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~·lmelhor compreender o fenômeno em
questão. Pode-se sugeri-la, considerando-se diferentes
tempos, contextos, personagens ou possibilidades. Por
exemplo, na pesquisa com os pais, na investigação
3 A consideração da questão da diferença baseia-se na proposta sistêmica
de Bateson (1973, p. 428). Ao referir-se à comunicação, aponta para a
questão de que a informação é uma diferença que faz a diferença.
51
de diferentes tempos, temos os seguintes exemplos:
"Houve alguma diferença na forma de vocês educarem
seu segundo filho?" Diferentes personagens: "Há
alguém na vizinhança que educa seus filhos de forma
diferente da sua?" ou "Houve alguma mudança entre
a forma como vocês foram educados e a forma como
educam seus filhos?" Diferentes possibilidades:
"Alguma vez, vocês experimentaram formas diferentes
de lidar com seus filhos? Como foi?" Na comparação,
podemos obter a compreensão de aspectos do fenômeno
que podem não aparecer no fluxo discursivo da fala.
Note-se que não estamos dirigindo a questão para uma
informação específica, mas para a consideração da
diferença, que provocará um delineamento mais nítido
dos contornos do fenômeno que nos interessa.
Na pesquisa sobre relação de gênero e livro
didático, quando a professora referia-se ao trabalho que
realizava com as personagens, associando-as à vida real
dos alunos, questiona-se sobre os diferentes tratamentos
dados às meninas e aos meninos nos livros didáticos.
Indaga-se: "Mas os livros não trazem a menina jogando
futebol?; ''Nas ilustrações dos livros, o menino está com
boneca no colo?" (p. 86). A partir dessas intervenções,
as professoras começam a dar-se conta do viés de
gênero nos livros, reflexo dos valores da sociedade
mais ampla. Até que uma das professoras comenta a
respeito de uma ilustração em um livro de Matemática:
52
Tem até um que fala assim ... são "as menininhas".
É a multiplicação. São todas menininhas que estão
nas janelas do prédio! Não tem um menino na janela
do prédio. Então, quer dizer, a dona da janela ainda
continua sendo a mulher! (Sparti, 1995, p. 91).
t
t
I
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l
I
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I
As questões que pedem a perspectiva do
observador4 favorecem o reconhecimento do contexto
interacional do fenômeno, focalizando a interação outro/
outro, pois explora padrões interacionais, sem incluir a
pessoa interrogada, que participa como observadora.
Ao focalizar o outro, faz-se a primeira parte de um
movimento reflexivo em que, momentaneamente,
muda-se o papel de protagonista para observador e, na
segunda parte, devolve-se o observador à cena, com
uma informação a mais. Ao lançar-se o olhar reflexivo5
para o outro, desenvolve-se um olhar comparativo para
consigo e temos a compreensão de outras perspectivas
do fenômeno.
Um exemplo de questão na perspectiva do
observador na pesquisa com os pais. Ao pai: "Como
seus filhos reagem quando a mãe explica determinada
regra, ou atua diante de uma desobediência?" Na
pesquisa com as professoras: "Como a outra professora
da sua série foi começando a utilizar a nova proposta?"
Ou: "Como os alunos começaram a interagir quando
você iniciou o trabalho com a proposta?" Note-se que
aqui também há a questão da diferença.
Nas questões que investigam relações
interpessoais, pode-se aprofundar a compreensão
do contexto interacional do fenômeno que se quer
4 A consideração da perspectiva do observador baseia-se na contribuição
de Maturana (1984) e sua epistemologia do observador, segundo a qual
"o observador, o ambiente e o organismo observado formam agora um
único e idêntico processo operacional-experiencial-perceptual no ser o
observador".
5 Por olhar reflexivo, entende-se expressar a compreensão que se tem
do outro em interação - o que nem sempre é consciente no quotidiano.
53
estudar. 6 A finalidade dessas questões é de desenvolver
uma reflexão, focalizando a relação eu/outro. Aí,
pode-se tomar conhecimento de padrões relacionais
e sua rigidez ou flexibilidade, sua repetividade ou
transformação. Por exemplo, na pesquisa com os pais:
"O que vocês fazem quando seus filhos desobedecem?"
e "O que seus filhos fazem quando você os repreende?"
Na pesquisa com as professoras: "O que vocês fazem
quando os alunos não estão prestando atenção na sua
aula?" e "O que os alunos fazem quando você está
apresentando conteúdo novo?"
A sugestão desses diferentes tipos de questões
teve como objetivo demostrar algumas possibilidades
de transformar a entrevista numa situação rica
em informações e num momento de construção
de conhecimento. Seria desejável que houvesse
a r~alização de uma entrevista piloto para que se
apnmorasse a questão geradora e se praticasse as
atividades de síntese e questionamento.
As intervenções, no momento da entrevista
servirão de índices no momento de análise, par~
observar momentos de digressões, de confusão na
expressão de fatos ou ideias e de superficialidade no
tratamento de alguma delas. Essas observações podem
ser reveladoras para a compreensão do fenômeno
estudado.
6 A consideração do contexto interacional baseia-se na proposta de
Bronfenbrenner (1996, p. 54) sobre a necessidade de se analisar o
"sistema interpessoal total operando num dado ambiente. Este sistema
incluirá tipicamente todos os participantes presentes (não excluindo 0
mvestlgador) e envolverá relações recíprocas entre eles". Ele refere-se
ao planejamento de pesquisa como um todo, mas pode servir como
referência para organizar questões de uma entrevista, quando o fenômeno
em questão envolve interações pessoais e entre sistemas.
54
--··-·------ ---·-- ----~---...;;.;-
1.3.2.6 A devolução
Trata-se da exposição posterior da compreensão
do entrevistador sobre a experiência relatada pelo
entrevistado, e tal procedimento pode ser considerado
como um cuidado em equilibrar as relações de poder
na situação de pesquisa.
Podem ser apresentadas a transcrição da ,
entrevista e a pré-análise para consideração do ·
entrevistado. O sentido de apresentar-se esse material
decorre da consideração de que o entrevistado deve
ter acesso à interpretação do entrevistador, já que
ambos produziram um conhecimento naquela situação
específica de interação. A autoria do conhecimento é
dividida com o entrevistado, que deverá considerar a
fidedignidade da produção do entrevistador. 7
Nesse momento, há a possibilidade de se ter
conhecimento do impacto da primeira entrevista no
modo de perceber o fenômeno por parte do entrevistado
e obter-se uma ampliação da compreensão dele por . , . '
parte do pesqmsador. E quando o entrevistado pode
apresentar modificações eventualmente geradas pelo
processo de reflexão - primeiro durante a primeira
entrevista, depois no período entre uma e outra e, em
seguida, na comparação de sua interpretação com a
do entrevistador.
O desenvolvimento dessa segunda entrevista
segue os mesmos procedimentos da primeira.
7 Certamente, por motivos de ordem prática, esse procedimento nem
sempre poderá ser seguido, mas é recomendado sempre que possível, até
devido a razões éticas. Temos o exemplo de entrevistados que, ao verem
a transcrição de sua fala, cuja gravação fora autorizada, não permitiram
sua divulgação, por temerem o reconhecimento de sua pessoa e eventuais
consequências.
Prandini (2000, p. 148), depois de entregar a
transcrição da entrevista com a professora apresentou
sua compreensão da seguinte maneira:
-Deixe-me confirmar com você ... A minha impressão
ao transcrever a entrevista foi de que, na sua concepção,
o ensino de arte não pode bloquear a criatividade do
aluno, mas você tem que dar fundamentos que deem a ele
condição de produzir ... [Nesse momento é interrompida
pela professora, que elabora as ideias trazidas de forma
sucinta pela pesquisadora.] Outra coisa que ficou
para mim com muita força foi a questão da falta da
continuidade do trabalho ... [Novamente interrompida
pela professora que reafirma sua proposição].
No caso acima, a devoluçãotanto serviu para
aprovação da compreensão da pesquisadora como para
a ampliação de suas considerações anteriores.
Na pesquisa sobre a identidade atribuída a
trabalhadores de uma indústria química (Silva, 1999),
a devolução teve uma consequência marcante na
compreensão do fenômeno estudado, pois, ao se
depararem com suas próprias falas, os participantes
temeram as consequências de suas críticas, sugerindo
modificações nos termos. Essa condição foi fundamental
para o estabelecimento de uma situação de reflexão e
desenvolvimento de consciência.
Na pesquisa de Sodelli (1999, p. 73), sobre o
sentido do trabalho do professor na prevenção da Aids,
houve mudanças marcantes da primeira entrevista para
a segunda, quando da devolução. A primeira diferença
foi um sentimento de grupo entre os professores, que
se localizaram em dois grupos: os favoráveis e os não
favoráveis ao trabalho de professores na prevenção
56
da Aids. O pronome "eu" foi substituído por "nós",
e o discurso dos professores, no segundo encontro,
foi mais descontraído, tendo eles demonstrado mais
confiança para expressarem suas ideias. Nas palavras
do autor, "o grupo mostrou-se emocionado, ou seja,
afetivamente ligado ao tema. O que parecia cansativo
e sem graça falar transformou-se em oportunidade rara
de expressão". O clima de participação foi tão intenso
que, diante da sugestão de um novo encontro por parte
do pesquisador, a aceitação foi imediata. O terceiro
encontro constituiu-se uma síntese dos anteriores e a
conclusão de um trabalho.
Sodeili (1999, p. 75) percebeu em sua pesquisa
[ ... ]um movimento de esclarecimento da compreensão
sobre o tema da prevenção da Aids e a escola.
Respostas simples e rasas foram apresentadas na
primeira entrevista e, com o andamento das discussões,
foram se transformando em respostas complexas.
Novamente encontramos aqui um sentido de
desenvolvimento de consciência nos procedimentos
da entrevista reflexiva. Do ponto de vista da pesquisa,
a tomada de conhecimento da elaboração feita pelo _
pesquisador, durante a devolução, constituiu-se para
os participantes um estímulo para aprofundar a
reflexão sobre o tema e, consequentemente, enriquecer
seus dados.
Sparti (1995) realizou quatro encontros com
as professoras, sendo três na forma de devolutiva. Em
todos os encontros, ele iniciava com uma síntese da
reunião anterior e a apresentava para a consideração
do grupo. À guisa de exemplo, a primeira devolutiva:
57
-Começando nossa atividade de hoje, eu quero dizer
que ouvi duas vezes a gravação da semana passada e
pontuei, de cada assunto que conversamos, o que cada
uma das participantes deste grupo foi falando, mas não
na íntegra ... Fui selecionando os pontos principais.
[ ... ] Então, antes de continuarmos, pensei em fazer
essa devolução. Seria uma recapitulação. [ ... ] Tem a
finalidade de esclarecer (de repente eu falo alguma
coisa e alguém diz: "Não, olha, você não entendeu
direito; não é isto"), de aprofundar, ampliar, completar,
ou, então, confirmar ("Foi isso mesmo; você entendeu
corretamente"). Primeiro, falamos de sua trajetória
como professoras. [ ... ] Depois, consideramos sua
concepção de educação. [ ... ]A seguir, falamos sobre
os livros didáticos. Em relação aos livros didáticos,
eu havia perguntado a vocês quais estavam utilizando,
que critérios levavam em consideração para adotá-los,
o que achavam dos livros. [ ... ]As respostas foram estas
daqui: que vocês receberam catálogos acompanhados
de alguns exemplares dos títulos, mas não todos.
Nesse momento, a pesquisadora expõe algumas
dúvidas sobre quais instituições enviavam os livros
e quais os problemas referentes à época de envio e
quantidades menores do que as solicitadas. A seguir,
sintetiza o que as professoras disseram gostar ou
não gostar nos livros e fala do processo de escolha
descrito por elas, lembrando suas falas em relação
à discriminação de gênero, raça e classe social, e
continua:
58
-Até aqui, o objetivo foi fazer uma devolução, uma
recapitulação, mas é muito enriquecedor, porque na
medida em que vou tentando confirmar, sistematizar
o que vocês falaram, a gente vai esclarecendo (Sparti,
1995, p. 74-84).
- --·-- -------------__ , ______ . -----·----......- -
'
I Pelo número de páginas da transcrição - 1 O -,
pode-se induzir como a devolutiva se deu numa
forma de diálogo, comportando esclarecimentos,
reafmnações e, até mesmo, acréscimos às proposições
anteriores. Deve ser notado que, nessa pesquisa, após as
quatro reuniões, as professoras estavam desenvolvendo
um projeto de escolha e uso de livro didático com mais
discernimento e consciência em relação aos vieses de
classe social, gênero e raça. Segundo Sparti (1995,
p. 152), "o procedimento de dar voz a essas professoras
(assemelhou-se a uma intervenção e) possibilitou
mudanças".
Assim, durante o processo de devolução, a
síntese do que foi dito na reunião anterior toma-se
estímulo para novas considerações e é um momento de
solução de dúvidas que ficaram para o pesquisador. Os
participantes deparam-se com suas ideias organizadas
de modo compreensivo, o que, em muitos casos,
ajuda os próprios participantes a sistematizarem suas
concepções sobre o tema. Quando se trata de uma
reunião coletiva, o texto trazido pelo pesquisador
refere-se a uma produção do grupo. Como lembra
Sodeili (1999, p. 74),
a multiplicidade de discursos numa mesma entrevista
[ ... ] revela diversos modos de ver e entender um mesmo
tema. Observamos que o discurso de um entrevistado
desperta no outro algum tipo de entendimento, seja
de aceitação, de rejeição ou de indiferença [ ... ]
É interessante notar que cada posicionamento foi se
tomando mais e mais claro, a partir do desenrolar da
entrevista, o que significa que a entrevista se constituiu
como um momento de construção do conhecimento.
59
O caráter de intervenção fica muito claro nas
entrevistas coletivas, pois a produção de conhecimento
e a tomada de consciência dão-se de forma mais
dinâmica, por estarem em jogo as influências mútuas
entre todos os participantes. Sodeili (1999, p. 75) traz
uma contribuição para essa condição de intervenção
da entrevista reflexiva ao citar o que lhe disse um dos
participantes de sua pesquisa: "Passei a semana inteira
pensando sobre o que eu tinha falado, e queria falar
mais coisas". É preciso ter claro que a participação de
cada membro do grupo reflete a influência dos demais e
o resultado final da entrevista refere-se a uma produção
do coletivo. Deve-se considerar que o entrevistador
deverá ter experiência de condução de grupos para a
utilização dos procedimentos da entrevista reflexiva.
1.4 Considerações finais
O objetivo deste capítulo foi considerar a
dimensão psicológica e ética da interação face a face
presente numa situação de entrevista, no sentido de
dimensionar os dados nela obtidos e situá-los dentro
dos limites que se delineiam no encontro entre duas
pessoas que se apresentam com determinado gênero,
idade, nível socioeconômico, aparência, disposições
afetivas, modo de compreender o fenômeno e
intencionalidades.
Como foi dito antes, isso não inviabiliza a
entrevista como um rico instrumento de pesquisa. Pelo
contrário, desvela novas possibilidades na compreensão
dos fenômenos que se quer investigar. Informa que esse
momento, muitas vezes, propicia uma reestruturação
60
·I
I
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i
!
I
I
l
de ideias. É uma consideração que mostra o caráter
dinâmico das informações que obtemos em nossas
investigações e aponta para o cuidado de não apresentá
las como algo definitivo, mas sim como um instantâneo
que congela um momento, mas que traz em seu interior
a possibilidade de transformação.
Um aspecto a ser lembrado é que esse tipo de
entrevista pode trazer informações muito ricas sobre
o fenômeno que se quer estudar, mas o desempenho
do entrevistador é muito importante. Por esse motivo,
é necessário um período de treinamento, em especialpara aqueles pesquisadores que não tiveram, durante
sua formação acadêmica, experiências de entrevistas
face a face.
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64
CAPÍTUL02
PERSPECTIVAS PARAAANÁLISE
DE ENTREVISTAS
2.1 Introdução
Heloisa Szymanski
Laurinda Ramalho de Almeida
Regina Célia Almeida Rego Prandini
Este capítulo propõe-se a oferecer subsídios
para a análise de dados de entrevista, a partir da
experiência das autoras com o desenvolvimento de seus
trabalhos de análise. Embora trate especificamente de
análise de entrevista, serão feitas inicialmente algumas
considerações sobre análise de dados qualitativos. Esta
se apresenta como uma atividade de interpretação que
consiste no desvelamento do oculto, do "não aparente, );/
o potencial de inédito (do não dito), retido por qualquer
mensagem" (Bardin, 1995, p. 9).
Referindo-se à análise de conteúdo, mas em
uma constatação que pode ser estendida a qualquer
análise de dados obtidos em pesquisas qualitativas,
a autora aponta para sua condição de "hermenêutica
controlada, baseada na dedução: a inferência". Trata
se de uma prática que auxilia o pesquisador a superar
intuições ou impressões precipitadas e possibilita a \
65
desocultação de significados invisíveis à primeira vista.
É o que Bardin (1995, p. 9 e 28) chama de superação
da "ilusão de transparência", via "vigilância crítica" e
o emprego de "técnicas de ruptura", com a finalidade
de manter o rigor, a validade e a fidedignidade dos
procedimentos metodológicos. É na prática que se
consolidam os procedimentos de análise, mas estes
não deverão se "fetichizar" a ponto de afastar os
pesquisadores de suas percepções e criatividade.
