dia 12 de outubro de 2007, quando esse texto estava sendo criado. Dedicamos a ele este
trabalho.
175
Teatro e Paródia no Mito de Inês de Castro
Referências bibliográficas
BESSA-LUÍS, Agustina. Adivinhas de Pedro e Inês. Lisboa, Guimarães & Cia Editores,
1983.
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto, Porto Editora, 1985.
DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo, Martins
Fontes, 2001.
FONSECA, Gondin. Inês de Castro. Rio de Janeiro, Livraria São José, 1957.
GUEDES, Maria E. A Boba. Lisboa, Apenas livros Ltda, 2006.
HELDER, Herberto. Os Passos em Volta. Lisboa, Assírio & Alvim, 1985.
HUTCHEON, Linda. A Theory of Parody: The Teachings of Twentieth-century Art
Forms. New York/London, Methuen, 1985.
LOPES, Fernão. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro Oitavo Rei destes Regnos. Porto,
Livraria Civilização Editora, s/d.
PINA, Rui de. Crônicas de Rui de Pina. Porto, Lello & Irmão Editores, 1977.
ROSA, Armando N. O Eunuco de Inês de Castro Teatro no País dos Mortos. Évora, Casa
do Sul, 2005.
VASQUES, Eugénia. “Fiama-Inês, a Estátua Jazente (ut pictura mors)”. In BRANDÃO,
Fiama Hasse Pais. Noites de Inês-Constança. Lisboa, Assírio & Alvim, 2005.
177
1. King’s College London.
Solidão e Relações de Poder na Obra
de Gasparino Damata
ROBERT HOWES1
Gasparino Damata foi um pioneiro da literatura homossexual no Brasil. Este
artigo analisa o desenvolvimento do tema homoerótico em suas obras, come-
çando com um tratamento velado no primeiro romance de 1951, revelando-
se mais abertamente nas duas antologias de histórias e poemas do amor
maldito dos anos 1960, até chegar ao retrato da subcultura homossexual do
Rio de Janeiro contido nos contos de Os Solteirões, de 1976. À primeira vista,
esse retrato pode ser considerado pessimista e negativo. Porém, considerado
à luz da teoria da anomia, o livro aparece como um precursor do movimento
de liberação homossexual brasileiro. O trabalho termina com uma compara-
ção intertextual entre The Sergeant, do escritor norte-americano Dennis
Murphy, e O Voluntário, de Damata.
Hoje as obras de Gasparino Damata são pouco conhecidas, mas mere-
cem ser estudadas porque ele foi um pioneiro da literatura homossexual no
Brasil. Editou duas antologias de textos sobre o homoerotismo – as primeiras
a tratar deste assunto –, e foi um dos fundadores do jornal homossexual Lam-
pião. Foi também escritor, autor de um romance e de dois livros de contos que
revelam uma abordagem cada vez mais aberta do tema homoerótico. Neste tra-
balho vou analisar a maneira como Damata tratou o homoerotismo, relevando
as questões da solidão e as relações de poder na subcultura homossexual.
178
Robert Howes
Gasparino Damata nasceu em Catende, Pernambuco, em 1918. Durante
a Segunda Guerra Mundial ingressou como suboficial no United States Trans-
portation Corps e trabalhou num navio militar que levava tropas e materiais
de guerra de Recife e Natal para as tropas aliadas na África do Norte. Em 1951
publicou seu primeiro romance e se iniciou na imprensa carioca trabalhando
como jornalista profissional até a década de 1960. Em seus últimos anos, ga-
nhou a vida como negociante de obras de arte e faleceu na década de 1980.
O primeiro livro de Gasparino Damata, Queda em Ascensão, romance
semiautobiográfico e fruto de suas experiências a bordo durante a guerra, re-
lata a amizade entre o narrador, um marinheiro brasileiro, e um soldado ame-
ricano na ilha de Ascensão. Contém uma referência direta às relações homos-
sexuais, mas o relacionamento entre os dois personagens é tratado de uma
maneira ambígua, que deixa em dúvida se o narrador, apesar de ter relações
com mulheres, seja também suscetível a sentimentos homoeróticos. No conto
“O Capitão Grego”, publicado no livro A Sobra do Mar, em 1955, um mari-
nheiro se sente o objeto de desejo do capitão, mas, apesar de seus receios, volta
do cais para o navio.
Em 1965, apareceu o livro mais popular de Gasparino Damata, a
Antologia da Lapa, que chegou a ter uma segunda edição em 1978. Contém
uma coleção de memórias da Lapa e de poemas e ficção inspirados pelo bairro
carioca.
Até aquele momento o tema homoerótico tinha sido tratado velada-
mente. Nos anos 1960, as ideias que acabaram lançando o movimento de libe-
ração homossexual começaram a ganhar força, tanto no Brasil como no mun-
do. Damata participou desse movimento, lançando as antologias Histórias de
Amor Maldito e, junto com o poeta Walmir Ayala, Poemas de Amor Maldito.
Nestes livros publicou trechos que tratavam do homoerotismo, mas que não
eram necessariamente de autores homossexuais, incluindo contos e poemas
de autores consagrados, tais como Machado de Assis e Carlos Drummond de
Andrade, mas também escritas mais assumidas de novos autores como Arruda
Dantas e Van Jafa.
179
Solidão e Relações de Poder na Obra de Gasparino Damata
A contracapa de Histórias de Amor Maldito, de 1967, fala abertamente
do homossexual, notando que nos livros de alguns romancistas americanos:
[...] o homossexual não vem catalogado como um anormal, doente, pelo
contrário, é retratado como pessoa normal, com vida e hábitos próprios,
que, infelizmente, em virtude da não-aceitação plena dentro da socie-
dade, se sente ainda compelido a viver como um marginal dentro da pró-
pria sociedade (Damata, 1967).
Há, na literatura brasileira, um número bastante significativo de situa-
ções e de personagens menores declaradamente homossexuais, embora só
Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, e Internato, de Paulo Hecker Filho, sejam
obras cem por cento homossexuais. Poemas de Amor Maldito apareceu em
1969, ano difícil da história brasileira, já em pleno clima do AI-5. No texto da
contracapa, Damata deixa claro o assunto visado pela antologia, sem contudo
empregar a palavra “homossexual”. Em vez disso, prefere “poesia e poetas
malditos”, as “chamadas ‘minorias eróticas’”, “o leitor ‘entendido’” e “a paixão
pela beleza grega dos adolescentes”. Essas antologias serviram de guia para
Winston Leyland, editor da Gay Sunshine Press, ao compilar as duas anto-
logias que introduziram a literatura homoerótica latino-americana aos leitores
de língua inglesa (Leyland, 1979 e 1983).
Em Histórias do Amor Maldito, Damata incluiu um conto de sua auto-
ria, “Carl”, tirado de um livro inédito Diário de um Moço de Bordo. Nesse
conto, que retoma o cenário do cais do porto, o narrador encontra um jovem
marinheiro dinamarquês, e desta vez o ato sexual consuma-se. Mesmo assim,
fica uma certa relutância em assumir completamente o tema, porque os dois
estão completamente bêbedos e quase inconscientes.
O último livro de Gasparino Damata foi Os Solteirões, editado em 1976,
já no começo da Abertura2. Nesta coleção de contos, a vida dos participantes
2. A publicação não teve grande repercussão na época, mas existe um comentário bastante
benévolo publicado na Tribuna da Imprensa e depois reeditado no jornal Mundo Gay, ano I, n.
3, 1º dez. 1977, p. 12.
180
Robert Howes
na subcultura homossexual da região central da cidade do Rio de Janeiro é
narrada explicitamente, sem subterfúgios, utilizando a linguagem e a gíria do
próprio meio. Através de algumas referências, é possível deduzir que a ação
da maioriados contos se passa na década de 1960, mas não se sabe se foram
escritos nos anos 1960 ou 1970. De qualquer jeito, para mim são textos cheios
de nostalgia, porque quando cheguei no Brasil pela primeira vez, em outubro
de 1971, hospedei-me num hotel, aliás familiar, perto da Lapa, e passei muitas
horas pesquisando na Biblioteca Nacional, em frente à Cinelândia e ao bar
Amarelinho. Os contos localizados nesses lugares são muito evocativos do Rio
de Janeiro daquela época.
Mas, para outros leitores, estes contos bem podem criar uma sensação
de mal-estar e tristeza. Nesta obra, com poucas exceções, aparece um meio bru-
tal, desprovido de heroísmo, de idealismo, de amor e de compaixão. Os relacio-
namentos entre as personagens processam-se na base de relações de poder, de
exploração e de troca desigual de favores. A maioria dos personagens são, de
um lado, homossexuais de certa idade, já experientes na caça das relações se-
xuais e, do outro, rapazes sem dinheiro e sem apoio social, procurando satis-
fazer suas necessidades básicas de sobrevivência. Em muitos casos, as relações
são claramente mercenárias. O conto “A Desforra” abre com uma citação:
O homossexualismo masculino, praticado pelos jovens nos países
subdesenvolvidos, é um problema de estômago, portanto social. [...] E
rapazes da classe menos favorecida, pobre, [que] o praticam [...] com
certa naturalidade, sem dramas de consciência, como uma fórmula de
suplementar o salário baixo (Damata, 1976, p. 129).
Neste conto, um dentista homossexual considera como se vingar de um
rapaz que o abandonou para ir viver com uma amante e agora, chutado por
ela e faminto, volta a procurá-lo. O dentista tem sua roda de amigos, mas com
os parceiros sexuais não há solidariedade alguma. A filosofia do dentista resu-
me-se da maneira seguinte:
181
Solidão e Relações de Poder na Obra de Gasparino Damata
Em matéria de amor, só acreditava no prazer comprado, isto é, no garoto
que topava exclusivamente por dinheiro, ou vantagens altas, que sabia
tirar partido da situação, tudo feito com o máximo de sinceridade, sem
hipocrisias para não deixar ninguém iludido; nada de “eu te amo” e
coisa[s] parecidas; garoto que se apaixonava não servia, era bicha em
potencial (Damata, 1976, pp. 141-142).
Aqui, a palavra “homossexual” é um insulto e uma arma para diminuir
o outro. Quando o rapaz afirma desesperadamente que é macho, o dentista
responde: “É macho coisíssima nenhuma! Você sabe perfeitamente que é tão
homossexual como qualquer um de nós” (Damata, 1976, p. 154).
Contudo, embora neste jogo de relações de poder os homossexuais mais
velhos tenham as vantagens do poder e da experiência que vêm com a idade,
nem tudo os favorece. De seu lado, os rapazes têm a juventude e a masculi-
nidade desejadas, além de sua própria experiência da vida. É um jogo sutil
envolvendo o desejo sexual dos mais velhos e a necessidade de se virar dos
jovens. O motor dessa luta é a solidão. Damata cita outro escritor, dizendo:
Não há nada mais terrível do que a solidão, ou a ausência total do amor
[...] só a solidão ou a impossibilidade de se viver ao lado da pessoa a
quem se ama [...] pode reunir debaixo do mesmo teto gente de men-
talidade e idade tão diferentes (Damata, 1976, p. 63).
Tanto os jovens quanto os mais velhos sentem os efeitos da solidão. Daí
um certo equilíbrio entre os personagens. Damata têm a habilidade de entrar
na mentalidade de ambos os parceiros. “Módulo Lunar Pouco Feliz” consiste
no monólogo de um garoto de programa que chega no Rio vindo de São Paulo
e tem dificuldade em encontrar freguês. Em “Paraíba”, um nordestino explica
a um conterrâneo por que frequenta um cinema de pegação, deixando entrever
que ele consegue uma certa satisfação sexual apesar de afirmar que vai lá por
causa do dinheiro.
Talvez o melhor dos contos seja “Muro de Silêncio”. Um homem se
encontra com um fuzileiro com quem tinha relações sexuais regulares, mas
182
Robert Howes
que depois sumiu sem dizer o por quê. O fuzileiro acompanha-o à casa, onde
voltam a ter relações, mas ele mantém uma grande reserva e deixa ver que é
a última vez que isto vai acontecer. Embora cedendo seu corpo sem relutância,
o fuzileiro protege sua independência interior e dignidade pessoal. O conto
sugere sutilmente a falta de comunicação verbal entre os dois e os sentimentos
do mais velho em relação ao rapaz.
Às vezes o próprio Damata tenta amenizar este retrato triste do mundo
homossexual que ele apresenta. No conto “O Inimigo Comum”, um homos-
sexual velho cheio de misoginia tenta convencer um rapaz a não se relacionar
com mulheres, chamando-as de “bruxas” e outros insultos que o rapaz com-
bate. Ao final do conto, há uma “moral da história” na voz do autor, dizendo:
Se a mulher fosse tão ruim assim, o homem, que também não é lá flor
que se cheire, já teria acabado com a raça [...] homem e mulher nem
sempre se entenderam, mas nem assim deixaram de viver debaixo do
mesmo teto e de constituir família [...] é bem provável que um dia o
rapaz se case e o velho venha a ser seu padrinho de casamento (Damata,
1976, pp. 62-63).
Desta maneira, e com outros pequenos detalhes, Damata sugere que
existem ligações entre a subcultura homossexual e o resto da sociedade brasi-
leira. Contudo, o retrato que ele faz dessa subcultura não é uma imagem que vai
sensibilizar muitas pessoas hoje em dia. Em comparação com as obras de ficção
de Darcy Penteado, que sairam à mesma época e tentavam apresentar uma
imagem positiva e idealista do homoerotismo, os contos de Gasparino Damata
são sombrios e pessimistas. Ecoando as palavras dos velhos republicanos da
Primeira República, podemos dizer “esta não é a república dos meus sonhos”.
Contudo, parece-me que há uma significação mais profunda nos contos
de Damata que vale a pena resgatar. Para isso, gostaria de sugerir outra inter-
pretação, baseada no conceito da anomia. A teoria da anomia, que no sentido
etimológico significa “ausência de leis ou normas”, tem suas origens na Grécia
clássica, mas foi ressucitada ao final do século XIX pelo filósofo francês Jean-
Marie Guyau e pelo sociológo Émile Durkheim nas obras De la division du
183
Solidão e Relações de Poder na Obra de Gasparino Damata
travail social e Le Suicide (Orrù, 1987). No século XX, o conceito da anomia
foi empregado pelo criminologista norte-americano Robert Merton para expli-
car as raízes das ondas de crime que continuaram a assolar as sociedades ricas.
