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UNIVERSIDADE COMUNITÁRIA DA REGIÃO DE CHAPECÓ – UNOCHAPECÓ ESCOLA DE HUMANIDADES CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO RICARDO METZ WEITZ A (IN)COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS PARA JULGAR EMPRESAS PÚBLICAS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA PRESTADORAS DE SERVIÇO PÚBLICO EM REGIME DE MONOPÓLIO CHAPECÓ 2023 2 RICARDO METZ WEITZ A (IN)COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS PARA JULGAR EMPRESAS PÚBLICAS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA PRESTADORAS DE SERVIÇO PÚBLICO EM REGIME DE MONOPÓLIO Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ), como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em Direito, sob a orientação do Prof. Me. André Alexandre Happke. CHAPECÓ 2023 3 A (IN)COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS PARA JULGAR EMPRESAS PÚBLICAS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA PRESTADORAS DE SERVIÇO PÚBLICO EM REGIME DE MONOPÓLIO RICARDO METZ WEITZ Esta monografia foi avaliada pela banca examinadora e julgada adequada para obtenção do grau de Bacharel em Direito, tendo sido aprovada em sua forma final pelo Curso de Graduação em Direito da Universidade Comunitária da Região de Chapecó. Aprovado em: __/__/_ Banca examinadora __________________________________________ Orientador: Prof. André Alexandre Happke Mestre em (sigla da Instituição de origem) __________________________________________ Membro. Prof. Dr/Me/Esp em..... (sigla da Instituição de origem) __________________________________________ Membro. Prof. Dr/Me/Esp em..... (sigla da Instituição de origem) 4 AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, agradeço a Deus pelo dom da vida e por ter me permitido chegar até aqui. Rendo-me ternamente a agradecer a meus pais, Teonila Metz e Jacinto Weitz, personificações de bondade, dignidade e honestidade, pilares de minha vida e responsáveis pelo meu trajeto pessoal e profissional. Esta e qualquer conquista futura sempre teve e sempre terá eles como corresponsáveis. Obrigado por tanto. À minha companheira, Larissa Simões, imprescindível durante o final do meu percurso acadêmico, meus maiores votos de gratidão. Minha admiração por ela cresce a cada dia. Aos grandes amigos com que o Direito me presenteou, agradeço por toda amizade e o apoio durante essa extenuante caminhada, a qual com certeza foi mais leve e gratificante por ter companheiros de jornada. À Universidade Comunitária da Região de Chapecó, seu formidável corpo docente, direção е administração, presto meus agradecimentos por todo conhecimento e dedicação prestados. Em especial, meu agradecimento ao Prof. Me. André Alexandre Happke por ter aceitado o convite de me orientar e tê-lo feito com paciência e maestria. 5 “Felizes os famintos de justiça, que nunca serão saciados” André Comte-Sponville 6 RESUMO A (IN)COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS PARA JULGAR EMPRESAS PÚBLICAS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA PRESTADORAS DE SERVIÇO PÚBLICO EM REGIME DE MONOPÓLIO. Ricardo Metz Weitz. André Alexandre Happke. ORIENTADOR. (Universidade Comunitária da Região de Chapecó – UNOCHAPECÓ). As recentes decisões do STF em reiteradas ADPF estabeleceram, de forma vinculante, que as empresas públicas e as sociedades de economia mista se submetem ao regime dos precatórios no pagamento de seus débitos oriundos de condenações judiciais. Assim, considerando o reflexo dessas decisões nos Juizados Especiais Cíveis, é necessário se debruçar sobre o tema para melhorar sua compreensão. Para tanto, cabe uma análise principalmente sobre os princípios envolvidos, e potencialmente violados, no julgamento dessas causas perante os Juizados. A linha de pesquisa se deu no campo do Direito Processual Civil e Direito Constitucional. A metodologia adotada se baseou na pesquisa bibliográfica e documental, a fim de construir uma base teórica a respeito do tema de modo a compreendê-lo melhor. Com base nesse estudo é possível identificar as possíveis violações principiológicas ocorridas nos julgamentos das causas em questão nos Juizados e suas consequências, bem como iniciar a identificação de possíveis soluções para não desvirtuar o sistema e continuar dando respostas jurídicas satisfatórias aos jurisdicionados. Palavras-chave: Juizado Especial Cível. Acesso à Justiça. Competência. Requisitórios. Precatórios; 7 ABSTRACT A (IN)COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS PARA JULGAR EMPRESAS PÚBLICAS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA PRESTADORAS DE SERVIÇO PÚBLICO EM REGIME DE MONOPÓLIO. Ricardo Metz Weitz. André Alexandre Happke. ORIENTADOR. (Universidade Comunitária da Região de Chapecó – UNOCHAPECÓ). The recent decisions of the STF in repeated ADPF established, in a binding manner, that public companies and government-controlled companies are subject to the precatorios regime in the payment of their debts arising from judicial convictions. Thus, considering the reflection of these decisions in the Special Civil Courts, it is necessary to look into the subject to improve its understanding. To this end, it is important to analyze mainly the principles involved, and potentially violated, in the judgment of these cases before the Courts. The line of research took place in the field of Civil Procedural Law and Constitutional Law. The methodology adopted was in the bibliographical and documentary research, in order to build a theoretical basis on the subject in order to better understand it. Based on this study, it is possible to identify the possible violations of principles that occurred in the judgments of the causes in question in the Courts and their consequences, as well as to start identifying possible solutions to not distort the system and continue to provide satisfactory legal responses to those under jurisdiction. Keywords: Special Civil Court. Access to Justice. Competence. Precatorios. 8 LISTA DE ABREVIATURAS JEC – Juizado Especial Cível FPPC - Fórum Permanente de Processualistas Civis ADPF - Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental RPV - Requisição de Pequeno Valor Art. - artigo Min. - Ministro(a) 9 LISTA DE SIGLAS CRFB - Constituição Federal CDC - Código de Processo Civil STJ - Supremo Tribunal de Justiça STF - Supremo Tribunal Federal FONAJE – Forúm Nacional dos Juizados Especiais 10 SUMÁRIO 1.INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 12 1.1 OBJETIVOS ................................................................................................................... 12 1.1.1 Objetivo geral ............................................................................................................... 13 1.1.2 Objetivos específicos ..................................................................................................... 13 1.2 JUSTIFICATIVA............................................................................................................ 13 2 A GÊNESE DOS JUIZADOS ESPECIAIS ........................................................................ 15 2.1 ORIGEM HISTÓRICA ..................................................................................................... 15 2.2 PRINCÍPIOS DOS JUIZADOS ESPECIAIS ........................................................................ 21 2.2.1 O supraprincípio do acesso à justiça .............................................................................. 23 2.2.2 Princípio da celeridade .................................................................................................característica decisória, visto que é só o cumprimento da determinação judicial feito após o trânsito em julgado da ação que o originou. Os precatórios recebidos serão organizados em lista cronológica, contadas da ordem de recebimento pelo Poder Executivo da comunicação realizada pelo Judiciário. Na sequência, o Executivo organiza duas listas, uma de precatórios comuns e outra de precatórios alimentícios. Cabe notar que o instituto é de observância obrigatória nos casos em que se aplica. Isso devido a previsão de um modelo constitucional de organização orçamentária e atuarial. 3.3 INADIMPLEMENTO 36 Os precatórios são dívidas do Estado e, como tal, devem ser considerados como fatores importantes no planejamento econômico, na estabilidade financeira e na sensação de segurança jurídica do país. Infelizmente, na realidade, a expedição do precatório não garante ao credor o recebimento. O mais frequente motivo do não pagamento é a falta de dotação orçamentária suficiente. Porém, o descumprimento também pode se dar pela não inclusão do débito no orçamento e por desrespeito à ordem cronológica de pagamento. Em todas as hipóteses, viola- se o sistema posto e se torna passível de sofrer sanção o ente que boicotou o pagamento do débito. A falta de efetividade dos pagamentos de débitos fazendários já é tema conhecido de longo tempo no Brasil. A questão já chegou até mesmo a ser apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, a qual concluiu que o ordenamento jurídico brasileiro não tem procedimentos adequados para cumprimento dos débitos devidos pelo Estado (2012). Com a Lei de Responsabilidade Fiscal, buscou-se aumentar a segurança jurídica trazendo medidas que buscam obrigar a Administração Pública a realizar o pagamento dos seus débitos. Com isso, os débitos que não forem quitados durante a execução orçamentária correta podem vir a ser caracterizados como dívidas fundadas, o qual traz sérias consequências em caso de inadimplemento, como, por exemplo, a perda da capacidade de contração de novas dívidas pelo ente público. As sanções previstas ao ente que não incluir o valor no orçamento do ano subsequente ou quando incluído e não pago estão previstas nos arts. 34, inciso VI, e 35, inciso IV, da nossa Constituição, os quais autorizam a intervenção federal ou estadual, conforme for o ente devedor. Assim, nesses casos, via de regra não há de se falar em outras medidas coercitivas ou expropriatórias. Já quando houver violação da ordem cronológica de pagamento ou não dotação orçamentária, a CRFB autoriza, como medida excepcionalíssima, o Presidente do Tribunal autorizar o imediato sequestro do montante necessário para adimplir o débito, nos termos art. 100, §6º, não sendo necessária a participação do Ministério Público, salvo nos casos previstos no art. 129 da Carta Magna. O sistema, eficaz na teoria e previsto para garantir a moralidade nos pagamentos que regula, mostra-se corroído por inúmeros problemas. Na prática, graças a lentidão no efetivo pagamento e a falta de responsabilidade dos gestores públicos, a sociedade vê com descredibilidade o instituto do precatório. No senso 37 comum, essa forma de pagamento serve apenas para protelar o pagamento dos débitos fazendários. Mais grave ainda é o fato de que o inadimplemento, causado na grande maioria das vezes pelo Poder Executivo, induz ao descrédito do próprio Judiciário, que ao cidadão comum aparenta ser conivente ou, no mínimo, impotente perante o Poder Público. Não há como negar que, ao ignorar condenações e promover o acúmulo de precatórios ano após ano, a conduta da Administração se reveste de total imoralidade, inaceitável no estado democrático de direito em que vivemos (THEODORO JÚNIOR, 2005, p. 66). É cediço que o sistema de precatórios enfrenta diversos problemas de difícil contorno. Assim, a prática administrativa coloca o credor do precatório em grande desvantagem perante a Fazenda Pública. Isso porque, não raras vezes, a autoridade fazendária não segue os preceitos constitucionais, deixando perpassar os prazos de pagamento sem maiores consequências. Nesses casos, está prevista na Constituição a necessidade de intervenção federal em Estados e Municípios, ou, quando o desrespeito aos pagamentos provém da própria União, o impeachment do Presidente da República. Porém, na prática há dezenas de pedidos não atendidos de intervenção federal sem que nada aconteça. Há estados da federação com grandes atrasos, como exemplo o Ceará, em que há precatórios não pagos de 20 anos atrás. (MELLO, 2005). Assim, faz-se necessária a criação de medidas que corrijam esses problemas de modo a elevar o crédito da Administração Pública como um todo. Ainda mais urgente é devolver a confiança ao cidadão em relação ao Judiciário nos casos contra a Fazenda Pública, visto que na prática o jurisdicionado frequentemente leva anos para ter o trânsito em julgado do processo e mesmo com ele ainda pode levar mais muitos anos para ter seu crédito solvido. 3.4 REQUISIÇÃO DE PEQUENO VALOR Os requisitórios de menor valor monetário são as Requisições de Pequeno Valor (RPV). Foram criadas pela Emenda Constitucional n. 20, de 15 de dezembro de 1998. A quantia que as definem é definida por lei e o sistema de pagamento é substancialmente diferente daquele do precatório. Ainda referente aos pagamentos devidos pela Fazenda Pública, a Constituição determina que: O disposto no caput deste artigo relativamente à expedição de precatórios não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em leis como de pequeno valor que as 38 Fazendas referidas devam fazer em virtude de sentença judicial transitada em julgado. (Redação da EC nº 62, de 09.12.2009). (BRASIL, 1988, Art. 100, §3º). No parágrafo seguinte do mesmo art. a própria Constituição assegura a possibilidade de a Requisição de Pequeno valor ser valorada de forma diferente a depender de cada ente da federação. § 4º Para os fins do disposto no § 3º, poderão ser fixados, por leis próprias, valores distintos às entidades de direito público, segundo as diferentes capacidades econômicas, sendo o mínimo igual ao valor do maior benefício do regime geral de previdência social. (Redação da EC nº 62, de 09.12.2009). (BRASIL, 1988, Art. 100, §4º). Com fim de regulamentar a RPV, a Lei n. 10.259, que dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, define que: Tratando-se de obrigação de pagar quantia certa, após o trânsito em julgado da decisão, o pagamento será efetuado no prazo de sessenta dias, contados da entrega da requisição, por ordem do Juiz, à autoridade citada para a causa, na agência mais próxima da Caixa Econômica Federal ou do Banco do Brasil, independentemente de precatório. (BRASIL, 2001, Art. 17, §1º). E ainda: Para os efeitos do §3º do art. 100 da Constituição Federal, as obrigações ali definidas como de pequeno valor, a serem pagas independentemente de precatório, terão como limite o mesmo valor estabelecido nesta Lei para a competência do Juizado Especial Federal Cível (art. 3o , caput). (BRASIL, 2001). Quanto ao valor da RPV, após a Emenda Constitucional n. 30, de 13 de setembro de 2000, passou a caber a cada ente da federação dispor sobre o limite considerado como de pequeno valor para que haja dispensa do precatório, de acordo com a respectiva capacidade econômica, porém sempre respeitando o limite mínimo que é representado pelo valor do maior benefício do regime geral de previdência social. Enquanto não criada a respectiva lei para tanto, o valor deverá ser regido pelo art. 87 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (incorporado pela Emenda Constitucional nº 37/2002), que dispõe o limite de quarenta salários mínimos em face das Fazendas dos Estados e do Distrito Federal e trintasalários mínimos em face das Fazendas Municipais. (SOBRINHO, 2008, p. 234). A ideia de deixar a cargo de cada ente a fixação do valor do RPV se baseia nos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, além de respeitar a autonomia constitucional dos Estados, Distrito Federal e Municípios. 39 A Lei 10.259 de 12 de julho de 2001 criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Federal e fixou o valor da RPV no âmbito federal em sessenta salários-mínimos. Em síntese, o procedimento de pagamento se dá com a entrega da requisição pelo juiz à autoridade responsável, a qual deve efetuar o pagamento em sessenta dias. Após esse prazo, pode-se determinar o sequestro dos valores, mesmo nos simples casos de inadimplemento, ao contrário do que ocorre no precatório. Tanto a Lei 10.259/01, dos Juizados Especiais Federais, como Lei 12.153/09, dos Juizados Fazendários dos Estados e Distrito Federal, preveem sessenta dias para pagamento, iniciando por ordem do juiz de primeiro grau a partir da entrega da requisição. Na prática, tanto o precatório quanto a RPV são sistemas morosos, todavia este é significativamente menos que aquele. Em relação à morosidade do sistema de precatórios, disserta brilhantemente Arnaldo Esteves Lima (2008, sem p.): [...] Como sabemos, é uma constante a busca de soluções, as mais prontas e efetivas, nas resoluções dos conflitos judiciais. É a permanente luta contra a morosidade, mal maior, talvez, da prestação jurisdicional, de difícil superação. Assim, sempre que possível – sem violar as normas de regência e muito menos os princípios jurídicos –, mas, ao contrário, atribuindo-lhes racional inteligência, devemos buscar soluções que se harmonizem com tal propósito, em favor do próprio interesse público, da cidadania, destinatária final e única, a rigor, dos serviços públicos, inclusive daqueles, como cediço, prestados pelo Judiciário. (MS 12406/DF, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 09/04/2008, DJe 17/10/2008). A grande vantagem do pagamento por RPV é que, por óbvio, este não entrará na fila cronológica do precatório. Todavia, haverá uma lista cronológica própria para esses diminutos pagamentos, de forma a não desrespeitar o princípio da isonomia. No que se refere à inclusão no orçamento, a RPV também apresenta uma vantagem, visto que nesse sistema é incluído na lei orçamentária uma projeção do valor que será pago, enquanto no sistema do precatório o valor a ser incluído é aquele que representa o montante de precatórios previsto para pagamento no momento da elaboração do orçamento. 