Prévia do material em texto
A FUNÇÃO DA ESCOLA NA CONSTRUÇÃO DE VALORES SÓCIO MORAIS Caro(a) aluno(a), A Universidade Candido Mendes (UCAM), tem o interesse contínuo em proporcionar um ensino de qualidade, com estratégias de acesso aos saberes que conduzem ao conhecimento. Todos os projetos são fortemente comprometidos com o progresso educacional para o desempenho do aluno-profissional permissivo à busca do crescimento intelectual. Através do conhecimento, homens e mulheres se comunicam, têm acesso à informação, expressam opiniões, constroem visão de mundo, produzem cultura, é desejo desta Instituição, garantir a todos os alunos, o direito às informações necessárias para o exercício de suas variadas funções. Expressamos nossa satisfação em apresentar o seu novo material de estudo, totalmente reformulado e empenhado na facilitação de um construto melhor para os respaldos teóricos e práticos exigidos ao longo do curso. Dispensem tempo específico para a leitura deste material, produzido com muita dedicação pelos Doutores, Mestres e Especialistas que compõem a equipe docente da Universidade Candido Mendes (UCAM). Leia com atenção os conteúdos aqui abordados, pois eles nortearão o princípio de suas ideias, que se iniciam com um intenso processo de reflexão, análise e síntese dos saberes. Desejamos sucesso nesta caminhada e esperamos, mais uma vez, alcançar o equilíbrio e contribuição profícua no processo de conhecimento de todos! Atenciosamente, Setor Pedagógico Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 3 SUMÁRIO UNIDADE I - CONSTRUÇÃO DE VALORES NA ESCOLA .................................................5 A CONSTRUÇÃO DOS VALORES NO AMBIENTE ESCOLAR: UM ESTUDO DE CASO ......................................................................................................................................................5 UNIDADE II - ESCOLA E CIDADANIA .................................................................................16 DIREITOS HUMANOS NA EDUCAÇÃO, UM PILAR PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA E A CONCRETIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ...........16 UNIDADE III - VALORES NA ESCOLA ................................................................................27 UNIDADE IV - EDUCAÇÃO E VALORES MORAIS ...........................................................39 EDUCAÇÃO MORAL HOJE: CENÁRIOS, PERSPECTIVAS E PERPLEXIDADES ..........39 Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 4 APRESENTAÇÃO Ressalto que este é um material básico, especialmente preparado para lhe oferecer uma visão ampliada do conteúdo da disciplina “Função da escola na construção de valores sociomorais”. Assim, outras fontes deverão ser consultadas a fim de um melhor suporte das ideias aqui contidas e aproveitamento do curso. Em hipótese alguma ele deve ser o seu único material de estudo. Durante o texto, são colocadas referências para leituras adicionais com as quais será possível o aprofundamento, a verticalização e a construção de um olhar diferenciado sobre a temática. A reflexão sobre “Função da escola na construção de valores sócio morais” exige bastante dedicação a fim de que conexões sejam estabelecidas entre as diversas áreas do conhecimento que estão envolvidas nessa temática tão importante e atual. Boa trajetória de estudos! Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 5 UNIDADE I - CONSTRUÇÃO DE VALORES NA ESCOLA http://www.google.com.br/imgres?q=constru%C3%A7%C3%A3o+de+valores+na+esc A CONSTRUÇÃO DOS VALORES NO AMBIENTE ESCOLAR: UM ESTUDO DE CASO1 Márcia Spíndola & Silvia Helena Mousinho EAD/UERJ 1. Introdução A educação e o ensino, sob uma visão cartesiana, não preparam o educando de hoje para a vida em sua plenitude. Fica claro que o nosso papel vem sofrendo transformações significativas, já não é o bastante ter frequentado a universidade e aprofundado os estudos em uma dada disciplina para lecioná-la. Vivemos em um mundo globalizado e fazemos parte de uma sociedade altamente complexa, de tendências ideológicas neoliberais, cuja tônica é a conjugação do verbo “ter”. Nos dias de hoje, o exercício da cidadania acaba se reduzindo apenas à realização de um trabalho profissional com o objetivo de ganhar a vida. Para a economista Hazel Henderson, “priorizando esse propósito, estamos glorificando algumas de nossas predisposições humanas 1 Revista EAD em Foco - nº 1 - vol.1 - Rio de Janeiro - abril/outubro 2010. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 6 menos louváveis: cobiça material, competitividade, orgulho, egoísmo e ganância” (in CAPRA, 1995, p. 193). Com muita propriedade, Erich Fromm nos aponta que “a falta de discernimento entre o senso de ser e a possibilidade de ter, nos torna suscetíveis à manipulação de nossos desejos e do sentido profundo de nossas vidas” (1986, p. 25). A realidade nos aponta a necessidade de ampliar o nosso fazer profissional e a sensibilidade muito nos ajuda nesse sentido. A educação do futuro, para o pensador Edgar Morin, deve ter como prioridade “ensinar a condição humana, onde o ser humano é a um só tempo físico, biológico, psíquico, cultural, social e histórico” (2003, p. 15). É no ambiente escolar, através das vivências cotidianas nesse microcosmo que o aluno incorporará princípios básicos de justiça, tolerância, solidariedade, amor e respeito pelos direitos e deveres e, futuramente, reproduzirá essas posturas na sociedade e no mundo em que vive. Se quisermos educar para a compreensão humana, teremos de educar em valores, em convicções e em atitudes. E o professor tem um papel crucial nessa formação. 2. A construção dos valores Segundo Gadotti (2004), para “ser professor hoje é preciso viver intensamente o seu tempo com consciência e sensibilidade” (p. 4). A educação deve ser concebida como um processo de aprendizado e emancipação para que a construção do conhecimento integre todas as dimensões do ser humano: corpo/mente/sentimento. Mas, geralmente, a escola ainda valoriza a capacidade cognitiva acima das outras qualidades humanas, embora saibamos que a inteligência, isoladamente, não constitui o valor de um homem. O homem faz uso do discurso para dizer o que pensa, mas é através de suas ações que ele revela o que sente. Portanto, se pretendemos trabalhar com valores morais, não é no nível do intelecto que o professor deve atuar, mas no nível dos sentimentos e das emoções. Porém não existe uma atividade específica para isso. Trata-se de uma questão de atitude, uma atenção constante que permeia todas as disciplinas, valoriza todos os momentos – a hora do recreio, a hora do bate-papo, a vida escolar em sua plenitude. Em síntese, como sensibilizar o nosso aluno para as questões éticas e humanísticas? Sabemos que não é através de livros ou discursos. No máximo, eles vão aprender a repetir o que Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 7 leram e tirar boas notas na prova. Por acaso haverá prova de valor moral? No cotidiano do ambiente escolar, pequenos conflitos interpessoais apontam a importância e a necessidade da existência de regras que visem à garantia do convívio social. Nessas ocorrências cotidianas, dependendo da forma como o professor lida com a situaçãoque o desenvolvimento das crianças mostra duas tendências basicamente opostas de moral: a "moral do dever", ou heteronomia, e a "moral do bem", ou autonomia, e que a segunda sucederia a primeira em condições normais de desenvolvimento. Na moral heterônoma, uma criança segue as normas fixadas pelas autoridades que a rodeiam (pais, irmãos mais velhos, etc.) e as obedece por temor à perda de afeto ou ao castigo; é uma moral fruto de um tipo de relação social em que predomina o respeito unilateral e que Piaget chamou de coação. As educações doutrinárias fortaleceriam, para Piaget, essa moral heterônoma. Noutro extremo, e como resultado da formação na qual a criança pode se ver cada vez mais livre de autoridades e capaz de construir normas entre iguais, surgiria a moral da autonomia por meio da qual o adolescente decide pelas normas que quer obedecer porque participou de sua construção e verificou os benefícios que aquela norma pode ter para o seu grupo de companheiros. Nesse sentido a norma livremente consentida passa a ser respeitada em função de relações de respeito mútuo entre indivíduos mais iguais entre si e guiadas pelo princípio