O conceito passou à cultura popular nas décadas de 1960 e 1970 com o sentido
de uma condição de mal-estar em indivíduos, caraterizada pela ausência ou
diminuição de normas ou valores. Empregado nesse sentido, tem associações
com o crime e a delinquência.
Em 1973, entretanto, no ensaio “Anomie et mutation sociale”, e depois
no livro Hérésie et subversion, o sociólogo francês Jean Duvignaud tentou dar
uma interpretação mais positiva à anomia, concentrando-se em suas mani-
festações artísticas e literárias. Neste livro, argumentou que as obras de indiví-
duos anômicos aparecem em momentos de transição, quando um novo tipo
de sociedade está começando a aparecer mas ainda não tomou uma forma
definitiva e reconhecida, enquanto os restos do sistema antigo lutam para
manter sua predominância (Duvignaud, 1986).
A obra de Gasparino Damata pode ser interpretada à luz da teoria de
anomia. Ele escrevia os contos de Os Solteirões num momento da história em
que o Brasil se transformava numa sociedade industrial e urbana. Ao mesmo
tempo, o movimento de liberação homossexual estava começando a se esbo-
çar, mas ainda era difícil ver como iam se manifestar as ideias e os sentimentos
que se acordavam. Na linguagem de Duvignaud, era um mundo que nascia e
mal se entendia ainda. Os contos apresentam um retrato realista do mundo
homossexual, uma subcultura urbana com suas próprias regras e linguagem
que divergem das normas da sociedade constituída, mas que ainda não foi
reconhecida pela sociedadegeral, na qual a heterossexualidade e o casamento
continuam a exercer a ascendência moral e social. Esta subcultura, existindo
num meio hostil, tem muitos aspectos negativos: personagens egoístas explo-
rando as relações do poder para satisfazer o desejo sexual; uma sociedade em
que estão intimamente interligados o dinheiro, a experiência da vida, a soli-
dão, o tesão, a juventude e as necessidades básicas de comer, dormir e gozar.
Mas é também uma subcultura que tem elementos positivos: apesar de todos
os problemas, os personagens conseguem se realizar sexualmente e fazer ami-
184
Robert Howes
zades que vêm em seu auxílio em momentos difíceis. Ao contrário de alguns
personagens enrustidos, nenhum dos personagens ligados à subcultura se
suicida: sobrevivem e continuam lutando. E mesmo o dentista que queria
humilhar seu antigo amante, acaba rindo quando sabe que o rapaz se ligou a
outro amigo dele.
Para terminar, este trabalho vai fazer uma comparação intertextual
entre a novela de Gasparino Damata, O Voluntário, que forma parte de Os
Solteirões, e o romance The Sergeant [O Sargento], do escritor norte-ameri-
cano Dennis Murphy. The Sergeant foi editado em 1958 e estreou numa ver-
são cinematográfica com Rod Steiger em 1968. As duas obras têm o mesmo
enredo básico: um sargento militar apaixona-se por um praça sob seu coman-
do. No romance americano, o soldado reage violentamente contra o assédio
do sargento, que, totalmente isolado, acaba se suicidando.
A novela de Damata tem o mesmo enredo, mas o desenvolvimento do
tema é completamente diferente. O sargento Leocádio forma parte de um gru-
po de suboficiais denominados “fanchones”, muito experientes na “vida do
cangaço”, ou prática de seduzir recrutas. A maioria dos recrutas visados tam-
bém conhecem o jogo e participam em troca de determinados favores. Leocá-
dio toma a decisão de seduzir um voluntário pernambucano, Ivo, que no co-
meço se esquiva habilmente das manobras do sargento. Quando Ivo precisa
dum emprego, contudo, acaba cedendo, com a única condição que não quer
fazer papel de mulher. O relacionamento continua por bastante tempo, mas
quando Ivo quer se casar, Leocádio insulta a namorada e perde o rapaz para
sempre. Longe de se suicidar, contudo, vai ao bar e embriaga-se, perdendo
assim a oportunidade de ir ter com outro rapaz que está à sua espera.
A comparação entre as duas obras mostra alguns contrastes culturais
interessantes: a rigidez da cultura anglo-americana, ilustrada pela reação
violenta do soldado assediado, o sentimento de culpa que empurra o sargento
americano ao suicídio, a significação da troca de favores na cultura brasileira
e a importância do papel, ativo ou passivo, desempenhado nas relações
sexuais. O contraste mais importante, contudo, refere-se mais a uma questão
cronológica. O romance de Murphy foi escrito na década de 1950, quando o
185
Solidão e Relações de Poder na Obra de Gasparino Damata
movimento em prol dos direitos homossexuais ainda estava no começo.
Murphy levanta a questão homossexual, mas, com o suicídio do sargento ao
final do livro, o autor restabelece os valores consagrados da época. Neste
romance, o homossexual aparece como uma figura estranha, isolada, que não
consegue se controlar nem se submeter às normas da sociedade. Quando o
caso chega ao conhecimento público, a única saída para o homossexual é su-
mir, suicidando-se, deixando que a sociedade volte ao normal sem ele.
A novela de Damata situa-se na década de 1960 e foi editada em 1976,
um pouco antes do movimento homossexual brasileiro começar a se mani-
festar e difundir as ideias da liberação gay. Ao contrário do sargento america-
no, Leocádio nos aparece como um personagem integrado numa comunidade,
uma subcultura vibrante, arraigada na sociedade carioca, com sua própria gí-
ria e suas regras conhecidas e compreendidas por uma grande quantidade de
pessoas, e não só homossexuais. Apesar da rivalidade entre os fanchones,
Leocádio recebe o apoio do meio e tem um antigo companheiro da vida do can-
gaço com quem conversar depois de perder o amante. Em vez de se suicidar,
se embebeda e há sempre um rapaz à sua espera para o próximo dia.
Assim, seguindo o modelo de anomia sugerido por Duvignaud, vemos
a literatura antecipando mudanças na sociedade brasileira. Os contos de Os
Solteirões, além de outros livros publicados na década de 1970 por Aguinaldo
Silva, Darcy Penteado e João Silvério Trevisan, falam abertamente da vida dos
homossexuais do Rio de Janeiro e São Paulo, do mundo das bichas, das
bonecas e dos michês. Antecederam o lançamento em 1978 do jornal gay
Lampião, que também utilizava a gíria da subcultura e publicava reportagens
sobre a subcultura carioca, e a fundação de Somos, o primeiro grupo gay
organizado, acontecimentos dos quais esses mesmos autores participaram
ativamente. Gasparino Damata foi um dos fundadores de Lampião, e nas
antologias do amor maldito e nos contos reunidos em Os Solteirões foi um
pioneiro na difusão da literatura homoerótica e no retrato do meio homos-
sexual do Brasil.
186
Robert Howes
Referências bibliográficas
DAMATA, Gasparino. Queda em Ascensão: Romance. Rio de Janeiro, Edições O
Cruzeiro, 1951.
. “O capitão Grego”. In: A Sobra do Mar. Rio de Janeiro, Ministério da
Educação e Cultura, Serviço de Documentação, 1955, pp. 23-48.
. Os Solteirões. Rio de Janeiro, Pallas, 1976.
. (org.). Antologia da Lapa. Rio de Janeiro, Leitura, 1965.
. (org.). Antologia da Lapa: Vida Boêmia no Rio de ontem. 2ª ed., Rio
de Janeiro, Codecri, 1978.
. (org.). Histórias do Amor Maldito. Rio de Janeiro, Record, 1967.
. “Carl”. In: DAMATA, Gasparino (org.). Histórias do Amor Maldito. Rio
de Janeiro, Record, 1967, pp. 361-368.
 & AYALA, Walmir (orgs.). Poemas do Amor Maldito. Brasília, Coor-
denada Editora de Brasília, 1969.
DUVIGNAUD, Jean. Hérésie et Subversion: Essais Sur L’Anomie. Paris, Éditions La
Découverte, 1986.
LEYLAND, Winston (ed.). Now the Volcano: An Anthology of Latin American Gay
Literature. San Francisco, Gay Sunshine Press, 1979.
. (ed.). My Deep Dark pain is Love: A Collection of Latin American Gay
fiction. San Francisco, Gay Sunshine Press, 1983.
MURPHY, Dennis. The Sergeant. London, Frederick Muller, 1958.
ORRÙ, Marco. Anomie: History and Meanings. Boston, Mass., Allen & Unwin, 1987.
187
A Homossociabilidade Erótica de
João Silvério Trevisan
NELSON MARQUES1
Partindo dos estudos sobre um tipo específico de instituição que podemos
enquadrar dentre aquelas que apresentam espaços “fechados”, tomaremos o
romance Em Nome do Desejo, de João Silvério Trevisan, como base de uma
análise investigativa acerca da representação do adolescente masculino dentro
de um seminário. Com o apoio dos recentes estudos sobre a homotextualidade
na literatura, iremos tentar desvendar o mundo de meninos que, mesmo afas-
tados da presença feminina, reproduzem retrógradas regras e interditos do
universo que permeia as práticas eróticas entre homens e mulheres do lado
de fora do claustro.
Espaços fechados
O romance Em Nome do Desejo, escrito em 1982 por João Silvério
Trevisan (JST), se mostrou em perfeita harmonia com um dos pontos passíveis
de investigação da homotextualidade que são “os estudos de espaços, das
instituições mais fechadas, como o internato” (Lopes, 2002, p. 124). Tal espaço
fechado, com suas regras e interditos, dialoga com aquilo que Pierre Bourdieu
chama de topologia sexual do corpo, isto é, “gestos e movimentos corporais
revestidos de significação social” (Bourdieu, 2007, p. 16). O que constatamos
1. Mestre em literatura brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Nelson Marques
188
ao longo do século XX, é que essa topologia vem restringindo cada vez mais as
pessoas e as classificando de modo (muitas vezes) arbitrário e desnecessário.
Ou não é fato que ainda hoje, nos pátios escolares, meninos e meninas conti-
nuam interagindo de acordo com os códigos estabelecidos por essa dominaçãomasculina a que se refere Bourdieu?
Nossa escolha por um autor como JST é nesse sentido proposital e pro-
vocadora. Conhecido por seu constante engajamento político e cultural no
movimento gay brasileiro, o autor é um transgressor de códigos e estatutos
sociais; um homem que pretende questionar os pilares dessa estratificação so-
cial. Mergulhar a fundo no universo dos meninos que um dia se apaixonaram
dentro de um seminário é mergulhar em um mundo que se percebe preso em
amarras muito mais fortes e resistentes do que se imagina. Um mundo, que
por ser habitado apenas por homens, obriga a alguns destes a serem menos
masculinos e outros mais femininos; em suma, os meninos que convivem no
seminário imaginado por Trevisan estão fatalmente impelidos a obedecerem
a um “sistema de oposições homólogas” (Bourdieu, 2007, p. 19), a fim de
perpetuarem um (aparentemente) indestrutível sistema de regras patriarcais.
Vale ainda ressaltar que romance em questão faz parte de uma tradição
literária que tem como cenário principal esta ambientação rígida das institui-
ções pedagógicas. São desta estirpe os romances O Ateneu (1888), de Raul
Pompéia, O Jovem Törless (1906), do alemão Robert Musil, e Lágrimas
Impuras (1999), de Furio Monicelli, apenas para ficarmos em três exemplos.
As três obras têm como protagonistas jovens adolescentes enfrentando as
regras iniciáticas do que é ser homem de acordo com a cartilha da moderna
civilização ocidental.
Um dos aspectos extremamente originais do romance de Trevisan é a
sua estrutura narrativa, que certamente em nada segue as convenções do cha-
mado romance tradicional. Ao narrar o seu livro praticamente todo em forma
de um sistema de perguntas e respostas – apenas um prólogo e um epílogo
diminutos fogem a essa estrutura – JST faz propositadamente uma confusão
na cabeça do leitor. Afinal de contas, o esquema de questionário acaba levando
o receptor a uma espécie de confessionário, “onde o protagonista se desdobra
A Homossociabilidade Erótica de João Silvério Trevisan
189
em uma voz que interroga e outra que confessa” (Leal, 2002, p. 128). Outra
característica importante de Em Nome do Desejo está no fato de seu autor
deliberadamente conciliar discursos do catecismo cristão aos diálogos de seus
personagens, atitude essa que certamente poderá ser interpretada como um
fortalecimento ideológico e político de sua literatura, colocando, assim, o amor
daqueles dois meninos como algo muito além de uma perversão patológica dos
manuais herdados do século XIX. Destarte, como bem constatou Souza Leal:
“O romance realiza outro percurso, utilizando parte desse ideário (religioso)
para autorizar e legitimar o amor entre os do mesmo sexo” (2002, p. 131).
Começamos aqui a nossa investigação acerca de um homem em busca
de um céu prometido há tanto tempo... Um homem maduro em busca de um
menino soterrado; um menino soterrado tentando não morrer. Preparemo-
nos para entrar finalmente no seminário, lugar “onde amar aos homens era
uma tarefa, além de difícil, perigosa” (Trevisan, 1982, p. 24).
O corpo que se modifica e aflora
Todos os seminaristas do romance de JST iniciavam suas vidas como
internos de modo parecido. Ao entrar no seminário, eles se viam logo rotu-
lados como “novatos”, e assim passavam a sofrer as dificuldades comuns a
qualquer iniciante: não dominar o sistema de regras do local, saudades de
casa... Nesse estágio, que durava um ano, o menino era também apelidado de
“sapinho”, isto é, “ainda não vivia dentro da água, mas já tinha saído da terra”
(Trevisan, 1982, p. 38). Um “novato” era geralmente desprezado pelos outros
por causa de seu comportamento medroso e inseguro. Os primeiros passos
dentro do colégio eram sempre difíceis e confusos, e essa fase inicial acabará
sendo como uma grande prova a ser superada pelos futuros religiosos, em
suma, “ser sapinho significava um rito de iniciação, onde se sofria uma espécie
de circuncisão interior” (Trevisan, 1982, p. 38). O uso do termo circuncisão
neste momento certamente não é à toa, pelo contrário: nas suas origens reli-
giosas e culturais, a circuncisão está relacionada com o aumento e o domínio
Nelson Marques
190
da virilidade masculina2. Lembrando Bourdieu (2007, p. 35), a circuncisão é
o “rito por excelência de instituição da masculinidade, entre aqueles cuja
virilidade ele consagra ao prepará-los simbolicamente para exercê-la”.