3.5 AS ENTIDADES QUE PAGAM POR REQUISITÓRIOS Como já visto, o art. 100 da CRFB estabelece que serão pagos por requisitórios os débitos fazendários federais, estaduais, distritais e municipais, em virtude de sentença condenatória. Contudo, o conceito de Fazenda Pública passa longe de ser unânime na doutrina. Para parte dos estudiosos do Direito, somente será considerado Fazenda Pública os entes políticos, ou seja, as pessoas jurídicas de direito público interno. Para a doutrina majoritária, se 40 incluem no conceito, além dos entes políticos, as autarquias, fundações públicas e outras entidades estatais que sejam caracterizadas como de direito público (THEODORO, 2005, p. 46). Historicamente, o entendimento foi construído tendo em conta que as pessoas jurídicas de direito privado, mais especificamente as Empresas Públicas e as Sociedades de Economia Mista, não se submetiam ao regime dos requisitórios. Contudo, parte da doutrina sempre entendeu que as estatais de direito privado somente não se encaixariam no sistema de precatório quando exploradoras de atividade econômica. Nesse ínterim, cabe explicitar que há duas espécies de Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista, ambas pessoas jurídicas de direito privado. Uma delas abrange as prestadoras de serviços públicos, as quais atuam, via de regra, em regime de monopólio ou não concorrencial. As outras, são as que exercem atividades econômicas, as quais é vedado ter qualquer benefício não estendido às outras empresas do setor privado. Sobre as espécies de empresas públicas e sociedades de economia mista, Celso Antônio Bandeira de Mello (2013, p. 203) ensina que o regime jurídico a que estão submetidas vai depender da atividade desenvolvida, diferenciando-se conforme a entidade seja prestadora de serviço público ou exploradora de atividade econômica. Neste caso o regime jurídico deve ser o mais idêntico possível àquele aplicado às pessoas jurídicas de direito privado, a fim de impedir o indevido beneficiamento em relação às empresas privadas. Tal regra está positivada no art. 173, parágrafo 1º, inciso II, da CRFB. No entanto, para as empresas que prestam serviços públicos ou desenvolvem atividades de caráter público o regramento a ser observado deve ser ajustado conforme preceitua o direito público. 3.6 A MUDANÇA DE ENTENDIMENTO SOBRE A APLICAÇÃO DOS REQUISITÓRIOS ÀS EMPRESAS PÚBLICAS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA A discussão que ganhou forma recentemente é a possibilidade de as Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista prestadoras de serviços públicos estarem submetidas ao regime do precatório. Em primeira análise, parece que, ao submeter esses entes à mesma forma de pagamento da Fazenda Pública, estar-se-ia indo contra o que reza a Constituição da República em seu art. 100, §5º, o qual estabelece a obrigatoriedade de entidades de direito público incluírem verbas no orçamento para pagamento de seus débitos (BRASIL, 1988, art. 100, §5º). 41 Ademais, em relação a esses entes, integrantes Administração Indireta de direito privado, a Carta Magna estabelece que estes se submeterão ao mesmo regime jurídico das empresas privadas no tocante às obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributárias, não estando desta forma submetidas ao regime dos requisitórios. (BRASIL, 1988, art. 173, §1º, II). Assim, a entidade possuir o capital majoritariamente ou integralmente público, em que pese seus bens serem classificados como bens públicos, não faz diferença para a questão aqui debatida. O que faz diferença é o caso de o ente estatal se encaixar no conceito de prestador de serviço público. Esse conceito também não é unânime na doutrina e, portanto, considera-se serviço público aquilo que a lei define como sendo. Maria Sylvia Di Pietro (2006, p. 116/119) ensina que no Brasil a crise no entendimento de “serviço público” é mitigada pela CRFB, que elenca quais são as atividades prestadas exclusivamente pelo Estado. No entanto, a autora também ressalta a importância de, em todo caso, haver enquadramento legal da referida atividade à prestação estatal. O STF lentamente construiu o entendimento de que são submetidos à aplicação dos requisitórios os entes estatais de direito privado prestadores de serviço público em regime de monopólio, ou seja, quando a sociedade empresária presta serviço sem concorrência direta, como é o caso da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos no que diz respeito ao serviço de entrega de correspondências. Nesse sentido cabe analisar o julgamento do RE n. 220.906-9/DF, relatado pelo Min. Maurício Corrêa (2000, sem p,): RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS. IMPENHORABILIDADE DE SEUS BENS, RENDAS E SERVIÇOS. RECEPÇÃO DO ARTIGO 12 DO DECRETO-LEI Nº 509/69. EXECUÇÃO.OBSERVÂNCIA DO REGIME DE PRECATÓRIO. APLICAÇÃO DO ARTIGO 100 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. À empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, pessoa jurídica equiparada à Fazenda Pública, é aplicável o privilégio da impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços. Recepção do artigo 12 do Decreto-lei nº 509/69 e não-incidência da restrição contida no artigo 173, § 1º, da Constituição Federal, que submete a empresa pública, a Sociedade de Economia Mista e outras entidadesque explorem atividade econômica ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias. 2. Empresa pública que não exerce atividade econômica e presta serviço público da competência da União Federal e por ela mantido. Execução. Observância ao regime de precatório, sob pena de vulneração do disposto no artigo 100 da Constituição Federal. Recurso extraordinário conhecido e provido. (grifo nosso). Ao analisar outros casos semelhantes, a jurisprudência da Corte Superior consolidou o entendimento de que as Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista prestadoras de 42 serviço público sujeitar-se-ão ao regime dos requisitórios, ressaltando que não pode norma infralegal limitar, criando restrições ou condições, o disposto na CRFB. Porém, nos casos em que a estatal presta atividade econômica de livre concorrência objetivando lucro, como, via de regra, é o caso das Sociedades de Economia Mista, não se pode utilizar o regime de precatório. Nesse sentido, destaca-se o entendimento firmado, em sede de repercussão geral, no julgamento do RE n.º 599.628/DF, em que se discutia se as Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A – Eletronorte, Sociedade de Economia Mista, poderiam pagar seus débitos por precatórios: FINANCEIRO. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. PAGAMENTO DE VALORES POR FORÇA DE DECISÃO JUDICIAL. INAPLICABILIDADE DO REGIME DE PRECATÓRIO. ART. 100 DA CONSTITUIÇÃO. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. MATÉRIA CONSTITUCIONAL CUJA REPERCUSSÃO GERAL FOI RECONHECIDA. Os privilégios da Fazenda Pública são inextensíveis às Sociedades de Economia Mista que executam atividades em regime de concorrência ou que tenham como objetivo distribuir lucros aos seus acionistas. Portanto, a empresa Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. - Eletronorte não pode se beneficiar do sistema de pagamento por precatório de dívidas decorrentes de decisões judiciais (art. 100 da Constituição). Recurso extraordinário ao qual se nega provimento.” (RE 599628, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 25/05/2011, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-199 DIVULG 14-10-2011 PUBLIC 17- 10-2011 EMENT VOL-02608-01 PP-00156 RTJ VOL-00223-01 PP-00602) No entanto, em que pese o Supremo ter inúmeros julgados no sentido de ser necessário a submissão dessas entidades ao regime dos requisitórios, via-se frequentemente o Judiciário, através das instâncias iniciais, bloqueando suas contas e até, com menor frequência, penhorando seus bens. Tal conduta evidencia uma quebra da segurança jurídica pátria, além de violação do princípio da continuidade dos serviços públicos. Ademais, se o ente da administração indireta presta o serviço público em regime não concorrencial, não há de se falar em desequilíbrio do mercado devido à expedição de requisitórios para o pagamento das dívidas. Isso porque o cumprimento das atividades essencialmente públicas deve ser feito de acordo com o modo de organização orçamentária das finanças públicas previsto na Carta Magna (Carmen Lúcia, ADPF 556) A Constituição veda, em seu art. 167, qualquer “transposição, remanejamento ou transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro sem prévia autorização legislativa". Nesse mesmo sentido leciona José Afonso da Silva (2014, p. 712): TRANSPOSIÇÃO. REMANEJAMENTO E TRANSFERÊNCIA DE RECURSOS. São formas de movimentação de recursos orçamentários, que o Poder Executivo pode 43 efetuar, desde que tenha para tanto autorização legislativa. A Constituição anterior vedava apenas a transposição, sem prévia autorização legal, de recursos de uma dotação orçamentária para outra. O inciso VI do art. 167 é mais rigoroso, porque abrange todos os tipos de movimentação de recursos orçamentários, e não apenas de uma dotação para outra, mas de uma categoria de programação para outra, assim como de um órgão para outro. É mais técnico falar em categoria de programação já que se trata de orçamento- programa. As categorias de programação distribuem-se em dois grandes níveis de programas: (a) programas de funcionamento, destinados à manutenção e conservação dos serviços públicos existentes e vinculados à classificação das receitas e despesas correntes, que caracteriza aquilo que a Constituição de 1967 chamava de orçamento corrente (art. 65) e compreende as seguintes categorias de programas: programas, subprogramas, atividades, tarefas. (b) programas de investimento, destinados à formação do capital e, pois, ao desenvolvimento econômico, vinculando-se com a classificação da receita e despesas de capital, que constitui o chamado orçamento de capital, cujas categorias de programação são: programas, subprogramas, projetos, obras e trabalhos. Os três termos não são sinônimos, mas, no contexto, sua diferença de sentido é pequena: “De rigor [observa Ives Gandra Martins], as três formas se assemelham. Tanto a transposição como o remanejamento e a transferência são formas de retirar recursos de uma programação e passá-los para outra, o que representaria, se permitido fosse, uma real forma de burlar a lei orçamentária”. Pois foi para evitar burla que se tornou necessário o emprego dos três termos, porque, quando se usava apenas transposição, praticava-se outra daquelas formas de movimentação, com o que se frustrava a vedação. A transferência pelo seu sentido literal se aplica especialmente à retirada de recursos de um órgão para a administração de outro; já o remanejamento está mais próximo do ato de recompor os recursos de uma categoria de programa ou de um órgão; enquanto a transposição para troca de recursos, anula uma dotação de algum programa ou órgão com o fito de transportá- la para outro”. Assim, infere-se que as decisões judiciais que determinam a constrição de bens das prestadoras de serviços públicos violam a separação dos Poderes, prevista no art. 2º da Carta Magna, bem como o seu art. 167, inciso IV, visto que através delas se modificou a serventia dos recursos fazendários sem prévia autorização legislativa. Consoante o STF ia firmando entendimento sobre o tema, inúmeras ADPFs eram protocoladas pelas empresas públicas e sociedades de economia mista que tinham intenção de quitar seus débitos em regime de requisitórios. A Min. Carmen Lúcia defende o cabimento da ação de controle concentrado devido à ausência de qualquer outro meio processual adequado para deslindar a questão de forma absoluta (ADPF 556, Cármen Lúcia). No mesmo sentido, o Min. Gilmar Mendes enfatizou que é cabível a ADPF quando houver aplicação direta da Carta Magna e a suposta violação decorre de decisão judicial que não se resume à aplicação de lei ou ato normativo. A possibilidade da referida ação concentrada se dá pela necessidade de resolver de modo definitivo e vinculante demandas repetitivas sobre temas constitucionais. Os princípios orçamentários do sistema financeiro possuem incontestável qualidade de preceito fundamental, indispensáveis para a continuação da harmonia entre os Poderes da República. O instituto do precatório, sintetizado pelo autor como 44 um “mecanismo de racionalização dos pagamentos das obrigações estatais oriundos de sentenças judiciais”, de modo congênere, também deve ser catalogado como preceito fundamental, o que per si justifica o uso da ADPF quando houver violações em sua aplicação prática. (ADPF 387, Gilmar Mendes). Porém, como voz contrária cabe citar Marco Aurélio de Mello, o qual considera indevida a perseguição da questão através da ADPF, defendendo que existem outros meios eficazes de debater a questão e, portanto, desrespeita-se a subsidiariedade prevista na lei da ação constitucional (ADPF 556, Marco Aurélio de Mello). O cabimento da referida ação constitucional foi aceito pela maioria dos membros daquele Tribunal Superior nasvárias ações conhecidas e julgadas, conforme demonstra-se em sequência. O Governador do Estado do Piauí propôs a ADPF 387 buscando inicialmente a suspensão de todas as decisões judiciais em processos de cobrança de verbas trabalhistas contra a Empresa de Gestão de Recursos do Estado do Piauí (S/A EMGERPI) que determinaram a constrição de valores oriundos da conta única do Estado do Piauí. Sustentou o proponente que as decisões tomadas pela Justiça do Trabalho violam princípios fundamentais da execução orçamentária previstos no art. 167 da CRFB, e a separação dos Poderes. Isso porque os bloqueios desvirtuam a vontade do legislador no tocante ao destino das verbas. Em 11 de abril de 2016, o Min. Gilmar Mendes, em decisão monocrática, determinou, liminarmente, a suspensão de todos os processos em que houve bloqueios na conta única do Estado do Piauí proferidos pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 22ª Região para pagamento de verbas trabalhistas da S/A EMGERPI. Segundo o relator, os bloqueios violam o art. 167, VI, da CRFB, previsão legal de suma importância para manutenção da segurança orçamentária do Estado. Além de que, as políticas públicas podem sofrer descontinuidades se não houver possibilidade de seguir o planejamento adequado pelo gestor público. Terminou a argumentação rechaçando a possibilidade de desvirtuar plano volitivo do legislador e avultando a necessidade de observância dos princípios constitucionais do sistema financeiro e orçamentário, de modo a não ocorrer a violação da harmonia entre os Poderes. A decisão foi referendada pelo Pleno em março de 2017, ficando decidida a inconstitucionalidade dos bloqueios devido ao fato de que à EMGERPI se aplica o instituto dos requisitórios. Julgamento semelhante se observa na ADPF 513, em que o Governador do Estado do Maranhão propôs contra decisões judiciais da justiça estadual, federal e trabalhista que negaram a aplicação do instituto dos precatórios para pagamento dos débitos da Companhia de Saneamento Ambiental do Maranhão - CAEMA, sociedade de economia mista que integrante 45 da Administração Pública Indireta do Estado do Maranhão. A relatora da ação, Min. Rosa Weber, destacou que as decisões dos tribunais a quo, ao negarem a aplicação dos precatórios à CAEMA, desvirtuam sobretudo o direito social à saúde, tão caro para a CRFB. O princípio da continuidade dos serviços públicos também fica comprometido com a possível falta de recursos disponíveis. Por ser integrante da Administração Indireta e prestadora de serviço público essencial, de forma não concorrencial sem intento de lucro, decidiu-se que a CAEMA se distingue da regra geral de que às sociedades de economia mista e empresas pública aplicar-se- á o mesmo regime das empresas privadas, previsto no art. 173, §1º, II, da CRFB. Caso contrário, estar-se-ia violando a previsão do art. 100 da Lei Maior acerca dos débitos fazendários. Posteriormente, na ADPF 556, a Min. Carmen Lúcia decidiu pela suspensão das decisões judiciais em que se determinou a penhora de valores e a submissão ao regime de precatórios nos pagamentos da Companhia de Água e Esgoto do Rio Grande do Norte - CAERN, sociedade de economia mista daquele estado. O plenário do Supremo referendou a decisão da relatora, firmando o entendimento de que, em não havendo sujeição ao regime de concorrência e aferição de lucros, deveriam as referidas empresas pagar seus débitos por requisitórios. Todavia, em sentido contrário, o Min. Marco Aurélio Mello firmou voto no sentido de que não haveria como se observar os preceitos de Direito Público, aplicados à Fazenda, nos litígios envolvendo pessoas jurídicas de direito privado, concluindo pela inaplicabilidade da aplicação do instituto dos requisitórios a esses entes. Também no julgamento da ADPF 530, relatada pelo Min. Edson Fachin, o Supremo decidiu de forma análoga, sustentando que “empresa pública que atua na ordem econômica prestando serviços públicos próprios do Estado, sem intuito de lucratividade ou caráter concorrencial, equipara-se ao conceito de Fazenda Pública e demais entidades de direito público com assento no art. 100 da Constituição da República" (ADPF 530 MC-Ref, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 08/09/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe- 289 DIVULG 09-12-2020 PUBLIC 10-12-2020). Exalta-se a brilhante explanação do Min. Joaquim Barbosa, em decisão monocrática proferida na ADPF 114, ao elucidar que os ditames previstos no art. 167 da CRFB por si só não poderiam ser considerados um preceito fundamental merecedor de arrimo via ADPF. Porém, seu desvirtuamento, ocasionado pelas decisões que abalam a harmonia entre os Poderes ao bloquear verbas de entes com prerrogativas fazendárias, impede a concretização de outras garantias constitucionais. Isso pois a análise necessita se dar em conjunto com os princípios da eficiência da administração pública e da continuidade dos serviços públicos, bem como da devida repartição tributária entre os entes federados. 46 Ressalta-se que, além das paradigmáticas ações supracitadas, há outras ações de controle concentrado decididas de modo análogo, bem como abastada jurisprudência da Corte Suprema em casos de controle difuso. Em síntese, as decisões que inadmitem o pagamento dos entes em questão através de requisitórios configuram violação aos arts. 2º; 84, inciso II; 100, caput e parágrafos; e 167, incisos VI e X; todos da CRFB. De todas as desconformidades citadas, talvez a mais grave seja a quebra da harmonia entre os Poderes causada pela ingerência do Poder Judiciário sobre o orçamento público e sobre a designação das políticas públicas prioritárias, funções realizadas pelos Poderes Legislativo e Executivo, respectivamente. Além do mais, o precatório tem a importante função de propiciar a isonomia nos pagamentos fazendários, sem conferir vantagem a qualquer credor ou classe de credores, o que não é possível se alcançar se houver constantes violações do instituto. No estado de Santa Catarina, há duas grandes sociedades de economia mista que passam, em tese, a se beneficiar dos julgamentos dos STF ao poder adimplir seus débitos através dos precatórios. Uma delas é a Companhia Catarinense de Águas e Saneamento - CASAN, e a outra é a Centrais Elétricas de Santa Catarina - CELESC. Como aos Tribunais dos Estados não restou outra alternativa senão adequar-se ao entendimento vinculante do Supremo, já se vislumbra, em ações envolvendo CASAN e CELESC, no Tribunal de Justiça Catarinense, decisões respaldando o entendimento firmado pela Corte Suprema, conforme se denota nos julgados abaixo: AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. CASAN. PRETENSÃO DE SUBMETER A EXECUÇÃO AO REGIME DE PRECATÓRIOS. PERTINÊNCIA. EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO EM REGIME NÃO CONCORRENCIAL. ENQUADRAMENTO AOS PRECEITOS ESTIPULADOS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PRECEDENTES. "1. Embora, em regra, as empresas estatais estejam submetidas ao regime das pessoas jurídicas de direito privado, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que "entidade que presta serviços públicos essenciais de saneamento básico, sem que tenha ficado demonstrado nos autos se tratar de Sociedade de Economia Mista ou empresa pública que competiria com pessoas jurídicas privadas ou que teria por objetivo primordial acumular patrimônio e distribuir lucros. Nessa hipótese, aplica-se o regime de precatórios" (RE 592.004, Rel. Min. Joaquim Barbosa). 