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Retratos do Brasil Homossexual Fronteiras, Subjetividades e Desejos Horácio Costa et al. organização Horácio Costa et al. (orgs.) Retratos do Brasil Homossexual Fronteiras, Subjetividades e Desejos Secretaria Especial dos Direitos Humanos PPG em literatura portuguesa PPG em estudos comparados F F L C H - D L C V I C E L P UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Reitora Suely Vilela Vice-reitor Franco Maria Lajolo EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Diretor-presidente Plinio Martins Filho COMISSÃO EDITORIAL Presidente José Mindlin Vice-presidente Carlos Alberto Barbosa Dantas Adolpho José Melfi Benjamin Abdala Júnior Maria Arminda do Nascimento Arruda Nélio Marco Vincenzo Bizzo Ricardo Toledo Silva Diretora Editorial Silvana Biral Editoras-assistentes Marilena Vizentin Carla Fernanda Fontana Horácio Costa Emerson Inácio Wilton Garcia Berenice Bento Wiliam S. Peres (organizadores) Retratos do Brasil Homossexual: Fronteiras, Subjetividades e Desejos Retratos do Brasil homossexual : fronteiras, subjetividades e desejos / Horácio Costa ... [et al] (org.). –- São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo : Imprensa Oficial, 2010. 442 p. ; 23 cm. ISBN 978-85-314-1242-4 (Edusp) ISBN 978-85-7060-961-8 (Imprensa Oficial) 1. Homossexualidade-Sociologia. 2. Identidade sexual. I. Costa, Horácio, 1954-. CDD 306.766 Copyright © 2010 by organizadores Ficha catalográfica elaborada pelo Departamento Técnico do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP Depósito Legal na Biblioteca Nacional, conforme Decreto Nº 10.944, de 14 de dezembro de 2004. Direitos reservados à Edusp – Editora da Universidade de São Paulo Av. Prof Luciano Gualberto, Travessa J, 374 6o andar – Ed. da Antiga Reitoria – Cidade Universitária 05508-010 – São Paulo – SP – Brasil Divisão Comercial: Tel.: (11) 3091-4008 / 3091-4150 SAC (11) 3091-2911 – Fax (11) 3091-4151 www.edusp.com.br – e-mail: edusp@usp.br Printed in Brazil 2010 5 Sumário Discurso de Abertura do IV Congresso da ABEH HORÁCIO COSTA...................................................................................... 15 Parte I Homocultura e Direitos Humanos A União Homoafetiva e a Constituição Federal MARIA BERENICE DIAS ............................................................................. 27 El Matrimonio Heterosexual: ¿Un Mito? FERNANDO GRANDE MARLASKA ................................................................ 33 ¿Peligrosos y Normales? Sobre la Situación de la España Democrática Respecto de la Diversidad Sexual JUAN VICENTE ALIAGA .............................................................................. 43 Homocultura & Política Homossexual no Brasil: do passado ao por-vir JOÃO SILVÉRIO TREVISAN ......................................................................... 55 Direitos Humanos e Estudos Gays e Lésbicos: O que nós e Michel Foucault Temos a Ver com Isso? MÁRIO CÉSAR LUGARINHO ........................................................................ 67 Constâncias PAULA VITURRO ...................................................................................... 77 Homofobia Letal: A Violência Velada contra a Liberdade de Orientação Sexual no Brasil DANIELLE ROSE, HELENA BARCELOS, LEA SANTOS, MARILENE DURÃES E TÂNIA CARNEIRO................................................................................... 87 Programa Vitória sem Homofobia DURVALINA MARIA SESARI OLIOSA ............................................................. 99 6 Os Homossexuais e a Adoção RAFAELLI LINS DANTAS ........................................................................... 107 Parte ii Homocultura e Literatura O Cânone Impermeável: Homoerotismo nas Poesias Brasileira, Portuguesa e Mexicana do Modernismo HORÁCIO COSTA .................................................................................... 119 Para uma Estética Pederasta EMERSON DA CRUZ INÁCIO ..................................................................... 129 Comédia de Bristo, o Fanchono FRANCISCO MACIEL SILVEIRA .................................................................. 143 Humor e Homofobia no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende MARCIA ARRUDA FRANCO ....................................................................... 151 Teatro e Paródia no Mito de Inês de Castro FLAVIA MARIA CORRADIN ........................................................................ 163 Solidão e Relações de Poder na Obra de Gasparino Damata ROBERT HOWES .................................................................................... 177 A Homossociabilidade Erótica de João Silvério Trevisan NELSON MARQUES ................................................................................ 187 Corpo e Memória na Obra de Caio Fernando Abreu ANTONIO EDUARDO DE OLIVEIRA ............................................................. 197 Representações de Gênero e de Homoerotismo nas Literaturas Infantil e Juvenil: Uma Leitura de O Gato que Gostava de Cenoura e Sempre por Perto LUCIANO FERREIRA DA SILVA ................................................................... 209 Uma Certa Retórica Homoerótica LATUF ISAIAS MUCCI .............................................................................. 227 7 Quarenta Anos de Histórias de Amor ANA MARIA DOMINGUES DE OLIVEIRA ....................................................... 239 Homoerotismo e Performance em “O Iniciado do Vento”, de Aníbal Machado CARLOS HENRIQUE BENTO ..................................................................... 247 Lugar de Romance é Fora do Armário: Gênero, Espaço e Corpo em Bom Crioulo, de Adolfo Caminha CARLOS EDUARDO BEZERRA ................................................................... 255 As Bases de Eu Sempre Tive a Ilusão que um Dia Você ia me Abraçar DJALMA THÜRLER .................................................................................. 269 O Corpo e a Escrita: Acenos e Afagos, de João Gilberto Noll FÁBIO FIGUEIREDO CAMARGO ................................................................. 277 Cartografias da Experiência Urbana em Contos de Caio Fernando Abreu FLÁVIO PEREIRA CAMARGO ..................................................................... 289 A Personagem Diluída: “Tigrela”, uma Mulher e um Instinto FRANCIS DE LIMA AGUIAR ....................................................................... 299 Balaio de Gatos ou um Olhar Rachildeano sobre o Gênero em Les Hors Nature MÁRA LUCIA FAURY ............................................................................... 311 A Confissão de Lúcio e o Aprendizado da Arte Decadentista RAFAEL SANTANA GOMES ....................................................................... 321 Ficcionalização de Si: Uma Estratégia de (Re)velação RENATA PIMENTEL ................................................................................. 333 A Diversidade Sexual na Versão Mitodramática de Édipo, de Armando Nascimento Rosa ROSANA BAÚ RABELLO ........................................................................... 343 A Intertextualidade em “Ex-crucior” e “Poema a Safo”, de Aguinaldo Gonçalves ROSANGELA MANHAS MANTOLVANI ........................................................... 353 8 Entre Exu e o Apocalipse: Notas para uma Leitura do Homoerotismo em Valdo Motta e Paulo Teixeira SINEI FERREIRA SALES ........................................................................... 365 “Na Torpeza Nauseante Havia Alguma Coisa Muito Pura”: Algumas Visões Sobre a Homossexualidade na Moderna Literatura Brasileira TELMA MACIEL DA SILVA ......................................................................... 375 parte iii Homocultura e Artes La Colección Visible: Motor y Memoria de un Tiempo de Cambio PABLO PEINADO .................................................................................... 389 Andróginos, Hombres Vestidos de Mujer, Maricones... El Museo Travestí del Perú GIUSEPPE CAMPUZANO ..........................................................................se refieren estos artículos sólo pueden producirse en el caso de matri- monios heterosexuales. Por otra parte, y como resultado de la disposición adicional primera de la presente ley, todas las referencias al matrimonio que se contienen en nuestro ordenamiento jurídico han de entenderse aplicables tanto al matri- monio de dos personas del mismo sexo como al integrado por dos personas de distinto sexo. Es una de las pocas veces en que uno no sólo acata una ley nacida de la soberanía popular, sino que se emociona cada vez la nombre. Y partiendo de la misma realidad social, así como del estudio de la institución del matrimonio, analizando los derechos fundamentales en litigio, entiendo que su no reconocimiento a las personas homosexuales, no lo es en base a cuestiones técnico jurídicas, sino a prejuicios disfrazados de ciencia y a una ausencia de coraje democrático. Muchas gracias y os deseo lo mejor por vuestra lucha a favor de nues- tros derechos, porque en esta materia, como en cualquiera otra hipotética donde podría vulnerarse alguno, yo también me siento brasileño. Y espero que seáis la punta de lanza en Latinoamérica en la lucha por los derechos de los homosexuales, y que haya muchas personas que se vean reflejados en vosotros. Porque la batalla no es fácil. En España han pasado escasos treinta años desde que se internaba en centros especiales a homosexuales. 43 1. Facultad de Bellas Artes, Universidad Politécnica de Valencia. 2. Raquel Osborne, “Entre el Rosa y el Violeta (Lesbianismo, Feminismo y Movimiento Gay). Relato de unos Amores Difíciles”. Texto reproducido en Raquel Platero (coord.), Lesbianas. DiscurSos y Representaciones, Barcelona, Melusina, 2008, p. 85. ¿Peligrosos y Normales? Sobre la Situación de la España Democrática Respecto de la Diversidad Sexual JUAN VICENTE ALIAGA1 En los últimos tres años es frecuente encontrarse con titulares y artículos de periódicos y comentarios diversos que hablan de lo mucho que ha cambiado España. Son textos que vienen seguidos de halagos y elogios. No me refiero solamente a la literatura que, con mayor o menor rigor, se ha publicado en el estado español sino sobre todo a la aparecida en distintos foros en el extran- jero (en Francia, Italia, Reino Unido, Alemania, México, Chile…). Unánima- mente lo escrito o divulgado a través de distintos medios de comunicación (periódicos, televisiones, radio, internet…) parte de un hecho clave: la apro- bación por el Congreso de los Diputados el 30 de junio de 2005 de una ley que equipara los matrimonios y la paternidad/maternidad de personas homose- xuales con respecto a las heterosexuales. La profesora Raquel Osborne comenta [...] que hemos pasado en 35 años […] de leyes represivas y que además se cumplían porque iban unidas a actitudes enraizadas de profunda into- lerancia hacia la diferencia/disidencia respecto de la heteronorma, a una de las leyes más avanzadas del mundo […]2. 44 Juan Vicente Aliaga No olvida Raquel Osborne en su análisis que al año siguiente: [...] y tras algunas vacilaciones el gobierno (obviamente me refiero al capitaneado por José Luis Rodríguez Zapatero) aprobó en Consejo de Ministros y envió al Parlamento el proyecto de Ley de Identidad de Género, que regula el proceso del cambio de nombre y sexo en los documentos oficiales de las personas transexuales. El interés informativo suscitado en muchos medios de comunicación de las llamadas democracias asentadas y de otras más inestables venía en parte provocado por la sorpresa de que un país latino, del sur de Europa, cercano a África, se hubiera convertido en un “laboratorio de cambio social” en cues- tiones LGTB, adelantándose a otros como Francia, Alemania, Estados Unidos, y así un largo etcétera. ¿Cómo se había alcanzado dicha situación, se ha preguntado insisten- temente a los y las representantes españoles del movimiento gay, lésbico y transexual en distintos puntos del planeta? ¿Cómo entender esos vertiginosos cambios? La respuesta, de haberla, no puede ser ni única ni unilateral (por ejemplo, aquélla que habla de un Zapatero magnificado como salvador de los/ as homosexuales, o la que abunda en la pujanza y efectividad de los colectivos LGTB). La respuesta debe atender a distintos flancos, a diferentes razones que podrían explicar el intríngulis del cambio, sin obviar un estudio de la signifi- cación real de ese cambio, es decir, cuál es el alcance de los avances legales y lo que es más relevante si estos avances suponen una transformación palpable de la vida cotidiana de maricas, bolleras, trans, personas intersexuales, y de los sujetos que huyen de las categorías al uso o prefieren otras denominaciones. Para ello, creo imprescindible mirar hacia atrás en busca de las ense- ñanzas de la historia. En 1970, concretamente el 4 de agosto, se aprobó en España la Ley de Peligrosidad y Rehabilitación social (LPRH). Un año antes, en 1969, en las calles de Greenwich Village, homos, lesbianas, travestis y transexuales se enfrentaron a la policía neoyorquina dando paso a la formación de un movimiento de libe- 45 ¿Peligrosos y Normales? ración. El aire empezaba a parecer más limpio en algunas partes del mundo mientras que en España la dictadura de Franco lo hacía irrespirable. La LPRH suponía que serían declarados en estado de amenaza social y se les aplicará las correspondientes medidas de seguridad a quienes se aprecie en ellos una peligrosidad social. Son supuestos de estado peligroso los siguientes: entre otros (prostitución, proxenetismo…) los que realicen actos de homosexualidad. Las medidas de seguridad se concretan en el “internamiento en un estable- cimiento de reeducación (hasta un máximo de cinco años) y en la prohibición de residir en el lugar o territorio en que se designe (el destierro)”. Durante muchos años los presos condenados bajo esta ley fueron ignorados. Incluso se puede afirmar que en los pactos de la Transición espa- ñola (1975-1982) a la democracia o monarquía parlamentaria en los que hubo indultos por delitos de orden ideológico (excarcelaciones, regreso de refugia- dos políticos…), la izquierda española privilegió la dignificación de los mili- tantes antifranquistas, pasando por delante de los “desviados “sexuales”. Obviamente de la derecha franquista imbuida de moral católica no se puede esperar otra cosa pero la moralina y los prejuicios también estaban arraigados en la izquierda, incluso en la extraparlamentaria. En los últimos años, y en la primera legislatura de Zapatero, se han hecho estudios sobre la persecución de los homosexuales y transexuales durante el franquismo y se ha producido un reconocimiento por parte del Parlamento (véase El País, 20 de diciembre de 2004) y el inicio de indemni- zaciones como víctimas del franquismo (a propuesta de Izquierda Unida). Dicho reconocimiento de los presos y algunos estudios han dignificado la me- moria de lo sucedido aportando datos sobre las personas juzgadas por homo- sexualidad, sobre el trato vejatorio y humillante que sufrían en un centro de reeducación de homosexuales varones, en Huelva (activos) y en Badajoz (pasivos), y acerca de las terapias aversivas aplicadas (descargas eléctricas, vomitivos, lobotomía)3. 3. Véase: Arturo Arnalte, Redada de Violetas. La Represión de los Homosexuales durante el Franquismo, Madrid, La Esfera de los Libros, 2003. La memoria de la represión ha sido reivindicada, entre otros, por Antoni Ruiz, presidente de la Asociación de Ex-Presos Sociales. 46 Juan Vicente Aliaga Como he señalado, tras la muerte del dictador y en plena transición, los indultos y la amnistía de 1976, que afectaba a delitos de cariz político e ideológico, no incluyeron a los considerados “peligrosos sociales”. En 1978 se aprueba una nueva Constitución (antes se había legalizado al Partido Comunista, uno de los demonios de la derecha española), pero a pesar de las primera manifestaciones en la vía pública de organizaciones homo como elFAGC (Front d’Alliberament Gai de Catalunya), en 1977, la primera habida, la LPRH pervive hasta 1979. En 1978 hubo tres expedientes judiciales, sin embargo, como afirma Alberto Mira, la desaparición de los obstáculos legales fue muy gradual: el delito de escándalo público, verdadero cajón de sastre, es parte de la ley hasta 1988, lo que dificulta, por decirlo suavemente, los actos de visibilidad homosexual, con o sin ley que castigase los comportamientos homosexuales de manera explícita4. Paralelamente a los cambios políticos y legislativos en una España de profundo sustrato franquista y de una reli- giosidad conservadora los movimientos de liberación homosexual proliferan. La efervescencia se debe en parte al objetivo de derogar y abolir la LPRH, aunque ya habían surgido anteriormente algunos grupos en la clandestinidad. En junio de 1977 se celebraba en Barcelona la primera manifestación (ilegal, de hecho) del Día del orgullo gay convocada por el FAGC. Poco a poco los colectivos se extienden por la geografía española sobre todo en las grandes ciudades. La presencia de las activistas lesbianas es minoritaria – como han recor- dado Beatriz Suárez y Empar Pineda – y pronto se escindirán para incorpo- rarse al movimiento feminista. En las filas homosexuales los grupos de lesbianas critican la misoginia de los gays, lo que les lleva a incorporarse de pleno al feminismo. Así sucedió con el colectivo de feministas lesbianas de Madrid, fundado en 1983. Sin embargo las lesbianas se encontrarían con otro escollo: el heterosexismo de muchos sectores feministas. 4. Alberto Mira, De Sodoma a Chueca. Una Historia Cultural de la Homosexualidad en España en el Siglo XX, Madrid/Barcelona, Ed. Egales, 2004, p. 419. 47 ¿Peligrosos y Normales? La derogación de la LPRH y la aparente normalización democrática posterior marcó, según Ricardo Llamas y Fefa Vila5 , “una crisis en el movi- miento de gays y lesbianas en el Estado español”. Algunos grupos desaparecie- ron y otros se restructuraron. Durante la década de los 80 lesbianas y gays corren de forma separada. Se podría decir que las comunidades de gays en los 80 están mas pendientes del ocio comercial vivido en el mal llamado gueto – otros como el escritor Eduardo Mendicutti lo considera espacio de libertad –, del que despotrican los activistas, que de las querellas políticas de entonces, sin embargo las razones para combatir no faltan: la discriminación de los pro- fesores gays, la derogación de un articulo del código militar (delito contra el honor), el escándalo publico, la corrupción de menores, la retirada de la ho- mosexualidad del catálogo de enfermedades de la OMS, el fin de las redadas, la destrucción de las fichas policiales presentadas por la COFLHEE (Coordina- dora de Frentes de Liberación Homosexual del Estado Español). Estas reivindicaciones serán tenidas en cuenta por los socialistas lentamente, más la voluntad de eliminar los rastros de la dictadura que por verdadera empatía con las necesidades de la población LGTB. El 23 de octubre de 1986, derogada ya la LPRH pero vigente la figura de escándalo público, dos mujeres, Arantxa y Esther fueran detenidas por la policía por haberse besado en la boca cuando pasaban delante de la Dirección General de la Seguridad del Estado, en la Puerta del Sol de Madrid. Nunca un beso había sido tan demoledor. Durante dos días estas mujeres fueron some- tidas a malos tratos y vejaciones. La respuesta tardó pero se produjo: el 23 de enero de 1987 cientos de lesbianas ocuparon las plazas de distintas ciudades. La invisibilidad lésbica se había roto. Las lesbianas existían. En julio de 1987 otro motivo más para la revuelta: un juez de familia, José Luis Sánchez Díaz, dicta una singular sentencia: la retirada de la custodia 5. Véase, Ricardo Llamas y Fefa Vila, “Spain. Passion for Life. Una Historia del Movimiento de Lesbianas y Gays en el Estado Español”, en Xosé M. Buxán Bran (ed.), ConCIENCIA de un Singular Deseo, Barcelona, Laertes, 1997, pp. 189-224. 48 Juan Vicente Aliaga de la hija a una mujer llamada Montserrat Garrart en beneficio del padre ante la sospecha de su posible lesbianismo. Los prejuicios homófobos y lesbófobos estaban pues a la orden del día. Bajo mandato socialistas se aprueban reformas parciales, algunas impulsadas por Izquierda Unida (subrogación de contratos de alquiler a la pareja no casada…). La década de los ochenta no fue particularmente brillante en lo que se refiere a las conquistas de derechos civiles para LGTB. Sin embargo, visto desde una perspectiva histórica más amplia, no puede olvidarse las enormes difi- cultades vividas, los momentos de crisis tan significativos como el golpe de estado de febrero de 1981, que dejaba patente que las fuerzas fácticas fascistas estaban lejos de haber desaparecido. Durante los gobiernos dirigidos por Adolfo Suárez de la UCD se aprobó la Ley del Divorcio (1981), y con Felipe González en 1985 la del aborto con tres supuestos (violación, malformación del feto, peligro para la salud mental de la madre). Fueron años en que la epidemia del Sida se fue haciendo cada vez más asfixiante. La lenta respuesta de los colectivos gays es significativa en parte debido a los temores de estigmatización, que se produjo en los medios de comunicación sensacionalistas y en las filas reaccionarias. Todo ello propició cierta inoperancia a la hora de lanzar campañas sobre las medidas preventivas a adoptar. Por otro lado, estaba el perfil bajo de los responsables del ministerio de Sanidad temeroso de enfrentarse a las diatribas y los ataques de la Conferencia episcopal, que proclamaba la castidad como medida profiláctica para evitar a toda costa el uso del condón. Todo ello no ayudaba a concienciar a la población española acerca del Sida. Si bien es cierto que en los 80 tras la victoria socialista (1982), y la desilu- sión que conllevaron algunas medidas políticas, se dio lo que se denominó el desencanto (desmovilización de sectores contestatarios…) no sería justo afir- mar que en distintos ámbitos de la sociedad española no se produjeron algunos cambios. Habría que buscarlos sobre todo fuera de la política oficial. Tras muchos años de cerrazón, de puritanismo religioso y moral en las calles de Madrid y Barcelona, pero también en otros lugares (Valencia, Vigo), 49 ¿Peligrosos y Normales? por señalar los casos más nombrados, cristalizó paulatinamente una trasfor- mación de las costumbres y un aperturismo sexual en una generación que evitaba los dogmas políticos de la izquierda esclerotizada y que buscaba el hedonismo y el disfrute del cuerpo. Estas necesidades en parte se aglutinaron en el fenómeno de la llamada movida madrileña, desde finales de los 70 y antes de la mercantilización que se produjo cuando las cadenas de televisión, las revistas y los periódicos capitalizaron un movimiento inconcreto, sin horizonte claro, sin programas ni organización, que hacía de la noche, de la indumentaria alocada y rebelde, de la música alternativa su santo y seña y en el que se zam- bulleron los avasallados por la asfixiante normativización. Fabio MacNamara, las Costus, Carlos Berlanga, Ceesepe, Alaska, Pedro Almodóvar, en Madrid o Nazario, Camilo y Ocaña, en la Barcelona libertaria, son algunos nombres significativos. La provocación, que recogieron las cámaras del programa televisivo La Edad de Oro (Paloma Chamorro), las ganas de divertirse y de huir de una España rancia, restrictiva y meapilas, es un valor a considerar. Y en ese sentido descuella la aportación del cine de Pedro Almodóvar – recuérdese su película Entre tinieblas (1983) con sus monjas irreverentes – que con sus incohe- rencias, disparates y muchos aciertos presentaba a la sociedad española realidades y ficciones insospechadas hasta entonces. En se sentido cabe resaltar una película como La Ley del Deseo (1986) en unos años en que Almodóvar jugaba a la ambigüedad (una constante entre muchos famosos españolesque evitaban las etiquetas), pues no había hablado explícitamente de su orientación sexual a pesar de ser invitado sistemáti- camente a participar en los festivales de cine gay de todo el planeta. La Ley del Deseo, que no voy a analizar en clave cinematográfica, tuvo el mérito de mostrar a un público todavía bastante recatado en materia de sexo realidades, deseos y anhelos que el cine mayoritario heterosexista español y de otros países despreciaba e ignoraba sistemáticamente. En otros espacios de la cultura, aunque con un eco relativo entre las audiencias mayoritarias, poco leídas y cultas, se fueron abriendo paso los textos de Luis Antonio de Villena, Eduardo Mendicutti, Juan Goytisolo, 50 Juan Vicente Aliaga Alberto Cardín. Las mujeres como Esther Tusquets, Carme Riera, Isabel Franc contemplaban el deseo lésbico en sus escritos pero rechazaban cualquier implicación o traslación personal. En esos años el feminismo apenas penetraba en las aulas y era impen- sable que estudios sobre la homosexualidad, el lesbianismo y la transexualidad tuvieran respaldo. Hubo que esperar a mediados de los 90 para que alguna intelectualidad gay comenzara a escribir la historia ignorada y a dar valor al pensamiento heterodoxo en materia de sexualidad – un ejemplo adelantado lo depara el malogrado Eduardo Haro Ibars, autor de Gay Rock, 1975. Todavía en los 90 la estigmatización del Sida caía sobre la población homosexual. En 1992 las calles de San Sebastián y de Madrid fueron escenario de la performance Carrying del artista Pepe Espaliú que denunciaba la incuria del Estado ante los numerosos muertos, los miles de seropositivos, la ne- gligencia de las autoridades y de las gentes. Ese mismo año, el 1 de diciembre, Pepe Espaliú publicó un texto en El País (“Retrato del artista desahuciado”) hablando abiertamente de su homosexualidad. Fue una de las primeras salidas del armario de un personaje público en años en que muchos ocultaban su se- xualidad de modo vergonzante. Para quienes pensaban que la homofobia había desaparecido de España el caso Arny fue una auténtica sorpresa… harto desagradable. Unas acusa- ciones de prostitución de menores se convirtieron en un auténtico lincha- miento de famosos – Jesús Vázquez, entre otros… – por su (siempre presunta) depravada sexualidad6. El Arny era un club de Sevilla al que acudían chaperos, supuestamente pervertidos por homosexuales libidinosos. Todo fue un engaño masivo que, eso sí, permitió medir que España no era tan moderna como se decía. La homofobia vendía y corrieron ríos de tinta. En 1996 gana la derecha de Aznar las elecciones y se produce un parón en cuestiones de derechos en un momento en que las organizaciones LGTB pedían la ley de parejas de hecho o las uniones civiles. No se planteaba entonces 6. Alberto Mira, De Sodoma a Chueca, p. 576. 51 ¿Peligrosos y Normales? la posibilidad del matrimonio. 1996 es el año en que en Sitges, cerca de Barce- lona, un manifestación gay organizada como protesta ante la paliza de carácter homófobo sufrida por un hombre es recibida con piedras y abucheos. Me parece pertinente asociar el crecimiento de los colectivos de gays y lesbianas, de nuevo unidos, y la mayor visibilidad de estos sectores con los ocho años de letales políticas de derecha, siempre acompañadas y santificadas por la Iglesia y el papado. Las manifestaciones del orgullo gay, en Madrid, van adquiriendo en este periodo enorme presencia sobre la que se vuelcan las televisiones, abundantes tras la ley que permitía la aparición de cadenas privadas: algunos por insano morbo y puro chismorreo, por rellenar programas, otras con mayor sentido de la ecuanimidad informativa. La creación de zonas que la prensa denomina como barrios gays, sobre todo Chueca, en Madrid y el Gaixample, en Barcelona, atrae la curiosidad de propios y extraños. Ya no se trata sólo de locales de ocio sino de todo tipo de establecimientos pensados para una comunidad abierta y plural en donde se ofrecen distintos servicios sin dejar de lado el componente comercial. Señalo como un lugar que ayudó a diversificar el carácter del barrio la apertura de la librería gay-lésbica-trans Berkana, en Madrid. Chueca fue denominada “Centro de Recuperación de una Autoestima Dañada”, según Ricardo Llamas y Paco Vidarte, que habría que extender a todos los rincones de la ciudad. La segunda mitad de los 90 y principios del siglo XXI se produce una sobreexposición mediática de gays, lesbianas y transexuales, al decir de Beatriz Preciado, autora del Manifiesto Contrasexual. Prácticas Subversivas de Identidad Sexual (2002), lo cual no significa que no haya muchos aspectos de las sexualidades minoritarias que sigan ignorándose, especialmente la de los sectores más inconformistas. No todos los gays, lesbianas, transexuales o personas transgénero aspiran a la respetabilidad que supuestamente otorga el matrimonio como modelo exclusivo de vida y organización familiar o de pa- reja. Tampoco la normalización, desde una perspectiva queer, es un concepto que todo el mundo comparte. 52 Juan Vicente Aliaga No se ha hecho ningún estudio sobre el impacto que las producciones cinematográficas y televisivas han podido tener entre la población a la hora de modificar su percepción de la homosexualidad. Tema complejo y espinoso donde los haya pero estoy convencido que series españolas como Aquí no hay quien Viva, o el desfile de parejas homosexuales en distintos programas televisivas dejan su poso aunque prime el amarillismo y la información sesgada. La presencia en la televisión de presentadores y personajes famosos (Boris Izaguirre, Jesús Vázquez) o de personalidades como el juez Fernando Grande Marlaska, sin duda ha contribuido al proceso de normalización. Las clases medias españoles han ido acostumbrándose a apariciones, fugaces o no de sujetos reales o de ficción ajenos a la ortodoxia heterosexista. Un aluvión de películas de interés dispar y desigual también ha podido contribuir. Cito algunas: Más que Amor Frenesí, 1996, de David Menkes; Sobreviviré, de Menkes y Albacete; Perdona Bonita pero Lucas me Quería a mí, 1997, de Dunia Ayaso y Felix Sabroso; Amic/Amat, de Ventura Pons, 1999; Cachorro, 2004, de Miguel Albaladejo; Costa Brava, 1994, de Marta Balletbó- Coll (una de las escasísimas incursiones lésbicas que tuvo poca repercusión); y por supuesto algunas producciones norteamericanas (Brokeback Mountain, 2005) y europeas. La victoria en 2004 del PSOE supuso la aceleración de un conjunto de reformas sociales. Rodeado de un influyente grupo de asesores entre los que se contaban algunos representantes del movimiento LGBT (Pedro Zerolo) y de mujeres feministas, el presidente Zapatero, aunque con alguna vacilación y rectificación (no parecía muy convencido de que la adopción de niños por par- te de parejas de gays y lesbianas fuese posible, como confesó a la revista Zero), fue un convencido impulsor de la ampliación de derechos que en nada per- judican a quienes ya disfrutaban de ellos. Sin duda, el mérito de la aprobación del matrimonio gay, como se le llama en la prensa, a él se le debe en parte, a sabiendas de que contaba con el respaldo de otros grupos políticos en la cámara (Izquierda Unidad, Esquerra Republicana de Catalunya, BNG…). Esta conquista social no se ha logrado de la noche a la mañana y sin oposición. Una de las derechas más arcaicas y beatas de Europa, con el res- 53 ¿Peligrosos y Normales? paldo mediático de la emisora de los obispos y de muchos grupos ultracató- licos ha dado la batalla en las calles y en otros espacios públicos. Transcurridos tres años el PP no ha aflojado su presión moralista (mantiene un recurso de inconstitucionalidad contra la denominación de matrimonio homosexual) y se opone con uñas y dientes a la asignatura de Educación para la ciudadanía, que se está implantando, poco a poco en los institutos, en la que se imparten conceptos como igualdad entre mujeres y hombres, el respetoa la diferencia, la crítica a la homofobia y al racismo. Además, la persistencia de la homofobia no es una entelequia sino real y durará muchos años todavía. Se palpa en los institutos, en la calle, en los insultos de muchos machitos de turno, en la esfera del fútbol y del motoci- clismo y de la Fórmula I, en las reacciones jurídicas de algunos magistrados como los que se niegan a casar a parejas homos, en el lenguaje, en las exclu- siones, en las mofas… Ser marica, bollera o trans no está en la lista de cosas que se consideran deseables en nuestra sociedad. No es un modelo fomentado por el sistema educativo, que se presente como apetecible desde posiciones “objetivas” o de autoridad, ni por los principales discursos culturales o institucionales. Ser hetero sigue siendo infinitamente preferible. Y muchos homos, les- bianas y trans españoles que viven en pueblos se ven empujados a emigrar todavía hoy. Aunque ha desaparecido la persecución de los 70 y la violencia extrema y hay mucha más visibilidad (sobre todos de gays), y se ha progresado verti- ginosamente en materia de derechos (la ley de identidad de género es mani- fiestamente mejorable pues los trans siguen considerados enfermos al tener que demostrar que quieren una reasignación de sexo ante un psiquiatra como si la mal llamada disforia de género fuese un capricho), las estructuras homó- fobas, lesbófobas, tránsfobas y heterosexistas siguen en su sitio. No conviene pasarlo por alto. La lucha por la diversidad sexual continúa. 55 Homocultura & Política Homossexual no Brasil: do Passado ao Por-vir JOÃO SILVÉRIO TREVISAN De um ponto de vista histórico comparativo, resulta muito revelador esta- belecer um paralelo entre os primórdios dos movimentos americano e brasileiro na luta pelos direitos homossexuais. As diferenças são muitas e, por vezes, gritantes – já pelo fato de que o Gay Movement americano foi desbra- vador e o Movimento Homossexual brasileiro veio quase a reboque de prece- dentes internacionais. No caso americano, já de saída, salta aos olhos a busca e consecução de um discurso próprio. No caso brasileiro, percebe-se a inexis- tência (e mesmo despreocupação) de um discurso específico da homocultura, que se continua tateando até hoje. Trata-se de um detalhe fundamental, que revela o caráter específico de cada um dos movimentos e sua articulação em relação a políticas homossexuais. Para compreender melhor esse dado, é pre- ciso contextualizá-lo. Autonomia política O elemento que deflagra as especificidades em ambos os casos é jus- tamente a diferença de autonomia política entre os ativismos americano e bra- sileiro. Em ambos os casos, o nascimento e características de uma consciência homossexual adveio da relação com as esquerdas de cada país. Nos Estados Unidos, os setores progressistas trabalhavam com uma postura mais tolerante e menos centralizadora. Talvez por existir nos Estados Unidos um partido 56 João Silvério Trevisan comunista mais frágil, a chamada new left americana dos anos 1960 resultava num conglomerado de pequenas agremiações descentralizadas que, ao mesmo tempo, articulava-se como uma rede de vasos comunicantes formada pela contracultura, dentro da qual se aglomeravam diferentes matizes de socia- listas democráticos e marxistas (trotskistas, inclusive), anarquistas, hippies, pacifistas, militantes dos direitos civis, ativistas negros e feministas. Isso se refletiu num movimento homossexual menos centralizado em grupos e nomes carismáticos. Já a eclosão do movimento, no bar Stonewall Inn de Nova York, em 28 de junho de 1969, refletia essas características: ausência de lideranças fortes e, em contrapartida, farta participação popular, considerando que a revolta contra a polícia foi iniciada espontaneamente pela população homos- sexual proletária e de classe média baixa que frequentava o local. A partir daí, alastrou-se por todo o país um movimento homossexual nascido das bases: as consciências individuais vinham somar-se dentro do coletivo e não diluir- se em detrimento de um líder ou de uma organização. Com isso, a comuni- cação entre a comunidade e suas eventuais lideranças era muito mais direta. Frequentemente, as ações liberacionistas nem precisavam de grupos agre- gadores. A voz dos indivíduos homossexuais fazia-se ouvir num modo poli- fônico. Quando havia necessidade de porta-vozes, os/as representantes não marcavam distância profunda com os/as representados/as. Evidência disso é o boicote da comunidade a produtos e empresas ligadas a algum fator dis- criminatório. Em inúmeros casos, essa pressão verdadeiramente popular con- seguiu mudar situações e atitudes. No caso do Brasil, desde o início as esquerdas se nuclearam em torno de partidos centralizadores, autoritários e rigidamente organizados, geral- mente ao estilo stalinista. A manipulação dos extratos populares, via lideran- ças, tornou-se prática usada e propugnada pelos comitês centrais dos partidos, o que no limite distanciava a população do debate político, cujos termos eram estipulados e definidos de cima para baixo. Essa tradição migrou para o movimento homossexual brasileiro, praticamente desde o início, com predo- minância de ativistas de classe média, distanciados da grande massa homos- sexual e sem real representatividade. Os grupos locais e as entidades asso- 57 Homocultura & Política Homossexual no Brasil ciativas GLBT tornaram-se feudos, frequentemente disputados por partidos e tendências políticas de esquerda. Nesse contexto, proliferaram lideranças baseadas em centralismo, disputa de poder, autoritarismo e personalismo (quando não, puro estrelismo, de olho na mídia). Em vez da pressão por mo- bilização comunitária, preferiu-se a estratégia dos lobbies instalados nos corredores do poder central, de modo que poderes locais se prevaleceram de uma somatória de poderes em níveis mais altos, para chegar à proposição de leis e de políticas homossexuais. Com frequência, lideranças homossexuais se tornaram funcionários/as de governos e partidos, neste último caso funcio- nando como correias de transmissão partidária. Quando entraram em cena financiamentos governamentais para os direitos homossexuais ou para a luta antiaids (ameaçando perpetuar a associação da doença à prática homosse- xual), então se configurou um quadro perfeito para as disputas dentro do movimento liberacionista GLBT. A solidariedade, que deveria ser a base dos movimentos sociais, acabou sobrando apenas para as situações em que o inimigo externo comum (a homofobia) exige algum tipo de união circuns- tancial. Em última instância, a dependência governamental e/ou partidária provocou a ausência de autonomia política – ainda que muitas vezes disfar- çada em congressos e seminários supostamente organizados pelas lideranças GLBT, mas constrangedoramente convocados e financiados por órgãos gover- namentais, como se tem visto nos últimos anos. Com o tempo, políticas go- vernamentais adquiriram autoridade para traçar não só programas e estra- tégias como também impor mudanças e prioridades na própria linguagem. Foi nesse sentido que, no quadro da luta antiaids, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, o Ministério da Saúde tentou implantar o conceito de “homem que faz sexo com homem”, supostamente para “evitar” o estigma de outros termos considerados menos nobres, como “homossexual”. Pode-se entender, assim, como o discurso da militância homossexual frequentemente acabou se confundindo com o discurso oficial, já que na prática sua especifi- cidade como movimento social se mostrava dispensável, para não dizer des- prezível. Evidência disso é o servilismo renitente das lideranças GLBT frente aos comitês partidários mais progressistas que apoiam os direitos homossexuais. 58 João Silvério Trevisan Para ficar num só, entre inúmeros exemplos, durante a gestão da prefeita petista de São Paulo, Marta Suplicy (entre 2000 e 2004), a subserviência che- gou ao ponto de, muitasvezes, lideranças do ativismo GLBT negarem as neces- sidades específicas da comunidade homossexual em nome das prioridades definidas pelo partido. No período, um líder militante desculpava publicamen- te o descaso da prefeita de São Paulo frente às questões da comunidade GLBT, brandindo o argumento de que ela “não pode governar só para os gueis” – argumento falacioso que até então só se ouvira da boca de heterossexuais sem consciência dos direitos homossexuais. No caso brasileiro, a contumaz ausência de autonomia política foi se refletir também na produção intelectual, fato que impediu uma maior elabo- ração conceitual e acabou retardando em muito abordagens de viés homocul- tural. Isso se evidencia, por exemplo, na inexistência quase sistemática, em pleno século XXI, de núcleos ou departamentos de estudos homossexuais em nossas universidades – ao contrário de universidades europeias e americanas, que em inúmeros casos possuem programas avançadíssimos nessa área há quase duas décadas. De um lado, a consciência política homossexual, no Brasil, reduziu-se a importar seus referenciais das esquerdas locais. De outro lado, quando precisou de ferramentas para análise da realidade homossexual, o ativismo GLBT brasileiro não teve alternativa senão pedir socorro inter- nacional, acabando por se contentar em importar ideias nem sempre acor- dantes à situação brasileira. Nada a estranhar, portanto, que a ausência de uma produção intelectual autóctone tenha levado, em inúmeras circuns- tâncias, à mera implantação de modismos conceituais que nem sequer em- butiam uma adaptação (fosse ela uma mera tradução) adequada à realidade GLBT do país. A adoção automática de vocábulos de referências tão díspares quanto, por exemplo, gay, aids, queer, pride, bareback, advocacy e a atual guerra por primazia entre as letrinhas G, L, B e T (sem solução à vista) são ape- nas sintomas da parca profundidade de nossa elaboração conceitual e de como nos colocamos a reboque de soluções mecanicamente impostas. 59 Homocultura & Política Homossexual no Brasil Política homossexual e homocultura A partir desse resumo histórico analítico, pode-se fazer a pergunta primal para uma prospecção sobre o porvir: em que sentido a elaboração de políticas homossexuais verdadeiramente representativas poderá alimentar uma homocultura expressiva – e vice-versa? Antes de tudo, é preciso dizer que existe aí um claro movimento de interação, em que políticas homossexuais e homocultura se refletem mutuamente, como num espelho. Por outro lado, o gesto de criar cultura a partir da experiência homossexual é o mesmo que impele à elaboração de políticas específicas. Resguarde-se que, tanto num caso quanto no outro, a voz desejante é que toma seu espaço e floresce, num entor- no de parcas elaborações, considerando-se que até hoje a homossexualidade, quase sem exceção, vem sofrendo sob sistemas repressivos, em diferentes graus e circunstâncias. Daí o inevitável ineditismo dos muitos fenômenos sociais e culturais que cercam uma comunidade de cidadãos e cidadãs até en- tão tratada como se fosse invisível, quer dizer, ignorada. Como exemplo em- blemático dessa invisibilidade, pense-se no Carnaval e sua histórica relação com o travestismo, que por sua vez remete a sintomas homoeróticos, e suas inflexões nos mais diversos contextos socioculturais. Na melhor das hipóteses, o Carnaval tem sido visto como um pecadilho de três dias, quando sua expres- sividade cultural amplia os limites homoeróticos no espaço heteronormativo e deveria constituir um referencial de primeira grandeza para análise do fenô- meno homocultural como um todo. Inúmeras vezes, a sensação que se tem é de começar essas elaborações do zero – mesmo quando haja inúmeros sinais contrários. A carência de conceitos expressos e canais expressivos cria uma situação de urgência ímpar, graças à qual ser homossexual implica elaborar-se individualmente, ao mesmo tempo em que se elabora seu entorno social. Trata-se de uma experiência que se poderia chamar de autêntica androginia cultural: homossexuais somos obrigados a exercer os papéis de aprendizes autodidatas e simultaneamente de pedagogos de seu meio, tornados agentes e pacientes, ativos e passivos. Se, por um lado, aprendemos por nós mesmos a explorar contextos historica- 60 João Silvério Trevisan mente inéditos no território do desejo, por outro lado somos obrigados a siste- matizar de algum modo essa implementação inédita e assim “ensinar” a socie- dade a ver e ouvir a legitimidade de uma nova evidência social, à medida que se vão constelando os vários aspectos de uma cultura homossexual. Ser ho- mossexual é ser, concomitantemente, filho e pai de si mesmo. Nesse complexo quadro vivencial de necessidades e urgências, pode-se compreender como o círculo vicioso da falta de representatividade das lideran- ças precisa ser rompido para que a comunidade homossexual brasileira tenha finalmente voz autônoma que lhe permita adquirir uma dimensão política fundamental à sobrevivência do desejo e seus múltiplos desdobramentos, inclusive culturais. Só através desse duplo movimento em que se entroncam representatividade e autonomia é que se poderá abrir espaço para uma elabo- ração homocultural e, ato contínuo, poder sistematizar políticas de acordo com a realidade homossexual expressa nas e pelas elaborações homoculturais. A dimensão política da experiência homossexual precisa coincidir com a criação de um projeto de sociedade na qual cidadãos/ãs homossexuais caibam com suas diferenças e novidades, em todos os sentidos. Aí se devem incluir fatores diversificados. Primeiro, políticas públicas que contemplem as necessidades da comunidade homossexual, no sentido de atingir os pres- supostos de uma sociedade democraticamente representada. Esse projeto deve incluir também a autonomia da comunidade homossexual se organi- zando em esquemas autossustentáveis, como a criação de redes de solidarie- dade e comunicação (inclusive na Internet). Mais ainda: deve ampliar o espaço para estudos homossociais e homoeróticos, cujo exemplo mais significativo é a ABEH. Nesse sentido, urge criar canais para publicação e escoamento da cada vez mais ampla produção de pesquisas e estudos de abordagem homoerótica ou queer, seja através de revistas físicas, seja através de sites na Internet. Acrescente-se ainda a necessidade de mapear os modos de homocultura nas diversas regiões brasileiras, o que inclui o resgate da memória GLBT do país, por meio de registros audioimagéticos. E assim se seguirá um longo et coetera. Neste ponto, recorro ao testemunho de minha longa experiência como ativista dos direitos homossexuais, pela qual venho sempre pontuando a 61 Homocultura & Política Homossexual no Brasil necessidade e características libertárias de uma política homossexual. Olhan- do para o passado, a fim de iluminar o presente, ouso dizer que será preciso resgatar práticas dos primórdios do grupo Somos-SP, para de seus lamen- táveis escombros resgatar a ideia de autonomia dos movimentos sociais. A autonomia política era um ponto chave, corolário da orientação libertária do grupo, que nos guiava de modo soberano, no período inaugural do movimento brasileiro pelos direitos GLBT. O foco dominante era nosso repúdio a porta- vozes que secularmente tinham nos “representado” e interpretado – fossem eles padres, psiquiatras, juízes e acadêmicos no passado, ou partidos e lideranças no presente. Nossa compreensão era que se tratava de “usurpa- dores” que vinham usurpando as vozes individuais e ocupando indevidamente o lugar dos sujeitos de suas próprias histórias. Já em sua estrutura, o grupo Somos-SP se organizava nessa direção. Para evitar lideranças catapultadas por carisma ou por jogadas políticas, elegiam-se representantes dentro de cada subgrupo de trabalho, que iam compor o coletivo diretor do grupo. Mais ain- da: a cada três ou quatro meses, fazia-se uma reciclagem de poder, renovandoesse coletivo. Havia dentro do grupo uma constante preocupação política de diluição do poder – a partir, inclusive, do conceito (já então disseminado) de micropoderes, de Michel Foucault. Um dos termos discutidos e rejeitados era o chamado gay power, muito em voga no final dos anos 1970 e começo dos 1980. Acreditávamos que a concentração de poder começava pela delegação de poderes individuais. Portanto, considerávamos repugnante substituir um poder por outro, ainda que fosse pretensamente um “poder de dentro” – o que nos parecia um impedimento para diluir ao máximo os poderes e para manter a condição de sujeito desejante – dentro da comunidade homossexual. O embate fatal ocorrido dentro do Somos foi justamente entre essa corrente, que postulava uma inovadora prática libertária/autonomista, e outra corrente, que buscava a tradicional centralização do poder em torno de um partido político aliado – que, no caso, foi o recém-fundado Partido dos Trabalhadores, ao qual o Somos se alinhou e dentro do qual acabou desaparecendo. 