O entendimento dos ritos iniciáticos experimentados por esse grupo de
meninos se ligaria ao caráter duplo que a própria circuncisão apresenta, isto
é, de um lado a ideia de higiene herdada da medicina, e de outro o forte apelo
religioso que a cirurgia carrega. O menino que passa por uma circuncisão inte-
rior estaria, assim, primeiro, fazendo uma espécie de limpeza no próprio
corpo, retirando aquilo que é excesso; segundo, ele voltaria ao aspecto primei-
ro do ato, ou seja, ele se tornará um homem marcado com o sinal da separação
inicial dos indivíduos e será definitivamente fixado no sexo ao qual pertence:
o masculino.
O protagonista de JST, Tiquinho, é despertado para as transformações
de seu próprio corpo de modo ao mesmo tempo casual e abrupto:
Depois de lhe dizer que já deveria estar usando cueca desde que chegara,
o escandalizado anjo despachou-o com um comentário ameaçador:
Andar sem cueca é contra o Regulamento, porque você já não é mais
nenhuma criança (Trevisan, 1982, p. 48).
Nesta passagem bastante significativa, Tiquinho se encontra justamente
em um momento de transição de uma fase para outra, e descobre que o sím-
bolo de sua nova posição no grupo de meninos se dá pelo uso de uma simples,
porém imprescindível, cueca. A colocação de uma peça íntima passa a ter um
caráter ritualístico e indica o caminho para o seminarista que ainda não sabe
direito onde se encaixar. O uso da referida peça de roupa era, portanto, como
espécie de divisor de águas. Ao passar a ter direito de usá-la, o menino com-
preendia que a fase da “inocência” havia ficado para trás, era chegada a hora
de ser homem de verdade. Ele já não poderia mais andar sem ela, com o “bicho
solto”, como se costuma dizer entre os homens. Como rapaz, ele precisava
2. Para maiores informações, ver, revista História Viva, n. 31, maio 2006.
A Homossociabilidade Erótica de João Silvério Trevisan
191
aprender a domar o seu “bicho”, afinal de contas, “ele” já não podia mais ter
liberdade; seu dono deveria mantê-lo sob uma camada de pano sobressalente,
garantindo, assim, que “ele não escapasse” e causasse uma desagradável sur-
presa. Entender esse processo nos ajuda a delinear uma compreensão do bom
desenvolvimento social do menino no grupo. Tiquinho, por exemplo, passa a
se relacionar consigo mesmo e com os outros de outra forma:
[...] tomou imediatamente o rumo da rouparia, apanhou exultante uma
das cuecas de algodão ainda duro e, trancado num sanitário, vestiu-a
lentamente, mirando-se através de um espelhinho portátil, para ver
como era um homem sem calças. Saiu dali orgulhoso de ter finalmente
atingido a maioridade (Trevisan, 1982, p. 48).
O instigante aqui é a dubiedade proposta pela situação narcísica de
Tiquinho se admirando frente ao espelho. Trancado no sanitário ele vai len-
tamente se “vestindo de homem” e se vendo como tal; a admiração exacerbada
da própria imagem o leva a uma coragem até então desconhecida e o deixa
pronto para iniciar uma nova fase. Ele havia conquistado o direito a uma segu-
rança tal que se sentia preparado para ter uma vida repleta de novidades, in-
cluindo aí a coragem para andar pelo seminário sem se preocupar tanto com
o regulamento, uma segurança limitada e com prazo de validade curto, como
perceberemos ao longo do romance, mesmo assim, uma segurança.
É interessante perceber os mecanismos de poder usados pelos respon-
sáveis educacionais para manter (ou pelo menos tentar) o controle dos corpos
que haviam chegado à fase de ebulição dos hormônios. Justamente porque os
meninos desta fase necessitamde maior atenção e zelo, é que o seminário era
dividido em dois grupos bem distintos. De um lado estavam os meninos que
podiam ficar sem cuecas: de dez a treze anos; do outro, aqueles que já
utilizavam o referido traje: acima dos treze anos. Esse controle era feito com
cuidado de modo a esses dois grupos ficarem separados.
Com o despertar dos hormônios e as regras do mundo externo entra-
nhadas em seus atos, os adolescentes vão precisar definir e estabelecer quem
Nelson Marques
192
é quem ali dentro. Os desejos sexuais obrigarão os meninos a definirem seus
papéis dentro daquele universo enclausurado. Não será possível para todos
eles serem “homens de verdade” e as regras que dividirão o grupo serão claras
e precisas: de um lado os fortes, os homens; do outro, os fracos, as mulheres.
Código da fraternidade viril
Dentro de um pequeno mundo em que a mistura dos sexos não é per-
mitida, regras e códigos são desenvolvidos tendo em vista uma divisão de
poder entre os indivíduos. Os seminários e colégios internos tornam-se lugares
sexualmente saturados e seus dirigentes acabam por inventar regras e mais
regras em uma frágil tentativa de controlar os perfis sociais de seus internos.
Em ambientes austeros como esses, não há espaço para nenhum tipo de
indecisão: você é uma coisa ou outra, jamais as duas coisas. Ao “escolher” qual
lado de sua preferência, o interno estaria necessariamente se posicionando em
um determinado papel. Segundo Anne Vincent-Buffault (1996, p. 114): “Du-
rante muito tempo o que mais se temeu foi que um adolescente ou um homem
se efeminasse demais e infringisse o código da fraternidade viril, excluindo-
se da sociabilidade masculina”.
Por isso, a distinção entre meninos considerados efeminados e más-
culos se torna uma referência central neste tipo de espaço. No romance ana-
lisado por nós, Trevisan transporta seu leitor a um mundo de clausuras, inter-
ditos e desejos sexuais. Neste cenário em que a religião está intimamente liga-
da ao erotismo púbere dos seminaristas o sexo, ora intensamente místico, ora
puramente carnal, apesar de proibido e “ignorado” pelos responsáveis peda-
gógicos de tal instituição, acontece de maneira desenfreada e intensamente.
As amizades nascidas e cultivadas pelos jovens ajudam o autor a formular um
paradoxal conceito de subversão das regras sociais sobre relacionamentos, isto
é, mesmo reforçando tais comportamentos tipicamente “homem-mulher”, os
meninos adaptam esses padrões às suas próprias condições e acabam, de acor-
do com o raciocínio de Francisco Ortega (1999, p. 26), possibilitando “um novo
A Homossociabilidade Erótica de João Silvério Trevisan
193
modo de pensar e repensar as formas de relacionamento existentes em nossa
sociedade”. Tiquinho e Abel estariam, deste modo, ampliando suas possi-
bilidades no relacionamento e se aproximando do que Ortega denominou
como “arte da amizade”, isto é, o amor dos protagonistas imaginados por
Trevisan poderia ser uma “alternativa às tradicionais e desgastadas formas de
relacionamentos com a família e o matrimônio” (1999, p. 27).
Já dissemos aqui que dentro do ambiente de claustro do seminário os
meninos desenvolviam jogos e atividades para definirem uma espécie de
território particular naquele ambiente. O jogo do garrafão, por exemplo, é cer-
tamente um cruel fortalecimento da dicotomia ativo/passivo para os internos
e era realizado como uma forma de resistência do menino dentro do grupo. O
caráter iniciático da “brincadeira” – joga-se para se deixar de ser fraco e tornar-
se forte – acaba não se concretizando como rito de passagem, pois o jogo acaba
apenas sendo uma reiteração dos papéis pré-definidos por aparência, tipo
físico e comportamento. Em outras palavras, quem demonstra sensibilidade,
medo e receio, acaba não tendo como se livrar do estigma do efeminado. O
processo de fortalecimento de uns e o enfraquecimento de outros fica óbvio ao
final de cada partida, como podemos observar na seguinte passagem:
[...] os mais fortes riam satisfeitos, descontraídos, refeitos, sacudindo o
pó e o suor. Os mais fracos corriam para o lavatório, em suma, os mais
fracos continuavam mais fracos. Os mariquinhas, cada vez mais mari-
cas. Quanto aos mais fortes, tinham sua força redobrada (Trevisan, 1982,
pp. 42-43).
A obra faz questão de ressaltar essa violência juvenil e de como aquele
que se mostrava diferente – físico e emocionalmente – precisava aprender a
ser “homem de verdade” através da dor e da agressão. Para os mais fortes, o
objetivo era fazer com que pelo menos os mais fracos esboçassem um sinal de
masculinidade ao apanharem: não podiam reclamar, mesmo porque, “homem
de verdade tem que apanhar calado” (Trevisan, 1982, p. 40).
Nelson Marques
194
O seminário serve desta forma como uma espécie de arena de agressi-
vidades, na qual aqueles com pré-disposição para a tirania e a dominação
através da força física terão um amplo e irrestrito manancial de oportunidades
para exercitar seus mandos e desmandos. Os colégios internos, assim, tornam-
se de alguma forma, como observa Mazzari, uma espécie de “laboratório onde
se devem exercitar habilidades que se farão necessárias no futuro” (1997, p. 7).
Essa ideia de um lugar comandando pelas leis dos mais fortes e onde apenas
eles se tornarão homens de verdade, “propicia, por um lado, o surgimento
eventual de déspotas implacáveis, e não prescinde, por outro, da figura do
bode expiatório” (Mazzari, 1997, p. 8).
Considerações finais
Em nome do desejo, em nome do amor, em nome da vida. Certamente
que qualquer um destes títulos se encaixaria perfeitamente com a história dos
seminaristas que um dia se apaixonaram ao se olharem. No entanto, a escolha
feita por João Silvério Trevisan parece acontecer exatamente devido a todas
as implicações causadas pelas contradições que o próprio termo desejo incita,
e de como ele está intimamente ligado a fé cristã. Desejo, segundo a definição
do dicionário3, quer dizer: “1. Ação de desejar. 2. O que se deseja. 3. Anseio,
aspiração veemente. 4. Cobiça. 5. Apetite, vontade de comer ou de beber. 6.
Apetite carnal, concupiscência”. Em suma, a história contada pelo homem que
um dia volta ao seu passado em busca de respostas passa por uma série de
desejos e aspirações em busca do que é amar.
Seja como literatura marginal, literatura gay, literatura homoerótica, ou
qualquer outro rótulo usado, a literatura que tem como foco os relacionamen-
tos de pessoas do mesmo sexo é de extrema importância no que diz respeito
a visibilidade de uma parte da sociedade que ainda hoje, em pleno século XXI,
precisa lutar com coragem e muita disposição por seus direitos civis. Até
3. Dicionário Michaelis online.
A Homossociabilidade Erótica de João Silvério Trevisan
195
porque, como reconhece Pierre Bourdieu, o trato simbólico com as marcações
de gênero repercute em toda a estruturação social que distribui poderes na
sociedade – a identificação com o elemento passivo (originalmente identi-
ficado com o feminino) serve de justificativa para variadas formas de domi-
nação e exploração. O estudo dessa questão não deveria interessar, portanto,
somente a gays, lésbicas ou mulheres, mas a todos que discutem as relações
de poder marcadas pela desigualdade e militam por minorar seus efeitos.
A história dos meninos que se apaixonam dentro de um seminário
choca não por colocar um assunto tabu em cena, e sim porque tal problemática
é apresentada de modo a realçar os efeitos mais cruéis dessas relações de
poder, colocando o texto a serviço de um pensamento consciente e politica-
mente engajado. Assim como o editorial de lançamento do jornal Lampião4
anunciava não querer viver em guetos, nem erguer bandeiras que o estigma-
tizassem, Trevisan também não quer saber de ser somente um escritor gay;
seu objetivo maior é um debate com todos e não apenas com um setor da
população. Muito além do mero rótulo, o autor almeja uma sociedade na qual
haja uma convivênciae um respeito pela cidadania de cada indivíduo sem que
para isso seja preciso se demarcar lugares específicos.
A construção de uma identidade masculina se dá de maneira rigorosa
e minuciosamente trabalhada, e os espaços fechados acabam se transforman-
do em verdadeiros criadouros onde a necessidade de se ter em quem mandar
obriga àqueles com maior disposição para o aperfeiçoamento corporal domi-
narem. O que o romance de Trevisan tem de original é sua forma de não que-
rer justificar o homoerotismo presente nas relações de seus personagens. A
desmesura de JST é arriscar “criar” meninos mais livres, mais aptos a lidarem
com os desejos de seus próprios corpos e espíritos; afinal de contas, como
Bourdieu, nós também nos espantamos “que a ordem estabelecida, com suas
4. O Lampião da Esquina foi um dos primeiros jornais gays do Brasil. Circulou de 1978 a 1981.
Tinha como articuladores Aguinaldo Silva, Caio Fernando Abreu, Gasparino da Matta e João
Silvério Trevisan, entre outros. Disponível em: www.mgm.org.br/comunicando/noticias_
do_meio/lampi%E3odaesquina.htm.
Nelson Marques
196
relações de dominação, seus direitos e imunidades, seus privilégios e suas
injustiças, perpetue-se apesar de tudo tão facilmente” (Bourdieu, 2007, p. 7).
Por fim, deixemos no ar a pergunta que se faz mais significativa ao
término da leitura do romance: como tentar achar verdades quando se está
enclausurado em um mundo de mentiras?
Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2007.
LEAL, Bruno Sousa. “Estranhas Entranhas em Nome do Desejo, de João Silvério
Trevisan”. In SANTOS, R. & GARCIA, W. (orgs.). A Escrita de Adé: Perspectivas
Teóricas dos Estudos Gays e Lésbicos no Brasil. São Paulo, Xamã, 2002, pp.
127-133.
. “Literatura como alteridade”. In: A Ética da Narrativa em Três
Romances Brasileiros do Final do Século XX. Belo Horizonte, Universidade
Federal de Minas Gerais, Tese de Doutorado, 2000.