2. É aplicável às companhias estaduais de saneamento básico o regime de pagamento por precatório (art. 100 da Constituição), nas hipóteses em que o capital social seja majoritariamente público e o serviço seja prestado em regime de exclusividade e sem intuito de lucro. 3. Provimento do agravo regimental e do recurso extraordinário". (RE 627242 AgR, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/Acórdão: ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 02/05/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-110 DIVULG 24-05-2017 PUBLIC 25-05-2017) (TJSC, Agravo de Instrumento n. 5035441-16.2020.8.24.0000, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Sônia Maria Schmitz, Quarta Câmara de Direito Público, j. 11- 03-2021). 47 E: APELAÇÃO CÍVEL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA CONTRA A CELESC. SENTENÇA DE EXTINÇÃO, COM FULCRO NO ARTIGO 924, INCISO II, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. INSURGÊNCIA DA EXECUTADA. EXCLUSÃO DOS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS A QUE FOI CONDENADA E CONDENAÇÃO DO EXEQUENTE AO PAGAMENTO DA VERBA, ANTE O ACOLHIMENTO DA IMPUGNAÇÃO APRESENTADA E O ADIMPLEMENTO DO DÉBITO, DENTRO DO PRAZO ESTIPULADO NO ART. 523 DO CPC/15. ACOLHIMENTO, COM FUNDAMENTAÇÃO PARCIALMENTE DIVERSA. EXECUTADA QUE É SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA, PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL. DÉBITO SUJEITO AO REGIME DE PRECATÓRIO. ART. 100 DA CF/88. ENTENDIMENTO FIRMADO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, NO JULGAMENTO DA ADPF N. 556/RN. INCIDÊNCIA DA REGRA PREVISTA NO ARTIGO 85, § 7º, DO CÓDIGO DE RITOS. CONCORDÂNCIA DA CREDORA, COM RELAÇÃO À IMPUGNAÇÃO APRESENTADA. VERBA HONORÁRIA INDEVIDA PELA EXECUTADA. PRECEDENTES DESTA CORTE. CONDENAÇÃO DA EXEQUENTE, POR OUTRO LADO, AO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS, PELO ACOLHIMENTO DA IMPUGNAÇÃO. ENTENDIMENTO FIRMADO NO JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL N. 1.134.186, PELO STJ (TEMA 410). DECISUM REFORMADO NO PONTO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJSC, Apelação n. 5008582-88.2020.8.24.0023, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Bettina Maria Maresch de Moura, Terceira Câmara de Direito Público, j. 17-05- 2022). Desta forma, em resumo, para que o precatório seja aplicado às Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista estas devem prestar serviço público próprio do Estado, não podem prestar atividade econômica em regime de concorrência, devem ser controladas pelo Estado ou dependente dele e eventuais lucros devem ser predominantemente direcionados à própria atividade estatal e não à remuneração do acionista particular. 48 4 ELEMENTOS TEÓRICOS E PRÁTICOS DO PROCESSO NO JUIZADO CÍVEL COM RÉS QUE PRESTAM SERVIÇO PÚBLICO EM REGIME DE MONOPÓLIO Assim, considerando o contexto peculiar que envolve o Sistema de Juizados, cabe discorrer acerca dos elementos que evidenciam a necessidade de melhor análise da competência dos Juizados nas causas passíveis de expedição de requisitórios. 4.1 DO EXCESSO DE COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS Na exposição de motivos da Lei 7.244/84 foi positivado que a criação dos Juizados de Pequenas Causas visava o julgamento de lides propostas por pessoas físicas. Ao analisar o histórico dos Juizados, infere-se de forma cristalina que o legislador, no momento da criação, pensou num modelo de justiça deveras mais simples do que aquele que existe hoje. Nos primórdios do funcionamento dos Juizados o sucesso era tanto que a regra era a conciliação e os processos com instrução eram as exceções. O procedimento foi criado para ser oral, célere, informal e simples. A eficiência do sistema serviu para destrinchar grandes massas de litígios contidos. O prestígio e o sucesso que os Juizados obtiveram no início resultaram na deturpação do sistema. O objetivo inicial de julgar causas de pessoas físicas, mormente daquelas hipossuficientes, que não tinham meios de buscar a justiça comum, em parte, perdeu-se. Isso porque cada vez mais o Congresso Nacional aumentou, através de lei, a competência dos Juizados Especiais Cíveis. Iniciou com a Lei 9.841/99, a qual tirou a exclusividade de pessoas físicas proporem ações nos Juizados ao proporcionar às microempresas a possibilidade de também atuar no polo ativo. Após, veio a Lei Complementar 123/06, estendendo a possibilidade de judicar no polo ativo também às empresas de pequeno porte. Por fim, veio a Lei 12.126/09 passando a admitir a autoria pelas Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público e pelas Sociedades de Crédito ao Microempreendedor. Esse conjunto de leis transformou os Juizados em “balcões de cobrança” estatais dessas empresas, várias delas com vultosa capacidade econômica, às quais passaram a se valer de um requintado aparato estatal para cobrar seus débitos, via de regra sem desembolsar nenhum valor econômico. Nesse sentido, cita-se como forma de exemplo o já inexistente “Juizado das Microempresas da Capital” no Mato Grosso do Sul, no qual a organização se dava pelo nome das empresas autoras, ou seja, tinha-se, em termos práticos, um departamento de cobrança (LETTERIELLO, 2011, sem p.). O grave erro cometido foi, com o passar do tempo, ter aumentado a competência dos Juizados. Conforme estes iam colhendo excelentes desempenhos, os tribunais, a população e os 49 políticos quiseram que mais processos fossem para os Juizados, o que fez com que surgisse neles o mesmo problema de congestionamento já enfrentado na justiça comum. E, lamentavelmente, há ainda hoje propostas de se aumentar mais ainda a competência, o que expurga a ideia de funcionamento de uma justiça informal, célere e efetiva, características fundamentais na ideia dos Juizados Especiais Cíveis (FONAJE, op. cit, live). Dinamarco (1985, p. 126) afirma que o Juizado de Pequenas Causas foi criado para ser o “tribunal do cidadão”. Não tinha qualquer objetivo de solucionar controvérsias de sociedades empresariais, mas sim do cidadão, relegando somente ao polo passivo a atuação das pessoas jurídicas. Abdicou-se da celeridade de um sistema que foi posto para acudir aqueles que estavam à deriva do sistema jurídico pátrio a fim de satisfazer interesses de empresas que poderiam se submeter aos ônus da justiça comum. Com tamanho volume de processos, perdeu-se o foco na conciliação, a qual passou de índices superiores a 80% para atuais 40%, como mostraram as últimas pesquisas. A instrução dos processos também passou a demorar muito mais do que os poucos dias que levava nos primórdios, levando frequentemente mais de dezoito meses para se alcançar a solução. E o desalento continua ao notar que, em várias unidades federativas, mais de metade das novas ações são protocoladas nos Juizados Especiais. Assim, Letteriello (2011, sem p) com pesar afirma que os Juizados estão cada vez mais parecidos com a justiça comum e perdendo o crédito com a sociedade, alertando para a derrocada iminente do que chama de “um sistema quase perfeito de justiça” e, com ela, a aniquilação de uma pioneira e esplêndida forma de fazer justiça. A situação pode piorar ainda mais se um ou mais dos projetos de lei que ampliam a competência dos Juizados e que estão tramitando no Congresso Nacional sejam transformados em lei, fato que viria a beneficiar o extrato da sociedade já “privilegiada” com a possibilidade de recorrer ao Judiciário, a despeito daqueles que realmente necessitam desse serviço gratuito e especializado. Soares (2000, sem p.) já demonstrava preocupação com o destino dos Juizados após a Lei. 9.841/99, mesmo antes das posteriores alterações que culminaram ainda mais no aumento de competência do sistema. O desembargador também anteviu que grande parte das causas, senão a maioria, seriam cobranças feitas pelas microempresas, forma de sociedade predominante em praticamente todos os estados do país. Embora assente que várias dessas têm o acesso à justiça comum dificultado pelos altos custos e pela morosidade, a carência de jurisdição está sobremaneira nas pessoas físicas. A consequência mais marcante das alterações legislativas citadas é a ampliação da morosidade, antes apenas na justiça ordinária, agora presente também nos Juizados Especiais Cíveis. 50 Happke (2016, sem p.) também alerta para o desvirtuamento da essência do sistema ao ressaltar as mais de duas dezenas de projetos de lei que visam ampliar ainda mais a competência já exaurida dos Juizados Especiais Cíveis.O aumento da legitimidade ativa passou a atingir pessoas jurídicas, muitas das quais não tem o costume de adotar políticas internas para resolução consensual dos seus litígios, ocasionando grandes pautas de audiências de conciliação quiçá inúteis, as quais nem mesmo podem ser indiscriminadamente canceladas devido à imposição legal. Tais empresas, acostumadas com as demandas em massa, são na maioria das vezes concessionárias de serviços públicos e entidades financeiras ou de seguros. Os Juizados Especiais Cíveis não simbolizam mais aquilo que objetivou o legislador que os criou, com raríssimas exceções. A agilidade se perdeu gradativamente com o aumento em massa das demandas, aliado à atuação deficiente das prestadoras de serviços públicos, o que atrai grande quantidade de litígios ao sistema (NORONHA, 2016, sem p.). 4.2 DA POSSÍVEL INCOMPATIBILIDADE PRINCIPIOLÓGICA OCASIONADA PELA APLICAÇÃO DO INSTITUTO DO PRECATÓRIO NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS Com o entendimento do STF se consolidando, conforme exemplificado por estas decisões recentes, a discussão acerca da possibilidade de pagamento de débitos através de precatórios nos Juizados Especiais Cíveis é um tema que ganhou repercussão e se tornou objeto de decisões contraditórias pelos Juizados Especiais Cíveis espalhados pelo país. Isso porque, aqueles que defendem a incompetência dos Juizados Especiais Cíveis para julgar ações contra Sociedades de Economia Mista o fazem justamente por acreditar haver um conflito entre a tramitação desses processos, com a possibilidade de expedição de requisitórios nos Juizados e, principalmente, os princípios da simplicidade, da informalidade e da celeridade processual, por se tratarem de ações em que, havendo condenação, irão obrigatoriamente se submeter ao moroso e burocrático sistema do precatório e RPV. Infere-se assim que a expedição de precatórios como forma de pagamento, em primeira análise, parece conflitar com os princípios mais caros do microssistema dos Juizados. As normas e os institutos referentes ao processo ordinário se aplicam de forma subsidiária nos Juizados Especiais Cíveis, mesmo quando não expresso na lei especial, segundo entendimento majoritário da doutrina. Todavia, só há aplicação de forma subsidiária quando a norma emprestada estiver em total sintonia com os princípios norteadores elencados na Lei 9.099/95. Caso contrário, estar-se-á violando o núcleo fundamental do procedimento especial previsto para os Juizados Especiais Cíveis (TOURINHO NETO & FIGUEIRA JR. 2009, p. 69). 51 Num sistema em que o legislador que o criou previu até mesmo a impossibilidade de suspensão do processo por falta de bens (art. 53, §4º da Lei 9.099/95), fica claro que o princípio da celeridade está incrustado em seu núcleo substancial e não pode ser abolido. Submeter esse sistema e os jurisdicionados que dele dependem ao moroso e complexo instituto do precatório é desprestigiá-lo junto ao cidadão. Isso porque se sabe que um precatório leva geralmente anos para ser pago, resultando numa demora de efetivação da atividade satisfativa em causas que eram para ser céleres. Chega-se a uma absoluta incompatibilidade principiológica entre as causas passíveis de pagamento por precatórios e os preceitos basilares previstos da Lei 9.099/95. Caso se decida levar a sério esses princípios, o resultado mais factível é a perda de competência dos Juizados Especiais Cíveis para julgar as lides que envolvem esses entes. 4.3 DO PARALELISMO COM A JUSTIÇA COMUM Como já explanado, está consolidado na jurisprudência pátria e na doutrina o entendimento de que as Empresas Públicas e as Sociedades de Economia Mista se sujeitam ao regime do precatório para pagamento de seus débitos quando prestam serviço público de caráter não concorrencial e sem intuito de lucro. Tais entidades, embora submetidas ao regime do precatório, continuam tendo natureza jurídica privada, o que implica a não extensão das outras vantagens processuais conferidas à Fazenda Pública. Nesse sentido, justamente pelo fato de continuar tendo natureza privada é que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina entende que as causas não devem ser processadas perante os Juízos Fazendários, como se denota das decisões abaixo. AGRAVO INTERNO. AÇÃO DE CONHECIMENTO PROPOSTA POR PARTICULAR CONTRA A COMPANHIA CATARINENSE DE ÁGUA E SANEAMENTO (CASAN). SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. ENTIDADE QUE NÃO INTEGRA O ROL DE LEGITIMADOS DO JUIZADO ESPECIAL DA FAZENDA PÚBLICA. ART. 5º, II, DA LEI N. 12.153/09. INCIDÊNCIA DA NORMA DO ART. 100 DA CF/88 (SUBMISSÃO AO REGIME DE PRECATÓRIOS) QUE NÃO IMPLICA EXTENSÃO DE OUTRAS VANTAGENS PROCESSUAIS CONFERIDAS AO PODER PÚBLICO, TAMPOUCO MODIFICA A NATUREZA PRIVADA DA COMPANHIA (STF, ADPF 556/RN, RELA. MINA. CARMEN LÚCIA, DJE 06.03.2020) COMPETÊNCIA DO JUÍZO COMUM CÍVEL. PRERROGATIVA DA PARTE AUTORA EM ELEGER O RITO COMUM OU O RITO DA LEI N. 9.099/95. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJSC, Agravo de Instrumento n. 5016057-67.2020.8.24.0000, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Ronei Danielli, Terceira Câmara de Direito Público, j. 09-03- 2021) 52 E, ainda: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INCIDENTE INSTAURADO ENTRE OS JUÍZOS DA 1ª VARA VARA DA FAZENDA PÚBLICA E DA 3ª VARA CÍVEL, AMBOS DA COMARCA DA CAPITAL. AÇÃO ENVOLVENDO O SERVIÇO DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA E ESGOTO PRESTADO POR SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA (CASAN). COMPETÊNCIA DA 3ª VARA CÍVEL, CONFORME PRECEDENTES DESTA CORTE. CONFLITO ACOLHIDO. "É do Juízo Cível, e não do Juízo da Fazenda Pública, a competência para processar e julgar causas cíveis em que a sociedade empresária privada ou de economia mista, ainda que concessionária de serviço público, é autora, ré ou interessada (Conflito de Competência n. 2014.068217-3, da Capital, rel. Des. Jaime Ramos, j. 15-10-2014)" (Conflito de Competência n. 1002019-60.2016.8.24.0000, da Capital, rel. Des. Marcus Túlio Sartorato, j. em 7-12-2016). (TJSC, Conflito de Competência n. 0002727-25.2019.8.24.0000, da Capital, rel. Cid Goulart, Segunda Câmara de Direito Público, j. 07-07-2020). Desta forma, numa interpretação sistemática do ordenamento jurídico, fica evidente que demandas envolvendo as Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista realmente não se encaixam na competência das varas fazendárias, sendo processadas e julgadas pela justiça comum. Todavia, cabe recapitular as decisões das ADPF 513 e 556, pelas quais o Supremo decidiu que: É firme a jurisprudência desta Suprema Corte no sentido de que somente as Empresas Públicas que exploram atividade econômica em sentido estrito estão sujeitas ao regime jurídico próprio das empresas privadas, nos moldes do art. 173, §1º, II, da Lei Maior. Embora constituída sob a forma de Sociedade de Economia Mista, a CAEMA desempenha atividades de estados, em regime de exclusividade [...] Por não explorar atividade econômica em sentido estrito, sujeita-se, a cobrança dos débitos por ela devidos em virtude de condenação judicial, ao regime de precatórios (art. 100 da Constituição da República). [...] A Companhia de Águas e Esgotos dos Rio Grande do Norte - CAERN é Sociedade de Economia Mista, prestadora de serviço público em regime não concorrencial e sem intuito primário de lucro: aplicação do regime de precatórios. [...] Decisões judiciais de bloqueio, penhora, aresto e outras formas de constrição do patrimônio público de empresa estatal prestadora de serviço público em regime não concorrencial: ofensa à legalidade orçamentária (inc. VI do art. 167 da Constituição), à separação funcional de poderes (art. 2º da Constituição) e à continuidade da prestação dos serviços públicos (art. 175 da Constituição). Ocorre que, em que pese as decisões do STF sobre a aplicação do precatório às empresas prestadoras de serviços públicos não terem certamente o condão de aumentar a competênciados Juizados, deveriam ao menos servir para diminui-la. Se antes já era visível o desvirtuamento do sistema, com a aplicação do precatório fica ainda mais nítido. Na justiça comum, estabeleceu-se que as empresas públicas e sociedades de economia mista, por não terem, até então, prerrogativas fazendárias seriam abrangidas na competência 53 residual da justiça civil comum e não nas varas fazendárias. Com a vinculação dessas empresas ao instituto do precatório, não há uma necessidade estridente de alteração na competência, em que pese seria mais recomendável o julgamento ser feito nas varas fazendárias, já previstas e adaptadas às prerrogativas dos entes que lá litigam. Também no sistema dos juizados o caminho mais óbvio seria julgar tais lides nos Juizados Especiais da Fazenda Pública, previstos na Lei 12.153, de 22 de dezembro de 2009, mesmo que na justiça comum a competência fazendária esteja, ainda, afastada. Isso porque não há, a princípio, qualquer problema hermenêutico em quebrar pontualmente o paralelismo da competência do Sistema de Juizados com a justiça comum. Ademais, as adaptações nos sistemas dos Juizados devem ser pensadas objetivando o fortalecimento dos seus princípios, simplificando a atuação e o entendimento daqueles para os quais o sistema serve, os jurisdicionados. 