da reciprocidade a mais ampla possível. Na moral heterônoma todo um conjunto de crenças e ações da criança revela sua posição imitativa e egocêntrica em relação aos outros. As crianças, por exemplo, imitam o uso das regras pelos mais velhos, mas não conseguem regular seus próprios comportamentos por elas; acreditam que as regras são sagradas e imutáveis; julgam os outros mais pela conseqüência de seus atos que pelas suas intenções (o que demandaria uma descentração da criança no sentido de Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 33 colocar-se no lugar do outro para compreendê-lo); acreditam que as mentiras piores são as mais aparentes ou que algo é mais errado quanto mais se corre o risco de ser descoberto e punido. Na moral autônoma, ao contrário, o adolescente discute as regras que regem sua vida no grupo e pode reelaborá-las passando a entender as utilidades sociais das regras, e os atos dos outros passam a ser julgados pela intenção; os piores atos são aqueles que mais quebram os laços de solidariedade e confiança entre as pessoas mesmo que pouco aparentes ou não puníveis. Em uma palavra, na moral da autonomia, tal como é vista por Piaget (1977), ser correto, moralmente falando, não depende de quais regras são seguidas, mas dos princípios de sua obediência. Seguindo uma visão kantiana, Piaget vê, na moral heterônoma, a adoção de regras, normas ou de valores morais como guiada por motivos extrínsecos à pessoa: é o medo, o controle de uma autoridade, o receio da perda de afeto que leva à uma obediência situacional. Ao contrário, na moral autônoma o autor vê um indivíduo que reflete sobre a justiça de suas opções morais considerando se poderiam valer para si ou para qualquer pessoa desse mundo; é a reciprocidade levada ao infinito. Na visão piagetiana e de autores que nele têm-se inspirado, a educação moral ou educação em valores não poderia jamais se dar na forma de imposição de valores, por melhores que estes fossem, nem deixada à livre escolha de cada um. Piaget (1996) argumenta que na moral os meios usados no ensino são tão fundamentais quanto os fins. Se quisermos educar para a autonomia (a adoção consciente e consentida de valores) não é possível obtê-la por coação; ou seja, se quisermos formar alunos como pessoas capazes de refletir sobre os valores existentes, capazes de fazer opções por valores que tornem a vida social mais justa e feliz para a maioria das pessoas, capazes de serem críticos em relação aos contra-valores, então é preciso que a escola crie situações em que essas escolhas, reflexões e críticas sejam solicitadas e possíveis de serem realizadas. É como se, em moral, meios e fins fossem iguais: não se ensina cooperação como um valor sem a prática da cooperação, não se ensina justiça, sem a reflexão sobre modos equilibrados de se resolverem conflitos; não se ensina tolerância sem a prática do diálogo. Assim, numa visão piagetiana, a formação moral de alunos e/ou de professores passa, obrigatoriamente, pelo exercício da construção de valores, regras e normas pelos próprios alunos e/ou professores entre si e nas situações em que sejam possíveis relações de trocas intensas; troca de necessidades, aspirações, pontos de vistas diversos, enfim: quanto maiores e mais diversas Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 34 forem as possibilidades de trocas entre as pessoas, mais amplo poderá ser o exercício da reciprocidade ¾ pensar no que pode ser válido, ou ter valor, para mim e para qualquer outro. A posição piagetiana não considera os valores como relativos, pois há uma clara opção pela autonomia moral como melhor, racional e moralmente falando, que a heteronomia. Há, também, uma opção pelos métodos ativos de educação moral, que passam pelas possibilidades de prática de cooperação, solidariedade, justiça, respeito mútuo. Para Piaget (1977, 1996), e autores que o têm seguido, e para nossos atuais Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), saber sobre a moral é sinônimo de um saber fazer, um saber viver relações cooperativas e justas; sem isso a moral é puro verbalismo. Onde e como se daria, então, essa formação prática de professores para a moralidade? Dar- se-ia em todos os espaços escolares em que as relações humanas e seus conflitos pudessem aparecer e onde se pudesse refletir sobre as melhores soluções para todos. Como os PCN agora buscam dispor, a ética torna-se um tema transversal a ser pensado por todos os professores e nos mais variados espaços da escola; do currículo às relações pessoais dentro da escola e às salas de aula. E a formação, seja de professores ou de alunos, tem que acontecer nas próprias práticas e vivências dentro da escola e nunca como matéria à parte. Vou dar um exemplo de uma situação verídica que aconteceu numa escola pública para discutir o que ali poderia acontecer em termos de educação moral de professores e alunos e o que não aconteceu. Esse exemplo é relatado numa pesquisa piloto, realizada por Klébis e Menin (2000) que transformou um fato real num dilema moral, apresentado a trinta professores de três escolas públicas. O dilema foi o seguinte: Uma determinada escola pública recebeu a denúncia que alguns alunos estariam levando "droga" para ser distribuída dentro da escola. A diretora comunicou o fato à Polícia Militar que determinou a averiguação da denúncia imediatamente. Justamente neste dia, uma 5ª série estava em aula vaga no pátio devido à falta de um professor. Eram alunos cuja faixa etária se concentrava entre 10 a 12 anos. Com a chegada da Polícia Militar na escola, a Diretora solicitou à inspetora de alunos que chamasse os meninos para a sala de vídeo, dizendo aos mesmos que eles iriam assistir a uma projeção. Em hipótese alguma os alunos deve-riam saber que os policiais estavam na escola. Na sala de vídeo, os alunos foram submetidos a uma revista pelos policiais, ficando apenas de cuecas. Como se não bastasse, passaram pelo constrangimento de Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 35 terem que abaixar a cueca, ficando de cócoras (procedimento usado nos presídios para detectar a presença de droga no ânus). A diretora argumentou, em resposta à revolta dos pais, que sua intenção era a de proteger os alunos contra as drogas que poderiam estar circulando pela escola, bem como descobrir os culpados. Após o dilema, Klébis pusera aos professores questões como: Você acha que a Diretora agiubem chamando os policiais? Justifique. Ela deveria permitir que os policiais revistassem os meninos? Justifique. Você acha que este era o papel dos policiais? Justifique. Tiveram os pais motivos para se revoltarem? Justifique. Se você fosse aluno desta escola, o que pensaria? (KLÉBIS E MENIN, 2000, p. 36) As autoras da pesquisa analisaram as respostas dos professores em termos de estágios de julgamento moral, segundo Kohlberg (1992), mas não é isso o que gostaríamos de mostrar aqui. O que é interessante relatar é que, na primeira questão, dos trinta professores das três escolas, foram a favor da diretora: 27% da primeira escola, 56% da segunda e 90% da terceira escola. Os professores a favor da ação da diretora apontaram que era preciso manter a ordem, proteger os alunos a qualquer custo, e a polícia era o órgão competente para esse tipo de investigação e controle. Pergunto, como nos fez antes Piaget (1996), se esse método de educação pode formar personalidades autônomas: chamando a polícia à escola, ensinamos às crianças os malefícios da droga e as auxiliamos a decidirem, por si mesmas, protegerem-se dos riscos do uso das drogas? No mês de maio de 2001, a Folha de S. Paulo publicou um editorial (01/05) e uma notícia (04/05), nos quais se relata o caso de uma escola particular de classe média alta do Rio de Janeiro que expulsara quatro de seus alunos por terem usado droga (maconha). O editorial comenta o dilema que a escola pôs aos alunos: dizer a verdade e enfrentar um castigo como a expulsão ou mentir e escapar ao castigo? A escola expulsou os alunos que confessaram e não, obrigatoriamente, todos os que fumaram maconha. O jornal indaga aos leitores se a escola não acabou por ensinar a "lei de Gérson" na qual mentir para obter vantagens pessoais é mais vantajoso que dizer a verdade e sofrer as conseqüências. Na notícia do dia 4/05, o jornal relata que a escola, após a expulsão dos alunos, realizou uma grande