Tanto o delineamento dos procedimentos de uma
pesquisa, quanto a análise de dados dependem da opção
teórico-metodológica do pesquisador. Minayo (1996)
cita três grandes tendências que orientam a análise de
dados qualitativos: a análise de conteúdo, a análise
de discurso e a hermenêutica dialética. Poderíamos
chamar a esta última apenas de hermenêutica, de
forma a contemplar outras possibilidades dentro desta
proposta, como podemos verificar em Bleicher (1992).
Na perspectiva de Bardin, a análise de discurso não é
uma proposta diferente da análise de conteúdo. Rey
(1999), por sua vez, sugere a análise de conteúdo, com
uma conotação construtivo-interpretativa, como opção
para a análise de discurso e a análise da narrativa,
proposta por Bruner (1997).
Como se pode observar, há diferentes propostas
teórico-metodológicas e diferentes formas de articulá
las. Não há, no momento, o objetivo de aprofundar-se
nessas considerações.
A análise de conteúdo e a de discurso
desenvolveram técnicas elaboradas de tratamento de
dados. Não é o caso da hermenêutica, que, por sua
própria definição, indica um "caminho de pensamento"
(Minayo, 1996, p. 199), orientador para a compreensão
66
r
l
da comunicação contida no texto, que, no caso da
entrevista, estará expresso na forma de comunicação
escrita. Iremos nos ater brevemente a esta teoria de
análise, pois é a que embasa os trabalhos que serão
apresentados neste artigo.
Minayo (1996, p. 220), citando Gadamer,
define a hermenêutica como "a busca de compreensão
de sentido que se dá na comunicação entre os seres
humanos". Ressalta a importância que a hermenêutica
dá para as condições cotidianas da vida, situadas social
e historicamente.
Bleicher (1992, p. 13) defme, em termos
genéricos, a hermenêutica como a "teoria ou filosofia
da interpretação do sentido". O reconhecimento do
componente significativo das expressões humanas a
serem compreendidas criou o que Bleicher chamou
de "problema da hermenêutica: saber como é possível
este processo e como tomar objetivas as descrições de
sentido subjetivamente intencional, tendo em conta
o fato de passarem pela subjetividade do próprio
intérprete". Tanto o pesquisador como o objeto de seu
estudo estão ligados por um contexto de tradição, ou
uma compreensão prévia, que impede a postura de
neutralidade.
Martins e Bicudo (1989, p. 99 e 102-104)
trazem, em uma perspectiva hermenêutica, uma
proposta de análise de dados na pesquisa qualitativa
em psicologia. Classificam os seguintes momentos de
análise: "imersão empática no mundo da descrição",
"redução do ritmo de análise e permanência na
descrição", "ampliaçãoda situação", "suspensão da
crença" e "passagem dos objetos para os significados".
Enfatizam a necessidade de começar buscando-se
67
o sentido do todo, como base para delinear-se as
unidades de significado, como um procedimento
que viabiliza o tratamento dos dados, uma vez que
"a realidade psicológica não está pronta à mão no
mundo e que não pode ser vista simplesmente, mas que
precisa ser constituída pelo pesquisador. As unidades
de significado também não estão prontas no texto.
Existem somente em relação à atitude, disposição e
perspectiva do pesquisador". Através da reflexão, as
unidades são agrupadas em categorias segundo um
critério comum. A síntese expressa em proposições
irá indicar o sentido do todo, depois de passar pelos
momentos de análise citados.
Como lembra Bardin, é na prática que se
definem os procedimentos de análise. Foi dessa
forma que as autoras delinearam as próprias propostas
de análise de entrevistas, partindo dos subsídios
oferecidos por Giorgi (1985). O aspecto comum às
três pesquisadoras foi o questionamento de um modo
de análise de entrevista que permanecia em um nível
de descrição que não contemplava o desvelamento de
sentido do texto.
Serão apresentados, a seguir, trechos do
trabalho de análise de cada uma e as respostas que
encontraram para suas indagações.
2.2 Situando as propostas de análise
O objeto de estudo de Almeida (1992) foi o
Projeto Noturno, desenvolvido por 152 escolas, nos
anos de 1984 e 1985, na rede pública estadual paulista.
Cada uma das escolas elaborou o seu projeto, a partir
68
r
de sua problemática específica, solicitando dos órgãos
centrais da Secretaria de Educação o que consideravam
necessário para viabilizá-lo. Foram entrevistados
diretores, coordenadores, professores e alunos de
seis das escolas que desenvolveram, com sucesso, tal
projeto. O objetivo era compreender o que significou
para educadores e alunos do noturno participarem de
uma proposta elaborada por eles mesmos para atender
às suas necessidades especificas.
A linha de investigação escolhida foi a proposta
por Amadeo Giorgi (1985). Essa orientação prevê os
seguintes momentos:
1. O pesquisador lê o depoimento todo para familiarizar
se com o texto que descreve a experiência; nesse
momento, está imerso em um enfoque gestáltico.
Lê tantas vezes quantas necessárias para captar a
essência do que foi descrito.
2. Uma vez que o sentido do todo foi apreendido
e como é impossível analisar um texto inteiro
simultaneamente, o pesquisador deve quebrar o
todo em partes: volta ao começo do texto uma vez
mais e passa a pôr em evidência os significados,
em função do fenômeno que está investigando;
esses significados existem para o pesquisador que
está interrogando e não são unidades rigidamente
prescritas- são respostas para suas interrogações;
assim procedendo, se obtêm "unidades de
significado"; estas relacionam-se umas com -as
o'titr~s indicam momentos distinguíveis na
totalidade de descrição.
3. Como as descrições feitas pelos depoentes expressam
realidades múltiplas e como o pesquisador está
interessado em extrair o que tem valor psicológico
a respeito do fenômeno que está investigando, é
necessário que as expressões cotidianas "ingênuas"
69
Pedro Milanesi
Realce
Pedro Milanesi
Realce
Pedro Milanesi
Sublinhado
Pedro Milanesi
Realce
do depoente sejam transformadas em linguagem
psicológica e,
4. finalmente, o pesquisador sintetiza todas as unidades
de significado transformadas, ou seja, integra
todas as unidades em uma descrição consistente,
referente à experiência do depoente; todas as
unidades transformadas devem estar, pelo menos
implicitamente, contidas na descrição. Giorgi se
refere à síntese assim conseguida como estrutura
situada do fenômeno que está sendo investigado,
a qual pode ser expressa em um nível mais
específico, ou mais geral (Almeida, 1992, p. 30-31).
Para o referido pesquisador, o trabalho termina
neste ponto, pois chega-se à descrição dos significados
que emergiram dos relatos.
Embora tenha sido considerado satisfatório
o procedimento empregado, principalmente por
permitir a organização gradativa do vasto material
recolhido, ficar no nível descritivo apenas não satisfez
a pesquisadora. Parecia-lhe que o quadro estava, ainda,
incompleto. Fazia falta o movimento que mostrasse,
com maior colorido, o processo que se desencadeara
durante o Projeto Noturno como um todo. Percebia
se que algumas falas se sobressaíam e pensou-se que,
se elas aparecessem com destaque, em algum lugar,
evidenciariam, com maior vigor, as relações entre as
pessoas e os grupos que foram a origem do estudo. Foi
então elaborado um novo capítulo: "Algumas falas em
destaque".
O objetivo de estudo de Gomes Szymanski
(1987) era o estudo do significado de família e, como
perspectiva de análise, a fenomenológica. Em meados
da década de 80, não havia entre nós muitos modelos
70
de análise qualitativa de dados nesse enfoque. Houve
um empenho na busca de um procedimento rigoroso
de análise, que garantisse a validade dos dados e a
construção de um caminho que permitisse sempre a
recorrência ao dado empírico.
Giorgi (1985) oferecia um caminho
metodológico em que aquele rigor era contemplado,
e era uma das referências de que se dispunha, na
época, para a realização de pesquisa empírica de base
fenomenológica.
Nessa proposta, a descrição era o recurso
fundamental, constituindo-se o "processo de busca de
significado de um fenômeno, partindo da materialidade
do que se pretende descrever e caminhando no sentido
de um aprofundamento" (Gomes Szymanski, 1987,
p. 10) e compreensão.
Na pesquisa, procurou-se utilizar a descrição,
de forma que ela cumprisse essa função desveladora,
sistematizando-se os dados com clareza e precisão, a
partir do que foi visto nos encontros com as famílias.
Assim, num primeiro momento, tem-se o relato
da experiência, que depois é conceptualizado em
categorias descritivas que devem englobar os
elementos empíricos. Trata-se de uma redução em
termos descritivos mais abstratos: uma reescrita
depurada da factualidade imediata, mas sem perdê-la
de vista (idem, p. 11).
Começava, então, um trabalho de caracterização
dos elementos constitutivos de uma experiência
complexa, subdividido em categorias que expressassem
o cunho psicológico da investigação e o aspecto
tematizado (família).
71
·~------------- --
Pedro Milanesi
Realce
As categorias que emergiram das leituras e
releituras não foram colocadas a priori, elas apenas
denominaram aspectos comuns da experiência de viver
em família que emergiram no trabalho de análise e
refletiram o que se estudou e se apropriou sobre o tema.
O momento seguinte apresentava uma
reescrita, com base na compreensão desvelada pela
_Eat~~ggriz~_ç_ã~. A intenção era traduzir o texto original
para uma linguagem psicológica, apontando seus
elementos constitutivos e apresentando uma síntese
de cada categoria. Do ponto de vista de uma análise
descritiva, o trabalho poderia terminar aí.
Sentiu-se, entretanto, que faltava algo e
incluiu-se mais uma etapa no processo de análise, a
interpretação, definida como uma organização em
contextos de significação dos aspectos estruturais do
fenômeno pesquisado. No caso estudado, denominou
se "contextos de significação" o modo como eram
compreendidas as várias facetas da experiência de viver
em família, como a casa, os filhos, aio companheiralo,
a família extensa, a história, o próprio papel de mãe/
pai. Os contextos de significação, indo além da mera
descrição, apontavam para o entrelaçamento dos vários
elementos dela e de suas decorrências. Para cada
categoria foi feita uma síntese parcial e no final uma
síntese do conjunto dos dados.
Foi referido o trabalho de interpretação como a
"busca do oculto no aparente" (p. 16), baseando-se em
Ricoeur (1978). Foi nesse momento que se desvelou a
dicotomia entre o vivido e o pensado, que constituiu asíntese do trabalho de análise.
O estudo de Prandini (2000) teve como objetivo
estudar as concepções de professores de arte de uma
72
escola e de seus coordenadores sobre o ensino dessa
disciplina. Foram realizadas, durante um semestre
letivo, observações, principalmente em reuniões
pedagógicas - HTPCs e, no semestre seguinte, foram
realizadas entrevistas com os professores de arte e
coordenadores, fundamentadas no texto "Entrevista
reflexiva", de Szymanski (2002).
Ao pensar em realizar a análise das entrevistas,
houve um momento de desconforto gerado por
uma insatisfação que se acreditava, então, dever-se
ao fato de não encontrar entre os instrumentos
disponíveis algum que não fragmentasse o discurso do
entrevistado, mas que, ao contrário, permitisse realizar
a análise do material de que se dispunha a partir de
seu todo. Não se acreditava que a fragmentação em
categorias permitisse a emergência de significados
que se suspeitava existirem e que se julgava serem
importantes para a compreensão do fenômeno.
Giorgi (1985) ofereceu subsídios para o
entendimento de que o desconforto devia-se não
ao fato de fragmentar o discurso, mas de fazê-lo
sem permitir que do todo emergissem as partes
consideradas mais significativas, por expressarem as
impressões da pesquisadora sobre o fenômeno, pois
"já estava em andamento o processo de interpretação
das informações, a partir do conjunto da experiência
vivida na escola, orientada pelos meus pressupostos,
em frente ao marco teórico de referência" (Prandim,
2000, p. 76).
73
2.3 No tas para procedimentos de análise
de entrevistas
I A SUBJETIVIDADE NA ANÁLISE I
Análise é o processo que conduz àexplicitação
da compreensão do fenômeno pelo pesquisador. Sua
pessoa é o principal instrumento de trabalho, o centro
não apenas da análise de dados, mas também da
produção durante a entrevista.
O pesquisador, antes mesmo de iniciar o
procedimento de entrevista, tem algum conhecimento
e compreensão do problema, proveniente não apenas de
seus referentes teóricos, mas também de sua experiência
pessoal. Além disso, ele tem uma expectativa de
resultados, e é necessário explicitar essa pré-condição.
Considerar a subjetividade envolvida no processo de
coleta de dados significa cuidado com o rigor.
I A ENTREVISTA EM CONTEXTOS socws I
Ao selecionar a entrevista como seu
procedimento de produção de dados, o pesquisador
deve estar atento não só à fala de seu entrevistado, mas
também ao seu meio. Este inclui os diversos aspectos do
ambiente físico e social, e também as interações que o
entrevistado estabelece durante a situação de entrevista.
74
I EXEMPLIFICANDO I
Na pesquisa com o Projeto Noturno, chegando, ao
anoitecer, a um bairro da periferia da capital para
entrevistar professores, surpreendi-me com o grande
número de pessoas nas calçadas. Comentei o fato
na escola, com minha entrevistada, e ela esclareceu
que grande parte dos alunos morava em "casas de
cômodos", apertadas e sem quintais, o que levava os
moradores a permanecerem nas calçadas, onde havia
mais espaço. Isso ajudou-me a compreender o valor
que os alunos davam ao espaço escolar, nas suas falas
(Almeida, 1992).
I ANÁLISE COMO PROCESSO I
A compreensão do fenômeno vai se modificando
no decorrer do processo de pesquisa e é paulatinamente
aprofundada durante o trabalho de análise.
A análise de dados implica a compreensão da
maneira como o fenômeno se insere no contexto do qual
faz parte. Este inclui interrupções, clima emocional,
imprevistos e a introdução de novos elementos. Nas
pesquisas citadas, ocorreram imprevistos que foram
incluídos e considerados como dados de pesquisa.
I EXEMPLIFICANDO I
Na pesquisa sobre significado de família, no decorrer
de uma das visitas domiciliares, realizadas num
barraco feito de madeira, no meio de uma fala em que
a entrevistada discorria sobre a questão do ciúme entre
ela e o marido, ouve-se uma voz, falando do barraco
vizinho: "Pois eu tenho ciúme até de mim mesma
quando estou perto". Foi quando percebi que a tábua
de madeira que separava as duas casas deixava passar
tudo o que se falava dentro delas. Desse momento
em diante passamos a ter mais uma participante da
conversa, incluída pela própria moradora que eu
entrevistava, tomando sua participação como algo
natural (Szymanski, 1998).
Na pesquisa sobre o Projeto Noturno, ao entrevistar uma
diretora de escola, na sua sala, fomos interrompidas
75
várias vezes pela secretária, que lhe trazia papéis
para assinar. A cada momento que isso acontecia, a
diretora pedia a confirmação para fatos que estava
contando, e a secretária "entrava na conversa" fazendo
esclarecimentos e contribuindo para a compreensão
dos dados (Almeida, 1992).
Na pesquisa com professores de arte, uma professora
relutante em marcar a entrevista, por acaso, presenciou
o final de uma realizada com outro professor, e
dispôs-se a dar a sua naquele momento. Ao final do
encontro, que se desenrolara sob um certo clima de
tensão, o gravador foi desligado. Então, ela recomeçou
a falar e, desta vez, a relatar coisas extremamente
interessantes em vista de meus objetivos. Solicitei
lhe que marcássemos nova entrevista, na qual
ela desenvolvesse os temas que mencionara. Ela
concordou, e a entrevista seguinte foi realizada num
clima mais descontraído (Prandini, 2000).
Como se pode observar, a entrevista em contextos
sociais está sujeita a várias intercorrências, não é
asséptica, não está sob controle total do entrevistador.
É importante manter o foco nos objetivos de seu
trabalho, para aproveitar os imprevistos, sem deixar
que elas o tirem do eixo de seu problema de pesquisa.
I REGISTRO CONTÍNUO I
V árias percepções, impressões e sentimentos
perpassam o pesquisador durante a entrevista. Devem
ser anotados assim que possível, quer imediatamente,
quer ao final da entrevista, para que não se percam e
possam ser incorporados pelo pesquisador.
76
T
I EXEMPLIFICANDO I
Na pesquisa sobre o Projeto Notur~o, dura~te ?
período no qual realizei minhas entrevistas, habttuet
me a andar com fichas na bolsa, e quando me lembrava
de algum fato ou sentimento que ocorrera no am~ient~
de entrevista eu o registrava rapidamente. Enrtquect
assim meu "banco de ideias~' (Almeida, 1992).
I TRANSCRIÇÃO I
A transcrição é a primeira versão escrita do
texto da fala do entrevistado que deve ser registrada,
tanto quanto possível, tal como ela se deu. A~ escrever,
faz-se um esforço no sentido de passar a lmguagem
oral para a escrita, ou seja, há um esforço d~ tradução
de um código para outro, diferentes entre s1.