4.4 ELEMENTOS TEÓRICOS SOBRE A COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS Inicialmente, cabe uma crítica à doutrina nesse ponto. A Lei dos Juizados Especiais Cíveis já passa de duas décadas e meia de existência. Todavia, há ainda muitas questões, teóricas e práticas, que se apresentam como verdadeiras lacunas doutrinárias, a exemplo do tema da presente pesquisa. De modo geral, a doutrina brasileira em parte significativa se resume a esquematizar os entendimentos dos tribunais, quando deveria, muito mais, dedicar-se a avançar o desenvolvimento da ciência jurídica. Nesse sentido disserta Otavio Luiz Rodrigues Junior (2010, p. 72): Longe de pensar sistemas, formular abstrações e fornecer dados ao juiz, essa doutrina (dogmática judicializada) é escrita a partir do que já pensaram os juízes em seus acórdãos. Não há margens para erros ou desvios. O doutrinador concede ao estudante a visão dos tribunais. Nada além disso. Quando muito, alguma posição acessória de crítica discreta ou de aplauso eloquente. O doutrinador surge como o autômato, o organizador de jurisprudência em blocos, esquemas e sumas do pensamento do tribunal. O leitor deve comprar a novíssima edição, pois, a cada ano, com a mudança de humores nas Cortes, a obra está desatualizada. Não pela revogação da lei, mas pela alteração de entendimento do pretório Por outro lado, os Tribunais muitas vezes relegam a segundo plano o relevante papel da doutrina. Como exemplo, pode-se citar alguns excertos de um voto do Ministro do STJ Humberto Gomes de Barros (2001, sem p.), afirmando que “não importa o que pensam os 54 doutrinadores [...]” e, continuando, “[...] Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça e a doutrina que se amolde a ele.” No escopo dos Juizados Especiais, o fenômeno do desinteresse doutrinário foi bem observado por Tourinho Neto & Figueira Júnior (2009, p. 42), autores que ressaltam a falta de literatura sobre vários temas no microcosmo dos Juizados Especiais, notadamente por muitos dos grandes processualistas brasileiros. Afirmam os autores, que os Juizados Especiais se mostram na forma de justiça mais próxima do povo, e não podem ser relegados a uma “justiça de segunda classe”, mas sim prestigiados e aprimorados. Ademais, alia-se a relativa falta de interesse dos autores com a contemporaneidade do tema do presente trabalho, dada sua especificidade. Contudo, pode-se assumir que a posição majoritária da doutrina tradicional não aventa a possibilidade de existência de precatórios nos Juizados Especiais Cíveis, em que pese boa parte dos doutrinadores aceitava o julgamento das prestadoras de serviço público neles. Conjuga-se o verbo no passado em virtude de que as obras são todas anteriores às recentes posições do STF e, destarte, o tema certamente terá que ser repensado daqui para frente. Majoritariamente, sempre se entendeu pela possibilidade de julgamento na justiça comum e, consequentemente, nos Juizados Especiais Cíveis. Nessa toada, disserta Carvalho Filho (2015, p. 502-503): Quando se trata do aspecto relativo ao exercício em si da atividade econômica, predominam as normas de direito privado, o que se ajusta bem à condição dessas entidades como instrumentos do Estado-empresário. [...] Ao contrário, incidem as normas de direito público naqueles aspectos ligados ao controle administrativo resultante de sua vinculação à pessoa federativa. Porém, importantes vozes contrárias já ecoavam. Uma delas é de Marioni (2016, p. 463), que destaca a incompetência dos Juizados no julgamento das lides envolvendo empresas públicas e sociedades de economia mista devido ao regime diferenciado destas com relação às empresas privadas. Caso contrário, inverte-se a lógica do regime jurídico a elas proposto. Ademais, o autor cita as prerrogativas e peculiaridades que colocam esses entes públicos no que chama de supremacia em relação às demais empresas, visto a possibilidade de exercer o poder de polícia e o desenvolvimento de atividades específicas de Estado. Necessária é a criação de uma legislação específica para resolver esse embaraço. O autor ainda destaca (p. 267) que as prestadoras de serviço público possuem responsabilidade civil objetiva em relação aos danos causados aos particulares, semelhante à 55 responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público, as quais, de acordo com art. 8º da Lei 9.099/95, foram suprimidas da alçada da Lei. As regras próprias aplicadas a esses entes devido ao fato de exercer serviços típicos do Estado, o qual detém o controle das entidades, parecem ter o condão de afastar a competência dos Juizados Especiais Cíveis, restando a justiça comum para solução dos litígios Porém, a doutrina majoritária e jurisprudência aceitavam causas contra esses entes, desde que atendidos os demais critérios. Para apaziguar as divergências, o Enunciado 131 do FONAJE, criado em 2009, assevera que “As empresas públicas e sociedades de economia mista dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios podem ser demandadas nos Juizados Especiais”. Ocorre que todo ordenamento foi assim pensando antes de o STF decidir pela aplicabilidade dos requisitórios às prestadoras de serviços públicos. Por óbvio, agora a posição terá de ser repensada, tanto em viés teleológico como sistemático do direito. Os Juizados Especiais Cíveis, nos moldes contemporâneos, aparentemente não comportam mais essa inovação, teratológica se levado em conta o objetivo para o qual foi criado o sistema. Como exemplo da divergência entre as peculiaridades necessárias para ações fazendárias e o procedimento do JEC, de forma esclarecedora Rocha (2019, p. 13) disserta que, em que pese não haver problema na criação de Juizados Especiais na Justiça Federal, esta não poderia ser baseada na Lei dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais. Para justificar a vedação, o autor cita as várias prerrogativas da Fazenda Pública em juízo que não poder-se-iam repetir nos Juizados Especiais Cíveis, entre elas o pagamento através de precatórios como uma das mais graves. Em relação aos Juizados Especiais Federais, a celeuma doutrinária se encerrou com a Emenda Constitucional número 22, de 18.03.1999, que estabeleceu que a criação dos Juizados no âmbito da justiça federal dar-se-ia através de lei federal. Parece óbvio que ao se exigir outra lei para a criação dos Juizados Especiais Federais mostra-se que a Lei 9.099/95 era insuficiente ou incompatível para regular a matéria, sendo a expedição de precatórios um dos fatos geradores de divergência. Ainda nesse sentido, Rocha (2019, p. 13)afirma que a criação da Lei dos Juizados Especiais Federais só se tornou viável após nova alteração da Constituição. A emenda número 30 de 13.09.2000, objetivou suprimir a incompatibilidade do recém-criado Juizado justamente ao sistema dos precatórios, visto que se entendeu que estes prejudicariam a celeridade e informalidade dos processos. Assim, acrescentou-se o art. 100, §3º na Carta Magna, que dispõe 56 que os precatórios não se aplicam aos pagamentos de pequeno valor, definidos em lei, devidos pela Fazenda Pública em virtude de sentença judicial transitada em julgado. Posteriormente, no ano de 2002 o legislador incluiu o art. número 87 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias com o seguinte texto: Art. 87. Para efeito do que dispõem o § 3º do art. 100 da Constituição Federal e o art.78 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias serão considerados de pequeno valor, até que se dê a publicação oficial das respectivas leis definidoras pelos entes da Federação, observado o disposto no § 4º do art. 100 da Constituição Federal, os débitos ou obrigações consignados em precatório judiciário, que tenham valor igual ou inferior a: I - quarenta salários-mínimos, perante a Fazenda dos Estados e do Distrito Federal; II - trinta salários-mínimos, perante a Fazenda dos Municípios. Parágrafo único. Se o valor da execução ultrapassar o estabelecido neste artigo, o pagamento far-se-á, sempre, por meio de precatório, sendo facultada à parte exeqüente a renúncia ao crédito do valor excedente, para que possa optar pelo pagamento do saldo sem o precatório, da forma prevista no § 3º do art. 100. (Artigo acrescido pela Emenda Constitucional nº 37, de 2002) Com a edição da Lei 10.229/2001 houve a regulamentação dos Juizados Especiais Cíveis Federais. Com ela, parte da doutrina passou a entender pela aplicabilidade desta lei no julgamento das Fazendas Estaduais e Municipais. Tal discussão somente foi apaziguada com a criação dos Juizados Especiais da Fazenda Pública através da Lei 12.153/2009. No tocante à lei que trata dos Juizados Especiais Federais, para harmonizar os pagamentos com o rito mais célere do Juizado, estabeleceu que o teto das ações seria sessenta salários-mínimos, valor este que também seria valor máximo pago por RPV em âmbito federal. Ou seja, os Juizados Especiais Federais foram criados já com a garantia lógica, ressalta-se, em tese, de que em suas causas não haveria expedição de precatório, pois qualquer condenação ficaria abaixo do limite estabelecido para a RPV. É importante notar uma peculiaridade dos Juizados Especiais Cíveis em relação aos Juizados Especiais Federais. Este, não foi pensado originalmente para ter precatórios, pois o valor da causa é limitado ao valor do RPV. Os precatórios surgem normalmente a partir da morosidade jurisdicional, que acarreta o acréscimo de montantes significativos de juros aos valores das condenações e faz o valor passar do teto da RPV. Nos Juizados Especiais Cíveis isso não ocorre da mesma maneira, pois os valores limites da RPV são variáveis de acordo com a capacidade de cada entidade, enquanto a Lei que rege o sistema estabelece um teto de valor de causa único para todo o território nacional - quarenta salários-mínimos. Posteriormente, nos Juizados Especiais Federais, foram necessárias outras alterações legais para retirar outras amarras relativas à celeridade dos pagamentos, em que pese esses já não serem mais realizados por precatórios. Como exemplo, cita-se a alteração feita no art. 475 57 do Código de Processo Civil da época, que dispensou o reexame necessário das sentenças cujo valor não ultrapassasse a sessenta salários-mínimos proferidas contra a Fazenda Pública - exatamente o mesmo valor em que se dispensa o precatório em âmbito federal (ROCHA, 2019, P. 14). Desta forma, verifica-se o esforço legislativo de modo a criar instrumentos hábeis para o julgamento das causas que envolvem as prerrogativas da Fazenda Pública sem que se criassem incompatibilidades entre qualquer norma ou sistema processual. 4.5 CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS VERIFICADAS NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA Em relação ao julgamento de Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista, a posição jurisprudencial é firme no sentido de que a competência é da justiça comum e não da fazendária. Entendimento que se verifica súmula 556 do STF, a qual afirma que "é competente a Justiça Comum para julgar as causas em que é parte Sociedade de Economia Mista" e Súmula 42 do STJ em que se firmou o entendimento que "compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar as causas cíveis em que é parte Sociedade de Economia Mista e os crimes praticados em seu detrimento". Assim, considerando que a Lei 9.099/95 não proíbe que tais entes sejam réus no procedimento previsto por ela, via de regra os Juizados Especiais Cíveis seriam competentes para julgar essas causas. Ocorre que, com o entendimento do STF, exemplificado através do julgamento das ADPFs já citadas, parte da jurisprudência passou a entender que, por estarem submetidas ao sistema de RPV e precatórios, as Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista em regime não concorrencial não podem ser julgadas pelos Juizados Especiais Cíveis. Analisando as decisões dos dois Juizados Especiais Cíveis da cidade de Chapecó, podemos verificar a posição esplanada acima. Este foi o entendimento do Magistrado titular do 1º Juizado Especial Cível da Comarca de Chapecó (Happke, 2020, sem p.): [...] O regime de expedição de precatório e/ou RPV é absolutamente incompatível com o rito do Juizado Especial Cível (Lei nº 9.099/95). Quando foi preconizado, foram excluídos todos os entes que se sujeitavam a esse regime de pagamento e proteção de bens, justamente pela incompatibilidade com diversos caracteres do JECív, entre eles a celeridade, a informalidade, a simplicidade etc. [...] não é admissível que Sociedades de Economia Mista que prestam estrito serviço público (e não atividade econômica concorrencial) sejam demandadas nos Juizados Cíveis. 58 No 2º Juizado Especial Cível da Comarca, o magistrado titular seguiu o mesmo entendimento de que os Juizados Especiais Cíveis teriam se tornado incompetentes para julgamentos das causas em que o pagamento dar-se-ia através de precatórios (SERPA, 2020, sem p.). A discussão desembocou no suscitamento, pelo juízo do 2º Juizado Especial Cível da Comarca de Chapecó, de Conflito de Competência em face de uma decisão proferida pelo juízo da 2ª Vara da Fazenda, no qual o Relator da Turma Recursal, Márcio Rocha Cardoso, decidiu que “a necessidade de observância ao regime de precatórios, todavia, entendo que não retira a possibilidade de que as Sociedades de Economia Mista figurem no polo passivo das demandas propostas nos juizados cíveis [...]” (CONFLITO DE COMPETÊNCIA CÍVEL Nº 5000761- 88.2020.8.24.0910/SC) De modo a fundamentar a decisão, citou o art. 99 do Código de Normas e Organização Judiciárias do Estado de Santa Catarina, segundo o qual não faz parte da incumbência dos juízos da Fazenda Pública processar e julgar as causas promovidas contra sociedades de economia mista. Ainda, ressaltou o entendimento do Des. Jaime Ramos (Conflito de Competência n. 2014.068217-3, da Capital, j. 15-10-2014), de que é dos Juízos Cíveis e não dos Juízos Fazendários a atribuição para julgar as sociedades de economia mista concessionárias de serviço público, independentemente de ser autora, ré ou interessada no processo. Ainda, o juiz afirmou entender que não há óbice para o julgamento de causas envolvendo sociedades de economia mista nos juizados cíveis porque o instituto do precatório, por si só, não viola os princípios da celeridade e simplicidade. Sustenta o magistrado que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina possui "arcabouço técnico para processar este tipo de pagamento junto aos juizadosespeciais”. Não se vislumbrando na prática qual seria a violação aos referidos princípios, os quais perseguem uma forma procedimental mais concisa, todavia não com ausência de regras. O fato de aplicar o precatório a esses entes visa garantir a continuidade dos serviços públicos, mormente aqueles essenciais, realizados sob regime não concorrencial. Contudo, a consolidação desse entendimento pelo STF não afasta a possibilidade de julgamento sob a óbice da Lei 9.099/95, a qual, embora não deixe autorizado de forma expressa, também não proíbe. Não resta assim qualquer vedação legal ao julgamento dessas causas nos juizados cíveis Continuando a explanação, o magistrado lembrou que o legislador trouxe o regime dos requisitórios à Lei 12.153/09, que cuida dos Juizados da Fazenda Pública. Acaso se entendesse que o precatório causaria a violação dos princípios da simplicidade, celeridade ou até mesmo 59 da oralidade seria o mesmo de afirmar que esses princípios não existem ou que são originariamente violados nos Juizados Fazendários. Importante destacar também o entendimento do juiz auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Romano Jose Enzweiler, o qual assevera que: "[...]inexiste óbice administrativo ou no sistema informatizado para adoção de requisições de pagamento de precatórios pelos juizados especiais cíveis não fazendários, salientando que a lista de ordem cronológica e processamento dos requisitórios é formada por entidade devedora que, no caso da CASAN, inclusive, já se encontra cadastrada. Oportuno registrar que, tocante às obrigações de pequeno valor, a competência pertence ao Juízo da Execução, na forma do art. 535, § 3º, II, do CPC, arts. 47 a 50 da Resolução CNJ n. 303/2019 e Resolução Conjunta GP/CGJ n. 01/2014, inexistindo interferência por parte da Presidência desta Corte no processamento e pagamento das referidas requisições (RPV´s)." (Evento n. 37 - despacho/decisão 3). Concluiu-se então, no referido julgamento da Turma Recursal, que os Juizados Especiais Cíveis são competentes para o julgamento das lides em que constam no polo passivo as prestadoras de serviço público, independente do regime em que atuam. Contudo, considerando que as decisões do STF em sede de ADPF possuem efeito vinculativo, ao contrário da decisão do Conflito de competência julgado pela Turma Recursal do TJSC, a celeuma permanece, com juízes pendendo para ambos os lados. Na prática os magistrados de primeiro grau, tanto dos Juizados quanto das varas fazendárias, continuam adotando posicionamentos distintos sobre o tema, o que traz insegurança jurídica e causa morosidade à prestação jurisdicional. 