62 João Silvério Trevisan Políticas homossexuais e novas práticas políticas Esse embate iria marcar o percurso e as características do movimento GLBT no Brasil, com a consolidação do alinhamento partidário que inúmeros militantes consideravam fundamental para a consecução democrática dos direitos homossexuais. Mas cabe aqui a pergunta óbvia, ainda que raramente feita: seria possível implementar políticas homossexuais só através dos partidos, delegando a eles a tarefa e o poder de lutar contra injustiças sociais? Claro que não. Caso contrário a sociedade civil seria mera espectadora da cena política e os movimentos sociais se tornariam dispensáveis, ao serem coopta- dos – como tem acontecido algumas vezes, quando partidos de esquerda to- mam o poder democraticamente. Nesse caso, apesar das aparências, esta- ríamos beirando um quadro de ditadura política, pela concentração de poder e manipulação das massas. Ao contrário da opinião disseminada, sobretudo entre as esquerdas ortodoxas, é preciso admitir que partidos não são a única maneira de fazer política. Basta verificar a decadência das ideologias mani- queístas que dividiam os partidos entre progressistas e conservadores. Muito além dos rótulos antigos, hoje o que se vê são partidos, supostamente de dife- rentes cores, agindo cada vez mais parecidos entre si. Podem até apresentar um discurso específico, mas sua prática acaba caindo na vala comum em que as ideologias alardeadas morreram. Isso tem ficado claro na gestão petista do governo federal, com paradoxos assustadores em relação àquilo que o partido prometia antes de chegar ao poder. Por um lado, a partir da derrocada dos sistemas comunistas, vem ocorrendo uma fragmentação ideológica e diver- sificação das lutas sociais que os partidos políticos não conseguem mais acom- panhar. Por outro lado, novos movimentos sociais começam a surgir como viveiros de ações políticas inéditas, independentemente e até contra orien- tações partidárias. Basta lembrar os movimentos antiglobalização que mar- caram época em todo mundo a partir dos anos 1990, com sua determinação combativa e espontaneidade organizativa, impulsionados pela indignação política de cidadãos/ãs comuns. 63 Homocultura & Política Homossexual no Brasil Faz-se premente a necessidade de inventar novas maneiras de fazer política, para rejeitar os métodos consagrados e já ultrapassados na política ortodoxa. Caso contrário, corre-se o risco de implantar na política homosse- xual os mesmos lemas que norteiam tendências, como o malufismo, com seu “rouba mas faz” e “estupra mas não mata”. Isso ocorre sempre que se pratica a perigosa orientação de que “os fins justificam os meios”. No interior do movi- mento GLBT têm ocorrido inúmeros casos que evidenciam como a capacidade de manipulação por parte das velhas lideranças está sendo confundida com perspicácia política. Lideranças GLBT surgidas na década de 1990 viveram uma contradição entre o atrevimento e a autossabotagem: mesmo diante de ativi- dades coletivas (como paradas GLBT), muitas vezes cultiva-se a ideia da visibi- lidade ao mesmo tempo em que se castram potenciais expressões individuais, graças ao gargalo estreito da própria militância homossexual. Para tanto, alguns pontos devem ser considerados. É fundamental romper o círculo vicioso da centralização das lideranças, que leva a seu iso- lamento, que por sua vez provoca o esvaziamento dos grupos liberacionistas e a pequena participação de sujeitos outros – tendo como corolário final a fra- gilização política da comunidade GLBT em si. Para tanto, será preciso que surjam novos tipos de liderança, mais conscientes de seu papel solidário, no sentido de modificar o padrão de grupos centralizados em torno de líderes caudilhescos – que já cumpriram sua função na história do movimento GLBT brasileiro e foram atropelados pelos fatos. Enquanto houver líderes de pre- sença centralizadora, o espaço da comunidade tenderá a encolher e, portanto, será mais medíocre a consciência política coletiva. Com base em experiências anteriores, é preciso reinaugurar o projeto de representatividade através de diretoria colegiada, com porta-voz rotativo. Também contam políticas de visibilidade efetiva, que se abram para a comunidade e privilegiem um ativis- mo amplo e irrestrito. Nessas propostas de renovação, algumas providências práticas podem ser tomadas. Destaco a importância de criar cursos de capa- citação de novos ativistas GLBT – projetos que podem ser levados a cabo pelas coordenadorias GLBT e entidades de direitos humanos, dentro ou fora do poder público, visando às necessidades da comunidade homossexual. 64 João Silvério Trevisan Hoje, felizmente, já existem exemplos concretos de políticas públicas voltadas para a comunidade GLBT, assim como importantes precedentes criados nas instâncias jurídicas. Mas, dentro dessas políticas públicas, é pre- ciso criar espaço institucional específico para implementar programas de política homossexual voltados para várias áreas carentes. Assim, é preciso pro- jetos de política anti-homofóbica na área da educação – atingindo escolas, polícias e serviços públicos, entre outros. Na área da saúde, é preciso ir muito além dos programas antiaids, para elaborar políticas que atendam mais direta- mente à comunidade homossexual – por exemplo, focando no problema social dos/as adolescentes homossexuais, dos michês e das travestis. Em relação às mídias, é preciso acionar o Judiciário ou utilizar as leis antidiscriminatórias já existentes para se contrapor à difamação da homossexualidade nos órgãos noticiosos – como já aconteceu em relação à Rede TV, em 2003, exemplar- mente punida pelo Ministério Público Federal, por ridicularizar homossexuais no programa de João Kleber. E, por último, mas não menos importante, ela- borar projetos públicos e privados que visem ao combate da discriminação nos locais de trabalho. Conclusão De qual política se está falando? Antes de mais nada, trata-se de romper o círculo vicioso da inclusão que leva à diluição. Como sermos socialmente incluídos sem perder nossa capacidade de transformar? No atual momento de articulação democrática, em que já se iniciou a implementação de políticas GLBT, o movimento pelos direitos homossexuais encontra-se na encruzilhada entre o mercado e as razões governamentais ou partidárias. Tem diante de si duas alternativas: a subserviência ou as alianças. Isso quer dizer que continua palpitante a questão da autonomia política. Em outras palavras: integrar-se ou desintegrar? Tal dicotomia precisa ser rompida. Somos parte da sociedade e precisamos de alianças/parcerias para conquistar nossos direitos. Portanto, a única possibilidade de sobrevivência de nosso desejo é nos integrar para 65 Homocultura & Política Homossexual no Brasil poder manter nosso potencial desintegrador da injustiças contra o amor – em relação tanto ao Estado quanto aos partidospolíticos. A partir daí, conquistar espaço social para que nosso desejo ultrapasse os parâmetros culturais impos- tos para freá-lo. Governos e partidos aliados têm que assumir definitivamente que “a problemática homossexual é uma poderosíssima metáfora dos direitos humanos nas décadas futuras”, conforme as palavras da socióloga Sílvia Ramos. Aí está nosso ponto identitário básico: a luta pelo direito humano de amar. Tenho convicção de que a participação transformadora da comunidade GLBT na vida social, com suas potencialidades disruptivas, poderá ser um instrumento para desintegrar os velhos vícios que oprimem o nosso amor e também outras questões relacionadas à subjetividade em si. A partir da expe- riência de discriminação que sofremos, nós homossexuais podemos transfor- mar em objetivo político a arte de aceitar as diferenças. Trata-se de uma uto- pia, no sentido de um sonho irrealizável? Obviamente não. Trata-se tão- somente da nossa capacidade de alavancar a subversão desejante, na busca de um mundo melhor e mais democrático. Que não se menospreze a força do desejo, capaz de mover montanhas. 67 1. Universidade de São Paulo. Direitos Humanos e Estudos Gays e Lésbicos: O que Nós e Michel Foucault Temos a Ver com Isso? MÁRIO CÉSAR LUGARINHO1 Em tempos de crise do processo de globalização, que até há alguns meses poderia ser qualificado como incontornável e irreversível, o tema dos direitos humanos ganha força para além das formações discursivas em que se apoiou nas últimas seis décadas. A genealogia do tema confronta-nos com a história da humanidade, na medida em que pode ser traçada desde antes da revolução de 1789, ao serem requeridas como seus antecedentes o direito romano e as grandes religiões do oriente, como o hinduísmo, o judaísmo, o budismo, o cris- tianismo e o islamismo. Em todos esses momentos da história da humanida- de, a dignidade humana foi colocada acima de qualquer outro preceito, es- tabelecendo formas de convivência seguras e pacíficas para as diversas comunidades. No entanto, é importante deixar claro que entre a Declaração dos Direi- tos do Homem e do Cidadão, que data de 26 agosto de 1789, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada como a carta maior das Nações Unidas, pela Resolução nº 217 da Assembleia Geral, em 10 de dezembro de 1948, encontra-se um imenso terreno pleno de eventos e transformações históricas que não nos cabe arrolar neste pequeno espaço. Vale apenas assi- nalar que a declaração francesa era composta por dezessete princípios que norteariam a organização do novo Estado revolucionário francês. A Carta da 68 Mário César Lugarinho ONU, como ficou conhecida, em contrapartida, passou não apenas a reger as relações inter-Estados, mas também a organização interna dos Estados membros da ONU, na medida em que a promoção da dignidade humana, após o terror da Segunda Grande Guerra, teria o reconhecimento mútuo das nações como o princípio gerador dos Estados. Contudo, e por isso tudo, o tema dos direitos humanos tornou-se discurso e moeda de troca entre a instituição “Estado” e a própria humanidade2. O consenso internacional a respeito da legitimidade do tema dos direi- tos humanos é hoje, mais do que nunca, moeda de troca (Mullins, 2005). Seja quando esses direitos são invocados para justificar a intervenção internacional na política interna de um Estado, seja quando são invocados por movimentos de resistência àquelas intervenções. Justificam, sustentam, garantem, supor- tam, avalizam ou simplesmente detonam reações internacionais às mais diversas e contraditórias causas, desde a independência do Timor Leste à invasão do Iraque, demonstrando que a humanidade não compôs a seu res- peito um solo comum no qual o discurso em torno do tema dos direitos huma- nos poderia deitar raízes. Contemporaneamente, após seis décadas desde sua promulgação, o dis- curso e a ação relativos aos direitos humanos tornaram-se um traço central da globalização. Greg Mullins sublinha que muitos partidários da globalização econômica alegam que mercados livres levarão a sociedades livres, e que o res- peito pelos direitos humanos aumentará nessas sociedades. Mullins assinala, ainda, que os críticos respondem que a globalização econômica corrói direitos humanos fundamentais, e que deveriam ser garantidos pelos Estados sobera- nos, tais como o direito à educação, saúde, moradia, emprego, um meio am- biente limpo, o direito à livre expressão e à livre associação em sindicatos tra- balhistas. Em contrapartida, alguns ativistas antiglobalização usam a força da linguagem dos direitos humanos para resistir à privatização, proteger o meio 2. Um dos diversos casos paradigmáticos foi a ação do Estado português, que, em 1951, visando a atender às disposições da Carta da ONU, passou a denominar o Império colonial português de “províncias ultramarinas”, numa desesperada tentativa de preservá-lo ao alçar seus territórios coloniais à categoria de espaço nacional. 69 Direitos Humanos e Estudos Gays e Lésbicos ambiente, exigir transparência e prestação de contas dos Estados e das corpo- rações, e para reivindicar o direito de organização sindical. O autor conclui que, por esse ponto de vista, os direitos humanos são uma tática usada para promo- ver a “globalização vinda de baixo”. Por outro lado, outros ativistas antigloba- lização entendem que os direitos humanos são uma parte do problema, já que, para eles, o discurso dos direitos humanos está demasiado ligado à ideologia liberal dos Estados ocidentais – os mesmos Estados que promoveram vigoro- samente as políticas econômicas neoliberais que provaram ser devastadoras às populações vulneráveis de todo o mundo. Desse modo, as demandas ocidentais por democracia e direitos humanos são uma forma de imperialismo cultural que dá um verniz moralista (e hipócrita) ao imperialismo político, econômico e militar, tal como se verificou no alvorecer do século, quando os Estados Uni- dos invadiram, sem consenso internacional, o Estado soberano do Iraque. Apesar de toda essa discussão, no entanto, a efetivação evidente de uma política interna que promova os direitos humanos no interior dos Estados, e o modifique de maneira que atenda às necessidades de seus cidadãos, ainda é fato passível de dúvida para a maior parte das nações. Poucos Estados, ou cer- tamente nenhum, poderão ser apontados como aqueles que cumpriram sua parte no desenvolvimento de uma política que promova a dignidade humana em todos os seus matizes. Mesmo se pensarmos nas nações mais ricas do pla- neta, como acentua Mullins, observaremos que faltam políticas claras para a recepção de populações oriundas de movimentos de emigração ou para outras formas de minorias que não comungam imediatamente dos ideais de homoge- neização que se encontram no cerne da formação do Estado-nação moderno. Porque certo é que, enquanto o modelo de Estado estiver calcado no modelo da nação homogeneizada e identificada por etnias ou por certas práticas culturais, haverá a exclusão de indivíduos e grupos de seus direitos fundamentais. Nos tempos em que vivemos, de um Estado democrático de direito, padrão internacional que atende tanto às demandas do capital quanto às sociais e individuais humanas, um senso de justiça se espraia para além dos aparatos políticos e encontra na própria sociedade e no indivíduo o suporte natural. Mas é preciso ter em conta que aqui também nos defrontamos com 70 Mário César Lugarinho atitudes e perspectivas contraditórias, incapazes de estabelecerem uma dire- triz segura para a convergência de interesses. Daí a constituição de grupos so- ciais organizados que buscam a legitimação de suas demandas, notadamen- te por justiça, na medida em que o conceito político de cidadão se confundiu, decididamente, com o conceito de indivíduo. Assim, qualquer grupo orga- nizado, em torno de uma demanda comum, pode requerer à sociedade e ao Estado seu estatuto de reconhecimento, eestabelecer políticas claras que atendam às suas aspirações, agora, legítimas. No entanto, por nos inserirmos na instituição universitária, na qual a crítica literária parece se desenvolver de maneira autônoma à série social, é preciso constituir uma reflexão que se desenvolva bem além da experiência cotidiana e do senso comum que envolvem os discursos. A cultura, espaço macroestrutural em que se movem os discursos cambiantes a respeito dos direitos humanos, urge um maior comprometi- mento e uma sinalização para as contradições que engendram os equívocos discursivos e ações que violentam sobremaneira quaisquer esforços de promo- ção da dignidade humana. Sem sombra de dúvidas, é preciso assinalar que o engajamento neste esforço não poderá ser desqualificado por quaisquer dis- cursos que se oponham a um comprometimento das forças promotoras da cultura em nome de algum valor estético destituído de sentido. A arte pela arte só poderá ser compreendida como momento de experimentação e invenção de procedimentos capazes de libertar os sentidos das forças conservadoras que o aprisionam na manutenção do status quo. Dessa maneira, quando a arte, em geral, e a literatura, em especial, promovem um sentido calcado na dignidade humana, podemos observar, com os mecanismos possibilitados por uma crítica destituída de pudores, que se está levando ao centro da discussão, sobretudo, a capacidade de a obra gerar algum sentido que retorne a seu receptor, de maneira que ele se veja confron- tado com as estratégias de silenciamento de sentidos que forças dominantes, comprometidas com o status quo, são capazes de levar a cabo. Assim, é pos- sível se ler, ao mesmo tempo, em Os Lusíadas, por exemplo, tanto o canto de louvor à conquista do Império, quanto à sua crítica, tanto o canto da violência, 71 Direitos Humanos e Estudos Gays e Lésbicos quanto o canto da brandura, deixando clara a inerente contradição humana e a perseguição pela felicidade. Assim, invocamos o Saint Foucault, de David Halperin (1986), para podermos realmente observar como a obra de arte literária, e principalmente a sua crítica, podem e devem se confrontar com o engajamento claro, sem os pudores que envolveram a crítica nos últimos anos. Recordo aqui a querela entre modernos e pós-modernos, entre estruturalistas e culturalistas, entre a tradição e a vanguarda, de maneira que os embates teóricos simplesmente silenciavam demandas legítimas de grupos que ansiavam por formas de representação no estatuto literário. Carecemos no Brasil de reflexão acadêmica mais extensa que dê suporte aos movimentos sociais, demonstrando o claro divórcio entre a universidade, espaço privilegiado para o desenvolvimento de um pensamento crítico a respeito da sociedade, e os movimentos sociais, capazes de alavancarem as transformações políticas, sociais e culturais por eles almejadas. Muitos moti- vos podem ser arrolados para tanto, mas, certamente, do lado da crítica lite- rária, o divórcio é resultado do apego à tradição e do desprezo pela ousadia do contemporâneo. A recepção da obra de Michel Foucault no Brasil introduziu-o no circui- to canônico das ciências humanas, porquanto a pedra de toque de seu pensa- mento teria sido sua revisão destas mesmas ciências. Não se trata de discor- dar ou concordar, mas de observar que nos faltou uma dimensão mais ampla, mais social e politicamente engajada do pensamento de Foucault. Talvez nos tenha faltado sua dimensão mais apropriada de historiador do presente, como queria Antoine Griset (1986), de pensador da contemporaneidade. Michel Foucault, o historiador do presente, revela-se como um manan- cial de instrumentos para a crítica de nossa sociedade e de nossa cultura contemporâneas, seja na revisão de Toni Negri e Michael Hardt (2000), seja na própria perspectiva de David Halperin (1986), que é a que mais nos inte- ressa, na medida em que reinvindica o pensamento de Foucault tanto para o desenvolvimento dos estudos gays e lésbicos na universidade norte-americana quanto para o movimento homossexual norte-americano. 72 Mário César Lugarinho Halperin assinala a importância fundamental que a História da Sexua- lidade, I – A Vontade de Saber desempenhou para os ativistas homossexuais na luta pela vida diante da epidemia de aids nos Estados Unidos. A instru- mentalização do conceito de poder, entendido não como uma relação unívoca entre o opressor e oprimido, mas como o que caracteriza as relações comple- xas entre as partes de uma sociedade e a interação entre indivíduos de uma so- ciedade, através de ações radicais como o Act up3, foi mais eficaz política e socialmente para mudar a atenção por parte do Estado norte-americano à epidemia de aids do que talvez toda a discussão a respeito da morte do sujeito, que custara às universidades, nos anos 1970, inúmeras páginas de artigos, te- ses ou monografias e horas incontáveis de seminários. O que Foucault ofere- ce aos grupos que são alijados das relações de poder é efetivamente o acesso às práticas discursivas, o que, desde pelo menos a composição de sua genea- logia e sua atenção à Nietzsche, significava a possibilidade de dominar o jogo da história, como em um de seus mais citados trechos: O grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utilizá-las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto; de quem, se introduzindo no aparelho complexo, o fizer funcionar de tal modo que os dominadores encontrar-se-ão dominados por suas regras (Foucault, 1979, p. 46). 3. Em meados dos anos 1980, ante o descaso do governo norte-americano com a epidemia de aids, que naquela altura era reconhecida como exclusiva dos chamados “grupos de risco”, homossexuais organizados lançaram a campanha do Act up, que consistia em ações efetivas de “denúncia” de indivíduos “into the closet”, isto é, que escondiam sua orientação sexual. A ação, considerada num primeiro momento como difamatória, levou inúmeras figuras públicas da sociedade norte-americana a manifestarem publicamente sua solidariedade aos homossexuais e apoiarem a reivindicação de mais apoio e financiamento a pesquisas para a cura da aids. Vale assinalar que os efeitos do Act up foram potencializados pela morte de várias figuras públicas por conta da doença. 73 Direitos Humanos e Estudos Gays e Lésbicos Quando são nomeados em sua excepcionalidade, ou perversidade, é que os homossexuais podem acessar as formações discursivas e requererem não só sua identidade específica, mas também as próprias formações discursivas que, no interior da História, os conforma e por eles são suplantados. Os mili- tantes norte-americanos apropriaram-se, em vista disso, do termo queer para designar o sujeito que se constitui a partir de sua diferença. Não é demais assinalar que a palavra queer, em inglês, costumava designar o excêntrico e o abjeto, o estranho e o ínfimo, e que, por isso, designava, pejorativamente, o homossexual. O processo de apropriação do termo resultou numa ressigni- ficação expressiva, dando um novo estatuto aos indivíduos identificados a partir de uma sexualidade excêntrica que se convertia em sujeito e objeto da produção de conhecimento. Nesse sentido, quando Halperin assinala a impor- tância para os militantes homossexuais americanos do primeiro volume da História da Sexualidade, não está simplesmente se utilizando de um jogo retórico. A ação política possível encontrada por este grupo segue de perto a lição foucaultiana, desviando decididamente seu pensamento das cátedras universitárias para as práticas sociais e políticas, bem além do que se encon- trava convencionado entre esquerda e direita naqueles anos. É a partir desta reflexão que podemos ler, interpretar, problematizar, ou mesmo desconstruir algumas obras de arte num contexto diverso do que aquele que a crítica costuma ler. Se abandonarmos os critérios estipuladospor uma história interna da literatura e da arte e nos dirigirmos para as lições tardias do formalismo russo, quando Tinianov observou a íntima relação entre as séries literárias e social, recuperaremos formas vigorosas do pensamento crítico que deslocam a atenção do intrinsecamente literário para a compreen- são de que as formas de representação da cultura são, na verdade, modos de interpretação da cultura que problematizam, sobretudo, o status quo. Sem sombra de dúvida, tal procedimento crítico coloca em evidência o caráter revo- lucionário e excêntrico de toda obra de arte, seguindo de perto tanto as lições do formalismo russo, quanto da chamada Escola de Frankfurt ou dos cul- turalistas contemporâneos. A ressalva única que deve ser feita é, como atenta Terry Eagleton (1993), o comprometimento com o inconformismo diante da 74 Mário César Lugarinho urgência histórica determinada pelos (des)caminhos do capitalismo tardio. A ação produtiva do crítico, em vez de retornar para o campo de onde a crítica se origina, passa, assim, a apontar para os círculos mais exteriores e amplos da cultura, visando ao amálgama do campo estético com o político. Se em décadas anteriores essa perspectiva teórica determinava um alinhamento partidário e ideológico, hoje, decididamente, deve estabelecer o comprometi- mento com a dignidade humana. A História da Sexualidade I, no momento de sua publicação, a segunda metade dos anos 1970, época de um discurso de liberação homossexual, não correspondia aos anseios de liberação e de contracultura daquele momento. Halperin dá-nos a entender que apenas diante da urgência histórica da epide- mia foi que se compreendeu o sentido de sobrevivência e resistência que a “vontade de saber” apresentava frente à onda de homofobia que varreu os anos 1980 e que insiste em se manter viva ainda hoje. O nascente movimento homossexual brasileiro no fim dos anos 1970 não ficou alheio à História da Sexualidade I. A primeira edição brasileira veio a público em 1977, pela editora Graal, do Rio de Janeiro, e mereceu a atenção quase que imediatamente da nascente classe dos intelectuais homossexuais daqueles anos. Em julho de 1978, ainda em plena ditadura militar, o Lampião da Esquina, jornal da imprensa alternativa, de circulação nacional, dirigido principalmente ao público homossexual, publicou uma pequena resenha sobre o volume primeiro da História da Sexualidade. A resenha é despretensiosa, porque muito acadêmica, mas não deixa de destacar a importância daquela publicação para a melhor compreensão não apenas da recepção do pensamen- to de Foucault no Brasil, mas, sobretudo, para a compreensão, na universi- dade, do próprio fenômeno histórico da homossexualidade – que, naquela altura, ainda era tema tabu, com rara frequência nas áreas médicas, jurídicas e psicológicas. No entanto, a tradição acadêmica foi mais poderosa e a vontade de saber não conseguiu operar uma ação efetiva imediata, como veio a se dar na década seguinte nos Estados Unidos. Com essa perspectiva, fica evidente o epíteto de “década perdida” que os anos 1980 receberam. Talvez porque precisássemos aprofundar a reflexão 75 Direitos Humanos e Estudos Gays e Lésbicos acerca do pensamento de Foucault e decidir, após o fim da ditadura militar, entre os variados modelos de instituição universitária; talvez porque se obser- vassem os impasses filosóficos a que chegávamos pela excessiva adesão ao pensamento pós-estruturalista francês. De qualquer maneira, é certo que apenas no correr dos anos 1990 foi possível operar uma mutação expressiva no cerne da crítica literária a fim de que sua contribuição fosse efetiva para a própria reconstituição do conceito de literatura e sua aplicabilidade, além da própria reconstrução social almejada. À parte Antonio Candido, quem mais pensou em direitos humanos e literatura no Brasil? A resposta é certamente reticente... Ou nos debruçamos com dificuldades sobre o banco de dados do currículo lattes, ou ficamos em silêncio, envergonhados. Parece-me que, há muito tempo, o engajamento da crítica literária saiu de moda e ficamos, nós críticos, confortavelmente, refes- telados em almofadas. Onde a ousadia da crítica, onde a ousadia da literatura? Não fosse Roberto Schwarz, onde estaria ainda a obra de Paulo Lins? Pre- cisaremos, para os estudos gays e lésbicos, no Brasil, de um crítico desta esta- tura para acreditarem que a obra e a crítica existem e resistem? Até quando precisaremos das redes subterrâneas da solidariedade? Não creio na utopia e tampouco nas utopias, mas creio na atividade diária da revisão de paradigmas possibilitada pela experiência cotidiana. A oportunidade de, agora, pensar de como a literatura, digo, a crítica literária pode promover os direitos humanos no solo dos estudos gays e lésbicos é por demais necessária e bem-vinda; enfim, é a ousadia sonhada. Ações isoladas e mesmo coletivas não conseguiram ainda estabelecer formas homogêneas de ação dos aparelhos estatais e tampouco dos aparelhos sociais e culturais. Tudo parece um jogo de cena. Como o da ditadura do Estado novo português diante da Carta da ONU, construímos a maior passeata gay do mundo, mas seus efeitos são invisíveis no dia seguinte. Preferimos a festa ao massacrante cotidiano da luta pela emancipação social e política. Pensamos na visibilidade da comunidade, festiva e celebrativa, mas deixamos de lado a visibilidade do indivíduo, que é seu direito incontornável de cida- dania. Construímos um dos mais ambiciosos programas de prevenção e tra- 76 Mário César Lugarinho tamento da aids no mundo, mas deixamos de lado a memória e a reflexão acerca da epidemia que já atingiu quatro gerações de homossexuais brasilei- ros. Quantas teses e artigos poderemos contar diante do crescente número de publicações e produção acadêmicas dos últimos trinta anos acerca do tema da aids e da diversidade (homo)sexual? Quantas vezes um pesquisador se reco- nheceu diante do tema? Até quando só daremos o privilégio a Bom Crioulo ou a Caio Fernando Abreu? Onde, enfim, a ousadia pelo engajamento? É direito de todo homem o conhecimento, o saber e a educação. É esse nosso papel, en- fim, cumprirmos tal requisito? Referências bibliográficas EAGLETON, Terry. A Função da Crítica. São Paulo, Martins Fontes, 1993. FOUCAULT, Michel. “Nietzsche e a genealogia”. In __________. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979, pp. 25-26. GRISET, Antoine. “Foucault: Um Projeto Histórico”. In LE GOFF, Jacques et al. A Nova História. Lisboa, Edições 70, 1986, pp. 57-65. HALPERIN, David. Saint Foucault: Towards a Gay Hagiography. New York, Oxford University Press, 1995. HARDT, Michael & NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro, Record, 2000. MULLINS, G. Novos Horizontes para a Literatura e os Direitos Humanos. Conferência no Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, 31 ago. 2005. TORRES, S. & MULLINS, G. (eds.). “Letras e Direitos Humanos”. Cadernos de Letras da UFF, n. 33, 2006. 77 1. Coordinadora del área “Tecnologías do género” del Centro Cultural Rector Ricardo Rojas (Universidad de Buenos Aires). Docente de Teoría General del Derecho (UBA), codirectora del proyecto UBACYT “Narración y Representación de los Cuerpos y de la Violencia” del Instituto de Investigaciones Gino Germani de la Facultad de Cs. Sociales (UBA). Constâncias PAULA VITURRO1 ¿Qué pasa cuando la “experiencia” se vuelve ontología, cuando la “perspectiva” se vuelve verdad, y cuando ambas devienen una en el Sujeto Mujer y se codifican en el derecho como derechos de las mujeres? Wendy Brown, Lo que se Pierde con los Derechos. El conocimiento naturalizado del género funciona como una circunscripción con derecho preferente y violenta de la realidad. Judith Butler, El Género en Disputa. El presente trabajo es una reflexión acerca del uso que se hace en ámbitos institucionales – en especial los académicos – de la expresión “perspectiva de género”. El objetivo es mostrar, apartir de la utilización de herramientas teóricas propias de las teorías feministas, queer y trans, cómo el uso acrítico de la expresión da lugar a un truismo que genera construcciones dogmáticas de complejas – y a veces disvaliosas – con consecuencias jurídico-políticas para el activismo antidiscriminación. Desde hace un tiempo – más o menos largo según la latitud y longitud de la coordenada geopolítica en la que nos encontremos – circula insistentemente 78 Paula Viturro por los ámbitos institucionales una expresión – “perspectiva de género” – cuya significación epistemológica e implicancias políticas suele ser soslayada. Tal vez ello se deba a que se trata de una frase respecto de la cual, cualquier persona del ámbito jurídico cree tener por lo menos alguna vaga idea o intuición acerca de lo que su uso parece implicar: el reconocimiento de la Mujer, las mujeres, las mujeres feministas, el Feminismo, los feminismos, la diferencia sexual... Al parecer, también es extendida la creencia según la cual cualquier política pública, sentencia judicial, publicación doctrinaria, congreso, confe- rencia, o diseño curricular – por citar solo algunos ejemplos –, que hoy en día aspire a un lugar entre las producciones progresistas de la cultura, debe tener la precaución de incorporarla. Es por lo tanto una expresión que prima facie parece contar con una carga valorativa favorable aunque más no sea en el registro de lo políticamente correcto. Sin embargo, y no obstante el halo de autoevidencia que parece rodear a la frase “perspectiva de género”, cualquiera que se inicie en las discusiones teórico políticas respecto del concepto de género, rápidamente advertirá que se trata de una expresión resbaladiza, que suele funcionar en los discursos institucionales – en especial el jurídico – como un truismo que oculta más de lo que muestra, y que da lugar a complejas y gravosas consecuencias políticas para quienes pretende favorecer. Si treinta años atrás la discriminación por género podía tal vez inge- nuamente remitir a la discriminación de “las mujeres”, hoy en día dicha asociación tácita sólo se sostiene por la persistente invisibilización de la violencia que implica el presupuesto normativo según el cual el género no sería más que los atributos culturales asociados a los sexos. Así, al asumir como fundamento de la representación una definición de género que deja en suspenso preguntas referidas a cómo se asignan los sexos, instauramos la diferencia sexual como un dato natural irreductible y excluido del debate en torno de los valores y la justicia. Dicho en otras palabras, la consecuencia de establecer como base de un reclamo legal un concepto de género que no cuestiona la distinción natura- 79 Constâncias 2. “Es evidente que existe un crecimiento progresivo de normas, instituciones y procedimientos que tiene como fin alcanzar la efectiva protección de todos los derechos y libertades de mujeres y hombres. Este desarrollo es lento, porque muchas veces los gobiernos no se ponen de acuerdo”. Cf.: Fabián O. Salvioli para IIDH, Curso Básico sobre el Sistema Universal de Protección de los Derecho Humanos de la Organización de Estados Americanos, disponible en: www.iidh.ed.cr/ CursosIIDH. “He argumentado para demostrar que la progresividad es una nota propia y resaltante del sistema de protección de derechos humanos. ¿Se trata de una nota exclusiva? Seguramente no. Ella está presente a menudo en lo que podría llamarse el Derecho protector, como el Derecho del Trabajo, que se ha abierto paso a través de la ilegalidad, o el Derecho de Menores”. Cf.: Pedro Nikken, Introducción a la Protección Internacional de los Derechos Humanos, XIX Curso Interdisciplinario en Derechos Humanos, 19 al 28 de julio de 2001, San José, Costa Rica. leza/cultura, es la legitimación de la jerarquización, la discriminación y la violencia que sufren todas aquellas personas cuyos cuerpos no son inteligibles bajo ese esquema. Los cuerpos no son el último reducto de la naturaleza, sino “pantallas en las que vemos proyectados los acuerdos momentáneos que emergen, tras luchas incesantes en torno a creencias y prácticas dentro de las comunidades académicas” (Stone, 2004, p. 28). Aquí obviamente es ineludible la remisión a la crisis fatal que los cues- tionamientos de las feministas negras y lesbianas – y más contemporánea- mente del activismo queer, trans e intersex, entre otros –, plantearon a las concepciones de los estudios tradicionales de género. No se trata por lo tanto de sostener el mito de una historia lineal que en su desarrollo iría sumando progresivamente subalternos a la lucha por la ciudadanía, como por ejemplo, parece irreflexivamente afirmar cierta dogmática de los derechos humanos mientras se desentiende del costo humano efectivo causado por la selectividad temporal entre diferentes planes de vida, que dicha progresividad esconde2. Como sostiene J. Butler, no contamos con una historia acerca de cómo se pasa de la teoría feminista a la queer y de allí a lo trans (Butler, 2004, pp. 4 y sig.). De hecho sería un error creer que se trata de un gran relato en el que los diferentes marcos teóricos se suceden temporalmente de forma comple- mentaria. Por el contrario, estos relatos están sucediendo de manera simul- 80 Paula Viturro 3. “¿Cuál es la regla de formación del discurso jurídico que al mismo tiempo entrelaza y criba otros discursos, los incorpora y expulsa a la vez de su dominio, los aplica y debilita, los integra y frustra, organiza su campo semántico con ellos y los desconoce acto seguido para lograr la identidad de su especificidad?”. Cf.: Enrique E. Mari, Moi, Pierre Rivière… y el Mito de la Uniformidad Semántica de las Ciencias Jurídicas y Sociales. Papeles de Filosofía, Buenos Aires, Biblos, 1993, p. 252. 4. Una buena compilación de trabajos referidos a esta cuestión es la de Wendy Brown y Janet Halley (eds.), Left legalism/left critique, Durham/London, Duke University Press, 2002. tánea, superpuesta y contradictoria en un complejo entramado político en per- manente disputa. Nuestra tesis es que la forma en la que se disciplinan en el ámbito aca- démico, los saberes referidos al vasto campo de lo que hasta el momento – en un gesto de simplificación – hemos denominado género, tiende a la instaura- ción de un canon que incorpora ciertos saberes a costa de la negación de otros (Franke, 2003), que quienes nos comprometemos con la educación antidiscri- minatoria debemos resistir. Tal vez ello se deba al particular funcionamiento del discurso jurídico, basado en el “mito de la uniformidad semántica de las ciencias sociales”, tal como sugestivamente lo teorizara Enrique Marí. Según este autor, la identidad o coherencia interna del campo semántico del discurso del derecho es el resul- tado de un proceso de producción caracterizado por un incesante tráfico de discursos disciplinares de diferente origen, forma y función que si bien fijan y determinan las condiciones de posibilidad de surgimiento material del dis- curso jurídico, son finalmente eludidos o desconocidos por este3. Si además tomamos en serio la hipótesis del movimiento Critical Legal Studies (Kennedy, 2001, p. 373), según la cual las facultades de derecho son la primera usina del orden jerárquico que rige el funcionamiento de los siste- mas jurídicos contemporáneos, quienes pertenecemos al activismo sociose- xual antidiscriminación estamos frente a un situación difícil. De forma ineludible, la crítica al derecho nos remite a la angustiante y recurrente pregunta referida a la conveniencia política de la utilización del mismo ante situaciones concretas de exclusión4. 81 Constâncias 5. “[...] país donde el reconocimiento de la identidad de género de las personas trans requiere la realización imperativa de cirugías de modificación corporal, incluida la esterilización; donde niños intersex son sometidos a cruentos procedimientos de normalización, que incluyen, sistemáticamente,405 Coisas de Viado! YANN BEAUVAIS ..................................................................................... 419 Cenas Paralelas: Do Arcaico ao Pós-moderno nas Representações do Gay no Teatro Brasileiro Contemporâneo FERDINANDO MARTINS ........................................................................... 433 Camp, Paródia e Violência em Astrid Haddad por Las Hermanas Vampiro MAURÍCIO DE BRAGANÇA ........................................................................ 445 Corpo e Fotografia em Erwin Olaf: Estudos Contemporâneos WILTON GARCIA .................................................................................... 457 Retratos “Intersecção no Concreto” – FERNANDO MARQUES PENTEADO ............... 471 “Fernando Penteado: Das Sutilezas Esmagadoras” – MARCELO AMORIM ................................................................................. 476 “So Hard” – VITOR MIZAEL ................................................................... 480 9 Brokeback Mountain e a Desconstrução do Ideal Homoafetivo VALTER BARROS MOURA ........................................................................ 485 Parte IV Homocultura e Mídia Impressões de Identidade: Os Caminhos da Imprensa Gay Nacional JORGE CAÊ RODRIGUES ......................................................................... 499 Eu Sou Homem com “H”: As Representações de Virilidade nas Capas da G Magazine FÁBIO RONALDO DA SILVA E ROSILENE DIAS MONTENEGRO ........................ 509 A Propaganda Contraintuitiva e seus Efeitos na (Des)construção do Estereótipo Homossexual FRANCISCO LEITE .................................................................................. 519 Homossexualidade e Nudez em Revistas Brasileiras GRAZIELA ZANIN KRONKA ....................................................................... 529 Identidade Capturada: A Parada do Orgulho Gay de São Paulo de 2007 nos Telejornais IRINEU RAMOS RIBEIRO .......................................................................... 539 Os Homossexuais na Mídia Segundo Militantes, Acadêmicos e Jornalistas FERNANDO LUIZ ALVES BARROSO ............................................................ 549 A Representação da Homossexualidade na Telenovela Duas Caras LEANDRO COLLING E CAIO BARBOSA ....................................................... 561 Um Romeu e Julieta para Evelyn? Romances e Tragédias Urbanos em Páginas Policiais LUIZ CLÁUDIO KLEAIM E MARIA INÊS VANCINI SPERANDIO ........................... 583 Homoerotismo nas Tirinhas de Jornal LUIZ GUILHERME COUTO PEREIRA ........................................................... 599 10 Desejo, Imagem e Cultura Gay Contemporânea: Uma Antropologia da Comunicação Marginal MARCOS AURÉLIO DA SILVA..................................................................... 605 Identidade de Gênero e Discriminação Social: A Representação da TV em Questão MARY RANGEL E MARCIO CAETANO ......................................................... 617 Mídia e Homofobia: Aproximações MICHELLE MÁRCIA COBRA TORRE............................................................ 627 Publicidade e Heteronormatividade VINICIOS KABRAL RIBEIRO ...................................................................... 637 Parte V Homocultura e Contexto Escolar “Monalisa” e Homossexualidades: Jogos Discursivos e de Poder na Construção das Identidades no Contexto Escolar ANDERSON FERRARI .............................................................................. 647 Homosexualidad, Educación y Discriminación: Escuelas Inclusivas JUAN CORNEJO ESPEJO ......................................................................... 657 Diversidade Sexual na Escola ALEXANDRE BORTOLINI ........................................................................... 667 Professores Frente à Diversidade Sexual: Uma Questão dos Sujeitos na Formação Profissional ANDRÉ HELOY AVILA .............................................................................. 687 Novos Desafios e Demandas à Comunidade Escolar: A Escola e a Educação de Crianças Adotadas por Famílias Gays ADOLFO IGNACIO CALDERÓN, MICHEL MOTT, ANGÉLICA A. CURVELO ALVES E ANA CAROLINA DE LIMA .......................................................................... 695 Corpos Estranhos à Margem: A Homossexualidade no Cotidiano Escolar Brasileiro EDER R. PROENÇA E MARCOS ANTONIO DOS S. REIGOTA .......................... 705 11 A Arte-Educação como Instrumento Significativo de Diminuição da Evasão Escolar da População LGBT JOÃO BATISTA DA SILVA JUNIOR ............................................................... 717 Aspectos da Homossexualidade sob a Ótica da Dominação Masculina de Bourdieu JOSÉ GUILHERME DE O. FREITAS E MÔNICA PEREIRA DOS SANTOS ............ 727 Parte VI Homocultura, Psicologia e Saúde Pública Homoparentalidade e Práticas Sutis de Discriminação à Diversidade Sexual: Um Estudo de Caso LINDOMAR EXPEDITO S. DARÓS .............................................................. 741 Psicologia, Homofobia e Processos de Subjetivação: Impactos da Resolução 001/99 do Conselho Federal de Psicologia LUAN CARPES BARROS CASSAL, CAROLINA MOREIRA RIBEIRO, RAQUEL MARIA FERREIRA DE MENEZES, LUCIANA FRANCEZ CARIELLO, CARLOS EDUARDO LOURENÇO DOS SANTOS NÓRTE E PEDRO PAULO GASTALHO DE BICALHO .......................................................................... 753 Club Drugs e Homocultura VIRNA TEIXEIRA ..................................................................................... 763 Conhecimento de Jovens Homens que Praticam Sexo com Outros Homens Sobre Doenças Sexualmente Transmissíveis/Aids e Aderência ao Sexo Protegido HUGO FERNANDES ................................................................................. 775 Parte VII Homocultura e Catolicismo Homossexualidade e Contra-Hegemonia no Catolicismo LUÍS CORRÊA LIMA ................................................................................ 791 Sociedade Moderna e Conceito do Mal: Socialização e Inclusão Perante a Escolha Homossexual HERMIDE MENQUINI BRAGA .................................................................... 799 12 Religião, Gênero e Diversidade Sexual: Refletindo Sobre Violência Simbólica e Exclusão VALÉRIA MELKI BUSIN ............................................................................ 811 Parte VIII Homocultura e Universo Trans Criando Gênero, Fazendo História CLAUDIA WONDER ................................................................................. 833 Travestis: Retratos do Brasil ELIANE BORGES BERUTTI ....................................................................... 843 O Cliente Militar SARUG DAGIR RIBEIRO........................................................................... 853 Travestis, Cuidado de si e Serviços de Saúde: Algumas Reflexões WILIAM S. PERES .................................................................................. 869 Mover-se é Luxo: Travestis Brasileiras e o Mercado Transnacional do Sexo. Restrições, Desafios e Direito no Cenário Europeu Contemporâneo LARISSA PELÚCIO .................................................................................. 887 Parte IX Homocultura e Lesbianidades Assimetrias de Poder na Militância entre Gays e Lésbicas TÂNIA PINAFI ......................................................................................... 899 Códigos de Sociabilidade Lésbica no Rio de Janeiro dos Anos 1960 NADIA NOGUEIRA ................................................................................... 909 Na Sexualidade, o Homem é Referência: Lésbicas Tiveram uma Relação Frustrada com Homens e Aguardam um Homem que as Satisfaça LÍVIA GONSALVES TOLEDO E FERNANDO SILVA TEIXEIRA FILHO .................... 921 13 Carla que Ama Vera, Mãe de Paula: A Circulação Pulsional neste Arranjo Familiar SIMONE APARECIDA NORONHA................................................................. 931 Safo de Lesbos e a Homocultura JOSÉ ROBERTO DE PAIVA GOMES ............................................................el ocultamiento de su historia; donde los sitios reservados a las travestis en el espacio público son, indefectiblemente, la prostitución, el circo mediático o la cárcel. El mismo país donde la travesti Vanesa Ledesma muriera en un precinto policial cordobés, mostrando en su cuerpo signos visibles de tortura”. Cf.: Mauro Cabral, “Las Transformaciones de Tiresias”. Nombres. Revista de Filosofía, Córdoba, año XV, n. 19, abr. 2005, pp. 153-155. Una alternativa que se nos ofrece es el prescindir de la lucha por los derechos en nombre de una política antinormalización que evite los riesgos de una estrategia centrada exclusivamente en la identidad. Sin embargo, se trata de una alternativa extremadamente costosa cuando la falta de derechos equi- vale a la inexistencia civil. En la Argentina, la situación de las personas trans a quienes no se les reconoce ni el derecho a un nombre acorde a su identidad genérica, es un buen ejemplo de ello5. Como señala Patricia Williams: “El Olimpo del discurso de los derechos puede ser efectivamente una altura apro- piada desde la cual quienes están en el extremo rico de la desigualdad, quienes ya tienen el poder de los derechos, pueden querer saltar” (Williams, 203, p. 64). Si no optamos por esa alternativa, debemos entonces preguntarnos qué características particulares adquiere esta modalidad de funcionamiento del discurso del derecho cuando se enfrenta al desafío de dar cuenta de los múltiples, diversos y muchas veces contradictorios reclamos articulados en torno a uno de los conceptos teórico-políticos más disputados de la última mitad del siglo XX. Y más específicamente, ¿qué particularidades adquiere hoy este desafío para quienes nos dedicamos a la investigación y a la enseñaza del derecho, si tomamos en cuenta su funcionamiento ideológico? Tal vez una buena pista sea volver sobre la frase: “perspectiva de géne- ro”. Es evidente que se trata de una metáfora visual altamente efectiva, de hecho curiosamente parece tener un sentido unívoco – sinónimo de “mujer” – aún para aquellas personas que nunca reflexionaron respecto de lo que género pueda querer decir con exactitud. Sabido es que la introducción de la perspectiva en la pintura como técnica para representar una escena tal como se vería desde cierto punto, se 82 Paula Viturro 6. En un sentido similar véase: Katherine M. Franke, “The Central Mistake of Sex Discrimi- nation Law: the Disaggregation of Sex from Gender”. 