assembleia com pais de alunos (segundo o jornal estavam presentes mais de 230 pessoas) para que fosse discutido o que fazer Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 36 em caso de uso de drogas pelos alunos. Ouviram-se as mais variadas opiniões e chegou-se a conclusão que estabelecer limites claros e exigir que sejam cumpridos são elementos fundamentais para a educação dos adolescentes. A notícia finaliza dizendo que a escola promoveu o debate como uma forma de expressar as suas próprias dúvidas sobre o assunto. A diretora da escola disse que não iria rever a expulsão já realizada, mas que pretendia iniciar um processo permanente de diálogo com os pais e alunos por meio de grupos de discussão de vários temas. Aproveito esses dois casos para mostrar diferentes atitudes que as escolas podem tomar para disciplinar ou educar moralmente seus alunos. Num, o controle se fez pela polícia ¾ uma autoridade externa à escola, noutro, pela direção. Num, a investigação humilhante se justifica para "salvar" os inocentes e identificar os culpados; noutra, espera-se que os alunos confessem seus erros voluntariamente; numa, a diretora toma uma atitude isolada e que pode ser, ou não, apoiada pelos professores da escola após o fato transcorrido; noutra, também após uma decisão tomada pela direção, as dúvidas são retomadas numa grande assembleia... Ora, ainda que as duas escolas possam ter cometido erros e acertos, perguntamos qual delas mais se aproximou de uma educação para a autonomia? É preciso considerar nesses exemplos que estamos falando de escolas que se distanciam entre si cada vez mais: as públicas e as particulares. Em pesquisa recente Menin (2000), vimos que as opiniões de alunos de escolas públicas e particulares sobre lei, justiça, crimes, etc., às vezes se opõem. Ao questionarmos 480 alunos sobre se seria certo uma diretora de escola chamar a polícia para controlar alunos que estavam "aprontando", constatamos que nas escolas particulares 51% dos alunos achavam a atitude da diretora injusta e 27% justa (houve 20% de respostas do tipo "depende" ou que davam outras alternativas de ação), e nas escolas públicas, 60% dos jovens achavam que era justo chamar a polícia, 29% injusto (8% de outras respostas e 2% de "não sei") (Menin, 2001, p. 316). Questiono-me se essas respostas indicam que só nas escolas públicas acontecem "casos de polícia" ou se se está evidente que há uma mentalidade completamente diferente, nesses dois ambientes escolares, sobre como educar. Acredito mais na segunda alternativa e penso que devamos estar atentos para esses dois códigos morais que podem estar acontecendo nesses dois espaços sociais tão diversos que são as escolas públicas e as particulares. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 37 Sou contra listas, guias ou receitas de como educar moralmente. Acredito que a educação moral se faz pela ação orientada por alguns princípios fundamentais, tais como a justiça, a dignidade, a solidariedade, iluminados pelo respeito mútuo entre as pessoas e que pode ter um alcance cada vez maior. Nessa educação moral não há lugar para certezas, mas as dúvidas podem ser sempre discutidas. E é essa discussão o método de educação moral. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais; terceiro e quarto ciclo: apresentação dos temas transversais. Brasília: MEC/SEF, 1998. BUXARRAIS, M.R; Martínez, M.; Puig J.; Trilla, J. M. La educación moral en primaria y en secundaria. [s.l.] Ministerio de Educación y Ciencia, 1990. BUXARRAIS, M. B. La formación del profesorado en educación en valores: propuesta y materiales. Spain: Desclée de Brouwer, 1997. CABANAS, J. M. Q. Educación moral y valores. Revista de Ciencias de la Educación, n. 166, abr-jun. 1996. FARIA, A. C. Pais e estudantes da escola Parque divergem sobre a expulsão de alunos. Folha de S. Paulo, São Paulo, 4.05.2001. KLÉBIS,M. A.; MENIN, M. S. S. A disciplina e a educação em valores nas escola. Estudos, n. 10; dez. 2000. KOHLBERG L. Psicologia del desarrollo moral. Bilbau: Biblioteca de Psicologia, Desclée de Brouwer, 1992. LEPRE, R. M. A indisciplina na escola e os estágios de desenvolvimento moral na teoria de Jean Piaget. Marília; 2001. Dissertação (Mestrado) Unesp/Marília. MARTINEZ, M. M. El contrato moral do profesorado: condiciones para una nueva escuela. Bilbau: Desclée de Brouwer, 1998. MARTINEZ, M. M.; PUIG, J. M. La educación moral: perspectivas de futuro y técnicas de trabajo. Barcelona: I.C.E./Ed. Graó de Serveis Pedagògics, 1994. MENIN, M. S. S. A construção da democracia e a escola: um estudo sobre representações políticas e interações verbais no 2º grau. São Paulo; 1992. Tese (Doutorado) ¾ Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 38 ________. Representações sociais de lei, crime e injustiça em adolescentes. Presidente Prudente; 2000. Tese (Livre-Docência) ¾ Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp. MENTIRA é uma droga, a: editorial. Folha de S. Paulo, São Paulo; 01.05.2001. p. 2. PIAGET, J. Os procedimentos de educação moral. In: MACEDO, L. (Org.). Cinco estudos de educação moral. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996. ________. O julgamento moral na criança. São Paulo: Mestre Jou, 1977. PUIG, J. M. Ética e valores: métodos para um ensino transversal. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. SHIMIZU A M. As representações sociais de moral de professorasdas quatro primeiras séries do ensino de 1º grau. Marília; 1998. Dissertação (Mestrado) ¾ Unesp. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 39 UNIDADE IV - EDUCAÇÃO E VALORES MORAIS EDUCAÇÃO MORAL HOJE: CENÁRIOS, PERSPECTIVAS E PERPLEXIDADES3 Pedro Goergen A justiça não é uma parte da excelência moral, mas a moral inteira. (Aristóteles) Introdução A moralidade da sociedade contemporânea assume hoje uma dimensão inversamente proporcional à sua visibilidade discursiva. Parece que quanto mais se fala em ética e moral, mais escandalosamente imorais se tornam as práticas. O discurso moralizante nasce, de um lado, da justa revolta das vítimas da barbárie moral e, de outro, do cinismo dos protagonistas da imoralidade. Comum aos dois aportes é a tendência de culpabilizar os outros, sejam eles indivíduos, grupos ou instituições. No presente trabalho, quero defender o ponto de vista de que a barbárie moral que vivemos não se explica nem se soluciona culpando o outro e exigindo que ele mude seu comportamento. As raízes da imoralidade são muito mais profundas e alcançam o terreno comum da tradição e da cultura. Por isso, entendo que a superação da barbárie moral não pode ser alcançada mediante intervenções e sanções tópicas, locais, superficiais, mas que é necessário um repensar amplo e corajoso dos arquétipos de nossa cultura, no que se refere aos conceitos de cidadania, democracia, justiça social e espaço público. Tal projeto deve relacionar a nossa tradição cultural e os valores a ela inerentes com o contexto moralmente perverso do modo de produção capitalista neoliberal que nos governa no momento. As perplexidades e ambivalências ético-morais precisam ser entendidas e analisadas a partir da confluência das características e tradições de nossa cultura com o modo de produção e os referenciais e representações ético-morais que lhe são próprias. Estes dois aportes – a tradição cultural e a 3 EDUC. SOC. V.28 N.100 CAMPINAS OUT. 2007. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 40 realidade econômico-política – representam as vertentes cínicas das quais nasce a imoralidade que barbariza nossas relações sociais. Imoralidade essa que ora gera revolta, ora não provoca mais que indiferença e conformismo. Essa leitura da ética e da moral nos permite concluir que o discurso moralizante, que acredita num projeto de moralização social mediante a repressão, apenas atinge a face aparente e superficial de um fenômeno cuja matriz é antes estrutural, em termos histórico-culturais e econômico-políticos. Essa constatação, por sua vez, nos faculta perceber que a transformação moral, considerada uma das grandes urgências da sociedade atual, não pode ser alcançada mediante a imposição de sanções a indivíduos ou grupos, efetiva ou supostamente responsáveis por eventuais transgressões morais. A moralidade estigmatizadora e penalizante é cínica num contexto de uma sociedade que nunca se dispôs a rever profunda e radicalmente suas tradições e costumes, seus preconceitos e elitismos, suas discriminações de raça, de gênero, de classe; é cínica, também, no contexto de um modelo político-econômico-jurídico que se orienta no princípio, por natureza excludente e injusto, do utilitarismo que sistematicamente prioriza os interesses individuais. Há, sem dúvida, razões em profusão para culpar os políticos por seu mau exemplo no manejo da coisa pública; para responsabilizar os pais e as famílias por não darem aos filhos uma orientação moral firme e segura; para acusar a escola e os educadores por priorizarem apenas o lado técnico/instrumental da educação e menosprezar a dimensão moral de sua prática educativa; para diabolizar a mídia por estimular a individualidade e a competitividade. De fato, são muitos os que levantam suas vozes exigindo uma renovação moral da sociedade. No entanto, seus gritos são calados no ambiente opaco de uma cultura que se tornou tolerante com as imoralidades que favorecem aos interesses ora de uns, ora de outros. O espaço da moralidade pública foi invadido pelos interesses privados, criando uma promíscua e permissiva relação entre o público e o privado no foro jurídico, político, econômico familiar e educacional, capaz de abafar, após breves espasmos de revolta, as mais acintosas afrontas à moralidade pública. Só assim se explica, por exemplo, que os sucessivos escândalos públicos dos últimos dez ou vinte anos continuem absolutamente impunes no Brasil. Se for correta essa análise, pode-se inferir que mudanças verdadeiras só podem ser alcançadas mediante um processo de profunda crítica cultural que envolva os arquétipos Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 41 culturais que veladamente 'naturalizam' e toleram a imoralidade, na medida em que essa atende a certos interesses. Penso num debate honesto, profundo e democrático das dimensões histórico- culturais de nossa tradição moral na economia, na política, na família, na escola e na mídia. A moralidade não é apenas responsabilidade ou culpa desse ou daquele indivíduo, desse ou daquele grupo, dessa ou daquela instituição, mas da sociedade como um todo. A moralidade social exige o aporte crítico da filosofia, da antropologia, da história, da ciência política, do direito, da teoria educacional, das ciências da comunicação, da sociologia, da psicologia, da economia, da epistemologia e da teologia, tanto para desvendar suas armadilhas cínicas, quanto para construir um espaço público no interior do qual se realize um amplo debate ético sobre os princípios a partir dos quais se julgam as decisões e as ações. Dizer que a responsabilidade é de todos não significa dizer que ela não é de ninguém. Ao contrário, significa que cada segmento social, cada instituição, cada indivíduo deve assumir responsabilidade moral em seu âmbito de atuação. Por sua inegável influência sobre a formação das futuras gerações, cabe aos setores diretamente envolvidos com a educação, como a família, a mídia e a escola, um papel particularmente relevante na reforma moral da sociedade. Na reflexão que farei a seguir, volto a atenção para o sentido da formação moral na educação formal, tentando argumentar, de um lado, contra a tese de que a escola é a responsável pela formação moral de seus alunos, no sentido de um enquadramento ou disciplinarização moral e, de outro, contra a ideia de que a educação formal deve limitar-se à tarefa técnica de transmissora de conhecimento. Ao contrário desses dois mandamentos, frequentemente defendidos, desejo argumentar a favor de uma educação moral do sujeito que implique, ao mesmo tempo, a tematização crítica do ethos que, com seus conceitos, tradições e costumes, representa o espaço que legitima a atuação moral desse sujeito/cidadão. A título de roteiro, vou dividir minhas considerações em cinco breves tópicos, deixando claro, desde o início, que muitas das questões se imbricam e deveriam, na verdade, ser discutidas concomitantemente. Primeiro, vou tentar elucidar um pouco a distância entre o discurso moral e a prática na atualidade. Em segundo lugar, tento justificar que faz parte das tarefas da educação formal promover a educação moral dos alunos. A seguir, volto a atenção para os dois principais interlocutores da educação moral na escola: crianças e professores. Num quarto momento, faço algumas sucintas referências aos objetivos da educação moral realizada na escola. Segue-se a Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos.Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 42 pergunta a respeito das condições necessárias para a realização dessa educação moral. Concluo com algumas considerações em torno de dificuldades, conflitos e ambivalências com as quais se defronta a educação moral no contexto da sociedade contemporânea. 1. Porque se fala tanto em moral hoje? Na verdade, a resposta a esta questão é muito simples: fala-se tanto de moral porque os problemas morais assumem dimensões assustadoras na sociedade contemporânea. Isso não significa que em outros tempos esse tema não tenha sido relevante. Os textos dos mais destacados e influentes pensadores, filósofos, historiadores, políticos e literatos de todas as épocas nos fornecem um vasto material que comprova a constante preocupação com a ética e a moral. Porém, ao contrário do passado, o tempo atual vive grandes e céleres transformações que afetam não só o exterior, mas também os fundamentos do ser e do pensar, as formas de julgar e decidir, as normas e os valores. As referências que permitem distinguir o bem do mal, o justo do injusto assumem ares de volatilidade, de relatividade, de opacidade. Além disso, o desenvolvimento científico-tecnológico nos diversos campos do saber, como a física, a química, a biologia, a genética, a comunicação etc., amplia o poder de intervenção do ser humano sobre a natureza e a vida com consequências assustadores e imprevisíveis. Em qualquer ambiente da sociedade contemporânea, as decisões e as ações podem ter efeitos ameaçadores não só para os indivíduos, mas para a sociedade como um todo. E, por último, vivemos um tempo histórico em que se registra um esgarçamento das fronteiras entre o público e o privado, permitindo que o espaço público seja refuncionalizado em proveito do privado. Os amplos traços desse cenário assumem contornos mais nítidos se focarmos o olhar sobre alguns aspectos mais tópicos. Assim, apesar de todas as promessas e expectativas de progresso e de solução dos problemas humanos, formuladas no início da modernidade (Kant, 1969), uma grande parte da população mundial continua faminta, analfabeta, doente e moribunda. Isso ocorre num momento em que já existem os recursos técnicos e econômicos suficientes para reverter esse quadro. Após o "desencantamento" do mundo medieval (Weber, 2005, p. 49), ordenado pelo modo divino, a modernidade assume a instituição da ordem como criação humana. "A existência é moderna", diz Bauman, "na media em que é produzida e sustentada pelo projeto, manipulação, administração, planejamento" (1999, p. 14). Foi no interior desse projeto Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 43 que germinou a profunda ambivalência entre o avanço científico-tecnológico que ensejou a abundância de bens culturais e materiais e a miséria, o atraso, a carência de milhões de pessoas. Dessa condição fundante de exclusão que, para muitos, é inerente ao sistema político/econômico vigente, decorre a pergunta a respeito da natureza moral desse sistema. A contradição entre a abundância e a miséria gera um ambiente de barbárie que violenta as relações em todos os espaços da vida: na família, na escola, nas ruas, nas empresas, nas relações internacionais. Em todos esses âmbitos observa-se uma incrível banalização da vida porque a vida é demais. A partir da modernidade, a plenitude da vida já não deveria ser buscada na transcendência, mas na imanência. Ora, se o sentido da vida se esgota na felicidade terrena e se esta não puder ser alcançada senão por alguns, a vida (pelo menos para muitos) perde o sentido e não merece ser respeitada como valor. A falta de trabalho exclui multidões da atividade laboral, que é precisamente o processo constituinte do ser humano (Pochmann, 2004). O desemprego fere o homem em sua essência, pois agride a humanidade do ser humano, impedindo-o de participar condignamente da construção de sua própria identidade. Ironicamente, o autor do desenvolvimento e do progresso é excluído e condenado a uma violenta e agressiva competitividade que não só legitima a agressão e a eliminação do outro, mas se transforma numa das mais excelsas virtudes do nosso tempo. A agressão ao meio ambiente gera uma vulnerabilidade de proporções inusitadas que ameaça a sobrevivência da própria humanidade. A poluição da água, do ar e da terra, bem como a poluição visual, a sonora e a olfativa, são, todas elas, consequência da intervenção irresponsável sobre o meio ambiente, que pode ter efeitos terminais, conforme alertam os cientistas de todo o mundo. O mesmo se aplica à manipulação genética, ao uso de hormônios, ao emprego de insumos químicos, visando o lucro rápido sem considerar as consequências de longo prazo. As doenças, epidemias, vírus, gripes se disseminam vertiginosamente pelos caminhos rápidos (até mesmo eletrônicos) que ligam povos e culturas. Os que dispõem de recursos constroem barreiras, criam antivírus, conseguem proteger-se, enquanto os demais definham, morrem. Parece claro que os frutos do trabalho social, materializados no conhecimento, favorecem mais a uns e menos a outros. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 44 A vergonhosa onda de corrupção que se abate, cínica, perversa e espetacularizada, sobre o espaço público, gera uma reação de repúdio talvez sem precedentes no país. Para além dos casos específicos de imoralidade pública, aparece no horizonte a ameaça da falência das instituições sociais ante o fenômeno de miscigenização entre o público e o privado, que ameaça os próprios fundamentos do estado de direito. Resumindo estes itens, aos quais poderiam ser acrescentados tantos outros, pode-se dizer que estamos vivendo um domínio sem precedentes da razão instrumental e utilitarista (Adorno, 1985), para a qual os fins justificam os meios. Conceitos como eficiência, eficácia, lucro, domínio e vantagem assumem posição central nas relações humanas da sociedade contemporânea. O princípio da performatividade, do bom funcionamento, torna-se o critério de avaliação das ações individuais e coletivas. Com isso, a sociedade capitalista neoliberal assume diretrizes morais que invertem o imperativo da ética kantiana, não apenas permitindo, mas condicionando o bom funcionamento do sistema ao uso do homem como meio. São esses cenários preocupantes e desoladores que provocam esta verdadeira explosão do debate moral que ecoa o tempo todo nas famílias, nos espaços políticos, na Igreja, na universidade e na escola. A grande pergunta que se coloca ao homem e à sociedade contemporânea, do ponto de vista moral, é como encontrar uma resposta à pergunta: O que significa 'tu deves'? Em outros termos, como podemos encontrar novos fundamentos para o dever. Se, na condição de educadores morais, dissermos ao aluno 'tu deves' e ele perguntar 'porque devo', qual a resposta que lhe daremos? Os gregos argumentaram que 'devemos' por causa do Bem e da destinação natural do homem para o Bem. Os cristãos medievais acreditaram que 'devemos' por mandato de Deus. Os modernos argumentam que o dever se baseia na razão. Desde então, as respostas são muitas e variadas. De modo geral, associa-se o dever à condição de sobrevivência ou à conquista da felicidade. Mais recentemente, os pós-modernos (LYOTARD, 1985; LIPOVETSKY, 1989; BAUMAN, 1997; VATTIMO, 1996) anunciam o fim do dever nos moldes tradicionais e proclamam que as formas de comportamento devem ser decididas no contexto, nas circunstâncias. Esta resposta se relaciona à natureza da sociedade contemporânea que se encontra em rápidas transformações; uma sociedade em que tudo o que é estabelecido logo se desfaz; umaEste módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 45 sociedade em que tudo se centra nos interesses do indivíduo; uma sociedade em que o privado se sobrepõe ao público; uma sociedade em que as possibilidades de influência e manipulação da natureza, do ser humano e da vida assumem dimensões assustadoras. São essas perplexidades que estão na raiz da grande visibilidade que alcança o discurso moral hoje. As pessoas sentem-se órfãs de parâmetros de comportamento. Os mais jovens, vivendo o espírito da época, são contrários a qualquer tipo de autoridade. Os adultos sentem-se inseguros, desautorizados, sem saber o que dizer aos jovens. Serão corriqueiros o assombro e a desorientação das pessoas diante do futuro da sociedade se prosseguirem as práticas que afrontam qualquer sentido de bem comum, de justiça social. Por vezes, as pessoas parecem cansadas de lutar por uma sociedade melhor diante das dimensões assustadoras da barbárie; preferem desistir, encerrar-se na sua privacidade, abandonar o político, desestimuladas pela sensação de impotência perante as intermináveis séries de abusos que se sucedem diante de seus olhos. Embora seja compreensível, essa atitude encerra o grande risco de deixar o campo livre para que as contravenções sejam toleradas como uma rotina inevitável, contra a qual não há o que fazer. Penso que a luta em defesa de uma sociedade livre e justa não pode ser abandonada e acredito que à educação cabe um papel importante nessa tarefa. 2. Compete à escola fazer educação moral? Vou abusar da paciência do leitor iniciando com uma citação bastante longa de Adorno, extraída do texto A educação contra a barbárie. Ali, Adorno (1995, p. 155) afirma que (...) desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em dia. O problema que se impõe nesta medida é saber se por meio da educação pode-se transformar algo de decisivo em relação à barbárie. Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação à sua própria civilização, – e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização – mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda a civilização venha a explodir, aliás, uma tendência imanente que a Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 46 caracteriza. Considero tão urgente impedir isto que eu reordenaria todos os outros objetivos da educação por esta prioridade. Esta citação de Adorno traz dois elementos importantes para o nosso contexto. Primeiro, o autor afirma que é de fundamental importância evitar a barbárie, o que significa dizer que a formação moral deve ocupar o lugar central na educação e, segundo, que é preciso saber se, efetivamente, a educação pode fazer algo nesse sentido. Esta última questão Adorno responde com simplicidade, dizendo que, se conseguirmos colocar o tema da barbárie no centro da consciência pedagógica, a educação já estará fazendo muito. Nesse posicionamento está subentendido que, se a educação não tematizar a barbárie, ela poderá favorecê-la indiretamente. Numa palavra, é fundamental que, para evitar este risco, a educação seja transparente em sua finalidade humana, o que significa assumir uma postura moral. Se, de um lado, o postulado do dever ameaça caducar, de outro, reatualiza-se com notável vigor a preocupação moral em todos os segmentos da sociedade. E a pergunta a respeito do que a educação pode fazer para ajudar a reduzir a barbárie está na boca de todos e se coloca como responsabilidade para aqueles que pensam e fazem educação. Mesmo reconhecendo não ser o remédio para todos os males, a educação pode oferecer uma contribuição importante e, quem sabe, indispensável para corrigir as injustiças do mundo e contribuir para a construção de um mundo social menos desumano e mais responsável. Se, para evitar uma colaboração inconsciente e indesejada com a barbárie, a educação deve ser "transparente em sua finalidade humana", como diz Adorno, é necessário que a escola tenha consciência disso e saiba traduzir em sua prática tal sentido humano. E, para adiantar o que será retomado mais adiante, entendo que a educação tem um papel fundamental na formação do sujeito moral, crítico e autônomo, dando novos e transformadores rumos ao movimento dialético entre o indivíduo e a coletividade. Mesmo admitindo que nos encontramos nos momentos finais da era do dever, no sentido tradicional e moderno, isso não significa que devamos assistir ao declínio de todas as virtudes.1 A boa convivência humana não dispensa normas e leis que devem ser obedecidas. Trata-se, portanto, não do fim do dever, mas de um processo de reorganização moral que leve em conta uma realidade social ordenada