4.6 INSEGURANÇA JURÍDICA E NECESSIDADE DE UNIFICAR A JURISPRUDÊNCIA Há no Brasil um histórico relativamente amplo de situações em que se pode verificar a falta de segurança jurídica. Mais comumente, a insegurança advém da atuação dos Poderes Legislativo e Judiciário. Num cenário de incessantes transformações, o Legislativo legista muito e causa contradições que o Judiciário tenta, na medida do possível, mas por vezes sem sucesso, harmonizar. A atuação judicante, mormente dos Tribunais Superiores, não escapa de críticas relacionadas às constantes idas e voltas de posicionamentos, o que foi ironicamente batizado pela doutrina como jurisprudência ziguezague (ÁVILA, 2011, p. 45). Quando acontece, o fenômeno da insegurança causa prejuízos econômicos, pois afugenta o investidor, desampara os jurisdicionados e aumenta ainda mais a já excessiva litigiosidade que se verifica em nosso país. Quando a causa está no Poder Judiciário, este perde 60 sua credibilidade com os litigantes envolvidos. Porém, quando está no Legislativo, muitas das vezes o descrédito perante o cidadão comum, leigo na grande maioria das vezes, acaba caindo também ao Judiciário, que é quem em última instância se pronuncia. Quem perde, acima de tudo, é o Estado Democrático de Direito, que tem em um dos seus pilares a separação e harmonização dos Poderes, constantemente fragilizado pela insegurança jurídica. Um Direito perfeito e utópico apresentaria normas concisas e necessárias para regular a vida em sociedade. O equilíbrio entre legislar sem deixar lacunas e por outro lado legislar sem criar normas desnecessárias ou contraditórias é um desafio permanente para o Legislador. Em regra, toda norma tem um grau de abstração. O Legislador cria a hipótese geral, mas não consegue positivar todas as possibilidades de exceções possíveis de existir na vida real. A velocidade com que muitas vezes o Legislador tem que atuar, devido às constantes transformações sociais, também traz dificuldades na criação e modificação das normas. Nesse sentido disserta Ávila (2011, p. 50): O legislador, para assegurar os interesses dos cidadãos e para orientar a sua ação, age com rapidez; mas, exatamente porque o faz desse modo, termina legislando de maneira equivocada, o que exige a edição de novas normas destinadas a retificar as anteriores. O paradoxo é este: se o legislador age rápido, age mal e tem que rever os seus atos, o que provoca insegurança; se demora, não assegura os direitos reclamados pelos cidadãos, nem os orienta, criando um estado de insegurança. Em busca de garantir segurança, o legislador termina criando insegurança. E, ao lado do fenômeno da particularização da legislação, surge o fenômeno da sua rápida obsolescência, fazendo com que a lei perca as suas características tradicionais de solenidade, de generalidade e de permanência. Tal quadro se justifica, pois, a afirmação de que, quanto mais leis, menos Direito, e quanto menos leis, mais Direito. No âmbito do Poder Judiciário, o Novo Código de Processo Civil de 2015 prevê em seu art. 926 que os tribunais têm o dever de “uniformizar a sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. Tal previsão tem a finalidade de garantir a segurança jurídica ao elencar a previsibilidade como um objetivo a ser perseguido pelos juristas. Nesse sentido, merece destaque trecho da obra de Bruno Dantas (2013, p. 29): Quando a mesma situação fática, num dado momento histórico, é decidida por juízes da mesma localidade de forma diametralmente antagônica, a mensagem enviada à sociedade é de que ambas as partes têm (ou podem ter) razão. Ora, se todos podem ter razão, até mesmo quem, por estar satisfeito com o tratamento jurídico que sua situação vinha recebendo, não havia batido às portas do judiciário terá forte incentivo a fazê- lo. Evidentemente, esse fenômeno é algo normal no exercício da jurisdição em primeiro grau. Anormal é que a divergência judicial perpasse os tribunais, órgãos colegiados concebidos para dar tratamento mais qualificado às questões julgadas em primeiro grau. Anormal é que a divergência dos juízes de primeiro grau seja fundamentada em acórdãos divergentes de colegiados de um mesmo tribunal, como se não existisse ali órgão uno, mas aglomerado de sobrejuízes com competências individuais autônomas, o que contraria o princípio constitucional da colegialidade dos 61 tribunais. Vale dizer, normal é a jurisprudência dos tribunais orientar a atuação dos juízes inferiores. Anormal é os tribunais oferecerem o insumo da imprevisibilidade e da insegurança jurídica para os magistrados das instâncias inferiores e a sociedade em geral. Não é de hoje que se percebem os problemas causados pela falta de uniformidade jurisprudencial dos Tribunais, os quais muitas vezes decidem de modo contraditório e aumentam o sentimento de insegurança jurídica existente no direito brasileiro. Nesse sentido, Teresa Arruda Alvim Wambier (2012, p. 37) alerta que “o jurisdicionado não pode confiar no precedente do STJ, pois poderá vir a ser modificado pelo STF, quando entender que a questão é também (ou somente) de índole constitucional.” Encontram-se na doutrina apelidos, talvez com certo grau de exagero,acerca da jurisprudência brasileira e do seu frequente descanso com seus precedentes. Cambi (2001, p. 108) chama o fenômeno de “jurisprudência ziguezague” e ao falar de falta de segurança jurídica chega a mencionar que o funcionamento dos Tribunais se assemelha a um sistema lotérico. Se a segurança jurídica fosse levada a sério, é óbvio que não poderia cada tribunal e cada juiz ter um entendimento diferente dos mesmos institutos, em que pese muitas vezes vagos e indeterminados. A frequente vagueza das previsões legislativas tem o intuito de fazer com que o Direito se adeque às mudanças da sociedade. Todavia, esse fenômeno não deve dar azo ao surgimento de decisões conflitantes pelos operadores da lei. Cada juiz tem a prerrogativa de decidir conforme sua consciência, todavia deve respeitar limites legais e da hermenêutica jurídica, nunca olvidando da necessidade de manter o sistema jurídico íntegro e coerente (STRECK, 2010, p. 95). As decisões judiciais quando conflitantes geram uma reação em cadeia. Ao não respeitar os precedentes jurisprudenciais, avoluma-se o número de ações e recursos no Poder Judiciário. Isso porque, ao gerar dúvida sobre o posicionamento na questão objeto da lide, o tribunal incentiva que outros jurisdicionados não se contentem com as decisões proferidas e busquem cada vez mais novas manifestações dos tribunais, seja através de processos nos juízos a quo ou pela via recursal, na crença, muitas vezes infundada, de alcançar a proteção aspirada. Como consequência, ter-se-á um sistema inchado por um volume descomunal de postulações. De modo geral, o pouco detalhamento das previsões legais que instituem os Juizados Especiais é muitas vezes benéfico por possibilitar uma flexibilização procedimental que garante o acesso à justiça e a celeridade processual. Todavia, também deixa margens para decisões contraditórias, a exemplo das citadas no presente trabalho sobre a competência, ou falta dela, 62 dos Juizados Especiais Cíveis para julgar as prestadoras de serviço público submetidas aos requisitórios. Tamanha flexibilização procedimental não foi acompanhada por mecanismos de controle, considerando a limitação recursal do sistema. Assim, deve-se fomentar o debate sobre formas de corrigir essas discrepâncias práticas e unificar o entendimento dos magistrados atuantes nos Juizados Especiais Cíveis, de modo a garantir que o acesso à justiça não será prejudicado e que o Sistema continue a desempenhar sua fundamental função em nossa democracia. 63 5 CONCLUSÃO Em suma, os Juizados Especiais Cíveis foram criados para ascender a previsão de acesso à justiça, elencada como supra princípio em nossa Constituição. Dentre seus princípios mais importantes, destacam-se a simplicidade, a oralidade, a celeridade, a economia processual e a conciliação. A fiel observância dos princípios norteadores dos Juizados têm fundamental importância no correto e efetivo funcionamento do sistema. Os princípios da celeridade e da simplicidade têm o condão de diminuir as amarras burocráticas que existem no procedimento comum, o que se possibilita devido a simplificação do procedimento, o aproveitamento das provas e a oralidade dos atos. Nesse sentido, o tema do presente trabalho se deve à celeuma recente que envolve a discussão sobre a competência dos Juizados Especiais Cíveis para julgamento de ações contra empresas públicas e sociedades de economia mista que atuam em regime de monopólio. Historicamente já ecoavam vozes contrárias à competência dos Juizados para julgar essas causas. Todavia, foi com os julgamentos das várias ADPFs pelo STF que o a discussão ganhou relevos mais notáveis. Isso porque, com efeito vinculante, decidiu-se que as referidas sociedades empresárias se subordinam ao instituto dos requisitórios. Com as decisões do Supremo, começou a se criar na jurisprudência o entendimento de que tais ações não mais devem transitar nos Juizados Especiais Cíveis pela falta de competência, aduzindo-se que esta se esvai com a quebra dos princípios da celeridade, simplicidade e economia processual ocasionadas pela morosidade dos requisitórios. Em regressão histórica, nota-se que os requisitórios realmente não parecem se encaixar nos objetivos os quais o legislador elencou na gênese dos Juizados Especiais Cíveis, dado que estes foram criados para solucionar demandas não complexas de pessoas físicas, mormente nas causas consumeristas, de forma rápida, efetiva e satisfatória. Conquanto tenham tido sua competência gradual e excessivamente aumentada para abranger diversas outras causas, como exemplo, aquelas intentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte, os objetivos originários ainda devem prevalecer, mesmo já tendo sido deturpados em certo grau. Trazer causas em que haja possibilidade de requisitórios para o já exaurido sistema dos Juizados nos parece prejudicar ainda mais o andamento dos processos num sistema que já não é mais tão célere quanto deveria. A morosidade dos pagamentos feitos pela Fazenda Pública, principalmente quando realizados por meio de precatórios, ao menos na fórmula prevista hoje, 64 vai de encontro com os princípios mais caros dos Juizados Especiais Cíveis, a exemplo das já citadas celeridade, simplicidade e efetividade. Assim, em que pese na justiça comum as causas envolvendo sociedades de economia mista são resolvidas pelas varas cíveis e não pelas várias fazendárias, nos Juizados Especiais a situação poderia, ou talvez deveria, se inverter. Isso porque nos Juizados Especiais Fazendários há causas em que inevitavelmente o pagamento se dá por requisitórios. De toda forma, com os Juizados Especiais sendo competentes ou não, é necessário se debruçar sobre o tema que futuramente possa haver a pacificação do entendimento jurisprudencial, de modo a não ferir o tão consagrado princípio do acesso à justiça, carro-chefe de um Estado Democrático de Direito. Há de se buscar uma solução que não desprestigie junto à população o tão importante Sistema de Juizados Especiais, de modo que este continue a propiciar ao jurisdicionado a oportunidade de buscar seus direitos lesados e, com isso, ter garantido o exercício da cidadania. 65 6 REFERÊNCIAS ABREU, Pedro Manoel. Acesso à Justiça e juizados especiais: o desafio histórico da consolidação de uma justiça cidadã no Brasil. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. ANDRIGHI, Nancy. Procedimentos e competência dos Juizados Especiais Cíveis. Disponível em http://www.arcos.org.br/periodicos/revista-dos-estudantes-de-direito-da- unb/2aedicao/procedimentos-e-competencia-dos-juizados-especiais-civeis. Acesso em: 15 out. 2022. ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica. São Paulo: Malheiros, 2011. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo, Saraiva, 1999, pág. 147. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 25 abr. 2022. ______. Código de Processo Civil (2015). Código de Processo Civil Brasileiro. Brasília, DF: Senado Federal, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 29 abr. 2022. ______. Lei 10.259, de 12 de julho de 2001. Dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10259.htm. Acesso em: 02 mai. 2022. ______. Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9099.htm. Acesso em: 01 mai. 2022. ______. Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016. Dispõe sobre26 2.2.3 Princípios da simplicidade e da informalidade ............................................................... 28 2.2.4 Princípio da economia processual .................................................................................. 29 2.2.5 Princípio da oralidade ................................................................................................... 30 3 PAGAMENTO DE CONDENAÇÕES JUDICIAIS PELA FAZENDA PÚBLICA ................ 32 3.1 ORIGEM E CARACTERÍSTICAS DO PRECATÓRIO ........................................................ 32 3.2 CONCEITO DE PRECATÓRIO E SUAS CARACTERÍSTICAS ........................................... 33 3.3 INADIMPLEMENTO ....................................................................................................... 35 3.4 REQUISIÇÃO DE PEQUENO VALOR .............................................................................. 37 3.5 ENTIDADES QUE PAGAM POR REQUISITÓRIOS .......................................................... 39 3.6 A MUDANÇA DE ENTENDIMENTO SOBRE A APLICAÇÃO DOS REQUISITÓRIOS ÀS EMPRESAS PÚBLICAS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA ......................................... 40 4 ELEMENTOS TEÓRICOS E PRÁTICOS DO PROCESSO NO JUIZADO CÍVEL COM RÉS QUE PRESTAM SERVIÇO PÚBLICO EM REGIME DE MONOPÓLIO ...................... 48 4.1 DO EXCESSO DE COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS .......................... 48 4.2 DA POSSÍVEL INCOMPATIBILIDADE PRINCIPIOLÓGICA OCASIONADA PELA APLICAÇÃO DO INSTITUTO DO PRECATÓRIO NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS .......... 50 4.3 DO PARALELISMO COM A JUSTIÇA COMUM .............................................................. 51 4.4 ELEMENTOS TEÓRICOS SOBRE A COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS ............................................................................................................................................ 53 11 4.5 CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS VERIFICADAS NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA .......................................................................................................................... 57 4.6 INSEGURANÇA JURÍDICA E NECESSIDADE DE UNIFICAR A JURISPRUDÊNCIA ........ 59 5 CONCLUSÃO ................................................................................................................... 63 6 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 65 APÊNDICE A....................................................................................................................... 71 APÊNDICE B....................................................................................................................... 73 12 1. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo estudar acerca da competência, ou falta dela, dos Juizados Especiais Cíveis, especificamente no tocante ao julgamento de causas promovidas contra Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista prestadoras de serviço público em regime não concorrencial. A relevância da discussão resume-se na tentativa de melhorar a compreensão do tema. Isso porque o STF decidiu, com força vinculante, que os pagamentos das Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista em condenações judiciais sujeitam-se ao regime de requisitórios, ou seja, precatórios e requisições de pequeno valor (RPV). Baseados nisso, parte dos juristas entende que os Juizados Especiais Cíveis se tornaram incompetentes para o julgamento das causas em que estas entidades estejam no polo passivo. De modo análogo, varas fazendárias também se julgam incompetente para o deslinde dos casos. Para o desfecho desta pesquisa dar-se-á ênfase à jurisprudência recente sobre o tema, mormente às decisões do STF nos julgamentos das várias Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental sobre o tema, bem como na decisão proferida pela Turma Recursal do TJSC no Conflito de Competência n. 5000761-88.2020.8.24.0910 e nas decisões recentes do 1º e 2º Juizados Especiais Cíveis e das Varas Fazendárias da Comarca de Chapecó, entre outras decisões relevantes sobre a questão. Ademais, também debruçar-se-á sobre leis pertinentes, bem como na doutrina sobre a temática. Assim, a presente pesquisa será dividida em três capítulos. O primeiro deles será destinado a elaborar um breve contexto histórico acerca da formação e objetivos dos Juizados Especiais Cíveis, debatendo também sobre os seus princípios, principalmente aqueles relacionados ao conflito de competência em questão e, possivelmente, violados. No segundo capítulo, discorrer-se-á acerca do conceito e das formas de pagamento da Fazenda Pública em condenações judiciais. E, no derradeiro capítulo final, será debatida e analisada a problemática com base nos julgados recentes e, apoiando-se nos conceitos da melhor doutrina, tentar-se-á chegar a uma conclusão que unifique os entendimentos acerca da competência ou incompetência do Juizado nas citadas causas. 1.1 OBJETIVOS De acordo com a contextualização e problemática exposta na introdução, serão apresentados a seguir o objetivo geral e os objetivos específicos deste trabalho. 13 1.1.1 Objetivo geral Delinear acerca da competência, ou falta dela, dos Juizados Especiais Cíveis para julgar causas envolvendo no polo passivo Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista prestadoras de serviço público em regime de monopólio. 1.1.2 Objetivos específicos a. Analisar os princípios dos Juizados Especiais Cíveis que têm relação com o julgamento de causas envolvendo no polo passivo Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista prestadoras de serviço público em regime de monopólio; b. Compreender como ocorrem os pagamentos de condenações judiciais de Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista prestadoras de serviço público em regime de monopólio; c. Compreender as ADPFs 513 e 556 do STF e outras sobre a temática, bem como analisar se tais decisões têm o condão de suprimir a competência dos Juizados Especiais Cíveis nas causas em que a parte ré é Empresa Pública ou Sociedade de Economia Mista atuante em regime de monopólio; 1.2 JUSTIFICATIVA Sabe-se que os Juizados Especiais Cíveis, instituídos através Lei 9.099/1995, são regidos pelos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, entre outros. A referida lei, em seu art. 8º, versa sobre quem não pode ser parte nas ações perante os Juizados Especiais Cíveis. Nesse sentido, destaca-se a proibição em ser parte de pessoas jurídicas de direito público e Empresas Públicas da União. Nesse ínterim, não há problemas, via de regra, em propor ações contra Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista de modo geral. Isso porque não há qualquer proibição expressa. Ocorre que, através do julgamento de várias Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), a exemplo das de n. 513 e 556, o STF decidiu que o pagamento das condenações judiciais de Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista prestadoras de 14 serviço público em regime de monopólio sujeitam-se ao regime RPV e precatórios. Com isso, suscitou-se dúvidas nos julgadores acerca da possibilidade de haver tais condenações em Juizados Especiais Cíveis, visto que muitos juristas entendem que tal regime de pagamento põe em xeque alguns princípios dos Juizados, mormente o da celeridade processual e o da simplicidade. Assim, a jurisprudência se sedimentou entre aqueles que afirmam ser possível o julgamento das referidas causas nos Juizados Especiais Cíveis e aqueles que defendem a incompetência desses Juizados para o julgamento das referidas ações. Exemplo prático dessa contenda pode ser visto no Tribunal de Justiça de Santa Catarina. O magistrado titular do 2º Juizado Especial Cível da Comarca de Chapecó suscitou Conflito de Competência n. 5000761-88.2020.8.24.0910, em faceo estatuto jurídico da empresa pública, da Sociedade de Economia Mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. 