144 U. Pa. L. Rev. 1, 70, 1995. produjo en el Renacimiento. La dimensión del cambio en el régimen de visibilidad que implicó la incorporación de la perspectiva, parece haber sido tal, que dio lugar a la proliferación de discusiones contemporáneas acerca de si se trató o no de un reflejo del surgimiento de la nueva filosofía centrada en el hombre y en una nueva concepción racional del espacio (Gombrich, 1997, pp. 411-436). En efecto, la perspectiva plantea la necesidad de un sujeto situado en un punto de vista ideal cuya mirada ordena la escena representada la cual, a su vez, debe cumplir con las expectativas de fidelidad o veracidad respecto del objeto representado que la cosmovisión de la época impone. Dicho de otra manera, la perspectiva permitiría ver los objetos representados a través de ella, como creemos que son en la realidad. Creencia reforzada por el funciona- miento de un mecanismo estabilizador de la percepción denominado “cons- tancias”, que en parte asegura ese resultado (Gombrich, 1997, p. 433). La recurrente utilización de esta metáfora con relación al género parece tener el mismo efecto. Ella permite instaurarlo discursivamente como un prin- cipio epistémico privilegiado que permitiría el surgimiento de hechos signi- ficativos para el nuevo régimen de visibilidad que esta perspectiva inaugura6. Sin embargo, la utilización de la metáfora de la perspectiva, al estable- cer al género como clave fundante de un nuevo conocimiento y origen de un nuevo sujeto, redunda en su estabilización ontológica. El influjo de las cons- tancias producidas por las concepciones bioanatómicas que clasifican a los cuerpos como masculinos y femeninos es de tal magnitud que, paradójica- mente, un concepto surgido del ánimo político de oponerse a la máxima “la anatomía es el destino”, queda reducido a un simple correlato cultural de los cuerpos sexuados como si estos fueran naturalmente dados. De esa manera, el género se naturaliza y se convierte en aquello que todas las mujeres compartimos produciendo una reificación del binomio naturaleza/cultura. Tal vez los ejemplos más acabados de dicho funcionamien- 83 Constâncias to naturalizador de la metáfora sean la “ideología de la opresión común” de las mujeres (Hooks, 2004, p. 42), y la noción de patriarcado. Como señala J. Fernández, el presupuesto según el cual todo lo que tenemos en común las mujeres debido al sexo, genera todo lo que tenemos en común en términos de género, explica la tendencia a pensarlo como repre- sentativo de lo que todas las mujeres compartimos. De esa manera, aspectos como la etnia, la clase etc., pasan a ser indicativos de lo que tenemos de diferente. Sin embargo, este modelo aditivo no da cuenta de, por ejemplo, las importantes diferencias entre las mujeres blancas y las negras respecto de sus experiencias frente al sexismo (Fernández, 2003, pp. 138-154). Como conse- cuencia, termina ocultando o subalternando las diferencias a través de la imposición de una identidad basada en una experiencia común ficta: la femineidad. De esa manera, las preguntas referidas al carácter construido de dicha experiencia, a las formas en que los sujetos son constituidos de manera dife- rente, y al modo en que nuestra propia visión es estructurada por el discurso, son dejadas de lado. Joan W. Scott sostiene que esta forma de entender la expe- riencia, ya sea concebida a través de la metáfora de la visibilidad o de cualquier otro modo que la muestre como transparente, reproduce los esquemas ideoló- gicos que asumen que los hechos hablan por si solos. Como resultado, se obtura la posibilidad de analizar críticamente el funcionamiento del sistema ideológi- co en el que se desarrollan, sus categorías de representación (homosexual/ heterosexual, hombre/mujer, negro/blanco como identidades fijas), las pre- misas acerca de lo que estas categorías significan y la forma en la que operan. Presuponiendo que quienes nos dedicamos a la investigación, a la edu- cación y al activismo antidiscriminación somos conscientes de que debemos responder por las consecuencias de nuestras teorías, parece evidente entonces la necesidad de renunciar a la metáfora de la “perspectiva de género”. Si los universalismos de la humanidad nos resultan sospechosos, debemos también asumir que los universalismos de género también lo son. Seguramente esta propuesta, en el marco de una academia que hasta la fecha no le ha prestado mayor atención a estos temas, puede producir cierta 84 Paula Viturro perplejidad e irritación, máxime si tenemos en cuenta que los abogados y abogadas tendemos “a ver las ‘cosas’ – trátese de salarios bajos, la violación o el feticidio femenino – como algo más significativo que, por ejemplo, la construcción discursiva de la marginalidad” (Barret, 2002, p. 213). La escasa recepción disciplinaria que han recibido los estudios de género por parte de los espacios universitarios – en especial las facultades de derecho del contexto latinoamericano – debe ser aprovechada como una oportunidad para reflexionar respecto de la forma en que estamos dispuestas y dispuestos a hacerlo de aquí en más. La historia de la pintura nos ofrece una metáfora alternativa a quienes no aceptamos el valor de verdad que la repre- sentación en perspectiva pretende tener: el cubismo. Los cubistas abandonaron el punto de vista ideal y estable que dominó la pintura europea desde el Renacimiento, en favor de la representación simultánea de los objetos desde múltiples puntos de vista. Loscuadros resul- tantes son una acumulación de fragmentos de visión que representan el objeto desplegado en todas sus facetas, que establece una trama compleja de rela- ciones espaciales heterogéneas constituídas a partir de la yuxtaposición y la dislocación de las distintas vistas. De esa manera, los cubistas pusieron de manifiesto que el espacio pictórico articulado por la perspectiva central, es un producto cultural que sólo trasluce las intuiciones espaciales humanas de un determinado momento histórico conocido como naturalismo o realismo visual (Marchán Fiz, 2005). Si nos animamos a abandonar la perspectiva de género tal vez podamos contar con alumnos que no sólo sean sensibles al dolor producido por la dis- criminación, sino que además sean capaces de resistir y desarticular el orden del discurso jurídico que le da sentido y continuidad. Futuros profesionaes capaces de contemplar Las Meninas de Veláz- quez, y entender por qué “ninguna mirada es estable o, mejor dicho, en el surco neutro de la mirada que traspasa perpendicularmente la tela, el sujeto y el objeto, el espectador y el modelo cambian su papel hasta el infinito” (Foucault, 1969, p. 14). 85 Constâncias Referências bibliográficas BARRETT, Michele. “Las Palabras y las Cosas: el Materialismo y el Método en el Análisis Feminista Contemporáneo”. In BARRET, Michele & PHILLIPS, Anne (comps.). Desestabilizar la Teoría: Debates Feministas Contemporâneos. Méjico, PUEG/ Paidós, 2002, pp. 213-240. BERKINS, Lohana. “Eternamente Atrapadas por el Sexo”. In VITURRO, Paula et al. (comps.). 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O Brasil ocupa um lugar de destaque no cenário mundial quando o assunto é homofobia letal que nada mais é que a consequência lógica de uma violência moral e física a qual são submetidas diuturnamente pessoas que se declaram homossexuais. A violência brutal praticada no Brasil não comove as instâncias nacionais que se declaram defensoras dos direitos humanos, como se o homossexual, à luz da cultura machista prevalecente, não fizesse jus aos direitos históricos proclamados, a longas datas, na história da humanidade, quais sejam: a vida e a igualdade. Introdução Objetiva-se com o presente artigo proceder a uma análise, à luz da antropologia, da violência produzida na sociedade brasileira contra os homossexuais. A violência que se faz investigar está voltada para aquela que acontece na sua forma mais extrema: a letal. Embora seja esse o aspecto a ser 1. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. D. Rose, H. Barcelos, L. Santos, M. Durães e T. Carneiro 88 trabalhado, não há como desvincular a violência letal contra homossexuais das demais espécies de violência da qual são acometidas, diariamente, as pessoas cuja afetividade ou sexualidade é direcionada para o mesmo sexo. Justifica-se o tema tendo em vista que o assistente social deve ter um olhar mais amplo que o que paira sobre o senso comum, pautando a sua prática pela defesa intransigente dos direitos humanos, evitando a perpe- tuação de práticas homofóbicas. A metodologia utilizada consiste em pesquisa bibliográfica e de campo utilizando-se da técnica da entrevista. Foram entrevistados três homossexuais, a saber: B. J. e C., alunos das unidades de Contagem e Barreiro, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, com a intenção de perceber a forma como essas pessoas se situam ante a violência a que estão expostas. B. é um jovem, do sexo masculino, estudante de Serviço Social. C e J., ambas do sexo feminino, onde C. é estudante do curso de Serviço Social e J. é estudante do curso de nutrição, e mantêm entre si uma relação homoafetiva, que, para além dos contratempos enfrentados, possui uma certa duração. Apesar do pequeno número de entrevistados percebe-se que não houve prejuízo para a finalidade da pesquisa que é analisar a realidade investigada e compará-la com a teoria, mormente com o artigo do autor Luiz Mott (2000) cujo titulo é “Homossexuais: As Vítimas Principais da Violência”, bem como o escrito de Louro (2001) sobre a pedagogia da sexualidade, além de outras obras e escritos abordados ao longo do texto. Analisar a forma como os homossexuais são tratados em nossa cultura implica, em uma análise preliminar do discurso existente no plano interno, na Constituição da República Federativa do Brasil que eleva a nível de princí- pio, a dignidade da pessoa humana. Além da proteção genérica constante da Lei Maior, a qual a doutrina especializada chama de Direitos Humanos Fundamentais, proteção seme- lhante encontra-se nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, a saber: a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948 e a Decla- ração Americana de Direitos e Deveres do Homem, também de 1948, textos Homofobia Letal 89 que garantem direitos que são chamados de direitos humanos; e que, por sua vez, influenciaram sobremaneira a Constituição brasileira de 1988. O direito à igualdade e à liberdade, estão juridicamente protegidos no ordenamento brasileiro, fato que por si só resolveria o problema das desi- gualdades, não fosse um aspecto extremamente relevante: o direito não pode ignorar a cultura onde o mesmo será aplicado. Esse o erro fatal que tantos legisladores e governantes teimam em ignorar! Os direitos do homem em uma cultura homofóbica DireitosHumanos são, segundo melhor doutrina, os direitos protegidos na esfera internacional que, ao serem transportados para a esfera do Estado- nação ganha o status de direitos fundamentais; eis que protegidos em sua Lei Fundamental: a Constituição. De acordo com Ruth Benedict in Laraia (1986) “a cultura é uma lente através da qual o homem vê o mundo”. E, essa visão de mundo que cada cultura possui, leva o homem a agir de maneira etnocêntrica, já que o modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural (Laraia, 1986). A questão da violência contra minorias, e entre elas a que é praticada contra homossexuais afigura-se como uma questão cultural: A nossa herança cultural, desenvolvida através de inúmeras gerações, sempre nos condicionou a reagir depreciativamente em relação ao comportamento daqueles que agem fora dos padrões aceitos pela maioria da comunidade. Por isto discriminamos o comportamento desviante. Até recentemente, por exemplo, o homossexual corria o risco de agressões físicas quando era identificado numa via pública e ainda é objeto de termos depreciativos. Tal fato representa um tipo de comportamento padronizado por um sistema cultural. Esta atitude varia D. Rose, H. Barcelos, L. Santos, M. Durães e T. Carneiro 90 em outras culturas. Entre algumas tribos das planícies norte-ameri- canas, o homossexual era visto como um ser dotado de propriedades mágicas, capaz de servir de mediador entre o mundo social e o sobrenatural, e portanto respeitado (Laraia, 1986) Homofobia caracteriza “o medo e o resultante desprezo pelos homos- sexuais; descreve uma repulsa face às relações afetivas e sexuais entre pessoas de mesmo sexo, um ódio generalizado aos homossexuais e todos os aspectos do preconceito heterossexista e da discriminação anti-homossexual” (Moraes, 2008). Louro (2001) ensina que: Consentida e ensinada na escola, a homofobia expressa-se pelo desprezo, pelo afastamento, pela imposição do ridículo. Como se a homossexua- lidade fosse “contagiosa”, cria-se uma grande resistência em demonstrar simpatia para com sujeitos homossexuais: a aproximação pode ser interpretada como uma adesão a tal prática ou identidade. Mott (2000), no texto acima referendado, inicia a sua exposição afir- mando o seguinte: Nem todos os povos odeiam os gays e lésbicas. Em certas tribos da América do Norte, as mães torcem para ter um filho “invertido” e em 64% das sociedades humanas pesquisadas por Ford & Beach os homossexuais eram respeitados. Em algumas partes do mundo, como na Grécia e na tradição Yorubá, até os deuses praticam o homoerotismo ou são metade do ano homem, metade mulher. Infelizmente fazemos parte dos 36% dos povos que consideram o amor entre pessoas do mesmo sexo um problema. Problema tão sério que no Brasil, segundo pesquisas do Data Folha, de todas as minorias sociais, os mais odiados são os homossexuais Homofobia Letal 91 Pesquisas realizadas pelas mais confiáveis agências de opinião confir- mam que os homossexuais representam o segmento social mais discriminado e odiado pelos brasileiros, sendo muitas vezes rejeitados até por entidades de- fensoras dos direitos humanos (Mott, 2001). Não bastasse a violência que assola o cotidiano dos homossexuais, estes quando se sentem violados em seus direitos acabam reclamando em juízo, onde, não raro, tornam-se mais uma vez insultados. Foi o que aconteceu com o jogador Richarlyson do São Paulo Futebol Clube, que ao ser chamado de homossexual pelo diretor administrativo do Palmeiras o sr. José Cyrillo Júnior, procurou a justiça e apresentou queixa contra o mesmo por crime contra a honra já que a sua orientação sexual não diz respeito a mais ninguém, senão a ele próprio. O juiz que recebeu o feito para julgar assim se pronunciou: A presente queixa não reúne condições de prosseguir [...] se fosse homossexual, poderia admiti-lo, ou até omitir, ou silenciar a respeito. Nesta hipótese, porém, melhor seria que abandonasse os gramados. Quem é ou foi boleiro sabe muito bem que estas infelizes colocações exigem réplica imediata, instantânea, mas diretamente entre o ofensor e o ofendido num “TÈTE-À-TÉTE”. Trazer o episódio à Justiça, outra coisa não é senão dar dimensão exagerada a um fato insignificante se comparado à grandeza do futebol brasileiro. [...] Já que foi colocado, como lastro, este Juízo responde: futebol é jogo viril, varonil, não homossexual. Há hinos que consagram esta condição “OLHOS ONDE SURGE O AMANHÃ, RADIOSO DE LUZ, VARONIL, SEGUE SUA SENDA DE VITÓRIAS”. Esta situação incomum do mundo moderno, precisa ser rebatida [...]. Não que homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas forme o seu time e inicie uma Federação. Agende jogos com quem prefira pelejar contra si. O que não se mostra razoável é a aceitação de homossexuais no futebol brasileiro, porque prejudicariam a uniformi- dade de pensamento da equipe, o entrosamento, o equilíbrio, o ideal (Juqueira Filho, 2007). D. Rose, H. Barcelos, L. Santos, M. Durães e T. Carneiro 92 O episódio acima demonstra bem como as pessoas vítimas de precon- ceitos são ignorados em seus direitos. A violência letal contra homossexuais A homofobia praticada no Brasil é tão extremada que, segundo dados apontados por Mott (2000) a cada cinco dias um homossexual é barbara- mente assassinado, o que implica o uso desmedido de violência, como se o agressor quisesse expurgar a culpa do desejo sentido pelo mesmo sexo. A abordagem da presente questão passa pelo drástico caso relatado por Mott (2000) do vereador da cidade de Coqueiro Seco, município de Alagoas, Renildo José dos Santos que após declarar-se homossexual em uma entrevista na rádio local passou a sofrer perseguições que resultaram em um ato de barbaridade e covardia: Na madrugada de 10 de março de 1993, Renildo foi arrancado de sua casa e sequestrado por quatro policiais e inimigos políticos de Coqueiro Seco [...] levado para local ermo, Renildo foi vítima de uma das mais cruéis seções de tortura jamais registrada nos anais da violência humana: foi violentamente espancado, teve suas orelhas, nariz e língua decepados, as unhas arrancadas e depois cortados os dedos, as pernas quebradas, foi castrado e teve o ânus empalado, levou tiros nos dois olhos e ouvidos, e, para dificultar o reconhecimento do cadáver, atearam fogo em seu corpo, degolaram-lhe a cabeça e a jogaram dentro de um rio (Mott, 2000). A discriminação homofóbica que sofrem gays e lésbicas, levam agres- sores a situações extremas. Chama muito a atenção a apologia ao crime feita por um estudante da Universidade de Juiz de Fora que divulgou na internet a seguinte “convocação”: Homofobia Letal 93 Estou criando um grupo antigay no país. Eu darei todo tipo de ajuda e até mandarei dinheiro se você se propuser a matar os gays. Quero representantes no Rio, S. Paulo, BH, Brasília, Curitiba, Porto Alegre, Salvador, Recife e Fortaleza. Estou de precisando gente para meter porrada nos infelizes homossexuais e causar pânico no meio deles. Preferencialmente bichas da cor negra. Pretendo também incendiar a sede do Grupo Gay da Bahia. Os baianos geralmente são negros e por isso merecem apanhar dobrado [...]. Em outro e-mail, de 3 de junho de 1997, Rancora declarou: Não é difícil espancar um gay. O ideal para espancar um gay é sair com pelo menos três amigos: use algum tipo de capuz para não ser reconhe- cido e leve um porrete. Quando ele estiver passando por alguma rua deserta, você o segura e o põe dentro do carro tipo furgão. Então vai até uma estrada para foder com o infeliz. Nunca deixe que perceba quem é você, pois do contrário terá que matá-lo para não ser denunciado. Dê chutes nele, na cabeça, barriga, saco escrotal e na espinha. Não tenha medo de aleijá-lo. Você estará fazendo um bem social. Deixe então o cor- po do cara no mato sem que ninguém teveja. Se matá-lo, afunde o corpo num rio. E não esqueça de tirar as vísceras para o infeliz poder afundar e ninguém encontrá-lo. Ninguém deve te ver e saber quem você é! A Reitoria da UFJF abriu sindicância, mas até dezembro de 1997 ainda não revelou os resultados (Jornal do Brasil, 19 ago. 1997). Lidando com a homofobia É em meio a essa discriminação que os entrevistados da pesquisa de campo realizada, expressam a angústia que sofrem por viver em uma cultura que os impede de manifestar publicamente o afeto que sentem por seus amantes do mesmo sexo. D. Rose, H. Barcelos, L. Santos, M. Durães e T. Carneiro 94 A homofobia manifesta-se nos mais diversos espaços, públicos e privados, bem como no seio do lar, onde, espera-se seja um espaço de amparo aos seus membros. Enquanto B. afirma que a agressão que sofre em família é proveniente dos irmãos, C. e J. encontram em suas genitoras as maiores opositoras da rela- ção. C. afirma que sua mãe, quando ficou sabendo de sua orientação sexual proferiu a seguinte declaração: “prefiro ter uma filha drogada que lésbica. Não bastasse a total falta de apoio, impôs-se ao casal a separação sob a ameaça de levar o fato ao conhecimento de seus pais. Assim, C. e J. declararam à família o rompimento da relação. Porém, ambas sonham com a independência finan- ceira, muito bem retratada na fala de C.: “Não possuo condições financeiras para me sustentar, formando e conseguindo um emprego eu e minha namora- da pretendemos morar juntas e assumir definitivamente a nossa situação”. Muitas são as expectativas dos entrevistados em relação a aprovação de uma lei que reconheça a união de homossexuais e que venha a coibir a homofobia. Quanto ao papel do assistente social na presente discussão ressalta-se a fala de B. que assim se pronunciou: O Assistente Social deve adotar uma postura diferenciada perante as relações de gênero, isso é fundamental uma vez que, como profissional das ciências humanas e educador político, vai se deparar com muitas orientações sexuais e problemas advindos desta. Sendo assim, compreender tais relações é extremamente necessário para contribuir com a criação de políticas públicas e estratégias de inclusão e respeito aos homossexuais. Levar a essa parte da população tão discriminada os seus direitos, intervindo como intermediários de conflitos, faz parte desta formação. C., sobre a temática anterior, possui a seguinte opinião: Os profissionais que conheço têm uma visão bem ampla sobre o assunto. Mostram que vêem os homossexuais, como pessoas dignas de Homofobia Letal 95 serem respeitadas e terem seus direitos também respeitados. E como profissionais sociais têm a postura de garantir aos homossexuais o direito de se expressar e de viver com dignidade, sem preconceitos. Liberdade de orientação sexual: a profissão discute o tema Há muito tem sido objeto de preocupação do Conjunto CFESS/CRESS*, a sensibilização dos assistentes sociais sobre o debate necessário a respeito da liberdade de orientação e expressão sexual. Em julho de 2006 o Conjunto CFESS/CRESS em parceria com o DIVAS (Instituto em Defesa da Diversidade Afetivo-Sexual), a Liga Brasileira de Lésbicas, a Articulação Brasileira de Lésbicas e a ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros) lançou a campanha intitulada “O Amor Fala Todas as Línguas: Assistente Social na Luta contra o Preconceito” que foi muito bem aceita em amplos setores e movimentos da sociedade civil. A campanha resultou na elaboração da Resolução CFESS 489/2006 com a finalidade de “proibir condutas discriminatórias ou preconceituosas, por orientação sexual por pessoas do mesmo sexo, no exercício profissional do assistente social”(Brasil, 2006). Essa resolução estabelece em seu artigo 4º o seguinte: Art. 4 – É vedado ao assistente social a utilização de instrumentos e técnicas para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas ou estereótipos de discriminação em relação a livre orientação sexual entre pessoas do mesmo sexo. A presente ação política traduz a importância de se conscientizar o profissional a contribuir na formação de uma cidadania libertadora e uni- versal, capaz de inserir no espaço público todas as pessoas, inclusive aquelas, * Conselho Federal de Serviço Social/Conselho Regional de Serviço Social. D. Rose, H. Barcelos, L. Santos, M. Durães e T. Carneiro 96 cuja orientação sexual não corresponde ao padrão construído pela cultura brasileira. O Conjunto CFESS/CRESS, ao discutir o tema da liberdade de orientação sexual, o faz por um imperativo que orienta a profissão, pois, o código de ética dos assistentes sociais, pauta-se, dentre outros, pelo seguinte princípio: “exer- cício do serviço social sem ser discriminado, nem discriminar, por questões de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, opção sexual, idade e condição física”. A campanha possui como objetivos, dentre outros, sensibilizar a categoria para o debate em torno da livre orientação e expressão sexual como direito humano. Conclusão A homofobia que se pratica na terra brasilis é legitimada por uma so- ciedade excludente que marginaliza as suas minorias, entre elas os homosse- xuais. A matriz cultural que aqui se estabeleceu construiu uma série de padrões de comportamento, sendo que, todo aquele que não se adequar ao mesmo, pagará o preço da exclusão e da “inferiorização”. É essa cultura que leva tantos brasileiros a atentar, brutalmente, contra pessoas que, aos olhos do agressor, não podem manifestar publicamente uma orientação sexual homoerótica. É necessário que os espaços destinados à formação de opinião sejam chamados a discutir o preconceito contra a liberdade de orientação sexual. Um povo que vive sob o amparo de uma lei que prega a igualdade de todos, não pode legitimar, nenhuma prática voltada para a discriminação, principal- mente daquela que leva à perda dos maiores bens que o indivíduo possui: a vida e a liberdade. Valiosa é a contribuição do Conjunto cFESS/cRESS ao normatizar a proibição de discriminação por parte do assistente social. Sabe-se que a lei por si só não é capaz de mudar a realidade, mas, ela pode ser o início de uma Homofobia Letal 97 mudança de postura que se consolidará se as pessoas não se furtarem à obrigação de fazer valer a tão sonhada liberdade. Liberdade essa que, segundo Cecília Meirelles, é “um sonho que a alma humana alimenta, que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda”. Referências bibliográficas BERENGUER, Raquel. 2007. Disponível em: http://versosepoesias.spaces.live.com. Acesso em: 5 jun. 2008. BRASIL/CONJUNTO CFESS/CRESS. Resolução 489, de 03 de junho de 2006. Estabelece normas vedando condutas discriminatórias ou preconceituosas, por orientação e expressão sexual por pessoas do mesmo sexo, no exercício profissional do assistente social, regulamentando princípio inscrito no Código de Ética Profis- sional. Brasília, 2006. . Campanha pela Liberdade de Orientação e Expressão Sexual. O Amor Fala Todas as Línguas: Assistente Social na Luta Contra o Preconceito. Brasília, junho de 2008. Disponível em: www.cress-mg.org.br/noticias.htm. Acesso em: 7 set. 2008. LARAIA, Roque de Barros. “Cultura: Um Conceito Antropológico”. In __________. Como Opera a Cultura. Rio de Janeiro, Zahar, 1986, pp. 69-73. 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Com a perspectiva de garantir direitos iguais, respeito às diferenças e construir uma sociedade mais justa para todos/as, o Programa Vitória Sem Homofobia visa fortalecer a cidadania, promover e garantir direitos humanos da população LGBT, prevenir a violência e a discriminação contra esse segmento e superar a homofobia. A Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos do município de Vitória (SEMCID) foi criada em 2005. Portanto, a temática dos direitos humanos é recente na agenda das políticas públicas do governo municipal, assim como é recente a institucionalização desta temática no nível federal, uma vez que a criação do primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos e uma estrutura administrativa de gestão datam da década de 1990. A fim de promover e proteger direitos bem como reparar suas violações, a SEMCID desenvolve um conjunto articulado de políticas afirmativas que visam desconstruir e desnaturalizar três matrizes de dominação ainda muito presentes nos processos de interação social em nosso país. As instituições sociais e polí- 1. Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos da Prefeitura de Vitória-ES. Durvalina Maria Sesari Oliosa 100 ticas se sustentam por valores morais, religiosos e jurídicos que presos a padrões culturais racistas, heterossexistas e heteronormativos discriminam, negam e violam direitos, geram e reproduzem violência. Busca-se desenvolver uma política de resistência ao poder dominante branco, machista e heterossexual e que seja ao mesmo tempo uma política transformadora e emancipatória. Para isso a SEMCID atua nos seguintes eixos: educação em direitos hu- manos; política afirmativa de igualdade de gênero e racial; política afirmativa voltada para o segmento LGBT; mediação de conflitos e acesso à justiça; prote- ção e defesa do consumidor; acesso à documentação civil básica. Cinco princípios fundamentam a política municipal de direitos huma- nos de Vitória. Partindo da concepção de política pública como uma das vias possíveis para a realização de direitos, independentemente do modelo de Esta- do em questão, o primeiro princípio a ser considerado é que “direitos humanos são direitos de tod@s”. Entendemos conceitualmente direitos humanos na sua dimensão histórico-crítica, o que significa concebê-los como “construcciones sociales, históricamente orientadas por necesidades humanas” (Lima Jr., 2005, p. 151). Portanto, direitos são produtos da ação humana, requeridos por situações vividas de opressão, dominação, exploração. São conquistas. Fazem parte de um processo histórico no qual a democracia também é parte, como ideário, bandeira de luta, desejo, conquista. Direitos humanos constituem algo que é devido. Não é favor, concessão ou doação. Alguns grupos sociais necessitam de mais garantias do que outros por vivenciarem processos históricos e culturais de discriminação e violação de di- reitos. Alguns grupos sociais experimentam diferentes fontes de desigualdade e exclusão, que se somam, reforçam e se mantêm no cotidiano, como as desi- gualdades e consequentes exclusões produzidas nas relações de gênero, étnico-raciais, classe, orientação sexual, geração, localização geoespacial em nosso país. Assim, a equidade é o segundo princípio orientador da política de direitos humanos em Vitória. A universalização de uma política pública só fará sentido se universalizar direitos, se considerar que é preciso focalizar certos grupos para diminuir a desigualdade econômica, a social e a invisibilidade cultural desses grupos. A equidade, que sucintamente diz respeito ao tra- Programa Vitória sem Homofobia 101 tamento diferenciado aos diferentes, permite que os formuladores de políticas públicas enxerguem e intervenham na hierarquização provocada pela desi- gualdade que, escondida nos processos que a naturalizam, gera discriminação, violação e negação de direitos, exclusão e mata a vida em certos grupos sociais como de mulheres, população negra, LGBT, índios, ciganos, idosos, crianças e adolescentes, prostitutas, trabalhadoras domésticas entre outros. Esse prin- cípio permite, portanto, o reconhecimento e a valorização das diferenças, da dignidade do sujeito de direitos. Permite questionar o poder hegemônico e intervir nas ausências por ele produzidas. Uma estratégia política que consideramos eficaz para o questionamento e consequentemente o reconhecimento das diferenças e da pluralidade huma- na é a educação em direitos humanos. A centralidade da educação em direitos humanos constitui o terceiro princípio da política municipal de direitos huma- nos. Uma política da alteridade, com pretensão de construir novas subjetivi- dades comprometidas com o reconhecimento e o respeito ao Outro, ao diferente. É necessário conhecer os processos históricos de socialização cujos padrões de dominação se estabeleceram em nosso país para que possam ser desconstruídos e construído o sujeito de direitos. A indiferença é marca de um tempo que já não tem espaço para o outro, de um sem-tempo do outro, cheio do mesmo. A diferença é marco de uma compreensão plural do humano e de sua realização. Ser é ser diferente, ser diferente é não-ser o mesmo. A mesmice preenche; a alteridade abre(-se). Como somente se pode construir e se construir na abertura, é a alteridade que abriga o humano como construção do ser humano, mais humano (Carbonari, 2007, p. 169). O quarto princípio trata da integralidade e da transversalidade da polí- tica pública de direitos humanos. Esses princípios constituem exigência das políticas públicas contemporâneas no geral, devido à complexidade dos fenô- menos sociais a serem por elas enfrentados e também pelo processo de frag- mentação que as constituem que têm origem nas ciências modernas. Apenas Durvalina Maria Sesari Oliosa 102 uma secretaria não conseguirá dar conta de promover direitos na medida em que os direitos humanos são considerados interdependentes e indivisíveis em suas várias dimensões: civis, políticas, econômicas, sociais, culturais, ambien- tais. A realização de todos esses direitos é necessária para que o ser humano tenha uma vida, individual e coletiva, digna. Por fim, o último princípio orientador que destacamos é o da gestão democrática. A participação e o controle social são requeridos e praticados pa- ra o desenvolvimento da política municipal de direitos humanos. A SEMCID im- plantou e/ou implementou a participação da sociedade civil por meio dos conselhos da mulher, do negro, de direitos humanos, do fundo municipal de proteção e defesa do consumidor e dos fóruns municipais de educação em di- reitos humanos e de defesa da cidadania LGBT. Programa Vitória sem Homofobia Efetivando um dos eixos de governo que trata da “defesa da vida e promoção dos direitos humanos”, os princípios tratados na primeira parte deste artigo e orientando-se pelo Plano Nacional de Direitos Humanos, especialmente as diretrizes do “Brasil Sem Homofobia: programa de combate à violência e à discriminação contra GLBT e de promoção da cidadania homos- sexual”, a Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória criou no final de 2005 o Programa Vitória Sem Homofobia. Os objetivos do programa são fortalecer a cidadania; promover e garantir direitos humanos da população LGBT, prevenir a violência e a discriminação contra esse segmento, e superar a homofobia internalizada pelos próprios membros do grupo LGBT, a homofobia social e a institucionalizada. É preciso possibilitar que a diversi- dade sexual e de gênero se expressem, simplesmente para que as pessoas possam viver suas sexualidades. A política afirmativa para a população LGBTs e concretiza num conjunto de ações que se dividemem cinco eixos de atuação: fortalecimento e apoio às atividades do movimento LGBT, garantia de direitos e legislação, trabalho e Programa Vitória sem Homofobia 103 geração de renda, saúde, estudos, pesquisas e educação para a diversidade sexual e prevenção da homofobia. Em termos de efetivação da política, alguns eixos estão mais avançados do que outros. Isso poderá ser verificado nos resultados do programa, que serão apresentados posteriormente. Outras secretarias da prefeitura, como Cultura, Educação, Saúde, Assis- tência, Geração de Trabalho e Renda, assim como entidades LGBT, participam da formulação dessa política e do controle da sua execução, por meio do Fórum Municipal em Defesa da Cidadania LGBT. As reuniões do fórum têm periodicidade mensal. Observa-se maior mobilização para participar nos momentos de organização do manifesto LGBT, tendo sido realizadas três edi- ções no município no período de 2006 a 2008. Em apenas duas houve apoio institucional do governo municipal devido às restrições da legislação eleitoral em 2008, em função da candidatura do prefeito da capital do Espírito Santo à reeleição. A educação para a diversidade sexual e de gênero e para a superação da homofobia constitui a estratégia político-pedagógica do Programa. Em todas as ações desenvolvidas são desencadeados processos educativos com o obje- tivo de desnaturalizar o heterossexismo e a heteronormatividade e contribuir para o reconhecimento e o respeito às diferenças de gênero e de orientação sexual. Resultados A seguir serão registrados os principais resultados dos três primeiros anos do programa considerando seus cinco eixos de atuação. Antes, porém, vale registrar que as ações do programa são implementadas por uma assis- tente social, de contrato de trabalho temporário, e um estagiário de ciências sociais. Durante um ano, ao longo dos três de existência do programa, a equipe contou com mais um membro na condição de cargo comissionado. Em relação à “saúde da população LGBT” há um diálogo com a Secretaria Municipal de Saúde para realização de curso de educação em direitos huma- Durvalina Maria Sesari Oliosa 104 nos, que contempla a temática da diversidade sexual e prevenção da homo- fobia, para trabalhadores da saúde, com prioridade para aqueles que fazem atendimento. Há também um diálogo sobre a hormonioterapia; o uso do silicone e; a inclusão do nome social de travestis e transexuais nos prontuários do Sistema Único de Saúde. Buscamos, até o momento sem sucesso, o diálogo com o Hospital das Clínicas – Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes – para o retorno do programa das cirurgias de adequação de sexo. A despeito de o referido hospital ter sido referência nacional nesse tipo de proce- dimento e encontrar-se realizando cirurgias, várias são as demandas que che- gam ao Programa Vitória Sem Homofobia de pessoas que não conseguem entrar no programa da citada cirurgia por terem a informação de que se en- contra desativado. No eixo “estudos, pesquisas e educação para a diversidade sexual e prevenção da homofobia”, registra-se avanço na realização de oficinas com essa temática. Em articulação com o Programa de Educação em Cidadania e Direitos Humanos, também da Gerência de Políticas de Direitos Humanos da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória, tais oficinas atingem a diversos públicos como moradores do município, servidores públicos muni- cipais, dentre esses, trabalhadores da educação e guardas civis, policiais mili- tares, defensores públicos, apenados beneficiários de medidas alternativas e membros do próprio segmento LGBT. Ainda não foi possível desencadear ação para estabelecer parceria com instituições de ensino superior para o desen- volvimento de estudos e pesquisas. Algumas ações foram concretizadas no sentido de garantir direitos, reparar violações e sensibilizar as/os representantes do Poder Legislativo para a necessária e urgente “garantia de direitos para a população LGBT e legislações que criminalizem ou sancionem administrativamente condutas homofóbicas”. Nesse eixo, há um processo de advocacy por militantes LGBT junto à Assem- bleia Legislativa do Espírito Santo a fim de criar uma frente parlamentar em defesa dos direitos e da cidadania LGBT. Desde 2006, uma vez por ano, pela passagem do dia do “orgulho gay”, é realizada audiência pública com temática relativa à diversidade sexual e à violência contra o segmento LGBT, em parceria Programa Vitória sem Homofobia 105 entre a prefeitura da Capital, a Assembleia Legislativa e os fóruns Municipal e Estadual em Defesa da Cidadania LGBT. Em 2008, foi realizada a primeira audiência pública com essa temática na Câmara de Vereadores de Vitória. Para além dessas ações, ainda nesse eixo, registra-se o acompanhamento a três travestis visando inserção no espaço escolar sem discriminação e com respeito à sua identidade de gênero e orientação sexual, tendo sucesso em dois deles na Escola Técnica Federal e, no outro, houve evasão pelo fato da Secretaria de Estado da Educação ter se mostrado muito resistente e não ter cumprido com o que foi acordado. Uma única ação de reparação foi registrada, mas digna de ser relatada pelo impacto que gerou. Foi judicializada uma ação por discri- minação homofóbica e a autora foi condenada a participar de seis reuniões do Fórum Municipal em Defesa da Cidadania LGBT. No eixo “trabalho e geração de renda” foi feita articulação com a Secre- taria Municipal de Trabalho e Geração de Renda que resultou na realização do curso de qualificação profissional para membros do segmento LGBT, em parceria com a Associação de Gays do Espírito Santo. Foram capacitadas cerca de quarenta pessoas divididas em dois cursos: Cozinheiro e Imagem Pessoal. Seguindo as diretrizes da política municipal de qualificação os cursos tiveram mais de trezentas horas, contemplando carga horária de educação em direitos humanos, inclusão digital, teatro e expressão corporal e a qualificação pro- priamente dita. Visando ao “fortalecimento e apoio às atividades desenvolvidas pelo movimento LGBT”, no período de 2006 a 2008, a prefeitura apoiou a realização de atividades como o Manifesto do Orgulho LGBT de Vitória (2006 e 2007); ENUDS (2006), encontro do projeto Tulipa (2006), encontro regional de tra- vestis e transexuais (2006), curso do projeto Somos (2006), conferências regionais e estadual LGBT (2008). Apoiou a criação e vem apoiando o funcio- namento dos fóruns Municipal e Estadual em Defesa da Cidadania LGBT. Por fim, vale registrar que em agosto de 2006, a Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória, implantou o Centro de Atendimento às Víti- mas de Violência e Discriminação: doméstica e de gênero, racial e por orien- tação sexual. O CAVVID atua com equipe multiprofissional formada por Durvalina Maria Sesari Oliosa 106 psicólogos, assistentes sociais e estagiários de direito, tendo como estratégia de atendimento a mediação de conflitos. De agosto de 2006 a julho de 2008, foram atendidos cerca de vinte casos de discriminação e violência homofó- bicas. Essa demanda baixa pode estar relacionada com a necessidade de cons- trução do sujeito de direitos nesse segmento, de criação de vínculo com um profissional que não vivencia a realidade da vítima e com a ausência de legis- lação que criminalize a prática da homofobia ficando na dependência da sensi- bilidade de profissionais da área de segurança e justiça. Com a política afirmativa para a população LGBT em particular, e a polí- tica de direitos humanos em geral, buscamos transformar olhares e fazeres, construir novas subjetividades e novas práticas que respeitem as diferenças, promovam a igualdade de direitos, fortaleçam o exercício da cidadania e a democracia. Ninguém nasce homofóbico, racista, sexista, portanto uma outra sociedade é possível, mais justa e democrática, e esse é o nosso compromisso. A apresentação dessa política pública no IV Congresso da ABEH significoua pos- sibilidade da ecologia dos saberes, isto é, a troca de experiências teóricas e práticas, que numa dialética se fazem e refazem a partir da valorização dos diferentes saberes, e, esperamos e desejamos que essa troca contribua para a construção dessa nova sociedade. Referências bibliográficas CARBONARI, Paulo César. “Sujeito de Direitos Humanos: Questões Abertas e em Construção”. In SILVEIRA, Rosa M. G. et al. Educação em Direitos Humanos: Fundamentos Teórico-Metodológicos. João Pessoa, Editora Universitária, 2007. LIMA JR., Jayme B. (org.). Plataforma Interamericana de Derechos Humanos, Democracia y Desarrollo. Derechos Humanos: Econômicos, Sociales y Cultu- rales. Recife, PIDHDD, 2005. 107 1. FTC. Os Homossexuais e a Adoção RAFAELLI LINS DANTAS1 Este artigo busca discutir a possibilidade da adoção homoafetiva a partir de um conceito constitucionalizado das formas de organizações familiares, o que demonstra o reconhecimento implícito da união homossexual como entidade familiar. Consequentemente, a possibilidade jurídica da adoção por casal homoafetivo torna-se uma realidade através da instrumentalização analítica do corpo legislativo, associado a fatores de ordem socioculturais. Pensar em contrário significa negar direitos fundamentais (garantidos em sede consti- tucional), já que a família contemporânea fundamenta-se no afeto como mola propulsora da dignidade de seus membros. O direito de família ao longo dos anos vem se modificando, se recom- pondo, adequando-se as necessidades humanas correspondente aos valores que inspiram cada tempo, com escopo de superar exclusões jurídicas em seu seio: mulheres submissas aos homens, famílias ilegítimas, filhos ilegítimos etc. Analisando o conceito da família no contexto atual, observa-se a sua reinven- ção em face das alterações ocorridas no modelo tradicional dos vínculos fami- liares, desvinculando-se de seus paradigmas originários como o casamento, o sexo e a procriação. Ainda assim, aliar adoção e homossexualidade é um assunto extremamente polêmico, que tem sido alvo de inúmeras discussões e controvérsias, seja nos meios jurídico, religioso e social. Nesta conjuntura, este artigo visa estudar as transformações ocorridas na organização social, especialmente no tocante à constituição da família, Rafaelli Lins Dantas 108 analisando o instituto da adoção sob o ponto de vista da legislação vigente, uti- lizando-se de uma hermenêutica sociolegislativa que ultrapasse o corpo legis- lativo e alcance as ideologias “unânimes” e “divergentes”, verificando assim a possibilidade da adoção homoafetiva, identificando os pontos favoráveis ao seu deferimento e a problemática jurídica e social em torno do assunto. Faz-se necessário esclarecer a possibilidade jurídica da adoção ho- moafetiva, já que são crescentes as discussões que despertam o interesse não só dos operadores do direito e dos ativistas de movimentos homossexuais, mas que vem mobilizando toda a sociedade. Uma vez que a heterossexualidade é a norma, existe uma grande dificuldade em determinados meios sociais no que diz respeito a aceitar a possibilidade de parceiros do mesmo sexo estarem aptos a habilitarem-se para a adoção. A relevância do tema encontra-se nas inúmeras e rápidas transformações pelas quais a sociedade passou e vem passando, e que o direito não pode ignorar. É necessário nos questionarmos sobre o assunto, uma vez que não há na legislação específica sobre a adoção qualquer restrição expressa relativa à orientação sexual do adotante. Sendo assim, a ausência de uma norma espe- cífica restringiria o direito de um casal homofoafetivo em adotar um indi- víduo? Assim, pode-se sustentar a possibilidade jurídica da adoção homoafe- tiva por meio de uma análise que extrapole os limites legais e alcancem fatores de ordem psicoculturais e sociojurídicos? A resposta a tais questões é fundamental, na medida em que não se pode fechar os olhos para a existência de entidades familiares homoafetivas e dos naturais reflexos jurídicos desta união, como, por exemplo, a possibi- lidade de adoção. Ainda que o assunto seja um tabu, se faz necessário des- vincular-se de discursos moralizantes e preconceituosos para que consigamos nos aproximar de um ideal de justiça. A pesquisa não se limita a um olhar unicamente jurídico, na medida em que questão jurídica discutida é fruto das transformações sociais no trans- correr do tempo e da ideologia por elas criada, fazendo-se necessário neste caso uma visão interdisciplinar. Os Homossexuais e a Adoção 109 Possibilidade jurídica da adoção homoafetiva As mudanças dos valores e tendências influenciam a sociedade contem- porânea e vêm rompendo e modificando a concepção tradicional de família, que está sempre se reinventando, se reconstruindo. A família hoje é um núcleo descentralizado, igualitário e não necessariamente heterossexual, predomi- nado, assim, um modelo familiar eudemonista, que tem como fundamento a busca da felicidade, a realização plena do ser humano. Como explica Farias (2004, p. 33): [...] viola o princípio da dignidade da pessoa humana a interpretação que exclui da proteção legal qualquer entidade familiar, seja ela fundada no casamento na união estável, em modelos monoparentais em uniões homoafetivas e no que mais o homem escolha para se organizar em núcleos elementares. As uniões homossexuais, preenchidos os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade, devem ser entendidas e respeitadas como entidades familiares constitucionalmente protegidas enquanto tais, por sua própria natureza. Farias e Rosenvald (2008, p. 395) asseveram que [...] a união entre pessoas homossexuais poderá estar acobertada pelas mesmas características de uma entidade heterossexual, fundada, basi- camente, no afeto e na solidariedade. Sem dúvidas, não é a diversidade de sexos que garantirá a caracterização de um modelo familiar, pois a afetividade poderá estar presente mesmo nas relações homoafetivas. Outrossim, não se pode olvidar que mesmo os casais homossexuais poderão, eventualmente, experimentar a paternidade, através de repro- dução assistida, e da adoção, conforme vem reconhecendo a jurispru- dência mais recente. [...] Não se pode fechar os olhos para a existência de entidades homoafetivas, pessoas (eventualmente de um mesmo gêne- ro sexual) que se unem ao derredor de objetivos comuns, que dedicam Rafaelli Lins Dantas 110 amor recíproco e desejam felicidade como qualquer agrupamento heteroafetivo, impondo-se tutelar juridicamente tais grupos familiares, não limitando a constituição de entidades convencionas. A proteção ao núcleo familiar deve ter como fundamento os próprios cidadãos, seres humanos, que merecem uma tutela especial para se garantir o respeito à dignidade e igualdade. Neste sentido, como lembra Carbonera (1999, p. 23): [...] o direito não deve decidir de que forma a família deverá ser consti- tuída ou quais serão suas motivações juridicamente relevantes [...]