LOPES, Denílson. O Homem que Amava Rapazes e Outros Ensaios. Rio de Janeiro,
Aeroplano, 2002.
MAZZARI, Marcus Vinicius. “Representação Literárias da Escola”. Estudos Avançados,
São Paulo, vol. 11, n. 31, 1997. Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_ arttext&pid=S0103-40141997000300014.
MONICELLI, Furio. Lágrimas Impuras. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
MUSIL, Robert. O Jovem Törless. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.
ORTEGA, Francisco. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de Janeiro, 1999.
POMPÉIA, Raul. O Ateneu. 10ª ed. São Paulo, Ática, 1989.
TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. Edição revista e ampliada. Rio de
Janeiro, Record, 2000.
. Em Nome do Desejo. São Paulo, Max Limonad, 1982.
VINCENT-BUFFAULT, Anne. Da Amizade: Uma História do Exercício da Amizade nos
Séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro, Zahar, 1996.
197
Corpo e Memória na Obra de Caio Fernando Abreu
ANTONIO EDUARDO DE OLIVEIRA1
A obra de Caio Fernando Abreu projeta no texto escrito mapeamentos
subjetivos e ficcionais. Morte, aids, vida e memória são retratados na escrita
do autor. A presença da temática da homoafetividade, o humor camp e queer
e o tom confessional presentes nos contos, romances e crônicas de Caio geram
espaços de intimidade entre o escritor e o leitor. 
Mesmo considerado o primeiro escritor brasileiro a abordar em seus
textos a temática da aids, Caio adota uma postura sutil na maior parte de sua
obra ao mencionar a epidemia presente no corpo de personagens. Bessa
(2002), leitor crítico da obra de Caio, dá como exemplo principal da referência
à temática da aids a novela Pela Noite, na qual, em um primeiro plano, a
narrativa apresenta somente um jogo de sedução entre Pérsio e Santiago, seus
dois personagens imersos em uma noite paulistana do início da década de
1980. Com a escrita das crônicas, depois da contaminação do autor, quando
o biográfico aflora em plena força no escritor, é que a temática da aids se torna
explícita na obra de Caio.
Outro pesquisador importante da obra de Caio, Ítalo Moriconi, acredita
que “pode-se constatar facilmente que o discurso da aids, em torno da aids já
estava presente na ficção de Caio desde o início da epidemia, na primeira me-
tade da década de 1980” (Moriconi, 2002, p. 15).
Ele salienta que a obra de Caio nos traz o perfil de um escritor de fim de
século cujo trabalho de criação literária anda par a par com o mundo do
1. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
198
Antonio Eduardo de Oliveira
[...] entretenimento, do espetáculo e do jornal, contrastando de um lado,
com outros autores canônicos [...] e que Caio ocupou um entrelugar [...]
que merece ser estudado e discutido por quem se interessa por uma
reflexão crítica sobre a história recente da produção cultural no Brasil
(Moriconi, 2002, p. 18).
A proposta deste trabalho é formular uma leitura das crônicas reunidas
em Pequenas Epifanias (1996), destacando o corpo aidético transformado em
espaço maior de inspiração para o escritor, como se explicita nas crônicas es-
critas por Caio para o jornal O Estado de S. Paulo, e mais claramente na escrita
das três chamadas Cartas para Além dos Muros.
No volume póstumo, Pequenas Epifanias (1996), organizado por Gil
França Veloso e agora relançado com o prefácio de Antônio Gonçalves Filho
(2006) , composto de crônicas escritas por Caio para o jornal O Estado de S.
Paulo, desde a “Primeira Carta para Além dos Muros”2 autor nos fala de seu
corpo adoecido, transformado em um novo espaço que inspira a elaboração
da escrita. Mesmo que doa o corpo, a escrita flui e passa a simbolizar um mapa
de representação da vida, um marco da memória do autor. Como ele escreve:
Minha única preocupação é conseguir escrever estas palavras – e elas
doem, uma por uma – para depois passá-las, disfarçando, para o bolso
de um desses [visitantes] que costumam vir no meio da tarde (Abreu,
1996, p. 97).
Elaborando através da escrita das cartas uma cumplicidade entre autor
e leitor, Caio equipara os familiares e amigos que o visitam no hospital a men-
sageiros que o ajudarão, com a força da amizade, a lutar contra a enfermidade
que o mantém hospitalizado. Valendo-se de força emocional originada por sua
intensa sensibilidade, que o redime diante da adversidade, Caio define essas
pessoas como leitores epistolares que têm o poder divino de salvá-lo da morte,
2. O título dessas crônicas/cartas é uma alusão simbólica do corpo vivo lutando para transpor
“o muro” , metáfora espacial que se torna limítrofe entre a vida e a morte.
199
Corpo e Memória na Obra de Caio Fernando Abreu
ao ajudá-lo a divulgar sua produção de cartas escritas no espaço confinado da
geografia do hospital. Para ele, essas pessoas
[...] são doces, com suas maçãs, suas revistas. Acho que serão capazes de
levar esta carta até depois dos muros que vejo a separar as grades de
onde estou daquelas construções brancas, frias (Abreu, 1996, p. 97).
Caio também expressa seu medo diante do enfrentamento do desconhe-
cido, das consequências que virão com a doença, com o corpo invadido, tor-
nando-se território de sofrimento e, a partir daí, a escrita se sobressai como
único espaço possível de redenção:
Tenho medo é desses outros que querem abrir minhas veias. Talvez não
sejam maus, talvez eu apenas não tenha compreendido ainda a maneira
como eles são, a maneira como tudo é ou tornou-se, inclusive eu mesmo,
depois da imensa Turvação. A única coisa que posso fazer é escrever –
essa é a certeza que te envio, se conseguir passar esta carta para além dos
muros. Escuta bem, vou repetir no teu ouvido, muitas vezes: a única
coisa que posso fazer é escrever, a única coisa que posso fazer é escrever
(Abreu, 1996, pp. 97-98). 
O corpo em destaque, aprisionado no hospital, é o corpo aidético trans-
formado em fonte de inspiração para a escrita das três cartas para além do
muro. Como se percebe no volume de cartas organizado por Ítalo Moriconi
(2002)3 e em outros momentos de sua obra, Caio elaborano próprio corpo
um palco subjetivo para expressar a doença, criando uma poética de resistên-
cia à morte, ao se voltar para referências frequentes à cultura pop e literária,
uma vez que
3. As três cartas para além do muro são crônicas publicadas no jornal O Estado de S. Paulo.
As cartas do volume organizado por Ítalo Moriconi são uma seleção da correspondência que Caio
escreveu ao longo de sua vida.
200
Antonio Eduardo de Oliveira
[...] a formação pop contracultural, o flerte com a linguagem juvenil está
em Morangos Mofados. O molde do policial e o mergulho no conteúdo
místico (ou cósmico) estão em Onde Andará Dulce Veiga?, romance que,
além disso, sintetiza muitas outras coisas e situa-se sem dúvida alguma
entre os melhores produtos da ficção brasileira na década de 1990
(Moriconi, 2002, pp. 11-12). 
Na “Segunda carta para além dos muros”, Caio refere-se a vários indiví-
duos famosos já vitimados pela aids. Inicialmente, usando uma metáfora
midiática, elabora um cenário evocador da morte construído a partir de um
show da vida:
[...] quando sozinho, depois, tentando ver os púrpuras do crepúsculo além
dos ciprestes do cemitério atrás dos muros – mais o ângulo não favorece e
contemplo então a fúria dos viadutos e de qualquer maneira, feio ou belo,
tudo se equivale em vida e movimento – abro janelas para os anjos
eletrônicos da noite. Chegam através de antenas, fones, pilhas, fios.
Parecem às vezes com Cláudia Abreu (as duas, minha brava irmã e a atriz
de Gilberto Braga), mas podem ter a voz caidaça de Billie Holiday perdida
numa FM ou os vincos cada vez mais fundos ao lado da boca amarga de
José Mayer. Homens, mulheres, você sabe, anjos nunca tiveram sexo. E
alguns trabalham na TV, cantam no rádio. Noite alta, meio farto de asas
ruflando, liras, rendas e clarins, despenco no sono plástico dos tubos enfia-
dos em meu peito. E ainda assim eles insistem, chegados desse Outro Lado
de Todas as Coisas (Abreu, 1996, pp. 99-100). 
Imaginando sua adesão a um elenco de personalidades famosas vitima-
das pela aids, Caio parece estar descrevendo sua inclusão no elenco de um
filme. Cinéfilo incomparável, ele equipara a vida a uma longa experiência cine-
matográfica ao fazer citações fílmicas em contos e romances, utilizando tam-
bém o mesmo recurso na escrita das Cartas para Além dos Muros. Retratando
a proximidade da morte, Caio parece estar descrevendo a cena de um filme
201
Corpo e Memória na Obra de Caio Fernando Abreu
que nos faz lembrar O Show Deve Continuar (All That Jazz, 1979), de Bob
Fosse. Esse filme não é citado por ele, mas nos vem à mente pelo fato de o
enredo abordar a eminência da morte de um coreógrafo da Broadway (Roy
Scheider) empenhado na elaboração de seu último musical e em diálogo
constante com o anjo da morte (Jessica Lange). Caio começa uma descrição
do cenário do outro mundo iniciada com a referência ao cineasta inglês cult
e militante gay Derek Jarman (1942-1994), que morreu contaminado pela
aids. Ele escreve:
Reconheço um por um contra o fundo blue de Derek Jarman, ao som de
uma canção de Freddy Mercury, coreografados por Nureirev, identifico
os passos bailarinos-nô de Paulo Yutaka. Com Galizia, Alex Vallauri
espia rindo atrás da Rainha do Frango Assado e ah como quero abraçar
Vicente Pereira, e outro Santo Daime com Strazzer e mais uma viagem
ao Rio com Nelson Pujol Yamamoto. Wagner Serra pedala bicicleta ao
lado de Cyrill Collard, enquanto Wilson Barros esbraveja contra Peter
Greenaway, apoiado por Nélson Perlongher. Ao som de Lóri Finokiaro,
Hervé Guibert continua sua interminável carta para o amigo que não lhe
salvou a vida. Reinaldo Arenas passa a mão devagar em seus cabelos
claros. Tantos, meu Deus, os que se foram. Acordo com a voz safada de
Cazuza repetindo em minha orelha fria: “Quem tem um sonho não
dança, meu amor” (Abreu, 1996, p. 100).
Conforme mencionado, a temática da aids também aparece no último
romance escrito por Caio, Onde Andará Dulce Veiga? (1990), cuja versão
cinematográfica dirigida por Guilherme de Almeida Prado foi lançada
recentemente4. No romance em que se baseia o filme, a temática da aids se
incorpora à geografia homoafetiva da ambiência urbana. Caio fala da cidade
como se ela também estivesse contaminada pela doença:
4. Acaba de ser publicado também o texto do roteiro do filme baseado no romance Onde
Andará Dulce Veiga? Cf. Prado (2008).
202
Antonio Eduardo de Oliveira
Era um edifício doente, contaminado, quase terminal. Mas continuava
no mesmo lugar, ainda não tinha desmoronado. Embora, a julgar pelas
rachaduras no concreto, pelas falhas cada vez mais largas no revesti-
mento de pastilhas de cor indefinida, como feridas espalhando-se aos
poucos sobre a pele, isso fosse apenas uma questão de meses (Abreu,
1990, p. 37). 
Ao descrever o encontro casual com a personagem Pedro, o narrador/
protagonista cria uma cena explícita de sentimento de homoafetividade en-
chendo de emoção a ambiência árida da urbe:
Erguendo os olhos para o rosto daquele homem jovem que eu ainda não
sabia que era Pedro, entre os solavancos do trem, do lado oposto da
barra amarela que afunda pelo túnel, tomado por aquelas sensações e
todas essas outras que tento especificar agora, algumas sem nome, como
aquele calafrio crispado e gozoso da montanha-russa, um segundo antes
de despencar no abismo, esbarrei num rosto claro que oscilava de um
lado para o outro, eu não sabia se pelo balanço do trem ou se estaria um
pouco bêbado.
Devia ser sábado, passava da meia-noite.
Ele sorriu para mim. E perguntou:
– Você vai para a Liberdade?
– Não, eu vou para o Paraíso.
Ele sentou-se ao meu lado. E disse:
– Então eu vou com você (Abreu, 1990, p. 101). 
É nesse espaço urbano da metrópole onde o narrador/protagonista
encontra Pedro, o parceiro, no metrô, o qual mais tarde descobre já estar
contaminado, em uma trajetória rumo à estação Paraíso. Com esse nome, Caio
faz um trocadilho poético extraindo sensibilidade a partir de detalhes do
cotidiano. Na novela Pela Noite (1991), o protagonista Pérsio associa a região
de Pinheiros em São Paulo à lembrança do companheiro já morto, muito pro-
vavelmente pela aids:
203
Corpo e Memória na Obra de Caio Fernando Abreu
A gente tem tantas memórias. Eu fico pensando se o mais difícil no
tempo que passa não será exatamente isso. O acúmulo de memórias, a
montanha de lembranças que você vai juntando por dentro. De repente
o presente, qualquer coisa presente. Uma rua, por exemplo. Há pouco,
quando você passou perto de Pinheiros eu olhei e pensei, eu já morei ali
com o Beto. E a rua não é mais a mesma, demoliram o edifício. As ruas
vão mudando, os edifícios vão sendo destruídos. Mas continuam inteiros
dentro de você (Abreu, 1991, p. 188). 
Todavia, nesses textos a doença é citada de forma mais inibida e não
ostensiva. Outro exemplo é a narrativa de “Linda, uma História Horrível”
(1988), conto no qual o narrador/protagonista fala indiretamente de sua con-
taminação, projetando-a nas descrições da decadência física da cadela cha-
mada Linda, na velhice da mãe e na deterioração física da casa materna:
Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a
sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as man-
chas púrpuras, da cor antiga do tapete na escada – agora, que cor? –,
espalhadas embaixo dos pelos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o
pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma
semente no escuro. Depois foi abrindo os joelhos até o chão. Deus, pen-
sou, antes de estender a outra mão para tocar no pelo da cadela quase
cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada,
iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pelos. Crespos, escuros,
macios (Abreu, 1988, p. 22). 