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Acesso em 15 fev. 2023. 70 APÊNDICES 71 APÊNDICE A ___________________________________________________________________________ Atestado de Autenticidade da Monografia 72 UNIVERSIDADE COMUNITÁRIA DA REGIÃO DE CHAPECÓ – UNOCHAPECÓ CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO ATESTADO DE AUTENTICIDADE DA MONOGRAFIA Eu, Ricardo Metz Weitz, estudante do Curso de Direito, código de matrícula n. 750282, declaro ter pleno conhecimento do Regulamento da Monografia, bem como das regras referentes ao seu desenvolvimento. Atesto que a presente Monografia é de minha autoria, ciente de que poderei sofrer sanções nas esferas administrativa, civil e penal, caso seja comprovada cópia e/ou aquisição de trabalhos de terceiros, além do prejuízo de medidas de caráter educacional, como a reprovação n componente curricular Monografia II – Seminário de Socialização de monografias, o que impedirá a obtenção do Diploma de Conclusão do curso de graduação. Chapecó, 10 de junho de 2023. 73 APÊNDICE B ___________________________________________________________________________ Termo de Solicitação de Banca 74 UNIVERSIDADE COMUNITÁRIA DA REGIÃO DE CHAPECÓ – UNOCHAPECÓ CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO TERMO DE SOLICITAÇÃO DE BANCA Encaminho à Coordenação do Núcleo de Monografia o trabalho monográfico de conclusão de curso do estudante __________________________________________________, cujo título é A (in)competência dos Juizados Especiais Cíveis para julgar empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviço público em regime de monopólio em consonância com as recentes decisões do STF, realizado sob minha orientação. Em relação ao trabalho, considero-o apto a ser submetido à Banca Examinadora no Seminário de Socialização de Monografias, vez que preenche os requisitos metodológicos e científicos exigidos em trabalhos da espécie. Para tanto, solicito as providências cabíveis para a realização da defesa regulamentar. Chapecó, 10 de junho de 2023. __________________________________________________ Assinatura do orientadorda 2ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Chapecó, sendo que a 1ª Turma Recursal decidiu, no caso em apreço, que o 2º Juizado Especial Cível é que tem competência para o julgamento. No entanto, o acórdão da Turma Recursal não tem efeito vinculante, ou seja, não torna obrigatório o julgamento das ações semelhantes pelos Juizados Especiais Cíveis, assim como não proíbe o julgamento pelos Juízos Fazendários, ficando tais decisões exclusivamente a cargo dos magistrados de primeiro grau, em cada ação distribuída. A jurisprudência sedimentada sobre o assunto acarreta insegurança jurídica para o jurisdicionado. Como exemplo disso, cita-se a Comarca de Chapecó, em que há dois Juizados Especiais Cíveis. Num deles, o magistrado titular extinguia o processo entendendo a falta de competência (nos Juizados não há a obrigação de remeter os autos para a vara competente), enquanto o juiz titular da outra vara recebia e, com ressalvas, dava prosseguimento à lide, mesmo já tendo demonstrado o entendimento de ser incompetente para a causa. Dito isso, evidencia-se a necessidade de um maior aprofundamento sobre o tema, a fim de que se possa entender se os Juizados Especiais Cíveis são competentes ou não para o julgamento dos processos em questão, de modo a auxiliar na unificação do entendimento sobre o tema. 15 2 A GÊNESE DOS JUIZADOS ESPECIAIS 2.1 ORIGEM HISTÓRICA Ao se fazer uma regressão histórica, nota-se que o modelo coexistencial de justiça participativa tem resquícios longínquos, provenientes da época colonial do Brasil. Naquele tempo, o modelo de justiça era local e popular, em que pese não ser um ideal a servir de exemplo. Porém, destoa o contraste com o modelo republicano de justiça, excessivamente formal, conservador e elitizado, marcado pelo positivismo jurídico e fadado a profundas e constantes crises (ABREU, 2008, p. 28). O modelo liberal-individualista, popular no início da República, mostrou-se ineficaz frente às reais necessidades de um regime democrático justo. Assim, o Estado teve que reconhecer sua incapacidade de onipresença e buscar a participação de outros atores para auxiliá-lo a resolver as demandas cada vez mais numerosas. A tão buscada justiça social, de índole constitucional, passou a ser uma exigência da democracia (ABREU, 2008, p. 34). Após a modernidade, a necessidade de criação de um órgão para julgar pequenas causas foi notada em vários sistemas jurídicos do mundo. Nos Estados Unidas, criaram-se as “Small Claims Courts”, a fim de proporcionar o acesso à justiça para a população financeiramente carente e com isso diminuir a desigualdade existente no sistema judicial da época, que era, na prática, inacessível aos operários e donos pequenos comércios (OLIVEIRA, 1989, p. 3). No modelo de corte americana o procedimento era ainda mais célere do que aquele conhecido hoje. Naquele processo não se criavam autos. O juiz da causa ouvia as partes e eventuais testemunhas anotando o que julgasse necessário em uma simples ficha. Em todo momento tentava-se pôr fim ao litígio através de uma solução amigável constantemente estimulada, resultando em composição uma parte significativa dos processos (1985, sem p.). No Brasil, a criação de um modelo de juízo de pequenas causas foi prevista já na Constituição de 1934. A ideia era julgar causas de menor valor econômico de forma especializada, mais célere e informal, focando primordialmente na conciliação. Porém foi só após o sucesso da experiência norte-americana que o Secretário Executivo vinculado ao Ministério da Desburocratização, o qual era responsável pelo Programa Nacional de Desburocratização do Poder Executivo da época, viajou para os Estados Unidos a fim de conhecer a experiência jurídica das “smalls claim courts”, em funcionamento na cidade de Nova Iorque. Aquelas singelas cortes internacionais eram presididas por juízes togados, mas contavam com o auxílio de árbitros, normalmente escolhidos entre advogados, e julgavam 16 causas de até mil dólares. Nelas, somente no ano de 1982 foram julgadas cerca de setenta mil causas (CUNHA, 2008, p. 17). Segundo Watanabe (FONAJE, 2020, live) mais de 70% das reclamações recebidas pelo Ministério da Desburocratização diziam respeito às deficiências do Poder Judiciário da época. Assim, sem dúvidas a experiência nova-iorquina foi vista de forma eufórica como uma possibilidade de aumentar o prestígio do Judiciário junto à sociedade. Paralelamente, no ano de 1982 surgiram no Rio Grande do Sul os Conselhos de Conciliação e Arbitragem. Estes não tinham previsão legal e eram compostos por juízes improvisados, que muitas vezes atuavam fora do horário de expediente (ROCHA, 2019, p. 4). Quase que de forma simultânea ao movimento rio-grandense, foram instaladas Juntas Informais de Conciliação no estado de São Paulo. Após, face ao pioneirismo bem-sucedido da experiência e a produção de resultados significativos, foram instalados Conselhos também em outros estados da federação (DINAMARCO, 2019, p. 772). Com o sucesso dos recentes Conselhos de Conciliação espalhados pelo país, sobretudo aqueles criados no Rio Grande do Sul, aliado à experiência adquirida em Nova Iorque, o Ministério da Desburocratização propôs a criação dos Juizados de Pequenas Causas. Aquilo que já estava previsto na Constituição de 1934 e nunca tinha sido implantado começou a ganhar forma com a proposição da Lei 7.244/84 (CUNHA, 2009, p. 15). Após a publicação do anteprojeto da referida Lei, os advogados se posicionaram contra devido à relativização do princípio da capacidade postulatória exclusiva do advogado. Surgiu uma grande discussão e uma verdadeira batalha contra a ferrenha oposição da Ordem dos Advogados do Brasil. Desta forma, aprovou-se de forma mais modesta a criação dos Juizados de Pequenas Causas. Estes, inicialmente, tinham competência para julgar causas de até vinte salários-mínimos, sendo que as de até dez salários-mínimos poderiam ser intentadas sem advogado. Ademais, havia somente competência para o processo de conhecimento, excluindo- se a execução (FONAJE, 2020, live). Watanabe relembra com saudosismo sua atuação na criação dos Juizados. Segundo o jurista, após a aprovação da Lei, o Tribunal de São Paulo somente criou estrutura para a parte da conciliação. Criou-se o Fórum Regional da Lapa. Sua inauguração contou com a presença ilustre do presidente do STF à época, Moreira Alves, o qual afirmou em seu discurso estar presenciando a coisa mais importante já vista em sua carreira. O resultado colhido na Lapa foi estrondoso. Com mais de sessenta advogados atuando como conciliadores, além de juízes e até promotores, funcionando na maior parte das vezes à noite, obtinha-se conciliação em mais de 90% dos processos. (FONAJE, 2020, live). 17 A criação dos Juizados Especiais Cíveis buscou legitimar o modelo democrático no início dos anos 80. Foi um movimento que partiu tanto do Poder Judiciário, buscando alterar sua estrutura de forma a aumentar o acesso à justiça, quanto do Poder Executivo, o qual buscava alavancar o número de causas que o Judiciário era capaz de julgar de forma eficiente, a fim de perseguir o viés democrático buscado já na época. A estratégia era buscar legitimidade naquele momento de crise institucional (CUNHA, 2008, p. 12). Naquele período histórico havia um grande sentimento de antipatia em relação ao Poder Judiciário. A impressão era de que alguma coisa deveria ser feita de forma urgente para melhorar o sistema a fim de evitar um colapso institucional. A chamada crise judiciária da época possuía diversos fatores, tanto internos quanto externos, e passava sem dúvidas pelas modificações sociais, políticas e econômicas recém experimentadas. Embora os Juizados Especiais não fossem suficientes para resolver a crise, buscou-se neles uma forma de minimizar seus impactos através da justiça participativa (devido ao aumentoda participação da comunidade) e da justiça coexistencial (graças à participação de outros atores no processo e priorização da autocomposição). A tutela prestada pelo Estado-juiz foi repensada, dando prioridade à conciliação amigável ao invés da imperatividade de uma decisão forçada, imposta por um mecanismo estatal moroso e desacreditado. A Lei dos Juizados Especiais Cíveis representou uma verdadeira revolução da cultura jurídica do país, a qual tonificou o pouco crédito que o Poder Judiciário tinha junto aos cidadãos (TOURINHO NETO & FIGUEIRA JR. 2009, p. 44). A experiência dos Juizados significava uma acentuada sensação de melhora no serviço prestado pelo Judiciário, ocasionada pela aproximação da justiça e da comunidade a fim de amenizar os conflitos sociais. (CUNHA, 2008, p. 21). Ressalta ROCHA (2019, p. 4) que um dos objetivos mais importantes da criação dos Juizados foi a tentativa de criar uma cultura de conciliação na resolução dos conflitos no Brasil. Tentou-se mudar o foco. Enquanto no procedimento comum havia grande preocupação em relação às questões processuais, no novo procedimento o foco estaria nas partes em litígio e no bem jurídico buscado. Com a conciliação, evita-se o longo caminhar processual, pacificam-se os conflitos e se obtêm uma solução baseada na vontade das partes, o que via de regra as agrada mais do que uma solução imposta. Quando o constituinte originário criou a Constituição atual, já existia o Juizado de Pequenas Causas, o qual de forma geral atendia aos objetivos para o qual foi proposto. Assim, a fim de dar força constitucional a essa justiça especializada, previu-se na CRFB dois modelos de Juizados: aquele que já existia, o Juizado de Pequenas Causas, bem como ressuscitou-se a 18 previsão de criação dos Juizados Especiais, sendo o primeiro competente para causas de menor valor econômico e o segundo com competência para julgar causas menos complexas e infrações penais de menor potencial ofensivo (ROCHA, 2019, p. 6). Em 26 de setembro de 1995, sancionou-se a Lei 9.099, a qual versa, conjuntamente, acerca dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Assim, criaram-se os Juizados Especiais Cíveis como órgãos da justiça ordinária com objetivo de julgar as lides de sua competência, além de promover a conciliação entre as partes e a execução de seus próprios julgados (PARIZATTO, 2017, p. 10). Surpreendentemente, a referida lei expressamente revogou a lei do Juizado Especial de Pequenas Causas. Com isso, confundiu-se, de maneira equivocada, complexidade com valor econômico. A despeito da previsão constitucional de ambos os modelos de Juizados, unificou- se todo procedimento na Lei 9.099/95, ignorando-se que causas de pequeno valor não necessariamente são simples, e causas complexas não obrigatoriamente são de alto valor. Conquanto tenha havido a confusão conceitual na criação do modelo de Juizado existente hoje, houve a contemplação de causas de pequeno valor (art. 3º, incisos I e IV da Lei 9.099/95) e também de causas especiais em razão da menor complexidade da matéria (art. 3º, incisos II e III da Lei 9.099/95). Portanto, no mesmo diploma legislativo foram abrangidas as competências dos arts. 24, inciso X, e 98, inciso I, da CRFB (ROCHA, 2019, p. 7). Watanabe critica a forma como esse sistema é estruturado hoje. Segundo o autor, ampliou-se demais a competência dos Juizados Especiais de modo que eles passaram a servir acima de tudo ao melhoramento do desempenho do Judiciário, que ainda sofre com o acúmulo de processos. Para o jurista, a transformação dos Juizados em somente mais uma espécie de justiça especializada retira o cerne do significado do Juizado de Pequenas Causas. Há sem dúvida um grande distanciamento do modelo de hoje daquele que foi proposto na primeira Lei dos Juizados e, ainda mais, daquilo que se viu fazer tanto sucesso em Nova Iorque. (FONAJE, 2020, live). Contudo, o modelo criado se mostrou, embora não livre de fundamentadas críticas, eficiente em seu papel. Mesmo com os reveses surgidos ao longo do tempo. Happke (2012, sem p.) afirma que a instituição ainda é bem-vista junto aos jurisdicionados. O autor ressalta que os Juizados ainda hoje podem ser considerados como a “vitrine da Justiça”, graças à elevada credibilidade que estes detêm quando comparados à justiça comum. Devido ao sucesso inicial dos Juizados Especiais Cíveis, foram criados modelos análogos também na Justiça do Trabalho (Lei 9.957/2000), na Justiça Federal (Lei 10.259/2001) e nos Juízos da Fazenda dos Estados, Municípios e Distrito Federal (Lei 12.153/2009). 19 Esse conjunto de leis tratando de modelos semelhantes de Juizados poderia ser previsto em apenas um diploma legal, unificando regras e conceitos, de modo a tornar menos confuso o tratamento da matéria. Nesse sentido, foi a aprovada no Fórum Permanente de Processualistas Civis moção que discorre sobre a necessidade de elaboração de uma nova lei de Juizados Especiais, a fim de dar “aos Juizados Especiais Cíveis, aos Juizados Especiais Cíveis, aos Juizados Especiais Federais e aos Juizados da Fazenda Pública tratamento compatível com o Código de Processo Civil de 2015”. (FPPC, p. 67). Os Juizados Especiais Cíveis, de modo geral, preveem um procedimento sem excesso de formalismo e burocracia, assim buscando tornar mais célere a prestação jurisdicional (DONIZETTI, 2016). Ademais, a gratuidade prevista pela Lei 9.099/95, consoante na ausência de custas e honorários de sucumbência em primeiro grau de jurisdição, vem ao encontro do que se entende por Estado Social. (BOTTIN, 2006). Segundo Luciana Gross Cunha (2008, p. 11): Ainda sob esta perspectiva, os juizados especiais no Brasil, ao contrário dos países da common law, nasceram de uma iniciativa dos tribunais que se viram diante da necessidade de atender conflitos que antes não chegavam ao sistema de Justiça. Neste processo, o Judiciário brasileiro, juntamente com o processo de transição política para a democracia, que atingia mais diretamente o Poder Executivo, no início da década de 80, aderiu à agenda de democratização, aproximando-se da população com o objetivo de se legitimar. Assim, a criação dos juizados especiais no Brasil seria resultado de dois movimentos: um que parte do Poder Judiciário ao instituir em sua estrutura novas formas de acesso à Justiça; outro de iniciativa do Poder Executivo ao produzir políticas que ampliam a capacidade do poder Judiciário de apreciar um maior número de direitos, de forma mais rápida e eficiente, democratizando o Estado. Na atual Constituição há menção aos modelos de Juizados em dois dispositivos. No art. 94, cita-se o Juizado de Pequenas Causas. Já no art. 98, dispõe-se acerca dos Juizados Especiais. Tais dispositivos constitucionais servem para estabelecer as finalidades e as características de cada modelo, balizando, ao lado dos princípios, a interpretação normativa. (BORRING, p. 9). Com a criação de vários Juizados Especiais, a doutrina passou a conceituar um Sistema de Juizados Especiais. Com o advento da Lei 9.099/95, houve a previsão legal desse Sistema em seu art. 93, o qual dispõe que a “Lei estadual disporá sobre o Sistema de Juizados Especiais Cíveis e Criminais, sua organização e competência”. Posteriormente, com a vigência da Lei dos Juizados Especiais da Fazenda Pública o referido Sistema ganhou projeção. Isso porque seu art. 1º dispõe que: Art. 1º Os Juizados Especiais da Fazenda Pública, órgãos da justiça comum e integrantes do Sistema dos Juizados Especiais, serão criados pela União, no Distrito 20 Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para conciliação, processo, julgamento e execução, nas causas de sua competência. Parágrafo único. O sistema dos Juizados Especiais dos Estados e do Distrito Federal é formado pelos Juizados Especiais Cíveis, Juizados Especiais Criminais e Juizados Especiais da Fazenda Pública.Portanto, considerando todos os Juizados Especiais existentes no ordenamento jurídico, pode-se falar que existe atualmente um Sistema de Juizados Especiais, com princípios, regras e procedimentos próprios. Nesse sentido, leciona Tourinho Neto e Figueira Jr. (2007, p. 734): Sistema de Juizados Especiais vêm a ser, portanto, um conjunto de regras e princípios que fixam, disciplinam e regulam um novo método de processar as causas cíveis de menor complexidade e as infrações penais de menor potencial ofensivo. Uma nova Justiça marcada pela oralidade, simplicidade, informalidade, celeridade e economia processual para conciliar, processar, julgar e executar, com regras e preceitos próprios e, também, com uma estrutura peculiar, Juízes togados e leigos, Conciliadores, Juizados Adjuntos, Juizados Itinerantes, Turmas Recursais, Turmas de Uniformização. A expressão “Sistema” é interpretada de diferentes formas pela doutrina. Fazendo parte da porção majoritária, cita-se Rocha (2019, p. 19) e Câmara (2010, p. 195), os quais entendem que as Leis dos Juizados existentes (Lei 9.099/95, Lei 10.259/01 e Lei 12.153/09) se integram, formando uma espécie de Estatuto dos Juizados. Há um entendimento bastante difundido de que os Juizados pertencem a um Microssistema próprio, também chamado de Teoria do Microssistema. Na maioria das vezes, a expressão é utilizada no sentido de enfatizar a autonomia dos Juizados dentro do ordenamento jurídico como um todo. Todavia, as críticas a essa posição se sintetizam na absoluta separação jurídica que ela traria para os Juizados, como por exemplo, na aparente impossibilidade de submeter às decisões a recursos a órgãos não integrantes do microssistema (ROCHA, 2019, p. 20). Analisando todas as nuances acerca dos Juizados Especiais, aliado à regressiva análise doutrinária e jurisprudencial, infere-se que não se privilegiou a Teoria do Microssistema. Uma porque pela grande proporção de processos distribuídos nos Juizados não poderia se falar em microssistema. Ademais, certamente a intenção do legislador não foi criar um microssistema, visto que não há como isolar os Juizados Especiais do restante do ordenamento. Tal tentativa só criaria problemas conjunturais, além de violar o acesso à justiça. Desta forma, ao se falar em um Sistema de Juizados Especiais, deve-se remeter ao conjunto de Leis que os disciplinam, consoante apregoa a Teoria do Estatuto. A autonomia dos órgãos judicantes que integram esse Sistema é a mesma daqueles que integram a justiça 21 ordinária, ou seja, sujeita a controle de outros órgãos, a exemplo do STF. Ademais, todos os órgãos do Sistema devem respeitar os princípios básicos estabelecidos pela CRFB, além daqueles especiais, previstos nas normas legais instituidoras. A visão macro dos Juizados Especiais como um Sistema integrado mostra a ascensão do reconhecimento obtido por esse sistema especializado de justiça. Em que pese o estudado Sistema ser integrado por todas as Leis instituidoras dos Juizados Especiais, denota-se que a lei em que está inserida toda a base normativa é a Lei 9.099/95. Tal fato se comprova na teoria devido à frequente remissão a essa lei, bem como na prática ao servir de interpretação e integração na decisão das lides. É na Lei dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais que se encontra o sistema principiológico, as formas de interpretação, a estrutura do procedimento e outras diretrizes que servem à analogia quando houver lacunas na base legal dos Juizados Especiais Federais (Lei 10.259/2001) e da Fazenda Pública (Lei 12.153/09). (ROCHA, 2019, p.21). 