segundo novos princípios e formas de relacionamento. Já não temos a mão temível do divino, nem mesmo o absolutismo da razão para nos orientar em nossas decisões e ações. É, portanto, necessário buscar outras formas de comportamento moral Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 47 que sejam condizentes com as condições da sociedade e do homem contemporâneos. Esta é a tarefa na qual está envolvido um vasto colégio de pensadores que congrega representantes das mais diferentes áreas de conhecimento. Reconhecer as circunstâncias e os homens tal como são não significa que esta realidade deva ser transformada em paradigma de moralidade. Não se pode confundir o ser, a realidade como ela é, com o dever ser, a realidade como ela deveria ser. Hoje, usufrui-se o presente, o eu, o conforto, o corpo, o prazer. Esta é a nova retórica do carpe diem que veio substituir a antiga retórica do dever. É isso que os alunos trazem para a escola e é isso que, como veremos adiante, a escola deve tomar como ponto de partida para qualquer proposta de educação moral. É neste contexto que precisa ser inventado um novo discurso ético. O sentido da responsabilidade moral precisa reconstituir-se em novas bases em meio à tendência individualista e hedonista que caracteriza o presente. As crianças e os jovens passam grande parte de sua vida na escola. Nesse tempo forma-se sua sensibilidade, sua maneira de pensar e de julgar, se moldam seus conceitos e representações, se enraízam atitudes e comportamentos. Todo esse desenvolvimento que acontece ao longo dos anos escolares representa a constituição da identidade do sujeito com suas diferentes, mas complementares faces do epistêmico, do estético e do ético. Mesmo que defendêssemos o ponto de vista de que a educação não deveria ocupar-se da formação moral dos seus alunos, seria impossível negar que, de uma forma ou de outra, no contexto escolar das relações professor/aluno, dos livros didáticos, das avaliações, estariam sendo transmitidos ideais e imagens de homem, de mundo, de relacionamento, de normas e valores. A influência moral sobre os alunos é impossível de ser evitada no ambiente escolar. Assim sendo, parece razoável que isso não aconteça de forma inconsciente e difusa pelo assim chamado currículo oculto, mas que seja explicitada, discutida e orientada para a formação de um sujeito moral autônomo, crítico e responsável. Retomando o pensamento de Adorno, é necessário que a educação seja transparente em sua finalidade humana, assumindo uma postura moral. Veremos mais adiante comoisso pode ser feito. Antes, é preciso registrar que o ponto de partida de qualquer projeto de educação moral é conhecer bem os dois personagens envolvidos na formação ética realizada na escola: o aluno e o professor. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 48 3. Quem são os alunos e quem são os professores? Podemos iniciar lembrando uma evidência que, por vezes, não é devidamente levada em conta. As crianças não chegam à escola como folhas em branco, completamente abertas para receberam as marcas de uma formação moral que a escola tem para oferecer. Ao contrário, a escola acolhe pessoas que já se encontram em formação, com múltiplas influências e determinações, das quais muitas certamente são definitivas, ao passo que outras ainda estão abertas à transformação. Todo ser humano, embora nasça com certa carga genética, começa a constituir-se, a formar sua identidade desde o nascimento pelas experiências e aprendizagens que acontecem no contexto das relações familiares, sociais e midiáticas. As normas e convenções que ordenam a vida do grupo em que a pessoa cresce ou que são mediadas pelos meios eletrônicos, os gestos, as atitudes, os conselhos, os movimentos, os humores etc., vão sendo absorvidas e incorporadas pelo indivíduo no ambiente simbiótico de suas relações com o meio. Os gregos falavam de uma téchne tou biou, ou seja, de uma técnica ou de uma arte de vida que relaciona o indivíduo ao ethos, à maneira de ser da comunidade. Por isso, a criança quando chega à escola já é portadora de uma vasta experiência, de uma história relativamente longa de formação que envolve não só conhecimentos, sensibilidades, mas também representações de valores, formas de julgamento e de comportamento. Importa lembrar que até esse momento a formação da criança é predominantemente heterônoma, ou seja, predomina a absorção inconsciente das influências vindas de fora. A escola, portanto, deve receber a criança como um ser já formado, embora não plenamente, pelo contexto social em que viveu e continua vivendo. Aliás, isso pode representar o primeiro grande desafio da formação ética: estabelecer uma relação não-traumática entre a identidade já constituída da criança e o imaginário moral vigente na escola. A escola deve receber a criança não para julgá-la, mas para despertar nela a consciência de sua própria realidade, de sua própria história e, assim, criar condições para que ela, aos poucos, possa assumir-se como autora de sua própria identidade, constituindo-se como sujeito moralmente autônomo e capaz de tomar nas próprias mãos o seu destino no interior da comunidade. Como veremos adiante com mais detalhe, algo semelhante, embora se encontrem em outro estágio de suas vidas, pode-se dizer também dos professores. Eles não são sujeitos etéreos que Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 49 pairam acima da realidade. Ao contrário, são pessoas envolvidas e afetadas nas suas convicções, sensações, aspirações como qualquer outra pessoa que conviva com os conflitos e ambivalências éticas e morais da sociedade contemporânea. Diferentemente de períodos anteriores, em que os valores, as tradições e as normas eram mais estáveis, hoje tudo é volátil e mutante. Esse caráter histórico tornou-se um dos elementos centrais de toda a educação e da educação moral em particular. Em decorrência dos modos de pensar, de julgar e de agir, multiplicam-se, também, as estratégias de influências sobre os indivíduos, particularmente aquelas empenhadas na adaptação das pessoas ao sistema e seus interesses. A criança chega à escola já familiarizada com e influenciada por uma diversidade muito grande de opiniões, de posicionamentos a respeito dos mais diferentes assuntos; chega influenciada por posicionamentos religiosos, ora herméticos e dogmáticos, ora soltos e descomprometidos; chega marcada por imagens de violência, de erotismo, de relações utilitaristas; chega, sobretudo, seduzida por anseios, desejos, modelos de felicidade relacionados às prioridades do mercado, do consumo, do lucro. Nesse contexto, os meios de comunicação surgem como novo e poderoso mecanismo de influência heterônoma na educação das pessoas, inclusive na sua formação moral. De fato, é a mídia, com seus interesses ligados ao modelo social capitalista, que fixa muitas das causas prioritárias que estimulam a orientação e o comportamento dos indivíduos, que emocionam os corações hedonistas e desculpabilizam as consciências pelo abandono de suas responsabilidades morais e sociais. Na verdade, a mídia, hoje invasiva ao extremo, serve-se dos mais refinados recursos tecnológicos, linguísticos e imagéticos para influenciar e seduzir. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, essa influência não se limita à venda de produtos, mas usa seu poder de sedução para conformar seu modo de pensar, de sentir, de agir e de ser, "impedindo a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e decidir conscientemente" (Adorno, 1986, p. 99). O certo é que as crianças chegam à escola com uma identidade que já sofreu múltiplas influências, positivas e negativas, da família, do meio, da televisão, da internet. Essa é uma realidade que qualquer projeto de educação moral deve considerar como ponto de partida. O mais grave e perverso dessas influências é que elas não apenas se agregam quais adereços à identidade individual em constituição, mas representam, na verdade, elementos estruturantes da Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 50 própria personalidade. Dessa forma, tornam-se resistentes, não encontrando outra forma de superação senão pela conscientização psicanalítica e crítica das determinações sócio-culturais da personalidade. Se pelas influências do sistema e de suas instituições o homem se torna egoísta através da multiplicação e exaltação dos interesses privados, como transformar esse indivíduo privado, cujo ideal de felicidade é a satisfação de seus interesses egoísticos, num cidadão preocupado com o bem comum? É esta a realidade que justifica a tese inicialmente levantada de que a educação moral não pode ser vista apenas como a educação dos indivíduos, a partir de certos princípios ou normas morais. Esta será sempre uma tarefa sisífica de eterno e frustrante recomeçar, enquanto o sistema continuar gerando filhos contaminados de imoralidade. É, portanto, necessária a perspectiva mais ampla da renovação moral da sociedade como um todo. Na outra ponta da relação formativa, encontra-se o professor que, a exemplo das crianças ou dos jovens, também está exposto às permanentes influências do meio. Não se pode imaginar que para se realizar um projeto de educação moral seja suficiente a manifestação de bons propósitos e a conclamação de professores para que eles assumam seu papel de formadores. É preciso, antes disso, que os docentes tenham uma correspondente formação, que tenham passado por um processo de conscientização de sua própria moralidade, de seus ideais e sentidos de homem, de mundo e de vida, dos fundamentos que orientam seu julgar e agir, para só então, e a partir daí, pensarem no papel que lhes cabe como agentes da formação moral. Mais ainda: como agente de formação moral, o professor não fala sozinho, mas com ele fala todo o contexto escolar, ou seja, na educação moral escolar está sempre envolvida a escola como um todo. Na verdade, é este todo, com suas diferentes vozes, desde o diretor ao funcionário, desde os conteúdos aos procedimentos didáticos, desde os momentos formais aos lúdicos, que representa o verdadeiro agente da educaçãomoral. Formar professores com sensibilidade moral significa familiarizá-los criticamente com as imagens de mundo, de ser humano, de meio ambiente, com conceitos como liberdade, responsabilidade, respeito, tolerância; significa despertar neles a sensibilidade para as formas mais dignas, justas, belas e felizes de se viver, de modo que eles, por sua vez, possam despertar em seus alunos sensibilidades semelhantes. Esta perspectiva ético-estética abandona o sentido regulador, enquadrador e identificador da ética tradicional para despertar nos jovens a percepção e a responsabilidade diante da desestetização que representa a miséria, a injustiça, a fome, enfim, Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 51 a barbárie. Para avançarmos um pouco no esclarecimento dessa importante questão, parece adequado perguntar quais são os objetivos da formação moral. 4. Quais os objetivos da educação moral? Como já foi dito anteriormente, o modelo de um ordenamento moral de princípios e de regras estáveis pertence ao passado. Hoje, tudo está em permanente transformação: o que valeu ontem pode não valer hoje e o que vale hoje pode não servir amanhã; o que é tido como certo num determinado contexto cultural pode não ser correto em outro. Impõe-se o entendimento de que os princípios e as regras universais perdem sua força a favor de novas convenções, que dependem dos contextos culturais. Pode-se dizer que se ampliam e flexibilizam os limites dos sentidos e, com isso, os limites do sujeito e do mundo. Como na arte, a vida parece ser uma permanente renovação de regras e de preceitos. O contexto contemporâneo de paulatina desconstrução dos valores e normas tradicionais exige outras formas de legitimação. Pressupondo, como parece plausível, que os homens não conseguem conviver pacificamente sem normas que regulamentem suas condutas e sabendo, também, que tais normas não podem ser deduzidas de princípios transcendentais, é necessário dar-lhes legitimidade com base em outro procedimento. Já no início da época moderna, Rousseau (2007), Hobbes (2006) e Hume (1995) propuseram a ideia do contrato social. Mais recentemente, Habermas (1989) e Rawls (1993) sugerem a ideia de consenso a ser encontrado mediante o diálogo. Este novo procedimento de legitimação tem consequências consideráveis tanto para o sujeito que simplesmente cumpre normas, quanto para aquele que exige o cumprimento de normas. Para o primeiro não é suficiente obedecer cegamente às normas, porque, desde a modernidade, o sujeito moral assume a corresponsabilidade pela legitimidade das normas. Se, na moral tradicional, Abrahão podia matar seu filho sem incorrer em crime porque obedecia a Deus, a partir da modernidade, mesmo obedecendo a Deus, Abrahão seria criminoso, porque o argumento da autoridade não mais o isentaria da responsabilidade pelo homicídio. De outra parte, para o educador não é suficiente exigir obediência em nome de alguma autoridade: ele precisa tornar plausível a legitimidade das normas. No primeiro caso, é necessário responder à pergunta em nome de quem se obedece e, no segundo, em nome de quem Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 52 se exerce a autoridade moral. Exige-se, portanto, um elevado nível de consciência e de responsabilidade. Hoje, é necessário dar voz à vida do indivíduo e da comunidade em meio ao calor e à fragilidade da realidade. A linguagem evocativa é substituída por uma linguagem palpitante, que tenta dizer o que nunca foi dito, que busca abrir trilhas em meio a cenários nunca antes visitados. A todo instante mudam os cenários na biologia, na medicina, na genética, na comunicação, na política, na economia, gerando sempre novos desafios para a reflexão ética e, consequentemente, para as decisões e ações morais. Esse deslocamento dos fundamentos da moralidade do céu para a terra, da transcendência para a imanência, tem enormes implicações para qualquer projeto de formação moral. No bojo dessa reviravolta, ocorre a passagem da visão providencialista e fatalista da história para uma visão puramente humana e histórica. Com isso, dissolve-se a fonte que legitimava a educação moral tradicional e perde força o argumento da autoridade em nome do qual se exigia submissão e obediência. Encontramo-nos em meio a essa passagem, com os olhos ora voltados para o passado, ora para o futuro, entre a saudade e a esperança, vivendo intensamente as ambivalências de um mundo em transformação. Ao tempo em que as mudanças ocorriam de forma mais lenta, o homem tinha condições de olhar para o passado e ver nele espelhados o presente e as expectativas de futuro, de modo que tinha como orientar-se, sentir-se seguro, em relação ao curso dos acontecimentos. Nesse contexto de estabilidade, justificava-se uma educação moral baseada no argumento da autoridade, que exigia sujeição e obediência ao conjunto de normas e valores aceitos por todos. A educação moral consistia na repressão dos desejos e instintos e na incorporação do ethos legitimado pela tradição. Hoje, as tradições se encontram sob suspeita, perderam sua força orientadora e não oferecem mais amparo e segurança diante de um futuro inseguro e imprevisível. Essa condição cultural tem decisivas consequências para a formação moral das pessoas. De um lado, como vimos, a educação moral nos moldes tradicionais da adaptação a um código ético de traços universais e permanentes já não é possível. De outro, pela dissolução das referências, o homem corre o iminente risco de submergir na mudança, de ser envolvido, absorvido e levado pelo fluxo da existência, sem conseguir assenhorear-se do seu próprio caminho e destino. Para que isso não ocorra e para que não impere a lei do mais forte, são necessários códigos de conduta, normas e valores que devem ser respeitados por todos. É o preço da condição humana: Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 53 a liberdade de todos exige o limite da liberdade individual. Apesar das teses que falam do fim dos valores (Lipovetsky, 1989), dos tempos líquidos (Bauman, 1999), as permanências, as referências, as normas e valores são condições necessárias da vida humana. Não há sociedade humana nem convivência ordenada e pacífica sem um código de direitos e deveres, orientador da coexistência dos indivíduos. O que ocorre é que este código não é mais indelével, permanente e universal, mas histórico, ou seja, sujeito a transformações e mudanças que acompanham as condições materiais e culturais da sociedade. Essa ambivalência entre a permanência e o fluxo, entre a tradição e o porvir, entre o ser e o vir-a-ser é o centro da paideia contemporânea.2 