No conjunto dos contos que compõem a obra de Caio, provavelmente
a abordagem da temática da aids só é claramente enfocada no conto “Depois
de Agosto” (1995), cujo enredo retrata a paixão entre doishomens aidéticos:
Mas se o Outro, cuernos, se o outro, como todos, sabia perfeitamente de
sua situação: como se atrevia? por que te atreves, se não podemos ser
amigos simplesmente, cantarolou distraído. Piedade, suicídio, sedução,
hot voodoo, melodrama. Pois se desde agosto tornar-se o tão impuro que
204
Antonio Eduardo de Oliveira
sequer os leprosos de Cartago ousariam tocá-lo, ele, o mais sarnento de
todos os cães do beco mais sujo de Nova Délhi. Ay! gemeu sedento e
andaluz no deserto rosso da cidade do centro (Abreu, 1995, p. 251).
Retornando às cartas, que são escritas no estilo confessional das crôni-
cas, gênero literário caracterizado pela narrativa informal, familiar, intimis-
ta5, no qual é criada uma maneira de atrair a conivência e a intimidade do
relato do autor com o leitor, Caio confessa na “Primeira Carta para Além
do Muro”:
É com terrível esforço que te escrevo. E isso agora não é mais apenas
uma maneira literária de dizer que escrever significa mexer com fun-
duras – como Clarice, feito Pessoa. Em Carson McCullers doía fisica-
mente, no corpo feito de carne e veias e músculos. Pois é no corpo que
escrever me dói agora (Abreu, 1996, p. 96). 
E mais ainda:
Mais para você, revelo humilde: o que importa é a Senhora Dona Vida,
coberta de ouro e prata e sangue e musgo do Tempo e creme chantilly
às vezes e confetes de algum carnaval, descobrindo pouco a pouco seu
rosto horrendo e deslumbrante (Abreu, 1996, p. 103).
Na “Segunda Carta para Além dos Muros”, Caio torna mais explícita a
consciência da presença da morte em sua vida. Essa lembrança é associada à
cultura pop. Falando de anjos, Caio constrói exemplos de sua refinada ironia.
Evoca também o início da luta política pela causa gay internacional, referindo-
se ao bar Stonewall, de Nova York. Ele nos fala de uma visão paradisíaca de
tom queer6 de um cenário do “outro lado da vida”:
5. Cf. Alves, Valéria de Oliveira. As Características da Crônica. Disponível em: www.
sitedeliteratura.com/Teoria/Caracteristicas.htm.
6. O termo queer refere-se ao princípio teórico “that has proved most disruptive to received
understanding of identity, community and politics is the one that problematises normative
consolations of sex, genders and sexualities” (Jagose, 1996).
205
Corpo e Memória na Obra de Caio Fernando Abreu
Já os anjos debochados do meio da tarde vestem jeans, couro negro,
descoloriram os cabelos, trazem doces, jornais, meias limpas, fitas de
Renato Russo celebrando a vitória de Stonewall, notícias da noite (onde
todos os anjos são pardos), recados de outros anjos que não puderam vir
por rebordosa, preguiça ou desnecessidade amorosa de evidenciar amor
(Abreu, 1996, p. 99).
Na “Última Carta para Além dos Muros”, a confissão do autor sobre sua
contaminação é feita de forma ainda mais clara do que na segunda carta, reti-
rada “do armário” despudoradamente7:
Voltei da Europa em junho me sentindo doente. Febres, suores, perda
de peso, manchas de pele. Procurei um médico e, à revelia dele, fiz O
Teste. Aquele. Depois de uma semana de espera agoniada, o resultado:
HIV positivo. O médico viajara para Yokohama, Japão. O teste na mão,
fiquei três dias bem natural, comunicando a família, aos amigos. Na
terceira noite, amigos em casa me sentindo seguro – enlouqueci. Não sei
detalhes. Por autoproteção, talvez, não lembro. Fui levado para o Pronto
Socorro Emílio Ribas com a suspeita de um tumor no cérebro. No dia
seguinte acordei com sono drogado no leito da enfermaria de infecto-
logia, com minha irmã entrando no quarto. Depois, foram 27 dias habi-
tados por sustos e anjos – médicos, enfermeiras, amigos, família, sem
falar nos próprios – em uma corrente tão forte de amor e energia que
amor e energia brotaram de dentro de mim até tornarem-se uma coisa
só. O de dentro e o de fora unidos em pura fé (Abreu, 1996, p. 102). 
A exposição do corpo doente não escapa do emprego do humor. Na lite-
ratura de Caio, ele se constitui como uma arma eficaz para enfrentar a vida
como também para combater e retardar a chegada da morte. Na recente publi-
cação da primeira biografia de Caio, a autora, Jeanne Callegari, faz o seguinte
comentário:
7. Refiro-me aqui a um “armário” positivo de Caio que se contrapõe à metáfora do armário de
Sedgwick (1990).
206
Antonio Eduardo de Oliveira
E o humor de Caio não parava. Ele ia para os exames e pedia aos amigos:
segura a Maria Callas pra mim, por favor. A Maria Callas era o aparato do
soro, que ele levava dançando, exatamente como na cena de Filadélfia.
Ele compôs raps para o AZT, brincou, cantou. Depois do susto inicial, ele ia
descobrindo um jeito de lidar com a doença. Antes de ter descoberto esse
jeito, porém, ele escreve a “Primeira Carta para Além do Muro”, já fazendo
referência velada à doença. Na crônica ele se agarrava a única coisa que
podia ajudá-lo a viver: a literatura (Callegari, 2008, p. 169).
São muitos os exemplos do humor de Caio em toda a sua obra. Por
exemplo:
Após descobrir que era portador do HIV, Caio tratou o tema com certo
humor. Quando lançou, em 1995, seu livro de textos dispersos, Ovelhas
Negras, falou ao jornal Zero Hora: “Fiz um rap para o AZT, os nomes de
remédios para o HIV são muito engraçados. Pode parecer uma coisa
mórbida, mas eu me diverti muito” (Wasilewski, 2008, p. 32). 
Para o amigo Vicente Pereira, Caio adotou um lema de vida cunhando
a frase: “Sempre que mais de três pessoas estiverem reunidas em meu nome,
eu estarei entre elas. Com um decote bem profundo” (Wasilewski, 2008, p.
32). Temos aqui uma referência queer à Bíblia cristã. Outro bom exemplo que
vale a pena citar são as palavras do amigo Gilberto Gawronski em entrevista
a André Fisher na revista Junior:
[...] o Caio sempre me mandava os contos. A gente lia, relia, eu parti-
cipava da criação, principalmente do que ele produziu para o teatro.
Tenho certeza de que fui um interlocutor dentro da obra dele. Digo que
isso não é um presente, é uma responsabilidade. Até ele brincava, na
carta-testamento dele, dizia: “Betinho, se algum dia o Spielberg se
interessar por algum livro meu, fique rica!”. Sempre com essa ironia,
esse bom humor. Mesmo depois da morte, na missa de sétimo dia dele,
quando o pai dele leu essa carta-testamento, deu uma bela gargalhada
(Fischer, 2008, p. 60).
207
Corpo e Memória na Obra de Caio Fernando Abreu
Na “Última Carta para Além dos Muros”, o corpo aidético dói, mas Caio
se apega a fortes memórias afetivas, amorosas, evocando a família “e uma cor-
rente tão forte de amor e energia que amor e energia brotaram de dentro de
mim até tornarem-se uma coisa só. O de dentro e o de fora unidos em pura
fé” (Abreu, 1996, p. 102). Chora a proximidade da morte, mas não desiste e
continua a se revitalizar por meio de memórias afetivas:
Certas manhãs chorei, olhando através da janela os muros brancos do
cemitério no outro lado da rua. Mas à noite, quando os néons acendiam,
de certo ângulo a Dr. Arnaldo parecia o Boulevard Voltaire, em Paris,
onde vive um anjo sufista8 que vela por mim. Tudo parecia em ordem,
então. Sem rancor nem revolta, só aquela imensa pena de Coisa Vida
dentro e fora das janelas, bela e fugaz feito as borboletas que duram só
um dia depois do casulo. Pois há um casulo rompendo-se lento, casca
seca abandonada. Após, o voo de Ícaro perseguindo Apolo. E a queda?
(Abreu, 1996, pp. 102-103). 
Portanto, a leitura das três Cartas para Além dos Muros nos direciona
para a abordagem de todo o corpo da obra de Caio e, com isso, descobrimos
que, mesmo diante das adversidades da existência e até diante da contami-
nação do vírus HIV, Caio não se rende à morte. Portanto, não surpreende que
conclua a “Terceira Carta para Além dos Muros” dizendo: “A vida grita. E a
luta, continua”, o que nos mostra que a escrita e o humor são elementos
importantes que perpetuam a vida e a esperança na obra de Caio Fernando
Abreu.
8. O sufismo é a corrente mística e contemplativa do Islã. Os praticantesconceito pode parecer demasiado
audaz. Entretanto, é no plural que ele se atualiza. São, sim, retratos em pro-
cesso, e acumulativos. Propõem-se como subsídios para sua própria rearti-
culação ou superação. Tais retratos darão azo a outros por virem. Assim se
articula um pensamento, hoje, a meu ver: necessariamente no plural.
A felicidade, repito, pode ser um peixe dourado ou uma rua vazia. A
felicidade pode ser encontrar significado no rebrilhar da cabeça de um alfinete.
A felicidade pode ser agora um estrepitar de silêncio.
Podemos jamais sabê-lo, mas queremos tentá-lo. Só pode ser feliz no
sentido moderno da palavra quem tem suas identidades e as suas particulari-
dades respeitadas pelo Estado e pelo espaço social cotidiano no qual se deve
inserir nossa diversidade. Ninguém pode ser feliz se ignorado, hostilizado e
mesmo perseguido pelos aparatos sociais, políticos, culturais, religiosos,
morais. Queremos o direito de tentar o voo de quem o faz sob a chancela do
Estado de direito, plenamente. Nem mais, nem menos.
Isso nos é devido. Para tanto, articulamos conscienciosamente nosso
pensamento: tal é a função da universidade. O motto da USP, inscrito circu-
larmente ao pé da torre da Reitoria, por exemplo, reza: “No universo da cul-
tura, o centro está em todas partes”.
Horácio Costa
22
Ora, se o centro está em todas partes, partes do centro somos nós.
Chamando atenção para este mesmo motto, e nos mesmos termos, terminei
minhas palavras iniciais para o primeiro encontro de poetas hispano-ameri-
canos e brasileiros, que há quase vinte anos organizei no Memorial da América
Latina. Este encontro chamou-se “A Palavra Poética na América Latina: Ava-
liação de uma Geração”. Quase vinte anos depois, tocou-me a presidência da
ABEH, e novamente minha aposta foi no diálogo inter-ibero-americano. O
Brasil ocupa metade da América do Sul e congrega metade de sua humani-
dade. São Paulo, esta cidade onde já se falou tanto em castelhano, como em
guarani, como em português durante séculos, sempre representou uma ponta
de lança em direção ao encontro do hispano-americano. Essa é nossa origem
regional brasileira. Internamo-nos na terra e encontramos os vizinhos ao cabo
de muitas léguas e muita labuta.
Com este congresso, simbolicamente, a ABEH se abre ao diálogo com os
estudiosos da homocultura nos países circunvizinhos. Nossa convergência em
todos os sentidos é inevitável.
En este sentido, doy la bienvenida a ustedes visitantes, compañeros de
habla hispana. Sean muy bienvenidos a São Paulo y sepan que este congreso
con su presencia se convierte en internacional.
Quero ainda dar as boas-vindas a todos aqueles que se congregam agora
e que vêm do Amapá ao Rio Grande, isto é, do Oiapoque ao Chuí, para refletir
sobre as homossexualidades no Brasil e intercambiar seus horizontes de pes-
quisa e reflexão. A ABEH cresce com vocês todos. A Universidade de São Paulo
não menos.
Uma das instâncias de excelência histórica da universidade brasileira,
a USP, com o presente congresso, reconhece a legitimidade e o futuro dos estu-
dos sobre a homocultura. Dirão muitos que já não era sem tempo, e dirão mui-
tos mais ainda: “o tempo é daqui para a frente”. Alinho-me com estes últimos.
Para a organização de um congresso como este, promovido por uma
associação ainda jovem, é necessário a conjunção de muitos fatores. O mais
importante deles, quero dizer desde já, é a paixão. O grupo que comigo o orga-
nizou está formado por indivíduos apaixonados e foi um privilégio liderá-los
Discurso de abertura do IV Congresso da ABEH
23
nesse processo. Por isso, a esses companheiros vai meu primeiro e mais
sincero agradecimento. Aos professores Emerson da Cruz Inácio e Wilton
Garcia, sediados em São Paulo, com quem mantive contato cotidiano ao longo
dos últimos dois anos, vai minha primeira palavra. E também aos professores
Berenice Bento e Wiliam Siqueira, sediados em Brasília e em Assis, sem cujo
alento esta aventura não teria se completado.
Há ainda a considerar a grande quantidade de colaboradores que me
emprestaram sua paixão, na universidade e fora dela. Particularmente nossos
alunos e orientandos, que dispuseram de seu tempo e nos brindaram com seu
entusiasmo rejuvenescedor. Estes são nossa prata da casa, a prata da USP.
Tenho consciência de que quebrei o protocolo ao primeiro agradecer a
paixão de meus mais diretos colaboradores. Entretanto, um congresso como
o presente não se faz sem a participação não menos decidida de instituições
e vontades políticas. Antes de mais nada, quero agradecer neste momento ao
Centro Cultural da Espanha (CCE), na pessoa de sua diretora, Ana Tomé, quem
acolheu minha proposta de organizar este Encontro de Militantes Homosse-
xuais Hispano-brasileiros como parte do IV ABEH. Sem ela à frente do CCE-São
Paulo, a abertura dialógica que estamos experimentando jamais se teria podi-
do verificar.
É importante frisar ainda que este congresso contou com o apoio deci-
dido do Programa Brasil sem Homofobia da Secretaria Especial de Direitos
Humanos da Presidência da República, cujo secretário é o ministro Paulo
Vannuchi, aqui representado pelo diretor do referido programa, Perly
Cipriano.