2.2 PRINCÍPIOS DOS JUIZADOS ESPECIAIS No ramo do Direito, os princípios são mandamentos nucleares do sistema jurídico. Além de alicerçar a base do sistema, servem de critério para o devido entendimento do sistema normativo. (MELLO, p. 747). De forma sintética, são postulados básicos que fundamentam e qualificam a ordem jurídica instituída (BARROSO, p. 147). Salienta-se que o legislador constituinte, ao adicionar a previsão de criação de um procedimento especial para julgamento de pequenas causas, seguiu a tendência mundial de dar enfoque constitucional a normas de direito processual. Esse movimento é perceptível também ao se debruçar sobre as nuances do processo que a Constituição exaustivamente prescreve, majoritariamente em forma de princípios. Para eleger os princípios concernentes aos Juizados Especiais Cíveis, objetivou-se propiciar amplo acesso ao Poder Judiciário, não olvidando de continuamente buscar a conciliação entre as partes e sempre respeitando as garantias constitucionais e os princípios processuais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. (SANTOS & CHIMENTI, 2013, p. 50). No Sistema dos Juizados Especiais Cíveis existem princípios próprios, elencados em lei ou implícitos, que dão forma ao procedimento diferenciado desta jurisdição. Obviamente, todos os princípios devem ser respeitados, visto que transgredi-los é muito mais grave do que violar 22 uma norma legal. Isso porque, ao transgredir um princípio, viola-se todo o sistema, ascendendo assim a mais grave forma de ilegalidade (MELLO, p.748). Tourinho Neto e Figueira Júnior (2007, p. 734) dissertam que: O Sistema de Juizados Especiais vem a ser, portanto, um conjunto de regras e princípios que fixam, disciplinam e regulam um novo método de processar as causas cíveis de menor complexidade e as infrações penais de menor potencial ofensivo. Um a nova Justiça marcada pela oralidade, simplicidade, informalidade, celeridade e economia processual para conciliar, processar, julgar e executar, com regras e preceitos próprios e, também, com uma estrutura peculiar, Juízes togados e leigos, Conciliadores, Juizados Adjuntos, Juizados Itinerantes, Turmas Recursais, Turmas de Uniformização. Ao elencar os princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual, celeridade e conciliação, buscou-se efetuar uma melhoria social, principalmente para a população que não conseguia chegar ao Judiciário para buscar tutela ao seu direito lesado nos casos de baixo valor econômico. Tentou-se solucionar a flagrante desmotivação do cidadão com o Poder Judiciário e aumentar o custo-benefício de protocolar ações com baixo valor de causa numa realidade em que crescia cada vez mais a insatisfação com o serviço jurisdicional prestado e se evitava sobremaneira a litigância em juízo (GAIO JÚNIOR, p. 734). Segundo disserta Fátima Nancy Andrighi (2010, p. 3), ministra do Superior de Justiça, os juizados especiais são exemplos de democracia no Poder Judiciário, visto que atendem a todos os legalmente legitimados, sem fazer distinção entre as classes econômicas e sociais. Destarte, o acesso à justiça fica condicionada apenas à competência estabelecida na Constituição e nas Leis dos Juizados. Cabe advertir que no Sistema dos Juizados Especiais se faz necessária muitas vezes a ponderação entre dois ou mais princípios, assim como ocorre em todo o ordenamento jurídico pátrio. Destarte, não se pode obedecer de forma absoluta e imutável qualquer princípio, mas sim ponderar entre os preceitos conflitantes a fim de chegar em uma solução que não suprima integralmente qualquer deles. O art. 2º da Lei 9.099/95 elenca os princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual, celeridade, conciliação e transação. Além destes, faz-se necessário citar, no âmbito da discussão do presente trabalho, os princípios constitucionais do acesso à justiça, do juiz natural e da indelegabilidade da jurisdição, também aplicados ao Sistema dos Juizados Especiais Cíveis. O que a lei erroneamente chama de critérios, são em verdade princípios gerais. Tais princípios servem para fundamentar e orientar todo o procedimento. Desta forma, cabe sua observância tanto ao legislador no momento de modificar a lei, quanto ao magistrado no23 momento de aplicá-la. Ademais, não há de jamais se olvidar de que entre os princípios não há hierarquia abstrata, devendo ser sopesados no caso concreto, mormente em caso de colisão entre um e outro (TOURINHO NETO & FIGUEIRA JR. 2009, p. 73). A importância da fidelidade de todos os agentes do processo, tais como juízes, advogados, serventuários e partes, ao sistema principiológico é de fundamental relevância nos Juizados Especiais Cíveis e propicia o funcionamento regular do sistema. Todos os participantes do processo devem atuar com consciência de que estão numa vara especializada dotada de postulados próprios e não na justiça comum (HAPPKE, 2016, sem p.). 2.2.1 O supraprincípio do acesso à justiça Fato frequente em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento é a exclusão de grande parcela da população aos serviços de justiça. No caso do Brasil, é ascendente a preocupação com a inclusão de todas as camadas sociais no âmbito da proteção jurídica estatal. A urgência se justifica ao analisarmos a desigualdade social e cultural, bem como para o tamanho continental do país, o que faz com que a periferia, mais distante dos efeitos da globalização, frequentemente fica para trás no acesso aos serviços estatais. O acesso à justiça é requisito essencial para a cidadania e promovê-lo é instrumento indelegável do Estado (ABREU, 2008, p. 26). Nas democracias capitalistas o custo do Poder Judiciária se mostra, de modo geral, bastante elevado. Por óbvio, o custo por ação tende a ser proporcionalmente maior em causas menores. Além disso, normalmente quem litiga nas ações de menor valor, via de regra, é justamente o extrato com menos condições financeiras. Assim, muitas vezes a parte que já foi vítima do ato ilícito é posteriormente vítima do sistema jurídico, que indiretamente obsta a perquirição do seu direito. Tal fenômeno é o que Abreu (2008, p. 54) chama de dupla vitimização. A CRFB de 1988, buscando solidificar o Estado Social no país, traz diversas normas programáticas e garantias aos jurisdicionados. Várias dessas normas oferecem ditames básicos ao serviço jurisdicional do Estado. Tecendo elogios à nossa Carta Magna, Pellegrini (2012, p. 85) afirma que esta representa a mais moderna tentativa de encurtar o espaço entre o cidadão e o sistema de justiça. O princípio constitucional do acesso à justiça prevê que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito.” (BRASIL, 1988). Nesse sentido, o direito de ação, para Nelson Nery Junior, “é um direito cívico e abstrato, vale dizer, é um direito subjetivo 24 à sentença tout court, seja essa de acolhimento ou de rejeição da pretensão, desde que preenchidas as condições da ação”. (apud Moraes, 2008, p. 91) Ainda nessa toada, cabe destacar que o Judiciário, diante de uma ameaça ou lesão a direito é obrigado a realizar a prestação jurisdicional requerida regularmente, de modo a respeitar outro também importante princípio que é o da indeclinabilidade (MORAES, 2021, sem p.). O acesso à justiça previsto na CRFB, embora de difícil definição, busca definir os objetivos básicos do sistema jurisdicional, através do qual as partes podem, com auxílio da tutela do Estado, reivindicar seus direitos ou fazer valer aqueles já reconhecidos. Para tanto, a acessibilidade ao sistema deve estar ao alcance de todos e os resultados da tutela jurisdicional devem ser justos e coerentes. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 8). Ainda segundo Cappelletti e Garth (op. cit., p. 12), “o acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como requisito fundamental - o mais básico dos direitos humanos, de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir os direitos de todos”. No início da ascensão dos sistemas jurídicos ocidentais, o acesso à justiça era visto simplesmente na possibilidade de utilização dos serviços judiciários pelos cidadãos mais pobres. Posteriormente, o entendimento foi consolidado no sentido de que não é necessário somente a garantia ao simples acesso, mas sim a um acesso eficiente e satisfatório. Isso porque, considerando o crescente número de leis criadas e os procedimentos cada vez mais complexos, o auxílio técnico se tornou quase indispensável, devendo o Estado procurar formas para que consiga disponibilizar tais serviços a população vulnerável de forma eficiente (CAPPELLETTI; GARTH, op. cit., p. 32). Nesse condão, destaca-se que “qualquer tentativa realística de enfrentar os problemas de acesso deve começar por reconhecer esta situação: os advogados e seus serviços são muito caros”. CAPPELLETTI; GARTH, op. cit., p. 18). Assim, surgiu a necessidade de o Estado criar soluções efetivas e acessíveis para causas de menor complexidade, embora considerando a necessidade de avaliar o dispêndio dos sempre limitados recursos estatais. Isso porque, via de regra, as lides envolvendo pequenas causas não são economicamente viáveis no procedimento comum. Nesse procedimento, as custas judiciais podem se tornar mais robustas do que o valor da condenação, trazendo ao autor um ganho de causa apenas simbólico. Desta forma, pode o Juizado Especial ser utilizado com confiança pelo indivíduo mais carente, independente dos recursos que dispõe aquele contra o qual se litiga. (CAPPELLETTI; GARTH, op. cit., p. 97). A fim de aumentar o acesso à justiça, foi necessário criar condições para que as causas de menor vulto pudessem também ser resolvidas através do sistema oficial, evitando a 25 litigiosidade contida e a frequente autotutela que muitas vezes traz efeitos indesejados, como exemplo o aumento da violência e o desprestígio do poder estatal. O grande trunfo para essa promoção de justiça foi a criação dos Juizados Especiais Cíveis, através dos quais buscou-se democratizar o modelo de justiça e popularizar o Judiciário (ABREU, 2008, p. 36). Para CUNHA (2008, p. 10) a democratização do acesso à justiça se confunde com a popularização da justiça, devendo esta chegar ao maior número possível de pessoas. O Poder Judiciário, como um dos poderes autônomos do Estado, tem, junto com os outros poderes, o dever de buscar elevar os mecanismos de representação previstos em nosso sistema democrático. A redação da Exposição de Motivos da Lei 7.244/84 (Lei dos Juizados de Pequenas Causas), traz à tona a intenção do legislador da época: “Os problemas mais prementes, que prejudicam o desempenho do Poder Judiciário, no campo civil, podem ser analisados sob, pelo menos, três enfoques distintos, a saber: [...] c) o tratamento processual inadequado das causas de reduzidos valor econômico e consequente inaptidão do Judiciário atual para a solução barata e rápida desta controvérsia.” A criação dos Juizados Especiais buscou resolver parte do problema da litigiosidade contida que havia na época, proporcionando um acesso à justiça mais generalizado, devido principalmente ao baixo custo. A população mais carente foi guarnecida de um sistema de justiça rápido, barato e seguro, que ampliou o acesso à “ordem jurídica justa” (TOURINHO NETO & FIGUEIRA JÚNIOR, 2009, p. 42). Dissertam de forma brilhante Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Antônio Carlos de Araújo Cintra (2012, p. 82): E com isso tem a Nação, no momento exato em que caminha em direção à plenitude democrática pela participação, um instrumento de democratização da Justiça. E mais: um instrumento capaz de abrir caminhos para a grande transformação que todo o sistema processual e judicial demanda, para que se efetive a promessa de igual acesso de todos à Justiça. O expressivo aumento de demandas após a criação e regular funcionamento dos Juizados Especiais é resultado da liberação da litigiosidade que estava contida na época, mormente por não encontrar antes, com o auxílio do Estado, uma forma de resolução. Com o novo 26 procedimento sumário instituído, facilitou-se o acessoaos tribunais e se incentivou o cidadão a buscar seu direito material violado através de um procedimento célere e eficaz (TOURINHO NETO & FIGUEIRA JÚNIOR (op.cit., p. 47). Os jurisdicionados têm direito de ter seus conflitos resolvidos por todos os meios adequados e os Juizados têm o dever de oferecer esse serviço, os quais atendem ao que se conhece por acesso à ordem jurídica justa, que não se limita apenas a resolução de conflitos. Na criação dos Juizados prevaleceu a ideia de que a concepção de acesso à justiça era mais abrangente do que mero acesso aos órgãos do Poder Judiciário. Para esse fim, dever-se-ia organizar e oferecer ao jurisdicionado todos os mecanismos adequados de solução de conflitos, em especial os consensuais (FONAJE, 2020, live). Assim, não restam dúvidas que os Juizados Especiais foram criados com o fim de facilitar aos cidadãos comuns, principalmente aqueles mais humildes, o acesso à justiça. Ocorre que nesse sistema jurisdicional especial, à parte do sistema ordinário, há deficiências em sua estrutura que vão de encontro ao seu próprio objetivo, tornando não raras vezes os processos morosos e inefetivos (MANCUSO, 2015, p. 140). Com efeito, em que pese existam correções a serem feitas, é notório que os Juizados possibilitam um facilitado acesso ao Poder Judiciário, oportunizando a defesa de direitos que dificilmente teria espaço se tentada através dos oneroso e complexo procedimento comum (THEODORO JUNIOR, 2016. p. 600). 2.2.2 Princípio da celeridade Um dos princípios norteadores dos Juizados Especiais Cíveis é o princípio celeridade processual, por vezes confundido com a duração razoável do processo. Segundo esse princípio, a demanda deve ser solucionada, incluindo a atividade satisfativa do direito buscado, em tempo hábil. A morosidade da justiça é um problema grave, visto que suprime os direitos fundamentais do jurisdicionado. Aqui não se fala apenas em direito de ação. De nada adianta efetivar o acesso ao sistema jurídico se o processo for inútil ou insuficiente devido à excessiva demora. O atraso da justiça tem custos econômicos de difícil mensuração para os cidadãos afetados e não raras vezes é usado como estratégia pelo demandado para se esquivar de suas obrigações (ABREU, 2008, p. 57). A celeridade não é um princípio exclusivo dos juizados especiais, visto se aplica a todos os processos do Poder Judiciário. Sua importância é tamanha que ganhou liame constitucional, 27 sendo acrescentado no art. 5º, inciso LXXVIII, pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004. Todavia, há de se reconhecer que, em que pese a ausência de previsão na Carta Magna, esse princípio já tinha espaço no ordenamento jurídico antes da Emenda. Assim reconhece o professor Alexandre de Moraes (2012, p. 456): Essas previsões - razoável duração do processo e celeridade processual -, em nosso entender, já estavam contempladas no texto constitucional, seja na consagração do princípio do devido processo legal, seja na previsão do princípio da eficiência aplicável à Administração Pública (CFRB, art. 37, caput). Nesse sentido, o princípio constitucional em questão se trata em verdade de um conceito jurídico indeterminado, sendo assim de difícil efetivação, visto ser uma regra geral carente de parâmetros passíveis de averiguação concreta (LACHTER, 2009). Em que pese o abstracionismo, o deslinde do processo em tempo razoável é um dos pressupostos de garantia de um processo justo e equitativo. A razoabilidade do tempo processual não deixa de ser uma consequência lógica do princípio do devido processo legal (Nicolitt, 2006. p. 94). No âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, Tourinho Neto & Figueira Júnior (2009, p. 41) destacam que o principal objetivo da Lei 9.099/95 foi criar um sistema para a resolução dos problemas jurídicos a eles subordinados de forma célere e eficiente, apresentando aos estudiosos do direito da época o desafio de aperfeiçoar a aplicabilidade técnica sem olvidar jamais da necessidade de o procedimento ser célere. Importante destacar que não há como afastar o princípio da celeridade sem corromper a normatização da Lei 9.099/95. Assim, um dos principais pilares da prestação jurisdicional trazida pelos Juizados é a supressão de procedimentos excessivamente burocráticos, a fim de alcançar a máxima efetividade do processo. (VANCIM & GONÇALVES, 2016, p. 28). Cabe um adendo ao significativo número de denúncias, doutrinárias e jurisprudenciais, de violação sistemática desse princípio na prática. Tourinho Neto & Figueira Júnior (2009, p. 57) afirmam que, no cotidiano de grande parte dos varas de Juizados Especiais, encontram-se com facilidade processos tramitando em tempo superior do que frequentemente levaria seu deslinde na justiça comum. Para evitar esse problema da morosidade também nos Juizados Especiais, quando necessário, nada impede que o intérprete da lei procure e efetive novas soluções processuais, assumindo a vanguarda da prestação jurisdicional, desde que com isso consiga resolver a lide de forma célere, sem implicar em morosidade jurisdicional (SANTOS & CHIMENTI, 2013 p. 50). 