. Formando-se uma [...] que respeite a dignidade de seus membros a igualdade nas relações entre eles, a liberdade necessária ao crescimento individual e a prevalência das relações de afeto entre todos, ao operador jurídico resta aplaudir como mero espectador. Assim, onde há família deve atuar o Estado, prestando proteção espe- cial com objetivo de garantir o desenvolvimento e a valorização dos seus mem- bros de forma igualitária. A ausência de lei, no sentido de vetar o pedido de adoção formulado por um casal homossexual, segundo a doutrina, aponta para a tendência do surgi- mento de precedentes jurisprudências no direito pátrio, na acepção de acolher a adoção formulada por casal homossexual com fundamento na estabilidade da união. Entende-se, portanto, pelo que acima afirmou Carbonera, que não há um modelo padrão familiar instituído pela Constituição, o que possibilita compreender que não caberia excluir outras formas de arranjos familiares, nem tampouco entendê-lascomo equiparações de um modelo padrão, uma vez que tal padronização inexiste na realidade da instituição familiar brasileira (monoparental, homoparental, heteroparental); igualmente, negar a plu- ralidade das entidades familiares ofende diretamente os princípios basilares da Constituição Federal. Os Homossexuais e a Adoção 111 A Constituição, ao se referir expressamente a três formas de compo- sições familiares (casamento, união estável e comunidade formada por qualquer dos pais e descendentes), demonstra a multiplicidade de modelos familiares, o que vincula o Estado ao cumprimento do comando constitucional no sentido de prestar especial atenção às famílias (art. 226, caput final), no qual fica claro que tal tutela deve ser prestada a todas entidades familiares em igualdade de condições. Segundo Fachin (1997, p. 114): [...] a partir do texto constitucional brasileiro que assegura a liberdade, a igualdade sem distinção de qualquer natureza (art. 5 da Constituição Federativa de 1988), a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5, inciso X), a base jurídica para construção do direito à orientação sexual como direito personalíssimo, atributo inerente e inegável da pes- soa humana. Assim, como direito fundamental, surge um prolonga- mento de direitos da personalidade imprescindíveis para construção de uma sociedade que se quer livre, justa e solidária. Além do que afirma Fachin, não existe qualquer proibição legal no sentido de vetar a colocação do menor em lar substituto formado por casal homossexual. O que se ratifica frente à clareza legal do artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), bem como o artigo 1.186 do Código Civil de 2002. Sendo assim, nenhum óbice é colocado diante da pretensão de adoção por casais homossexuais. Até porque a orientação afetivo-sexual não constitui requisito subjetivo, ou tampouco objetivo, para o deferimento da adoção. Logo no seu artigo 1º, o ECA é taxativo ao afirmar que foi acolhida a doutrina da proteção integral a criança e ao adolescente. Deste modo, pode- se dizer que o requisito mais relevante para colocação do adotado em lar substituto está previsto no artigo 43 desse mesmo estatuto, ao prever que a adoção somente será concedida quando se apresentarem reais vantagens para adotado, fundando-se em motivos legítimos. Rafaelli Lins Dantas 112 Outro critério de avaliação quanto à possibilidade da adoção, estatuído no artigo 29 do ECA, se refere a incompatibilidade ou não do requente em relação à natureza da medida pleiteada, ou que não ofereça ambiente familiar adequado. Já Silva (1995, p. 116) entende que: [...] o homossexual pode sim, adotar uma criança, desde que avaliado seu comportamento frente à comunidade, isto é dependerá do juiz apurar a conduta social do requerente em casa, no trabalho, na escola, no clube, enfim, no meio social onde vive. Ou seja, o que impedirá, pois, o acolhimento do pedido de colocação em família substituta será, na verdade, o comportamento desajustado do homossexual, jamais a sua homossexualidade. Assim, se ele cuidar e educar a criança dentro dos padrões aceitos pela sociedade brasileira, a sua homossexualidade não poderá servir de pretexto para o juiz indeferir a adoção [...] pleiteada. Apesar do ordenamento jurídico pátrio não colocar nenhum óbice em relação a duas pessoas do mesmo gênero constituírem uma entidade familiar, no que se refere à possibilidade de pleitearem juntamente o pedido de adoção, muitos magistrados têm indeferido o referido pedido por entender que tal união não se configura com entidade familiar. O desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, em acórdão, demonstra que: [...] reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes pos- sam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconve- niente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio fami- liar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de Os Homossexuais e a Adoção 113 abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prio- ridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes (Apelação Cível nº 70013801592, TJRS, 7ª Câmara Cível, julgado em 5.4.2006). Destarte, a adoção, tanto para menores (art. 47 do ECA), como para os maiores de dezoito anos (art.1.623 do Código Civil) só poderá ocorrer median- te ação judicial, e levar-se-á em conta os benefícios deste novo lar para o desenvolvimento saudável a este indivíduo, e as implicações psicológicas de- corrente desta nova relação familiar. Conclusão Conclui-se que a Constituição de 1988 alterou profundamente o con- ceito jurídico de família patriarcal, hierarquizada e matrimonializada, para eudemonista e repersonalizada, como se observa através da análise do artigo 226, caput, que adotou um conceito amplo, de inclusão, abrangendo todos os moldes de vida familiar, sendo assim reconhecidas, expressa e implicitamente, outras formas de entidades familiares. A constitucionalização do direto da família demanda uma compreensão além da norma, passando assim a família ter um conceito flexível e instru- mental, norteando-se pelo afeto. O que demonstra que à luz do texto consti- tucional não se pode chegar a outra compreensão senão a de que a entidade familiar deve ser entendida essencialmente pelos laços de afetividade. Ao consagrar a dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, III) a Constituição afirma a dignidade dos seus membros, que devem ser protegidos de forma igualitária, promovendo o bem de todos sem discriminações de qualquer natureza. Neste sentido, há que se reconhecer Rafaelli Lins Dantas 114 que duas pessoas do mesmo sexo podem constituir família, uma vez que cada indivíduo é livre para escolher a sua orientação sexual, e qualquer tipo de res- trição neste sentido estaria ferindo diretamente os princípios constitucionais. Não se pode deixar de incluir a união homoafetiva com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família à mar- gem do mundo jurídico, pois se estaria inviabilizado a promoção da dignidade humana desses grupos. Atendendo aos preceitos constitucionais, que deman- dam uma interpretação que esteja em consonância com a realidade, mostra- se perfeitamente possível o deferimento da adoção homoafetiva, desde que preenchidos todos os requisitos e exigências legais para regular o processa- mento do feito. Tendo em vista que, não existe nenhum óbice legal no sentido de vedar o pedido de adoção formulado por par homossexual, deve- se orientar no caso concreto pelo o princípio do melhor interesse do menor (artigo 43 do ECA). Deve-se apreciar também o disposto no artigo 29 do ECA, no sentido de se averiguar se a pessoa do requerente mostra-se compatível com a natureza da medida pleiteada e ofereça ambiente familiar adequado. Desta forma, o que se torna crucial verificar é se os pretendentes a adoção estão aptos a oferecer ao adotado um ambiente familiar adequado, afetivo e materialmente estruturado, ou seja, toda a família que de fato tiver meios de promover a dignidade humana de seus membros merecerá tutela jurídica e especial proteção do Estado. Inviável é uma valoração tão-somente moral; preconceitos não devem servir de justificativa para alijar direitos, pois toda construção jurídica que se pretende fazer supostamente científica não se compadece de tal subjetivismo Nem a ausência de leis, nem a omissão doJudiciário podem levar à exclusão da tutela jurídica as famílias homoafetivas. Sendo assim, deve-se buscar uma hermenêutica sociolegislativa, associando o texto da Constituição Federal às realidades de diversas organizações familiares. Os Homossexuais e a Adoção 115 Referências bibliográficas BRASIL/TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível n.º 70013801592, da 7ª Câmara Cível do TJRGS. Rel. Des. Luis Felipe Brasil Santos, julgado em: 5 abr. 2006. Disponível em: http://www.tj.rs.gov. br/site_php/jprud2/ ementa.php. Acesso em: 20 jun. 2006. CARBONERA, Silvana M. “O Papel Jurídico do Afeto nas Relações de Família”. Revista Jurídica. Foz do Iguaçu, SCETF, vol. 1, n. 1, jul./dez., 1999. FACHIN, Luiz E. “Aspectos Jurídicos da União de Pessoas do Mesmo Sexo”. In BARRETO, Vicente (org.). A Nova Família: Problemas e Perspectivas. Rio de Janeiro, Renovar, 1997. FARIAS, Cristiano C. “Direito Constitucional à Família”. Revista Brasileira de Di- reito de Família, Porto Alegre, Síntese/IBDFAM, vol. 6, n. 23, abr.-maio 2004, pp. 5-21. FARIAS, Cristiano C. & ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2008. SILVA, José L. M. A Família Substituta no Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo, Saraiva, 1995. PARTE II Homocultura e Literatura 119 O Cânone Impermeável: Homoerotismo nas Poesias Brasileira, Portuguesa e Mexicana do Modernismo HORÁCIO COSTA1 A temática homoerótica é uma das vertentes distintivas da poética da moder- nidade. O tema de caráter homoerótico, como é sabido, perpassa algo da lírica clássica e encontra seu lugar mesmo na sobriedade do Velho Testamento; insemina, na Idade Média, alguns dos mais espicaçantes momentos da produ- ção dita “escarninha”, e encontra alguns cultores no Renascimento e no Bar- roco. Tal caminho tem sido recuperado com notável pertinácia pela crítica. Entretanto, é arguível dizer-se que, no Ocidente, a partir do século XIX, e com a invenção do “sujeito” moderno – do cidadão liberto de sanções religiosas e partícipe de sistemas mais ou menos democráticos e representativos – a afir- mação dessa vertente temática confunde-se com a liberdade de expressão e de opinião, no processo de valorização da publicização dos registros da inti- midade individual que acompanha a implantação de sistemas crescentemente igualitários de convivência social e política. Nesse sentido, e não surpreendentemente, será um poeta da jovem democracia norte-americana, Walt Whitman, quem, em seu torrencial Leaves of Grass – justamente no “Song of Myself” –, primeiro situa o amor pelo mesmo sexo na linha fronteira da poesia moderna. Como tive a oportunidade 1. Universidade de São Paulo. Horácio Costa 120 de estudar em outro ensaio2, em que pese o fato de que Whitman não reco- nheça nenhum caráter de homossexualidade, e menos ainda de genitalidade na experiência amorosa entre companheiros (comrades) do mesmo sexo – como ressalta de sua resposta indignada ao questionário que lhe é enviado por J. A. Symonds, chefe do grupo dos “poetas uranianos” ingleses (os quais, como agrupação, foram os primeiros em assumir publicamente sua identidade homossexual no Ocidente), quem lhe sugerira que corroborasse uma sua leitura homossexual de Calamus –, é justamente com a força da voz whitma- niana que a temática homoerótica adquire status de cidadania literária na “alta poesia” da modernidade. Tal estimativa não deve ter deixado de acompanhar a escolha de Fer- nando Pessoa/Álvaro de Campos, quem, em “Ode Marítima” e em “Saudação a Walt Whitman”, deixa claro seu débito não apenas linguístico, isto é, no sentido de modelo escritural, como também temático (ainda que pelo viés da paródia, no caso de “Ode Marítima”) para com o nova-iorquino, como se tor- na claro neste último poema-homenagem, quando o trata de “Grande pede- rasta roçando-te contra a diversidade das coisas”, entre outros epítetos, depois de dizer-lhe que ele próprio é “dos teus, bem o sabes, e compreendo-te e amo- te […]/ E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,/ De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma”. Por essa aproximação literária, melhor dito: este “homoerotismo intertextual”, como o caracterizei, entre outros aspectos, esteve Pessoa bem preparado para responder, como Álvaro de Campos, aos ataques que à publi- cação das Canções, de António Botto (1922), tinham sido feitos pelo líder da protofascista Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa, Álvaro Maia, sob forma de um manifesto – Literatura de Sodoma – cujo episódio completo caracte- riza a entrada, por assim dizer “oficial”, da vertente homoerótica, assumida 2. “Homoerotismo Intertextual, ou: Que Diálogo é Esse? Álvaro de Campos ‘conversa’ com Walt Whitman”. In Berenice Bento et al. (org.). Imagem e Diversidade Sexual. São Paulo, Nojosa Edi- tores, 2004, pp. 254-260; anteriormente publicado, em versão mais compacta, como “La tra- dición olvidada: la poesia homoerótica en Whitman y Pessoa” (México, La Gaceta del Fondo de Cultura Econômica vol.1, 1996, pp. 12-17); e em Voz Lusíada (São Paulo, 2004, pp. 48-60). 121 O Cânone Impermeável como tal, isto é, como uma deriva da dicção moderna, na poesia em língua portuguesa. O Aviso por Causa da Moral, que responde ao referido manifesto, assinado por Campos e ironicamente datado de “Europa, 1923”, seguiu à publicação, assinada pelo Pessoa ortônimo, de “António Botto e o ideal estético em Portugal”, artigo que não defende a temática homoerótica direta- mente, mas trata o tema como um efeito da liberdade de esteta que caberia a Botto (“o único português, dos que conhecidamente escrevem, a quem a desig- nação de esteta se pode aplicar sem dissonância”)3. Nesse artigo, Pessoa fala em tom magistral do tema homoerótico, e as autoridades que cita são estetas do século anterior, Winckelmann e Pater à frente, cujos conceitos sobre o “amor grego” foram fundamentais para o estabelecimento da moderna cons- ciência homodirigida no período tardo-vitoriano. De forma conexa, Pessoa também defende a liberdade de expressão na questão da publicação de Sodoma Divinizada, opúsculo com o qual o “Profeta Henoch”, isto é, o escritor Raul Leal, tinha por sua vez defendido as mesmas Canções de Botto e o men- cionado artigo de Pessoa sobre elas, atacando, por sua vez, o já referido mani- festo de Álvaro Maia. Vale dizer, aqui, que Pessoa o faz com a autoridade que sabe ter como o poeta de proa da vanguarda lusa. Em poucas palavras, o duplo affaire das Canções de Botto e de Sodoma Divinizada nos permitem observar tanto a implantação da temática homoeró- tica na poesia escrita em português, mas também, devido ao peso de Pessoa, à sua “canonização” no âmbito da poesia portuguesa. Aqui, o poeta não acom- panha a recusa de seu mentor Whitman frente aos poetas ingleses. Nos trinta e tantos anos entre as respostas de Whitman a Symonds e a defesa pública de Pessoa de Botto e Leal, observamos uma mudança de mentalidade: o tema, cuja expressão passa a ser defendida como um direito do poeta, passa a ter cabida no reino do propriamente literário e daí, no espaço social e político. Isso não quer dizer que qualquer dos envolvidos portugueses tivesse tido sua vida facilitada por essa tomada de posição. Se a Pessoa cabe o papel mais 3. Cf. Aníbal Fernandes (org.), Sodoma Divinizada, Lisboa, Hiena Editora, 1989, p. 37. Com introdução e cronologia elaboradas pelo organizador. Horácio Costa 122 confortável de canonizador que escolhe o viés que privilegia naquilo que cano- niza – ao preferir não tratar do tema como transgressão das normas do decoro literário, mas como manifestação hodierna de uma constante estética –, Botto passaria por mil revezes, entre eles seu exílio perfunctório no Brasil entre os anos 1940 e 1950 e sua morte por atropelamento em condição de miséria na avenida Nossa Senhora de Copacabana, ao passo que Raul Leal viveu andrajosamente toda sua maturidade e velhice. Maisimportante do que isso, talvez, é importante frisar que ambos receberam pouca atenção literária, nem de público nem de crítica, em Portugal ou no Brasil, mesmo depois de terem sido defendidos por Pessoa, este sim objeto de enxurradas críticas em ambos os lados do Atlântico e pelo mundo afora4. Apesar do intento de Pessoa, não se pode dizer com propriedade que Botto e Raul Leal façam parte do cânone da poesia moderna em Portugal. Algo não fundamentalmente diverso, porém com resultado expressi- vamente diferente, acontece no México alguns anos depois. Por volta de 1928, assistimos à polêmica da “desvirilização da poesia mexicana”, que enfoquei em outro ensaio5. Essa polêmica opôs os participantes de “Contemporáneos”, grupo de poetas jovens que havia participado na publicação de uma antologia da poesia mexicana moderna (organizada pelo poeta Jorge Cuesta), e que publicava a revista homônima, a alguns membros do “Estridentismo”, movi- mento da primeira vanguarda mexicana (1921). O “grupo sem grupo”, como a si próprios se referiam os membros de Contemporáneos, ocupa um lugar excepcional entre as vanguardas latino- americanas: antes de qualquer definição estético-ideológica, sequer desejavam serem reconhecidos como “uma geração”. Não desfraldavam posições comuns que estimavam devessem ser tomadas como bandeiras desse coletivo que 4. Sobre o primeiro, ver, por exemplo, António BOTTO, Canções e Outros Poemas. Edição, cronologia e introdução de Eduardo Pitta. Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2008. Sobre o segundo, consulte-se Sodoma Divinizada, cf. nota anterior. 5. Escritos Llenos de Molicie: Notas acerca da Polêmica sobre a “Desvirilização” da Poesia Mexicana de 1928. Comunicação apresentada no Encontro Regional da ABRALIC – Associação Brasileira de Literatura Comparada (Rio de Janeiro, 2005). 123 O Cânone Impermeável relutava em assumir-se como tal, afora a defesa da liberdade de expressão individual e da abertura a informações culturais cosmopolitas, o que os expôs a todo tipo de patrulhamento ideológico. Um bom número de intelectuais mexicanos, entre eles os estridentistas, via nessas posturas desvios burgueses, no seio de um processo revolucionário que começara com a revolução mexi- cana de 1910, que buscava construir uma república de traços socialistas ao lado dos Estados Unidos da América. Não era fácil, nesse contexto, tal defesa, e é justamente ela que singula- riza, a meu ver, a intervenção de Contemporáneos na história cultural do perío- do. Essa defesa dificilmente poderia esquivar o tema da sexualidade. Alguns participantes de Contemporáneos foram assumidamente homossexuais – Carlos Pellicer, Salvador Novo e Xavier Villaurrutia –, e têm como um de seus principais núcleos temáticos justamente a afirmação do homoerotismo. Em- bora o temperamento de cada um desses poetas fosse consideravelmente dife- rente, a experiência homossexual invade sua poesia assim como a questão de sua sexualidade torna-se pública e é por eles publicamente defendida. Tal defesa, tal assunção não se deram sem custos para os envolvidos. Por exemplo, Xavier Villaurrutia morreu aos 48, vivendo exilado de seu país como professor de literatura hispânica em uma universidade norte-americana. Por sua vez, a biografia de Salvador Novo é surpreendente: tornou-se, apesar de todos os augúrios contrários, uma espécie de “homossexual oficial” do partido político do poder, o PRI (Partido Revolucionário Institucional), nas décadas finais de sua vida; sua posição no contexto do poder mexicano é uma exceção, como menciona Carlos Monsiváis em seu estudo Salvador Novo: Lo Marginal en el Centro6. Não houve, no contexto latino-americano, outro poeta homossexual que tenha conseguido arrebanhar tanto prestígio munda- no – e dinheiro… – como Novo. Ainda, sua autobiografia, na qual desce a deta- lhes sobre a vida homossexual no México revolucionário, La Estatua de Sal7, 6. México, Editorial Era, 2000. 7. Salvador Novo, La Estatua de Sal (com prólogo de Carlos Monsiváis). México, Consejo Nacional para la Cultura y las Artes-Conaculta, 1998. Horácio Costa 124 conforma outra exceção. Entretanto, como era de se esperar, a produção lite- rária de Novo sofre com essa proximidade aos mundos da alta sociedade e da política: ao final de sua vida, nos anos 1960, é visto como um hierarca pelos jovens, e tarda em que a crítica literária volte a ocupar-se dela; nesse sentido, a leitura recente de sua obra e de sua figura feita à luz dos estudos homosse- xuais vem resgatá-la em sua originalidade literária e sociopolítica. Mas volte- mos à nossa polêmica. Aqueles que não agridem os membros homossexuais de Contempo- ráneos, dentre os intelectuais, tornam-se suspeitos. Começa o que Carlos Monsiváis caracteriza como um “linchamento moral”: “Vilipendiarlos no sólo es proteger el patrimonio genital de la República; es también certificar la pro- pia virilidad” (Monsiváis, 2000, p. 71). Conforme menciona Guillermo Sheridan em Los Contemporáneos Ayer8, tudo acontece em função de uma colocação acusatória contra elementos de Contemporáneos de produzir “uma literatura não-viril”, feita por Manuel Maples Arce e Germán List Arzubide, poetas-próceres do Estridentismo, defensores expressos de uma belicosíssima forma de machismo cultural. Em 1934, seis anos depois da polêmica que foca- lizamos, o primeiro desses poetas irá pedir, como deputado, ao Congresso Nacional do México, que se proceda a uma ação legal contra “la comedia de los maricones y el cinismo de los pederastas que se amparan bajo la naciente publicidad de Proust y Gide” (Sheridan, 1985, p. 132), para que deixem de publicar obras que alega serem “danosas” à poesia mexicana. Felizmente, tal iniciativa não se concretizou; entretanto, a cisão entre estridentistas e contem- poráneos, devido a semelhantes ataques, impediu o diálogo entre ambos os grupos. Sem dúvida, é esta ausência que responde pela pequena importância dada, hoje, no cânone literário mexicano, ao Estridentismo, fato que, uma vez mais, singulariza a literatura do México no contexto latino-americano e, parti- cularmente, em seu confronto com a brasileira, toda ela estruturada pela capaz intervenção dos modernistas chamados “heroicos” na década de 1920. 8. Guillermo Sheridan. Los Contemporáneos Ayer. México, Fondo de Cultura Econômica, 1985. 125 O Cânone Impermeável Como sói acontecer, a palavra machista “pega”. Em 1928, uma das várias revistas literárias de então, o jornalista Jorge Mañach acusa Contem- poráneos de produzir “escritos llenos de molicie” – “escritos cheios de molí- cia”, de onanismo (Cf. Sheridan, 1985, p. 243). De chofre, o debate estético sobre os caminhos da experimentação literária incluía golpes dados na are- na da república das letras entre “machos” nacionalistas e “afeminados” cosmopolitas. Evidentemente, os membros homossexuais de Contemporáneos apres- saram-se em se defender. Villaurrutia e Novo seguiram na frente, manejando, o primeiro, em suas respostas, principalmente critérios literários e, o segundo, uma panóplia de sátiras e burlas de seus opositores. Por outro lado, José Gorostiza, o mais equilibrado do “grupo sem grupo”, poeta cuja obra, com a de Villaurrutia, traduzi ao português9, quem não poupara simpatia a seus companheiros de geração desde o princípio dos ataques, consciente do que estes escondiam em termos de ordenamento estético-ideológico, e desde a segurança de sua indubitável heterossexualidade, assinala o caminho para balizar o antagonismo assinalado, ao dizer, em 1932, em sua resposta a uma pesquisa jornalística sobre a pergunta “Está em crise a literatura de vanguar- da?”, que “lo verdaderamente ‘universal’ es lo original, y lo original es lo que cada uno lleva en sí, en origen y capacidad creadora para expresar y sensible para recibir” (Gorostiza, 1996, p. 330)10. Em resumo, a “originalidade” de seus companheiros de geração passava por sua identidade sexual, que nunca foi objeto941 Parte X Homocultura e Masculinidade Gay A Crise da Masculinidade Contemporânea FRANCISCO MACIEL SILVEIRA FILHO ......................................................... 949 Vivendo no Entre-Lugar: Raça e Homossexualidade na Construção de Identidades JOSÉ ESTEVÃO ROCHA ARANTES ............................................................. 959 Entre a Margem e a Linha: Produção de Subjetividades Homonormativas e Práticas Sociais Homofóbicas entre Homossexuais Masculinos MÁRCIO ALESSANDRO NEMAN DO NASCIMENTO E FERNANDO SILVA TEIXEIRA FILHO ............................................................ 973 Amores Clandestinos, ou o Sonho da Cinderela ELCIO NOGUEIRA DOS SANTOS ................................................................ 983 Do Bishônen aos Bears: Diálogos de Estética e Recepção nos Mangás GLÁUCIO ARANHA E JOSÉ MARIA PUGAS-FILHO ......................................... 991 Representações Sociodiscursivas da Homossexualidade IRAN MELO ......................................................................................... 1005 Memória Gay e Segunda Guerra Mundial TIAGO ELÍDIO ...................................................................................... 1015 Os Sentidos da Aceitação: Sexualidade, Emoção e Relações com a Família de Origem entre Jovens Gays LEANDRO DE OLIVEIRA ......................................................................... 1025 14 Homens, Homens Gays LUIZ FELIPE ZAGO ............................................................................... 1035 Diálogos com a Cultura Pop LUIZ FERNANDO LIMA BRAGA JÚNIOR ..................................................... 1045 Existe Preto e Branco para Além do Arco-Íris? Um Estudo da Interseccionalidade de Raça, Gênero e Sexualidade da Rua da Lama RODRIGO ANTÔNIO REDUZINO ............................................................... 1053 Homossexualidade e Identidade: Um Estudo do Homossexual Frente ao Preconceito Sutil SAULO SANTOS MENEZES DE ALMEIDA ................................................... 1059 O Ato Performativo Masculinizado no Transatlântico e o Mito da Virilidade do Homem Negro Ocidentalizado SUELY ALDIR MESSEDER ...................................................................... 1069 História Sexual Brasileira: Uma Perspectiva Foucaultiana sobre a Sexualidade e a Homossexualidade no Brasil do Descobrimento à Atualidade ZENILTON GONDIM SILVA E NÚBIA REGINA MOREIRA ............................... 1081 15 1. Universidade de São Paulo. Discurso de Abertura do IV Congresso da ABEH HORÁCIO COSTA1 Há oitenta anos o paulistano Paulo Prado publicava um Retrato do Brasil que a sociologia, e mesmo a historiografia literária, consideram um dos pilares do pensamento moderno brasileiro, junto com Casa Grande e Senzala, de 1933, de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, de 1936. Há oito décadas esta universidade não existia, e menos ainda o museu no qual nos congregamos. São Paulo era uma cidade em plena expansão devido ao influxo de imigrantes, mas estava, contudo, longe de ser o polo de expansão capitalista de hoje. O Brasil daquela época tinha um cariz agrário- exportador notável e, a bem dizer, apenas um décimo de nossa população habitava em centros urbanos de alguma importância. Ainda assim, mesmo que tendo sido escrito numa sociedade e num mundo tão diverso do atual, o estudo de Paulo Prado lê-se ainda hoje com proveito, tanto por seus acertos, não poucos, na titânica tarefa de interpretar um país elusivo como o nosso, como também pelos algo desconcertantes desa- certos que enfileira. Na soma de ambos, tem aquele Retrato do Brasil o grande mérito de permitir, ao leitor atual, entrar na forma mentis dominante de uma época, nas camadas bem pensantes da nação em formação; pelos olhos críticos de Paulo Prado, aquele Brasil se desnuda à nossa percepção contemporânea. Entretanto, ao passo que a tentativa de interpretação da história e da gênese da nacionalidade ainda nos parecem significativos e certeiros, deter- minadas avaliações do escritor ressaltam hoje como perfeitamente caducas. Horácio Costa 16 Ainda dispondo de um olhar próprio do século anterior, Prado refere-se à humanidade brasileira como sendo o resultado da fusão de três raças tristes, no que anuncia, a bem dizer, um duplo desacerto: primeiro, no relativo à fusão, revela possuir um ponto de vista antimiscigenação, ainda sucedâneo dos pre- conceitos puristas e eugenistas do século anterior; segundo, no que tange à nossa putativa “tristeza”, observamo-lo em perfeita desconexão com o espírito predominante do povo brasileiro, não sendo capaz de sintonizar-se então com o grande potencial fundamentalmente energético e álacre com o qual, ao longo dessas oito décadas, cada vez mais associamos nosso modo de ser. Em ambas as avaliações, sobressalta um quociente de enraizado precon- ceito contra a “coisa” nacional que, valha dizer a seu favor, apenas fazia quaren- ta anos havia formalmente superado a lacra da escravatura. Já em sua nota sobre Retrato do Brasil, Oswald de Andrade, nosso impagável pai-antropófa- go, dizia que não podia “compreender como um homem à la page” como Prado “escrevesse sobre o Brasil um livro pré-freudiano”. Em nenhum momento esta observação soa tão acertada como quando percebemos um ranço de puritanis- mo sobre a vida sexual do Brasil. Para corroborar o dito, cito um trecho que ele retirou do Tratado Descritivo do Brasil em 1587, de Gabriel Soares de Sousa: [...] e não contentes estes selvagens de andarem tão encarniçados neste pecado, naturalmente cometido, são mui afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não tem por afronta; e o que serve de macho se tem por valente, e contam esta bestialidade por proeza; e nas suas aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas. Paulo Prado relata ainda que, das 120 confissões feitas ao Santo Ofício às partes do Brasil, 45 referiam-se ao “pecado sexual”. Ele ilustra os “depoi- mentos de seus vícios” com uma descrição deveras longa, da qual extraio as seguintes passagens: Discurso de abertura do IV Congresso da ABEH 17 [...] Sodomita, esse vigário de Matoim, de 65 anos, cometendo atos desonestos com mais de quarenta pessoas, ou esse outro clérigo, Frutuoso Álvares, “homem velho que já tem as barbas brancas”, pederasta passivo, assim como o cônego Bartolomeu de Vasconcelos, apaixonado pelos negros de Guiné; e o sodomita incestuoso Bastião de Aguiar, menor de dezesseis anos que se ajuntava com o irmão mais velho e com um bacharel em artes, natural do Rio de Janeiro; [...] e João Queixada, morador em casa do governador d. Francisco de Sousa, e que dormia em Lisboa com os pajens do deão da Sé. Tríbade, essa famosa Felipa de Sousa, que conhecia como um Safo parisiense a arte de “falar muitos requebros e amores e palavras lascivas melhor ainda do que se fora um rufião à sua barregã” e que conseguiu penetrar, para saciar o vício, num mosteiro de monjas; tríbade também Luísa Roiz, que perseguia na sua fúria as negras da cidade. Mais de trezentos anos depois, Paulo Prado ainda avaliza os dizeres e valores dos primeiros cronistas. Isto é o que permite a Oswald de Andrade apontar uma componente “de português de governança e fradaria” nos pontos de vista morais do aristocrata paulistano. Oito décadas passadas, a situação mudou, e nós sentimos, talvez equi- vocada e ilusoriamente, que já fazemos parte de qualquer retrato do Brasil que se queira comprometido com a avaliação objetiva de nossa realidade. Multi- dões se reúnem a cada mês de junho em várias cidades de norte a sul, e parti- cularmente nesta, para festejar nossa dificilmente conquistada visibilidade no espaço social. Apesar disso, contamo-nos entre os primeiros, ou somos o país com o maior número de crimes de ódio contra homossexuais e direitos básicos nos são legalmente negados. Por tais razões de peso, portanto, temos bem presente que sob a aparênciade derrisão por parte dos participantes heterossexuais do “grupo sem grupo”. Ao contrário de Portugal, que ignorou António Botto e Raul Leal até há pouco, no México as obras dos homossexuais Salvador Novo, Xavier Villaurrutia e Carlos Pellicer são parte fundamental do cânone da poesia 9. Veja-se José Gorostiza. Morte sem Fim e Outros Poemas, São Paulo, Edusp, 2003, e Xavir Villaurrutia. Nostalgia de la Muerte/Nostalgia da Morte, Lisboa, Diário de Notícias, Programa Periolibros, 1994. 10. José Gorostiza: Poesía y Poética, Edição crítica de Edelmira Ramírez, México, Fondo de Cultura Económica/Unesco, Coleção Arquivos, 1996. Horácio Costa 126 moderna: objeto de culto nos dias que correm, entre outras razões pela defesa de sua opção sexual e da livre expressão, tiveram suas obras completas editadas por editoras oficiais de prestígio, como a Fondo de Cultura Económica, e são incluídos nos currículos escolares. Como vemos, a permeabilização do cânone pode implicar uma série de medidas, entre elas as do reconhecimento oficial, para o que à intelectualidade, à academia, pode perfeitamente corresponder tarefas de reciclagem e dimensionamento do acervo poético jazente. Seja como for, a existência de tais debates em Portugal e no México na década de 1920 podem e devem alertar-nos sobre a relativa defasagem da cultura e, particularmente, do registro subjetivo que pode significar a palavra poética em relação a temas de ampla ressonância, como o da exploração da diversidade sexual no contexto do Modernismo brasileiro. E podem e devem alertar-nos também para a necessidade de releitura do cânone em nosso âmbito doméstico, tratando na medida do possível de sua ampliação ou, em todo caso, de sua problematização crítica real: a nossos olhos atuais, o fato de que não tenha havido até a obra de um Mário Faustino ou um Roberto Piva, já nos anos 1950 e 1960, respectivamente, um registro homoerótico nítido no reino da “alta” poesia brasileira representa um problema de difícil porém imperativo deslinde, antes que uma simples constatação historiográfica. Nesse sentido, vale comparar as atitudes de Fernando Pessoa na polê- mica da “Sodoma divinizada” e de Gorostiza na da “desvirilização da poesia mexicana” com a de alguns poetas modernistas brasileiros frente à “ciliciante” (utilizo o termo de Haroldo de Campos para referir-se ao tópico que passo a tratar) questão da ainda putativa vivência homossexual de um Mário de Andrade, por exemplo, tema este transformado em anátema por alguns dos intelectuais que se dedicaram à crítica de sua obra, bem como por alguns de seus parentes. Se, por um lado, a correspondência de Mário ainda está clas- sificada como sigilosa na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, graças ao que a posteridade jamais terá acesso a aspectos de sua vida privada, por outro lado há que recordarmo-nos de apenas dois acontecimentos, para situar, com evidente prejuízo para a cultura brasileira do Modernismo, a resposta de seus companheiros de geração. 127 O Cânone Impermeável O primeiro diz respeito a uma anedota algo consabida: a ruptura entre Mário e Oswald se dá em função de vários fatores, entre os quais incidem os de ordem temperamental e social, mas o estopim é o fato de este haver tratado aquele derrisoriamente como “Miss São Paulo de costas”; a ofensa impediu que o autor de Macunaíma perdoasse a blague de seu companheiro de armas, e, apesar das tentativas deste, o “arlequinal” Mário jamais voltou a tratar o “palhaço da burguesia” Oswald. Homofobia de palhaço contra arlequim? Ho- mofobia internalizada deste à luz sádica daquele? A terminologia contempo- rânea não deslinda o problema, uma vez que o quadro civilizacional que se vive hoje é muito diferente. O que cabe ao crítico, o intérprete do Brasil na atuali- dade, é verificar a malaise que o tema da homossexualidade desperta nesses próceres culturais, que poucas vezes são de fato considerados sob este viés, o que em si não deixa, por sua vez, de causar pasmo. A modernização pela que lutaram e por cuja implantação foram em boa medida responsáveis elide o tópico: quando não silencia sobre ele, faz troça. O que será pior? O segundo acontecimento a que me refiro indica que sim, existe algo pior: a concessão aos bons costumes, a autocensura induzida por um par da mesma geração. Trata-se da supressão de um verso de um poema de Mário, “Girassol da Madrugada”, publicado em Livro Azul (1940), mas cuja escritura remonta aos primeiros anos da década de 1930. Em função desse verso hoje desconhecido, Mário é instado por Manuel Bandeira, seu correspondente no Rio de Janeiro – e, recordemo-nos, o decano dos modernistas da primeira geração, cuja autoridade estética e moral nunca foi disputada entre os dife- rentes subgrupos destes, sim, valentes renovadores da cultura nacional – a não publicar o que escrevera, devido a seu provável cariz homossexual. Na pas- sagem em questão de “Girassol da Madrugada”, quando Mário arrola seus “amores eternos”, incrusta-se um verso cuja excepcionalidade intriga: “Ecli- pse, boi que fala, cataclisma”. Algumas evidências levam a crer que este verso substitua, como disse, um anterior, rasurado da correspondência entre os dois poetas, e objeto de extensa negociação entre Bandeira e Mário, e que leva quase três anos para ser estabelecido, numa espécie de pacto entre eles. Assim, Mário não mencionaria seu amor por um homem, porém substitui o verso que Horácio Costa 128 Bandeira considera impublicável por esse que repito: “Eclipse, boi que fala, cataclisma”. Termino aqui minhas observações no presente ensaio, não sem pro- meter para breve uma análise de todo esse especioso imbróglio. Por enquanto, vale tecer uma última consideração: pelo que foi arrolado anteriormente, não é demais aferir a impermeabilidade do registro homoerótico no âmbito do cânone da poesia brasileira moderna como um fenômeno não desprezível dos limites de nosso processo de modernização como um todo. As convenções do dizer, ou ainda, o exercício caviloso da autoridade da heterossexualidade compulsória pesaram mais, para nossos modernistas, do que a lealdade para com o poeta possivelmente hipossuficiente em termos sociossexuais. Mário não teve seu Pessoa nem seu Gorostiza, como Botto e Novo. Mas, no aspecto que nos ocupa, Mário não foi nem Botto nem Novo. A palavra ho- mossexual teria que esperar outros trinta ou quarenta anos para plasmar-se na dita “alta” poesia brasileira. Por quê? 129 Para uma Estética Pederasta EMERSON DA CRUZ INÁCIO1 O marginal do marginal pode virar central. Isso o Cânone adora. [...] Que fará com seres que tais daqui para a frente O Cânone? Horácio Costa Considerando os questionamentos e proposições apresentados por ocasião deste colóquio, ou seja, repensar os rearranjos, ressignificações e novas articu- lações tanto das subjetividades contemporâneas, como das demandas impos- tas pela hipermodernidade, o trabalho a seguir intenta estabelecer as possíveis relações entre o cânone literário e uma conformação estética baseada na expe- riência e na subjetividade homossexuais. Esclarecemos, antes, que o pensa- mento aqui descrito resulta de convergências, aproximações e confrontos, entre abordagem corrente do campo literário, como a de Antonio Candido, o pensamento de Michel Foucault e a Teoria Queer, como horizontes aqui vistos em sua possibilidade de interação. O cânone: relativizações Em seus artigos “Linguagem e Literatura” (Machado, 2001) e “Lingua- gem ao Infinito” (Foucault, 2002), Foucault teoriza a respeito das implicações da linguagem e de como esta se articula de maneira a estabelecer o que se convenciona chamar literatura. Para o filósofo, a literatura – como fenômeno 1. Universidade de São Paulo. 130 Emerson da Cruz Inácio moderno que se constitui como discurso – é fruto do poder disciplinar dos séculos XVIII e XIX, mesmo poder que, aliás, influi sobre os dizeres do corpo e do sexo. É esse o período da históriamoderna em que a vida comum passa a ser “discursivizada” e a tomar domínios específicos dentro dos discursos vigentes. Assim, é nesse ínterim que a literatura, como os outros saberes de e sobre o homem, começa a se diferenciar dos demais textos, articulando-se como um domínio específico da linguagem, por um lado, e como uma forma de institucionalizá-la, por outro. No primeiro artigo, o filósofo alude ao fato de que a pergunta tão cor- rente no momento da produção de seu artigo – “o que é a literatura?” – é uma questão que está no cerne da própria literatura, uma vez que nenhuma obra nasce com tal rótulo, mas são as injunções históricas e culturais que a deter- minam como um arranjo particular em sua relação com a linguagem. Ou seja, quer afirmar que o texto não “nasce” literário, mas, torna-se função das estra- tégias de leitura, abordagem da crítica e dos discursos que procuram justificar a presença da obra no interior de um sistema mais restrito. Analogamente, poderíamos pensar que nada do que constatamos per- tencer aos cânones literários está ali por acaso, mas, antes, pelas dinâmicas diversas que consagram ou despriorizam os diversos aspectos estéticos que concorrem numa mesma época. Nesse sentido, todos e quaisquer cânones são excludentes por natureza, visto que denotam sempre uma eleição do que pode e deve fazer veicular uma “verdade”, seja ela divina, estética, literária ou legal. Retomando Foucault, o cânone literário funcionaria como um disciplinador dos diversos discursos autodeclarados estéticos, mas que por diversas razões tornar-se-ão excêntricos, marginais e/ou periféricos, procurando responder aprioristicamente à demanda “o que é literatura?” E o a priori aqui estabelece a confusão: quem define quem? É o cânone que responde, chancelando e incorporando a produção, ou seria a produ- ção que, pelo caráter “literariedade”, acaba por reivindicar seu lugar naquele espaço? Coincidência ou não, os dois processos se dão simultaneamente, se confundindo nessa dinâmica, inclusive com fatores que as abordagens mais tensas consideram extraliterários, como classe social, permeabilidade do autor 131 Para uma Estética Pederasta ou da obra em determinados contextos e espaços, gênero, raça e etnia, ou ainda com o tipo de suporte utilizado na divulgação da obra. Aliás, o trinômio gênero-sexo-orientação sexual talvez seja de todos os elementos citados aqui o que mais cause (ou tenha causado) desconfortos ao cânone, considerando sua inscrição nas histórias literárias. Mas é oportuno destacar que, embora os tais fatores externos a que aludimos anteriormente, dentre os quais a tríade sugerida, sejam veemente negados, muito salta aos olhos o fato de a seqüência masculino, homem e heterossexual ser silencio- samente o modus operandi dos cânones literários. De certo que, como aponta Pierre Bourdieu, esta trindade seja o resultado das modernas formulações bur- guesas do século XIX e, consequentemente, pode estar ligada àquilo que o filó- sofo descreveu sobre o patriarcado: o coroamento do homem, ser do sexo mas- culino, como origem, destino, forma e padrão epistemológico. Logo, a ideia de cânone que se estabelece definitivamente entre nós nos oitocentos, perpetua- se também em sua intrínseca ligação com a forma de se conceber o mundo, logicamente (e não havia outro modo) filtrada pela subjetividade majoritária de então. Contraditória é a situação da literatura nesse contexto: grande espaço da subversão das linguagens e do discurso, transgressora por natureza, por um lado, e efetivo elemento de confirmação de um modo burguês de ser, em que tudo o que fere aquela moral será efetivamente extirpado de seu corpo. No caso, a literatura, expressão do cânone – porque veículo de circulação de discursos e ideologias – acaba por colaborar também para o controle dos corpos, para a perpetuação do interdito sobre a sexualidade, e por silenciar ou punir tudo e todos os que não são contemplados pela moralidade burguesa ou que nela não se enquadrem. Não nos causa estranheza o fato de que o cânone a que aludimos do século XIX tenha apenas conservado em seu arranjo autores e textos que enfatizaram os valores vigentes de então, como Eça de Queirós, Aluísio Azevedo ou José de Alencar. Em grande parte, esta literatura vai representar controle dos corpos, assim como, ao apropriar-se do discurso médico-patológico, assumindo com isso o lugar de juiz social, moral e cultural, ocupar o espaço pedagógico de formação do espírito. 