Aos companheiros da organização não-governamental Via Pública,
Pedro Paulo Martoni Branco, Luiz Eduardo Corá e Luiz Henrique Proença
Soares, e a este último muito particularmente, vai também o meu preito: a
rapidez e eficiência com a qual nos brindaram sua ajuda em um momento
delicado da organização deste congresso me reforça a certeza de que para lá
da preferência sexual subsiste felizmente um núcleo de solidariedade humana.
A Caixa Econômica Federal juntou-se a nós no presente congresso, demons-
trando serem suas também nossas demandas.
Horácio Costa
24
Cabe-me, agora, agradecer às instâncias acadêmicas que nos apoiaram
para a realização deste congresso. Em primeiro lugar, à profa. dra. Lisbeth
Rebollo Gonçalves, neste momento representante da Magnífica Reitora da USP,
profa. dra. Suely Vilela, e diretora do Museu de Arte Contemporânea, no qual
nos encontramos, e que no-lo cedeu por duas vezes para encontros da ABEH,
sendo a primeira em fevereiro de 2007, quando aqui mantivemos a primeira
reunião entre a antiga diretoria da associação e a nova. Em segundo lugar, às
autoridades da Universidade de São Paulo, aos pró-reitores de Cultura e Exten-
são e de Graduação, que acolheram nosso pedido de ajuda; de um modo espe-
cial, agradeço ao professor Gabriel Cohn, diretor da FFLCH-USP.
Quero, ainda, publicamente, agradecer o apoio recebido pelas agências
de fomento à pesquisa científica da federação e deste Estado, isto é, ao Conse-
lho Nacional de Pesquisas (CNPq), e à Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (Fapesp).
Quero agradecer, finalmente, e penhoradamente, à desembargadora
Maria Berenice Dias e ao juiz Fernando Grande Marlaska, que aceitaram nosso
convite para compartilhar seus pensamentos e sua experiência conosco, na me-
sa que escutaremos a seguir. Ao secretário da Justiça e Defesa da Cidadania do
Estado de São Paulo, meu primo Luiz Antônio Guimarães Marrey, que desde
que contatado há poucas semanas demonstrou uma grande simpatia por nossa
associação, estendo nossas mais cordiais boas-vindas.
Durante esses quatro dias cresceremos todos. Muito obrigado por sua
atenção. Muito, muito obrigado aos membros da ABEH, pela confiança que de-
positaram em mim e aos professores que compõem a diretoria desta asso-
ciação durante o biênio 2006-2008.
Obrigado a todos os que aqui se encontram por sua presença.
Está aberto o IV Congresso da Associação Brasileira de Estudos da
Homocultura.
PARTE I
Homocultura e
Direitos Humanos
27
1. Advogada especializada em direito homoafetivo, famílias e sucessões. Ex-desembargadora
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-presidente nacional doInstituto Brasileiro de
Direito da Família – IBDFAM.
Website: www.mariaberenice.com.br.
A União Homoafetiva e ado sufismo, conhecidos
como sufis ou sufistas, procuram uma relação direta com Deus através de cânticos, músicas e
danças.
208
Antonio Eduardo de Oliveira
Referências bibliográficas
ABREU, Caio F. Onde Andará Dulce Veiga? São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
. Os Dragões não Conhecem o Paraíso. São Paulo, Companhia das
Letras, 1988.
. Ovelhas Negras. Porto Alegre, Sulina, 1995.
. Pequenas Epifanias. Porto Alegre, Sulina, 1996.
. Pequenas Epifanias. Rio de Janeiro , Agir, 2006.
. Triângulo das Águas. São Paulo, Siciliano, 1991.
BESSA, Marcelo S. Os Perigosos: Autobiografia e Aids. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2002.
CALLEGARI, Jeanne. Caio Fernando Abreu: Inventário de um Escritor Irremediável. São
Paulo, Seoman, 2008.
FISCHER, André. “O Anjo Guardador”. Junior. São Paulo, ano 1, n. 6, 2008, pp. 60-65.
GONÇALVES FILHO, Antônio. “As Últimas Palavras de Laika”. In ABREU, Caio F. Pequenas
Epifanias. Rio de Janeiro, Agir, 2006, pp. 9-13.
JAGOSE, Annamarie. Queer Theory: An Introduction. New York, New York University
Press, 2000.
MORICONI, Ítalo. Caio Fernando Abreu: Cartas. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2002.
PRADO, Guilherme de A. Onde Andará Dulce Veiga? São Paulo, Imprensa Oficial, 2008.
SEDGWICK, Eve K. Epistemology of the Closet. London, Penguin, 1990.
WASILEWSKI, Luís F. “Ovelha Negra”. Discutindo Literatura. São Paulo, ano 4, n. 19,
2008, pp. 29-32. 
209
Representações de Gênero e de Homoerotismo nas
Literaturas Infantil e Juvenil: Uma Leitura de
 O Gato que Gostava de Cenoura e Sempre por Perto
LUCIANO FERREIRA DA SILVA1
O presente artigo busca fazer leituras de duas obras que representam diferen-
tes representações de gênero e de homoerotismo com suas respectivas sin-
gularidades. A primeira delas trata-se de uma obra literária infantil intitulada
O Gato que Gostava de Cenoura, de Rubem Alves, que aborda comportamen-
tos infantis geradores de questionamentos por parte de adultos. A segunda,
que em nosso entendimento destina-se tanto a um público infanto-juvenil
como adulto, é Sempre por Perto, de Anna Cláudia Ramos, que relata as lem-
branças de uma personagem feminina adulta com relação a seus desejos ho-
moeróticos na infância e na adolescência. Aqui falamos de homoerotismo co-
mo desejo homoerótico em suas mais diversas manifestações, evitando rotu-
lações e seguindo as considerações feitas pelo estudioso Jurandir Freire Costa:
E os que se sentem atraídos por homens só na fantasia mas preferem
claramente, de todos os pontos de vista, relações afetivo-sexuais com
mulheres? E, finalmente, os que se sentem atraídos apenas por partes
do corpo masculino mas que não querem, não gostam e não pretendem
relacionar-se com homens porque têm muito mais prazer ou só tem
prazer no contato amoroso-sexual com mulheres? O que são? (Costa,
1992, pp. 28-29).
1. Universidade Federal do Pará.
210
Luciano Ferreira da Silva
Também seguimos as afirmações feitas por Marko Monteiro, que reto-
mam também as observações de Jurandir Freire Costa:
[...] acho interessante inclusive negar o conceito de homossexualidade,
como já vem sendo feito por autores como Jurandir Freire Costa (1992),
por ser este conceito insuficiente para descrever ou permitir a compre-
ensão dessa realidade atualmente, e por ser inadequado para com-
preender a extrema diversidade de experiências íntimas e/ou sexuais
que ocorrem entre pessoas do mesmo sexo (Monteiro, 2004, p. 2).
Nesta esteira, também a chamada Teoria Queer recupera e modifica
ideias iniciais que foram utilizadas pejorativamente para depreciar as pessoas
homossexuais como “estranho”, “esquisito”, “incomum”, “fora do normal”,
“excêntrico” e dá uma forma positiva de autoidentificação e:
Além disso, aproveitando-se do outro significado, o de “estranho”, o
termo queer funciona como uma declaração política de que o objetivo
da teoria queer é o de complicar a questão da identidade sexual e, indi-
retamente, também a questão da identidade cultural e social. Através da
“estranheza”, quer-se perturbar a tranquilidade da “normalidade” (Silva,
2007, p. 105).
Verificaremos nessas duas obras que pretendemos discutir como esse
processo de estranhamento está presente e de que forma ele perturba o próprio
enredo das duas obras na relação estabelecida entre as diferentes personagens.
A primeira obra que discutiremos é O Gato que Gostava de Cenoura, de Rubem
Alves. Ela se destina a um público infantil, segundo os critérios da estudiosa
Nelly Novaes Coelho, quando uma obra com períodos curtos e com imagens que
fazem referência direta ao que está escrito estaria mais voltada para o que a auto-
ra chama de leitor-em-processo, a partir dos oito, nove anos, observe:
Fase em que a criança já domina com facilidade o mecanismo da leitura.
Agudiza-se o interesse pelo conhecimento das coisas. Seu pensamento
lógico organiza-se em formas concretas que permitem as operações
211
Representações de Gênero e de Homoerotismo na Literatura
mentais. Atração pelos desafios e pelos questionamentos de toda
natureza.
A presença do adulto ainda é importante como motivação ou estímulo
à leitura; como aplainador de possíveis dificuldades e, evidentemente,
como provocador de atividades pós-leitura. Como peculiaridades
formais, apontamos:
• A presença de imagens em diálogo com o texto.
• Textos escritos em frases simples, em ordem direta e de comunicação
imediata e objetiva. Predominância dos períodos simples e introdução
gradativa dos períodos compostos por coordenação.
• A narrativa deve girar em torno de uma situação central, um proble-
ma, um conflito, um fato bem definido a ser resolvido até o final.
• A efabulação (concatenação dos momentos narrativos) deve obedecer
ao esquema linear: princípio, meio e fim (Coelho, 2000, pp. 36-37).
O Gato que Gostava de Cenoura teve sua primeira publicação em 2001.
A obra trata de comportamentos infantis geradores de questionamentos por
parte de adultos. Tais adultos também são representados por animais, e o
narrador, em terceira pessoa, logo no começo da narrativa, coloca-nos diante
de um mundo distante, num tempo e espaço fora dos limites daquilo que co-
nhecemos, lembrando os típicos inícios dos contos de fadas: “Era uma vez”.
Nesse lugar vive o personagem-gato chamado Gulliver, lembrando tam-
bém, através da intertextualidade, o clássico Viagens de Gulliver, no qual uma
personagem empreende uma viagem por lugares diferentes e era um Gigante
em determinada aventura. Aqui, a viagem que se estabelece é a do conheci-
mento de si mesmo e gigantescos são os obstáculos iniciais dessa aventura. O
conhecer a si mesmo parte, segundo a narrativa, de características que são ine-
rentes a todo o ser daquela espécie; a narrativa começa a trabalhar a ambigui-
dade no discurso, como podemos verificar na seguinte passagem:
Os gatos, como todos os felinos, são caçadores. Gatos caçam peixes, ratos
e pássaros. Um peixinho bobo, na superfície do tanque. Um passarinho
212
Luciano Ferreira da Silva
distraído, comendo quirera. Um ratinho molenga, passeando pela casa.
E era uma vez um peixinho, um passarinho e um ratinho... Viram
comida de um gato (Alves, 2001, p. 5).
Mais adiante, aqueles que gostam daquilo que os outros, os de outra
espécie, gostam, possuem algo de “ruim na cabeça” e são “doidos”, como os
coelhos que gostam de cenoura. Vejamos: “Os gatos odeiam cenoura. Para
gatos, quem come cenoura é ruim da cabeça. Os coelhos devem ser doidos”
(Alves, 2001, p. 5).
Assim percebemos que se criou algo como sendo adequado para uma
espécie, ou tido como “natural”. Aqui, o questionamento parte do biológico:
a personagem gosta é de cenoura. O problema é tratado pelos pais do gato
como doença, e então resolvem levá-lo ao médico. Observemos:
Não gostava de caçar. Não gostava de comer em peixes, nem ratos, nem
pássaros. Seus pais lhe traziam deliciosos ratinhos recém-nascidos,
pardais saborosos, peixes cheirosos: tudo em vão. Ele quase vomitava.
Seus pais o levaram ao médico.
– Doutor,Constituição Federal
MARIA BERENICE DIAS1
A Constituição Federal foi recebida como a salvadora da pátria, gerando a
expectativa de trazer a solução para todos os males. Chamada de Constituição
Cidadã, é reconhecida como uma das mais modernas do mundo por consagrar
como princípio fundamental o respeito à dignidade da pessoa humana, asse-
gurar o direito à liberdade e à igualdade, e proibir qualquer tipo de discri-
minação. Também outorga especial proteção à família, que considera a base
da sociedade.
Acompanhando a evolução da sociedade, ao arrolar as entidades fami-
liares, afastou-se do modelo tradicional das constituições anteriores, que só
aceitavam a família constituída pelos “sagrados” laços do matrimônio. A Carta
de 1988 reconheceu como entidade familiar as famílias constituídas fora do
casamento, às quais chamou de união estável. Igualmente nominou de família
um dos pais e seus filhos, o que passou a chamar-se de família monoparental.
Apesar de proibida qualquer espécie de discriminação – inclusive em
razão de sexo – à união estável entre o homem e a mulher é feita uma reco-
mendação: de que a lei facilite sua transformação em casamento. Não há como
deixar de reconhecer que se trata de um dos mais inúteis penduricalhos cons-
titucionais. Afinal, precisa ser respeitada a liberdade das pessoas de casarem
ou não, sem a necessidade de serem incentivadas por ninguém. Além disso,
28
Maria Berenice Dias
nada justifica a transformação da união estável em casamento, que demanda
um procedimento judicial, contratação de advogado e pagamento de custas.
Dito alargamento conceitual acabou por consagrar a existência de novas
estruturas familiares. Agora há famílias sem casamento e até sem qualquer
envolvimento de ordem sexual. Assim, casamento, sexo e procriação deixaram
de ser os elementos estruturantes da entidade familiar. Agora, sexo se pratica
fora do casamento, inclusive pelas mulheres, pois caiu o tabu da virgindade
como selo de garantia de sua pureza e castidade.
Além disso, há procriação sem sexo – como permitem as modernas
técnicas de reprodução assistida – e é possível o exercício da sexualidade sem
procriação, em face dos métodos contraceptivos. Há famílias sem envolvi-
mento de natureza sexual, como são exemplo as famílias monoparentais. Ou
seja: o conceito de família migrou da genitalidade para a afetividade. Adquiriu
relevância a natureza do vínculo que une as pessoas. Às claras, emprestou-se
efeitos jurídicos ao afeto, inserindo-o no âmbito de proteção do Estado.
Mas o rol que enumera as entidades familiares não é taxativo, não se
trata de numerus clausus, quer porque é utilizada a expressão “também”, que
é um advérbio de inclusão, quer porque o modelo de família não se limita às
formas enumeradas. Tanto é assim que se passou a falar em “direito das famí-
lias”, um conceito plural.