I TEXTO DE REFERÊNCIA I
Numa segunda versão, deve ser feita uma
limpeza dos vícios de linguagem e do_ texto grafado,
segundo as normas ortográficas e de sm~ax~ ( qua~do
não se tratar de um estudo cujo foco pnnc1pal seJa a
construção da linguagem), mas sem substituição de
termos. Esse texto passa a ser o principal referente
para o pesquisador, daí para diante.
I TRANSCREVER/REVER/ ANALISAR I
O processo de transcrição de entrevista é
também um momento de análise, quando realizado pelo
próprio pesquisador. Ao transcrever, revive-se a cena
da entrevista, e aspectos da interação são relembrados.
Cada reencontro com a fala do entrevistado é um novo
momento de reviver e refletir. O texto de referência
77
pode incluir as impressões, percepções e sentimentos
do pesquisador durante a entrevista e a transcrição.
I EXEMPLIFICANDO I
Na pesquisa com os professores de arte, ao transcrever
a pesquisa feita com um dos professores, entendi
o sentimento de desilusão dele, ao vislumbrar meu
próprio futuro como professora, na perspectiva
dele. Fui invadida por um sentimento de tristeza que
favoreceu minha compreensão do sentido da desilusão
para esse professor (Prandini, 2000).
Como se pode observar no exemplo acima, foi durante
a transcrição que ocorreu a compreensão de um aspecto
presente na experiência docente: o sentimentode
desilusão que pode se desenvolver ao longo da carreira.
I CATEGORIZAÇÃO I
Na relação com o texto de referência, emergem
novas articulações conceituais. Leituras e releituras
do texto completo das entrevistas, com anotações às
margens, permitem ao longo do tempo a elaboração
de sínteses provisórias, de pequenos insights, e a
visualização das falas dos participantes, referindo-se
aos mesmos assuntos. Estes, nomeados pelo aspecto do
fenômeno a que se referem, constituem uma categoria.
A categorização concretiza a imersão do
pesquisador nos dados e a sua forma particular de
agrupá-los segundo a sua compreensão. Podemos
chamar este momento de "explicitação de significados".
Diferentes pesquisadores podem construir
diferentes categorias a partir do mesmo conjunto de
dados, pois essa construção depende da experiência
pessoal, das teorias do seu conhecimento e das suas
crenças e valores.
78
. -" -- - -- --
-------~---------.---~·~ -----~-· ~----
I EXEMPLIFICANDO I
Na pesquisa com professores de arte (Prandini,
2000), feita a transcrição de todas as entrevistas,
passou-se à leitura, cada uma com o objetivo de
encontrar a concepção de ensino de arte de cada um
dos entrevistados. As falas sobre o assunto, na maioria
dos casos, apresentavam-se diluídas ao longo de cada
depoimento. O agrupamento delas constituiu uma
categoria: concepção de Ensino de Arte.
Durante o trabalho de análise, ao passar de
um para outro depoimento, percebeu-se que, além da
concepção de arte, objeto de estudo da pesquisa, outros
assuntos foram recorrentes, tanto na fala dos professores
como na dos coordenadores. Resolveu-se, então, a
partir de seu agrupamento por assunto, construir-se
novas categorias, pois estas se mostraram relevantes
para a compreensão do fenômeno. Essas categorias
foram nomeadas de acordo com o assunto a que diziam
respeito; assim, além da categoria Concepção de Arte,
foram criadas as categorias Sala Ambiente, Relação
com o Sistema Educacional, Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN), Integração/Trabalho Integrado e
Interesse/Desinteresse dos alunos.
Durante as releituras do texto de referência,
o assunto que em primeiro lugar "saltou aos olhos"
da pesquisadora foi o que se tomou posteriormente a
categoria Sala Ambiente.
No exemplo a seguir, foram selecionados trechos
das entrevistas de uma professora e de um professor, do
coordenador e da coordenadora, referentes a essa categoria.
A partir das falas, chamadas aqui de depoimentos,
foi explicitada em forma de itens a compreensão da
pesquisadora sobre elas, considerada como explicitação
dos significados.
79
Depoimento
- A gente não tem uma sala ambiente. Se eu quiser dar
modelagem ou escultura, não pode, porque não pode
usar a sala do jeito que a gente quer, porque a noite é
utilizada por outro professor. Então, nós precisamos
acabar com esta farsa de que existe sala ambiente,
porque na realidade não existe. A gente passa só
aqueles conteúdos que os alunos, bem ou mal, podem
fazer dentro da sala de aula. Se a gente for fazer com
que eles se expressem cantando, vai atrapalhar a aula
vizinha, e os professores começam a reclamar. Ensinar
a se expressar muitas vezes vai fazer barulho, que,
de acordo com determinadas concepções de direção
ou de coordenação, é só fazer barulho. Mas como a
gente pode desenvolver estas atividades sem barulho?
O espaço é pequeno. Não tem sala (Augusto).
- A pior dificuldade eu acho que é esta mesmo: a escola
abrir mais espaço. Você ter sala ambiente. Você ser
livre para trabalhar. Não ter esta coisa: -Ai, barulho!
Vai dar teatro? Não tem espaço. Está fazendo barulho!
Tinta está sujando o chão! Ter esta liberdade ... É muito
complicado trabalhar assim. Se você tem uma sala
ambiente e os materiais que você precisa ... Material
você ainda encontra, O que não tem é espaço fisico
para trabalhar. Houve uma vez, uma outra escola
onde eu não peguei as aulas, não porque não tivesse,
mas porque a própria diretora falou: "Eu quero uma
professora que fique na sala. Você fica muito fora da
sala, tem que ficar aí com caderno, dar desenho, Não
dá para ficar tirando aluno da sala de aula" (Angela).
-Antigamente nós tínhamos infraestrutura, que falta
hoje nas escolas. Uma sala ambiente de educação
artística tem que ter todo um aparato. Você quer que
o aluno trabalhe com barro, ele tem que enfiar a mão
num tanque de barro. Falta este tipo de coisa. O que as
escolas utilizam na prática: guache, tesoura, cruiolina,
papel em geral, e acabou. As escolas superlotadas não
têm sala para isso, e transformar sala de aula em uma
sala ambiente de Educação Artística não vai resolver
(Coordenador).
-Só o que nós não podemos fazer é a música devido à
acústica. Então a música teria que ser feita no salão de
vídeo. Um ensaio na sala já prejudica as demais salas,
quando o barulho aumenta. Essas coisas não dão ainda
para encaixar na Educação Artística devido à acústica.
Se eles quiserem no pátio ou no salão de vídeo, podem
fazer (Coordenadora).
80
Explicitação dos
significados
• A sala ambiente é uma
farsa. Não se pode usar
do jeito que quiser, só
para conteúdos que
permitem trabalhar
dentro da sala de aula.
• Não dispomos de
espaço para trabalhar
devido à concepção da
coordenação e da direção,
que não compreendem o
movimento e o rui do das
atividades julgando-os
falta de disciplina.
• As dificuldades de
conseguir espaço na
escola para trabalhar.
• Não dá para dar aulas
que façam barulho.
Só se o professor quiser
outro lugar.
• Antigamente a
escola tinha infra
estrutura adequada,
sala ambiente. Hoje
a limitação de espaço
impõe limitações às
atividades.
• Não temos espaço para
trabalhar. Trabalhar
fora da sala de aula
incomoda.
Ao final do trabalho, realizada a análise de
cada entrevista em separado, cada fala em relação ao
todo de cada entrevista, e confrontando os significados
atribuídos ao assunto "sala ambiente", a interpretação
foi de que o assunto define o território de luta dos
professores de arte por espaço, frente ao sistema
educacional, constituindo-se, desta forma, uma
categoria essencial para a compreensão do espaço para
o ensino de arte na escola.
A compreensão sobre o espaço (ou melhor,
sobre a falta dele) para o ensino de arte na escola
possibilitou uma nova visão sobre a forma como os
professores concebem-no e qual o papel do professor
de arte na escola.
Arte é vista como uma disciplina sem conteúdos
próprios, e por isso dispõe de espaço para incluir aquilo
que se diz ser importante para o aluno, e que a escola
deve fazer, mas que ninguém, por ter muito conteúdo
a ensinar, tem tempo para fazer, como trabalhar temas
transversais e organizar as festividades, O professor
de arte assim é visto como um "faz de tudo", por
não ter nada especificamente seu para fazer, pois o
objetivo do ensino de arte (concepção de professores
e coordenadores) é proporcionar condições para a
expressão da afetividade e, para tanto, aceita qualquer
conteúdo.
*
Na pesquisa sobre o Projeto Noturno (Almeida,
1992), a partir dos depoimentos de seis diretores,
seis coordenadores, 26 professores e 63 alunos
(entrevistas coletivas com 11 grupos), foram elaboradas
81
I
as categorias. No exemplo, seguem trechos de
depoimentos de duas coordenadoras, uma diretora,
e uma professora, que ilustram a construção de uma
categoria, que foi chamada de "constituição do grupo".
Depoimentos
Explicitação de
significados
- É dificil enumerar um ou outro problema. Mas, • valorização das
sempre que os problemas iam surgindo, nunca tomei reuniões para discutir os
uma atitude, uma resolução da minha cabeça. Fazia problemas;
questão de reunir os professores e discutir. Sempre,
• os problemas eram
nenhuma coisa de última hora, era com a discussão
do conjunto de professores. E, sempre que foi
discutidos em conjunto;
necessário, a direção ajudou, às vezes a supervisão, • havia ajuda da direçãosempre estiveram atentos. Mas no dia a dia era o corpo e da supervisão quando
docente (Maria, coordenadora). necessário;
• as questões de rotina
eram resolvidas pelos
professores.
-No segundo ano, a direção testemunhou que aqueles • Mudança de atitude dos
professores que no início apresentavam postura bem professores em relação
resistente contra o Projeto, contra qualquer ideia ao trabalho em conjunto.
pensada em conjunto, esses professores faziam • Os professores passaram
perguntas: "O que vamos fazer?" "Como vamos
solucionar isso?" Usando o nós. Então, isso é a
a usar o "nós", que não
prova do "Vamos pensar juntos", que não havia antes
havia antes.
(Dalva, diretora).
- Tivemos conquistas em vários níveis. Primeiro, • A integração entre os
foi a integração entre os próprios professores. Essa professores levou 2 anos
integração foi construída, levou dois anos para se para ser construída.
conseguir ... Essa integração se deu principalmente
• A integração se deu
pela comunhão de ideal, Nós tínhamos uma causa
- era como se fosse uma causa política, um ideal
porque havia um ideal
político a ser conquistado. Era um ponto de união
comum a todos.
maior - nós tínhamos um trabalho a ser feito em • O grupo tinha um
conjunto (Carla, coordenadora). trabalho a ser feito por
todos.
-Com os colegas, aprendi a ouvi-los mais. E com • Aprender a ouvir pemitiu
isso fui tentando uma troca de experiências. Passei a a troca de experiências.
aceitar mais a i dei a de cada um. A gente tinha reuniões
• Valorização das reuniões
semanais, oportunidade de falar e ouvir. Todos os
problemas que surgiram eram resolvidos em grupo
semanais: oportunidade
(Pedro, professor).
de ouvir e falar.
• Os problemas eram
resolvidos pelo gmpo.
82
í
l
I Relendo a coluna "explicitação dos significados",
foram reunidos os que se referiam a um assunto
comum, resultando daí a categoria "constituição do
grupo" na qual foram integradas as falas:
os professores passaram a usar o "nós";
a integração entre os professores levou dois
anos para ser conseguida;
a integração se deu porque havia um ideal
comum a todos;
o grupo tinha um trabalho a realizar;
aprender a ouvir permitiu a troca das
experiências;
todos os problemas eram discutidos por
todos;
os problemas eram resolvidos pelo grupo.
Segundo a metodologia de Giorgi, as categorias
foram utilizadas para elaborar as descrições e, para
sua proposta, o processo se completaria aí. Mas, para
a pesquisadora, essa metodologia não foi suficiente
para explicitar a compreensão que eu tinha construído
do fenômeno a partir da análise dos dados.
Resolveu-se acrescentar um novo capítulo à
tese, discutindo o movimento das pessoas durante o
percurso no Projeto Noturno. Para tanto, as categorias
foram agrupadas em grandes temas. Esses temas
representaram o fio condutor que perpassava várias
categorias. As categorias decorrentes dos trechos de
depoimentos que aqui serviram de exemplo foram
agrupadas ao tema: "De professores solitários a
professores solidários", e nele foram discutidas as
seguintes questões, que envolviam as categorias
83
levantadas nos exemplos, e outras que apareceram nas
demais entrevistas:
- a dificuldade de constituir um grupo na escola
pública;
- a coesão de um grupo não se consegue num
passe de mágica;
a aprendizagem de ouvir e ser ouvido;
a valorização da coesão do grupo;
a coesão do grupo levou à mudança de
postura;
- os alunos perceberam a diferença dessa
mudança;
- o papel das reuniões na elaboração da
proposta coletiva.
O conjunto de todas as entrevistas permitiu
ainda a discussão de cinco outros temas:
- a mudança no locus de poder;
- uma nova maneira de ver o aluno do noturno·
- é possível, sim, uma escola risonha e franca~
' - construir uma identidade de sucesso para o
aluno, o professor, o diretor, a escola noturna;
o difícil equilíbrio entre a autonomia e
centralização.
Resumindo, o movimento de análise foi: a partir
da explicitação dos significados, elaborar as categorias.
Estas foram agrupadas aos temas referidos. Para
discutir os temas, voltou-se às categorias e, na redação
final, foram utilizados trechos dos depoimentos para
dar suporte às interpretações.
84
- ·----~-..-------
~----~-
A consideração dos temas apontou para a sua
relação com o contexto educacional mais amplo e tomou
possível uma discussão sobre a escola pública, pois,
quando nos aprofundamos, a compreensão do fenômeno
estabelece a conexão dele com os contextos maiores.
*
Na pesquisa sobre Significado de Família
(Gomes, Szymanski, 1987), o procedimento de
coleta de dados consistiu em entrevistas coletivas
com todo o grupo familiar, e o texto de referência
não resultou de transcrição de depoimentos, mas de
relatos de observações realizados a partir de visitas
domiciliares às famílias. O texto incluiu as falas dos
participantes, descrições do ambiente e de atividades
que se realizavam ao longo da visita e era redigido
imediatamente depois desta, com a ajuda das anotações
feitas no decorrer da entrevista e em conjunto com
outro pesquisador. Esse primeiro relato foi denominado
Descrição ingênua - Descrição I.
Uma vez obtida essa primeira descrição, teve
início o trabalho de reflexão, aquilo que Giorgi (1985,
p. 3) chama de trabalho "intradescritivo", a partir de
leituras e releituras do texto de referência. Seguiu-se
um procedimento de caracterização dos elementos
constitutivos do fenômeno estudado, que consistiu
numa reescrita da Descrição I, com o cuidado de não
se acrescentar nada ao relato, no sentido interpretativo.
Foi chamado de Descrição II o segundo texto,
elaborado a partir da seleção dos itens emergentes da
Descrição I, referidos como unidades de significados,
aglutinadas sob uma mesma referência.
85
! .
Nos exemplos anteriores, os itens emergentes
das releituras das entrevistas foram chamados de
"explicitação de significados". Nesse estudo, foram
denominadas "unidades de significado". Aqui, o
processo de categorização apresenta semelhanças com
os anteriores, mas também traz algumas diferenças:
Relatos/Depoimentos Unidades de Significado Categoria
Descrição I Descrição II
"Se eu pudesse trabalhar meu dinheiro, • Imposição de regras por
dava para meu cigarro, minha mistura. parte do marido (9) (10).
Dava para comprar roupa, o que o A. T.
- Ser ele o único provedor gan.ba não dá para a roupa."
da família(8).
Conta que passou em um teste para
- Ser ela a responsável pelo trabalhar em um salão que atende
negros, na cidade, mas o marido não cuidado das crianças (lO).
deixou.9 Pergunto a razão e diz que ele - Mantê-la afastada tanto
quer que ela tique com as crianças.! O de homens (por ciúmes)
"Mas ele não se mexe para fazer como de mulheres (para
nada".3 evitar "fofoca" (19 e 19).
Diz que o marido prometera um jogo • Marido estabelece Relação
de mesa e cadeiras, mas que era muito proibições (15) (19) (19), Marido/
mentiroso.4 "Ele é ignorante. Perto impedindo-a de trabalhar Mulher
dos outros é uma coisa, mas comigo ou exercer qualquer
é ignorante" .5 atividade remunerada (15).
Pergunto se, em casa, ele não a deixaria - Proibindo-a de abrir um
trabalhar, uma vez que ficaria com as salão ( 19) ( 19k).
crianças. Responde minha pergunta • Critica marido: (13) (14)
dizendo que o marido argumenta que se (15).
"começar a ter muita mulherada junta,
- Quanto a sua falta de começa muita fofoca9 e, depois, se
iniciativa (19). eu abrir um salão, ia aparecer homem
para fazer unha. Aí ele ia começar com - Quanto a ser mentiroso
gracinha ... o tal do ciúme".9 (14).
Diz que às vezes faz penteados, que - Quanto à sua
sabe fazê-los muito bem: "Ontem "ignorância" (modo ..
mesmo fiz três penteados e, com o desrespeitoso de tratá-la)
dinheiro, fui à feira".7 (15).
• Mulher burla regras (7):
" Ontem mesmo fiz três
penteados e, com o
dinheiro, fui à feira" (7).