132 Emerson da Cruz Inácio Em lado oposto, uma produção cujos vieses tensionaram com os modelos vigentes, seja por contemplarem conteúdos cuja circulação feria “moralidades”, ou por adotarem procedimentos estéticos não normativos, ou, ainda, temas menores. Assim, foram expurgadas dos cânones de língua portuguesa produções que denotavam a rasura dos valores do patriarcado, como A Silveirinha, de Julia Lopes de Almeida, Lésbia, de Maria Benedita Bormann, O Barão de Lavos, do português Abel Botelho; e as Canções, de António Botto, até hoje considerado um poeta menor no arranjo literário português. Por outro lado, a crítica formadora dos cânones procurou obliterar em determinados autores, como no já clássico caso do Elixir do Pajé, de Bernardo Guimarães, aqueles conteúdos que não se conformavam aos jogos discursivos sobre os quais se apoiavam os interesses dessa crítica. Nesse dia- pasão, ainda, as Odes de Álvaro de Campos, e o inglês, a língua do Eros de Fernando Pessoa, cujo viés homoerótico explícito ou deixou de ser mencio- nado ou foi esvaziado em favor do discurso da identidade nacional. Implicitamente já está sugerido que no jogo canônico alguns temas e algumas subjetividades foram, por questões históricas e sociais, excluídas do processo. Mas o que mais reclama sentido é que os avanços históricos e sociais não representaram necessariamente a mudança ideológica no cânone. O que se quer aqui é promover o processo de dessubalternização a que alude Spivak (apud Landry & Maclean, 1995), não pelo desmanche do cânone, mas por sua abertura às dinâmicas identitárias mais contemporâneas. E, para tanto, se a in- serção nesse campo demanda uma formulação estética específica, propomos co- mo base naquilo que já nos foi dado pela própria literatura a criação de um arca- bouço estético capaz de compreender a presença de homossexuais masculinos e femininos no texto literário, assim como sua intervenção como produtor. Uma estética pederasta Na Grécia antiga, a pederastia consistia numa relação de aprendizagem a que todo cidadão deveria estar submetido em uma determinada fase de sua 133 Para uma Estética Pederasta vida. Não revelava necessariamente um comportamento ou subjetividade, mas sim um procedimento necessário à formação dos cidadãos do sexo masculino, livres e gregos, permitida entre homens já maduros e adolescentes imberbes (Dover, 1994). Nesse jogo incluía-se, ainda, a aprendizagem amorosa em que o sexo também estaria envolvido, sem que isso implicasse prejuízo moral ou social ao preceptor ou ao efebo, pois se consideravam que todos os indivíduos (homens) respondiam a estímulos eróticos distintos em momentos distintos da vida. Findo o período de formação, com o aparecimento dos traços de ma- turidade, o jovem retornaria à sua família e não seriam mais permitidas rela- ções homoeróticas, pelo menos não oficialmente. No correr da História, o ter- mo deixa de designar uma fase da vida do homem e passa a ser análogo ao comportamento sexual entre homens, perdendo com isso seu sentido original. O pederasta passa a ser, então, aquele cujos hábitos sexuais traem sua essência masculina, sua identidade, sua religião, seu corpo e seu natural desejo, como sinaliza Eve Sedgwick (1985). Observamos aqui a migração do sentido de prática social para a descrição de um comportamento que, segundo Foucault, será talvez o modo mais observado pelas formas de controle, discurso, ideo- logia e do saber no correr da IdadeModerna, ainda que a pederastia compre- endesse, no passado, o aprendizado de uma maneira estética de ser e se portar. Os séculos XVIII e XIX definitivamente transformam o pederasta em “iden- tidade”, em crime, em exemplo de comportamento capaz de comprometer os então Estados-nações em processo, como também os já estabelecidos, como apontaria Teófilo Braga, poeta, político e historiador português. Portugal, por exemplo, experimenta dessas duas concepções por oca- sião da polêmica (1922-1923) em torno da publicação das Canções de António Botto, de teor notadamente homossexual. Fernando Pessoa e Raul Leal e, posteriormente, José Régio, procuraram tecer um conjunto teórico-crítico que propunha um modo de ser baseado nas experiências particulares do indivíduo e que se desdobrariam, inclusive, em preceitos estéticos capazes de serem detectados na obra do artista. Pessoa e Leal, em princípio, partem em defesa de António Botto, acusado publicamente de fazer difundir em Portugal o vício trácio, a prática sodomítica, o amor grego, o pecado nefando, visto que veicu- 134 Emerson da Cruz Inácio lava em seus poemas declaradamente seu amor por rapazes desconhecidos, exploradores e de aluguel. A polêmica gera fortes reações na sociedade, cul- minando com a publicação do ensaio Sodoma Divinizada (Bragança, 1989), em que Leal defendia a pederastia como uma forma moderna de, pela prática da sodomia, pela mudança no comportamento sexual dos homens portugue- ses, pela bestialidade pura e pela diversidade das sensações, alcançar a inte- gração do homem com o cosmos, o universo, todo ele “vertigem”, como o que- ria Pessoa. Tinha na sodomia o meio mais curto e certo de proporcionar ao indivíduo, pederasta, a ascese. Para que essa elevação fosse alcançada, era pre- ciso, pela pederastia, tornar a vida uma experiência estética constante. José Régio, por sua vez, ocupa-se, a partir de 1927, da publicação da revista Presença, em que descerra o conceito de literatura viva, que bordejava questões muito ligadas à expressão de uma sensibilidade autoral e do revelar da subjetividade (poética e pessoal) do artista no interior de sua obra. Esse poeta aproveita-se do precedente intelectual aberto por Pessoa e Leal, e de sua também simpatia por Botto (mais como performativo que era que como poe- ta), para, a partir daí, teorizar sobre como “existir” de acordo com seu próprio desejo (ainda que ficcional) no espaço da literatura. Atentemos para a lista de autores “vivos” para o poeta – Oscar Wilde, Jean Cocteau, Sá-Carneiro, André Gide, Marcel Proust, Botto, Pessoa, Shakespeare, Noel Coward –, todos auto- res inscritos na cultura como realizadores de uma escrita em que os pressu- postos eróticos e ligados a uma vivência sexual do corpo estão em questão e, por que não dizer, são o objeto principal de sua arte. A única ressalva é a ine- xistência de autoras na lista tecida por Régio, o que confere à sua postulação estética, num juízo mais contemporâneo, um tom perigosamente masculinista e excludente. Por extensão, majoritariamente, os exemplos de vida insuflada à litera- tura e à arte contemplam artistas que experimentaram esteticamente não só a exposição do corpo, mas, principalmente, o homoerotismo e a homosse- xualidade, demonstrando como a forma de existência dos indivíduos pode interferir ou determinar os discursos que produziam, tendendo à criação de uma política ontoestética. O que a arte viva põe em tela é não só a esteticização 135 Para uma Estética Pederasta da vida, como também a vivificação da arte, baseada nas experiências ficcio- nais ou não do indivíduo, e que pode ser acrescida pela orientação sexual que o constitui e que pode influenciar em seu trabalho estético. Pode ser também uma história do corpo no espaço literário, uma vez que, ao destacar como exemplo autores como Jean Cocteau e Oscar Wilde, o que está sendo discutido também é a configuração que tais artistas conferiam à corporeidade como forma de traduzir os dramas humanos e particularmente os pessoais, os desejos eróticos e a existência. Em todos os artistas arrolados no correr dos catorze anos da revista, Régio detectou um certo compromisso artístico e estético, um cuidado com o procedimento literário que os distinguia da série temporal em que se inseririam. Coincidência ou não, autores que amplamente tematizaram questões ligadas à experiência homossexual ou identificados/ relacionados ao que então se entendia por pederastia, ou que, em algum grau, eram, foram ou tornaram-se reconhecidos pela orientação homoerótica bio- gráfica ou estética. Há, pois, em Régio, a detecção de que seu conceito de literatura abre- se também à compreensão estética da vida, do corpo e da homossexualidade, convertida em pederastia pela esteticização da existência e do corpo, escre- vendo assim um texto do desejo, que por consequência revela sexualidades e formas de erotismo. Tal fato pode apontar para a tentativa de se criar também a ideia de uma “estética pederasta”, ou de ler, considerando o eixo paradig- mático, literatura produzida por pederasta na mesma sequência da literatura viva, no sentido em que essa conceituação estética apontaria para um conjunto de procedimentos que estariam atentos a representar, apresentar e configurar o homossexual/pederasta na literatura e em seus recursos. Entretanto, é recorrente na crítica de gênero que um conceito como o de homossexualidade tenda a apontar a formação de identidades específicas. Como não se pode afirmar a princípio a formulação de uma identidade sexual homoerótica, em termos modernos, na crítica ou na poesia de Régio, ou em quaisquer outros modernistas e, sim, de um modelo de ordem estética, opta- se, pois, pelo uso de pederastia, visto que esta, em seu arcabouço pedagógico e moral, pode melhor caracterizar o ideal implementado através da literatura 136 Emerson da Cruz Inácio viva. Até porque, como bem nos indica Judith Butler (2003, pp. 186-187), a destruição do corpo pela história “é necessária para produzir o sujeito falante e suas significações”, já que, descrito pela linguagem, se enfraquece pela e na dominação dos discursos sobre si próprio. Nesse sentido, assumir a produti- vidade de um termo como pederasta é também ressignificá-lo, não só pela ló- gica do gay pride, como também pela subversão que tenderia a indicar dos valores atribuídos pela cultura heterossexual e homofóbica, revalorizando-os como recurso político, particularmente se consideramos a genealogia de destruição do corpo pederasta ao longo da História e de sua particular repres- são, como destaca Foucault no século XIX. A estética pederasta, nesse sentido, seria uma rearticulação da perspectivação de gênero para além do par formal masculino-feminino, parti- cularmente das homossexualidades, no interior da literatura, e propiciadora de uma descompressão do silenciamento da (homo)sexualidade como para- digma possível e protocolo de leitura. A estética pederasta constituir-se-ia como um somatório de aspectos biográficos, ficcionais e estéticos, e seria ba- seada na experiência homoerótica, seja na ordem do vivido, seja na ordem do ficcionalmente literário, contribuindo para a caracterização da pederastia co- mo recurso estético e forma de vida. Seus princípios basilares constituir-se- iam a partir da esteticização da vida e a cotidianização da arte – gesto próprio das vanguardas –, propiciados pelo confronto das experiências dos artistas com aspectos de suas obras e de sua ética, como sujeitos em sua relação com o mundo e com a arte. Cotejando as duas perspectivas de estética da existência – a de Foucault e a dos modernistas portugueses –, pode-se perceber que em ambas há a pre- ponderância do dado ético na constituição de um modo de vida particular do sujeito – literário ou histórico – em sua relação com a própria experiência. Em outras palavras, quando Régio e Leal defendem a liberdade do indivíduo frente às imposições estéticas e/ou sociais,põem em questão as normas sociocul- turais que lhe são impostas, questionando seu estatuto, sua validade como modelo totalitário e seu arranjo dentro dos mecanismos discursivos vigentes. Leal, ao propor como meio de elevação pessoal a prática da sodomia, e Régio, 137 Para uma Estética Pederasta defendendo um princípio de liberdade e revolta frente à vida, colocam também em xeque o paradigma do gênero binariamente fechado, atribuindo aos sujei- tos a possibilidade de “serem” para além daquilo que lhes é esperado. Se, por um lado, podemos detectar nessa formulação tanto atitudes próprias das van- guardas quanto das urgências do século XX, não se pode negar, entretanto, que denotam uma preocupação precoce de se tentar dar vazão e visibilidade a fenô- menos que não poderiam ser compreendidos nem pelo arranjo sociocultural mais corrente, nem pelas conformações literárias assentes. Boa parte do que hoje se constitui como nosso cânone efetivamente pautou-se num projeto estético criterioso e dedicado a estabelecer bases sólidas sobre as quais determinadas produções, mesmo que oriundas de um só autor, pudessem se apoiar, como muito bem ocorreu com os movimentos de vanguarda, que, desejosos de estabelecer a ruptura da arte nova, dedi- caram-se à composição, por exemplo, de manifestos capazes de traduzir sua capacidade criativa. Como o ideal da vanguarda, a proposta de criação de uma estética pederasta pode e deve espraiar-se para além dos fenômenos com os quais originalmente se relaciona, a fim de efetivamente constituir-se como um conjunto analítico e produtivo capaz de, inclusive, pôr em questão as bases de formação do cânone literário. Nesse sentido, é oportuno apontar aqui algumas possibilidades constitutivas dessa formulação estética, ressignificando categorias próprias do campo literário a partir dos elementos próprios à comu- nicação literária: a) PRODUTORES: como suposta fonte e origem do que diz, o enunciador decalca no que produz aquelas experiências que o plasmaram como indivíduo. Ainda que não compartilhe experiências diretamente ligadas ao homoerotis- mo ou à homossexualidade, o artista pode tematizar aquilo que para si vive no espaço do ficcional, retraduzindo na própria ficção essas experiências como vivências literárias. Nesse caso, obras como “Ode Marítima” (Pessoa), “Pilates e Orestes” (Machado de Assis), Crônica da Casa Assassinada (Lúcio Cardoso), Em Busca do Tempo Perdido (Proust) podem passar a constituir um cânone de representações de experiências eróticas não necessariamente partilhadas por sua autoria, mas que ganham, no ficcional, a independência necessária 138 Emerson da Cruz Inácio para dar vazão ao desejo entre iguais. Por outro lado, a autoria faz a obra e, nesse caso, autores homossexuais cujas obras tematizem a homossexualidade muitas vezes podem agregar seu próprio sentido sexual àquilo que produzi- ram. Aqui se soma, por exemplo, Mário de Sá-Carneiro, cujo comportamento de ruptura com os padrões de masculinidade doa à Confissão de Lúcio um novo sentido e coopta a obra para o universo da tematização homoerótica. Ou mesmo Bernardo Carvalho, como se atesta na recente entrevista dada a revista Junior (abril de 2009). b) RECEPTORES: algumas obras, como O Barão de Lavos (Abel Botelho) ou a série erótica apócrifa portuguesa As Lúbricas, As Sáficas, O Ganimedes, não nasceram obras de compromisso com a tematização identitária, mas, an- tes, como formas de denúncia de comportamentos ditos “obscenos” pela socie- dade do momento em que começaram a circular. Entretanto, o deslocamento temporal associado aos avanços sociais e a necessidade de certos setores, como os homossexuais, de se verem tematizados, acabou provocando a migração dessas obras do campo da denúncia para o campo da representação homosse- xual, atuando o receptor na leitura de si mesmo na obra lida. Por exemplo, na atualidade, a comunidade gay portuguesa reconduziu e consagrou tanto a obscura série oitocentista, quanto o romance naturalista supracitados como efetivos textos de representação homossexual, ainda que em sua origem não estivessem nesse campo de intencionalidades. Nesse caso, texto e receptor, silenciosamente, trabalhavam num mesmo diapasão, que era o de tanto reunir os sentidos dispersos social e culturalmente, quanto o de provocar a necessária identificação da obra, não só com seu público, mas com os desejos desse mes- mo público. c) MENSAGEM/TEXTO: segundo Jacob Stockinger (1978), todo texto literário é uma tomada de posição dentro do campo das políticas sexuais, transmitindo assim marcas sígnicas capazes de identificá-lo com um gênero ou orientação sexual específica. Para tanto, Stockinger teceu a noção de “ho- motextualidade”, a fim de demarcar literariamente que a posição do homos- sexual na sociedade e na cultura poderia ser percebida através dos textos, no caso, dos “homotextos”. Priorizar-se-ia, com isso, uma abordagem da homos- 139 Para uma Estética Pederasta sexualidade pelo texto, que, segundo o crítico, seria o espaço próprio para encenar a aproximação entre a literatura e as (homo)sexualidades. Recen- temente, Denílson Lopes, no ensaio “Escritor, Gay”, retoma a noção para referir-se às questões que envolviam a escrita homossexual, considerando que alguns textos estão prenhes de sentidos capazes de serem decodificados por uma determinada comunidade leitora. Em outras palavras, romances como Cabelos de Metal ou Copacabana Posto 6, de Cassandra Rios, mais que ape- nas servirem de entretenimento pornográfico para homens (e mulheres), constituíam àquela altura (anos 1960 a 1980), por seu conteúdo, como uma forma de se fazer circular os desejos femininos interditos, apoiando-se nem que fosse no conhecido fetiche masculino por mulheres lésbicas e no rótulo “pornográfico” para com isso fazer circular romances cujo conteúdo era e são perceptivelmente hoje veiculadores de uma lesbianidade. d) AGENTES DE TRANSFORMAÇÃO/INTERMEDIÁRIOS: as novas abordagens teóricas no campo dos estudos literários, assim como a emergência de atores sociais antes silenciados criam uma nova reivindicação de representatividade cultural por parte desses estratos sociais discriminados social e culturalmente. Muitas dessas demandas têm sido atendidas pela intervenção da crítica literária em objetos já consagrados, como Fernando Pessoa e as recentes descobertas de poemas marcadamente homoeróticos, e pela revisão e subs- tituição de leituras consagradas, como a que Antonio Candido fez do par Riobaldo/Diadorim, por outras agora construídas sobre novos sentidos. Além disso, editores, editoras, blogues, linhas editoriais têm investido pesadamente na formação de um público e de nichos de mercado capazes de abranger a pro- dução literária LGBTT ou com ela identificada. Da mesma forma que a ascenção do romance no século XIX solicitou, como indica Sandra G. Vasconcellos (2007), a criação de teorias mais específicas, a intervenção desses intermediá- rios na produção, circulação e consagração das obras aqui referidas redundará na criação de abordagens mais atentas às particularidades desses fenômenos. Podemos, também, ao lado dos elementos descritos, compreender a estética pederasta, ainda, como um conjunto de recursos que envolvem a auto- ria, o conteúdo expresso pela obra, leitor-modelo, sentidos construídos e até 140 Emerson da Cruz Inácio marcas, como dialeto, podendo ser entendida como uma unidade de sentido para o texto homoerótico e/ou que tematize a diversidade sexual. Também é nosso intuito, a fim de tornar essa compreensão algo mais abrangente, compreender nesse concerto as mulheres lésbicas, as transexuais, as travestis e demais subjetividades, a fim de continuar no sentido de construir uma esté- tica entendida, mais capaz de atender performances para além do homoero- tismo masculino. Do direito à diferença ao direito à literatura Aqui, cabe lembrar Antonio Candido, no já clássico “Direito à Lite- ratura”, emque versa sobre a relação da literatura com os direitos humanos: “[...] aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo. Na verdade, a tendência mais funda é achar que nossos direi- tos são mais urgentes que os do próximo” (Candido, 2004, pp. 169-190). Se a literatura é um direito do homem, ela precisa necessariamente atender às diversas nuances que constituem esse homem na contemporaneidade. Parti- cularmente porque sabemos que o cânone e a instituição literária ainda não foram repensados de forma a atender às novas imposições socioculturais. Nessa perspectiva, os homossexuais, lésbicas, travestis e transgêneros têm engendrado seu processo de dessubalternização, rasurando a ideia de que os grupos “minoritários” não têm direito à plena expressão, como atesta Spivak (em Landry & Maclean, 1995). Direito à formulação de uma identidade específica também como procedimento do campo literário; direito de acesso ao cânone a partir dos mesmos elementos que perpetuam o cânone como horizonte de sentido literário; se a literatura é uma performance, as perfoman- ces de gênero e identidade também precisam e podem constituir o todo mais amplo da perspectiva literária. Não se trata aqui apenas de pensar que o segmento LGBTT tenha tanto direito ao acesso à literatura, como produtor, conteúdo e recepção, ou que, como ensina o mestre, seus direitos sejam mais urgentes que os do próximo. 141 Para uma Estética Pederasta Trata-se, sim, de pensar que se a literatura constitui pela marca zero, ou a for- ma não marcada a que alude Saussure, quando se fala em gênero, raça e classe pode-se inferir que existam, consequentemente, pares opositivos que denotam um para além dessa concepção mais dura do que é literatura. Em outras pala- vras: aquilo que nega a literatura ou a crítica é o que talvez esteja no bojo das questões principais da literatura hoje. Ainda, não se trata aqui de defender a validade maior ou menor de um direito, nem de acreditar somente na urgên- cia dos direitos homossexuais, visto que há negros, índios e toda a periferia ainda por dizer. Trata-se, talvez, de procurar sintonizar a experiência estética e de crítica às demandas sociais hoje instaladas. Atendendo ao que diz Candido, às funções humanizadoras, psicológi- cas, formadoras e morais da literatura, estaremos necessariamente, no que se aplica aos homossexuais, exercendo o direito a uma articulação estética que lhe seja própria. Assim como as mulheres desde fins dos anos 1960 trabalha- ram na construção e na constituição de uma crítica literária descolonizada das questões masculinas, é preciso também instalar, no âmbito dos saberes lite- rários, uma nova epistemologia capaz de criar condições de entendimento de obras literárias cuja autoria, recepção, conteúdo ou espaço de circulação prio- rize o universo das homossexualidades. Referências bibliográficas BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999. BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão de Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. CANDIDO, Antonio. “O Direito à Literatura”. In __________. Vários Escritos. São Paulo, Duas Cidades, 2004. DOVER, K. J. A Homossexualidade na Grécia Antiga. São Paulo, Nova Alexandria, 1994. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade III: O Cuidado de Si. 5ª ed., Rio de Janeiro, Graal, 1988. . “Linguagem e Literatura”. In MACHADO, Roberto. 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De alcoviteiras e alcoviteiros Importante é o papel desempenhado pelas alcoviteiras nos enlaces e desenlaces amorosos de farsas e comédias que, ao longo do século XVI ibérico, se inspiraram no modelo latino. Que o diga Celestina (Comedia de Calisto y Melibea, Fernando de Rojas, 1499), que se imortalizou nos dicionários espanhol e português como metonímico sinônimo de alcoviteira. E quem não se lembra das gil-vicentinas Leonor Vaz (Farsa de Inês Pereira), Branca Gil (O Velho da Horta), Brígida Vaz (Auto da Barca do Inferno)? 1. Universidade de São Paulo. 144 Francisco Maciel Silveira Outro exemplo no Quinhentismo português é o de Jorge Ferreira de Vasconcelos, que nos deixou três comédias: Eufrosina, Ulissipo e Aulegrafia. Na primeira, uma alcoviteira, de nome Filtra, está a serviço de Cariófilo, que pretende seduzir Pelônia, uma moça do povo. Em Ulissipo, temos uma mãe (Macarena) que é a alcoviteira da própria filha (Florença), além de Constança de Ornelas, que é solicitada por dois galantes (Otonião e Régio) para que lhes facilite os encontros e amores com Tenólvia e Glicéria, filhas do rico cidadão Ulissipo. Dará título à terceira comédia de Jorge Ferreira de Vasconcelos, uma velha dama do paço, alcoviteira por desfastio e libertinagem, de nome Aulegrafia. Não obstante o papel de terceiro seja comumente atribuído às mulhe- res, a comediografia clássica portuguesa no século XVI registra a presença de homens no desempenho da alcovitice. É o que se lê nas duas comédias que Sá de Miranda nos deixou. Em Os Estrangeiros, escrita por Sá de Miranda à roda de 1527 ou 1528 (Roig, 1983, p. 21), e com que ele teria introduzido a comédia dita clássica em Portugal, a bela Lucrecia (loura de olhos verdes) é assediada por quatro pre- tendentes. Cada um deles recorrerá aos préstimos de um terceiro: Amente será ajudado por Calídio, seu moço de serviço; o soldado fanfarrão Briobris pelo truão Devorante; Bertrando pelo casamenteiro Dório; o velho doutor Petrônio pela criada Sargenta. A rigor, apenas Dório tem por ofício a alcovitice. Em Vilhalpandos, que se supõe escrita pouco depois de 1537 (Roig, 1983, p. 27), o alcoviteiro Milvo acabará por protagonizar os ardis com que embrulhará e esbulhará todos os pretendentes da cortesã Aurélia, cidadela que, guardada a sete chaves pela cafetinagem da mãe, Guiscarda, recebe o assédio não só do bom e ingênuo rapaz Cesarião, como também dos fanfarrões espanhois, Vilhalpando I e II. Até aqui nada de novo ou extraordinário na presença de alcoviteiras ou alcoviteiros em enredos cuja inspiração é o amor segundoa tradição da comédia latina. 145 Comédia de Bristo, o Fanchono Um alcoviteiro sui generis O que chama a atenção na comediografia clássica portuguesa (e merece aqui registro pela originalidade do enfoque) é a presença sui generis do alco- viteiro Bristo, que, responsável por conduzir os cordelinhos da trama, nada mais natural viesse a dar nome a uma comédia do sr. António Ferreira: Comédia de Bristo. António Ferreira (quem não o sabe?), corria o ano de 1528, nasceu em Lisboa, onde também veio a falecer, vitimado pela peste em 29 de novembro de 1569. Não obstante a curta vida, além de dedicar-se inteira e exclusi- vamente à medida nova, compondo sonetos, odes, epístolas, epitáfios e can- ções, Antônio Ferreira desempenhou o importante papel de teórico e divul- gador do Classicismo em Portugal, além de introduzir com Castro a tragédia clássica, de inspiração mais latina que grega. Nas horas de folga, nas férias escolares de 1552, por desenfadamento, compôs, na esteira do mestre Sá de Miranda, uma comédia que respirava os ares humanistas de Coimbra, tradu- zindo o incentivo de D. João III ao teatro universitário sob o signo do latim. Essa comédia foi publicada anônima ainda em vida do autor (1562) por João de Barreira, com a indicação de que teria sido representada na Univer- sidade de Coimbra. Infelizmente não pude confrontar nenhum dos dois exemplares dessa edição anônima que o dr. Eugenio Asensio descobriu na Biblioteca Nacional de Madri. Tenho em mãos Obras Completas do Doutor António Ferreira (4ª ed., anotada e precedida de um estudo sobre a vida e obras do poeta pelo cô- nego dr. J. C. Fernandes Pinheiro, professor do Imperial Colégio D. Pedro II, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, da Academia Real das Ciências de Lisboa, da Sociedade Geográfica e Estatística de Nova York etc., tomo segundo, Rio de Janeiro/Paris, Garnier Editor/Augusto Durand Editor, 1865). É por essa edição, com religiosa fé no trabalho do cônego, o dr. Fernan- des Pinheiro, que cito. Na edição que compulso, António Ferreira dedica a comédia ao príncipe d. João, filho de d. João III, agradecido por ter sido “nesta Universidade 146 Francisco Maciel Silveira [Coimbra] recebida, e publicada”. No prólogo, a costumeira captatio bene- volentiae. Embora sabedor da diversidade dos gostos e da impossibilidade de contentar a todos, aproveita que se esteja implantando a comédia clássica em Portugal para oferecer um trabalho que muito o honrará se vier a satisfazer uns poucos. Trata-se de uma comédia mista (por misturar o cômico com o sério) e motória, ou seja, “fundada nos acontecimentos do mundo, que comu- mente ocorrem”. A peça não foge à receita da comédia latina posta em voga por Plauto e Terêncio, seja no argumento, seja nas personagens: uma jovem pobre, bela e virtuosa (Camília) vive com a mãe (Cornélia) às custas de uns trabalhos de costura que fazem em casa. O pai de Camília (Píndaro) mais o filho (Arnolfo) foram para a Índia em busca de trabalho e riqueza; mas há dois anos são tidos como mortos, surpreendidos por uma tempestade quando voltavam para casa. A beleza e a virtude de Camília despertam não só o amor de Leonardo, (filho de Roberto) e de Alexandre (filho de Calidônio), mas também de Aníbal, soldado fanfarrão devidamente coadjuvado pelo parasita Montalvão. Para a conquista de Camília todos os pretendentes hão de recorrer aos préstimos do alcoviteiro Bristo. Ocorre que Bristo, em reconhecimento ao desaparecido pai de Camília, que já o tinha livrado das garras e açoites da Justiça, tudo fará para que Leonardo, moço sério que é, case com a virtuosa Camília. O que não o impede de enganar e extorquir o soldado fanfarrão (Aníbal) e o parasita (Montalvão). No quinto e último ato, o pai e o irmão de Camília regressam a casa, sãos, sal- vos e ricos. Como toda comédia que se preza, tudo acabará em boda e festa. Leonardo há de casar-se com Camília, que já não é pobre nem órfã. Alexandre casar-se-á com a irmã de Leonardo, e Arnolfo com a irmã de Alexandre. Final feliz que constitui um rearranjo do plano traçado pelos anciãos (Roberto e Calidônio), mal começara a peça, quando Leonardo estava destinado a casar- se com a irmã de Alexandre e este com a irmã de Leonardo. A salvação do gasto enredo está na inovadora caracterização do alco- viteiro Bristo, estampada no título da edição saída anônima em 1562, quando ainda vivia António Ferreira: Comédia do Fanchono. 147 Comédia de Bristo, o Fanchono De preconceitos e pudicícias O significado da palavra “fanchono”, havemos de encontrá-lo, por exemplo, no Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa (Rio de Janeiro, Delta S.A., 1958, vol. 2, p. 2144): “invertido”, “homossexual”. O registro do termo é exemplificado com a fala que o parasita Montalvão dirige ao fanfarrão Aníbal no ato V, cena 5 (p. 394 da edição de 1865): “Pasmado estou de um fanchono se atrever contigo tanto, não o posso crer.” Para registro do vocábulo não precisaria o dicionarista ir tão longe – ou seja, ir ao ato V, cena 5. (A não ser que sua incrédula e parasitária homofobia também estivesse pasmada com o fato de que um fanchono pudesse fazer frente ao espavento de um soldado fanfarrão.) Já no ato II, cena 2, Bristo apresenta-se em longo solilóquio, expondo seu modus operandi, as artes e manhas de seu ofício e natureza: A primeira coisa que faço como [logo que] chego, é saber o trato todo da terra, quantas putarias tem, quantos covis, quantas alcoviteiras, quais são as moças formosas, os mancebos doidos, qual joga, qual gasta, qual é de mulheres, meto-me com eles e com elas, digo-lhes trinta chocarrices que me vêm à boca, todos me conhecem logo, todos se me afeiçoam. [...] A primeira visitação é a casa das lavrandeiras [bordadeiras], meto-me com aquelas moças como moça, gabo-as de formosas, d’alvas, de bons olhos, ensino-lhes mezinhas para os cabelos, águas para o carão, mostro- lhes meus lavores [bordados], minhas cadanetas, de uma visitação só fico por companheira, às velhas chamo moças, às moças meninas, às formosas anjos, todas trabalho de contentar, porque [para que] se deem comigo; os mancebos todos são meus formosos, meus namorados, meus manos, minhas rosinhas. Um me dá o gravi [coifa de retrós com lavores de fio de ouro], outro a camisa, outro o saio [espécie de casacão usado pelos cavaleiros] e o dinheiro. [...] Então sou tão matreiro, que quantas terras ando, tantos nomes tomo. Aqui me chamo Bristo, acolá Ilário, porque [para que] me não sigam que eu, por onde quer que ando, 148 Francisco Maciel Silveira sempre deixo rasto. E eles chamam-me fanchono, marinelo, mas eu engordo às suas custas, e por derradeiro dou-lhes três figas. Acompanhemos as marcas da pudicícia e do preconceito na edição que cito (lembrem-se, a de 1865). O excerto citado da fala de Bristo será subli- nhado no rodapé por duas intervenções do conspícuo cônego poeta (o doutor J. C. Fernandes Pinheiro etc. e tal). 1) “A primeira coisa que faço como chego, é saber o trato todo da terra, quantas putarias tem...”. A propósito de “putarias”, diz o Cônego: “Estranhamos que um homem tão sisudo, como por certo era o dr. Ferreira, usasse desta expressão, que, já em seu tempo, tinha obsce- no sentido”. 2) “E eles chamam-me fanchono, marinelo...”. Para nossa ilustração semântica, pontifica o cônego doutor que “estes dois vocábulos, tomados hoje em mau sentido, significavam outrora homem mole, efeminado”. Outra marca de pudicícia e preconceito foi o mudar-se o título original da peça que, saída encapuçada no anonimato de 1562 como Comédia do Fanchono, passou a ser conhecida e chamada Comédia do Bristo. Teria tido o dr. Antonio Ferreira alguma responsabilidade no batismo anabatista do rebento? Teria querido salvar da roda dos enjeitados o filho fanchono de sua natureza alegre, risonha e franca? A crermos que a peça foi encenada em Coimbra, como diz a edição anô- nima (1562); a crermos, como diz a dedicatóriada edição que tenho em mãos (a de 1865), que “foi nesta universidade recebida e publicada”, o que incen- tivou o dr. António Ferreira a dedicá-la ao infante d. João (não poderia saber que dedicava seu texto a um morituro); considerando também que a presença de termos grosseiros ou de baixo calão faziam parte do linguajar das comédias e não chegavam a provocar rubores de pejo, somos levados a inferir que a pudicícia e o preconceito são posteriores ao século XVI. Que me ajude uma traça-investigadora, com bolsa Fapesp ou CNPq, e me diga de que expurgada edição (com dedicatória e prólogo) saiu esta que tenho 149 Comédia de Bristo, o Fanchono a queimar-me as mãos com a palmatória conspícua do doutor cônego J. C. Fernandes Pinheiro. Por todos os nomes Como era comum na dramaturgia da época, sem rubrica alguma a suge- rir a composição dos caracteres ou a linha de interpretação, a comédia do sr. António Ferreira deixa nas mãos do ator (e na imaginação do leitor) a caracte- rização de Bristo, cuja natureza ambígua (alcoviteiro/fanchono) é um ver- dadeiro achado psicológico para a incipiente (seja com c ou s) comediografia portuguesa dos quinhentos. Seria Bristo, de fato, fanchono, marinelo? Ou faria Bristo o papel de fanchono para mais proveitosamente exercer seu ofício de alcoviteiro? (Que o sugira a cena dois do ato II, em que Bristo, manhoso e ma- treiro, se apresenta a nosotros...) Nem os apartes, tão abundantes na dita comediografia clássica e, natu- ralmente, na peça do sr. António Ferreira, – nem eles, os apartes, inconfidentes, dão uma pista para a ambiguidade da natureza de Bristo. (Ainda bem que – demônios íncubos ou súcubos? – Freud, Jung e a psicanálise bela-adorme- cida nem sonhavam, naquele século XVI, em ser o inconsciente de perdido espermatozoide.) Mas teria mesmo sido perdida essa outra semente da comédia clássica em Portugal? Considere-se que, consciente ou inconscientemente (isso importa?), a comédia do dr. António Ferreira ensaia, antecipadamente, uma disquisição existencialista, do tipo “o que veio primeiro: o ovo ou a galinha?” O ser Bristo alcoviteiro é essência que precede e determina sua existência como fanchono? Ou a existência como alcoviteiro é que acaba por lhe revelar e determinar a essência de fanchono, marinelo? [...] quantas terras ando, tantos nomes tomo. Aqui me chamo Bristo, acolá Ilário, porque [para que] me não sigam, que eu, por onde quer que 150 Francisco Maciel Silveira ando, sempre deixo rasto. E eles chamam-me fanchono, marinelo, mas eu engordo às suas custas, e por derradeiro dou-lhes três figas (Cf. ato II, cena 2). Nada tem de hilário, Bristo, este percurso ôntico em busca de teu verda- deiro ser – um ser que não queria deixar rasto. Que nos resta, ao fim, se não parafrasear no frontispício de tua comédia (a comédia do dr. Antônio Ferrei- ra), em caprichada caligrafia, o que inscreveu o sr. José Saramago às portadas de um livro seu: “Conheces, Bristo, o nome que te deram; contudo, não conheces o nome que tens, Fanchono.” Referências bibliográficas FERREIRA, António. Obras Completas do Doutor António Ferreira. 4ª ed. anotada e precedida de um estudo sobre a vida e obras do poeta pelo cônego doutor J. C. Fernandes Pinheiro, t. II. Rio de Janeiro/Paris, Garnier Editor/Augusto Durand Editor, 1865. ROIG, Adrien. O Teatro Clássico em Portugal no Século XVI. Lisboa, Ministério da Educação/Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Col. Biblioteca Breve, n. 76, 1983. 151 1. Universidade de São Paulo. Humor e Homofobia no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende MARCIA ARRUDA FRANCO1 Trata-se aqui da leitura de uma composição publicada em 1516, no Cancio- neiro Geral de Garcia Resende, cujo tema é o homoerotismo feminino no século XV. Por meio da análise da rubrica e das trovas de salão, como profe- rimento oral teatralizado, busca-se deixar à mostra não apenas o modo de circulação em performance, no contexto do sarau do Paço, mas também a funcionalidade morigerante da prática trovadoresca, como meio de comu- nicação eficaz, através da interpretação do humor homofóbico que satiriza o gozo lésbico. As trovas do chefe da cavalariça, vassalo quatrocentista de Afonso V e de d. João II, foram lidas ou declamadas às damas, numa festivi- dade palaciana, no registro da sátira. A composição “O coudelmoor às damas por que deram a ua que casou a melhor peça que cada ua tinha pera o casamento, antre as quaes lhe deram o sexo de Dona Lucrecia” será lida não só pela menção a práticas lésbicas na cultura do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, mas também pela com- preensão da funcionalidade do gênero poético-musical ou declamatório de tais trovas, inseridas no contexto edificante do serão do Paço, como sátira erótica, sendo manifesto o humor homofóbico do coudel-mor às damas. Por meio da palavra oral teatralizada no serão, como divertimento de corte, em comemorações como a do casamento da amante de Dona Lucrecia, 152 Marcia Arruda Franco esta composição nos conta tanto da função social do poético no âmbito do trovadorismo palaciano como do cotidiano cortesão. Ao lermos as trovas, pretendemos evidenciar as referências ao tema homoerótico por meio da tentativa de visualizar sua circulação oral em performance, numa festividade circunstancial do Paço. Alguns conceitos caracterizadores da definição clássica da arte de certa forma sempre estiveram presentes na tradição medieval ibérica. As concep- ções de poesia no século XV convergem para uma concepção clássica da arte poética, de base horaciana, em que o caráter divino da expressão poética é, todavia, o argumento central para sua valorização. O comércio das letras é vis- to como um ócio edificante para a formação do caráter e da moral do homem nobre e como um dom agraciado por Deus a seus eleitos. A poesia serve tanto para passar uma doutrina como para deleitar. Essa visão tem por matriz a dou- trina horaciana prodesse ac delectare, estrutural na prática poética na cena medieval. Tal educação pela arte é possível porque a obra poética no século XV, e em todo o período clássico anterior ao século XVIII, tem uma função social clara e inequívoca: serve como meio de comunicação oral e/ou escrito eficaz, e en- contra sua justificativa no próprio ato enunciativo, desde a corte às damas a críticas ao rei, passando por situações corriqueiras e cotidianas, como o envio de presentes acompanhados de poemas e, inclusive, neste exercício da sátira, ao tecer comentários acerca dos desvios eróticos embutidos na prática da ho- mossexualidade feminina. Como meio de comunicação social, os poemas satí- ricos e morigerantes são escritos para as mais variadas situações da vida de corte. As trovas do coudel-mor foram cantadas ou declamadas às damas no registro da sátira a práticas lésbicas, no contexto dos festejos das bodas de uma que se casava e ganhava de presente entre outras peças o sexo de dona Lucrecia. Num sarau da baixa Idade Média, a poesia músico-letrada, composta para ser cantada ou declamada em voz alta, circula evidentemente em per- formance oral, e adapta-se aos movimentos de uma voz coletiva e anônima, como se verifica no contexto das trovas do coudel-mor, que correram também 153 Humor e Homofobia no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende como da autoria de seus filhos (Vasconcelos, 1934, p. 224). Em “Mas um de nós cinco ou seis/ esta questão fazer ousa”, ao se referir a cinco ou seis cor- tesãos que o ajudaram na ousadia dirigida às damas acerca do sexo de dona Lucrecia, o coudel-mor aponta para o caráter coletivo e anônimo das trovas quatrocentistas. E também alude explicitamente a uma voz satírica consen- sual, audível pelas praças de Lisboa, na fórmula de um louvor, que exprime, pela ironia, o vitupério: “Pelas praças de Lisboa/ tantos louvores vos dão/ que a mão nunca lhe doa/ quem fez tal repartição”. Como se sabe, em Portugal, na língua vulgar, em português ou caste- lhano, a produção trovadoresca palacianado século XV foi impressa por Garcia de Resende em 1516, mas também foi copiada em cancioneiros de mão e inventada por repentistas nas praças e nos paços. Ao longo dos séculos XV e XVI, a poesia lírica e satírica, em medida velha e nova, esteve subordinada a uma circulação em performance, cantada ou declamada, e com um forte cará- ter teatral, como o que caracteriza as trovas em questão. O poema, sem se dissociar da palavra espetacular e oral, num português eivado de castelha- nismos, circula num evento social, para um público em presença, capaz de experienciar sensorialmente o poético, por meio da escuta do texto e da música e/ou da voz que o acompanha, e ainda de percebê-lo dentro de sua teatralidade como ficção. A leitura se dá coletivamente, feita em voz alta, numa situação concreta do dia-a-dia, ou em comemorações, como um pequeno espetáculo, cuja intenção é educar pelo deleite. Dirigindo-se às damas em presença, o coudel-mor, com pares de versos de hipóteses eróticas contrastantes, ousa questioná-las acerca do formato, das funções e do gozo do sexo de dona Lucrecia, para a felicidade conjugal daquela que se casava, talvez nos festejos do casamento, e ainda como porta-voz do comentário satírico, geral e anônimo, feito nas praças, e entre os cortesãos, acerca de tais bodas homoeróticas. O amor ou o sexo entre as duas era público e notório, servindo de motivo a este divertimento do Paço, cuja finalidade era morigerar a partir do riso. No caso dessa composição, o diálogo entre trovador e damas, descrito na rubrica, remete a uma situação concreta de enunciação e circulação das trovas, 154 Marcia Arruda Franco com a presença de trovadores e damas no Paço. O texto impresso certamente não é idêntico ao declamado no serão, talvez numa pequena encenação de cin- co ou seis cortesãos que leriam em voz alta as cinco ou seis cobras das trovas do coudel-mor; a rubrica que encabeça o poema impresso, entretanto, permite reconstruir esta situação de comunicação, ou imaginar sua performance. Em relação à recepção espetacular dos poemas, rubricas ou didascálias não devem ser tomadas como títulos dos poemas, pois revelam um uso concreto do texto, em uma enunciação particular, referendada pelo texto da rubrica, que funciona como um protocolo de leitura da composição. No caso desta rubrica em particular, afirma-se que o trovador se dirige às damas, in- dicando o aporte teatral do proferimento no contexto da festa de salão. É importante pensar esta situação aludida pela rubrica, a fim de se perceber a in- tencionalidade morigerante das trovas declamadas ou cantadas como uma crítica que satiriza o gozo homoerótico. No caso dessa composição, a rubrica refere-se a “ua que se casou” e que continuaria a privar de sua amante, o que parece significar que o casamento heterossexual, no contexto áulico, podia ser apenas protocolar. Tal peça, como presente de casamento, nos apresenta um costume quase insuspeitado da nobreza quinhentista: o da prática lésbica na corte de damas. Não eram apenas princesas que possuíam cortes de damas, fazendo- se acompanhar delas em sua vida de casada, muitas vezes mudando-se para outro reino ou outra região, mas qualquer dama nobre que se casava no con- texto palaciano se fazia acompanhar de sua corte particular. Que o homoero- tismo entre as damas era público depreende-se dos primeiros versos das trovas do coudel-mor, ao afirmarem que nas praças de Lisboa o presente das damas é alvo de um louvor, que tem fronteiras porosas com o vitupério, ao satirizar o coito lésbico, esperando que nunca doa a mão de “quem fez tal repartição”, isto é, daquela que escolheu o lesbianismo (vv. 1-8). O chefe da cavalariça, para os contemporâneos um “empresário do processo de folgar” (Vasconcelos, 1934, p. 224), lança mão do código trovado- resco e de sua teatralização no espetáculo da corte para se questionar junto com outros cortesãos acerca da legalidade do presente: “que achastes nesta 155 Humor e Homofobia no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende cousa/ u se remetam nas leis”, ou seja, acerca do que diz a lei cristã a respeito do homossexualismo feminino. Se consultarmos o Tratado de Confissom, publicado ainda em vida do coudel-mor, em 1489, veremos que o lesbianismo é considerado um pecado de “luxúria contranatura”, como a sodomia. Citemos, com a ortografia levemente atualizada, e com o significado de alguns arcaísmos entre colchetes retos, o trecho da penitência prescrita contra o pecado do homossexualismo feminino: E da mulher que jouver [jazer/se deitar] com outra mulher com aquele estormento [instrumento/mão ou outro membro], que fazem as mu- lheres, jejue sete quaresmas, a primeira a pão e água. E a mulher que isto sofrer de outra mulher jejue cinco quaresmas, a primeira a pão e água, e as solte per cartas, e as outras, segundo mandar seu bispo, e jejue às sextas-feiras a pão e água, tirando dia de Natal e de Santa Maria, [em] que coma vianda de quaresma (Tratado de Confissom, 1489/1973, p. 194; col. 2). A punição com o jejum não destoa muito de outras punições para peca- dos de luxúria, o que leva a crer que a prática do homossexualismo feminino era tão tolerada ou reprimida como a sodomia, podendo a punição pelo “peca- do contranatura” ser redimida (solta ou liberada), generosamente, por cartas de bispos, os únicos que podiam absolver de tais pecados, salvo à hora da morte, de modo que a prática é reconhecida como um costume. No séquito desta que se casava ia dona Lucrecia, sua amante, fato digno de louvor não como tal, mas como objeto da ação das damas, as quais, por este ato de acudirem àquela que se casava, se tornaram dignas de serem louvadas pelo trovador, no registro da sátira. O consenso nas praças de Lisboa e nos saraus de Portugal, entre damas e cavaleiros, é que qualquer boda sem sexo é triste: “E pois também acudistes,/ louvor grande vos acuda,/ cá sem sexo se concruda/ todas bodas serem tristes”. No incunábulo de Chaves, a felicidade das bodas se subordina ao prazer sexual, mesmo que com outro parceiro, no contexto heterossexual: “Item se o marido não quer jazer com sua mulher e 156 Marcia Arruda Franco ela vai jazer com outrem, todo esse pecado fica ao marido” (Tratado de Confissom, 1489, p. 193; col. 1). Logo, independente da legalidade religiosa ou não de se manter a rela- ção homossexual durante o casamento, são questionadas as funções e qualida- des do sexo de dona Lucrecia em sua “performance” homoerótica. Certamente, desenha-se nos atributos imaginados a homofobia por meio de um humor que não podia deixar de ter um fundo patriarcal. Vale participar do espetáculo das trovas de salão, e não apenas lamentar, de um ponto de vista impossível aos homens do século XV, a homofobia embutida no tratamento do sexo de dona Lucrecia com a que se casava. O mero tema homoerótico nos revela uma face que nos aproxima e nos afasta da poesia palaciana e de seu tempo, de modo a buscarmos em sua leitura não apenas o passado mas também vínculos in- suspeitados com o presente. Para lermos as trovas do coudel-mor às damas, ao fim desse texto, e transcritas numa ortografia modernizada, a fim de levar adiante a interpre- tação do humor e da homofobia nesta sátira patriarcal da baixa Idade Média portuguesa, é preciso esclarecer a linguagem arcaica do século XV. A primeira dificuldade em sua leitura diz respeito a questões linguísticas em geral e de vocabulário em particular. Não só o português é povoado de espanholismos (sobelo/sobre o, ancho/largo, vodas/bodas, carcaxo/carcaz/caixa), como é dificultoso o entendimento do significado de estruturas sintáticas arcaicas (que achastes essa cousa/ u [onde/quando] se remetam nas leis; se faz água a seu salvo/ se produz a própria água com inocência e pureza, para a sua salvação, ou por sua conta, de forma excepcional); de formas antigas em desuso (concruda/concluda/conclua, u/onde/quando, ua/uma, almazém/ armazém, cá/porque, coucea/coiceia, através/através); de expressões idiomá- ticas privativas do passado (a vista panorâmica das construções arquitetônicas de Palmela, dar punhada ò/ao gato, fazer a sapateta), do valor e funcionali- dade social dos títulos (coudel-mor) etc. A designação coudel-mor representa o chefe da cavalariça. Dom Fernão da Silveira, que desempenhou esta função nos reinados de 1454 a 1493, quando morreu, deixando o cargo de coudel-mor como herança a seu primogênito. O 157 Humor e Homofobia no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende coudel-mor é um “oficial da casa real que tinha a seu cargo cuidar da criação de cavalos castiços e de marca. Também provia e determinava as dúvidas sobre os acontecimentos e lançamentos dos cavalos aos que tinham quantia ou fazenda a que fossem obrigados a manter cavalo, para com ele servirem na guerra” (Dias, 2003, p. 208). Este dom Fernão da Silveira, o Bom, não deve ser confun- dido com o homônimo “escrivão da puridade, adicto aos Braganças” e que se opôs a dom João II, sendo “justiçado como traidor” (Vasconcelos, 1934, pp. 223-224). Nas trovas do coudel-mor, uma das cobras recorre a imagens e voca- bulário equinos para imaginar o prazer do sexo de dona Lucrecia (vv. 34-40). É justamente nas referências ao campo semântico do erotismo que o significado precisa ser historicamente compreendido e explicado. Na rubrica, “peça” designa o sexo e peça de enxoval; “cachondo”, “Palmela”, “fotea”, “dar punhada ao gato”, “carcaxo” e “moneta” são expressões que provocam o riso no contexto da sátira justamente pela conotação erótica. Para se captar o aporte satírico e o questionamento da homossexualidade feminina é preciso desvendar o arcaísmo das palavras e de expressões vocabulares e sintáticas, com a consulta a dicionários especializados na linguagem do Cancioneiro de Resende (Dias, 2003, vol. VI). “Estar sobre cachondo” é estar com o cio; Palmela é comparada a um sexo feminino arreganhado, que se dá a ver, diga- mos, ao “marinheiro lesto” (prestimoso), como a própria cidade de Palmela deixa ver suas construções numa vista panorâmica a partir do Tejo. A imagem da largura do sexo reaparece no “Fim” ou cabo das trovas pela imagem do “carcaxo”, espécie de caixa grande onde cabe o estoque total (a soma) de um armazém. “Dar punhada ao gato”, socá-lo com os punhos fechados, é uma expressão que não foi desvendada por Aida Fernanda Dias. Ela, no entanto, cita duas ocorrências da expressão no discurso notarial manuelino e na poesia seiscentista que nos fazem conjecturar que o sentido da expressão é uma espécie de necessidade de se apertar o cinto, numa situação de fome, penúria ou dificuldade, talvez quando o sexo da amante de dona Lucrecia estivesse sobre cachondo (Dias, 2003, p. 573). A menção à “sapateta”, espécie de dança de salão em que se bate com as palmas das mãos no próprio sapato, refere-se à masturbação, “por si e pelo parceiro”, característica daquelas que “fizeram 158 Marcia Arruda Franco tal repartição”. Não é à toa que as trovas se iniciam com a imagem da mão, órgão, membro, instrumento ou peça do corpo fundamental na prática do homoerotismo feminino. Se nos louvores feitos nas praças de Lisboa o humor surgia através do dístico: “que a mão nunca lhe doa/ quem fez tal repartição”, no “Fim”, a imagem da sapateta retoma o foco nas mãos. O vocábulo “fotea” também não é explicado por Aida Fernanda Dias. Compulsado entre fota e foteado em seu Dicionário do Cancioneiro Geral, julgamos poder aproximá-los nas trovas do coudel-mor, uma vez que nos pa- rece haver, nos versos 41 a 48 abaixo, uma especulação acerca do gozo de lés- bicas, aludindo-se não só à satisfação alcançada, mas também ao formato cilíndrico e vão da vagina, figurada como uma garrafa ou um poço, com crista de galo, e que é capaz de emitir sons sem o badalo de um sino. Ora, “fota”, espécie de touca mourisca, significa “turbante”, e “foteado”, tiras de pano enroladas na cabeça em forma de turbante. A “fota”, segundo Morais e Silva é um “tecido fino, listrado, com cadilhos, que se enrodilha na cabeça em forma de turbante” (apud Cabanas, 2001, p. 230). Cadilhos são “fios que pendem da extremidade de qualquer coisa”, (Dias, 2003, p. 143). O turbante ou a fota, touca mourisca com “riscos no gargalo”, pode remeter à forma pregueada do interior de uma vagina; logo, “fotea”, ao menos pela semelhança fonológica, pode ser figurada como o poço ou touca vaginal, que se enrodilha, com suas dobras, listras ou riscos. Cada vez mais se evidencia a visão patriarcal do chefe da cavalariça, ao opor o contentamento do prazer, o calor do gozo lésbico (qual parte mais se emborca), com o medo, frio ou frigidez (quando bate o dente) do coito hete- rossexual com o fim de procriar: “Quando está de si contente/ a qual parte mais se emborca?