Além disso, há realidades que não podem mais ser escondidas. Família
não é mais a formada exclusivamente por um homem e uma mulher. O reco-
nhecimento da presença do vínculo de afetividade permite identificar como
família a união entre pessoas do mesmo sexo. Assegurar somente aos heteros-
sexuais a possibilidade de formar uma família afronta o princípio da igualda-
de. E, como que vivemos em um Estado democrático de direito – e vivemos –
não há como condenar à invisibilidade uma parcela de cidadãos. É uma forma
muito perversa de exclusão.
Mas há mais. O Brasil, desde 1992, é signatário do Pacto dos Direitos
Civis e Políticos da ONU, que em dois artigos proíbe a discriminação por motivo
de sexo. E a Comissão dos Direitos Humanos da ONU, já em 1994, disse que a
referência ao sexo constante do tratado diz também com orientação sexual.
29
A União Homoafetiva e a Constituição Federal
Ou seja: negar direitos aos homossexuais é descumprir tratados internacio-
nais, o que compromete a credibilidade do país perante o mundo.
A aparente restrição constitucional, em vez de sinalizar neutralidade,
encobre um grande preconceito e acaba por motivar a omissão do legislador
infraconstitucional. O receio de ser rotulado de homossexual, o medo de desa-
gradar seu eleitorado e comprometer sua reeleição impede a aprovação de
qualquer projeto que assegure direitos à parcela minoritária da população,
alvo de perversa discriminação.
As forças conservadoras que tomaram conta do Senado federal, lide-
radas por um assustador fundamentalismo religioso formado pelas bancadas
evangélicas e católicas, impede a aprovação, por exemplo, do projeto da então
deputada Marta Suplicy, em 1995, que admite singelamente a possibilidade
de proceder-se ao registro de contratos de parceria civil. Igualmente, não
permite aprovar sequer a emenda constitucional que proíbe a discriminação
por orientação sexual.
O legislador não consegue aprovar nem o projeto de lei nº 122/2006,
que criminaliza a homofobia. O argumento não pode ser mais perverso: os
pastores das igrejas evangélicas simplesmente querem preservar o direito de
falar contra os homossexuais nos cultos religiosos.
Não há como aceitar tal postura que afronta a liberdade de credo asse-
gurada constitucionalmente (CF, 5º, VI e 19, I). Qualquer igreja pode não aben-
çoar essas uniões, mas o Estado não pode deixar de fazê-lo.
Ora, se nem essa legislação de importância tão evidente merece apro-
vação, o que esperar dos projetos que preservam os direitos aos homossexuais,
reconhecem seus vínculos afetivos como entidade familiar e lhes garante direi-
tos sucessórios?
Há somente uma referência, na lei nº 11.340/2006, a chamada Lei
Maria da Penha, que visa a coibir e a prevenir a violência doméstica e familiar
contra a mulher. De forma expressa, assegura proteção às uniões homoafe-
tivas. Além de definir a família como qualquer relação íntima de afeto (art. 5º,
inc. III), abriga as relações pessoais, independente da orientação sexual (art.
5°, parágrafo único).
30
Maria Berenice Dias
Esse panorama evidencia que a sociedade é marcada pela discriminação
aos desiguais. As minorias são excluídas. Aqueles que fogem ao modelo
acabam sendo rotulados e desprezados. Daí a responsabilidade maior do
Estado. Assegurar direitos a todos. E, dentre os excluídos, os homossexuais
são as maiores vítimas, estando a merecer um cuidado especial. Todos os que
sofrem algum tipo de discriminação recebem a solidariedade da família, assim
o negro, o portador de necessidades especiais. Mas o homossexual não, nem
na família encontra o apoio.
E se não há lei, cabe questionar: a quem recorrer?
Claro que só pode ser à Justiça.
Neste vácuo deixado pelo legislador, a solução está vindo mesmo é do
Poder Judiciário. É às portas da Justiça que batem todos os sem lei, sem voz
e sem vez.
Tal como aconteceu com as uniões extramatrimonias – chamadas de
concubinato – em um primeiro momento também houve enorme dificuldade
de identificar como família as uniões sem o selo do casamento. Chamadas de
sociedade de fato, eram julgadas nas varas cíveis e dividiam-se os lucros amea-
lhados durante a vigência da sociedade, mediante a prova da participação de
cada um dos sócios na formação do patrimônio social. Este mesmo calvário
vem sendo imposto aos homossexuais.
Negar caráter familiar às uniões entre pessoas do mesmo sexo repre-
senta uma violência simbólica. Como diz Daniel Sarmento, é artificial, é hipó-
crita, é mentiroso não ver a afetividade e ver só o caráter econômico da rela-
ção. Como sócios não são parentes, não se reconhecem quaisquer direitos,
quer do âmbito do direito das famílias, quer em sede do direito sucessório.
De forma tímida, começou a haver o reconhecimento de direitos às
uniões que passei a chamar de homoafetivas – neologismo que criei para
sinalizar que é a afetividade que marca também essas famílias.
 Mas os avanços vêm acontecendo a passos largos.
A primeira decisão reconhecendo direitos sucessórios – ainda que por
analogia – é da justiça gaúcha e data de 2001. A partir desta decisão, muito
se progrediu,pois passaram a ser reconhecidas como uma entidade familiar,
31
A União Homoafetiva e a Constituição Federal
sem fazer uso de subterfúgios. Nesse sentido, já há decisões de vários tribunais
de justiça, como o da Bahia, de abril 2001, do Rio de Janeiro, de julho de 2006
e de Minas Gerais, de setembro de 2007.
A partir de uma decisão também da Justiça gaúcha, de 2006, passou a
ser admitida a adoção por casais formados por pessoas do mesmo sexo. Com
isso acabou a hipocrisia que obrigava um só do par a pedir a adoção, ainda que
a decisão de constituir a família tenha sido de ambos. Deferida a adoção so-
mente a quem requeria a adoção, deixava-se de assegurar maior proteção à
criança, pois lhe subtraia direitos com relação a quem também exercia as fun-
ções de pai ou de mãe.
No âmbito da justiça federal, os tribunais regionais das 1ª, 2ª, 4ª e 5ª
Regiões, e o próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ), já reconhecem o direito
à pensão junto ao INSS (Instituto Nacional de Seguro Social) e outros órgãos
previdenciários.
Aliás, foi em decorrência de decisão judicial proferida em ação proposta
pelo Ministério Público que o INSS expediu a Instrução Normativa nº 25/2000,
garantindo auxílio por morte e auxílio reclusão aos parceiros homossexuais.
Depois de, em duas oportunidades, o STJ ter deslocado a competência
das ações para as varas cíveis, em setembro de 2008, a Corte admitiu a possi-
bilidade jurídica da ação de reconhecimento da união homoafetiva como enti-
dade familiar, proposta perante uma vara de família.
A matéria ainda não foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF),
mas alguns de seus integrantes já sinalizaram expressamente suas posições.
Em 2003, o ministro Marco Aurélio, como presidente do STF, ao negar recurso
do INSS, fez um verdadeiro libelo contra a homofobia.
Em 2004, o Superior Tribunal Eleitoral, pelo voto do relator, ministro
Gilmar Mendes, ao reconhecer a inexigibilidade da parceira da prefeita de uma
cidade do Pará, usou como fundamento a existência de uma entidade familiar.
Já em 2006, o ministro Celso de Mello, ao rejeitar ação direta de in-
constitucionalidade das leis que regulam a união estável, por exigirem a diver-
gência de sexo do casal, além de expressar sua opinião, indicou o caminho a
ser seguido. Foi esta decisão que ensejou a propositura, em 2007, da Arguição
32
Maria Berenice Dias
de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, pelo governo do Estado
do Rio de Janeiro.
Essa trajetória mostra, mais uma vez, que o cidadão, para ver reco-
nhecidos seus direitos, precisa socorrer-se do Poder Judiciário. A respon-
sabilidade, no entanto, não é só dos juízes, é de todos os operadores do direito,
uma vez que a construção da jurisprudência não é feita pelos magistrados, mas
também pelos advogados, defensores, agentes do Ministério Público. Se não
houver pleitos em juízo, não há decisões, não havendo como assegurar di-
reitos. E, consolidada a jurisprudência, o legislador não poderá deixar de fazer
leis afinadas com a orientação dos tribunais, sob pena de estar perdendo espa-
ço de poder.
Por isso o compromisso de fazer a justiça é de todos.
Aliás, este foi o motivo que me levou à aposentadoria. Apesar de pregar
há tantos anos a necessidade do reconhecimento dos direitos dos homos-
sexuais, o número de demandas é absolutamente escasso.
É preciso ter coragem de advogar essas causas, sem medo de ser rotu-
lado de homossexual; sem receio de assustar a clientela. Só havendo um gran-
de derrame de ações, trazendo todo um embasamento teórico coerente, uma
linha de argumentação jurídica, é que se vai construir um novo ramo do direi-
to: o direito homoafetivo, estabelecendo-se princípios, fontes e regramento
próprio.
Indispensável também elaborar um Estatuto da Diversidade Sexual, tal
qual o Estatuto do Idoso, da Criança e do Adolescente.
Talvez esta não seja a melhor saída e nem a mais célere, mas, com
certeza, é a única. De todo modo, trata-se de um caminho fácil, pois depende
apenas de cada um de nós.
33
1. Juiz.
El Matrimonio Heterosexual: ¿Un Mito?
FERNANDO GRANDE MARLASKA1
En un primer momento quiero mostrar mi agradecimiento al conjunto de
personas que han organizado el presente encuentro, no sólo por la idea, ni tan
siquiera por la bondad que han tenido en invitarme, lo que sería más que
suficiente, sino principalmente por su lucha día a día para conseguir el
reconocimiento del conjunto de derechos que le son ninguneados a una parte
importante de la sociedad: aquélla que por su simple orientación sexual se ven
privados de un pleno reconocimiento, no sólo legal, sino también social.
También debe quedar constancia de que vengo y pertenezco a uno de
esos pocos países donde al día de hoy se conjuga un pleno reconocimiento
legal de derechos en el marco de las uniones homosexuales. En España se
reconoció el matrimonio homosexual, y el derecho a la adopción mediante la
Ley 13/2005, de 1 de julio. Esto no quiere decir, reconocida la igualdad ante
la ley, que en el día a día no se observen importantes manifestaciones de ho-
mofobia. Como trataré de explicar la ley reconociendo el matrimonio homo-
sexual, independientemente de otorgarnos la carta de ciudadanos de primera,
cuesta decir esto en pleno siglo XXI, goza de un importante valor pedagógico,
que deberá ir acompañada de políticas transversales, en materia de educación
principalmente.
Entrando ya a analizar el fondo de mi comparecencia, el derecho de la
población homosexual a acceder al matrimonio, y partiendo del título que la
rubrica, debemos plantearnos si la citada institución puede considerarse como
34
Fernando Grande Marlaska
de derecho natural, siendo elemento determinante de su configuración o
esencia la heterosexualidad. O si, más bien, se trata de una construcción
cultural. Es decir, si nos encontramos ante uno más de los mitos que han ido
conformando nuestra herencia cultural.
Es claro que los mitos, desde la época de la civilización griega, han
representado los mayores y más capacitados vehículos de transmisión de los
distintos modelos culturales y sociales. Para acercarnos a la idea que trato de
plasmar, quizás sea conveniente poner la atención en la situación jurídica de
las mujeres hasta fechas bien recientes, y evidentemente no superadas
desgraciadamente en el conjunto de culturas o civilizaciones. Recordemos
como desde la misma civilización griega, desde un punto de vista social y
jurídico, la mujer fue considerada un ciudadano de segunda categoría. En
otras palabras, se estimaba como un hecho natural, su naturaleza inferior
respecto al hombre. Y sólo desde esa perspectiva o consideración era como
podían arbitrarse las medidas discriminatorias. Posibilidad que no hubiera
sido factible de considerarlo, como era, una mera creación cultural. Los hechos
culturales son por su misma esencia mudables en el tiempo, lo que no ocurre
con los hechos naturales, que son inmutables. Y a esa función colaboraron de
una forma determinante los mitos. Así el de Penélope frente al de Antígona.
Y esa situación de ostración social y jurídica de la mujer se ha perpetuado por
más de tres mil años, al menos hasta la segunda mitad del siglo pasado.
Dejado expuesto lo anterior, debemos hacernos la siguiente pregunta:
el matrimonio homosexual es un mito? Es decir, una mera creación cultural
y en modo alguno una institución de derecho natural. Si llegamos a esa con-
clusión, no debiera existir ninguna razón jurídica que excluyera del mismo la
unión afectiva entre personas del mismo sexo. En otras palabras, el sexo de
los contrayentes nunca sería determinante de su validez.
Y no debiera existir ningún problema, toda vez que en ese supuesto
corresponde al conjunto de instituciones jurídicas adaptarse a las demandas
sociales de cada momento.
Al día de hoy cuando en nuestra civilización occidental, encontrán-
donos bajo el paraguas del Estado de Derecho, donde los derechos y libertades
35
El Matrimonio Heterosexual:¿Un Mito?
fundamentales forman parte de nuestra propia piel, no existe ninguna duda
de cómo éstos forman parte de la propia naturaleza humana. Y, en modo
alguno, no son otorgados graciosamente. Nadie discute, como tal, el derecho
a la libertad, a la igualdad, a la seguridad y al libre desarrollo de la perso-
nalidad, entre otros. Y éstos formando parte de nuestra esencia, si que son
derecho natural, y no meras creaciones culturales.
Una de las consecuencias precisas de lo anterior, y en lo que ahora
interesa, no es otra que la exigencia por parte de un concreto colectivo, el
homosexual, en reclamar el reconocimiento de sus derechos, que bien pueden
verse vulnerados, consecuencia de regulaciones como las del matrimonio, y
que les excluyen. Así podría verse vulnerado la igualdad efectiva de los
ciudadanos en el libre desarrollo de su personalidad, la libertad en lo que a
formas de convivencia se refiere, así como la instauración de un marco de
igualdad real en el disfrute de los derechos, sin discriminación alguna por
razón de sexo, opinión, o cualquier otra condición personal o social. Mani-
festación, en todo caso, de una sociedad libre, pluralista y abierta.