Obs.: Os números das chamadas naDescrição I remetem para as unidades de significado
da Descrição !I, de acordo com o texto original (Gomes Szymanski, 1987).
86
Esse exemplo refere-se ao trecho de uma
entrevista, mas a categoria "Relação Marido/Mulher"
emergiu do agrupamento de todas as referências a
esse tema, que apareceram em todas as entrevistas e
observações.
Esse agrupamento de falas e observações por
temas foi feito sucessivamente: primeiro, de cada
entrevista da família, uma a uma; depois, de todas as
entrevistas da mesma família e, finalmente, de todas
as entrevistas da pesquisa.
A intenção foi traduzir o texto original para
uma linguagem psicológica, apontando seus elementos
constitutivos e apresentando uma síntese de cada
categoria. Do ponto de vista de uma análise descritiva,
o trabalho poderia terminar aí, porém, foi incluída
mais uma etapa no processo de análise, chamada de
"interpretação". Foi a "busca do oculto no aparente"
baseada em Ricoeur (1978). Foi, nesse momento, que
se desvelou a dicotomia entre o vivido e o pensado,
que constituiu a síntese do trabalho de análise.
Ao socializarmos nossos questionamentos e
nossa proposta de análise, lembramos que não tivemos
a pretensão de definir um caminho rígido, mas sim de
oferecer orientações quepps~am facilitar o trabalho do
pesquisador iniciante, contemplando sua criatividade
e originalidade. Nosso trabalho de pesquisadores nos
tem mostrado a veracidade das palavras de Guimarães
Rosa: "O real não está na saída nem na chegada, ele se
dispõe para a gente é no meio da travessia".
87
ALMEIDA, L. R. O projeto noturno: incursões no vivido
por educadores e alunos de escolas públicas paulistas
que tentaram um jeito novo de caminhar. São Paulo,
1992. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Tradução de L. A. Antero
e A. Pinheiro. Lisboa: Edições 70, 1995.
BLEICHER, J. Hermenêutica contemporânea. Tradução de
M. G. Segurado. Lisboa: Edições 70, 1992.
BRUNER, J. Atos de significação. Porto Alegre: Artes
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GIORGI, A. et al. Phenomenology and psychological
research. Pitsburg: University Press, 1985.
GOMES SZYMANSKI, H. Um estudo sobre significado
de Jamil ia. São Paulo, 1987. Tese (Doutorado) -
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MARTINS, J.; BICUDO, M. A. V. A pesquisa
qualitativa em psicologia. São Paulo: Educ, 1989.
MINAYO, M. C. 5. O desafio do conhecimento: pesquisa
qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec-Abrasco,
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PRANDINI, R. C. A. Ensino de arte na escola: para quê?
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REY, F. G. La investigación cualitativa en psicologia:
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RICOEUR, P. O conflito das interpretações. Traduzido por
M. Japiassu. Rio de Janeiro: Imago, 1978.
88
I
!
l
\
l
\
t
t
CAPÍTULO 3
A DIMENSÃO AFETIVA NA SITUAÇÃO
DE ENTREVISTA DE PESQUISA
EM EDUCAÇÃO
Laurinda Ramalho de Almeida
Heloisa Szymanski
A situação de entrevista é um momento de
encontro entre duas pessoas, com diferentes histórias,
experiências, expectativas e com diferentes disposições
afetivas. Se, por um lado, para quem pesquisa, a
intenção clara é a de colher informações para sua
investigação, para quem é entrevistado, as intenções
subjacentes à sua participação podem variar e serem
ou não explicitadas.
Afetar e ser afetado é condição inerente às
interações humanas, e a situação de entrevista não
escapa dessa condição. Apresentaremos um depoimento, ·
à guisa de exemplo, de um jovem pesquisador,
professor em exercício, que valoriza sobremaneira o ser
professor. Utilizou-se da entrevista reflexiva para obter
infmmações para seu estudo e, depois de entrevistar
oito professores, assim se expressou:
-Procurava sempre deixar os entrevistados à vontade.
Dava uma questão desencadeadora. Fazia poucos
comentários, para puxar de volta ou para entender
89
. ---- -,
melhor. Deu certo, menos com uma. Uma ficou
presa, travada. Tinha concordado em dar a entrevista
estava à minha espera. Mas quando começou .. :
Olhava para mim, não sei se com medo ou ... Falava
e olhava, pedindo aprovação, parecendo querer saber
se o que falava era certo ou errado. Tentei destravar.
Não deu. Se fechou em concha. Comecei igual com
todos. Permitia que cada um conduzisse a fala para o
lado que mais o tocasse. [Com] essa não deu. Então
comecei a me perder, não via a hora de acabar. Percebi
que ela não se sentia bem e passei a me sentir muito
mal. Quando fui ouvir a entrevista, me perguntei:
"Como pude me conduzir assim, o que ela precisava
esconder de mim? Então por que concordou com a
entrevista?". Essa entrevista me deixou muito mal.
Com as outras sete, senti satisfação ao terminar as
entrevistas: "Consegui dados! Ouvi muito mais do que
esperava! Nossa! Que bom!" Com um [participante]
em particular, senti empolgação. Vibrei! Pensava
enquanto o ouvia falar: "Não acredito! É isso que eu
precisava e queria ouvir!" Os olhos dele brilhavam, e
o brilho dos olhos dele passou para os meus, quando o
participante- "um peão de indústria", falou do orgulho
que sentira na primeira vez em que foi chamado
de professor quando ouviu: "Entra aí professor" e
se sentiu valorizado, importante como nunca tinha se
sentido antes.
Escolhemos esse depoimento, pois ele retrata
bem o tom emocional que a entrevista provoca, tanto
para o entrevistador corno para os entrevistados.
Embora o entrevistador tenha usado suas estratégias
para deixar o outro à vontade: Procurava sempre
deixar os entrevistados à vontade ... Fazia poucos
comentários, para puxar de volta ou para entender
melhor, isto não aconteceu igualmente com todos:
Deu certo, menos com uma. Uma .ficou presa, travada.
90
Ele supôs que a concordância em fazer a entrevista
refletia urna intenção de colaborar e urna disposição
comunicativa, o que poderia ser verdadeiro antes da
realização da entrevista: Então por que concordou
com a entrevista? ... Tinha concordado em dar
a entrevista, estava à minha espera ... Podemos
imaginar várias possibilidades, corno, ao se ver na
situação de entrevista, frente a alguém desconhecido,
possivelmente com conhecimentos e com autoridade
para avaliar suas proposições, a entrevistada percebeu
se numa situação de desigualdade e deixou de colaborar:
Se fechou em concha. Essa foi, aliás, urna das hipóteses
do entrevistador, que definiu o estado emocional da
professora como o de procura de aceitação: Falava e
olhava, pedindo aprovação, parecendo querer saber
se o que falava era certo ou errado. Segundo essa
interpretação, a situação torna-se avaliativa.
Para o pesquisador, havia a suposição de
que um tratamento igual traria as mesmas reações
de disponibilidade para colaborar com a pesquisa e
espontaneidade para trazer as experiências: Comecei
igual com todos. Permitia que cada um conduzisse a
fala para o lado que mais o tocasse. Essa suposição
está associada a uma concepção de pesquisa na qual
a padronização ocupa lugar de destaque. Na situação
de trocas interpessoais, entretanto, essa padronização
é impossível, dada a singularidade dos participantes.
Trocas interpessoais são embates intersubjetivos, e a
situação de entrevista não foge dessa condição: [Com]
essa não deu.
Nessas trocas, a emoção circula, e o entrevistador
relata que o fechar-se em concha levou-o a perder-se:
Então comecei a me perder, não via a hora de acabar.
Percebi que ela não se sentia bem e passei a me
91
sentir muito mal. Esse mal-estar se repetiu quando
o entrevistador ouviu a entrevista gravada e avaliou
seu desempenho: Como pude me conduzir assim?
E continua sua perplexidade diante da reação da
entrevistada. Levanta uma nova hipótese: O que
ela precisava esconder de mim? Nesse momento,
o entrevistador se depara com a complexidade da
entrevista e do quanto a entrevista está atravessada
pela dimensão afetiva: as pessoas podemter medo,
podem querer aprovação, podem estar inseguras e,
até mesmo, querer esconder coisas do entrevistador.
Este, igualmente, é afetado pelos sentimentos do outro,
interpretados por ele conforme sua própria história de
vida, expectativas, valores e situações momentâneas.
Suas interpretações se refletirão no seu estado
emocional: Essa entrevista me deixou muito mal.
Comparando essa entrevista com as demais, o
pesquisador expressa sua satisfação por ter atingido
seu objetivo: Consegui dados! Ouvi muito mais do
que esperava! Nossa! Que bom! O êxito da entrevista
- obter dados -provocou um estado de ânimo de
satisfação, por ter atingido seus objetivos; portanto,
ter tido um desempenho adequado como entrevistador.
Ele não reconheceu o mal-estar da professora como
fazendo parte dos dados de sua pesquisa. Talvez
mudasse sua disposição diante da entrevista que lhe
causou mal-estar se, no momento, a reconhecesse como
tão informativa quanto as outras. Como todos nós
partilhamos da mesma condição humana, é inevitável
ser afetado pelo outro e construir interpretações sobre
o outro, sobre si mesmo e sobre o ocorrido.
Em contrapartida, a outra entrevista destacada
revela um estado de euforia no pesquisador: Com
um [participante] em particular, senti empolgação.
92
Vibrei! Pensava enquanto o ouvia falar: Não acredito!
É isso que eu precisava e queria ouvir! Os olhos dele
brilhavam, e o brilho dos olhos dele passou para os
meus, quando o participante- "um peão de indústria",
falou do orgulho que sentira na primeira vez em que
foi chamado de professor quando ouviu: "Entra aí,
professor" e se sentiu valorizado, importante, como
nunca tinha se sentido antes. Esse trecho expõe a
intensidade das emoções que perpassam a situação
de entrevista, de parte a parte - aqui, focalizamos o
entrevistador. Podemos supor que o mesmo ocorra com
o entrevistado, que poderá expressá-las ou não, mas
que certamente existem.
No caso do entrevistador, também professor,
o depoimento veio ao encontro de expectativas em
relação às exigências de uma pesquisa acadêmica:
Consegui dados, mas também de sentimentos e valores
em relação à profissão de professor: É isso que eu
precisava e queria ouvir!.
A continuidade de seu depoimento revela
novamente o quanto as emoções circulam na situação
de entrevista, de forma contagiosa e, nesse caso,
agradável, diferentemente do outro momento em que
o contágio foi no modo do mal-estar: Os olhos dele
brilhavam, e o brilho dos olhos dele passou para
os meus.
Comparando-se o fechar-se em concha com
o brilho dos olhos, o primeiro reflete uma reação
interpretada pelo entrevistador como de fechamento do
entrevistado, o que acarretou um retraimento por parte
do pesquisador. O brilho dos olhos foi visto como uma
atitude de abertura para o entrevistador, o que o levou
a afirmar: Era tudo o que eu precisava e queria ouvir.
A primeira situação provocou questionamentos do
93
pesquisador sobre sua atuação, e a segunda não trouxe
comentários ao seu depoimento. No primeiro caso,
indagou-se: O que ela precisava esconder de mim?, o
que é uma boa pergunta, que leva a um aperfeiçoamento
como pesquisador. O prazer experimentado na segunda
situação trouxe partilha do sentimento do outro, e
a informação recebida foi considerada "um dado",
ao contrário do que ocorreu na primeira: com essa
não deu.
Um outro depoimento ilustra como o impacto
da fala dos entrevistados, conforme interpretado pela
entrevistadora, pode provocar até mesmo mudança
no rumo da pesquisa. Nesse caso, a investigação tinha
como objetivo estudar a indisciplina em classes de
sa. série do ensino fundamental. Ao contatar professoras
de Português e Matemática, faz o seguinte comentário:
O problema [de indisciplina] é delas, não é meu.
Movimento não me atrapalha. Sou professora de
educação fisica. Em vista disso, esse problema deixou de
fazer sentido para ela e outras questões se puseram como
mais relevantes. Não houve, por parte da pesquisadora,
um envolvimento emocional que a mobilizasse a entrar
na perspectiva das outras professoras, pois eventuais
sentimentos expressos pelas professoras de sa série em
relação à indisciplina dos alunos não a tocaram. Diante
disso, desinteressou-se pela questão proposta por ela
mesma, antes de iniciar a investigação.
Esses depoimentos nos levaram a propor
considerações sobre alguns cuidados que podem
ser tomados por pesquisadores iniciantes. De quais
cuidados estamos falando? Estes se referem ao foco
da pesquisa, aos sentimentos, preconceitos, valores
e expectativas, que podem ser fontes de vieses, ao
contexto e clima da entrevista.
94
-r
3.1 Priorizar o foco da pesquisa
A entrevista é um instrumento utilizado para
atingir os objetivos da pesquisa. Se estes pedem uma
entrevista semiestruturada, não se pode perder de
vista o foco do estudo e o tipo de informação de que
se necessita. O momento da pesquisa e a situação
de escuta atenta podem levar o entrevistado a fazer .
digressões e a mudar de assunto, importantes para ele,
mas que se afastam dos objetivos da pesquisa. No caso
de uma entrevista aberta, essa questão não se coloca e é
até desejável que ocorram digressões. Isso não significa
desconsiderar as informações que vieram pelos
diferentes caminhos tomados pelo entrevistado. No
momento da análise, esses dados podem enriquecer a
pesquisa e aprofundar a compreensão do problema. Não
se deve, entretanto, esquecer a pergunta que a pesquisa
pretende responder. No momento da entrevista, é o
puxar de volta, como disse o entrevistador de nosso
exemplo, o que não é tarefa fácil em alguns casos.
Algumas vezes, entretanto, a situação de
entrevista enseja um momento de comunicação que
não acontece com frequência na vida do entrevistado,
que se sente muito gratificado por ter um ouvinte
atento e respeitoso. Pode ser o caso de pessoas que
necessitam circunstanciar os fatos que dão sentido à sua
resposta. A paciência e a compreensão do pesquisador
são fundamentais nesses casos. Vejamos o seguinte
exemplo: numa pesquisa sobre o ensino noturno, à
pergunta "Como é ser uma aluna do noturno?" obteve
se a seguinte resposta:
- Acordo às cinco da manhã; faço almoço para meu
marido, arrumo as duas crianças, deixo o pequeno na
creche, deixo a mais velha com a avó, para ir mais
95
tarde para a escola e vou para o trabalho ... [continua
a descrição detalhada de sua rotina diária]. .. Chego
na escola, sempre atrasada, mas a diretora dá uma
tolerância de 1 O minutos. Estou cansada, mas não
durmo, como outros colegas, porque quero aprender.
Contar sua rotina detalhadamente não foi
propriamente uma digressão, mas foi o caminho que
a entrevistada encontrou para situar o lugar do curso
noturno em sua vida, considerando seu corpo cansado,
as múltiplas solicitações de sua vida e sua relação com
o saber. O curso não está separado de sua vida, e ela
fez questão de pontuar o tamanho do seu investimento
pessoal no curso noturno e o orgulho de sua realização.
Seria inconcebível impedi-la de expressar seus
sentimentos, pois estes eram fundamentais para a
resposta à questão.
3.2 Estar atento aos próprios sentimentos,
preconceitos e valores
O pesquisador deve estar atento no que diz
respeito aos próprios sentimentos, preconceitos,
valores e expectativas, que podem ser fontes de vieses.
Isso pode ser feito se houver a preocupação de refletir
antes da entrevista sobre o que ele pensa e sente em
relação ao tema da pesquisa e aos participantes. Esse
exercício pode ser extremamente útil na descoberta
de ideias preconcebidas, das quais não se apercebeu.
O pesquisador pode ter ideias e sentimentos cristalizados
com os quais não teve muitos contatos. Por exemplo,
se ela ou ele forem da classe média, podem ter
ideias preconcebidas sobre os saberes, sentimentos
e expectativas de crianças e professores da periferia
96
pobre, e isso pode influenciar o curso da entrevista, nas
atitudes,no vocabulário ou nas intervenções. Por outro
lado, abrir-se para a experiência do outro se constitui
um momento de aprendizagem e de aprofundamento
da compreensão do próprio problema de pesquisa.
Considerações pessoais corno urna reserva
excessiva por parte do pesquisador ou timidez podem
se constituir em entraves que devem ser levados em
conta, pois podem criar urna barreira diante do outro.
e informações importantes deixam de ser dadas.
3.3 Considerar o contexto do entrevistado
O contexto diz respeito ao ambiente físico
e social da entrevista, e urna atenção especial deve
ser dada quanto à garantia de privacidade para
que o entrevistado se sinta à vontade para trazer
informações pessoais. Muitas vezes um ambiente
considerado restrito não o é, corno casas de madeira
muito próximas, salas de diretoria de escola, onde a
todo momento entram pessoas, o que pode resultar em
interrupções da entrevista ou intromissões no diálogo
entrevistador -entrevistado.
O pesquisador não pode ir para a entrevista
sem conhecimento mínimo do ambiente sociocultural
e institucional do entrevistado. O ambiente social
envolve relações interpessoais no local da entrevista,
decorrentes de hierarquias, exigências burocráticas,
situação funcional e momentânea da pessoa entrevistada.