/ Ou se quando bate o dente/ faz bacorinho com porca?”. A maior crítica acerca das funções do sexo e do gozo entre lésbicas se depreende justamente da resistência em aceitar que se possa chegar ao clímax do prazer sem a presença do falo. Na cobra que finaliza as trovas, a falta do pênis é suprimida pela imagem da “moneta”, vela de pequeno tamanho, numa sátira que não deixa de causar o riso, até por ser homofóbica. 159 Humor e Homofobia no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende O coudel-mor às damas, porque deram a uma que casou a melhor peça que cada uma tinha para o casamento, entre as quais lhe deram o sexo de dona Lucrecia. Pelas praças de Lisboa, tantos louvores vos dão! Que a mão nunca lhe doa Quem fez tal repartição! 5 Que no tal tempo das bodas faça boda quem quiser mas por certo há mister que ali lhe acudam todas. E pois também acudistes, 10 louvor grande vos acuda, cá sem sexo se concluda todas bodas serem tristes. Mas um de nós, cinco ou seis, esta questão fazer ousa: 15 que achates essa cousa, u se remetem nas leis? Era ele sobejo ancho, ou tira mais de redondo? Ou também se lança gancho 20 quando está sobre cachondo? Ou se anda perfilado, como cumpre a donzela? Ou se estando arreganhado se verão dele Palmela? 25 Se é por ventura calvo, se toca de cabeludo? Se faz água a seu salvo, se mija como a sesudo? Se é faminto, se farto, 160 Marcia Arruda Franco 30 se é pardo, se vermelho? Se rapa como coelho, se arranha como a lagarto? Se é manso, se brigoso, se lança, coiceia, espora? 35 Ou quando está furioso se o quer dentro se fora? Ou se por matar a sede através toma mil saltos? Ou se lhe praz dos pés altos 40 arrimados à parede? Se tem risco no gargalo do poço lá da fotea? Ou depois que papa e cea se fica com bom regalo? 45 Ou se tem crista de galo, ou fala com boca chea? Ou apagando a candea, que som fará sem badalo? Se é de mole carnadura 50 se tem cabelo de rato? Ou sobre vianda dura se dá punhada ao gato? Quando está de si contente a qual parte mais se emborca? 55 Ou se quando bate o dente faz bacorinho com porca? Fim Quanta soma de armazém cabe lá em seu carcaxo!? Ou que tempo se detém 161 Humor e Homofobia no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende 60 em fazê-lo altibaixo? Se é lesto marinheiro, em meter uma moneta, ou se faz a sapateta por si e pelo parceiro? Referências bibliográficas CABANAS, Maria I. M. Traje, Gentileza e Poesia: Moda e Vestimenta no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Lisboa, Estampa, 2001. CANCIONEIRO Geral de Garcia de Resende. Apresentação crítica, selecção, notas, glossário e sugestões para análise literária de Cristina Ribeiro Almeida. Lisboa, Editorial Comunicação, 1991. . Edição de Costa Pimpão e Aida Fernanda Dias. Coimbra, Centro de Estudos Românicos, vol. 1, 1973, pp. 163-165. DIAS, Ainda F. (org.). Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Dicionário (comum, onomástico e toponímico). Lisboa, INCM, vol. VI, 2003. LOPES, Graça V. A Sátira nos Cancioneiros Medievais Galego-Portugueses e Sátira, Zombaria e Circunstãncia no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Lisboa, Estampa, 1998. TRATADO de Confissom (Chaves, 8de agosto de 1489). Fac-símile, leitura diplomática e estudo bibliográfico por José V. de Pina Martins. Lisboa, INCM, 1973. VASCONCELOS, C. Michaelis. Estudos sobre o Romanceiro Peninsular: Romances Velhos em Portugal. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934. ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo, Cosac Naify, 2007. 163 1. Universidade de São Paulo. Teatro e Paródia no Mito de Inês de Castro FLAVIA MARIA CORRADIN1 O mito é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mito brilhante e mudo. Fernando Pessoa História e mito A temática inesiana vem ocupando espaço nas artes há mais de 650 anos. Fundamentalmente, páginas da literatura em seu veio poético, narrativo ou dramático têm dedicado especial atenção ao episódio amoroso entre Pedro e Inês. Contudo, não podemos nos esquecer de que outras expressões artísticas, como a ópera, a pintura, e mais recentemente o cinema, para não falar da escultura (afinal os túmulos de Inês e Pedro em Alcobaça são verdadeiramente obras de alta expressão artística no plano escultórico) têm dedicado atenção ao trágico caso de amor. Surpreendentemente, uma história de amor com final infeliz, repleta de lances um tanto quanto melodramáticos, continua, em pleno século XXI, a atrair a atenção de um público ávido por desvendar aquilo que a História insiste em ocultar. Este texto dedicará atenção a O Eunuco de Inês de Castro: Teatro no País dos Mortos, de Armando Nascimento Rosa, de 2006, que foca seu texto na figura de Afonso Madeira, o escudeiro de d. Pedro, que foi castrado pelo rei por, segundo consta, ter-se envolvido com uma mulher casada. Conforme 164 Flavia Maria Corradin já deixa patente o subtítulo da peça, o fato histórico é ambientado no “país dos mortos”, onde contracenam algumas das personagens históricas que estão ligadas ao trágico casal. O presente ensaio intenta reexaminar o mito de Inês de Castro sob a ótica da intertextualidade, de modo a apontar os procedimen- tos que nos permitem afirmar que O Eunuco de Inês de Castro: Teatro no País dos Mortos dialoga parodicamente com a História. O diálogo intertextual com a História A intertextualidade, como é sabido, trabalha com o diálogo entre textos e/ou contextos, caracterizando-se, no mais das vezes, como um procedimento crítico, na medida em que vai revelar uma atitude que o intertexto assume diante do paradigma. No caso em questão, o paradigma é constituído pelo fato histórico narrado por Fernão Lopes. Mesmo se pensarmos nas crônicas de Rui de Pina, podemos concluir que ele vai dialogar mais ou menos parafrasi- camente com aquele que o antecedeu, mesmo que não entremos nas questões críticas que consideram Rui de Pina um plagiador de Fernão Lopes. Portanto, como atrás aventamos, fixado o fato histórico, isto é, o para- digma, os intertextos vão dialogar com ele obedecendo a níveis intertextuais. Se o diálogo travado é parafrásico, a ideologia proposta no paradigma será mantida no intertexto, ainda que o tom possa ser alterado, como fica patente, por exemplo, no episódio de Inês de Castro, em Os Lusíadas. Ali, o fato histó- rico (Os Lusíadas, canto III, 118-135) não é alterado; não nos esqueçamos de que o episódio faz parte da narração da história de Portugal ao rei de Melinde, empreendida por Vasco da Gama; é quando se fala do grande Afonso IV e de sua vitória frente aos mouros na Batalha do Salado, que se inscreve a história de Inês de Castro sob uma ótica parafrasecamente lírica. A estilização caracteriza-se por um acréscimo conteudístico em relação ao paradigma, ainda perfeitamente pertinente à ideologia do modelo, embora abrigue a intenção de ser superior ao original. Deste modo, temos que a cos- movisão obtida pelo intertexto na estilização é, se não superior, ao menos mais 165 Teatro e Paródia no Mito de Inês de Castro complexa que a do paradigma, porque procura levar às últimas consequências as entrelinhas do modelo, buscando superá-lo através do preenchimento, do enriquecimento, enfim do que poderia ter sido dito mas não foi. Como exemplo desse nível intertextual na mitologia inesiana, poderíamos apontar a narrativa de Agustina Bessa-Luís, Adivinhas de Pedro e Inês. Cabe-nos agora pensar no terceiro nível intertextual, segundo a pro- posta que fizemos alhures. Trata-se da paródia, uma expressão artística elitis- ta ao extremo, porque, implicando a negação de um mito – o paradigma –, exi- ge do leitor uma dose de (in)formação literária. Notamos, desse modo, que a paródia se caracteriza por denegrir mitos, o que nos leva a concluir que apenas o que está inscrito no cânon é objeto de uma releitura sob a perspectiva paró- dica, ideia corroborada pelo fato de que o ser humano, e mais o ser humano que é artista, precisa do reconhecimento público. Portanto, ele irá escolher seu modelo invariavelmente entre as obras que caíram no domínio do comum das gentes. Conforme nos deixa patente Linda Hutcheon (1985): “works are parodied in proportion to their popularity”. A ideia de emulação de modelo(s) parece estar contida na própria eti- mologia do termo “paródia”, quer seja na acepção de “canto contrário”, quer na de “canto paralelo”. No primeiro caso, temos um modelo A (= ode), que tem um ou vários de seus elementos constitutivos negados, ou melhor, contraria- dos (= para = contra). Portanto, o nível paródico, ao fim e ao cabo, revela a intenção deliberada de um determinado autor de desmitificar seu paradigma. Talvez a formulação esboçada explique, em parte, por que, passados 650 anos da morte de Inês de Castro, só agora o paradigma possa ser objeto de uma releitura sob a ótica paródica, como vêm corroborar, por exemplo, as peças de teatro A Boba, de Maria Estela Guedes e O Eunuco de Inês de Castro: Teatro no País dos Mortos, de Armando Nascimento Rosa, texto que aqui será objeto de nossa especial atenção. 166 Flavia Maria Corradin A releitura paródica do mito: O Eunuco de Inês de Castro: Teatro no País dos Mortos Inédita também a óptica apresentada por Armando Nascimento Rosa em O Eunuco de Inês de Castro: Teatro no País dos Mortos, uma vez que, se observarmos o título da peça, perceberemos já um termo que provoca certa de- sestabilização ao consideramos o mito. Trata-se do substantivo “eunuco”. O eu- nuco será Afonso Madeira, o fiel escudeiro de d. Pedro, que foi castrado no afã de promover a “cruel justiça” pela qual o rei será conhecido pela posteridade. Comecemos pela História, uma vez que a peça dialoga intertextual- mente com uma passagem, inscrita em Fernão Lopes, conforme nos deixa patente seu autor. Ouçamos o que diz o cronista acerca das relações entre Pedro e Afonso Madeira. Affonso Madeira tangia e cantava, afóra sua apostura e manhas boas já recontadas, de guisa que por aso de tal achegamento, com longa affeição e falas ameude, se gerou entre elles tal fructo, que veiu elle a acabamento de seus prolongados desejos. E porque semelhante feito não é da geração das cousas que se muito encobram, houve el-rei de saber parte de toda sua fazenda, e não houve d’ello menos sentido que se ella fora sua mulher ou filha. E como quer que o el-rei muito amasse, mais que se deve aqui de dizer, posta de parte toda bemquerença, mandou-o tomar dentro em sua camara, e mandou-lhe cortar aquelles membros que os homens em mór preço tem: de guisa que não ficou carne até aos ossos, que tudo não fosse corto. E pensaram Affonso Madeira, e guareceu, e engrossou em pernas e corpo, e viveu alguns annos engelhado do rosto e sem bar- bas, e morreu depois de sua natural morte (Lopes, s/d; grifo nosso). O “caso” Afonso Madeira já foi paradigma para outros intertextos que trataram do mito inesiano2, porém sem nunca assumir papel de protagonista 2. A título de exemplo, poderíamos apontar: Pedro, o Cru, de António Patrício; Pedro, o Cruel, de Marcelino Mesquita; D. Pedro e Inês de Castro, de Mário Cláudio; Adivinhas de Pedro e Inês, de Agustina Bessa-Luís; e Inês de Portugal, de Joãoda tolerância social entrincheiram-se velhíssimos preconceitos. Neste momento me dirijo a vocês para refletir apenas brevemente sobre o tema da felicidade que subjaz pendularmente, como busca, entre o afirmar dessa corrente celebratória e como desafio de validação de uma razão mino- Horácio Costa 18 ritária no concerto social, ante a insistência da intolerância que, silenciosa e insidiosamente, a solapa, e que se traduz em ameaça e morte. A felicidade pode ser um peixe dourado ou uma rua vazia. A felicidade pode ser encontrar significado no rebrilhar da cabeça de um alfinete. Pode ser, agora, um estrepitar de silêncio. De fato, não sabemos exatamente o que é a felicidade. Corrijo-me. Quero dizer: não sabemos o que é a felicidade, por falta de melhor definição, feliz. Sabemos, contudo, que em absoluto coincide com aquilo que, irisando- se em simulacros, se repete, utilizando seu nome em vão, em nossas décadas pós-modernas, quando o conceito de felicidade se confunde com a “liberdade” de consumo e reduz-se a um imperativo mercadológico. A felicidade talvez exista apenas em desejo ou promessa, mas foi isso precisamente algo que ao longo de milênios significou um fator de coesão entre indivíduos e gerações. Mas, sim, sabemos que, para livremente inves- tigar a natureza da felicidade, e talvez para experimentá-la ao cabo de nossas investigações no longo ou no pequeno prazo, é necessário estarmos apoiados por um Estado de direito que não impeça esses nossos intentos, em nome de preconceitos, vale a redundância, herdados. Se, no concerto social, temos igualdade de obrigações, é apenas justo que tenhamos igualdade de direitos. O problema, ainda assim, está longe de ser tão só legal; é, mais do que isso, ético. Um Estado que não prevê, e mesmo garante a sempiterna promessa de felicidade a todos os seus cidadãos, cria, por isso mesmo, infelicidade aos excluídos desta sua obrigação ética. Cá para nós, vale perguntar: poderá esse Estado obstaculizador desse direito, e daí infelicitante, isto é, criador de infelicidade, algum dia ser feliz? Em sua Carta sobre a Felicidade, escrita para o ateniense Meneceu, Epicuro aproximava o horizonte ético da promessa de felicidade, ao afirmar “porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, a felicidade é inseparável delas”. O Estado moderno, o Estado brasileiro que nos concerne, modela-se conforme o ideal de virtude cidadã, e considera-se, não é demais afirmar, em processo de tornar-se virtuosamente cidadão, ou ainda, como é de praxe designar hoje em dia, republicano. Esta é a imagem que ao comum dos mortais Discurso de abertura do IV Congresso da ABEH 19 passa nossa gigantesca Constituição, tão milimetricamente acossada de delírio de normatividade. Entretanto, minorias cada vez mais vocais como a homossexual e conexas são alijadas desta sua idealidade tão sublime quanto contraditória ou mesmo hipócrita. Cria-se o que poderia chamar-se de coefi- ciente infelicitante. Novamente, cabe aqui a pergunta: pode o causador de infelicidade pretender-se e erigir-se em virtuoso? Parece-me ser este o cerne da questão. A resposta a esta pergunta retórica não pode mais do que ser negativa: o causador de infelicidade, seja ele alguém com uma identidade pre- cisa como um perseguidor homofóbico, ou algo impessoal como um Estado indiferente às legítimas aspirações de uma minoria, não pode, não deve, ser feliz, sob pena de comprometer-se todo um milenar processo civilizatório. Por isso mesmo, não podemos concordar com que o Estado nos cerceie o direito ao voo da felicidade. Nesse ponto, a contradição do Estado brasileiro torna-se aparente e a ética dá lugar à falsa moral: é em nome dela, e não naquele de sua concepção ideal, que status quo social e legal se erigem. Assim sendo, a aceitação do exercício pleno da homossexualidade como parte das garantias do direito coletivo tem, portanto, o caráter de purgação das distorções éticas do Estado brasileiro em seus fundamentos ideais e o concomitante caráter de sua recuperação moral. Com isso quero dizer que tal aceitação, sob o ponto de vista da moral, não apenas evidenciará a hipocrisia mascarada em boa governança. Também auxiliará, quando se der, o aperfeiçoamento das bases éticas sobre as quais se constrói o próprio Estado. Em poucas palavras, ao reclamarmos nossos direi- tos, nossa razão, não temos como finalidade apenas esta conquista em si e em si fundamental, mas a transformação em verdade da promessa e do ideal de exercício da virtude por parte do Estado, e deste por parte de todos os âmbitos da vida social e política. Já apontou um ilustre filósofo e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP), Franklin Leopoldo e Silva, referindo-se a Hegel: Horácio Costa 20 Se identidade e felicidade se correspondem, temos de supor que o movimento do encontro da Razão consigo mesma é também o movi- mento de realização da felicidade da humanidade: quando o indivíduo se reconhece no absoluto que o configura como tal, então ele se reco- nhece a si mesmo, na medida em que a identidade é, inseparavelmente, singular e universal. Assim, se nossa busca de felicidade for respeitada, e daí garantida pelo Estado e suas leis, a busca da felicidade de todos será mais veraz e, portanto, todos poderão ser mais felizes. Não nos esquivemos e nem se iludam aqueles que querem negar, obstruir, diminuir ou conflitar-se com nossa luta: nós tam- bém lutamos por eles, e quando ganharmos, porque vamos fazê-lo, eles o saberão porque com nossa vitória serão mais felizes. Neste momento, aqui agora, nós já estamos encaminhando-os à felicidade. No futuro, não só serão felizes conosco, mas também, ao menos parcialmente, devido a nós. Porque a lei que a todos dá cabida e, em princípio, a todos deve proteger e reger por igual, tem em nós uma fronteira ética que necessita franquear, para terminar de honrar e de caber em seus pressupostos éticos mais basilares. Esse processo tem sido longo. Há trinta anos, por exemplo, na mesma FFLCH-USP, um grupo de homossexuais se reuniu de forma pioneira, insemi- nando essa temática no tecido universitário. Vivíamos sob uma ditadura. Sem dúvida, nessa nossa jornada, voltaremos a refletir sobre aquela data, que parcialmente será o objeto da análise de João Silvério Trevisan, que nela esteve presente. Para trilhar tal processo, é fundamental articular formas de pensar, disciplinar e enriquecer o modo reflexivo da ação. Justamente neste impor- tante espaço, na articulação deste núcleo conceitual, é que surge e se afirma como entidade a ABEH, Associação Brasileira de Estudos da Homocultura, da qual tenho a honra de ser o presidente neste biênio 2006-2008, função que, com o presente congresso, entregarei à próxima diretoria. A ABEH tem como propósito, desde sua fundação em 2001, fazer uma análise crítica da homo- cultura. Nossa associação constitui-se como um dos importantes espaços de Discurso de abertura do IV Congresso da ABEH 21 reflexão que a sociedade brasileira contemporânea constrói, assim como o foram, a seu tempo, certas associações acadêmicas, tais como, e apenas para citar dois exemplos, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), instrumental em suas análises e suas propostas contra regime de exceção instalado em 1964 e, a partir dos anos 1980, no campo da crítica literária, a Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), que ofereceu aos letrados brasileiros uma nova abertura, àquela altura, às fronteiras internacio- nais do pensamento. É nessa genealogia que vejo inserir-se nossa associação em sua intenção de fortalecer propositivamente um pensamento brasileiro sobre a realidade GLBTT. Foi, ainda, considerando este lineamento, que propus como tópico deste quarto congresso “Retratos do Brasil Homossexual”, no plural, e já não mais no singular, como aquele primeiro intento de leitura da “coisa” nacional efetuado por Paulo Prado. De fato, esteAguiar. 167 Teatro e Paródia no Mito de Inês de Castro como acontece no texto de Armando Nascimento Rosa, que explora um triân- gulo amoroso bastante inusitado, se considerarmos o mito de Inês – Pedro/ Inês/Afonso –, partindo de sugestão inscrita na crônica de Fernão Lopes. Ou- çamos o que diz a respeito Armando Nascimento Rosa na Nota Preambular (2006, p. 25): Desvendar na cena o hermafroditismo comportamental de Pedro, ainda que patologicamente vivido (dada o atroz gesto punitivo deste contra Afonso Madeira), constituirá, decerto, um forte motivo teatral para olhar com novos olhos um enredo que muitos julgavam sabido e romanticamen- te explorado por inteiro, e que ganha uma outra amplificação de sentidos, assim o julgo, nesta peça mitocrítica e mitopoética. Talvez valha a pena, antes de entrarmos efetivamente na análise da peça, tratar-lhe da ambientação. Para tanto, encetemos nosso caminho pelo subtítulo que vem aposto a O Eunuco de Inês de Castro, que é Teatro no País dos Mortos. Conforme fica sugerido, estamos diante de almas que se encon- tram em uma das ilhas que constituem o país dos mortos. Tais espaços são ligados, numa clara alusão ao barqueiro mitológico3, pela Caronte & Filhos Ltda., que, numa espécie de lei de incentivo à cultura, consegue isenção de impostos graças ao patrocínio da “arte cênica [que] floresce nesta Veneza dos mortos” (Rosa, 2006, p. 34). A ilha em que a cena transcorre é construída artificialmente “para mortos de excepção” (Rosa, 2006, p. 34). Ali “vivem” na eternidade Inês e Constança, que estão preparando a encenação da peça protagonizada por Afonso Madeira; ainda contracenarão Pedro e Afonso IV, além de Fernão Lopes e de haver referência ao grande encenador que é Gil Vicente que, vez por outra, aparece por ali. 3. Os gregos e romanos da Antiguidade acreditavam que uma barca pequena na qual as almas faziam a travessia do Aqueronte, um rio de águas turbilhantes que delimitava a região infernal. Caronte era um barqueiro velho e esquálido, mas forte e vigoroso, que tinha como função atra- vessar as almas dos mortos para o outro lado do rio. Porém, só transportava as dos que tinham tido seus corpos devidamente sepultados e cobrava pela travessia, daí o costume de se colocar uma moeda na boca dos defuntos. 168 Flavia Maria Corradin Estamos, pois, diante do espaço do teatro, do espaço do fingimento, do faz-de-conta, que aristotelicamente promove a ilusão, ao encenar o encontro surreal na eternidade de mortos que são coetâneos e que têm, vamos lá, uma história comum, como é o caso de Inês, Constança, Pedro, Afonso IV e Afonso Madeira com Fernão Lopes, aquele que, embora não seja contemporâneo aos protagonistas da História, concretizou-lhes a história em suas crônicas. Além disso, Nascimento Rosa, garretianamente, lembra o papel civilizador do teatro, num tempo que, presentificando o passado, também carece de civili- zação, quando, pela voz do PRIMEIRO FUNCIONÁRIO que, dialogando com Afonso IV, no início, transveste-se em SEGUNDO FUNCIONÁRIO e afirma: “precisas de ver muito teatro para te cultivares” (Rosa, 2006, p. 35). Partindo da paráfrase da História, embora aqui e ali lhe preencha atra- vés do acréscimo estilizador com algumas das virtualidades propostas por Agustina Bessa-Luís e Herberto Helder, Rosa vai, ao fim e ao cabo, propor uma visão invertida do mito que, embora também parta da paráfrase da História, parodia-a, na medida em que rebaixa o elevado, ao se propor tratar não do triângulo Constança/Pedro/Inês, e sim do triângulo Pedro/Inês/ Afonso Madeira: CONSTANÇA: Mas não se vem ao teatro para ouvir sempre o mesmo. Há toneladas de peças e poesias escritas sobre Inês. Há óperas onde as sopranos querem igualar o sofrimento dela. Coitadas... E também há umas coisas sobre mim. Muito poucas. Sou personagem secundária. Mas nestes séculos todos, ninguém trouxe ao palco o outro amor do nosso Pedro sanguinário (Rosa, 2006, p. 40). Rosa coloca na boca das personagens que estão contracenando a histó- ria de Pedro, Inês, Constança, a qual servirá de plano de fundo para, num primeiro momento, encenar a desditosa vida de Afonso Madeira, que, em últi- ma instância, será responsável pela não realização da frase estampada, na par- te inferior da rosácea, do túmulo de Inês, em Alcobaça, onde, em uma estátua jacente, se lê o supremo adeus: “Até ao fim do mundo...”: “AFONSO: Nem a mor- 169 Teatro e Paródia no Mito de Inês de Castro te reuniu Inês e Pedro. Eu nunca pensei que isto fosse possível: o mito do amor infinito ser apenas um casal de mortos divorciados” (Rosa, 2006, p. 40). Se Inês e Constança jamais puderam viver outras vidas, uma vez que, segundo a protagonista – “Eu não pedi que me transformassem em mito. O meu infortúnio tornou-se inesquecível. As pessoas adoram as tragédias. Sou prisioneira da máscara de rainha defunta. E nunca mais saí daqui para viver outras vidas” (Rosa, 2006, p. 43), – ideia corroborada por Constança, que afirma “a mim acontece-me o mesmo. Ninguém nos chama para outros pa- péis” (Rosa, 2006, p. 43), o mesmo não se pode aplicar a Afonso, que reen- carnou, desempenhando em outra vida a figura de Farinelli4, afinal, já tinha experiência como castrado, além de ser exímio cantor e músico: AFONSO: Não sei se foi sorte. Os anjos chamaram-me para uma nova vida. Mas fiquei na mesma preso ao estigma de castrado. Acharam que eu já tinha adquirido experiência para o papel. Fui o famoso Farinelli, o cas- trato que encantou a Europa com a voz incrível, no século XVIII. Caparam- me numa banheira de leite, tinha eu oito anos (Rosa , 2006, p. 44). Embora já sugerido na crônica de Fernão Lopes, “e como quer que o [Afonso Madeira] el-rei muito amasse, mais que se deve aqui de dizer”, Rosa busca uma óptica inédita para seu diálogo com o paradigma, na medida em que o torna responsável por impedir a realização amorosa na vida eterna, portanto no espaço mítico, do amor de Pedro e Inês. Através do recurso do the play within a play, Afonso Madeira propõe um psicodrama, para que as personagens, por meio do “jogo do teatro”, revivam “em drama a origem do conflito” (Rosa, 2006, p. 52), – Inês e Pedro não “viverem” o amor eterno devido a o que o rei fez com Afonso Madeira. 4. Farinelli (Puglia, 24 de janeiro de 1705 – Bolonha, 15 de julho de 1782), pseudônimo de Carlo Broschi, mais popular e bem pago cantor de ópera europeu do século XVIII. Foi castrado na infância, segundo consta, num banho de leite, para preservar a voz aguda, prática a que eram sujeitos alguns cantores e que era muito comum na época. 170 Flavia Maria Corradin Constança desempenhará o papel de Catarina Tosse, a mulher que foi seduzida pelo escudeiro do rei, afinal no teatro, espaço do faz de conta ilusório, a traída transforma-se no pivô da traição. Mais uma vez, partindo da paráfrase da crônica, propõem-se acrésci- mos capazes de elucidar a questão. Ouçamos Inês, que é apresentada como uma personagem extremamente lúcida, característica de personagem que não percebemos nos muitos intertextos que dialogaram com o mito: INÊS: Sim, mas isso era na crônica que te foi encomendada. Aqui vamos dizer mais, muito mais, porque estamos no teatro, e noutro tempo. Hoje na Espanha de onde vim, Afonso e Pedro podiam simplesmente casar- se, e criavam os meus órfãos. Mas Afonso não era apenas o favorito na caça e no colchão do meu viúvo. As mulheres suspiravam por sentir o peso do corpo dele sobre as coxas, e adoravam ouvi-lo tanger o alaúde, com uma voz de barítono. El-rei deitava-se sobre o mocetão mais disputado da corte lusitana. E isso era motivo de sobra para a cobiça das mulheres. Era o caso de Catarina Tosse (Rosa, 2006, p. 53). O diálogo que se segue apresenta Catarina a justificar seu adultério e Fernão Lopes ao trazer à tona um acréscimo em relação ao paradigma. A causa do cruel ato do rei deve-se ao fato de que ele, freud e junguianamente, sofre do complexo de Pedro, ou seja: El-rei tinhaum mórbido horror a tudo o que fosse violação sexual. Nisto estamos de acordo. O problema é que ele facilmente confundia a cópula consentida entre homem e mulher com um acto de violência do macho contra a fêmea. Era uma espécie de falofobia terrorista. Como se vivesse nele a mulher violada. E projectava esse trauma vingativo nas relações dos súbditos. Por estranho que pareça, Pedro tinha repugnância pelo sexo a que pertencia, o sexo que herdou do pai. A isto eu chamo de complexo de Pedro (Rosa, 2006, p. 54). 171 Teatro e Paródia no Mito de Inês de Castro Ao que imediatamente Inês responde: Bravo, Lopes! Vais dar trabalho aos psicanalistas. O complexo de Pedro é uma bela invenção. Mais um anel para o meu mito. Estou-te grata. Mesmo depois de morto, continuas a contribuir para a minha imorta- lidade (Rosa, 2006, p. 54)5. Estamos, pois, diante de uma contribuição no âmbito psicanalítico para a mitologia inesiana. Armando Nascimento Rosa também explora, depois de as personagens continuarem a parafrasear o cronista-mor do reino, de modo a apresentar a versão documental da História, vários outros acréscimos que os intertextos promovem ao paradigma, como, por exemplo, aquele proposto por Agustina Bessa-Luís, qual seja, o fato de que Inês também sentiria ciúmes de Afonso, in- clusive porque no dia derradeiro de sua morte ela foi trocada por Afonso, conforme nos lembra Pedro: Nem mesmo nesse dia? Em que troquei a tua companhia pela dele? Nesse dia em que os lacaios do meu pai te mataram, eu devia estar ali a proteger-te, em vez de perseguir veados6 com o meu escudeiro. Foi a imprudência do meu amor dividido. Eu sabia que conspiravam contra ti em Montemor-o-Velho. E mesmo assim saí inebriado com Afonso pelas matas de Coimbra. Ainda hoje não me perdoo por essa incons- ciência. Não fosse ele a acenar-me do cavalo, e eu não te tinha deixado sozinha na quinta, com as crianças (Rosa , 2006, p. 63). As virtualidades são levadas às últimas consequências, quando, apoian- do-se na moderníssima teoria das relações de gênero, Afonso afirma: 5. A ideia de um complexo de Pedro já aparece sugerida em Inês de Castro (Gondim da Fonseca, 1957) e em Adivinhas de Pedro e Inês (Agustina Bessa-Luís, 1983). Vale a pena ressaltar também o texto O Complexo de Inês formular uma noção arquetípica que vem como apêndice à edição da peça O Eunuco de Inês de Castro: Teatro no País dos Mortos. 6. Atentem para a ambiguidade do termo. 172 Flavia Maria Corradin Julgavas que cortando as minhas pendurezas, que tanto gozo te davam, havia de nascer-me um sexo de mulher. Em linguagem de hoje, o que tu querias era fazer de mim um transexual. Fui a tua cobaia... Pedro o cru, o inventor da transexualidade compulsiva! Mas viestes antes do tempo. A cirurgia medieval é uma arte de açougueiros. É sinônimo da câmara de horrores. Sou a paródia carnal de Inês de Castro. O teu Frankeinstein vem reclamar a vida que amputaste. [...] Eis o real eunuco! O eu corpo é esta ferida monstruosa. Podes enterrar nela o sexo, se quiseres a minha morte (Rosa, 2006, p. 66). Como fica patente, o mito é parodicamente invertido, na medida em que as possibilidades acrescidas ao paradigma por outros intertextos revelam-se agora ideologicamente contrárias ao que a mitologia inesiana vem desenvol- vendo ao longo de mais de seis séculos de diálogo. O canto contrário, entre- tanto, permite-nos a dessacralização do elevado, ou seja, o amor frustrado de Pedro e Inês em vida continua frustrado na eternidade mítica, devido ao rela- cionamento politicamente incorreto que Pedro I, o sétimo rei de Portugal, exercitou em vida. Assim, a inscrição tumular, segundo consta proposta por ele – Até ao fim do mundo... –, que remete à continuidade da realização amo- rosa de ambos na eternidade, não se realiza no além, conforme Inês deixa pa- tente nas falas que se seguem àquela em que manda Pedro embora de sua ilha: Em Afonso Madeira tu castraste o nosso amor. Ele era o mensageiro que te cantava a minhas trovas. Afonso deu-te na carne o amor que eu não podia, por estar morta (Rosa, 2006, p. 71). Mais do que viúvo, tu foste a minha trágica viúva. Tornaste-me um mito para além do tempo. Reinar depois de morrer é o complexo de Inês que tu criaste. [...] isso não apaga a violência que fizeste ao Afonso. Foi como se a tivesse feito a mim também (Rosa, 2006, p. 72). Também Pedro convence-se de que o amor entre os dois não será reali- zado na eternidade, quando afirma que 173 Teatro e Paródia no Mito de Inês de Castro [...] houve um tempo em que era eu a colocar Afonso entre mim e Inês. O tempo com ele roubava-me o tempo com ela. Hoje é Inês que coloca Afon- so entre ela e eu, a separar-nos nesta morte suspensa (Rosa, 2006, p. 72). À guisa de conclusão Retomando a ideia de que a paródia é o nível intertextual em que a re- fração do paradigma é mais acentuada, uma vez que, invertendo o modelo, chegaremos à sua dessacralização, poderíamos afirmar que a paródia, ou seja, o canto contrário, é parricida, na medida em que, ao fim e ao cabo, acaba por matar o pai, isto é, o paradigma. Ao apresentar esse novo triângulo amoroso – Pedro/Inês/Afonso Ma- deira –, que inverte dessacralizadoramente o paradigma mítico, Nascimento Rosa coloca as personagens no psicodrama da História, na medida em que “o teatro é feito de confrontos” (Rosa, 2006, p. 72). A chegada de Afonso IV à cena corrobora metaforicamente a ideia do parricídio, uma vez que, em primeiro lugar, o rei e o escudeiro favorito de Pedro têm o mesmo nome e, conforme vêm confirmar as falas das personagens, a castração de Madeira nada mais é do que a castração de Afonso IV, fruto do ódio do filho desde sua mais tenra idade. Assim, para Madeira, “vingaste-te [Pedro] de mim como se o castrasses a ele [Afonso IV]”; para Inês, “ele vingou- se do pai sobre o teu corpo”; para Constança, Pedro queria “mutilar os órgãos do sexo que geraram metade do teu ser. Mas erraste o alvo. Afonso Madeira não era Afonso IV”. Todas as intervenções acabam por ser confirmadas pela do próprio Afonso IV, quando aponta “talvez elas tenham razão, meu filho. Trans- feriste para este desgraçado o ódio que por mim sentias” (Rosa, 2006, p. 72). Esse ódio que assola Afonso IV e Pedro I, na verdade, nada mais é do que outra manifestação do infortúnio que incide sobre a Dinastia Afonsina (ou de Borgonha), pelo menos desde D. Dinis. O ódio que leva pais e filhos a atitudes descabidas, como, por exemplo, a guerra civil travada entre o filho legítimo de d. Dinis, o futuro Afonso IV, e seu meio-irmão, Afonso Sanches, segundo 174 Flavia Maria Corradin consta, o preferido do rei. A intervenção da rainha Santa Isabel teria posto fim ao litígio, porém, o texto de Nascimento Rosa, pela boca de Inês, insinua que Afonso IV teria envenenado Afonso Sanches: “Este irmão que envenenaste...” (Rosa, 2006, p. 68). Pedro também parece ter-se sentido sempre preterido em favor de sua irmã Maria, a menina dos olhos do pai. Ressalta notar que António Ferreira, em sua Castro, também trata da maldição que incide sobre a família, quando transforma Afonso IV na grande personagem da peça, ao apresentá-lo diante de uma aporia, gerada pelo conflito: matar Inês e ver-se odiado pelo filho versus não matá-la e infringir as razões de Estado. Se retomarmos o complexo de Pedro, referido anteriormente, percebe- remos que a castração é, em última instância, uma forma de matar o pai, aquele que, além de ser o progenitor, é o responsável efetivo pela determinação do se- xo da criança gerada. Matar o pai implica também acabar com a violação con- sentida que todo pai exerceria sobre toda mãe. Reinstala-se o complexo de Édi- po já sugerido por um outro intertexto: Inês de Castro, de Gondim da Fonseca. Portanto, gostaríamos de finalizar dizendo que O Eunuco de Inês de Cas- tro: Teatro no País dos Mortos, ao dialogar com o mito, busca sua dessacraliza- ção, na medida em que, invertendo parodicamente o modelo,acaba por matá- lo, quem sabe, abrindo caminho para que outros intertextos dialoguem com um novo paradigma, uma vez que, segundo Gilbert Durand, “o mito é o imaginário em discurso”, que se concretiza no ilusório espaço do faz-de-conta do teatro. Afinal, como estamos no país dos mortos, a peça termina, mais uma vez, exercitando o jogo do faz-de-conta que preside aristotelicamente a encenação teatral. Fernão Lopes convida todas as almas que estão na ilha de Inês para representar Pedro, o Cru, de António Patrício, com encenação de Gil Vicente, uma vez que “não há nada melhor do que o teatro no país dos mortos” (Rosa, 2006, p. 72). E vamos ao teatro!7 7. Frase proferida insistentemente por Paulo Autran (7/9/1922), grande ator brasileiro, falecido no dia 12 de outubro de 2007, quando esse texto estava sendo criado. Dedicamos a ele este trabalho. 175 Teatro e Paródia no Mito de Inês de Castro Referências bibliográficas BESSA-LUÍS, Agustina. Adivinhas de Pedro e Inês. Lisboa, Guimarães & Cia Editores, 1983. CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto, Porto Editora, 1985. DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo, Martins Fontes, 2001. FONSECA, Gondin. Inês de Castro. Rio de Janeiro, Livraria São José, 1957. GUEDES, Maria E. A Boba. Lisboa, Apenas livros Ltda, 2006. HELDER, Herberto. Os Passos em Volta. Lisboa, Assírio & Alvim, 1985. HUTCHEON, Linda. A Theory of Parody: The Teachings of Twentieth-century Art Forms. New York/London, Methuen, 1985. LOPES, Fernão. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro Oitavo Rei destes Regnos. Porto, Livraria Civilização Editora, s/d. PINA, Rui de. Crônicas de Rui de Pina. Porto, Lello & Irmão Editores, 1977. ROSA, Armando N. O Eunuco de Inês de Castro Teatro no País dos Mortos. Évora, Casa do Sul, 2005. VASQUES, Eugénia. “Fiama-Inês, a Estátua Jazente (ut pictura mors)”. In BRANDÃO, Fiama Hasse Pais. Noites de Inês-Constança. Lisboa, Assírio & Alvim, 2005. 177 1. King’s College London. Solidão e Relações de Poder na Obra de Gasparino Damata ROBERT HOWES1 Gasparino Damata foi um pioneiro da literatura homossexual no Brasil. Este artigo analisa o desenvolvimento do tema homoerótico em suas obras, come- çando com um tratamento velado no primeiro romance de 1951, revelando- se mais abertamente nas duas antologias de histórias e poemas do amor maldito dos anos 1960, até chegar ao retrato da subcultura homossexual do Rio de Janeiro contido nos contos de Os Solteirões, de 1976. À primeira vista, esse retrato pode ser considerado pessimista e negativo. Porém, considerado à luz da teoria da anomia, o livro aparece como um precursor do movimento de liberação homossexual brasileiro. O trabalho termina com uma compara- ção intertextual entre The Sergeant, do escritor norte-americano Dennis Murphy, e O Voluntário, de Damata. Hoje as obras de Gasparino Damata são pouco conhecidas, mas mere- cem ser estudadas porque ele foi um pioneiro da literatura homossexual no Brasil. Editou duas antologias de textos sobre o homoerotismo – as primeiras a tratar deste assunto –, e foi um dos fundadores do jornal homossexual Lam- pião. Foi também escritor, autor de um romance e de dois livros de contos que revelam uma abordagem cada vez mais aberta do tema homoerótico. Neste tra- balho vou analisar a maneira como Damata tratou o homoerotismo, relevando as questões da solidão e as relações de poder na subcultura homossexual. 178 Robert Howes Gasparino Damata nasceu em Catende, Pernambuco, em 1918. Durante a Segunda Guerra Mundial ingressou como suboficial no United States Trans- portation Corps e trabalhou num navio militar que levava tropas e materiais de guerra de Recife e Natal para as tropas aliadas na África do Norte. Em 1951 publicou seu primeiro romance e se iniciou na imprensa carioca trabalhando como jornalista profissional até a década de 1960. Em seus últimos anos, ga- nhou a vida como negociante de obras de arte e faleceu na década de 1980. O primeiro livro de Gasparino Damata, Queda em Ascensão, romance semiautobiográfico e fruto de suas experiências a bordo durante a guerra, re- lata a amizade entre o narrador, um marinheiro brasileiro, e um soldado ame- ricano na ilha de Ascensão. Contém uma referência direta às relações homos- sexuais, mas o relacionamento entre os dois personagens é tratado de uma maneira ambígua, que deixa em dúvida se o narrador, apesar de ter relações com mulheres, seja também suscetível a sentimentos homoeróticos. No conto “O Capitão Grego”, publicado no livro A Sobra do Mar, em 1955, um mari- nheiro se sente o objeto de desejo do capitão, mas, apesar de seus receios, volta do cais para o navio. Em 1965, apareceu o livro mais popular de Gasparino Damata, a Antologia da Lapa, que chegou a ter uma segunda edição em 1978. Contém uma coleção de memórias da Lapa e de poemas e ficção inspirados pelo bairro carioca. Até aquele momento o tema homoerótico tinha sido tratado velada- mente. Nos anos 1960, as ideias que acabaram lançando o movimento de libe- ração homossexual começaram a ganhar força, tanto no Brasil como no mun- do. Damata participou desse movimento, lançando as antologias Histórias de Amor Maldito e, junto com o poeta Walmir Ayala, Poemas de Amor Maldito. Nestes livros publicou trechos que tratavam do homoerotismo, mas que não eram necessariamente de autores homossexuais, incluindo contos e poemas de autores consagrados, tais como Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, mas também escritas mais assumidas de novos autores como Arruda Dantas e Van Jafa. 179 Solidão e Relações de Poder na Obra de Gasparino Damata A contracapa de Histórias de Amor Maldito, de 1967, fala abertamente do homossexual, notando que nos livros de alguns romancistas americanos: [...] o homossexual não vem catalogado como um anormal, doente, pelo contrário, é retratado como pessoa normal, com vida e hábitos próprios, que, infelizmente, em virtude da não-aceitação plena dentro da socie- dade, se sente ainda compelido a viver como um marginal dentro da pró- pria sociedade (Damata, 1967). Há, na literatura brasileira, um número bastante significativo de situa- ções e de personagens menores declaradamente homossexuais, embora só Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, e Internato, de Paulo Hecker Filho, sejam obras cem por cento homossexuais. Poemas de Amor Maldito apareceu em 1969, ano difícil da história brasileira, já em pleno clima do AI-5. No texto da contracapa, Damata deixa claro o assunto visado pela antologia, sem contudo empregar a palavra “homossexual”. Em vez disso, prefere “poesia e poetas malditos”, as “chamadas ‘minorias eróticas’”, “o leitor ‘entendido’” e “a paixão pela beleza grega dos adolescentes”. Essas antologias serviram de guia para Winston Leyland, editor da Gay Sunshine Press, ao compilar as duas anto- logias que introduziram a literatura homoerótica latino-americana aos leitores de língua inglesa (Leyland, 1979 e 1983). Em Histórias do Amor Maldito, Damata incluiu um conto de sua auto- ria, “Carl”, tirado de um livro inédito Diário de um Moço de Bordo. Nesse conto, que retoma o cenário do cais do porto, o narrador encontra um jovem marinheiro dinamarquês, e desta vez o ato sexual consuma-se. Mesmo assim, fica uma certa relutância em assumir completamente o tema, porque os dois estão completamente bêbedos e quase inconscientes. O último livro de Gasparino Damata foi Os Solteirões, editado em 1976, já no começo da Abertura2. Nesta coleção de contos, a vida dos participantes 2. A publicação não teve grande repercussão na época, mas existe um comentário bastante benévolo publicado na Tribuna da Imprensa e depois reeditado no jornal Mundo Gay, ano I, n. 3, 1º dez. 1977, p. 12. 