Matrimonio como Historia
Al objeto de poder avalar las anteriores referencias relativas al matri-
monio como hecho cultural, es decir nunca incompatible con su recono-
cimiento a las personas independientemente del sexo, conviene hacer un breve
desarrollo en el tiempo. Así:
Desde la época griega hasta la historia contemporánea, donde el
elemento de la afectividad entre los cónyuges no existe. Se tratan de contratos
suscritos entre las familias y con intereses de toda índole, principalmente
económicos.
Posteriormente, a partir de la época contemporánea que podemos data-
rla en el Código Napoleónico de 1804 donde ya viene a establecerse el ele-
mento de la afectividad. Pero evidentemente aún, como hoy, en la casi
totalidad de los países, aún subsiste el mito de su heterosexualidad. Es decir,
36
Fernando Grande Marlaska
se ha transmitido a la sociedad, quien lo asume como una herencia cultural
incuestionable, que únicamente cabe entender matrimonio como la unión de
un hombre y una mujer.
Finalmente, y en lo que al desarrollo del matrimonio como institución y
relación jurídica (es decir dotada de derechos y deberes entre los contrayentes
o cónyuges), como institución viva, que ha ido adaptándose a los modelos
sociales mayoritarios. El elemento exclusivo que la sustenta es el de la
“afectividad” y “solidaridad” entre los cónyuges, donde una hipotética finalidad
de “procreación” no forma parte de su sustancialidad, ni es su núcleo “duro” o
intocable. Aquí podré hacer alguna referencia un poco irónica a como en la civi-
lización griega los únicos modelos que tendrían encajes serían los de carácter
homosexual. Así Aquiles y Patroclo, Alejandro-Hefextion-Bagoas, Safo etc.
Legislación española donde se reconoce el matrimonio homesexual.
Ley 13/2005, de 1.º de julio
En un primer momento me gustaría hacer una puntualización, y no es
otra que la de referir que nos encontramos ante una ley del matrimonio, no
ante la ley del matrimonio homosexual. Y digo lo anterior porque se trata de
una nueva regulación a través de la cual la institución se denomina matri-
monio, independientemente del sexo de los contrayentes. Y el matiz me parece
lo suficientemente importante como para pasarlo por alto. Han sido muchos
los años donde incluso hemos aceptado que en casi todas nuestras manifesta-
ciones, incluso en las que no nos son específicas, se utilice el adjetivo ho-
mosexual. Y es hora ya de que, en lo que no es específico, no se concluyan
diferencias lingüísticas. Así quizás podamos y debamos hablar de literatura
homosexual, atendiendo a su temática, como hablamos de novela histórica,
pero en modo alguno extender el calificativo donde no procede, como es en
el marco del ejercicio de los derechos y libertades fundamentales. Estos no son
dados por derechos natural, y simplemente por se personas, no por la
orientación sexual. Cuestión distinta es que deban existir regulaciones espe-
37
El Matrimonio Heterosexual: ¿Un Mito?
cíficas que combatan fenómenos de discriminación, entre ellos la homofobia.
Así que nos encontramos ante una nueva regulación del matrimonio, aquie-
tado a la realidad social, y lo que es más importante, respetuosa con el estatuto
jurídico inherente a todo ciudadano como persona.
La legislación española que avala el matrimonio homosexual desde la
perspectiva misma de la afectividad como elemento constituyente de esa
institución, y manifestación precisa del reconocimiento material de los
derechos fundamentales universalmente reconocidos. Así el de igualdad,
igualdad en el reconocimiento de la afectividad independientemente del sexo
de los cónyuges, como manifestación precisa del libre desarrollo de la
personalidad etc.
Debo destacar como esta ley, no sólo se hace eco de una aplicación
material de los derechos y libertades predicables en toda persona, sino
igualmente es consecuencia de la mismas realidad sociológica. Me permito
facilitar en ese sentido algunos datos relativos a las encuestas españolas, país
con una tradición católica importante, sobre la aceptación del matrimonio
homosexual. Aceptación cercana al 70% de la población, no obstante lo cual
aún estamos pendiente de que se resuelva el recurso de inconstitucionalidad
interpuesto contra la Ley que instituye el matrimonio con independencia del
sexo de los contrayentes (Ley 13/2005, de 1.º de julio).
Haré una especie de conclusión sobre el matrimonio, como institución
viva, que se ha ido modificando con el transcurso del tiempo, y no en meras
circunstancias accidentales. Y como la conclusión lógica, dentro de la materia-
lización de los derechos fundamentales, no puede ser otra que la de reconocer
el matrimonio homosexual en todo Estado que se trate de calificar como de
derecho y democrático.
Partiendo de esa realidad legal española donde se reconoce el derecho
al matrimonio para las personas, independientemente del sexo de los con-
trayentes, pero siendo obvio que es una excepción a nivel internacional, legali-
zándose asimismo en Canadá, Sudáfrica, Bélgica, Holanda, pocos estados de
los EEUU, nos podemos hacer una pregunta estrictamente jurídica, pero creo
que con cierto sentido común. ¿Caso de no regularse el matrimonio homo-
38
Fernando Grande Marlaska
sexual, sino otra institución, como ocurre en la mayoría de los países que han
dado el paso de luchar contra dicha discriminación, con nombre diferente,
pero con el mismo contenido, para no vulnerar el derecho a la igualdad y
demás derechos fundamentales, cómo puede entenderse? ¿Qué sentido hay
a que dos instituciones del mismo contenido reciban nombres distintos? Creo
que el motivo es únicamente ideológico: prejuicios de un mito subyacente, y
donde la homosexualidad, aunque se diga lo contrario, seguiría conside-
rándose un estigma.
Y desde un punto de vista jurídico, aún sería más recriminable, el que
esa segunda institución se abriera para las relaciones hetero y homosexuales.
En ese supuesto, y como no podrían ser idénticas en contenido, salvo esqui-
zofrenias jurídicas, guiadas por los mismos falsos mitos, nos estarían haciendo
por ley ciudadanos de segunda. Espero que en el debate que entablemos pueda
quedar clara mi postura.
Consecuencias de la regulación en España del matrimonio
ampliandolo a las personas homosexuales
La importancia de la ley en España lo ha sido igualmente en su vertiente
pedagógica. Aún cuando todavía hay un inmenso trabajo a desarrollar contra
la homofobia. En ese sentido no nos podemos dar por satisfechos y debemos
trabajar hacia la sociedad, no creando nuevos mitos, ya que caeríamos en el
mismo engaño, sino simplemente haciendo hincapié en la razón, en el logos,
como única posibilidad seria de conocimiento, no sólo del mundo exterior,
sino igualmente del mundo interior de todas las personas.¿Y dentro de un
discurso lógico es posible que alguien discuta, sin utilizar falsos mitos o
herencias culturales asumidas, sin crítica alguna, que la creación de vínculos
afectivos, tal cual es la base del matrimonio, depende de la orientación
sexual?
Esperando poder haber suscitado con estas ideas al menos algún
interrogante sobre el que podamos intercambiar, a continuación, distintas
39
El Matrimonio Heterosexual: ¿Un Mito?
opiniones, enriqueciéndonos mutuamente por el simple hechos de saber
escucharnos, me gustaría concluir con algunas partes de la Exposición de
Motivos de la Ley Española donde se constata la filosofía que la guía. Y que
no es otra que la plasmación a esta cuestión de las distintas declaraciones de
derechos humanos, y donde, aún hoy en día, hemos de valorar su coraje. Así:
La relación y convivencia de pareja, basada en el afecto, es expresión
genuina de la naturaleza humana y constituye cauce destacado para el
desarrollo de la personalidad, que nuestra Constitución establece como uno
de los fundamentos del orden político y la paz social. En consonancia con ello,
una manifestación señalada de esta relación, como es el matrimonio, viene a
ser recogida por la Constitución, en su art. 32, y considerada, en términos de
nuestra jurisprudencia constitucional, como una institución jurídica de
relevancia social que permite realizar la vida en común de la pareja.
Esta garantía constitucional del matrimonio tiene como consecuencia
que el legislador no podrá desconocer la institución, ni dejar de regularla de
conformidad con los valores superiores del ordenamiento jurídico, y con su
carácter de derecho de la persona con base en la Constitución. Será la ley que
desarrolle este derecho, dentro del margen de opciones abierto por la
Constitución, la que, en cada momento histórico y de acuerdo con sus valores
dominantes, determinará la capacidad exigida para contraer matrimonio, así
como su contenido y régimen jurídico.
La regulación del matrimonio en el derecho civil contemporáneo ha
reflejado los modelos y valores dominantes en las sociedades europeas y
occidentales. Su origen radica en el Código Civil francés de 1804, del que inne-
gablemente trae causa el español de 1889. En este contexto, el matrimonio se
ha configurado como una institución, pero también como una relación jurídica
que tan sólo ha podido establecerse entre personas de distinto sexo; de hecho,
en tal diferencia de sexo se ha encontrado tradicionalmente uno de los funda-
mentos del reconocimiento de la institución por el derecho del Estado y por
el derecho canónico. Por ello, los códigos de los dos últimos siglos, reflejando
la mentalidad dominante, no precisaban prohibir, ni siquiera referirse, al ma-
trimonio entre personas del mismo sexo, pues la relación entre ellas en forma
40
Fernando Grande Marlaska
alguna se consideraba que pudiera dar lugar a una relación jurídica
matrimonial.
Pero tampoco en forma alguna cabe al legislador ignorar lo evidente:
que la sociedad evoluciona en el modo de conformar y reconocer los diversos
modelos de convivencia, y que, por ello, el legislador puede, incluso debe,
actuar en consecuencia, y evitar toda quiebra entre el Derecho y los valores
de la sociedad cuyas relaciones ha de regular. En este sentido, no cabe duda
de que la realidad social española de nuestro tiempo deviene mucho más rica,
plural y dinámica que la sociedad en que surge el Código Civil de 1889. La
convivencia como pareja entre personas del mismo sexo basada en la
afectividad ha sido objeto de reconocimiento y aceptación social creciente, y
ha superado arraigados prejuicios y estigmatizaciones. Se admite hoy sin
dificultad que esta convivencia en pareja es un medio a través del cual se
desarrolla la personalidad de un amplio número de personas, convivencia
mediante la cual se prestan entre sí apoyo emocional y económico, sin más
trascendencia que la que tiene lugar en una estricta relación privada, dada su,
hasta ahora, falta de reconocimiento formal por el Derecho.
Esta percepción no sólo se produce en la sociedad española, sino
también en ámbitos más amplios, como se refleja en la Resolución del Parla-
mento Europeo, de 8 de febrero de 1994, en la que expresamente se pide a la
Comisión Europea que presente una propuesta de recomendación a los efectos
de poner fin a la prohibición de contraer matrimonio a las parejas del mismo
sexo, y garantizarles los plenos derechos y beneficios del matrimonio.
La Historia evidencia una larga trayectoria de discriminación basada en
la orientación sexual, discriminación que el legislador ha decidido remover.
El establecimiento de un marco de realización personal que permita que
aquellos que libremente adoptan una opción sexual y afectiva por personas de
su mismo sexo puedan desarrollar su personalidad y sus derechos en
condiciones de igualdad se ha convertido en exigencia de los ciudadanos de
nuestro tiempo, una exigencia a la que esta ley trata de dar respuesta.
Ciertamente, la Constitución, al encomendar al legislador la configu-
ración normativa del matrimonio, no excluye en forma alguna una regulación
41
El Matrimonio Heterosexual: ¿Un Mito?
que delimite las relaciones de pareja de una forma diferente a la que haya
existido hasta el momento, regulación que dé cabida a las nuevas formas de
relación afectiva. Pero, además, la opción reflejada en esta ley tiene unos fun-
damentos constitucionales que deben ser tenidos en cuenta por el legislador.
Así, la promoción de la igualdad efectiva de los ciudadanos en el libre
desarrollo de su personalidad (arts. 9.2 y 10.1 de la Constitución), la preser-
vación de la libertad en lo que a las formas de convivencia se refiere (art. 1.1
de la Constitución) y la instauración de un marco de igualdad real en el
disfrute de los derechos sin discriminación alguna por razón de sexo, opinión
o cualquier otra condición personal o social (art. 14 de la Constitución) son
valores consagrados constitucionalmente cuya plasmación debe reflejarse en
la regulación de las normas que delimitan el estatus del ciudadano, en una
sociedad libre, pluralista y abierta.
Desde esta perspectiva amplia, la regulación del matrimonio que ahora
se instaura trata de dar satisfacción a una realidad palpable, cuyos cambios
ha asumido la sociedad española con la contribución de los colectivos que han
venido defendiendo la plena equiparación en derechos para todos con inde-
pendencia de su orientación sexual, realidad que requiere un marco que
determine los derechos y obligaciones de todos cuantos formalizan sus rela-
ciones de pareja.
En el contexto señalado, la ley permite que el matrimonio sea celebrado
entre personas del mismo o distinto sexo, con plenitud e igualdad de derechos
y obligaciones cualquiera que sea su composición. En consecuencia, los efectos
del matrimonio, que se mantienen en su integridad respetando la configu-
ración objetiva de la institución, serán únicos en todos los ámbitos con
independencia del sexo de los contrayentes; entre otros, tanto los referidos a
derechos y prestaciones sociales como la posibilidad de ser parte en proce-
dimientos de adopción.
Asimismo, se ha procedido a una imprescindible adaptación termino-
lógica de los distintos artículos del Código Civil que se refieren o traen causa
del matrimonio, así como de una serie de normas del mismo Código que
contienen referencias explícitas al sexo de sus integrantes.
42
Fernando Grande Marlaska
En primer lugar, las referencias al marido y a la mujer se han sustituido
por la mención a los cónyuges o a los consortes. En virtud de la nueva
redacción del art. 44 del Código Civil, la acepción jurídica de cónyuge o de
consorte será la de persona casada con otra, con independencia de que ambas
sean del mismo o de distinto sexo.
Subsiste no obstante la referencia al binomio formado por el marido y
la mujer en los arts. 116, 117 y 118 del Código, dado que los supuestos de hecho
a que

Mais conteúdos dessa disciplina