Por exemplo, um funcionário que esteja suspeitando ser
demitido está em um estado emocional que interfere na
situação de entrevista. Não podemos nos esquecer que
o contexto envolve o próprio entrevistador, o que fica
97
evidente no caso da pesquisadora que, ao se deparar
com as atitudes das professoras sobre a indisciplina de
seus alunos, desistiu de falar com elas, pois discordava
de suas ideias.
Faz parte da consideração do contexto social a
linguagem que se utiliza para a comunicação durante
a entrevista, no sentido de se respeitar o vocabulário
dos entrevistados, com o sentido regional das palavras
utilizadas.
3.4 Estar atento ao clima da entrevista
Por clima entende-se a constituição de um
espaço o mais livre possível de ameaças, no qual o
entrevistado possa sentir-se acolhido e valorizado.
O entrevistador deve ter a sensibilidade para perceber
quando pode ou não insistir em uma pergunta ou
observação. Pode-se citar o exemplo de um entrevistado
que, ao ouvir a "expressão da compreensão" do
entrevistador, respondeu impaciente Mas não foi isso
mesmo que eu disse?, entendendo a observação como
uma interrupção do seu fluxo de pensamento, ou uma
avaliação sobre seu discurso. Para isso, precisa-se
captar a contribuição do entrevistado, acompanhando
seus argumentos e afetos, ser sensível aos seus entraves
e às próprias expressões de agrado ou desagrado
durante a entrevista.
O sentido desses cuidados é o de manter uma
relação respeitosa, não avaliativa e reflexiva entre
os interlocutores, que é diametralmente oposta à
experiência que muitos de nós tivemos ao longo de uma
educação autoritária, cujo centro estava em um detentor
do saber, sendo o outro uma figura passiva. Estar atento
ao contexto do entrevistado, ao clima da entrevista, aos
próprios sentimentos, preconceitos e valores possibilita
a participação de ambos os interlocutores e pode dar
um movimento formativo à entrevista.
Vejamos o seguinte depoimento:
- Engraçado. Nunca havia pensado nessa questão
em meu trabalho de coordenação. Mas, ao realizar
esta entrevista, lembrei-me de muitos momentos
significativos. A primeira vez que me dei conta, de
verdade, de como se deu meu processo de formação
como professora e coordenadora foi nesta entrevista.
A entrevista levou a entrevistada a uma revisão
de sua atuação profissional, a uma reflexão sobre sua
trajetória de vida, passando a ser também um processo
formativo.
Não se deve esquecer que o caráter formativo
da entrevista estende-se também ao pesquisador.
3.5 À guisa de conclusão
Essas reflexões procuraram ressaltar a dimensão
afetiva nos encontros entrevistador-entrevistado e,
como essa dimensão engloba também os valores, pode
se ressaltar o caráter ético que deve permear qualquer
pesquisa realizada com seres humanos e balizar as
decisões sobre o encaminhamento das intervenções
ao longo da entrevista. Assim, em caso de dúvida
sobre qual questionamento dirigir ao entrevistado, o
escolhido deverá ser o eticamente desejável, colocando
se no lugar do outro: "Se eu estivesse na situação do
entrevistado, quais seriam meus s·entimentos? Como
99
me sentiria mais confortável?" O lugar do conforto
para o outro, com certeza, encontrará reciprocidade no
entrevistador, como o demonstrou o jovem pesquisador
em nosso exemplo inicial.
100
SOBRE AS AUTORAS
Heloisa Szymanski- Professora do Programa
de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da
Educação, da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), e coordenadora do Grupo de Pesquisa
em Práticas Educativas e Atenção Psicoeducacional na
Escola, Comunidade e Família.
E-mail: pedpos@pucsp.br
Laurinda Ramalho de Almeida- Professora do
Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação:
Psicologia da Educação, da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), e líder do grupo de
pesquisa Bases da Psicologia para a Educação.
E-mail: pedpos@pucsp.br
Regina Célia Almeida Rego Prandini -
Professora da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP), e membro do grupo Bases da
Psicologia para a Educação.
E-mail: pedpos@pucsp.br
101
~-----"-------,-------~----~~ ----- --- ~---
---~---~~-
J
'~ Livro Verde
Pequenas atitudes, grandes mudanças.
Este livro que está em suas mãos é considerado um livro "verde".
Seu processo de produção foi pensado com base em medidas que apeiam e
sustentam a preservação do ambiente, com o mínimo de impacto possfvel.
Suas páginas foram impressas com tinta à base de soja, em matéria-prima
reciclável e de origem certificada. Todo resíduo foi controlado, e apenas o essencial
foi corretamente descartado, conforme as mais exigentes práticas ambientais.
Toda cadeia de fornecimento foi reavaliada e qualificada, desde o transportador
até o fornecedor de soluções em reciclagem,
o que garante uma produção limpa, segura e sustentável.
A Viena também já adotou, voluntariamente, materiais auxiliares que são obrigatórios
nas indústrias europeias, como, por exemplo, a redução no uso de álcool isopropílico,
composto volátil que causa grandes prejurzos à natureza e
é considerado perigoso no ambiente de trabalho.
\ Por isso a Viena se orgulha em dizer que vem plantando ações concretas para construir
'). um futuro melhor, trabalhando e fazendo sua parte para obter mais uma certificação- a ISO 14001,
que revela uma empresa 100% preocupada com sua responsabilidade junto à sociedade,
seus valores éticos e ambientais.
· viena j gráfica
Av. Dr. Pedro Camarinha, 31 T: (14) 3332.1155
Sta. Cruz do Rio Pardo-SP www.viena.ind.br
Empresa Associada
1
\
\
\de conflitos
e contradições", considerando os "critérios de
rep~esentatividade" da fala e a questão da interação
soc1al que está em jogo na interação pesquisador/
pesquisado (Minayo, 1996, p. 109). Para Rey (1999
p. 57 e 60), a investigação nas ciências humanas trat~
de um "sujeito interativo, motivado e intencional.
A investigação sobre esse sujeito não pode ignorar essas
características gerais.[ ... ] Os próprios instrumentos de
investigação adquirem um sentido interativo".
A? considerarmos o caráter de interação social
da entrev1sta, passamos a vê-la submetida às condições
comuns de toda interação face a face, na qual a natureza
das relações entre entrevistador/entrevistado influencia
tanto o seu curso como o tipo de informação que
apare.ce. Como experiência humana, dá-se no "espaço
relacwnal do conversar", que, segundo Maturana
(1993.' p. :/' é "o entrelaçamento do linguajar e do
~moc1?n~r . Es~e autor define o linguajar como um
coex1st1r em mterações recorrentes" durante as
quais os interlocutores coordenam su; conduta de
forma consensual. Esse processo recorrente reflexivo
não. ~ode acontecer separadamente das' emoções:
deflmdas por Maturana como domínio de ações,
classes de condutas. O linguajar poderá se modificar
no decorrer do processo relaciona!, em face das
mudanças no suporte emocional em que ocorre. No
conversar, portanto, temos um contínuo ajuste de ações
e emoções. Maturana (1993, p. 10) vai mais longe e
afirma que é a emoção que define a ação: "a existência
na linguagem faz com que qualquer atividade humana
11
tenha lugar numa rede particular de conversações, que
se define em sua particularidade pelo emocionar que
define as ações que nela se coordenam".
Esse autor foi lembrado para enfatizar o
caráter de entrelaçamento das emoções em todas
as atividades relacionais humanas. Não se poderia
esquecer dessa condição na situação de entrevista.
Nessa perspectiva, serão focalizadas algumas questões
como as condições psicossociais presentes numa
situação de interação face a face, a relação de poder
e desigualdade entre entrevistador e entrevistado, a
construção do significado na narrativa e a presença
de uma intencionalidade por parte tanto de quem é
entrevistado como de quem entrevista, no jogo de
emoções e sentimentos que permanecem como pano
de fundo durante todo o processo.
Partimos da constatação de que a entrevista face
a face é fundamentalmente uma situação de interação
humana, em que estão em jogo as percepções do
outro e de si, expectativas, sentimentos, preconceitos
e interpretações para os protagonistas: entrevistador
e entrevistado. Quem entrevista tem informações e
procura outras, assim como aquele que é entrevistado
também processa um conjunto de conhecimentos e
pré-conceitos sobre o entrevistador, organizando suas
respostas para aquela situação. A intencionalidade do
pesquisador vai além da mera busca de informações;
pretende criar uma situação de confiabilidade para que
o entrevistado se abra. Deseja instaurar credibilidade
e quer que o interlocutor colabore, trazendo dados·
relevantes para seu trabalho. A concordância do
entrevistado em colaborar na pesquisa já denota sua
intencionalidade - pelo menos a de ser ouvido e
12
considerado verdadeiro no que diz-, o que caracteriza
o caráter ativo de sua participação, levando-se em
conta que também ele desenvolve atitudes de modo a
influenciar o entrevistador.
Essas situações ocorrem em um encontro
provocado por um dos atores sociais - o pesquisador.
E ele quem elege a questão de estudo, como algo
de importância, na maior parte das vezes escolhe
quem entrevistar e dirige a situação de entrevista.
O ent~evistado, ao aceitar o convite para participar da
pesqmsa, está aceitando os interesses de quem está
fazendo a pesquisa, ao mesmo tempo que descobre
ser dono de um conhecimento importante para o outro.
A questão desigualdade de poder e participação de
quem é entrevistado no processo também foi alvo de
preocupação por parte de muitos pesquisadores que
apresentaram alternativas para modos convencionais
de utilização de entrevista (Banister et al., 1994;
Chambers, 1994; Lahire, 1997).
Uma forma de refletir sobre a questão da
desigualdade de poder na situação de entrevista é
aceitar o pressuposto de que todo saber vale um saber
(Freire, 1992; Héber-Suffrin, 1992) e a proposta de,
pelo diálogo, buscar uma condição de horizontalidade
ou igualdade de poder na relação. Trata-se de respeito
e não de aderência, como lembra Freire (1992, p. 86),
pelos "saberes da experiência", resultado de uma
compreensão de mundo.
Trata-se também da consideração de estratégias
de ocultamento que entram em ação quando o
entrevistado esconde informações que supostamente
acha que podem ser ameaçadoras ou desqualificadoras
para si ou para seu grupo, ou ao contrário, inclui
13
informações que, do seu ponto de vista, podem
trazer uma visão mais favorável a eles. Não podemos
deixar de considerar o entrevistado como tendo um
conhecimento do seu próprio mundo, do mundo do
entrevistador e das relações entre eles. Ao mesmo
tempo em que há a representatividade da fala (Minayo,
1996), há os ocultamentos e as distorções inevitáveis.
Por outro lado, a entrevista também se toma um
momento de organização de ideias e de construção de
um discurso para um interlocutor, o que já caracteriza
0 caráter de recorte da experiência e reafirma a
situação de interação como geradora de um discurso
particularizado. Esse processo interativo complexo
tem um caráter reflexivo, num intercâmbio contínuo
entre os significados e o sistema de crenças e valores,
perpassados pelas emoções e sentimentos dos
protagonistas.
Conforme a interação que se estabelece entre
entrevistador e entrevistado, tem-se um conhecimento
organizado de forma específica; percebe-se, a partir d~í,
a participação de ambos no resultado final., Holst~m
e Gubrium (1995, p. 4) se referem ao carater ativo
de todos os que participam da entrevista e enfatizam
que "o processo de produção de signific~d~ é tão
importante para a pesquisa social quanto o s1gmficado
que está sendo produzido". _
Essas ideias estão de acordo com a concepçao
de que o significado é construído na interação. ~á algo
que 0 entrevistador está querendo co~ecer, ut1~1zando
um tipo de interação com quem e en~r~v~sta~do,
possuidor de um conhecimento, mas que Ira dispo-lo
de forma única, naquele momento, para aquele
interlocutor. Muitas vezes, esse conhecimento nunca
14
foi exposto numa narrativa, nunca foi tematizado.
O movimento reflexivo que a narração exige acaba
por colocar o entrevistado diante de um pensamento
organizado de uma forma inédita até para ele mesmo.
Foi na consideração da entrevista como um
encontro interpessoalno qual é incluída a subjetividade
dos protagonistas, podendo se constituir um momento
de construção de um novo conhecimento, nos limites
da representatividade da fala e na busca de uma
horizontalidade nas relações de poder, que se delineou
esta proposta de entrevista, a qual chamamos de
reflexiva, tanto porque leva em conta a recorrência
de significados durante qualquer ato comunicativo
quanto pela busca de horizontalidade.
A reflexividade, como veremos adiante, é a
ferramenta que poderá auxiliar na construção de uma
condição de horizontalidade e contornar algumas
dificuldades citadas, inerentes a uma situação de
encontro face a face, em especial quando os mundos
do entrevistador e entrevistado forem muito diferentes
social e culturalmente. A proposta de uma ação
reflexiva determinou o formato desse tipo de entrevista
em dois grandes momentos e sua condução, como será
apresentado nos itens seguintes.
Reflexividade tem aqui também o sentido
de refletir sobre fala de quem foi entrevistado,
expressando a compreensão dela pelo entrevistador
e submeter tal compreensão ao próprio entrevistado,
o que é uma forma de aprimorar a fidedignidade, ou,
como lembraMielzinski (1998, p. 132), "assegurar
nos que as respostas obtidas sejam 'verdadeiras'- isto
é, não influenciadas pelas condições de aplicação e
conteúdo do instrumento". Ao deparar-se com sua
15
fala, na fala do pesquisador, há a possibilidade de
outro movimento reflexivo: o entrevistado pode voltar
à questão discutida e articulá-la de outra maneira em
nova narrativa, a partir da narrativa do pesquisador.
Essa "volta" ao entrevistado, garantindo-lhe o
direito de ouvir e, talvez, de discordar ou modificar
suas proposições durante a entrevista, assim como
os cuidados a ele dispensados, cumprem também um
compromisso ético presente em qualquer situação em
que se utilize a entrevista, desde a pesquisa em ciências
sociais até o jornalismo (Cripa, 1998).
1.2 Os protagonistas: entrevistador/entrevistado
O entrevistador tem expectativas em relação
ao interlocutor: espera que seja alguém disposto a
dar as informações desejadas, que entenderá sua
linguagem e suas solicitações. Pode ter a expectativa
de deparar-se com um recipiente de informações que
poderão ser "extraídas" como se extrai uma amostra de
sangue com uma seringa. Pode, ingenuamente, esperar
que o entrevistado discorra sobre sua experiência,
expondo-se sem ocultamentos. Pode também esperar
um parceiro no processo de construção de um
conhecimento. Supõem-se diferentes modos de agir e
diferentes sentimentos conforme as expectativas - até
mesmo o planejamento da própria entrevista.
Para o entrevistado, a situação também pode ser
interpretada de inúmeras maneiras: uma oportunidade
para falar e ser ouvido, uma avaliação, uma deferência
a sua pessoa, uma ameaça, um aborrecimento, uma
invasão. A sua interpretação define um sentido, uma
16
direção, que se manifesta diferentemente conforme
a situação é percebida por ele. Esse sentido pode
ser o de provocar uma determinada emoção no
entrevistador (piedade, admiração, respeito, medo,
solidariedade, etc.). Pode ser o de agradar, por julgá-lo
importante, ou ainda, o de deixar claro seu desagrado
com o que considera invasão ou imposição. Tantos
sentidos quantas interpretações, que definem o rumo
da entrevista e ·a seleção das informações que são
lembradas, esquecidas, ocultas ou inventadas.
Pode-se, assim, notar uma organização do modo
de agir- nos domínios de ação, como diria Maturana
(1993) ao referir-se a emoções-, no sentido de assumir
ou evitar comportamentos verbais e não verbais,
em especial quando se sente a própria integridade
ameaçada.
Essa organização do processo de interação
inclui a emergência de significados não só referentes ao
conteúdo da fala, mas também à situação de entrevista
como um todo, à relação interpessoal que se instalou,
à história de vida do entrevistado e a seu ambiente
sociocultural. Esses níveis de significados interagem
também reflexivamente, como, por exemplo, a história
de vida com a situação interpessoal na entrevista, como
em casos nos quais a interação é interpretada
como apoio afetivo, fazendo lembrar, ou trazendo à
tona, fatos específicos da história de vida. Uma outra
situação de interação, combinando diferentes níveis
de significados, pode ser o do conteúdo da fala do
entrevistador na situação da entrevista, em casos nos
quais o que ele diz pode ser percebido como uma
invasão da privacidade; nesse caso, a situação de
entrevista pode transformar-se numa ameaça.
17
I I
I'
O que é considerado intervenção, além da
influência mútua, é o resultado de um processo de
tomada de consciência desencadeado pela atuação do
entrevistador, no sentido de explicitar sua compreensão
do discurso do entrevistado, de tomar presente e dar
voz às ideias que foram expressas por ele.
Essa intervenção pode ser mais profunda ou
superficial, atingir áreas mais ou menos expostas
ou secretas de sua experiência, mais ou menos
estruturadas em discurso. A entrevista também se
refere, frequentemente, a aspectos importantes da
vida do entrevistado, especialmente nas pesquisas
que se utilizam da sua história de vida, e pode ainda
constituir um momento de "exame de consciência" ou
"balanço geral", dependendo do grau de envolvimento
que o entrevistado apresente. Os relatos dos
pesquisadores sobre o envolvimento emocional de
entrevistados são frequentes; cabe até o inesperado,
quando uma "inocente" questão provoca uma
reação emocional imprevista e transformação do
comportamento comunicativo, desencadeada por
mudanças de significados nos diferentes âmbitos de
comunicação, ou seja, do conteúdo específico, da
situação interpessoal, do discurso como um todo, do
social ou do cultural.
