Prévia do material em texto
1 Sociologia: origem e desafios históricos e contemporâneos Luiz Antônio Bogo Chies1 A Europa das primeiras décadas do século XIX está envolta em transições e mudanças que resultam de diversos processos anteriores, os quais podem ser apresentados na seguinte cronologia: Pré-SÉCULO XV - Início do Renascimento, com revalorização das referências culturais da antiguidade clássica, que nortearam as mudanças em direção a um ideal humanista; SÉCULO XV - Expansão territorial e comercial; Início da criação dos Estados Nação, com centralizações administrativas, jurisdicionais e dos exércitos; SÉCULO XVI - Reforma Protestante; SÉCULO XVII - Revolução Científica; Iluminismo; Burguesia comercial fortalece seu poder; Aperfeiçoamento das técnicas de produção; SÉCULO XVIII - Independência Americana, Revolução Francesa. Também os avanços no conhecimento e nas tecnologias são responsáveis por significativos impactos na sociedade, em muito como decorrentes da chamada racionalidade científica, que tem na física clássica seu modelo. Trata-se, para Augusto Comte2, considerado o fundador da Sociologia, de um contexto favorável ao “surgimento” de uma ciência social. Era, segundo ele, o momento que culminava um processo “natural” na ordem de emergência de campos científicos: As ciências tornaram-se positivas, uma após outras, na ordem em que era natural que essa revolução se operasse. Esta ordem é a do grau de complicação maior ou menor de seus fenômenos, ou, em outros termos, de sua relação mais ou menos íntima com o homem. (COMTE, 1978, p. 58) Para Comte, ainda sob outro aspecto o momento era oportuno pois, “fazia-se necessário que o sistema social preparatório, no qual a ação sobre a natureza fosse somente o fim indireto da sociedade, houvesse chegado à sua última fase” (1978, p. 58), o que ocorria com a crescente industrialização. Mas se tratava, também, de um momento de “crise”: 1 Doutor em Sociologia (UFRGS, 2006); Professor de Sociologia Geral e Jurídica na Universidade Católica de Pelotas (UCPel). 2 Augusto Comte (1798 — 1857), filósofo francês que formulou a doutrina do Positivismo e também é visto como o fundador da disciplina acadêmica de Sociologia. 2 Um sistema social que se extingue, um novo sistema que atingiu sua completa maturidade e que tende a se constituir, eis o caráter fundamental assinalado à época atual pela marcha geral da civilização. De conformidade com este estado de coisas, dois movimentos de natureza diferente agitam hoje a sociedade: um de desorganização, outro de reorganização. Pelo primeiro, considerado isoladamente, é ela impelida para uma profunda anarquia moral e política, que parece ameaçá-la de próxima e inevitável dissolução. Pelo segundo, é ela conduzida para o estado social definitivo da espécie humana, o mais conveniente à sua natureza, no qual todos os meios de prosperidade devem receber seu mais completo desenvolvimento e sua aplicação mais direta. É na coexistência dessas duas tendências opostas que consiste a grande crise vivida pelas nações mais civilizadas. É sob esse duplo aspecto que a crise deve ser considerada para ser compreendida. (COMTE, 1978, p. 62) Não obstante, Comte está otimista não só com o “sistema social” atingido, já que o considera como o “estado social definitivo da espécie humana, o mais conveniente à sua natureza” (1978, p. 62), mas também com a nova ciência. Para ele, o “espírito [dela] consiste em ver, no estudo aprofundado do passado, a verdadeira explicação do presente e a manifestação geral do futuro” (1978, p. 53). A própria elaboração do nome da emergente ciência da sociedade já demonstra a conexão de Comte a sua época. Na primeira metade da década de 1820 ele a apresentou sob a expressão “Física Social”, numa clara alusão ao paradigma científico que a física representava. Em 1839 propõe o nome Sociologia, com auxílio de outros simbolismos, ou seja, o hibridismo de um termo latino (socius) com um grego (logos), o que lembra “o concurso histórico das duas fontes antigas, uma social, outra mental, da civilização moderna” (COMTE, 1978, p. 62). Acredito que devo arriscar, desde agora, este termo novo, sociologia, exatamente equivalente à minha expressão, já introduzida, de física social, a fim de poder designar por um nome único esta parte complementar da filosofia natural que se relaciona com o estudo positivo do conjunto das leis fundamentais apropriadas aos fenômenos sociais. (COMTE, 1978, pp. 61-62). O posterior desenvolvimento da Sociologia, como ramo científico de conhecimento, recebeu contribuições de diversos