180 Robert Howes na subcultura homossexual da região central da cidade do Rio de Janeiro é narrada explicitamente, sem subterfúgios, utilizando a linguagem e a gíria do próprio meio. Através de algumas referências, é possível deduzir que a ação da maioriados contos se passa na década de 1960, mas não se sabe se foram escritos nos anos 1960 ou 1970. De qualquer jeito, para mim são textos cheios de nostalgia, porque quando cheguei no Brasil pela primeira vez, em outubro de 1971, hospedei-me num hotel, aliás familiar, perto da Lapa, e passei muitas horas pesquisando na Biblioteca Nacional, em frente à Cinelândia e ao bar Amarelinho. Os contos localizados nesses lugares são muito evocativos do Rio de Janeiro daquela época. Mas, para outros leitores, estes contos bem podem criar uma sensação de mal-estar e tristeza. Nesta obra, com poucas exceções, aparece um meio bru- tal, desprovido de heroísmo, de idealismo, de amor e de compaixão. Os relacio- namentos entre as personagens processam-se na base de relações de poder, de exploração e de troca desigual de favores. A maioria dos personagens são, de um lado, homossexuais de certa idade, já experientes na caça das relações se- xuais e, do outro, rapazes sem dinheiro e sem apoio social, procurando satis- fazer suas necessidades básicas de sobrevivência. Em muitos casos, as relações são claramente mercenárias. O conto “A Desforra” abre com uma citação: O homossexualismo masculino, praticado pelos jovens nos países subdesenvolvidos, é um problema de estômago, portanto social. [...] E rapazes da classe menos favorecida, pobre, [que] o praticam [...] com certa naturalidade, sem dramas de consciência, como uma fórmula de suplementar o salário baixo (Damata, 1976, p. 129). Neste conto, um dentista homossexual considera como se vingar de um rapaz que o abandonou para ir viver com uma amante e agora, chutado por ela e faminto, volta a procurá-lo. O dentista tem sua roda de amigos, mas com os parceiros sexuais não há solidariedade alguma. A filosofia do dentista resu- me-se da maneira seguinte: 181 Solidão e Relações de Poder na Obra de Gasparino Damata Em matéria de amor, só acreditava no prazer comprado, isto é, no garoto que topava exclusivamente por dinheiro, ou vantagens altas, que sabia tirar partido da situação, tudo feito com o máximo de sinceridade, sem hipocrisias para não deixar ninguém iludido; nada de “eu te amo” e coisa[s] parecidas; garoto que se apaixonava não servia, era bicha em potencial (Damata, 1976, pp. 141-142). Aqui, a palavra “homossexual” é um insulto e uma arma para diminuir o outro. Quando o rapaz afirma desesperadamente que é macho, o dentista responde: “É macho coisíssima nenhuma! Você sabe perfeitamente que é tão homossexual como qualquer um de nós” (Damata, 1976, p. 154). Contudo, embora neste jogo de relações de poder os homossexuais mais velhos tenham as vantagens do poder e da experiência que vêm com a idade, nem tudo os favorece. De seu lado, os rapazes têm a juventude e a masculi- nidade desejadas, além de sua própria experiência da vida. É um jogo sutil envolvendo o desejo sexual dos mais velhos e a necessidade de se virar dos jovens. O motor dessa luta é a solidão. Damata cita outro escritor, dizendo: Não há nada mais terrível do que a solidão, ou a ausência total do amor [...] só a solidão ou a impossibilidade de se viver ao lado da pessoa a quem se ama [...] pode reunir debaixo do mesmo teto gente de men- talidade e idade tão diferentes (Damata, 1976, p. 63). Tanto os jovens quanto os mais velhos sentem os efeitos da solidão. Daí um certo equilíbrio entre os personagens. Damata têm a habilidade de entrar na mentalidade de ambos os parceiros. “Módulo Lunar Pouco Feliz” consiste no monólogo de um garoto de programa que chega no Rio vindo de São Paulo e tem dificuldade em encontrar freguês. Em “Paraíba”, um nordestino explica a um conterrâneo por que frequenta um cinema de pegação, deixando entrever que ele consegue uma certa satisfação sexual apesar de afirmar que vai lá por causa do dinheiro. Talvez o melhor dos contos seja “Muro de Silêncio”. Um homem se encontra com um fuzileiro com quem tinha relações sexuais regulares, mas 182 Robert Howes que depois sumiu sem dizer o por quê. O fuzileiro acompanha-o à casa, onde voltam a ter relações, mas ele mantém uma grande reserva e deixa ver que é a última vez que isto vai acontecer. Embora cedendo seu corpo sem relutância, o fuzileiro protege sua independência interior e dignidade pessoal. O conto sugere sutilmente a falta de comunicação verbal entre os dois e os sentimentos do mais velho em relação ao rapaz. Às vezes o próprio Damata tenta amenizar este retrato triste do mundo homossexual que ele apresenta. No conto “O Inimigo Comum”, um homos- sexual velho cheio de misoginia tenta convencer um rapaz a não se relacionar com mulheres, chamando-as de “bruxas” e outros insultos que o rapaz com- bate. Ao final do conto, há uma “moral da história” na voz do autor, dizendo: Se a mulher fosse tão ruim assim, o homem, que também não é lá flor que se cheire, já teria acabado com a raça [...] homem e mulher nem sempre se entenderam, mas nem assim deixaram de viver debaixo do mesmo teto e de constituir família [...] é bem provável que um dia o rapaz se case e o velho venha a ser seu padrinho de casamento (Damata, 1976, pp. 62-63). Desta maneira, e com outros pequenos detalhes, Damata sugere que existem ligações entre a subcultura homossexual e o resto da sociedade brasi- leira. Contudo, o retrato que ele faz dessa subcultura não é uma imagem que vai sensibilizar muitas pessoas hoje em dia. Em comparação com as obras de ficção de Darcy Penteado, que sairam à mesma época e tentavam apresentar uma imagem positiva e idealista do homoerotismo, os contos de Gasparino Damata são sombrios e pessimistas. Ecoando as palavras dos velhos republicanos da Primeira República, podemos dizer “esta não é a república dos meus sonhos”. Contudo, parece-me que há uma significação mais profunda nos contos de Damata que vale a pena resgatar. Para isso, gostaria de sugerir outra inter- pretação, baseada no conceito da anomia. A teoria da anomia, que no sentido etimológico significa “ausência de leis ou normas”, tem suas origens na Grécia clássica, mas foi ressucitada ao final do século XIX pelo filósofo francês Jean- Marie Guyau e pelo sociológo Émile Durkheim nas obras De la division du 183 Solidão e Relações de Poder na Obra de Gasparino Damata travail social e Le Suicide (Orrù, 1987). No século XX, o conceito da anomia foi empregado pelo criminologista norte-americano Robert Merton para expli- car as raízes das ondas de crime que continuaram a assolar as sociedades ricas. O conceito passou à cultura popular nas décadas de 1960 e 1970 com o sentido de uma condição de mal-estar em indivíduos, caraterizada pela ausência ou diminuição de normas ou valores. Empregado nesse sentido, tem associações com o crime e a delinquência. Em 1973, entretanto, no ensaio “Anomie et mutation sociale”, e depois no livro Hérésie et subversion, o sociólogo francês Jean Duvignaud tentou dar uma interpretação mais positiva à anomia, concentrando-se em suas mani- festações artísticas e literárias. Neste livro, argumentou que as obras de indiví- duos anômicos aparecem em momentos de transição, quando um novo tipo de sociedade está começando a aparecer mas ainda não tomou uma forma definitiva e reconhecida, enquanto os restos do sistema antigo lutam para manter sua predominância (Duvignaud, 1986). A obra de Gasparino Damata pode ser interpretada à luz da teoria de anomia. Ele escrevia os contos de Os Solteirões num momento da história em que o Brasil se transformava numa sociedade industrial e urbana. Ao mesmo tempo, o movimento de liberação homossexual estava começando a se esbo- çar, mas ainda era difícil ver como iam se manifestar as ideias e os sentimentos que se acordavam. Na linguagem de Duvignaud, era um mundo que nascia e mal se entendia ainda. Os contos apresentam um retrato realista do mundo homossexual, uma subcultura urbana com suas próprias regras e linguagem que divergem das normas da sociedade constituída, mas que ainda não foi reconhecida pela sociedadegeral, na qual a heterossexualidade e o casamento continuam a exercer a ascendência moral e social. Esta subcultura, existindo num meio hostil, tem muitos aspectos negativos: personagens egoístas explo- rando as relações do poder para satisfazer o desejo sexual; uma sociedade em que estão intimamente interligados o dinheiro, a experiência da vida, a soli- dão, o tesão, a juventude e as necessidades básicas de comer, dormir e gozar. Mas é também uma subcultura que tem elementos positivos: apesar de todos os problemas, os personagens conseguem se realizar sexualmente e fazer ami- 184 Robert Howes zades que vêm em seu auxílio em momentos difíceis. Ao contrário de alguns personagens enrustidos, nenhum dos personagens ligados à subcultura se suicida: sobrevivem e continuam lutando. E mesmo o dentista que queria humilhar seu antigo amante, acaba rindo quando sabe que o rapaz se ligou a outro amigo dele. Para terminar, este trabalho vai fazer uma comparação intertextual entre a novela de Gasparino Damata, O Voluntário, que forma parte de Os Solteirões, e o romance The Sergeant [O Sargento], do escritor norte-ameri- cano Dennis Murphy. The Sergeant foi editado em 1958 e estreou numa ver- são cinematográfica com Rod Steiger em 1968. As duas obras têm o mesmo enredo básico: um sargento militar apaixona-se por um praça sob seu coman- do. No romance americano, o soldado reage violentamente contra o assédio do sargento, que, totalmente isolado, acaba se suicidando. A novela de Damata tem o mesmo enredo, mas o desenvolvimento do tema é completamente diferente. O sargento Leocádio forma parte de um gru- po de suboficiais denominados “fanchones”, muito experientes na “vida do cangaço”, ou prática de seduzir recrutas. A maioria dos recrutas visados tam- bém conhecem o jogo e participam em troca de determinados favores. Leocá- dio toma a decisão de seduzir um voluntário pernambucano, Ivo, que no co- meço se esquiva habilmente das manobras do sargento. Quando Ivo precisa dum emprego, contudo, acaba cedendo, com a única condição que não quer fazer papel de mulher. O relacionamento continua por bastante tempo, mas quando Ivo quer se casar, Leocádio insulta a namorada e perde o rapaz para sempre. Longe de se suicidar, contudo, vai ao bar e embriaga-se, perdendo assim a oportunidade de ir ter com outro rapaz que está à sua espera. A comparação entre as duas obras mostra alguns contrastes culturais interessantes: a rigidez da cultura anglo-americana, ilustrada pela reação violenta do soldado assediado, o sentimento de culpa que empurra o sargento americano ao suicídio, a significação da troca de favores na cultura brasileira e a importância do papel, ativo ou passivo, desempenhado nas relações sexuais. O contraste mais importante, contudo, refere-se mais a uma questão cronológica. O romance de Murphy foi escrito na década de 1950, quando o 185 Solidão e Relações de Poder na Obra de Gasparino Damata movimento em prol dos direitos homossexuais ainda estava no começo. Murphy levanta a questão homossexual, mas, com o suicídio do sargento ao final do livro, o autor restabelece os valores consagrados da época. Neste romance, o homossexual aparece como uma figura estranha, isolada, que não consegue se controlar nem se submeter às normas da sociedade. Quando o caso chega ao conhecimento público, a única saída para o homossexual é su- mir, suicidando-se, deixando que a sociedade volte ao normal sem ele. A novela de Damata situa-se na década de 1960 e foi editada em 1976, um pouco antes do movimento homossexual brasileiro começar a se mani- festar e difundir as ideias da liberação gay. Ao contrário do sargento america- no, Leocádio nos aparece como um personagem integrado numa comunidade, uma subcultura vibrante, arraigada na sociedade carioca, com sua própria gí- ria e suas regras conhecidas e compreendidas por uma grande quantidade de pessoas, e não só homossexuais. Apesar da rivalidade entre os fanchones, Leocádio recebe o apoio do meio e tem um antigo companheiro da vida do can- gaço com quem conversar depois de perder o amante. Em vez de se suicidar, se embebeda e há sempre um rapaz à sua espera para o próximo dia. Assim, seguindo o modelo de anomia sugerido por Duvignaud, vemos a literatura antecipando mudanças na sociedade brasileira. Os contos de Os Solteirões, além de outros livros publicados na década de 1970 por Aguinaldo Silva, Darcy Penteado e João Silvério Trevisan, falam abertamente da vida dos homossexuais do Rio de Janeiro e São Paulo, do mundo das bichas, das bonecas e dos michês. Antecederam o lançamento em 1978 do jornal gay Lampião, que também utilizava a gíria da subcultura e publicava reportagens sobre a subcultura carioca, e a fundação de Somos, o primeiro grupo gay organizado, acontecimentos dos quais esses mesmos autores participaram ativamente. Gasparino Damata foi um dos fundadores de Lampião, e nas antologias do amor maldito e nos contos reunidos em Os Solteirões foi um pioneiro na difusão da literatura homoerótica e no retrato do meio homos- sexual do Brasil. 186 Robert Howes Referências bibliográficas DAMATA, Gasparino. Queda em Ascensão: Romance. 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San Francisco, Gay Sunshine Press, 1983. MURPHY, Dennis. The Sergeant. London, Frederick Muller, 1958. ORRÙ, Marco. Anomie: History and Meanings. Boston, Mass., Allen & Unwin, 1987. 187 A Homossociabilidade Erótica de João Silvério Trevisan NELSON MARQUES1 Partindo dos estudos sobre um tipo específico de instituição que podemos enquadrar dentre aquelas que apresentam espaços “fechados”, tomaremos o romance Em Nome do Desejo, de João Silvério Trevisan, como base de uma análise investigativa acerca da representação do adolescente masculino dentro de um seminário. Com o apoio dos recentes estudos sobre a homotextualidade na literatura, iremos tentar desvendar o mundo de meninos que, mesmo afas- tados da presença feminina, reproduzem retrógradas regras e interditos do universo que permeia as práticas eróticas entre homens e mulheres do lado de fora do claustro. Espaços fechados O romance Em Nome do Desejo, escrito em 1982 por João Silvério Trevisan (JST), se mostrou em perfeita harmonia com um dos pontos passíveis de investigação da homotextualidade que são “os estudos de espaços, das instituições mais fechadas, como o internato” (Lopes, 2002, p. 124). Tal espaço fechado, com suas regras e interditos, dialoga com aquilo que Pierre Bourdieu chama de topologia sexual do corpo, isto é, “gestos e movimentos corporais revestidos de significação social” (Bourdieu, 2007, p. 16). O que constatamos 1. Mestre em literatura brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Nelson Marques 188 ao longo do século XX, é que essa topologia vem restringindo cada vez mais as pessoas e as classificando de modo (muitas vezes) arbitrário e desnecessário. Ou não é fato que ainda hoje, nos pátios escolares, meninos e meninas conti- nuam interagindo de acordo com os códigos estabelecidos por essa dominaçãomasculina a que se refere Bourdieu? Nossa escolha por um autor como JST é nesse sentido proposital e pro- vocadora. Conhecido por seu constante engajamento político e cultural no movimento gay brasileiro, o autor é um transgressor de códigos e estatutos sociais; um homem que pretende questionar os pilares dessa estratificação so- cial. Mergulhar a fundo no universo dos meninos que um dia se apaixonaram dentro de um seminário é mergulhar em um mundo que se percebe preso em amarras muito mais fortes e resistentes do que se imagina. Um mundo, que por ser habitado apenas por homens, obriga a alguns destes a serem menos masculinos e outros mais femininos; em suma, os meninos que convivem no seminário imaginado por Trevisan estão fatalmente impelidos a obedecerem a um “sistema de oposições homólogas” (Bourdieu, 2007, p. 19), a fim de perpetuarem um (aparentemente) indestrutível sistema de regras patriarcais. Vale ainda ressaltar que romance em questão faz parte de uma tradição literária que tem como cenário principal esta ambientação rígida das institui- ções pedagógicas. São desta estirpe os romances O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, O Jovem Törless (1906), do alemão Robert Musil, e Lágrimas Impuras (1999), de Furio Monicelli, apenas para ficarmos em três exemplos. As três obras têm como protagonistas jovens adolescentes enfrentando as regras iniciáticas do que é ser homem de acordo com a cartilha da moderna civilização ocidental. Um dos aspectos extremamente originais do romance de Trevisan é a sua estrutura narrativa, que certamente em nada segue as convenções do cha- mado romance tradicional. Ao narrar o seu livro praticamente todo em forma de um sistema de perguntas e respostas – apenas um prólogo e um epílogo diminutos fogem a essa estrutura – JST faz propositadamente uma confusão na cabeça do leitor. Afinal de contas, o esquema de questionário acaba levando o receptor a uma espécie de confessionário, “onde o protagonista se desdobra A Homossociabilidade Erótica de João Silvério Trevisan 189 em uma voz que interroga e outra que confessa” (Leal, 2002, p. 128). Outra característica importante de Em Nome do Desejo está no fato de seu autor deliberadamente conciliar discursos do catecismo cristão aos diálogos de seus personagens, atitude essa que certamente poderá ser interpretada como um fortalecimento ideológico e político de sua literatura, colocando, assim, o amor daqueles dois meninos como algo muito além de uma perversão patológica dos manuais herdados do século XIX. Destarte, como bem constatou Souza Leal: “O romance realiza outro percurso, utilizando parte desse ideário (religioso) para autorizar e legitimar o amor entre os do mesmo sexo” (2002, p. 131). Começamos aqui a nossa investigação acerca de um homem em busca de um céu prometido há tanto tempo... Um homem maduro em busca de um menino soterrado; um menino soterrado tentando não morrer. Preparemo- nos para entrar finalmente no seminário, lugar “onde amar aos homens era uma tarefa, além de difícil, perigosa” (Trevisan, 1982, p. 24). O corpo que se modifica e aflora Todos os seminaristas do romance de JST iniciavam suas vidas como internos de modo parecido. Ao entrar no seminário, eles se viam logo rotu- lados como “novatos”, e assim passavam a sofrer as dificuldades comuns a qualquer iniciante: não dominar o sistema de regras do local, saudades de casa... Nesse estágio, que durava um ano, o menino era também apelidado de “sapinho”, isto é, “ainda não vivia dentro da água, mas já tinha saído da terra” (Trevisan, 1982, p. 38). Um “novato” era geralmente desprezado pelos outros por causa de seu comportamento medroso e inseguro. Os primeiros passos dentro do colégio eram sempre difíceis e confusos, e essa fase inicial acabará sendo como uma grande prova a ser superada pelos futuros religiosos, em suma, “ser sapinho significava um rito de iniciação, onde se sofria uma espécie de circuncisão interior” (Trevisan, 1982, p. 38). O uso do termo circuncisão neste momento certamente não é à toa, pelo contrário: nas suas origens reli- giosas e culturais, a circuncisão está relacionada com o aumento e o domínio Nelson Marques 190 da virilidade masculina2. Lembrando Bourdieu (2007, p. 35), a circuncisão é o “rito por excelência de instituição da masculinidade, entre aqueles cuja virilidade ele consagra ao prepará-los simbolicamente para exercê-la”. O entendimento dos ritos iniciáticos experimentados por esse grupo de meninos se ligaria ao caráter duplo que a própria circuncisão apresenta, isto é, de um lado a ideia de higiene herdada da medicina, e de outro o forte apelo religioso que a cirurgia carrega. O menino que passa por uma circuncisão inte- rior estaria, assim, primeiro, fazendo uma espécie de limpeza no próprio corpo, retirando aquilo que é excesso; segundo, ele voltaria ao aspecto primei- ro do ato, ou seja, ele se tornará um homem marcado com o sinal da separação inicial dos indivíduos e será definitivamente fixado no sexo ao qual pertence: o masculino. O protagonista de JST, Tiquinho, é despertado para as transformações de seu próprio corpo de modo ao mesmo tempo casual e abrupto: Depois de lhe dizer que já deveria estar usando cueca desde que chegara, o escandalizado anjo despachou-o com um comentário ameaçador: Andar sem cueca é contra o Regulamento, porque você já não é mais nenhuma criança (Trevisan, 1982, p. 48). Nesta passagem bastante significativa, Tiquinho se encontra justamente em um momento de transição de uma fase para outra, e descobre que o sím- bolo de sua nova posição no grupo de meninos se dá pelo uso de uma simples, porém imprescindível, cueca. A colocação de uma peça íntima passa a ter um caráter ritualístico e indica o caminho para o seminarista que ainda não sabe direito onde se encaixar. O uso da referida peça de roupa era, portanto, como espécie de divisor de águas. Ao passar a ter direito de usá-la, o menino com- preendia que a fase da “inocência” havia ficado para trás, era chegada a hora de ser homem de verdade. Ele já não poderia mais andar sem ela, com o “bicho solto”, como se costuma dizer entre os homens. Como rapaz, ele precisava 2. Para maiores informações, ver, revista História Viva, n. 31, maio 2006. A Homossociabilidade Erótica de João Silvério Trevisan 191 aprender a domar o seu “bicho”, afinal de contas, “ele” já não podia mais ter liberdade; seu dono deveria mantê-lo sob uma camada de pano sobressalente, garantindo, assim, que “ele não escapasse” e causasse uma desagradável sur- presa. Entender esse processo nos ajuda a delinear uma compreensão do bom desenvolvimento social do menino no grupo. Tiquinho, por exemplo, passa a se relacionar consigo mesmo e com os outros de outra forma: [...] tomou imediatamente o rumo da rouparia, apanhou exultante uma das cuecas de algodão ainda duro e, trancado num sanitário, vestiu-a lentamente, mirando-se através de um espelhinho portátil, para ver como era um homem sem calças. Saiu dali orgulhoso de ter finalmente atingido a maioridade (Trevisan, 1982, p. 48). O instigante aqui é a dubiedade proposta pela situação narcísica de Tiquinho se admirando frente ao espelho. Trancado no sanitário ele vai len- tamente se “vestindo de homem” e se vendo como tal; a admiração exacerbada da própria imagem o leva a uma coragem até então desconhecida e o deixa pronto para iniciar uma nova fase. Ele havia conquistado o direito a uma segu- rança tal que se sentia preparado para ter uma vida repleta de novidades, in- cluindo aí a coragem para andar pelo seminário sem se preocupar tanto com o regulamento, uma segurança limitada e com prazo de validade curto, como perceberemos ao longo do romance, mesmo assim, uma segurança. É interessante perceber os mecanismos de poder usados pelos respon- sáveis educacionais para manter (ou pelo menos tentar) o controle dos corpos que haviam chegado à fase de ebulição dos hormônios. Justamente porque os meninos desta fase necessitamde maior atenção e zelo, é que o seminário era dividido em dois grupos bem distintos. De um lado estavam os meninos que podiam ficar sem cuecas: de dez a treze anos; do outro, aqueles que já utilizavam o referido traje: acima dos treze anos. Esse controle era feito com cuidado de modo a esses dois grupos ficarem separados. Com o despertar dos hormônios e as regras do mundo externo entra- nhadas em seus atos, os adolescentes vão precisar definir e estabelecer quem Nelson Marques 192 é quem ali dentro. Os desejos sexuais obrigarão os meninos a definirem seus papéis dentro daquele universo enclausurado. Não será possível para todos eles serem “homens de verdade” e as regras que dividirão o grupo serão claras e precisas: de um lado os fortes, os homens; do outro, os fracos, as mulheres. Código da fraternidade viril Dentro de um pequeno mundo em que a mistura dos sexos não é per- mitida, regras e códigos são desenvolvidos tendo em vista uma divisão de poder entre os indivíduos. Os seminários e colégios internos tornam-se lugares sexualmente saturados e seus dirigentes acabam por inventar regras e mais regras em uma frágil tentativa de controlar os perfis sociais de seus internos. Em ambientes austeros como esses, não há espaço para nenhum tipo de indecisão: você é uma coisa ou outra, jamais as duas coisas. Ao “escolher” qual lado de sua preferência, o interno estaria necessariamente se posicionando em um determinado papel. Segundo Anne Vincent-Buffault (1996, p. 114): “Du- rante muito tempo o que mais se temeu foi que um adolescente ou um homem se efeminasse demais e infringisse o código da fraternidade viril, excluindo- se da sociabilidade masculina”. Por isso, a distinção entre meninos considerados efeminados e más- culos se torna uma referência central neste tipo de espaço. No romance ana- lisado por nós, Trevisan transporta seu leitor a um mundo de clausuras, inter- ditos e desejos sexuais. Neste cenário em que a religião está intimamente liga- da ao erotismo púbere dos seminaristas o sexo, ora intensamente místico, ora puramente carnal, apesar de proibido e “ignorado” pelos responsáveis peda- gógicos de tal instituição, acontece de maneira desenfreada e intensamente. As amizades nascidas e cultivadas pelos jovens ajudam o autor a formular um paradoxal conceito de subversão das regras sociais sobre relacionamentos, isto é, mesmo reforçando tais comportamentos tipicamente “homem-mulher”, os meninos adaptam esses padrões às suas próprias condições e acabam, de acor- do com o raciocínio de Francisco Ortega (1999, p. 26), possibilitando “um novo A Homossociabilidade Erótica de João Silvério Trevisan 193 modo de pensar e repensar as formas de relacionamento existentes em nossa sociedade”. Tiquinho e Abel estariam, deste modo, ampliando suas possi- bilidades no relacionamento e se aproximando do que Ortega denominou como “arte da amizade”, isto é, o amor dos protagonistas imaginados por Trevisan poderia ser uma “alternativa às tradicionais e desgastadas formas de relacionamentos com a família e o matrimônio” (1999, p. 27). Já dissemos aqui que dentro do ambiente de claustro do seminário os meninos desenvolviam jogos e atividades para definirem uma espécie de território particular naquele ambiente. O jogo do garrafão, por exemplo, é cer- tamente um cruel fortalecimento da dicotomia ativo/passivo para os internos e era realizado como uma forma de resistência do menino dentro do grupo. O caráter iniciático da “brincadeira” – joga-se para se deixar de ser fraco e tornar- se forte – acaba não se concretizando como rito de passagem, pois o jogo acaba apenas sendo uma reiteração dos papéis pré-definidos por aparência, tipo físico e comportamento. Em outras palavras, quem demonstra sensibilidade, medo e receio, acaba não tendo como se livrar do estigma do efeminado. O processo de fortalecimento de uns e o enfraquecimento de outros fica óbvio ao final de cada partida, como podemos observar na seguinte passagem: [...] os mais fortes riam satisfeitos, descontraídos, refeitos, sacudindo o pó e o suor. Os mais fracos corriam para o lavatório, em suma, os mais fracos continuavam mais fracos. Os mariquinhas, cada vez mais mari- cas. Quanto aos mais fortes, tinham sua força redobrada (Trevisan, 1982, pp. 42-43). A obra faz questão de ressaltar essa violência juvenil e de como aquele que se mostrava diferente – físico e emocionalmente – precisava aprender a ser “homem de verdade” através da dor e da agressão. Para os mais fortes, o objetivo era fazer com que pelo menos os mais fracos esboçassem um sinal de masculinidade ao apanharem: não podiam reclamar, mesmo porque, “homem de verdade tem que apanhar calado” (Trevisan, 1982, p. 40). Nelson Marques 194 O seminário serve desta forma como uma espécie de arena de agressi- vidades, na qual aqueles com pré-disposição para a tirania e a dominação através da força física terão um amplo e irrestrito manancial de oportunidades para exercitar seus mandos e desmandos. Os colégios internos, assim, tornam- se de alguma forma, como observa Mazzari, uma espécie de “laboratório onde se devem exercitar habilidades que se farão necessárias no futuro” (1997, p. 7). Essa ideia de um lugar comandando pelas leis dos mais fortes e onde apenas eles se tornarão homens de verdade, “propicia, por um lado, o surgimento eventual de déspotas implacáveis, e não prescinde, por outro, da figura do bode expiatório” (Mazzari, 1997, p. 8). Considerações finais Em nome do desejo, em nome do amor, em nome da vida. Certamente que qualquer um destes títulos se encaixaria perfeitamente com a história dos seminaristas que um dia se apaixonaram ao se olharem. No entanto, a escolha feita por João Silvério Trevisan parece acontecer exatamente devido a todas as implicações causadas pelas contradições que o próprio termo desejo incita, e de como ele está intimamente ligado a fé cristã. Desejo, segundo a definição do dicionário3, quer dizer: “1. Ação de desejar. 2. O que se deseja. 3. Anseio, aspiração veemente. 4. Cobiça. 5. Apetite, vontade de comer ou de beber. 6. Apetite carnal, concupiscência”. Em suma, a história contada pelo homem que um dia volta ao seu passado em busca de respostas passa por uma série de desejos e aspirações em busca do que é amar. Seja como literatura marginal, literatura gay, literatura homoerótica, ou qualquer outro rótulo usado, a literatura que tem como foco os relacionamen- tos de pessoas do mesmo sexo é de extrema importância no que diz respeito a visibilidade de uma parte da sociedade que ainda hoje, em pleno século XXI, precisa lutar com coragem e muita disposição por seus direitos civis. Até 3. Dicionário Michaelis online. A Homossociabilidade Erótica de João Silvério Trevisan 195 porque, como reconhece Pierre Bourdieu, o trato simbólico com as marcações de gênero repercute em toda a estruturação social que distribui poderes na sociedade – a identificação com o elemento passivo (originalmente identi- ficado com o feminino) serve de justificativa para variadas formas de domi- nação e exploração. O estudo dessa questão não deveria interessar, portanto, somente a gays, lésbicas ou mulheres, mas a todos que discutem as relações de poder marcadas pela desigualdade e militam por minorar seus efeitos. A história dos meninos que se apaixonam dentro de um seminário choca não por colocar um assunto tabu em cena, e sim porque tal problemática é apresentada de modo a realçar os efeitos mais cruéis dessas relações de poder, colocando o texto a serviço de um pensamento consciente e politica- mente engajado. Assim como o editorial de lançamento do jornal Lampião4 anunciava não querer viver em guetos, nem erguer bandeiras que o estigma- tizassem, Trevisan também não quer saber de ser somente um escritor gay; seu objetivo maior é um debate com todos e não apenas com um setor da população. Muito além do mero rótulo, o autor almeja uma sociedade na qual haja uma convivênciae um respeito pela cidadania de cada indivíduo sem que para isso seja preciso se demarcar lugares específicos. A construção de uma identidade masculina se dá de maneira rigorosa e minuciosamente trabalhada, e os espaços fechados acabam se transforman- do em verdadeiros criadouros onde a necessidade de se ter em quem mandar obriga àqueles com maior disposição para o aperfeiçoamento corporal domi- narem. O que o romance de Trevisan tem de original é sua forma de não que- rer justificar o homoerotismo presente nas relações de seus personagens. A desmesura de JST é arriscar “criar” meninos mais livres, mais aptos a lidarem com os desejos de seus próprios corpos e espíritos; afinal de contas, como Bourdieu, nós também nos espantamos “que a ordem estabelecida, com suas 4. O Lampião da Esquina foi um dos primeiros jornais gays do Brasil. Circulou de 1978 a 1981. Tinha como articuladores Aguinaldo Silva, Caio Fernando Abreu, Gasparino da Matta e João Silvério Trevisan, entre outros. Disponível em: www.mgm.org.br/comunicando/noticias_ do_meio/lampi%E3odaesquina.htm. Nelson Marques 196 relações de dominação, seus direitos e imunidades, seus privilégios e suas injustiças, perpetue-se apesar de tudo tão facilmente” (Bourdieu, 2007, p. 7). Por fim, deixemos no ar a pergunta que se faz mais significativa ao término da leitura do romance: como tentar achar verdades quando se está enclausurado em um mundo de mentiras? Referências bibliográficas BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2007. LEAL, Bruno Sousa. “Estranhas Entranhas em Nome do Desejo, de João Silvério Trevisan”. In SANTOS, R. & GARCIA, W. (orgs.). A Escrita de Adé: Perspectivas Teóricas dos Estudos Gays e Lésbicos no Brasil. São Paulo, Xamã, 2002, pp. 127-133. . “Literatura como alteridade”. In: A Ética da Narrativa em Três Romances Brasileiros do Final do Século XX. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais, Tese de Doutorado, 2000. LOPES, Denílson. O Homem que Amava Rapazes e Outros Ensaios. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2002. MAZZARI, Marcus Vinicius. “Representação Literárias da Escola”. Estudos Avançados, São Paulo, vol. 11, n. 31, 1997. Disponível em: www.scielo.br/scielo.php? script=sci_ arttext&pid=S0103-40141997000300014. MONICELLI, Furio. Lágrimas Impuras. São Paulo, Companhia das Letras, 2000. MUSIL, Robert. O Jovem Törless. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981. ORTEGA, Francisco. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de Janeiro, 1999. POMPÉIA, Raul. O Ateneu. 10ª ed. São Paulo, Ática, 1989. TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. Edição revista e ampliada. Rio de Janeiro, Record, 2000. . Em Nome do Desejo. São Paulo, Max Limonad, 1982. VINCENT-BUFFAULT, Anne. Da Amizade: Uma História do Exercício da Amizade nos Séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro, Zahar, 1996. 197 Corpo e Memória na Obra de Caio Fernando Abreu ANTONIO EDUARDO DE OLIVEIRA1 A obra de Caio Fernando Abreu projeta no texto escrito mapeamentos subjetivos e ficcionais. Morte, aids, vida e memória são retratados na escrita do autor. A presença da temática da homoafetividade, o humor camp e queer e o tom confessional presentes nos contos, romances e crônicas de Caio geram espaços de intimidade entre o escritor e o leitor. Mesmo considerado o primeiro escritor brasileiro a abordar em seus textos a temática da aids, Caio adota uma postura sutil na maior parte de sua obra ao mencionar a epidemia presente no corpo de personagens. Bessa (2002), leitor crítico da obra de Caio, dá como exemplo principal da referência à temática da aids a novela Pela Noite, na qual, em um primeiro plano, a narrativa apresenta somente um jogo de sedução entre Pérsio e Santiago, seus dois personagens imersos em uma noite paulistana do início da década de 1980. Com a escrita das crônicas, depois da contaminação do autor, quando o biográfico aflora em plena força no escritor, é que a temática da aids se torna explícita na obra de Caio. Outro pesquisador importante da obra de Caio, Ítalo Moriconi, acredita que “pode-se constatar facilmente que o discurso da aids, em torno da aids já estava presente na ficção de Caio desde o início da epidemia, na primeira me- tade da década de 1980” (Moriconi, 2002, p. 15). Ele salienta que a obra de Caio nos traz o perfil de um escritor de fim de século cujo trabalho de criação literária anda par a par com o mundo do 1. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 198 Antonio Eduardo de Oliveira [...] entretenimento, do espetáculo e do jornal, contrastando de um lado, com outros autores canônicos [...] e que Caio ocupou um entrelugar [...] que merece ser estudado e discutido por quem se interessa por uma reflexão crítica sobre a história recente da produção cultural no Brasil (Moriconi, 2002, p. 18). A proposta deste trabalho é formular uma leitura das crônicas reunidas em Pequenas Epifanias (1996), destacando o corpo aidético transformado em espaço maior de inspiração para o escritor, como se explicita nas crônicas es- critas por Caio para o jornal O Estado de S. Paulo, e mais claramente na escrita das três chamadas Cartas para Além dos Muros. No volume póstumo, Pequenas Epifanias (1996), organizado por Gil França Veloso e agora relançado com o prefácio de Antônio Gonçalves Filho (2006) , composto de crônicas escritas por Caio para o jornal O Estado de S. Paulo, desde a “Primeira Carta para Além dos Muros”2 autor nos fala de seu corpo adoecido, transformado em um novo espaço que inspira a elaboração da escrita. Mesmo que doa o corpo, a escrita flui e passa a simbolizar um mapa de representação da vida, um marco da memória do autor. Como ele escreve: Minha única preocupação é conseguir escrever estas palavras – e elas doem, uma por uma – para depois passá-las, disfarçando, para o bolso de um desses [visitantes] que costumam vir no meio da tarde (Abreu, 1996, p. 97). Elaborando através da escrita das cartas uma cumplicidade entre autor e leitor, Caio equipara os familiares e amigos que o visitam no hospital a men- sageiros que o ajudarão, com a força da amizade, a lutar contra a enfermidade que o mantém hospitalizado. Valendo-se de força emocional originada por sua intensa sensibilidade, que o redime diante da adversidade, Caio define essas pessoas como leitores epistolares que têm o poder divino de salvá-lo da morte, 2. O título dessas crônicas/cartas é uma alusão simbólica do corpo vivo lutando para transpor “o muro” , metáfora espacial que se torna limítrofe entre a vida e a morte. 199 Corpo e Memória na Obra de Caio Fernando Abreu ao ajudá-lo a divulgar sua produção de cartas escritas no espaço confinado da geografia do hospital. Para ele, essas pessoas [...] são doces, com suas maçãs, suas revistas. Acho que serão capazes de levar esta carta até depois dos muros que vejo a separar as grades de onde estou daquelas construções brancas, frias (Abreu, 1996, p. 97). Caio também expressa seu medo diante do enfrentamento do desconhe- cido, das consequências que virão com a doença, com o corpo invadido, tor- nando-se território de sofrimento e, a partir daí, a escrita se sobressai como único espaço possível de redenção: Tenho medo é desses outros que querem abrir minhas veias. Talvez não sejam maus, talvez eu apenas não tenha compreendido ainda a maneira como eles são, a maneira como tudo é ou tornou-se, inclusive eu mesmo, depois da imensa Turvação. A única coisa que posso fazer é escrever – essa é a certeza que te envio, se conseguir passar esta carta para além dos muros. Escuta bem, vou repetir no teu ouvido, muitas vezes: a única coisa que posso fazer é escrever, a única coisa que posso fazer é escrever (Abreu, 1996, pp. 97-98). O corpo em destaque, aprisionado no hospital, é o corpo aidético trans- formado em fonte de inspiração para a escrita das três cartas para além do muro. Como se percebe no volume de cartas organizado por Ítalo Moriconi (2002)3 e em outros momentos de sua obra, Caio elaborano próprio corpo um palco subjetivo para expressar a doença, criando uma poética de resistên- cia à morte, ao se voltar para referências frequentes à cultura pop e literária, uma vez que 3. As três cartas para além do muro são crônicas publicadas no jornal O Estado de S. Paulo. As cartas do volume organizado por Ítalo Moriconi são uma seleção da correspondência que Caio escreveu ao longo de sua vida. 200 Antonio Eduardo de Oliveira [...] a formação pop contracultural, o flerte com a linguagem juvenil está em Morangos Mofados. O molde do policial e o mergulho no conteúdo místico (ou cósmico) estão em Onde Andará Dulce Veiga?, romance que, além disso, sintetiza muitas outras coisas e situa-se sem dúvida alguma entre os melhores produtos da ficção brasileira na década de 1990 (Moriconi, 2002, pp. 11-12). Na “Segunda carta para além dos muros”, Caio refere-se a vários indiví- duos famosos já vitimados pela aids. Inicialmente, usando uma metáfora midiática, elabora um cenário evocador da morte construído a partir de um show da vida: [...] quando sozinho, depois, tentando ver os púrpuras do crepúsculo além dos ciprestes do cemitério atrás dos muros – mais o ângulo não favorece e contemplo então a fúria dos viadutos e de qualquer maneira, feio ou belo, tudo se equivale em vida e movimento – abro janelas para os anjos eletrônicos da noite. Chegam através de antenas, fones, pilhas, fios. Parecem às vezes com Cláudia Abreu (as duas, minha brava irmã e a atriz de Gilberto Braga), mas podem ter a voz caidaça de Billie Holiday perdida numa FM ou os vincos cada vez mais fundos ao lado da boca amarga de José Mayer. Homens, mulheres, você sabe, anjos nunca tiveram sexo. E alguns trabalham na TV, cantam no rádio. Noite alta, meio farto de asas ruflando, liras, rendas e clarins, despenco no sono plástico dos tubos enfia- dos em meu peito. E ainda assim eles insistem, chegados desse Outro Lado de Todas as Coisas (Abreu, 1996, pp. 99-100). Imaginando sua adesão a um elenco de personalidades famosas vitima- das pela aids, Caio parece estar descrevendo sua inclusão no elenco de um filme. Cinéfilo incomparável, ele equipara a vida a uma longa experiência cine- matográfica ao fazer citações fílmicas em contos e romances, utilizando tam- bém o mesmo recurso na escrita das Cartas para Além dos Muros. Retratando a proximidade da morte, Caio parece estar descrevendo a cena de um filme 201 Corpo e Memória na Obra de Caio Fernando Abreu que nos faz lembrar O Show Deve Continuar (All That Jazz, 1979), de Bob Fosse. Esse filme não é citado por ele, mas nos vem à mente pelo fato de o enredo abordar a eminência da morte de um coreógrafo da Broadway (Roy Scheider) empenhado na elaboração de seu último musical e em diálogo constante com o anjo da morte (Jessica Lange). Caio começa uma descrição do cenário do outro mundo iniciada com a referência ao cineasta inglês cult e militante gay Derek Jarman (1942-1994), que morreu contaminado pela aids. Ele escreve: Reconheço um por um contra o fundo blue de Derek Jarman, ao som de uma canção de Freddy Mercury, coreografados por Nureirev, identifico os passos bailarinos-nô de Paulo Yutaka. Com Galizia, Alex Vallauri espia rindo atrás da Rainha do Frango Assado e ah como quero abraçar Vicente Pereira, e outro Santo Daime com Strazzer e mais uma viagem ao Rio com Nelson Pujol Yamamoto. Wagner Serra pedala bicicleta ao lado de Cyrill Collard, enquanto Wilson Barros esbraveja contra Peter Greenaway, apoiado por Nélson Perlongher. Ao som de Lóri Finokiaro, Hervé Guibert continua sua interminável carta para o amigo que não lhe salvou a vida. Reinaldo Arenas passa a mão devagar em seus cabelos claros. Tantos, meu Deus, os que se foram. Acordo com a voz safada de Cazuza repetindo em minha orelha fria: “Quem tem um sonho não dança, meu amor” (Abreu, 1996, p. 100). Conforme mencionado, a temática da aids também aparece no último romance escrito por Caio, Onde Andará Dulce Veiga? (1990), cuja versão cinematográfica dirigida por Guilherme de Almeida Prado foi lançada recentemente4. No romance em que se baseia o filme, a temática da aids se incorpora à geografia homoafetiva da ambiência urbana. Caio fala da cidade como se ela também estivesse contaminada pela doença: 4. Acaba de ser publicado também o texto do roteiro do filme baseado no romance Onde Andará Dulce Veiga? Cf. Prado (2008). 202 Antonio Eduardo de Oliveira Era um edifício doente, contaminado, quase terminal. Mas continuava no mesmo lugar, ainda não tinha desmoronado. Embora, a julgar pelas rachaduras no concreto, pelas falhas cada vez mais largas no revesti- mento de pastilhas de cor indefinida, como feridas espalhando-se aos poucos sobre a pele, isso fosse apenas uma questão de meses (Abreu, 1990, p. 37). Ao descrever o encontro casual com a personagem Pedro, o narrador/ protagonista cria uma cena explícita de sentimento de homoafetividade en- chendo de emoção a ambiência árida da urbe: Erguendo os olhos para o rosto daquele homem jovem que eu ainda não sabia que era Pedro, entre os solavancos do trem, do lado oposto da barra amarela que afunda pelo túnel, tomado por aquelas sensações e todas essas outras que tento especificar agora, algumas sem nome, como aquele calafrio crispado e gozoso da montanha-russa, um segundo antes de despencar no abismo, esbarrei num rosto claro que oscilava de um lado para o outro, eu não sabia se pelo balanço do trem ou se estaria um pouco bêbado. Devia ser sábado, passava da meia-noite. Ele sorriu para mim. E perguntou: – Você vai para a Liberdade? – Não, eu vou para o Paraíso. Ele sentou-se ao meu lado. E disse: – Então eu vou com você (Abreu, 1990, p. 101). É nesse espaço urbano da metrópole onde o narrador/protagonista encontra Pedro, o parceiro, no metrô, o qual mais tarde descobre já estar contaminado, em uma trajetória rumo à estação Paraíso. Com esse nome, Caio faz um trocadilho poético extraindo sensibilidade a partir de detalhes do cotidiano. Na novela Pela Noite (1991), o protagonista Pérsio associa a região de Pinheiros em São Paulo à lembrança do companheiro já morto, muito pro- vavelmente pela aids: 203 Corpo e Memória na Obra de Caio Fernando Abreu A gente tem tantas memórias. Eu fico pensando se o mais difícil no tempo que passa não será exatamente isso. O acúmulo de memórias, a montanha de lembranças que você vai juntando por dentro. De repente o presente, qualquer coisa presente. Uma rua, por exemplo. Há pouco, quando você passou perto de Pinheiros eu olhei e pensei, eu já morei ali com o Beto. E a rua não é mais a mesma, demoliram o edifício. As ruas vão mudando, os edifícios vão sendo destruídos. Mas continuam inteiros dentro de você (Abreu, 1991, p. 188). Todavia, nesses textos a doença é citada de forma mais inibida e não ostensiva. Outro exemplo é a narrativa de “Linda, uma História Horrível” (1988), conto no qual o narrador/protagonista fala indiretamente de sua con- taminação, projetando-a nas descrições da decadência física da cadela cha- mada Linda, na velhice da mãe e na deterioração física da casa materna: Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as man- chas púrpuras, da cor antiga do tapete na escada – agora, que cor? –, espalhadas embaixo dos pelos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi abrindo os joelhos até o chão. Deus, pen- sou, antes de estender a outra mão para tocar no pelo da cadela quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pelos. Crespos, escuros, macios (Abreu, 1988, p. 22). No conjunto dos contos que compõem a obra de Caio, provavelmente a abordagem da temática da aids só é claramente enfocada no conto “Depois de Agosto” (1995), cujo enredo retrata a paixão entre doishomens aidéticos: Mas se o Outro, cuernos, se o outro, como todos, sabia perfeitamente de sua situação: como se atrevia? por que te atreves, se não podemos ser amigos simplesmente, cantarolou distraído. Piedade, suicídio, sedução, hot voodoo, melodrama. Pois se desde agosto tornar-se o tão impuro que 204 Antonio Eduardo de Oliveira sequer os leprosos de Cartago ousariam tocá-lo, ele, o mais sarnento de todos os cães do beco mais sujo de Nova Délhi. Ay! gemeu sedento e andaluz no deserto rosso da cidade do centro (Abreu, 1995, p. 251). Retornando às cartas, que são escritas no estilo confessional das crôni- cas, gênero literário caracterizado pela narrativa informal, familiar, intimis- ta5, no qual é criada uma maneira de atrair a conivência e a intimidade do relato do autor com o leitor, Caio confessa na “Primeira Carta para Além do Muro”: É com terrível esforço que te escrevo. E isso agora não é mais apenas uma maneira literária de dizer que escrever significa mexer com fun- duras – como Clarice, feito Pessoa. Em Carson McCullers doía fisica- mente, no corpo feito de carne e veias e músculos. Pois é no corpo que escrever me dói agora (Abreu, 1996, p. 96). E mais ainda: Mais para você, revelo humilde: o que importa é a Senhora Dona Vida, coberta de ouro e prata e sangue e musgo do Tempo e creme chantilly às vezes e confetes de algum carnaval, descobrindo pouco a pouco seu rosto horrendo e deslumbrante (Abreu, 1996, p. 103). Na “Segunda Carta para Além dos Muros”, Caio torna mais explícita a consciência da presença da morte em sua vida. Essa lembrança é associada à cultura pop. Falando de anjos, Caio constrói exemplos de sua refinada ironia. Evoca também o início da luta política pela causa gay internacional, referindo- se ao bar Stonewall, de Nova York. Ele nos fala de uma visão paradisíaca de tom queer6 de um cenário do “outro lado da vida”: 5. Cf. Alves, Valéria de Oliveira. As Características da Crônica. Disponível em: www. sitedeliteratura.com/Teoria/Caracteristicas.htm. 6. O termo queer refere-se ao princípio teórico “that has proved most disruptive to received understanding of identity, community and politics is the one that problematises normative consolations of sex, genders and sexualities” (Jagose, 1996). 205 Corpo e Memória na Obra de Caio Fernando Abreu Já os anjos debochados do meio da tarde vestem jeans, couro negro, descoloriram os cabelos, trazem doces, jornais, meias limpas, fitas de Renato Russo celebrando a vitória de Stonewall, notícias da noite (onde todos os anjos são pardos), recados de outros anjos que não puderam vir por rebordosa, preguiça ou desnecessidade amorosa de evidenciar amor (Abreu, 1996, p. 99). Na “Última Carta para Além dos Muros”, a confissão do autor sobre sua contaminação é feita de forma ainda mais clara do que na segunda carta, reti- rada “do armário” despudoradamente7: Voltei da Europa em junho me sentindo doente. Febres, suores, perda de peso, manchas de pele. Procurei um médico e, à revelia dele, fiz O Teste. Aquele. Depois de uma semana de espera agoniada, o resultado: HIV positivo. O médico viajara para Yokohama, Japão. O teste na mão, fiquei três dias bem natural, comunicando a família, aos amigos. Na terceira noite, amigos em casa me sentindo seguro – enlouqueci. Não sei detalhes. Por autoproteção, talvez, não lembro. Fui levado para o Pronto Socorro Emílio Ribas com a suspeita de um tumor no cérebro. No dia seguinte acordei com sono drogado no leito da enfermaria de infecto- logia, com minha irmã entrando no quarto. Depois, foram 27 dias habi- tados por sustos e anjos – médicos, enfermeiras, amigos, família, sem falar nos próprios – em uma corrente tão forte de amor e energia que amor e energia brotaram de dentro de mim até tornarem-se uma coisa só. O de dentro e o de fora unidos em pura fé (Abreu, 1996, p. 102). A exposição do corpo doente não escapa do emprego do humor. Na lite- ratura de Caio, ele se constitui como uma arma eficaz para enfrentar a vida como também para combater e retardar a chegada da morte. Na recente publi- cação da primeira biografia de Caio, a autora, Jeanne Callegari, faz o seguinte comentário: 7. Refiro-me aqui a um “armário” positivo de Caio que se contrapõe à metáfora do armário de Sedgwick (1990). 206 Antonio Eduardo de Oliveira E o humor de Caio não parava. Ele ia para os exames e pedia aos amigos: segura a Maria Callas pra mim, por favor. A Maria Callas era o aparato do soro, que ele levava dançando, exatamente como na cena de Filadélfia. Ele compôs raps para o AZT, brincou, cantou. Depois do susto inicial, ele ia descobrindo um jeito de lidar com a doença. Antes de ter descoberto esse jeito, porém, ele escreve a “Primeira Carta para Além do Muro”, já fazendo referência velada à doença. Na crônica ele se agarrava a única coisa que podia ajudá-lo a viver: a literatura (Callegari, 2008, p. 169). São muitos os exemplos do humor de Caio em toda a sua obra. Por exemplo: Após descobrir que era portador do HIV, Caio tratou o tema com certo humor. Quando lançou, em 1995, seu livro de textos dispersos, Ovelhas Negras, falou ao jornal Zero Hora: “Fiz um rap para o AZT, os nomes de remédios para o HIV são muito engraçados. Pode parecer uma coisa mórbida, mas eu me diverti muito” (Wasilewski, 2008, p. 32). Para o amigo Vicente Pereira, Caio adotou um lema de vida cunhando a frase: “Sempre que mais de três pessoas estiverem reunidas em meu nome, eu estarei entre elas. Com um decote bem profundo” (Wasilewski, 2008, p. 32). Temos aqui uma referência queer à Bíblia cristã. Outro bom exemplo que vale a pena citar são as palavras do amigo Gilberto Gawronski em entrevista a André Fisher na revista Junior: [...] o Caio sempre me mandava os contos. A gente lia, relia, eu parti- cipava da criação, principalmente do que ele produziu para o teatro. Tenho certeza de que fui um interlocutor dentro da obra dele. Digo que isso não é um presente, é uma responsabilidade. Até ele brincava, na carta-testamento dele, dizia: “Betinho, se algum dia o Spielberg se interessar por algum livro meu, fique rica!”. Sempre com essa ironia, esse bom humor. Mesmo depois da morte, na missa de sétimo dia dele, quando o pai dele leu essa carta-testamento, deu uma bela gargalhada (Fischer, 2008, p. 60). 