28 2.2.3 Princípios da Simplicidade e da Informalidade Pelo princípio da simplicidade, deve-se entender que no Sistema dos Juizados Especiais o procedimento precisa ser claro, simples e acessível a todos. Com ele, busca-se promover o acesso à justiça de forma objetiva, suprimindo qualquer excesso de formalismo que frequentemente se vê nas varas cíveis comuns. O objetivo de a Lei 9.099/95 elencar expressamente a simplicidade foi realçar que os Juizados devem funcionar de forma simples e acessível, facilitando o diálogo entre as partes e evitando que estas tenham dificuldades no entendimento e cumprimento dos atos processuais em virtude de obstáculos burocráticos. Como exemplo prático do princípio da simplicidade, tem-se que no procedimento em questão, via de regra, não devem existir incidentes processuais, devendo estar na contestação toda matéria de defesa do réu (TORRES NETO, 2011, sem p.). Ademais, o § 2º do art. 13 da lei 9.099/95 traz outro exemplo de simplicidade, quando aduz que os atos praticados em outras comarcas podem ser realizados por intermédio de qualquer meio idôneo de comunicação, podendo assim dispensar a carta precatória. Ressalta Parizatto (2017, p. 4) que o processo deverá transcorrer da forma mais espontânea e natural possível, sem burocracias e primando pela sinceridade das partes. De forma análoga ao princípio da simplicidade, a informalidade visa conseguir uma mais rápida solução para a satisfação do direito procurado pela parte. Despe-se o ato de formas específicas, tornando-o mais econômico e efetivo. Pode-se verificar a consagração do princípio da informalidade no art. 13 da Lei 9.099/95, o qual admite que atos processuais possam ser válidos mesmo que praticados contrariando a lei, desde que preencham os fins perseguidos. Para Vancim e Gonçalves (2016, p. 29) “a simplicidade contrasta com a complexidade inadmissível, mas a informalidade não deve ser confundida com a absoluta ausência de formalismo”. No mesmo sentido, alerta Happke (2016, sem p.) que não se pode, com base nos postulados da informalidade e da simplicidade, realizar os atos com displicência. Porém, não raras vezes os processos caem na vala do excesso de formalismo, frequentemente quando as partes são empresas com demandas em massa, as quais peticionam de forma genérica e muitas das vezes com o mesmo padrão de formalismo que usariam ao realizar o ato na justiça comum. Ademais, nota-se que graças a esses princípios é possível estreitar ainda mais a aproximação entre os cidadãos e o Poder Judiciário, inclusive se considerarmos a atuação de conciliadores e juízes leigos, os quais contribuem para a representatividade democrática que 29 deve haver neste microssistema, bem como para a simplificação da buscade soluções aos jurisdicionados (CUNHA, 2008, p. 10). 2.2.4 Princípio da economia processual O princípio da economia processual pode ser visto por dois vieses. O principal deles está ligado à redução dos custos financeiros do processo. De outro, aponta para a desnecessidade de praticar atos meramente formais e aproveitar os já praticados sempre que possível. Nos Juizados Especiais Cíveis, via de regra o processo tramita com menos atos e providências do que exige o rito comum. Com isso é possível isentar as partes ao pagamento de custas e despesas em primeiro grau de jurisdição e, com isso, propiciar, em tese, o acesso à justiça a todas as pessoas. (PARIZATTO, 2017, p. 4). Reinaldo Filho (1996, p. 36) leciona: O princípio da economia processual tem no processo especialíssimo dos Juizados Cíveis uma outra conotação, relacionada com a gratuidade do acesso ao primeiro grau de jurisdição, em que fica isento o demandante do pagamento de custas, e com facultatividade de assistência das partes por advogado, que dizem, à evidência, com o barateamento de custos aos litigantes fundamentado na economia de despesas, que, com a de tempo e a de atos (a economia no processo, enfim), constitui uma das maiores preocupações e conquistas do Direito Processual Civil moderno. A necessidade de elencar expressamente o princípio da economia processual se denota pela enorme influência que as custas judiciais representam em causas pequenas. Isso porque, caso essas referidas ações fossem submetidas ao procedimento comum, formal e burocrático, o custo econômico do processo muitas vezes sobrepujaria o valor objeto do litígio, inviabilizando totalmente o ingresso ao Judiciário (CAPPELLETTI; GARTH. Op. Cit., p. 19). Para Chimenti (2005, p. 13), ao se falar em economia processual está se dizendo que o procedimento buscará o objetivo estabelecido pela lei com o menor número de atos processuais possíveis e, consequentemente, com um menor custo financeiro. O princípio se coaduna com o princípio da gratuidade, pelo qual as partes estão dispensadas, via de regra, em primeiro grau de jurisdição, ao pagamento de taxas, custas e despesas. A economia processual em causas sumaríssimas, como as dos juizados especiais, tem o condão de propiciar mais rapidez à atividade jurisdicional. Desta forma, nada mais lógico que o sistema dos juizados possua acentuada aplicação deste princípio (GRINOVER; DINAMARCO; CINTRA, 2012, p. 82). 30 Já para Vancim e Gonçalves (2016, p. 29), o referido princípio tem a prerrogativa de barrar a atividade jurisdicional desnecessária, mormente nos casos em que a pretensão é nitidamente inadequada. Portanto, o princípio em questão objetiva reduzir os custos e melhorar o resultado do processo. 2.2.5 Princípio da Oralidade Na esteira da simplificação do processo, há também o princípio da oralidade, que certamente tem o mérito de aproximar o magistrado das partes, fortalecendo a comunicação. Com isso os litigantes conseguem assumir uma postura mais ativa no processo, tendo ou não assistência de defesa técnica. Valoriza-se assim a produção de atos de forma oral. O princípio da oralidade foi uma inovação jurisdicional de âmbito nacional. Promovendo a aproximação entre juiz e partes verifica-se uma melhor e mais rápida solução para a contenda processual, sem olvidar de respeitar também os princípios correlacionados pertinentes aos Juizados Especiais Cíveis, como o da identidade física do juiz, o da irrecorribilidade das decisões interlocutórias e da imediatidade de lei processual (PISKE, 2012, sem p.). Ainda segundo Piske (2012, sem p.) o princípio da oralidade tem destaque na Lei 9099/95, a qual elenca atos que podem ser feitos pelas partes de forma oral, a exemplo do pedido inicial, do mandato ao advogado, da contestação em audiência, a interposição de embargos de declaração e o início do cumprimento de sentença. Aos juízes também a lei reservou a possibilidade de praticar alguns atos de forma oral, a exemplo da decisão sobre questões que interferem no andamento da audiência e da sentença que, ao menos em teoria, é proferida oralmente logo após a audiência. Embora o princípio em questão também tenha previsão no procedimento comum, foi somente nos Juizados Especiais que este pôde ser aplicado em sua acepção máxima. Tourinho Neto e Figueira Júnior (2009, p. 74), citando Giuseppe Chiovenda, dissertam que: “A experiência resultante da história nos permite afirmar que o processo oral é, sem sombra de dúvida, o melhor e o mais de acordo com a natureza e as exigências da vida moderna, visto que sem ponto comprometedor; mas, em vez disso, melhor garante a boa índole intrínseca da decisão, a qual é fornecida mais economicamente, com mais simplicidade e prontamente. E no tocante à celeridade do processo oral, ele dura três ou quatro vezes menos tempo do que o processo escrito” . 31 Cabe ressaltar que, em que pese na maioria dos casos não há uma obrigatoriedade expressa de praticar o ato de forma oral, é importante que assim se o faça quando possível, visto que a prática do ato de modo oral normalmente acarreta um transcurso mais rápido do processo. Ademais, em relação ao jurisdicionado, o princípio da oralidade traz um benefício secundário que por vezes não é tomado em conta. Ao possibilitar a prática do ato de forma oral, mormente nos casos em que a parte atua sem acompanhamento técnico (instituto do jus postulandi), aproxima-se o cidadão do Poder Judiciário, dando àquele a oportunidade clara de influenciar a vontade do Estado-juiz de forma decisiva na causa em que litiga. Nessa toada disserta Tourinho Neto (2009. p. 78): Sobre o princípio da oralidade poderíamos dizer que sua acentuada adoção apresenta ainda uma outra grande vantagem que poderíamos chamar de “ordem psicológica”, as partes têm a impressão de exercer, elas mesmas, uma influência decisiva no deslinde da demanda, resultando, em contrapartida, no melhoramento da imagem do judiciário perante os jurisdicionados. Destarte, importante mencionar que para o sistema funcionar de modo correto é necessária a observância de todos os princípios concomitantemente às regras do procedimento previsto pela Lei 9099/95. Somente assim, explica Tourinho Neto (2005, p. 74) o processo terá a instrumentalidade suficiente para ser efetivo, ter um tramitar simples e uma solução rápida, sem onerar os litigantes com formalidades e custos excessivos e desnecessários. 32 3 PAGAMENTO DE CONDENAÇÕES JUDICIAIS PELA FAZENDA PÚBLICA O pagamento dos débitos da Fazenda Pública se dá através dos requisitórios, compreendidos estes como o conjunto do precatório (dividido em subespécies) e da requisição de pequeno valor (RPV). A expressão requisitório teve origem na construção doutrinária e ganhou índole constitucional com a emenda 62 de 09 de dezembro de 2009, a qual constou o gênero expressamente na redação do art. 100, §12, da Carta Magna. 3.1 ORIGEM E CARACTERÍSTICAS DO PRECATÓRIO A necessidade de responsabilidade estatal pelos danos causados é reconhecida em todos os sistemas jurídicos de países democráticos do mundo (MELLO, 2012. p. 1009). Trata-se de uma das consequências do modelo republicano a responsabilidade do Estado em arcar com os danos causados ao patrimônio do particular. A responsabilidade estatal está expressa em nossa Constituição, em seu art. 37, §6º, o qual aduz que: As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa (BRASIL, 1988, Art. 37, §6º). Assim, surgiu a necessidade de compatibilizar a forma de pagamento dos débitos fazendários com o princípio da supremacia do interesse público e outros referentes aosbens públicos. Isso porque, quando um débito é inadimplido por um particular este pode, através do Poder Judiciário, tomar medidas expropriatórias em relação aos bens do devedor. Porém quando o inadimplente é a Fazenda Pública, a expropriação de bens em regra viola os princípios basilares do Direito Administrativo, como exemplos a supremacia do interesse público, a não interrupção dos serviços públicos, a indisponibilidade dos bens, entre outros. Considerando a inalienabilidade e a impenhorabilidade dos bens públicos, necessitou- se criar um sistema que garantisse o pagamento ao credor e ao mesmo tempo não violasse as prerrogativas da Administração Pública. Desta forma, surge, ainda na Constituição de 1934, a criação do precatório. Esse instituto, polêmico ainda nos dias de hoje, envolve a multidisciplinaridade de conceitos existentes nos ramos do Direito Constitucional, Administrativo, Processual Civil e 33 Orçamentário e é entendido como uma forma indireta de execução contra a Fazenda Pública sucumbente. Cabe ressaltar a excessiva ingerência existente antes da constitucionalização do precatório em 1934. Lemos (2004, p. 49) destaca que até então a ordem para pagamento era definida pela mais eficiente “advocacia administrativa”. Isso porque era o Poder Legislativo que votava quais verbas iriam a pagamento e assim, ao léu das condenações judiciais, as votações normalmente favoreciam o interesse do Poder Executivo, justamente aquele com o ônus de arcar com o débito. A Constituição atual assim dispõe sobre o instituto: “Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.” (BRASIL, 1988, Art. 100). A criação do instituto foi necessária, considerando que os bens públicos são impenhoráveis, bem como que toda despesa pública tem que ter autorização orçamentária, conforme art. 167, inciso II da Constituição, sob pena de o responsável ser tipificado no art. 359-D do Código Penal. 3.2 CONCEITO DE PRECATÓRIO E SUAS CARACTERÍSTICAS Para Oliveira (2005, p. 46), o precatório se conceitua na comunicação feita pelo chefe do Poder Judiciário à entidade pública condenada em ação ordinária conduzida até o trânsito em julgado. No mesmo sentido, Franco (2002, p. 129) define o precatório como um comando direcionado ao Poder Executivo responsável pelo pagamento da condenação, impondo que este inclua o débito no orçamento do próximo exercício, para que seja até o final desse exercício depositado e, assim, satisfeito o crédito cobrado. Deste modo, tem-se por precatório uma solicitação de pagamento em que a autoridade competente, qual seja, o Presidente do Tribunal no qual se proferiu a decisão, ordena o pagamento do débito fazendário objeto de decisão irrecorrível (FERNANDES, 2007). Para Marioni (2008), o precatório é semelhante a uma carta de sentença, diferenciando- se por não ter a função de iniciar algum procedimento judicial, mas sim administrativo, ao 34 incluir o valor necessário no orçamento da respectiva Fazenda Pública para quitação da condenação imposta. Todavia, parte da doutrina entende que o precatório nasce ainda antes da ordem feita pelo presidente do tribunal. Nesse condão, entende Mello (2012, p. 1062) que precatório é o mecanismo procedimental de pagamento dos débitos reconhecidos pelo Judiciário das pessoas jurídicas de direito público. Talvez a mais importante característica do precatório seja sua função moralizadora no tocante aos pagamentos de débitos do Poder Público. Isso porque permite que não existam privilégios subjetivos e preferências na ordem dos pagamentos, salvo aquelas expressas em lei. Além disso, tal forma de pagamento permite a organização orçamentária do ente pagador, o qual consegue dispor do patrimônio de forma a respeitar a legislação vigente (OLIVEIRA, 2007, p. 34). Celso de Mello (2012, p. 1064) ressalta que o precatório glorifica o princípio da igualdade e proporciona um tratamento isonômico aos credores estatais, impedindo favoritismos de caráter pessoal e impedindo eventuais perseguições políticas no pagamento dos débitos. Assim, a regra nascida na Constituição de 1934 visa assegurar que o Poder Público respeite a preferência jurídica de quem esteja cronologicamente na frente na lista de pagamento. Em que pese estar previsto nos arts. 731 e seguintes do Código de Processo Civil, o precatório é em verdade matéria de Direito Administrativo. Quem o pratica é membro do Poder Judiciário, incumbido de exercer atipicamente a função administrativa. Desta forma, o Poder Judiciário determina a ordem de pagamento ao titular do ente público que sucumbiu (OLIVEIRA, 2007, p. 46). O procedimento se inicia no Poder Judiciário, porém denota-se que não há caráter jurisdicional na requisição e expedição de precatório. Trata-se, em verdade, de um simples ato administrativo inaugural de um processo administrativo, que termina com o efetivo pagamento ao credor. Nesse sentido disserta Antônio Flávio de Oliveira: Trata-se o precatório de ato administrativo, porquanto essa é a característica que lhe sobressai, pois, uma vez que não contém carga decisória, não poderia ser classificado como ato judicial, muito menos podendo ser caracterizado como ato legislativo, porquanto não fixa norma de ordem geral. Em que pese o fato de realizar-se a expedição na seara do Judiciário, o requisitório correspondente a ato não judicial, mesmo porque ocorre posteriormente ao término da fase judicial do processo de execução contra Fazenda Pública, conforme perceptível na sistemática adotada pelo Código de Processo Civil, nos seus arts. 730 e 731. 35 Destarte, no caso concreto, o precatório se dá com a requisição feita pelo magistrado prolator da sentença contra a Fazenda Pública ao Presidente do Tribunal em que atua a fim de que este emita ordem à entidade sucumbente para incluir o valor da condenação na previsão orçamentária para posterior quitação até o fim do exercício financeiro subsequente à apresentação do precatório. A regra posta é que os comandos de pagamento, em valor superior àqueles que se encaixam em Requisição de Pequeno Valor. Quando recebidas até dia segundo de abril pelo respectivo Tribunal serão convertidas em precatório e previstas no orçamento do ano subsequente. Aquelas recebidas após dia dois de abril serão convertidas também em precatório, com a diferença de que constarão no orçamento do ano seguinte ao ano subsequente. Existem espécies distintas de precatório. Há as chamadas espécies "altamente preferenciais”, “preferenciais” e “sem preferência” ou “comuns”. Cada espécie terá lista cronológica própria, sendo pagos, respectivamente, em primeiro, segundo e terceiro lugar na “fila” orçamentária. Os precatórios altamente preferenciais são os débitos alimentícios de até três vezes o valor fixado para a RPV em que o credor tem no mínimo sessenta anos de idade, bem como quando o credor é pessoa com deficiência grave definida em lei. Ambos os casos admitem o fracionamento. Os precatórios preferenciais são os débitos de natureza alimentar que ultrapassam o triplo do valor da RPV e que o credor tenha no mínimo 60 anos de idade ou deficiência grave definida em lei, bem como todos os demais débitos de caráter alimentício. Os demais débitos serão pagos por precatórios comuns. Em tempo, cabe descrever que são considerados débitos de caráter alimentícios aquele decorrente de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios da previdência, verbas trabalhistas e indenizações por acidente, morte e invalidez. Cabe frisar que o precatório não tem qualquer