Conforme o grau de envolvimento do
entrevistado, às vezes a simples escuta, atenta e ·
respeitosa, é interpretada como "ajuda", ainda mais
se ocorrer desenvolvimento de consciência do
entrevistado a respeito de um tema importante na
sua experiência. Obviamente, porém, esse não é um
dos objetivos da entrevista científica, embora não
possamos ficar alheios a essa possibilidade. Caso haja
18
tal efeito, o entrevistado deve ser informado que esse
não era o objetivo do encontro.
Essa complexidade não inviabiliza a entrevista
como uma fonte de informações, mas deve ser
reconhecida, pois podemos criar condições para a
obtenção de dados mais fidedignos, e é tendo em mente
os dif~rentes significados e sentidos emergentes em
uma situação de entrevista, tanto para o entrevistado
como para o entrevistador, que poderemos caminhar
para uma compreensão daquilo que está se revelando
na situação de entrevista.
1.3 Desenvolvimento da entrevista
. Como procedimento de pesquisa, pode-se
considerar uma entrevista semidirigida, realizada no
mínimo em dois encontros, individuais ou coletivos.
Não há um roteiro fechado - ele pode ser visto como
aberto no sentido de basear-se na fala do entrevistado
como veremos adiante; mas os objetivos da entrevist~
devem estar claros, assim como a informação que se
prete~de obter, a fim de se buscar uma compreensão do
matenal que está sendo colhido e direcioná-la melhor.
Conco.rdamos com Banister et al. (1994, p. 50)
quando consideram que a entrevista aberta muitas
vezes mascara pressupostos, agendas e expectativas.
Por.esse mot~vo é importante ter claros os objetivos
qums conhecimentos efetivamente ela estará trazendo
e em que contribuirá para responder ao problema a ser
pesquisado. Por outro lado, a entrevista estruturada
P?de tender a aproximar-se mais de questionários,
dificultando a investigação de significados subjetivos
19
e de temas muito complexos para a investigação
quantitativa.
Serão apresentados a seguir os vários momentos
da entrevista: o contato inicial e a condução da
entrevista propriamente qita, que pode incluir
atividades de aquecimento (especialmente no caso
de entrevistas coletivas), seguidas da apresentação
da questão geradora, planejada com antecedência, e
das expressões de compreensão do pesquisador, das
sínteses, das questões de esclarecimento, focalizadoras,
de aprofundamento e, finalmente, a devolução.
1.3 .1 Contato inicial
Nesse primeiro momento, o entrevistador se
apresentará ao entrevistado, fornecendo-lhe dados
sobre sua própria pessoa, sua instituição de origem e
qual o tema de sua pesquisa. Deverá ser solicitada sua
permissão para a gravação da entrevista e assegurado
seu direito não só ao anonimato, acesso às gravações
e análises, como ainda ser aberta a possibilidade de
ele também fazer as perguntas que desejar. Sem se
referir especificamente à entrevista, Rey (1999, p. 63)
nos informa que costuma trabalhar esclarecendo
o sujeito da melhor forma possível no primeiro
contato, solicitando-lhe sua participação voluntária e
cooperação. Começa "com intercâmbios infonnais e
relaxados que favoreçam a disposição dos participantes
em trazer suas próprias reflexões e problemas, que
seriam utilizados para estimular construções cada vez
mais profundas dos sujeitos estudados".
20
Seria desejável queparte do primeiro encontro
fosse tomada pela apresentação mútua, e que se
buscasse esclarecer a finalidade da pesquisa, abrir um
espaço para perguntas e dúvidas, estabelecendo uma
relação cordial.
Vejamos, a seguir, um exemplo de contato
inicial, num trabalho que visava ao estudo da percepção
dos livros didáticos por parte das professoras,
em especial, sua sensibilidade para a questão da
discriminação de gênero:
S.ou [nome da pesquisadora] e estou fazendo esta
pesquisa, que é parte do meu curso de mestrado,
na Universidade X. Gostaria de saber como o livro
didático é visto pelas professoras nesta escola, como
ele é escolhido, o que vocês consideram importante
ser tratado nele e como o utilizam. O objetivo dessa
pesquisa é desenvolver posteriormente um trabalho de
orientação às professoras na sua escolha e utilização.
Seu depoimento é muito importante para nós, pois ao
·longo de sua experiência vocês devem ter descoberto
muitas coisas. Para obtennos essas informações, é
preciso conversar, e eu gostaria de saber se poderiam
dispor de um tempo para isso, sem prejudicar seu
trabalho ou seu descanso. Tenho a autorização da
direção da escola para nos reunirmos e gostaria que
sua participação fosse voluntária, mas não há problema
algum se vocês não puderem participar. Como
considero muito importante tudo o que for dito na nossa
conversa, gostaria de gravá-la, com sua permissão,
mas já adianto que só eu e minha orientadora teremos
acesso ao que for dito e, no meu trabalho final usarei
nomes fictícios, sem identificações dos participantes,
e apenas trechos de nossa conversa. Além disso, vocês
serão as primeiras a ouvirem a fita e lerem a transcrição
e, se desejarem, poderão retirar dela o que acharem
21
necessário. Terão acesso, sempre que desejarem, a
todos os dados referentes aos seus depoimentos e,
também, ao trabalho final. Sintam-se à vontade para
trazerem qualquer dúvida (Sparti, 1995, p. 47).
É certo que esse discurso não precisa ser
apresentado num bloco só. Pausas podem ser feitas,
abrindo espaço para perguntas, considerando o
aspecto não verbal do encontro pessoal, expresso
nas expressões faciais. Pode-se notar que foram
tomados alguns cuidados no sentido de oferecer às
participantes um mínimo de segurança em relação
à pesquisadora, tais como obter consentimento da
direção e, eventualmente, de outras profissionais
diretamente ligadas àquelas, para realizar a pesquisa
na escola (o que pode, às vezes, ser uma faca de dois
gumes, pois isso pode despertar desconfianças, caso
não haja um bom relacionamento entre a diretoria e
as docentes), dar-lhes liberdade para não participarem
da pesquisa, protegê-las por meio do sigilo quanto
aos depoimentos, possibilitar-lhes acesso aos dados e
análises. Também foi lembrada a importância atribuída
às informações e à experiência docente.
Acreditamos que o procedimento de tornar
disponíveis as análises tenha algum efeito na forma
como o pesquisador as apresenta, pois deverão ser
fiéis à sua compreensão, objetivas, claras, passíveis
de serem apresentadas ao participante que colaborou,
com suas informações, para a compreensão do tema
da pesquisa.
É importante, no contato inicial, assegurar-se da
compreensão das pessoas acerca dos objetivos de um
trabalho de pesquisa. Assim, temos o seguinte exemplo
22
de um contato inicial de uma equipe de pesquisa com
um grupo de pais de um bairro da periferia pobre de São
Paulo, num estudo sobre práticas educativas familiares,
que tem como objetivos amplos:
- identificar práticas educativas familiares;
- compreender princípios subjacentes às
práticas;
compreender a questão da identidade
associada às práticas dialógicas;
como se dá a compreensão das práticas
dialógicas;
acompanhar o processo de implantação de
práticas dialógicas nas famílias.
Antes de tudo, gostaríamos de agradecer a vocês por
terem aceitado nosso convite para participar desta
pesquisa. Sou (nome da pesquisadora), psicóloga
e professora da PUC-SP, e os demais membros da
equipe são alunos e profissionais em psicologia
e educação, fazendo suas pesquisas de Iniciação
Científica, Mestrado e Doutorado na PUC. (Todos se
apresentam). Nossa pesquisa tem o objetivo de estudar
como fazem os pais desta comunidade para educar
seus filhos. Gostaríamos também de compreender
o que consideram importante transmitir para seus
filhos e que tipo de pessoas pretendem formar, e
de ver com vocês modos de se educar as crianças
e adolescentes, baseados no diálogo. Pretendemos
também verificar se há o interesse em experimentar
essa forma de educação dos filhos. Está claro para
vocês? Há alguma dúvida no momento? Sempre
que houver alguma dúvida, estaremos dispostos a
conversar com vocês. A cada encontro, faremos um
breve resumo do anterior e vocês têm acesso a todos
nossos relatórios, sempre que o desejarem. Gostaria
23
de esclarecer que sua participação é muito importante
para nós, para que possamos compreender melhor
o processo educacional das crianças deste bairro e
contribuirmos com o conhecimento de que dispomos.
Nossa reunião terá a duração de duas horas e nós nos
subdividiremos em pequenos grupos. Está bem para
vocês? Agora nós gostaríamos de conhecê-los também
(Szymanski, 2002).
Note-se que houve a preocupação em adaptar
a linguagem para a compreensão dos entrevistados e
solicitar continuamente que expressem suas dúvidas.
Mesmo assim, na linguagem oral, esse texto é
apresentado de modo mais coloquial, sem a conotação
de discurso.
Sodeili (1999, p. 70) realizou o primeiro contato
da seguinte forma:
Começamos a primeira entrevista com a apresentação
do pesquisador, em seguida alguns esclarecimentos:
quais eram os objetivos da pesquisa, qual a duração
e quantos encontros teríamos. Propusemos um
"contrato" para o grupo, que seguia três regras básicas:
todos tinham o direito de falar o que quisessem, cada
opinião deveria ser ouvida e respeitada por todos e
não haveria obrigação de que cada um falasse sobre
o tema proposto.
Como o tema a ser discutido pelo grupo era
polêmico e havia professores que não compartilhavam
as mesmas opiniões, fez-se necessária essa introdução.
É sempre interessante, no caso de pesquisadores
iniciantes, praticar esse tipo de entrevistas com colegas,
exercendo o papel de entrevistador e de entrevistado,
para familiarizar-se com o procedimento e para avaliar
os sentimentos e as sensações do participante.
24
-~--y -------~~----~
É importante, também, nunca perder de vista
q~e os entrevistados numa pesquisa estão sempre
situados _num ambiente social; é necessário que
algumas mformações sejam obtidas sobre a cultura
do grupo ou a instituição onde se vai desenvolver o
tra~alh~. No caso de uma escola, por exemplo, faz
mmta d1ferença se a diretora é uma pessoa autoritária
e perseguidora ou, ao contrário, é alguém que tenha
uma postura democrática e respeitadora; se o clima da
escola é tenso, dado a falatórios e favoritismos ou se
o clima é de confiança e abertura. '
Em certos ambientes conflituosos, como
em alguns bairros da periferia das grandes cidades
comunidades fechadas, prisões, abrigos, ou outros:
como na rua, em que há necessidade de se conhecer
melhor os códigos de interação, a aproximação com
os participantes deverá ser mais lenta e gradual e com
a mediação de pessoas de confiança do entrevistado.
As razões para esses cuidados são principalmente
éticas, mas também metodológicas no sentido de se
procurar maior fidedignidade nas informações.
1.3 .2 A condução da entrevista
1.3 .2.1 Aquecimento
A fase inicial da entrevista, deppis da apresentação
formal da pesquisa, poderá ter um pequeno período de
aquecimento para uma apresentação mais pessoal e o
estabelecimento de um clima mais informal. É nesse
momento que se obtêm os dados que se consideram
necessários a respeito dos participantes, os quais,
eventualmente, poderão ser completados ao final.
25
Em estudos coma família, é importante obter-se
urna descrição de sua origem, composição, das idades,
rotinas diárias e atividades, de seus membros. Nesse
momento, pode-se pedir que falem livremente sobre
o objeto amplo da pesquisa. Exemplificando, no caso
da família, pode-se solicitar: "Corno você descreveria
sua família em poucas palavras, corno você contaria
a história de suafamília?" Num estudo, logo depois
dessa solicitação:
D. Cenira começa a falar sobre seus princípios
educacionais, referindo a dois meninos que estão
presentes, 7 e 9 anos. Valoriza o estudo, mas diz que
não estão indo bem na escola. Um deles deitou-se na
cama e começou a brincar com um bebê. Ela disse:
"Eu não deixaria fazer isso, mas como tem gente aqui
[os pesquisadores], ele está fazendo. Ele sabe que não
deve fazer isso" (Gomes Szymanski, 1987, p. 164).
Pode-se notar que, antes de tudo, a participante
quis expor seus princípios educacionais para depoi~
informar os dados biográficos de sua família. E
importante haver esse tempo inicial, mas o pesquisador
deve usar de bom senso para, gradualmente, ir
aproximando-se da sua pergunta geradora.
Em estudos com professoras, é necessário saber
qual sua formação, tempo de magistério, um pequeno
histórico de seu percurso profissional e o que mais
for necessário, conforme os objetivos da pesquisa.
A coleta dessas informações pode constituir-se a fase
de aquecimento da entrevista.
Sodelli (1999, p. 71), após a apresentação
inicial, pediu que cada professor se apresentasse,
"falando um pouco de si: a disciplina que lecionava,
26
quanto tempo trabalhava corno professor, a idade e
corno foi a escolha de sua profissão".
À guisa de aquecimento, em urna pesquisa
sobre a utilização de livros didáticos, Sparti ( 1995)
solicitou às professoras, antes de entrar no terna, que
falassem sobre o seu processo de escolha profissional.
Esse momento propiciou um encontro mais pessoal,
um aprofundamento do conhecimento mútuo entre
as participantes do grupo e um delineamento da
biografia de cada urna, assim corno do contexto de
suas vidas. A seguir, solicitou que falassem sobre sua
concepção de educação, sobre o papel da escola. As
informações propiciadas nesse momento possibilitaram
a compreensão das concepções que as orientavam nas
suas escolhas sobre os livros didáticos, ao mesmo
tempo que a discussão as predispunha a urna atividade
reflexiva.
Em estudo realizado em urna fábrica, cujo
objetivo era o estudo do impacto da identidade
atribuída pela empresa na identidade dos trabalhadores,
foi feita a seguinte sugestão de atividades:
Cada um dos participantes contaria a história do seu
nome. Essa atividade foi bastante enriquecedora para
o grupo, pois, além de realizar um aquecimento inicial,
propiciou também uma pequena reflexão sobre o tema
da identidade e uma rápida apresentação da história
de vida de cada um. [ ... ] Em seguida, foi proposto
que cada um contasse a história de algum apelido
que possuísse na família e na empresa. Essa atividade
também foi bastante enriquecedora, pois ocorreu
uma pequena reflexão sobre a identidade atribuída
pela família, pelos amigos e os contextos em que são
utilizados esses apelidos. Por exemplo, nessa atividade
surgiu a narrativa de um dos participantes que, ao
27
ingressar na escola primária, recebeu várias faltas
porque não respondia quando era chamado pelo nome.
Ele se reconhecia apenas pelo apelido. Após essa
atividade, foi solicitado que cada um narrasse a sua
trajetória profissional até trabalhar na [tal] indústria
(Silva, 1999, p. 65).
Em uma situação de pesquisa em que se
objetivava compreender o processo de comunicação
entre pais e filhos, numa comunidade de baixa
renda, propôs-se como atividade de aquecimento,
antes de uma entrevista coletiva, atividades de
aprendizagem motora (dobraduras de diferentes graus
de dificuldade) e de informações simples (uma breve
informação alimentar) e complexas (o que são sintomas
psicossomáticos e procedimentos de prevenção à
gravidez), nas quais os grupos eram subdivididos de
forma que, ao aprenderem, deveriam também ensinar
os participantes dos demais grupos. O objetivo dessas
atividades era apontar para as dificuldades inerentes
ao processo de comunicação e transpor essa condição
para a situação entre pais e filhos. Ao mesmo tempo
pode-se obter informações sobre o grupo, suas atitudes
e informações a respeito de questões importantes para
a vida familiar (Szymanski, 2002).
Pode-se notar que as atividades de aquecimento
propostas acima criaram um clima de descontração,
deram interessantes informações sobre os participantes
e se constituíram uma introdução ao tema que estava
sendo estudado. A preparação de uma entrevista é
um processo cuidadoso, e esses períodos iniciais não
devem ser considerados como "perda de tempo",
pois eles propiciam informações importantes para o
pesquisador.
28
1.3 .2.2 A questão desencadeadora
Na entrevista reflexiva, os objetivos da
pesquisa serão a base para a elaboração da questão
desencadeadora, que deverá ser cuidadosamente
formulada. Ela deve ser o ponto de partida para o início
da fala do participante, focalizando o ponto que se quer
estudar e, ao mesmo tempo, ampliando o suficiente
para que ele escolha por onde quer começar. Com
isso, já teremos um direcionamento das reflexões do
entrevistado, ao qual será oferecido, inicialmente, um
tempo para a sua expressão livre a respeito do tema que
se quer investigar. A questão tem por objetivo trazer
à tona a primeira elaboração, ou um primeiro arranjo
narrativo, que o participante pode oferecer sobre o
tema que é introduzido.