pensadores nascidos no século XIX, muitos deles lançando suas noções fundamentais, bases conceituais e perspectivas de 3 abordagem. Três, entretanto, destacam-se como os chamados “Clássicos”: Karl Marx, Émile Durkheim, Max Weber3. Mesmo com nuances diferenciadas em suas abordagens (como estudaremos adiante), todos, e em especial os Clássicos, enfrentaram temas concernentes ao contexto de “crise” que marca a época de emergência da Sociologia. Podemos considerar a noção de Modernidade, para esta reflexão. Época, período histórico, projeto de sociedade, a Modernidade é associada especialmente à racionalidade científica e à tecnologia industrial. Sociólogos como Zygmunt Bauman4 (1999) destacam o desejo da produção “ordem” – algo certo, seguro e previsível – como uma das suas principais características e paradoxos. Boaventura de Sousa Santos5 a analisa partindo do reconhecimento de que “é um projeto muito rico, capaz de infinitas possibilidades e, como tal, muito complexo e sujeito a desenvolvimentos contraditórios” (1991, p. 1). Mas, prossegue: Pela sua complexidade interna, pela riqueza e diversidade das idéias novas que comporta e pela maneira como procura a articulação entre elas, o projeto da modernidade é um projeto ambicioso e revolucionário. As suas possibilidades são infinitas mas, por o serem, contemplam tanto o excesso das promessas como o déficit do seu cumprimento. (1991, p. 2) Para Santos (1991), na Modernidade o desenrolar da gestão desse excesso de promessas e déficit de cumprimento das mesmas privilegiou pilares vinculados às racionalidades cognitivo-instrumentais (da ciência e da técnica) e o princípio do mercado (impulsionado por perspectivas tais como as de eficiência, lucro e relação custo-benefício), produzindo desequilíbrios e aprofundando as contradições sociais. Retornando aos Clássicos da Sociologia, podemos perceber que já eles, pioneiros da emergência e estruturação dela como ramo científico do conhecimento, dedicaram- se tanto aos temas concernentes às transições da pré-modernidade à modernidade, como aos seus possíveis, ou já constatados, desequilíbrios e contradições. 3 Karl Marx (1818 – 1883), nasceu na Prússia (atual Alemanha) e faleceu na Inglaterra. Foi filósofo e economista, além de ser considerado um dos Clássicos da Sociologia e de possuir relevante engajamento teórico e político com a perspectiva comunista. Émile Durkheim (1858 – 1917), filósofo francês. Max Weber (1864 – 1920), jurista e economista alemão. 4 Zygmunt Bauman (1925 – 2017) foi um sociólogo polonês. Residiu significativa parte de sua vida profissional na Inglaterra. 5 Boaventura de Sousa Santos (1940) é um sociólogo português. https://pt.wikipedia.org/wiki/1940 4 Karl Marx, por exemplo, realiza densa análise do modo de produção capitalista e o apresenta como responsável pela degradação e exploração da classe trabalhadora. Émile Durkheim elabora a noção de Anomia, como ausência de regras com impactos individuais e coletivos; Max Weber estuda a relação da ética protestante no desenvolvimento do capitalismo. Mas, não obstante os importantes aportes que a Sociologia e os sociólogos puderam ofertar ao curso social e às sociedades modernas, bem como os impactos positivos de tais contribuições, não é difícilverificar o quanto da perspectiva de “crise” se manteve – inclusive se redimensionando – ao longo dos dois séculos que nos separam dos primeiros escritos de Comte. No século XX duas guerras mundiais redesenharam a geopolítica mundial e as relações internacionais; a polarização entre capitalismo e socialismo foi da guerra fria à queda da cortina de ferro; explicitaram-se e se aguçaram as desigualdades entre as sociedades do Norte e do Sul global, estas (América Latina e África, por exemplo) que, como colônias, foram também por séculos exploradas; as mudanças tecnológicas revolucionaram comunicações, interligaram o mundo (globalização), mas também promoveram impactos negativos na perspectiva das expectativas de segurança no trabalho, emprego e renda; a degradação do meio-ambiente ascendeu sinais de alerta que, para além de seus efeitos na escala nacional, trata-se de questão também global. O ingresso no século XXI não trouxe alívio aos desafios, pelo contrário. Perspectivas de compromisso dos Estados Nacionais com o “Bem-Estar Social” e a cidadania plena (usufruto de direitos individuais [civis], políticos e sociais), já se vinham degradando desde a década de 1980. O Estado se fragiliza como ente de garantia da proteção social e da ordem democrática de direito. Fomentados por contextos mais intensos e locais de crises políticas e/ou econômicas, deslocamentos humanos, como fluxos migratórios, assumem proporções inéditas. Por fim, nesse princípio da década de 2020, uma pandemia testa todos os critérios civilizatórios de sociedades, países e indivíduos. Alguns podem pensar que se trata de apresentar trajetória ou cenário pessimista e fatalista. Mas a Sociologia sempre se vincula aos desafios, ao lidar com a complexidade e ao combater as ilusões e as crenças simplificadoras, que só produzem armadilhas. 