207 Corpo e Memória na Obra de Caio Fernando Abreu Na “Última Carta para Além dos Muros”, o corpo aidético dói, mas Caio se apega a fortes memórias afetivas, amorosas, evocando a família “e uma cor- rente tão forte de amor e energia que amor e energia brotaram de dentro de mim até tornarem-se uma coisa só. O de dentro e o de fora unidos em pura fé” (Abreu, 1996, p. 102). Chora a proximidade da morte, mas não desiste e continua a se revitalizar por meio de memórias afetivas: Certas manhãs chorei, olhando através da janela os muros brancos do cemitério no outro lado da rua. Mas à noite, quando os néons acendiam, de certo ângulo a Dr. Arnaldo parecia o Boulevard Voltaire, em Paris, onde vive um anjo sufista8 que vela por mim. Tudo parecia em ordem, então. Sem rancor nem revolta, só aquela imensa pena de Coisa Vida dentro e fora das janelas, bela e fugaz feito as borboletas que duram só um dia depois do casulo. Pois há um casulo rompendo-se lento, casca seca abandonada. Após, o voo de Ícaro perseguindo Apolo. E a queda? (Abreu, 1996, pp. 102-103). Portanto, a leitura das três Cartas para Além dos Muros nos direciona para a abordagem de todo o corpo da obra de Caio e, com isso, descobrimos que, mesmo diante das adversidades da existência e até diante da contami- nação do vírus HIV, Caio não se rende à morte. Portanto, não surpreende que conclua a “Terceira Carta para Além dos Muros” dizendo: “A vida grita. E a luta, continua”, o que nos mostra que a escrita e o humor são elementos importantes que perpetuam a vida e a esperança na obra de Caio Fernando Abreu. 8. O sufismo é a corrente mística e contemplativa do Islã. Os praticantesconceito pode parecer demasiado audaz. Entretanto, é no plural que ele se atualiza. São, sim, retratos em pro- cesso, e acumulativos. Propõem-se como subsídios para sua própria rearti- culação ou superação. Tais retratos darão azo a outros por virem. Assim se articula um pensamento, hoje, a meu ver: necessariamente no plural. A felicidade, repito, pode ser um peixe dourado ou uma rua vazia. A felicidade pode ser encontrar significado no rebrilhar da cabeça de um alfinete. A felicidade pode ser agora um estrepitar de silêncio. Podemos jamais sabê-lo, mas queremos tentá-lo. Só pode ser feliz no sentido moderno da palavra quem tem suas identidades e as suas particulari- dades respeitadas pelo Estado e pelo espaço social cotidiano no qual se deve inserir nossa diversidade. Ninguém pode ser feliz se ignorado, hostilizado e mesmo perseguido pelos aparatos sociais, políticos, culturais, religiosos, morais. Queremos o direito de tentar o voo de quem o faz sob a chancela do Estado de direito, plenamente. Nem mais, nem menos. Isso nos é devido. Para tanto, articulamos conscienciosamente nosso pensamento: tal é a função da universidade. O motto da USP, inscrito circu- larmente ao pé da torre da Reitoria, por exemplo, reza: “No universo da cul- tura, o centro está em todas partes”. Horácio Costa 22 Ora, se o centro está em todas partes, partes do centro somos nós. Chamando atenção para este mesmo motto, e nos mesmos termos, terminei minhas palavras iniciais para o primeiro encontro de poetas hispano-ameri- canos e brasileiros, que há quase vinte anos organizei no Memorial da América Latina. Este encontro chamou-se “A Palavra Poética na América Latina: Ava- liação de uma Geração”. Quase vinte anos depois, tocou-me a presidência da ABEH, e novamente minha aposta foi no diálogo inter-ibero-americano. O Brasil ocupa metade da América do Sul e congrega metade de sua humani- dade. São Paulo, esta cidade onde já se falou tanto em castelhano, como em guarani, como em português durante séculos, sempre representou uma ponta de lança em direção ao encontro do hispano-americano. Essa é nossa origem regional brasileira. Internamo-nos na terra e encontramos os vizinhos ao cabo de muitas léguas e muita labuta. Com este congresso, simbolicamente, a ABEH se abre ao diálogo com os estudiosos da homocultura nos países circunvizinhos. Nossa convergência em todos os sentidos é inevitável. En este sentido, doy la bienvenida a ustedes visitantes, compañeros de habla hispana. Sean muy bienvenidos a São Paulo y sepan que este congreso con su presencia se convierte en internacional. Quero ainda dar as boas-vindas a todos aqueles que se congregam agora e que vêm do Amapá ao Rio Grande, isto é, do Oiapoque ao Chuí, para refletir sobre as homossexualidades no Brasil e intercambiar seus horizontes de pes- quisa e reflexão. A ABEH cresce com vocês todos. A Universidade de São Paulo não menos. Uma das instâncias de excelência histórica da universidade brasileira, a USP, com o presente congresso, reconhece a legitimidade e o futuro dos estu- dos sobre a homocultura. Dirão muitos que já não era sem tempo, e dirão mui- tos mais ainda: “o tempo é daqui para a frente”. Alinho-me com estes últimos. Para a organização de um congresso como este, promovido por uma associação ainda jovem, é necessário a conjunção de muitos fatores. O mais importante deles, quero dizer desde já, é a paixão. O grupo que comigo o orga- nizou está formado por indivíduos apaixonados e foi um privilégio liderá-los Discurso de abertura do IV Congresso da ABEH 23 nesse processo. Por isso, a esses companheiros vai meu primeiro e mais sincero agradecimento. Aos professores Emerson da Cruz Inácio e Wilton Garcia, sediados em São Paulo, com quem mantive contato cotidiano ao longo dos últimos dois anos, vai minha primeira palavra. E também aos professores Berenice Bento e Wiliam Siqueira, sediados em Brasília e em Assis, sem cujo alento esta aventura não teria se completado. Há ainda a considerar a grande quantidade de colaboradores que me emprestaram sua paixão, na universidade e fora dela. Particularmente nossos alunos e orientandos, que dispuseram de seu tempo e nos brindaram com seu entusiasmo rejuvenescedor. Estes são nossa prata da casa, a prata da USP. Tenho consciência de que quebrei o protocolo ao primeiro agradecer a paixão de meus mais diretos colaboradores. Entretanto, um congresso como o presente não se faz sem a participação não menos decidida de instituições e vontades políticas. Antes de mais nada, quero agradecer neste momento ao Centro Cultural da Espanha (CCE), na pessoa de sua diretora, Ana Tomé, quem acolheu minha proposta de organizar este Encontro de Militantes Homosse- xuais Hispano-brasileiros como parte do IV ABEH. Sem ela à frente do CCE-São Paulo, a abertura dialógica que estamos experimentando jamais se teria podi- do verificar. É importante frisar ainda que este congresso contou com o apoio deci- dido do Programa Brasil sem Homofobia da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, cujo secretário é o ministro Paulo Vannuchi, aqui representado pelo diretor do referido programa, Perly Cipriano. Aos companheiros da organização não-governamental Via Pública, Pedro Paulo Martoni Branco, Luiz Eduardo Corá e Luiz Henrique Proença Soares, e a este último muito particularmente, vai também o meu preito: a rapidez e eficiência com a qual nos brindaram sua ajuda em um momento delicado da organização deste congresso me reforça a certeza de que para lá da preferência sexual subsiste felizmente um núcleo de solidariedade humana. A Caixa Econômica Federal juntou-se a nós no presente congresso, demons- trando serem suas também nossas demandas. Horácio Costa 24 Cabe-me, agora, agradecer às instâncias acadêmicas que nos apoiaram para a realização deste congresso. Em primeiro lugar, à profa. dra. Lisbeth Rebollo Gonçalves, neste momento representante da Magnífica Reitora da USP, profa. dra. Suely Vilela, e diretora do Museu de Arte Contemporânea, no qual nos encontramos, e que no-lo cedeu por duas vezes para encontros da ABEH, sendo a primeira em fevereiro de 2007, quando aqui mantivemos a primeira reunião entre a antiga diretoria da associação e a nova. Em segundo lugar, às autoridades da Universidade de São Paulo, aos pró-reitores de Cultura e Exten- são e de Graduação, que acolheram nosso pedido de ajuda; de um modo espe- cial, agradeço ao professor Gabriel Cohn, diretor da FFLCH-USP. Quero, ainda, publicamente, agradecer o apoio recebido pelas agências de fomento à pesquisa científica da federação e deste Estado, isto é, ao Conse- lho Nacional de Pesquisas (CNPq), e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Quero agradecer, finalmente, e penhoradamente, à desembargadora Maria Berenice Dias e ao juiz Fernando Grande Marlaska, que aceitaram nosso convite para compartilhar seus pensamentos e sua experiência conosco, na me- sa que escutaremos a seguir. Ao secretário da Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, meu primo Luiz Antônio Guimarães Marrey, que desde que contatado há poucas semanas demonstrou uma grande simpatia por nossa associação, estendo nossas mais cordiais boas-vindas. Durante esses quatro dias cresceremos todos. Muito obrigado por sua atenção. Muito, muito obrigado aos membros da ABEH, pela confiança que de- positaram em mim e aos professores que compõem a diretoria desta asso- ciação durante o biênio 2006-2008. Obrigado a todos os que aqui se encontram por sua presença. Está aberto o IV Congresso da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura. PARTE I Homocultura e Direitos Humanos 27 1. Advogada especializada em direito homoafetivo, famílias e sucessões. Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-presidente nacional doInstituto Brasileiro de Direito da Família – IBDFAM. Website: www.mariaberenice.com.br. A União Homoafetiva e ado sufismo, conhecidos como sufis ou sufistas, procuram uma relação direta com Deus através de cânticos, músicas e danças. 208 Antonio Eduardo de Oliveira Referências bibliográficas ABREU, Caio F. Onde Andará Dulce Veiga? São Paulo, Companhia das Letras, 1990. . Os Dragões não Conhecem o Paraíso. São Paulo, Companhia das Letras, 1988. . Ovelhas Negras. Porto Alegre, Sulina, 1995. . Pequenas Epifanias. Porto Alegre, Sulina, 1996. . Pequenas Epifanias. Rio de Janeiro , Agir, 2006. . Triângulo das Águas. São Paulo, Siciliano, 1991. BESSA, Marcelo S. Os Perigosos: Autobiografia e Aids. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2002. CALLEGARI, Jeanne. Caio Fernando Abreu: Inventário de um Escritor Irremediável. São Paulo, Seoman, 2008. FISCHER, André. “O Anjo Guardador”. Junior. São Paulo, ano 1, n. 6, 2008, pp. 60-65. GONÇALVES FILHO, Antônio. “As Últimas Palavras de Laika”. In ABREU, Caio F. Pequenas Epifanias. Rio de Janeiro, Agir, 2006, pp. 9-13. JAGOSE, Annamarie. Queer Theory: An Introduction. New York, New York University Press, 2000. MORICONI, Ítalo. Caio Fernando Abreu: Cartas. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2002. PRADO, Guilherme de A. Onde Andará Dulce Veiga? São Paulo, Imprensa Oficial, 2008. SEDGWICK, Eve K. Epistemology of the Closet. London, Penguin, 1990. WASILEWSKI, Luís F. “Ovelha Negra”. Discutindo Literatura. São Paulo, ano 4, n. 19, 2008, pp. 29-32. 209 Representações de Gênero e de Homoerotismo nas Literaturas Infantil e Juvenil: Uma Leitura de O Gato que Gostava de Cenoura e Sempre por Perto LUCIANO FERREIRA DA SILVA1 O presente artigo busca fazer leituras de duas obras que representam diferen- tes representações de gênero e de homoerotismo com suas respectivas sin- gularidades. A primeira delas trata-se de uma obra literária infantil intitulada O Gato que Gostava de Cenoura, de Rubem Alves, que aborda comportamen- tos infantis geradores de questionamentos por parte de adultos. A segunda, que em nosso entendimento destina-se tanto a um público infanto-juvenil como adulto, é Sempre por Perto, de Anna Cláudia Ramos, que relata as lem- branças de uma personagem feminina adulta com relação a seus desejos ho- moeróticos na infância e na adolescência. Aqui falamos de homoerotismo co- mo desejo homoerótico em suas mais diversas manifestações, evitando rotu- lações e seguindo as considerações feitas pelo estudioso Jurandir Freire Costa: E os que se sentem atraídos por homens só na fantasia mas preferem claramente, de todos os pontos de vista, relações afetivo-sexuais com mulheres? E, finalmente, os que se sentem atraídos apenas por partes do corpo masculino mas que não querem, não gostam e não pretendem relacionar-se com homens porque têm muito mais prazer ou só tem prazer no contato amoroso-sexual com mulheres? O que são? (Costa, 1992, pp. 28-29). 1. Universidade Federal do Pará. 210 Luciano Ferreira da Silva Também seguimos as afirmações feitas por Marko Monteiro, que reto- mam também as observações de Jurandir Freire Costa: [...] acho interessante inclusive negar o conceito de homossexualidade, como já vem sendo feito por autores como Jurandir Freire Costa (1992), por ser este conceito insuficiente para descrever ou permitir a compre- ensão dessa realidade atualmente, e por ser inadequado para com- preender a extrema diversidade de experiências íntimas e/ou sexuais que ocorrem entre pessoas do mesmo sexo (Monteiro, 2004, p. 2). Nesta esteira, também a chamada Teoria Queer recupera e modifica ideias iniciais que foram utilizadas pejorativamente para depreciar as pessoas homossexuais como “estranho”, “esquisito”, “incomum”, “fora do normal”, “excêntrico” e dá uma forma positiva de autoidentificação e: Além disso, aproveitando-se do outro significado, o de “estranho”, o termo queer funciona como uma declaração política de que o objetivo da teoria queer é o de complicar a questão da identidade sexual e, indi- retamente, também a questão da identidade cultural e social. Através da “estranheza”, quer-se perturbar a tranquilidade da “normalidade” (Silva, 2007, p. 105). Verificaremos nessas duas obras que pretendemos discutir como esse processo de estranhamento está presente e de que forma ele perturba o próprio enredo das duas obras na relação estabelecida entre as diferentes personagens. A primeira obra que discutiremos é O Gato que Gostava de Cenoura, de Rubem Alves. Ela se destina a um público infantil, segundo os critérios da estudiosa Nelly Novaes Coelho, quando uma obra com períodos curtos e com imagens que fazem referência direta ao que está escrito estaria mais voltada para o que a auto- ra chama de leitor-em-processo, a partir dos oito, nove anos, observe: Fase em que a criança já domina com facilidade o mecanismo da leitura. Agudiza-se o interesse pelo conhecimento das coisas. Seu pensamento lógico organiza-se em formas concretas que permitem as operações 211 Representações de Gênero e de Homoerotismo na Literatura mentais. Atração pelos desafios e pelos questionamentos de toda natureza. A presença do adulto ainda é importante como motivação ou estímulo à leitura; como aplainador de possíveis dificuldades e, evidentemente, como provocador de atividades pós-leitura. Como peculiaridades formais, apontamos: • A presença de imagens em diálogo com o texto. • Textos escritos em frases simples, em ordem direta e de comunicação imediata e objetiva. Predominância dos períodos simples e introdução gradativa dos períodos compostos por coordenação. • A narrativa deve girar em torno de uma situação central, um proble- ma, um conflito, um fato bem definido a ser resolvido até o final. • A efabulação (concatenação dos momentos narrativos) deve obedecer ao esquema linear: princípio, meio e fim (Coelho, 2000, pp. 36-37). O Gato que Gostava de Cenoura teve sua primeira publicação em 2001. A obra trata de comportamentos infantis geradores de questionamentos por parte de adultos. Tais adultos também são representados por animais, e o narrador, em terceira pessoa, logo no começo da narrativa, coloca-nos diante de um mundo distante, num tempo e espaço fora dos limites daquilo que co- nhecemos, lembrando os típicos inícios dos contos de fadas: “Era uma vez”. Nesse lugar vive o personagem-gato chamado Gulliver, lembrando tam- bém, através da intertextualidade, o clássico Viagens de Gulliver, no qual uma personagem empreende uma viagem por lugares diferentes e era um Gigante em determinada aventura. Aqui, a viagem que se estabelece é a do conheci- mento de si mesmo e gigantescos são os obstáculos iniciais dessa aventura. O conhecer a si mesmo parte, segundo a narrativa, de características que são ine- rentes a todo o ser daquela espécie; a narrativa começa a trabalhar a ambigui- dade no discurso, como podemos verificar na seguinte passagem: Os gatos, como todos os felinos, são caçadores. Gatos caçam peixes, ratos e pássaros. Um peixinho bobo, na superfície do tanque. Um passarinho 212 Luciano Ferreira da Silva distraído, comendo quirera. Um ratinho molenga, passeando pela casa. E era uma vez um peixinho, um passarinho e um ratinho... Viram comida de um gato (Alves, 2001, p. 5). Mais adiante, aqueles que gostam daquilo que os outros, os de outra espécie, gostam, possuem algo de “ruim na cabeça” e são “doidos”, como os coelhos que gostam de cenoura. Vejamos: “Os gatos odeiam cenoura. Para gatos, quem come cenoura é ruim da cabeça. Os coelhos devem ser doidos” (Alves, 2001, p. 5). Assim percebemos que se criou algo como sendo adequado para uma espécie, ou tido como “natural”. Aqui, o questionamento parte do biológico: a personagem gosta é de cenoura. O problema é tratado pelos pais do gato como doença, e então resolvem levá-lo ao médico. Observemos: Não gostava de caçar. Não gostava de comer em peixes, nem ratos, nem pássaros. Seus pais lhe traziam deliciosos ratinhos recém-nascidos, pardais saborosos, peixes cheirosos: tudo em vão. Ele quase vomitava. Seus pais o levaram ao médico. – Doutor,Constituição Federal MARIA BERENICE DIAS1 A Constituição Federal foi recebida como a salvadora da pátria, gerando a expectativa de trazer a solução para todos os males. Chamada de Constituição Cidadã, é reconhecida como uma das mais modernas do mundo por consagrar como princípio fundamental o respeito à dignidade da pessoa humana, asse- gurar o direito à liberdade e à igualdade, e proibir qualquer tipo de discri- minação. Também outorga especial proteção à família, que considera a base da sociedade. Acompanhando a evolução da sociedade, ao arrolar as entidades fami- liares, afastou-se do modelo tradicional das constituições anteriores, que só aceitavam a família constituída pelos “sagrados” laços do matrimônio. A Carta de 1988 reconheceu como entidade familiar as famílias constituídas fora do casamento, às quais chamou de união estável. Igualmente nominou de família um dos pais e seus filhos, o que passou a chamar-se de família monoparental. Apesar de proibida qualquer espécie de discriminação – inclusive em razão de sexo – à união estável entre o homem e a mulher é feita uma reco- mendação: de que a lei facilite sua transformação em casamento. Não há como deixar de reconhecer que se trata de um dos mais inúteis penduricalhos cons- titucionais. Afinal, precisa ser respeitada a liberdade das pessoas de casarem ou não, sem a necessidade de serem incentivadas por ninguém. Além disso, 28 Maria Berenice Dias nada justifica a transformação da união estável em casamento, que demanda um procedimento judicial, contratação de advogado e pagamento de custas. Dito alargamento conceitual acabou por consagrar a existência de novas estruturas familiares. Agora há famílias sem casamento e até sem qualquer envolvimento de ordem sexual. Assim, casamento, sexo e procriação deixaram de ser os elementos estruturantes da entidade familiar. Agora, sexo se pratica fora do casamento, inclusive pelas mulheres, pois caiu o tabu da virgindade como selo de garantia de sua pureza e castidade. Além disso, há procriação sem sexo – como permitem as modernas técnicas de reprodução assistida – e é possível o exercício da sexualidade sem procriação, em face dos métodos contraceptivos. Há famílias sem envolvi- mento de natureza sexual, como são exemplo as famílias monoparentais. Ou seja: o conceito de família migrou da genitalidade para a afetividade. Adquiriu relevância a natureza do vínculo que une as pessoas. Às claras, emprestou-se efeitos jurídicos ao afeto, inserindo-o no âmbito de proteção do Estado. Mas o rol que enumera as entidades familiares não é taxativo, não se trata de numerus clausus, quer porque é utilizada a expressão “também”, que é um advérbio de inclusão, quer porque o modelo de família não se limita às formas enumeradas. Tanto é assim que se passou a falar em “direito das famí- lias”, um conceito plural. Além disso, há realidades que não podem mais ser escondidas. Família não é mais a formada exclusivamente por um homem e uma mulher. O reco- nhecimento da presença do vínculo de afetividade permite identificar como família a união entre pessoas do mesmo sexo. Assegurar somente aos heteros- sexuais a possibilidade de formar uma família afronta o princípio da igualda- de. E, como que vivemos em um Estado democrático de direito – e vivemos – não há como condenar à invisibilidade uma parcela de cidadãos. É uma forma muito perversa de exclusão. Mas há mais. O Brasil, desde 1992, é signatário do Pacto dos Direitos Civis e Políticos da ONU, que em dois artigos proíbe a discriminação por motivo de sexo. E a Comissão dos Direitos Humanos da ONU, já em 1994, disse que a referência ao sexo constante do tratado diz também com orientação sexual. 29 A União Homoafetiva e a Constituição Federal Ou seja: negar direitos aos homossexuais é descumprir tratados internacio- nais, o que compromete a credibilidade do país perante o mundo. A aparente restrição constitucional, em vez de sinalizar neutralidade, encobre um grande preconceito e acaba por motivar a omissão do legislador infraconstitucional. O receio de ser rotulado de homossexual, o medo de desa- gradar seu eleitorado e comprometer sua reeleição impede a aprovação de qualquer projeto que assegure direitos à parcela minoritária da população, alvo de perversa discriminação. As forças conservadoras que tomaram conta do Senado federal, lide- radas por um assustador fundamentalismo religioso formado pelas bancadas evangélicas e católicas, impede a aprovação, por exemplo, do projeto da então deputada Marta Suplicy, em 1995, que admite singelamente a possibilidade de proceder-se ao registro de contratos de parceria civil. Igualmente, não permite aprovar sequer a emenda constitucional que proíbe a discriminação por orientação sexual. O legislador não consegue aprovar nem o projeto de lei nº 122/2006, que criminaliza a homofobia. O argumento não pode ser mais perverso: os pastores das igrejas evangélicas simplesmente querem preservar o direito de falar contra os homossexuais nos cultos religiosos. Não há como aceitar tal postura que afronta a liberdade de credo asse- gurada constitucionalmente (CF, 5º, VI e 19, I). Qualquer igreja pode não aben- çoar essas uniões, mas o Estado não pode deixar de fazê-lo. Ora, se nem essa legislação de importância tão evidente merece apro- vação, o que esperar dos projetos que preservam os direitos aos homossexuais, reconhecem seus vínculos afetivos como entidade familiar e lhes garante direi- tos sucessórios? Há somente uma referência, na lei nº 11.340/2006, a chamada Lei Maria da Penha, que visa a coibir e a prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. De forma expressa, assegura proteção às uniões homoafe- tivas. Além de definir a família como qualquer relação íntima de afeto (art. 5º, inc. III), abriga as relações pessoais, independente da orientação sexual (art. 5°, parágrafo único). 30 Maria Berenice Dias Esse panorama evidencia que a sociedade é marcada pela discriminação aos desiguais. As minorias são excluídas. Aqueles que fogem ao modelo acabam sendo rotulados e desprezados. Daí a responsabilidade maior do Estado. Assegurar direitos a todos. E, dentre os excluídos, os homossexuais são as maiores vítimas, estando a merecer um cuidado especial. Todos os que sofrem algum tipo de discriminação recebem a solidariedade da família, assim o negro, o portador de necessidades especiais. Mas o homossexual não, nem na família encontra o apoio. E se não há lei, cabe questionar: a quem recorrer? Claro que só pode ser à Justiça. Neste vácuo deixado pelo legislador, a solução está vindo mesmo é do Poder Judiciário. É às portas da Justiça que batem todos os sem lei, sem voz e sem vez. Tal como aconteceu com as uniões extramatrimonias – chamadas de concubinato – em um primeiro momento também houve enorme dificuldade de identificar como família as uniões sem o selo do casamento. Chamadas de sociedade de fato, eram julgadas nas varas cíveis e dividiam-se os lucros amea- lhados durante a vigência da sociedade, mediante a prova da participação de cada um dos sócios na formação do patrimônio social. Este mesmo calvário vem sendo imposto aos homossexuais. Negar caráter familiar às uniões entre pessoas do mesmo sexo repre- senta uma violência simbólica. Como diz Daniel Sarmento, é artificial, é hipó- crita, é mentiroso não ver a afetividade e ver só o caráter econômico da rela- ção. Como sócios não são parentes, não se reconhecem quaisquer direitos, quer do âmbito do direito das famílias, quer em sede do direito sucessório. De forma tímida, começou a haver o reconhecimento de direitos às uniões que passei a chamar de homoafetivas – neologismo que criei para sinalizar que é a afetividade que marca também essas famílias. Mas os avanços vêm acontecendo a passos largos. A primeira decisão reconhecendo direitos sucessórios – ainda que por analogia – é da justiça gaúcha e data de 2001. A partir desta decisão, muito se progrediu,pois passaram a ser reconhecidas como uma entidade familiar, 31 A União Homoafetiva e a Constituição Federal sem fazer uso de subterfúgios. Nesse sentido, já há decisões de vários tribunais de justiça, como o da Bahia, de abril 2001, do Rio de Janeiro, de julho de 2006 e de Minas Gerais, de setembro de 2007. A partir de uma decisão também da Justiça gaúcha, de 2006, passou a ser admitida a adoção por casais formados por pessoas do mesmo sexo. Com isso acabou a hipocrisia que obrigava um só do par a pedir a adoção, ainda que a decisão de constituir a família tenha sido de ambos. Deferida a adoção so- mente a quem requeria a adoção, deixava-se de assegurar maior proteção à criança, pois lhe subtraia direitos com relação a quem também exercia as fun- ções de pai ou de mãe. No âmbito da justiça federal, os tribunais regionais das 1ª, 2ª, 4ª e 5ª Regiões, e o próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ), já reconhecem o direito à pensão junto ao INSS (Instituto Nacional de Seguro Social) e outros órgãos previdenciários. Aliás, foi em decorrência de decisão judicial proferida em ação proposta pelo Ministério Público que o INSS expediu a Instrução Normativa nº 25/2000, garantindo auxílio por morte e auxílio reclusão aos parceiros homossexuais. Depois de, em duas oportunidades, o STJ ter deslocado a competência das ações para as varas cíveis, em setembro de 2008, a Corte admitiu a possi- bilidade jurídica da ação de reconhecimento da união homoafetiva como enti- dade familiar, proposta perante uma vara de família. A matéria ainda não foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas alguns de seus integrantes já sinalizaram expressamente suas posições. Em 2003, o ministro Marco Aurélio, como presidente do STF, ao negar recurso do INSS, fez um verdadeiro libelo contra a homofobia. Em 2004, o Superior Tribunal Eleitoral, pelo voto do relator, ministro Gilmar Mendes, ao reconhecer a inexigibilidade da parceira da prefeita de uma cidade do Pará, usou como fundamento a existência de uma entidade familiar. Já em 2006, o ministro Celso de Mello, ao rejeitar ação direta de in- constitucionalidade das leis que regulam a união estável, por exigirem a diver- gência de sexo do casal, além de expressar sua opinião, indicou o caminho a ser seguido. Foi esta decisão que ensejou a propositura, em 2007, da Arguição 32 Maria Berenice Dias de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, pelo governo do Estado do Rio de Janeiro. Essa trajetória mostra, mais uma vez, que o cidadão, para ver reco- nhecidos seus direitos, precisa socorrer-se do Poder Judiciário. A respon- sabilidade, no entanto, não é só dos juízes, é de todos os operadores do direito, uma vez que a construção da jurisprudência não é feita pelos magistrados, mas também pelos advogados, defensores, agentes do Ministério Público. Se não houver pleitos em juízo, não há decisões, não havendo como assegurar di- reitos. E, consolidada a jurisprudência, o legislador não poderá deixar de fazer leis afinadas com a orientação dos tribunais, sob pena de estar perdendo espa- ço de poder. Por isso o compromisso de fazer a justiça é de todos. Aliás, este foi o motivo que me levou à aposentadoria. Apesar de pregar há tantos anos a necessidade do reconhecimento dos direitos dos homos- sexuais, o número de demandas é absolutamente escasso. É preciso ter coragem de advogar essas causas, sem medo de ser rotu- lado de homossexual; sem receio de assustar a clientela. Só havendo um gran- de derrame de ações, trazendo todo um embasamento teórico coerente, uma linha de argumentação jurídica, é que se vai construir um novo ramo do direi- to: o direito homoafetivo, estabelecendo-se princípios, fontes e regramento próprio. Indispensável também elaborar um Estatuto da Diversidade Sexual, tal qual o Estatuto do Idoso, da Criança e do Adolescente. Talvez esta não seja a melhor saída e nem a mais célere, mas, com certeza, é a única. De todo modo, trata-se de um caminho fácil, pois depende apenas de cada um de nós. 33 1. Juiz. El Matrimonio Heterosexual: ¿Un Mito? FERNANDO GRANDE MARLASKA1 En un primer momento quiero mostrar mi agradecimiento al conjunto de personas que han organizado el presente encuentro, no sólo por la idea, ni tan siquiera por la bondad que han tenido en invitarme, lo que sería más que suficiente, sino principalmente por su lucha día a día para conseguir el reconocimiento del conjunto de derechos que le son ninguneados a una parte importante de la sociedad: aquélla que por su simple orientación sexual se ven privados de un pleno reconocimiento, no sólo legal, sino también social. También debe quedar constancia de que vengo y pertenezco a uno de esos pocos países donde al día de hoy se conjuga un pleno reconocimiento legal de derechos en el marco de las uniones homosexuales. En España se reconoció el matrimonio homosexual, y el derecho a la adopción mediante la Ley 13/2005, de 1 de julio. Esto no quiere decir, reconocida la igualdad ante la ley, que en el día a día no se observen importantes manifestaciones de ho- mofobia. Como trataré de explicar la ley reconociendo el matrimonio homo- sexual, independientemente de otorgarnos la carta de ciudadanos de primera, cuesta decir esto en pleno siglo XXI, goza de un importante valor pedagógico, que deberá ir acompañada de políticas transversales, en materia de educación principalmente. Entrando ya a analizar el fondo de mi comparecencia, el derecho de la población homosexual a acceder al matrimonio, y partiendo del título que la rubrica, debemos plantearnos si la citada institución puede considerarse como 34 Fernando Grande Marlaska de derecho natural, siendo elemento determinante de su configuración o esencia la heterosexualidad. O si, más bien, se trata de una construcción cultural. Es decir, si nos encontramos ante uno más de los mitos que han ido conformando nuestra herencia cultural. Es claro que los mitos, desde la época de la civilización griega, han representado los mayores y más capacitados vehículos de transmisión de los distintos modelos culturales y sociales. Para acercarnos a la idea que trato de plasmar, quizás sea conveniente poner la atención en la situación jurídica de las mujeres hasta fechas bien recientes, y evidentemente no superadas desgraciadamente en el conjunto de culturas o civilizaciones. Recordemos como desde la misma civilización griega, desde un punto de vista social y jurídico, la mujer fue considerada un ciudadano de segunda categoría. En otras palabras, se estimaba como un hecho natural, su naturaleza inferior respecto al hombre. Y sólo desde esa perspectiva o consideración era como podían arbitrarse las medidas discriminatorias. Posibilidad que no hubiera sido factible de considerarlo, como era, una mera creación cultural. Los hechos culturales son por su misma esencia mudables en el tiempo, lo que no ocurre con los hechos naturales, que son inmutables. Y a esa función colaboraron de una forma determinante los mitos. Así el de Penélope frente al de Antígona. Y esa situación de ostración social y jurídica de la mujer se ha perpetuado por más de tres mil años, al menos hasta la segunda mitad del siglo pasado. Dejado expuesto lo anterior, debemos hacernos la siguiente pregunta: el matrimonio homosexual es un mito? Es decir, una mera creación cultural y en modo alguno una institución de derecho natural. Si llegamos a esa con- clusión, no debiera existir ninguna razón jurídica que excluyera del mismo la unión afectiva entre personas del mismo sexo. En otras palabras, el sexo de los contrayentes nunca sería determinante de su validez. Y no debiera existir ningún problema, toda vez que en ese supuesto corresponde al conjunto de instituciones jurídicas adaptarse a las demandas sociales de cada momento. Al día de hoy cuando en nuestra civilización occidental, encontrán- donos bajo el paraguas del Estado de Derecho, donde los derechos y libertades 35 El Matrimonio Heterosexual:¿Un Mito? fundamentales forman parte de nuestra propia piel, no existe ninguna duda de cómo éstos forman parte de la propia naturaleza humana. Y, en modo alguno, no son otorgados graciosamente. Nadie discute, como tal, el derecho a la libertad, a la igualdad, a la seguridad y al libre desarrollo de la perso- nalidad, entre otros. Y éstos formando parte de nuestra esencia, si que son derecho natural, y no meras creaciones culturales. Una de las consecuencias precisas de lo anterior, y en lo que ahora interesa, no es otra que la exigencia por parte de un concreto colectivo, el homosexual, en reclamar el reconocimiento de sus derechos, que bien pueden verse vulnerados, consecuencia de regulaciones como las del matrimonio, y que les excluyen. Así podría verse vulnerado la igualdad efectiva de los ciudadanos en el libre desarrollo de su personalidad, la libertad en lo que a formas de convivencia se refiere, así como la instauración de un marco de igualdad real en el disfrute de los derechos, sin discriminación alguna por razón de sexo, opinión, o cualquier otra condición personal o social. Mani- festación, en todo caso, de una sociedad libre, pluralista y abierta. Matrimonio como Historia Al objeto de poder avalar las anteriores referencias relativas al matri- monio como hecho cultural, es decir nunca incompatible con su recono- cimiento a las personas independientemente del sexo, conviene hacer un breve desarrollo en el tiempo. Así: Desde la época griega hasta la historia contemporánea, donde el elemento de la afectividad entre los cónyuges no existe. Se tratan de contratos suscritos entre las familias y con intereses de toda índole, principalmente económicos. Posteriormente, a partir de la época contemporánea que podemos data- rla en el Código Napoleónico de 1804 donde ya viene a establecerse el ele- mento de la afectividad. Pero evidentemente aún, como hoy, en la casi totalidad de los países, aún subsiste el mito de su heterosexualidad. Es decir, 36 Fernando Grande Marlaska se ha transmitido a la sociedad, quien lo asume como una herencia cultural incuestionable, que únicamente cabe entender matrimonio como la unión de un hombre y una mujer. Finalmente, y en lo que al desarrollo del matrimonio como institución y relación jurídica (es decir dotada de derechos y deberes entre los contrayentes o cónyuges), como institución viva, que ha ido adaptándose a los modelos sociales mayoritarios. El elemento exclusivo que la sustenta es el de la “afectividad” y “solidaridad” entre los cónyuges, donde una hipotética finalidad de “procreación” no forma parte de su sustancialidad, ni es su núcleo “duro” o intocable. Aquí podré hacer alguna referencia un poco irónica a como en la civi- lización griega los únicos modelos que tendrían encajes serían los de carácter homosexual. Así Aquiles y Patroclo, Alejandro-Hefextion-Bagoas, Safo etc. Legislación española donde se reconoce el matrimonio homesexual. Ley 13/2005, de 1.º de julio En un primer momento me gustaría hacer una puntualización, y no es otra que la de referir que nos encontramos ante una ley del matrimonio, no ante la ley del matrimonio homosexual. Y digo lo anterior porque se trata de una nueva regulación a través de la cual la institución se denomina matri- monio, independientemente del sexo de los contrayentes. Y el matiz me parece lo suficientemente importante como para pasarlo por alto. Han sido muchos los años donde incluso hemos aceptado que en casi todas nuestras manifesta- ciones, incluso en las que no nos son específicas, se utilice el adjetivo ho- mosexual. Y es hora ya de que, en lo que no es específico, no se concluyan diferencias lingüísticas. Así quizás podamos y debamos hablar de literatura homosexual, atendiendo a su temática, como hablamos de novela histórica, pero en modo alguno extender el calificativo donde no procede, como es en el marco del ejercicio de los derechos y libertades fundamentales. Estos no son dados por derechos natural, y simplemente por se personas, no por la orientación sexual. Cuestión distinta es que deban existir regulaciones espe- 37 El Matrimonio Heterosexual: ¿Un Mito? cíficas que combatan fenómenos de discriminación, entre ellos la homofobia. Así que nos encontramos ante una nueva regulación del matrimonio, aquie- tado a la realidad social, y lo que es más importante, respetuosa con el estatuto jurídico inherente a todo ciudadano como persona. La legislación española que avala el matrimonio homosexual desde la perspectiva misma de la afectividad como elemento constituyente de esa institución, y manifestación precisa del reconocimiento material de los derechos fundamentales universalmente reconocidos. Así el de igualdad, igualdad en el reconocimiento de la afectividad independientemente del sexo de los cónyuges, como manifestación precisa del libre desarrollo de la personalidad etc. Debo destacar como esta ley, no sólo se hace eco de una aplicación material de los derechos y libertades predicables en toda persona, sino igualmente es consecuencia de la mismas realidad sociológica. Me permito facilitar en ese sentido algunos datos relativos a las encuestas españolas, país con una tradición católica importante, sobre la aceptación del matrimonio homosexual. Aceptación cercana al 70% de la población, no obstante lo cual aún estamos pendiente de que se resuelva el recurso de inconstitucionalidad interpuesto contra la Ley que instituye el matrimonio con independencia del sexo de los contrayentes (Ley 13/2005, de 1.º de julio). Haré una especie de conclusión sobre el matrimonio, como institución viva, que se ha ido modificando con el transcurso del tiempo, y no en meras circunstancias accidentales. Y como la conclusión lógica, dentro de la materia- lización de los derechos fundamentales, no puede ser otra que la de reconocer el matrimonio homosexual en todo Estado que se trate de calificar como de derecho y democrático. Partiendo de esa realidad legal española donde se reconoce el derecho al matrimonio para las personas, independientemente del sexo de los con- trayentes, pero siendo obvio que es una excepción a nivel internacional, legali- zándose asimismo en Canadá, Sudáfrica, Bélgica, Holanda, pocos estados de los EEUU, nos podemos hacer una pregunta estrictamente jurídica, pero creo que con cierto sentido común. ¿Caso de no regularse el matrimonio homo- 38 Fernando Grande Marlaska sexual, sino otra institución, como ocurre en la mayoría de los países que han dado el paso de luchar contra dicha discriminación, con nombre diferente, pero con el mismo contenido, para no vulnerar el derecho a la igualdad y demás derechos fundamentales, cómo puede entenderse? ¿Qué sentido hay a que dos instituciones del mismo contenido reciban nombres distintos? Creo que el motivo es únicamente ideológico: prejuicios de un mito subyacente, y donde la homosexualidad, aunque se diga lo contrario, seguiría conside- rándose un estigma. Y desde un punto de vista jurídico, aún sería más recriminable, el que esa segunda institución se abriera para las relaciones hetero y homosexuales. En ese supuesto, y como no podrían ser idénticas en contenido, salvo esqui- zofrenias jurídicas, guiadas por los mismos falsos mitos, nos estarían haciendo por ley ciudadanos de segunda. Espero que en el debate que entablemos pueda quedar clara mi postura. Consecuencias de la regulación en España del matrimonio ampliandolo a las personas homosexuales La importancia de la ley en España lo ha sido igualmente en su vertiente pedagógica. Aún cuando todavía hay un inmenso trabajo a desarrollar contra la homofobia. En ese sentido no nos podemos dar por satisfechos y debemos trabajar hacia la sociedad, no creando nuevos mitos, ya que caeríamos en el mismo engaño, sino simplemente haciendo hincapié en la razón, en el logos, como única posibilidad seria de conocimiento, no sólo del mundo exterior, sino igualmente del mundo interior de todas las personas.¿Y dentro de un discurso lógico es posible que alguien discuta, sin utilizar falsos mitos o herencias culturales asumidas, sin crítica alguna, que la creación de vínculos afectivos, tal cual es la base del matrimonio, depende de la orientación sexual? Esperando poder haber suscitado con estas ideas al menos algún interrogante sobre el que podamos intercambiar, a continuación, distintas 39 El Matrimonio Heterosexual: ¿Un Mito? opiniones, enriqueciéndonos mutuamente por el simple hechos de saber escucharnos, me gustaría concluir con algunas partes de la Exposición de Motivos de la Ley Española donde se constata la filosofía que la guía. Y que no es otra que la plasmación a esta cuestión de las distintas declaraciones de derechos humanos, y donde, aún hoy en día, hemos de valorar su coraje. Así: La relación y convivencia de pareja, basada en el afecto, es expresión genuina de la naturaleza humana y constituye cauce destacado para el desarrollo de la personalidad, que nuestra Constitución establece como uno de los fundamentos del orden político y la paz social. En consonancia con ello, una manifestación señalada de esta relación, como es el matrimonio, viene a ser recogida por la Constitución, en su art. 32, y considerada, en términos de nuestra jurisprudencia constitucional, como una institución jurídica de relevancia social que permite realizar la vida en común de la pareja. Esta garantía constitucional del matrimonio tiene como consecuencia que el legislador no podrá desconocer la institución, ni dejar de regularla de conformidad con los valores superiores del ordenamiento jurídico, y con su carácter de derecho de la persona con base en la Constitución. Será la ley que desarrolle este derecho, dentro del margen de opciones abierto por la Constitución, la que, en cada momento histórico y de acuerdo con sus valores dominantes, determinará la capacidad exigida para contraer matrimonio, así como su contenido y régimen jurídico. La regulación del matrimonio en el derecho civil contemporáneo ha reflejado los modelos y valores dominantes en las sociedades europeas y occidentales. Su origen radica en el Código Civil francés de 1804, del que inne- gablemente trae causa el español de 1889. En este contexto, el matrimonio se ha configurado como una institución, pero también como una relación jurídica que tan sólo ha podido establecerse entre personas de distinto sexo; de hecho, en tal diferencia de sexo se ha encontrado tradicionalmente uno de los funda- mentos del reconocimiento de la institución por el derecho del Estado y por el derecho canónico. Por ello, los códigos de los dos últimos siglos, reflejando la mentalidad dominante, no precisaban prohibir, ni siquiera referirse, al ma- trimonio entre personas del mismo sexo, pues la relación entre ellas en forma 40 Fernando Grande Marlaska alguna se consideraba que pudiera dar lugar a una relación jurídica matrimonial. Pero tampoco en forma alguna cabe al legislador ignorar lo evidente: que la sociedad evoluciona en el modo de conformar y reconocer los diversos modelos de convivencia, y que, por ello, el legislador puede, incluso debe, actuar en consecuencia, y evitar toda quiebra entre el Derecho y los valores de la sociedad cuyas relaciones ha de regular. En este sentido, no cabe duda de que la realidad social española de nuestro tiempo deviene mucho más rica, plural y dinámica que la sociedad en que surge el Código Civil de 1889. La convivencia como pareja entre personas del mismo sexo basada en la afectividad ha sido objeto de reconocimiento y aceptación social creciente, y ha superado arraigados prejuicios y estigmatizaciones. Se admite hoy sin dificultad que esta convivencia en pareja es un medio a través del cual se desarrolla la personalidad de un amplio número de personas, convivencia mediante la cual se prestan entre sí apoyo emocional y económico, sin más trascendencia que la que tiene lugar en una estricta relación privada, dada su, hasta ahora, falta de reconocimiento formal por el Derecho. Esta percepción no sólo se produce en la sociedad española, sino también en ámbitos más amplios, como se refleja en la Resolución del Parla- mento Europeo, de 8 de febrero de 1994, en la que expresamente se pide a la Comisión Europea que presente una propuesta de recomendación a los efectos de poner fin a la prohibición de contraer matrimonio a las parejas del mismo sexo, y garantizarles los plenos derechos y beneficios del matrimonio. La Historia evidencia una larga trayectoria de discriminación basada en la orientación sexual, discriminación que el legislador ha decidido remover. El establecimiento de un marco de realización personal que permita que aquellos que libremente adoptan una opción sexual y afectiva por personas de su mismo sexo puedan desarrollar su personalidad y sus derechos en condiciones de igualdad se ha convertido en exigencia de los ciudadanos de nuestro tiempo, una exigencia a la que esta ley trata de dar respuesta. Ciertamente, la Constitución, al encomendar al legislador la configu- ración normativa del matrimonio, no excluye en forma alguna una regulación 41 El Matrimonio Heterosexual: ¿Un Mito? que delimite las relaciones de pareja de una forma diferente a la que haya existido hasta el momento, regulación que dé cabida a las nuevas formas de relación afectiva. Pero, además, la opción reflejada en esta ley tiene unos fun- damentos constitucionales que deben ser tenidos en cuenta por el legislador. Así, la promoción de la igualdad efectiva de los ciudadanos en el libre desarrollo de su personalidad (arts. 9.2 y 10.1 de la Constitución), la preser- vación de la libertad en lo que a las formas de convivencia se refiere (art. 1.1 de la Constitución) y la instauración de un marco de igualdad real en el disfrute de los derechos sin discriminación alguna por razón de sexo, opinión o cualquier otra condición personal o social (art. 14 de la Constitución) son valores consagrados constitucionalmente cuya plasmación debe reflejarse en la regulación de las normas que delimitan el estatus del ciudadano, en una sociedad libre, pluralista y abierta. Desde esta perspectiva amplia, la regulación del matrimonio que ahora se instaura trata de dar satisfacción a una realidad palpable, cuyos cambios ha asumido la sociedad española con la contribución de los colectivos que han venido defendiendo la plena equiparación en derechos para todos con inde- pendencia de su orientación sexual, realidad que requiere un marco que determine los derechos y obligaciones de todos cuantos formalizan sus rela- ciones de pareja. En el contexto señalado, la ley permite que el matrimonio sea celebrado entre personas del mismo o distinto sexo, con plenitud e igualdad de derechos y obligaciones cualquiera que sea su composición. En consecuencia, los efectos del matrimonio, que se mantienen en su integridad respetando la configu- ración objetiva de la institución, serán únicos en todos los ámbitos con independencia del sexo de los contrayentes; entre otros, tanto los referidos a derechos y prestaciones sociales como la posibilidad de ser parte en proce- dimientos de adopción. Asimismo, se ha procedido a una imprescindible adaptación termino- lógica de los distintos artículos del Código Civil que se refieren o traen causa del matrimonio, así como de una serie de normas del mismo Código que contienen referencias explícitas al sexo de sus integrantes. 42 Fernando Grande Marlaska En primer lugar, las referencias al marido y a la mujer se han sustituido por la mención a los cónyuges o a los consortes. En virtud de la nueva redacción del art. 44 del Código Civil, la acepción jurídica de cónyuge o de consorte será la de persona casada con otra, con independencia de que ambas sean del mismo o de distinto sexo. Subsiste no obstante la referencia al binomio formado por el marido y la mujer en los arts. 116, 117 y 118 del Código, dado que los supuestos de hecho a que