Por exemplo, numa pesquisa que tinha por
objetivo investigar práticas educativas familiares, a
pergunta geradora foi a seguinte: "Estou vendo que
vocês têm [tantos] filhos. Gostaria de saber como é
que os educam, o que fazem para que aprendam as
coisas que lhes querem ensinar?" (Szymanski, 1999a).
Observe que essa questão focaliza ações, e o que
se deseja é um relato delas e não de um sistema de
crenças, embora estas possam aparecer atreladas aos
relatos dos pais.
Se o objetivo fosse estudar as crenças referentes
às práticas educativas na família, a questão orientadora
seria: "Qual a maneira que vocês consideram mais
adequada, ou correta, de educar seus filhos?" Com
essa questão, procura-se saber quais são as orientações
quanto ao modo de tratamento que os pais acham
fundamentais à prática educacional de sua família.
29
Se a intenção fosse investigar valores, a questão seria,
por exemplo: "Quais ideias vocês acreditam serem as
mais importantes a serem transmitidas aos seus filhos
no mundo de hoje? Em que princípios vocês gostaria~
que eles pautassem suas vidas?" Nessa questão, o que
se investiga é o sistema de valores e as visões de mundo
subjacentes às práticas.
Nesse mesmo estudo, se a intenção fosse associar
as práticas educativas ao processo de constituição da
identidade que a família espera que o filho ou filha
desenvolva, a questão seria: "Que tipo de pessoa você
espera que seu filho ou sua filha se tome no futuro?"
Aqui a discriminação de gênero é muito importante,
dadas as diferentes expectativas sociais para homens
e mulheres.
No exemplo citado, é muito importante que
sejam discriminados procedimentos, crenças, valores,
constituição da identidade, embora esses fenômenos
estejam muito relacionados e possam ser desenvolvidos
no decorrer do discurso.
Às vezes, é interessante ter a questão
desencadeadora elaborada de diferentes maneiras
no caso de haver pedidos de esclarecimentos, par~
evitar formulações que se distanciem do objetivo
da investigação. Numa pesquisa sobre o processo
de introdução de uma proposta pedagógica de
ensino ativo na prática cotidiana de um grupo de
professoras (Szymanski, 1999b ), a questão geradora
foi: "Gostaríamos que vocês nos contassem como foi
que começaram a utilizar essa proposta pedagógica
habitualmente".
Formulaçõesalternativas poderiam ser: "Como
vocês fizeram para introduzir a proposta "x" de ensino
30
no seu dia a dia com as classes?" ou "Como foi desde
o início, sua forma de utilizar a proposta "x" de,ensino
em seu quotidiano?" A resposta a qualquer uma dessas
formulações seria um relato da forma como se deu
~ ~n~orpor~~ão na prática diária. Para o pesquisador
Imcmnte, e Interessante levar já preparadas as várias
versões da questão desencadeadora, para que ele não
mude sua formulação essencial, referente ao fenômeno
que deseja estudar, no caso de o participante solicitar
esclarecimentos.
No exemplo citado, o interesse era verificar os
proc~dimentos utilizados pela professora para adotar a
refenda proposta como uma forma habitual de ensino·
emb_ora, no decorrer da entrevista, possam surgir o~
sentimentos envolvidos, a dificuldade de compreender
a proposta, a crença em diferentes métodos de ensino
~ão se pode afastar da questão que se quer estuda;
E ~ aderência ~os objetivos que irá contribuir para
apnmorar a validade das questões, o que Mielzinski
(1998, p. 133) chama de "validade de constructo" isto
é, quando as perguntas "correspondem às intençõ~s de
quem está pesquisando".
A experiência tem demonstrado que a elaboração
da pergunta desencadeadora não é uma tarefa tão fácil
como se pensa de início. Há vários critérios a serem
levados em conta, tais como:
a) a consi~eração dos objetivos da pesquisa;
b) a amplitude da questão, de fonna a permitir
o desvelamento de informações pertinentes
ao tema que se estuda;
c) o cuidado de evitar indução de respostas;
31
- .. ~----~-- --------,-----------~--~-~-------
d) a escolha dos termos da pergunta, que
deverão fazer parte do universo linguístico
do participante;
e) a escolha do termo interrogativo. Questões
que indagam o "porquê" de alguma
experiência do entrevistado receberão
respostas indicadoras de causalidade, na
maioria das vezes elaborações conceptuais
mais do que narrativas de experiências. Se o
objetivo da pesquisa for a compreensão das
relações de causalidade que os participantes
atribuem às suas experiências, a escolha
do "porquê" é justificada. Questões que
indagam o "como" de alguma experiência
induzem a uma narrativa, a uma descrição.
A partícula "para que" indaga pelo sentido
que orientou uma escolha.
Observe-se a diferença de respostas às seguintes
questões: "Por que você escolheu ser professora?";
"Como vocês vieram a se formar professoras e atuar
como professoras?" (Sparti, 1995); "Para que função
você se preparava durante sua formação para o
magistério?"
Na primeira questão - por que? - obtem-se
uma elaboração das causas que a participante define
como definidoras de sua escolha: "por gostar de
ensinar", "por gostar de crianças", "por dificuldades
econômicas", "porque na minha cidade era o único
curso que havia", "porque era a única profissão que
meu pai permitia às mulheres da família".
Na segunda questão, que indagava o "como",
obteve-se, por exemplo, a seguinte resposta:
32
- Bom ... eu, na verdade, quando comecei o segundo
grau, ainda não tinha definido o que eu gostaria de
ser, apesar de, desde pequena, gostar de brincar de
ser professora. Mas eu tinha uma dúvida: se era,
realmente, aquilo que eu gostaria de fazer. Então eu fiz
o Magistério, na primeira vez em que eu fiz o segundo
grau. Daí quando eu fui escolher o curso superior, aí eu
já fiquei balançando e escolhi Pedagogia. Completei o
curso e, então, voltei para fazer o Magistério (Sparti,
1995, p. 47).
Pode-se notar, nesta resposta, a narrativa de sua
trajetória, em uma pesquisa que tinha por objetivo:
[ ... ] apresentar uma reflexão sobre como professores
de Arte e coordenadores concebem o ensino de Arte
na escola, partindo da análise de observações das
condições de existência desses profissionais em
uma escola pública paulista, e dos seus discursos
produzidos em entrevistas (Prandini, 2000, p. 23).
A questão desencadeadora foi: "Como você vê
o ensino de Arte na escola?" (Entrevistas individuais).
Observe algumas respostas (Prandini, 2000,
p. 83, 110 e 153):
Prof. A: - Em relação ao ensino fundamental e
médio, a gente tenta passar os meios de expressão.
Não importa a estética. Vai importar o conteúdo da
expressão de cada aluno [ ... ] Mas na arte temos a
expressão cênica, teatro, música e artes plásticas. Só
que é impossível para um mesmo professor ensinar
todas essas formas de maneira séria e correta. Acho
que deveriam ser professores especializados em cada
uma dessas áreas.
33
Prof. B:-Eu acho que os livros estão muito defasados.
Não há uma mudança há anos. [ ... ] Outro problema
é o de se trabalhar de uma forma tão tradicional. [ ... ]
Existe respeito. Mas, normalmente, aquele que sai
do esquema, do tradicional, sofre uma... não uma
perseguição, mas a escola ainda não está preparada
para esta coisa. [ ... ] Tem que ficar mais dentro da sala
de aula!
Coordenador: - Primeiro é bom conceituar. A arte
quando é bem trabalhada ... A Educação artística
quando não é bem trabalhada só leva o aluno a pensar
que é aula de nada a fazer. Quando é bem trabalhada,
dá noção para o aluno de coisas de todas as disciplinas.
Matemática," quando trabalha Geometria. História
quando trabalha História da Arte. Português quando
trabalha poesia, música, canto.
Como se pode perceber, emergiram várias
concepções do que seria ensino de arte. A questão
aberta, buscando o "como", permitiu várias abordagens
ao tema e, consequentemente um enriquecimento
posterior da análise.
A questão "para que" provoca o participante a
explicitar o sentido de sua escolha: "Para realizar um
sonho de infância", "Para levar às crianças pobres um
ensino de qualidade", "Para provar a meus pais que eu
era capaz de sustentar-me sozinha".
As partículas "o que" e "qual" também pedem
uma descrição, o que não evita, entretanto, que as
respostas venham carregadas de "teorias" ou de
articulações causalistas elaboradas pelos participantes.
Vejamos o seguinte exemplo e as respostas que
suscitaram:
34
"O que vocês pensam a respeito da prevenção
à Aids e a escola?" (Sodeili, 1999, p. 71, 91-92)
(Entrevista coletiva).
Pro f. A: -O professor deve conscientizar a comunidade,
a importância da preservação da vida, viver bem, viver
saudável, tem que aconselhar, ter amizade, ser amigo.
A amizade fortalece a confiança, temos que ter
liberdade e distanciamento.
Prof. B:- O professor não deveria ficar preocupado
com outras coisas a não ser ensinar, mas como o aluno
é muito carente, o professor é obrigado a ser psicólogo,
dar comida, dar carinho, e é claro que o professor não
dá conta, nosso trabalho fica muito sobrecarregado.
A resposta à questão ampla permitiu que se
manifestassem opiniões contrárias dos professores em
relação à prevenção da Aids na escola.
Vejamos a seguir um exemplo com a partícula
"qual" orientando a resposta, em um estudo que
indagava pelo "sentido que o novo trabalhador dá à
identidade atribuída pela empresa que afirma aplicar
gestão participativa": "Qual a expectativa [da empresa]
em relação ao seu empregado?" (Silva, 1999, p. 49, 66).
entre
As respostas que obtiveram foram congruentes
o discurso da empresa sobre os atributos esperados
para a constituição da identidade dos seus funcionários
(que são desenvolvidos pedagogicamente nos diversos
setores da empresa) e o discurso dos trabalhadores
sobre esses mesmos atributos de sua identidade (Silva,
1999, p. 86).
Em um estudo que objetiva identificar o
significado do dirigir para jovens universitários
35
condutores de veículos automotores, foi feita a seguinte
questão: "O que significa dirigir, para vocês?" (Sparti,
2002, p. 4) (Entrevista coletiva). Eis algumas:
Participante A: - Dirigir é prazeroso, mas eu acho
que, às vezes, também é perigoso. Pode ser perigoso ...
Mas nem todo perigo é ruim. Você tem uma situação
de perigo ali, você passa por ela. Na hora é perigoso,você pensa. Depois, já passou e tal... dá um certo
prazer. Mas é perigoso e prazeroso, às vezes. Outro
dia eu peguei uma estrada com chuva, e foi perigoso,
mas não deixou de ser prazeroso. Mas quando cheguei
em casa ... , que alívio!
Participante B:- Locomoção.
Participante C: -Praticidade.
Participante D: -Prazer, independência.
As respostas, mais ou menos elaboradas,
referem-se aos sentidos que são expressos. Certamente
haverá outros, que serão desvelados ao longo da
entrevista.
Como se pôde observar, o primeiro cuidado
na entrevista reflexiva está na elaboração da questão
a ser dirigida ao participante, pois, proposta de forma
correta, a resposta trará insumos para a pesquisa que
se está realizando.
Compreendida a questão desencadeadora, é
importante deixar o entrevistado discorrer livremente,
mesmo que se afaste do tema proposto, bem como
verificar os entrelaçamentos entre as várias facetas do
fenômeno estudado.
36
.~-·~
1.3.2.3 A expressão da compreensão
Gradativamente, o entrevistador vai apresentando
a sua compreensão do discurso do entrevistado,
sem perder de vista os objetivos de seu estudo.
É importante notar a diferença entre compreensão e
interpretação, baseada em alguma teoria ou hipótese
preestabelecida. A compreensão tem um caráter
descritivo e de síntese da informação recebida e pode
ser definida como "relação dialogal que nada reduz a
objeto e exige do intérprete empatia, capacidade de se
colocar no lugar" (Demo, 1992, p. 249). Refere-se ao
conteúdo verbal, basicamente, mas pode trazer alguma
referência ao tom emocional e aos índices não verbais
percebidos, "caso estes esclareçam a compreensão
do tema em questão. Jamais deverá assumir a forma
de uma avaliação pessoal". Procura-se expressar a
compreensão da fala nas palavras do pesquisador.
Em um estudo sobre o livro didático, as
professoras, numa entrevista coletiva, assim
responderam à seguinte questão desencadeadora:
"O que levou vocês a adotarem os livros didáticos?
Em relação às quatro disciplinas: Estudos Sociais,
Comunicação e Expressão, Ciência e Matemática"
(Sparti, 1995, p. 61):
Prof' A: -Eu trabalho na lousa; pego as coisas deles
[dos livros] e passo para a lousa ...
Prof' B:-Nós chegamos à conclusão de que um livro
sozinho não ia resolver o nosso problema, porque eu
.acho que, para que uma criança construa um texto
criativo, interessante, como eles constroem hoje, um
livro só seria "podar" a criança.
37
Pro f' C: -Então nós temos vários exemplares e, então,
a gente tira um texto de um, um texto de outro, e
"bola" as atividades para a classe,trabalha com jornal,
trabalha com a fábula, trabalha com a poesia, com
revista, tudo o que a gente puder ... os mais diversos
materiais possíveis. Então a gente vai passando isso
para eles. Poesia ... trabalha a rima; fábula, tudo o que
imaginar.
A entrevistadora, ao final das falas, intervém
dizendo: "Eu estou entendendo que o livro está sendo
um apoio para vocês; não está sendo a única fonte de
informação".
Nessa mesma pesquisa (Sparti, 1995, p. 88),
uma professora faz várias afirmações, referindo-se às
atividades que desenvolve com os meninos e meninas
de sua classe de Ciclo Básico:
- Eu trabalhei com CB Concluinte, no ano passado,
e, este ano, estou com quase todos os mesmos alunos
que foram meus, no ano passado. O comportamento
deles mudou muito, pois no ano passado eles sentavam
no chão com as meninas, brincavam de passar lenço,
faziam brincadeira de roda, pulavam amarelinha,
tudo junto com as meninas.[ ... ] Agora, este ano, não.
Só bola. E as meninas ... às vezes, elas jogam bola ...
até que eu impus que eles jogassem, quatro semanas,
"queimada", pra ver se juntava. Saía muita briga.
[ ... ]Eu acho que é a idade, é o passar do tempo ... ele
mesmo vai separando as coisas que menina pode e
não pode fazer. [ ... ] Aqui eu acho que é a cobrança
que já vem da família, dos amigos, dos mais velhos
e dos colegas.
A pesquisadora expressa assim sua
compreensão:
38
- Isso que você faz, Débora, não é uma tentativa
de ir contra essas expectativas da família ou dos
coleguinhas? Quer dizer, você coloca uma bola, você
coloca meninos e meninas brincando com a bola ... É a
questão da idade? A Débora está colocando a mudança
que ela percebeu da segunda para a terceira série. Os
da segunda, mais crianças ... Foi isso que você quis
dizer? (Sparti, 1995, p. 89).
Note-se que a pesquisadora está expondo sua
compreensão para a consideração do grupo.
Uma professora, ao indicar as razões para a
escolha do magistério, afirma o seguinte:
- Quando comecei a fazer faculdade, eu fiz serviço
social dois anos, mas quando eu fui fazer estágio, foi
um horror, tudo o que você aprende na faculdade, na
empresa, é ao contrário, não consigo viver na mentira;
na empresa, o chefe não gostou da cara do empregado,
manda ele embora, e a gente tem que inventar
desculpas. Precisava arrumar alguma atividade, então
resolvi fazer Letras, porque eu gosto de português e
precisava ganhar algum dinheiro (Sodelli, 1999, p. 80).
O pesquisador demonstra sua compreensão,
afirmando: "A razão principal de sua desistência do
Serviço Social pareceu-me ser de ordem ética, a da
escolha de Letras, por interesse na área, e a da escolha
do magistério, como necessidade econômica". Observe
como o pesquisador, além de mostrar sua atenção ao
discurso da professora, apontou os vários sentidos que
orientaram suas escolhas.
Numa pesquisa sobre o significado de família
(Gomes Szymanski, 1987, p. 168), uma mãe fala
o seguinte a respeito de suas práticas educativas:
39
"Quando querem alguma coisa, não dou; quando
querem ir a alguma parte, não deixo".
A compreensão da pesquisadora foi expressa
numa questão: "A senhora, então, não deixa valer a
vontade dos meninos, mas a sua?" A compreensão,
posta na forma de pergunta, abre a possibilidade de
diálogo, na aceitação ou não da questão.
Nessa mesma pesquisa, no relato que se
segue, podem-se observar as informações advindas
de uma intervenção de compreensão por parte da
entrevistadora, referente aos sentimentos de Ana em
relação à D. Cenira: "Aponto um profundo afeto de
Ana por sua mãe de criação".
No barraco moram D. Cenira e Ana (mãe do bebê de
seis dias). Diz Ana: "Moro aqui e daqui não saio por
nada!" Aponto um profundo afeto de Ana por sua mãe
de criação. Ela reafirma isso e informa que D. Cenira
criou nove crianças. Ela casou-se, morreu sua família,
e o marido abandonou-a. Ela, então, passou a criar os
filhos de parentes (Gomes Szymanski, 1987, p. 165).