5 Bauman (2001) traduziu nossa contemporaneidade como a transição de um período de Modernidade Sólida para outro, de Modernidade Líquida. A potência da metáfora é por ele apresentada: Os fluidos [líquidos] se movem facilmente. Eles “fluem”, “escorrem”, “esvaem-se”, “respingam”, “transbordam”, “vazam”, “inundam”, “borrifam”, “pingam”; são “filtrados”, “destilados”; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos – contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho. Do encontro com sólidos emergem intactos, enquanto os sólidos que encontram, se permanecem sólidos, são alterados – ficam molhados ou encharcados. A extraordinária mobilidade dos fluidos é o que os associa à ideia de “leveza”. (...)(...) Associamos “leveza” ou “ausência de peso” à mobilidade e à inconstância: sabemos pela prática que quanto mais leves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos. (2001, p. 8) A Modernidade Sólida está associada ao período no qual as sociedades, principalmente as mais desenvolvidas, conseguiram experimentar – sobretudo como decorrência dos avanços tecnológicos – níveis significativos de “Bem-Estar”, conforto, segurança e qualidade na satisfação de suas necessidades sociais, tais como emprego, renda, acesso à educação, saúde, alimentação e moradia. Tal contexto ampliou, inclusive, a confiança e a crença no projeto da Modernidade, sem que houvesse significativa percepção pública de que ele, para usarmos as palavras de Santos, era “muito complexo e sujeito a desenvolvimentos contraditórios” (1991, p. 1). Adotando-se estes parâmetros se vislumbra um fluxo otimista – mas ilusório, na interpretação aqui proposta – de reprodução contínua das “benesses” da Modernidade que se sustenta no capitalismo e na tecnologia (Figura 1). 6 FIGURA 1 - Expectativa (ilusória) de “progressão” dos “benefícios” da Modernidade Sólida Já o período da Modernidade Líquida, que tem na já mencionada década de 1980 um bom marco de sua aceleração, é favorecido também pelos avanços tecnológicos, mas estes, agora, produzem os chamados “excedentes humanos” (desempregados e/ou não consumidores), frente aos quais o Estado se retraiu como responsável e promotor da expansão da cidadania plena e do “Bem-Estar”; mantiveram-se os desejos das “benesses” da Modernidade, mas acompanhados de descrenças e frustrações, as quais reconfiguraram as relações sociais como menos solidárias e mais competitivas e individualistas. Sob a perspectiva de similares parâmetros, um novo fluxo se vislumbra (Figura 2). 7 FIGURA 2 – Expectativa “reprodução progressiva” da Modernidade Líquida Comparando-se a duas figuras (1 e 2), destaca-se uma orientação do fluxo que, agora de forma explícita, não mais prevê a inclusão social de todos e, sequer, uma assimilação igualitária, face a precarização das oportunidades sociais. Santos (2003) trata dessa contemporaneidade nos remetendo às noções de sociedades de status; sociedades de contrato; e, sociedades pós-contratuais. Nas sociedades de status, da pré-Modernidade feudal e monárquica, os indivíduos se situavam em posições diferenciadas na hierarquia social (nobres e servos, por exemplo), as quais moldavam as possibilidades de relações sociais, bem como o acesso (ou não) a privilégios. A Modernidade, entretanto, ergueu-se sob a noção do contrato social, propondo todos como iguais em dignidade e direitos. Já a perspectiva do pós-contratualismo, remete ao: (...) processo por meio do qual grupos e interesses sociais até aqui incluídos no contrato social se vêem excluídos deste sem qualquer perspectiva de regresso. Os direitos de cidadania, até agora considerados inalienáveis, são confiscados e, sem eles, os excluídos passam de cidadãos à servos. (SANTOS, 2003, p. 18) Adiante, Santos (2003, p.25) propõe que se passa a poder identificar três tipos de Sociedade Civil. Denomina-as de Sociedade Civil Íntima; Sociedade Civil Estranha; Sociedade Civil Incivil. 8 Na primeira estão indivíduos e grupos “que gozam de um nível elevado de inclusão social. (...)(...) desfrutam do leque completo de direitos. (...)