Na pesquisa citada sobre o livro didático, uma
professora, ao comentar a questão dos deveres dos
alunos, afirmou:
40
- E eu achei assim: "Não vou pensar nisso, vou partir
como se ninguém me tivesse falado nada sobre eles,
para não ter um preconceito sobre eles". Então, eu
comecei como se não soubesse daquilo ... Só que eles,
realmente, não conseguem se enquadrar naquelas
regras que eles mesmos fizeram! Os outros conseguem
e eles não! Às vezes, são regras que eles mesmos
propuseram, e eles são os primeiros a não seguir.
A expressão de compreensão da entrevistadora
foi: "Você está colocando essa questão do pensamento
e da ação? Eles sabem as regras, eles sabem que têm
os deveres, também, mas nem sempre se comportam
daquele jeito desejável?" (Sparti, 1995, p. 79).
Essa intervenção, expressando a compreensão da
entrevistadora, propiciou uma nova forma de reflexão,
saindo do círculo vicioso que se anunciava no discurso
da professora.
Na pesquisa com professores de Arte (Prandini,
. 2000, p. 84), diz um professor:
-A gente teria que ter habilitações específicas. [ ... ]
Se eu, formado em artes plásticas, entrar no setor de
Teatro, o especialista em artes cênicas vai dizer: ele
está falhando em tal, tal, tal. Assim como o professor
de música, que vai dar artes plásticas, encontra várias
lacunas que ele não consegue preencher, por sua
deficiente formaçãoem artes plásticas: na linguagem,
em textura, composição no campo, etc. Se você for
levar a sério, a gente teria que ter três professores; um
de música, outro de teatro e outro de artes plásticas.
A intervenção de compreensão foi a seguinte:
"Então o senhor centra suas aulas em artes plásticas?"
A partir daí, o professor passa a descrever sua trajetória
profissional, lembrando que antigamente procurava
dar outras expressões artísticas e admite que hoje está
"meio acomodado".
Nessa mesma pesquisa (p. 85), o professor
continua:
-Em 1970, quando eu comecei a lecionar, fiz uma
vez teatro de marionetes, e o pessoal fazia muito
bem.[ ... ] A minha matéria chamava-se desenho, mas
41
a gente fazia isso: numa aula era linguagem de teatro,
noutra, artes plásticas, noutra modelagem. A gente
tinha oportunidade de fazer.[ ... ] Eu já dei aulas para
o magistério, também. E o que eu tentava ensinar era
nunca dar desenhos mimeografados para os alunos
colorirem, o que é comum ver os professores fazendo,
principalmente os de la, 2a, 3a série. Eu achava isso
errado. As crianças de 3 ou 4 anos, quando fazem um
rabisco, ficam contentes e mostram: "Essa é a minha
expressão!". Mais tarde é que vêm os conceitos de feio
e bonito, e ela vai esquecendo, deixando de desenhar.
A expressão de compreensão da pesquisadora
foi: "Eu poderia resumir dizendo que, para o
senhor, o mais importante é ensinar o aluno a se
expressar, utilizando as várias linguagens?" Com essa
intervenção, Prandini aponta para as mudanças na
prática desse professor ao longo de sua vida, muitas
vezes contrárias às suas próprias ideias.
Se, na sua essência, uma entrevista é uma
situação de interação humana, estamos respondendo
aos estados emocionais e índices não verbais que
nosso interlocutor está emitindo, o que não significa
"adivinhar" o que o outro está sentindo - o que é
impossível -, mas descrever a impressão que nos
causou. A utilização de tal feedback tem, entretanto,
uma limitação: só deve ser utilizado por pesquisadores
com muita prática de pesquisa, e conhecimento dos
processos psicológicos envolvidos em situações
de interação humana. Esses cuidados remetem à
"vigilância interpretativa", de Figueroa e López
(apud Banister et al., 1994, p. 52). As intervenções
referentes aos índices não verbais devem ter o caráter
de comentário sobre uma impressão pessoal e o
42
cuidado de oferecer ao entrevistado a possibilidade de
não concordar e de não responder.
Um exemplo de que o índice verbal foi
considerado ocorreu numa segunda entrevista com
uma mulher que, na primeira, havia se mostrado
muito alegre e disposta. Diante da observação da
entrevistadora, de que naquele dia ela estava lhe
parecendo muito séria, respondeu: "Não dá para viver
só de resto dos outros" (Gomes Szymanski, 1987,
p. 76), referindo-se às suas roupas, e seguiu falando das
dificuldades pelas quais tem que passar, pois o marido
não a deixava trabalhar e a queria em casa, cuidando
das crianças e dos afazeres domésticos. A compreensão
da expressão da mulher como de "seriedade" foi
corrigida e acabou por provocar a emergência de um
importante aspecto da relação entre o casal. Deve-se
notar que, ao descrevê-la como "séria", não se atribuiu
nenhum sentimento à entrevistada, mas apenas a
expressar a impressão causada por sua expressão facial.
Esta observação revela um aspecto importante das
questões de compreensão: a possibilidade de correção
por parte do participante. No caso da pesquisa citada,
o que foi dito pela mulher pode ser interpretado como:
''Não estou séria, estou ressentida por ter que viver dos
restos dos outros e por ser proibida por meu marido de
buscar trabalho fora de casa".
Além de indicar sua compreensão, a atuação do
entrevistador pode dar-se no sentido de manter o foco
do problema estudado na sua pesquisa. Sua participação l \
1
pode ocorrer de diferentes formas: elaborando sínteses,
formulando questões de esclarecimento, questões
focalizadoras, questões de aprofundamento.
43
1.3.2.4 Sínteses
A finalidade de se oferecer sínteses, de tempos
em tempos, é a de se apresentar qual o quadro que está se
delineando para o/a entrevistador/a, isto é, como se está
acompanhando a fala do/a entrevistado/a. É uma forma
de manter uma postura descritiva, além de buscar uma
imersão no discurso do/a entrevistado/a. Essas sínteses
podem também ter a função de trazer a entrevista
para o/s foco/s que se deseja estudar e aprofundá-los,
ao encerrar uma digressão. Preferencialmente, as
sínteses devem ser feitas usando-se o vocabu1irio do/a
entrevistado/a.
Em uma entrevista, uma das participantes expôs
os motivos que a levaram ao magistério:
44
- Bom ... no meu caso ... há 24 anos atrás, depois da
s• série [ ... ] tinha somente três opções, no segundo
grau: era o Científico, era o Clássico ou o Normal, né?
[ ... ]E só o Magistério é que dava, assim, um diploma
de curso profissional. [ ... ] Sempre a parte financeira
também existe. Aí eu fiz "vestibulinho" para entrar
no [nome da escola], naquela época, mas eu gostei,
apesar de ser uma coisa assim mais para... não é
imposta, mas aquilo que a família orientou. [ ... ]Logo
em seguida ... não fiz faculdade porque eu tive que
trabalhar. Então eu entrei na faculdade de Pedagogia.
E daí, eu fiquei. Claro que gostei! E daí fui lecionar ...
Foi feita a seguinte síntese:
Você colocou essas três possibilidades do segundo
grau, que foram o Clássico, o Científico e o Normal.
Você fez referência ao aspecto financeiro e à
continuidade do ensino superior (porque senão você
sairia sem nenhuma profissão) que teria que ser
fora de [nome da cidade]. Então tudo isto acabava
convergindo para o curso Normal, que era um curso
profissionalizante (Sparti, 1995).
Numa entrevista coletiva, em que membros
de uma comunidade explicavam a questão do não
envolvimento da população em iniciativas de interesse
coletivo, sua exposição, num determinado momento,
foi sintetizada da seguinte forma: "Então, a seu ver, as
pessoas não participam de projetos coletivos porque
jogam tudo nas costas de alguns, 'ficam na sua' e só
se envolvem em troca de algum favor" (Szymanski,
1998). Essa observação possibilitou que se falasse
sobre a percepção a liderança dos moradores da
comunidade.
Nas sínteses apresentam-se, nas palavras dos
entrevistados, os pontos principais de um discurso.
Note-se a diferença das intervenções de compreensão, f
que apresentam uma elaboração maior por parte do
entrevistador.
1.3 .2.5 Questões
• De esclarecimento
Trata-se de questões que buscam esclarecimentos
quando o discurso parece confuso ou quando a relação
entre as ideias ou os fatos narrados não está muito
clara para o/a entrevistador/a. É significativo para
análise posterior verificar em quais momentos o
discurso era menos elaborado ou estruturado, e é
informativo também verificar como foram respondidas
as questões de esclarecimento - se a questão pedindo
esclarecimento gerou ou não uma nova articulação.
45
A expressão truncada ou confusa pode indicar
ocultamentos e, não havendo uma nova articulação
para esclarecer, é o caso de respeitá-los.
Os esclarecimentos podem se referir a sequências
de eventos no tempo, a funções e características dos
diversos personagens da narrativa, a atribuições de
causalidade, sentimentos, emoções, interpretações.
Ao formular-se a questão, pode-se expressar o
que não ficou claro, como, por exemplo, na pesquisa
sobre práticas familiares: "Eu não entendi bem como
é que vocês dividem as suas funções educativas com
as crianças. Quais as do pai e quais as da mãe?" Ou,
no exemplo da pesquisa com professoras: "Você
poderia repetir como foi deixando de achar a nova
proposta uma 'moda' e uma trabalheira a mais e a
foi introduzindo aos poucos nas suas aulas?" Note-se
a preocupação em não sair da narrativa que o
entrevistado estiver fazendo.
Muitas vezes, o discurso confuso tem o
sentido da ocultação.Numa pesquisa sobre identidade
de crianças que nunca frequentaram a escola, um
dos participantes, de 12 anos, contou uma história
muito confusa sobre a razão de seus pais não terem
providenciado sua certidão de nascimento, fato que
o impedia de matricular-se. Diante das questões da
entrevistadora, ele acabou por dizer: "Meu registro
molhou. Molhou e caiu dentro do brejo. Caiu no brejo"
(Souza, 2001).
Ele não queria ou não sabia dar mais
informações. O motivo, nesse caso, está sendo
ocultado. No exemplo, como se observou ao longo
da entrevista, era a separação dos pais, o desinteresse
deles pela vida escolar do filho e o mau relacionamento
46
entre pai e filho. Insistir nas questões só iria criar
constrangimento.
Algumas vezes o entrevistado continua um
diálogo interno e não o expressa. Como no seguinte
exemplo: "Para você manter um ideal precisa olhar
nos olhos dos alunos e acreditar. Você tem que olhar
a acreditar que ainda é possível" (Prandini, 2000,
p. 112). A entrevistadora pergunta: "É possível o quê?"
Ao que a professora responde: "É possível continuar,
ter paciência. Por exemplo, a minha saída, agora, foi
gratificante, porque, em nove anos, eu nunca tive tanta
retribuição de amor e carinho", indicando, segundo
Prandini, que ela busca no aluno a força para continuar
acreditando no seu ideal.
Na pesquisa sobre significado de família,
pode-se ver como uma questão que busca informação
pode esclarecer aspectos do relacionamento interpessoal
na família:
- Eu observo que Clara está fazendo todo o serviço
doméstico sozinha e pergunto se a outra irmã a ajuda.
A mãe responde: "Ela só faz quando a Clara não
está. Ontem precisei sair para levar a minha mãe no
pronto socorro e a Clara não estava. Estava na escola."
Quando chegou do médico, a segunda filha havia feito
tudo, lavado tudo e só faltava lavar a roupa. Estando
a Clara em casa, "a outra não assumia nada" (Gomes
Szymanski, 1987, p. 431).
As questões de esclarecimento apresentadas a
seguir apontam para um importante aspecto desse tipo
de entrevista: o de possibilitar um aprofundamento na
reflexão e expressão delas por parte dos participantes
(Sparti, 1995, p. 86):
47
Pro f' A:- Então eu falo para cada aluno: "O que você
acha? Fulano é parecido com o "dono do mundo"?
Então, todos da classe ... Então, não sei ... eu trabalho
muito os personagens ... eles ... sempre eles.
Como se pode observar, o discurso está
confuso. A entrevistadora faz a seguinte questão: "Você
relaciona as personagens do livro e as da realidade?"
Prof' A: - Eles falam: "A professora tal é parecida
com ... " [ ... ] Sempre dando esses textos e sempre na
realidade deles, das crianças. Inclusive na parte de
esportes, também: "Quem você acha aqui que pode
ser o Pelé?" Eles já sabem quem gosta mais de futebol.
Note-se que a professora utilizou-se da
expressão da entrevistadora: "na realidade deles".
A entrevistadora obtém a informação de que este é
um procedimento utilizado com vários textos quando
indaga: "Saindo do texto, vindo para a realidade e
voltando para o texto?"
Prof' A: - É sempre assim. Vale para vários textos.
As questões esclarecedoras também têm um
efeito de apresentar a compreensão do entrevistador,
como se pode observar nas questões acima.
• F ocalizadoras
A participação em uma pesquisa é, muitas
vezes, uma rara ocasião para se falar a um interlocutor
atento e interessado. Por esse motivo, muitas vezes,
no período inicial da pesquisa, ao se solicitar alguns
dados pessoais, como motivos da escolha da carreira,
48
i
I
história da família ou história da vida profissional, os
entrevistados podem alongar-se. A própria questão
desencadeadora pode ter um sentido de voltar ao tema
da conversação.
Mas, se a digressão ocorrer ao longo da entrevista,
pode-se lançar mão das questões focalizadoras.
São aquelas que trazem o discurso para o foco
desejado na pesquisa, quando a digressão se prolonga
demasiadamente. Sem dúvida é informativo, na análise,
observar em que momentos houve digressão, que tipo
de digressão e qual a reação da chamada de volta ao
tema principal da pesquisa. Obviamente, respeita-se
o entrevistado, se ele não se dispuser a voltar para o
foco. Isso é também significativo e deve ser apontado
na análise. Todas as intervenções apresentadas aqui
têm, na verdade, uma função focalizadora: a síntese,
as questões de aprofundamento e mesmo as de
esclarecimento, já que a entrevista está organizada em
tomo de um objetivo.
Exemplo de questão focalizadora, no caso
da pesquisa com famílias sobre os procedimentos
envolvidos nas suas práticas educativas (Szymanski,
1999a), depois da digressão de uma mãe no sentido
de considerar valores e crenças na educação dos filhos
e afastando-se das ações educativas, que era o que
interessava aos pesquisadores: "Você falou sobre o
que considera certo e errado na educação dos filhos, e
agora eu gostaria de saber como é que foi ensinando
os a agirem do jeito que aprova? Você teria algum
exemplo?" A questão focalizadora pediu uma volta
às práticas.
Na pesquisa que tratava da percepção pelas
professoras, das relações entre os gêneros no livro
49
didático (Sparti, 1995), a conversação enveredou
para as relações família/escola e a volta ao tema teve
que ser realizada, cortando-se a discussão: "Bom, em
relação ao livro didático, então, eu havia perguntado
a vocês quais haviam utilizado, que critérios levavam
em consideração para adotá-los, o que achavam dos
livros ... "
Na pesquisa sobre o ensino de arte (Prandini,
2000, p. 133), temos o seguinte exemplo de questão
focalizadora, depois da digressão da professora Cecília:
-Então eu costumo dizer o seguinte: para chegar no
desenho, eu tenho que entender o traço, como é o traço,
como é a letra. Eu preciso ter o domínio da minha
mão, para fazer uma linha reta ou uma curva, e a partir
daí eu, juntando essas linhas, eu dar uma forma. [ ... ]
Eu acho que quando o aluno começa a entender que
existe uma proposta, um objetivo, o interesse aumenta.
É como o adulto. Você vai, por exemplo, fazer uma
entrevista, você tem que ter um objetivo, senão você
fica falando, falando e não chega a lugar nenhum.
A entrevistadora interrompe e pergunta: "Então
me diga, o que você considera mais importante no
ensino de arte?" A professora responde:
50
- Acho que primeiro o próprio professor precisa
fundamentar tudo isso para ele próprio. Para propor
algo para os alunos, ele tem que partir de um princípio.
[ ... ] Eu particularmente acho isso: se não ficar claro
para o aluno que existe um objetivo, uma proposta,
uma meta, para estas aulas de arte, ele vai achar que
é desenho livre, uma coisa solta que não tem uma
sequência.
------ ------- ,~-~
A entrevistadora questiona novamente: "Você
está falando, assim, genericamente, o professor, mas
você ainda não colocou a sua meta". A partir dessa
segunda intervenção, a professora passa a falar como
desenvolve seus cursos e quais atividades realiza. Ao
mesmo tempo que a professora é solicitada a voltar ao
tema da entrevista, é informada de que está afastando
se da resposta por meio de um discurso generalizado.
E óbvio que o bom senso e o respeito ao
entrevistado devem prevalecer. Caso os esforços de
voltar ao tema não sejam bem,sucedidos, deve-se seguir
a tendência daquele e adotar um curso mais livre.
• De aprofundamento
São aquelas perguntas que podem ser feitas
quando o discurso do entrevistado toca nos focos de ,~
modo superficial, mas trazem a sugestão de que uma -?I\
investigação mais aprofundada seria desejável. Assim
como nas anteriores, na análise, é informativo observar
quais os itens que foram aprofundados e quais os que
foram tratados superficialmente.
Nas questões de aprofundamento, podemos
utilizar indagações que investigam diferenças,
relações interpessoais e a perspectiva do observador.
Nas questões que investigam diferenças, 3 utiliza-se a
comparação, para