(...) têm acesso a recursos estatais ou públicos muito para além do que será possível obter por qualquer política de direitos” (SANTOS, 2003, p. 25). Na Sociedade Civil Estranha “A inclusão social tem uma qualidade baixa ou moderada, da mesma forma que a exclusão é atenuada por algumas redes de segurança e não é considerada irreversível” (SANTOS, 2003, p. 25). Contudo, na Sociedade Civil Incivil – círculo exterior da representação gráfica (Figura 3) – habitam os: (...) totalmente excluídos. Socialmente, são quase por completo invisíveis. (...)(...) em rigor, os que o habitam não pertencem à sociedade civil, uma vez que são atirados para o novo estado natural. Não possuem expectativas estabilizadas, já que, na prática, não têm quaisquer direitos. (SANTOS, 2003, p. 25) FIGURA 3 – Perspectiva de Boaventura de Sousa Santos acerca da figuração pós-contratual da sociedade civil contemporânea Não se trata de uma análise e descrição reconfortante. Mas, como propôs Pierre Bourdieu6, a Sociologia é uma ciência que perturba, que “revela coisas ocultas e às vezes reprimidas, (...) (...) verdades que os tecnocratas, os epistemocratas, isto é, uma boa parte dos que lêem sociologia e dos que a financiam não gostam de ouvir” (1983, p. 17). Assim, desvelar o porquê das “crises” vivenciadas em sociedade, bem como ter instrumentos e produtos (resultados) de conhecimento científico que permitam, 6 Pierre Bourdieu (1930 – 2002) foi um sociólogo francês. 9 inclusive, o subsidiar das ações humanas, das políticas públicas e sociais necessárias ao enfrentamento dessas crises, é um dos ganhos que se espera da Sociologia. Mas o pensar sociológico aqui proposto não se volta somente aos aspectos de “crise” das sociedades. O arsenal do conhecimento da Sociologia abrange uma diversidade de temas quese vinculam tanto com os aspectos estruturais e de processos e instituições fundamentais para a vida social, como a diferentes dimensões das dinâmicas da vida em sociedade. Um panorâmico olhar no índice de temas da afamada obra “Sociologia”, de Anthony Giddens7 (2008), apresenta-nos essa amplitude: cultura; mudança social; interação social e vida quotidiana; controle social; grupos sociais; crime e desvio; raça, etnicidade e migração; classes e estratificação social; desigualdade e pobreza; as organizações modernas; trabalho e vida econômica; comunicação; educação; religião; governo e poder; o fenômeno urbano; dentre outros. E, para além da perspectiva de abordagem conhecida como Sociologia Geral, que se direciona ao estudo da sociedade em sua amplitude (ainda que por vezes sugerindo ser esta compostas por campos ou sistemas relativamente autônomos), devemos ainda pensar nas Sociologias Especializadas, caso é o caso, por exemplo, da Sociologia Jurídica, na qual os conhecimentos, categorias, noções, teorias sociológicas serão utilizadas para uma estudo mais denso e com profundidade a aspectos, dimensões ou áreas específicas do funcionamento das sociedades (no caso o fenômeno jurídico e o Direito). Por fim, é de se ressaltar que Giddens (2008, p. 5-6), acompanhando abordagens de Charles Wright Mills8, destaca que a Sociologia tem muitas implicações práticas para os que se dedicam ao pensar sociologicamente, em especial: gerar consciência de diferenças culturais, permitindo que se olhe para o mundo social a partir de muitos pontos de vista; também, que se possa avaliar resultados de iniciativas políticas; além de favorecer a autocompreensão e a capacidade de influenciar o futuro próprio e da sociedade. Ou, ainda, como registram Bauman e Tim May, pensar sociologicamente “pode nos tornar mais sensíveis e tolerantes em relação à diversidade, daí decorrendo sentidos afiados e olhos abertos para novos horizontes além das experiências imediatas, a fim de 7 Anthony Giddens (1938) é um sociólogo inglês. 8 Charles Wright Mills (1916 – 1962) foi um sociólogo americano. 10 que possamos explorar condições humanas até então relativamente invisíveis” (2010, p. 25). Referências bibliográficas: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BAUMAN, Zygmunt; MAY, Tim. Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro, 2010. BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. COMTE, Augusto. Sociologia (Coletânea organizada por Evaristo de Moraes Filho). São Paulo: Ática, 1978. GIDDENS, Anthony. Sociologia. 6 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. SANTOS, Boaventura de Sousa. A transição paradigmática: da regulação à emancipação. Coimbra: Oficinas do CES, 1991. SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 65, 2003, p. 3-76.