Nesse cenário, a tarefa da educação moral coloca-se numa nova perspectiva de formar um sujeito moral, portador de uma consciência crítica que lhe permita uma permanente percepção e avaliação da pertinência dos códigos, normas, tradições, na perspectiva da liberdade e da justiça. A liberdade é condição seminal de qualquer moralidade, uma vez que sem liberdade não há decisão nem ação moral, e justiça é condição antropológica do ser humano como ser social, que precisa encontrar formas de convivência em que direitos e deveres se equilibrem. Por isso, formar sujeitos morais não significa, pelo menos não significa apenas, transmitir esse ou aquele valor, exigir esse ou aquele comportamento, mas contribuir para tornar o indivíduo um sujeito crítico, político, reflexivo. Compete ao professor despertar nos seus alunos o desejo de ser um sujeito moral. Esse é fundamentalmente um processo dialógico, argumentativo, deconvencimento. Ninguém pode obrigar alguém a ser um sujeito moral contra a sua vontade, nem mesmo mediante as mais severas ameaças ou sanções, pela simples razão de que a liberdade é condição sine qua non da moralidade. Obedecer às normas, seja por conforto ou temor, é condição suficiente para ser correto (em conformidade com as normas), mas não para ser um sujeito moral. A ação moral tem como pressuposto a livre escolha do sujeito. E essa condição de sujeito moral autônomo não existe a priori, nem pode ser simplesmente transmitida pela educação: é uma condição que deve ser conquistada e continuamente fortalecida ao longo de toda a vida. Ajudar nesse intuito é o sentido e o objetivo da formação moral. Erigir liberdade e justiça em princípios centrais de um novo modelo de moralidade implica repensar profundamente a relação entre individuo e sociedade, estabelecendo novos vínculos que agregam as tônicas fundantes dos modelos ético-filosóficos da antiguidade e da modernidade, Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 54 focados, como se sabe, respectivamente, na justiça e na individualidade. Sociedade e indivíduo são as duas faces imbricadas de uma mesma realidade social. O ser humano, por ser dotado de razão, é um ser confiado a si mesmo, que deve cuidar de si, velar por si mesmo. Dessa premissa ele não pode abrir mão, sob pena de deixar de ser humano. O sujeito moral só se constitui a partir do trabalho que faz consigo mesmo como exercício de conquista de sua liberdade. O estado que o indivíduo deseja é o estado de soberania e independência de si mesmo, numa palavra, de autonomia com relação a si mesmo, às coisas e ao mundo. Desse objetivo maior decorre a pergunta a respeito da conduta ou das regras que devem ser assumidas para alcançar esse estágio de autonomia. Combater a imoralidade significa, então, o homem repensar-se como sujeito moral; repensar-se como indivíduo, em sua história pessoal, nas suas relações com os outros seres humanos e com a natureza; significa repensar a sua situação no mundo contemporâneo, o sentido de sua vida presente e futura, as suas formas de convivência e usos dos outros e da natureza. Mas significa, também, repensar a sociedade, seus objetivos e ideais, seus valores e normas, seu sistema jurídico, político e econômico, na perspectiva da convivência digna e justa. E é no contexto dessa relação entre o individual e o social, como dimensões fundantes da moralidade, que o conceito de justiça adquire nova e inarredável centralidade. A justiça é a primeira e mais fundamental virtude do homem contemporâneo. O eixo dessa nova perspectiva consiste na relação indissolúvel entre o indivíduo e a sociedade. Restabelecer esse vínculo entre indivíduo e sociedade, em meio a um contexto cultural em que tal vinculação se apresenta estremecida, parece-me o objetivo central de educação moral. Não existe o sujeito moral independente da sociedade e nem a sociedade moral independente do sujeito moral: ambos mantêm entre si vínculos indissolúveis de liberdade e de justiça. Liberdade é o escopo e justiça sua condição. Nesses termos, não há liberdade sem justiça e nem justiça sem liberdade. Se fosse resumir essas considerações, diria que a educação moral se baseia, em termos de procedimento, no diálogo e na argumentação, e, em termos de objetivos, na formação do sujeito moral crítico, autônomo e livre, cujas principais virtudes devem ser a responsabilidade e a justiça. No entanto, a realização desse objetivo enfrenta, na prática, grandes dificuldades, uma vez que as tendências hegemônicas nos contextos sócio-cultural-econômico se orientam em sentido contrário. A seguir, serão apontadas algumas dessas dificuldades. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 55 5. Dificuldades, conflitos e ambivalências Podemos distinguir várias situações que configuram posicionamentos distintos com relação à educação moral. O primeiro é representado por aqueles que, diante do mundo barbarizado em que vivemos (Mattéi, 2002), sentem-se desiludidos e impotentes e não acreditam que algo possa ser mudado pela educação moral. No interior da escola, existem também os que, atropelados pelo cotidiano de tantas tarefas, burocracias e frustrações, tornam-se indiferentes, optando por cumprir suas obrigações sem altruísmos nem projetos. Há também o grupo dos saudosistas que constantemente comparam os "bons tempos" com as desgraças morais contemporâneas e sonham com o retorno ao passado das normas claras, da ordem e do dever. Finalmente, existem os que fazem coro a um certo discurso de senso-comum, lamuriento, acusativo e catastrofista, que se sentem vítimas e não se cansam de culpar os outros. Em meio à tensão entre essas várias situações, a escola é acometida por uma profunda crise. Ao mesmo tempo em que a escola é responsabilizada pela formação moral dos alunos para compensar o vazio formativo aberto pelo esfacelamento da família, pela influência desencontrada da mídia e pela desorientação ética geral da sociedade, ela é solicitada a dedicar- se a adaptar os alunos à sociedade, transmitir-lhes conhecimentos e habilidades, de modo que possam ter uma vida de sucesso. Esta crise é essencialmente a crise da Bildung, da formação do homem integral, individual e social, que se esfacela sob a desmesurada submissão da educação às exigências de um modelo de vida que se divide entre os prazeres imediatos, as vantagens materiais e as exigências do mercado. Sob a alegação da necessidade de atender às incontornáveis exigências desse modelo de existência, ou seja, de realizar uma educação utilitarista que adapta os indivíduos à realidade, a escola é fortemente constrangida a abrir mão de uma de suas mais importantes responsabilidades, que é a formação integral do ser humano em sua dimensão epistemológica, estética e moral. Essa, então, é a primeira grande dificuldade: exige-se, de um lado, uma educação voltada para o mercado, para a competividade, para o útil e, de outro, uma educação do sujeito moral responsável, respeitoso, justo. São duas propostas não apenas distintas, mas em boa medida contraditórias, uma vez que, como veremos adiante, o atendimento aos mandados do mercado fere, em muitos aspectos, os princípios da moralidade. Essa situação gera um clima de indiferença e impotência entre os docentes que, descrentes das reais possibilidades de uma educação moral, parecem cada vez mais reféns de um sistema que Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 56 deles exige "virtudes" opostas aos parâmetros de uma moralidade fundada no respeito, na dignidade, na tolerância, na justiça e na democracia. Essa situação de um certo marasmo moral confere incrível atualidade à pergunta formulada por Hobbes: "Por que os homens devem atuar de outra forma que não seja em função de seu próprio proveito imediato?". Esse é o ponto nevrálgico e a dificuldade maior da educação moral hoje. Enquanto tudo se foca no indivíduo, nos seus interesses, nos seus desejos, vantagens e prazeres, a educação moral precisa, remando a contracorrente, cultivar o respeito, a responsabilidade e a justiça. Nesse sentido, a educação moral torna-se uma tarefa complexa que envolve o grande desafio da contra facticidade, uma vez que a tendência educacional dominante é a da acomodação, da adaptação, do enquadramento das pessoas a uma realidade orientada pelos interesses do sucesso pessoal, da posse de bens e do exercício do poder. Tal tarefa torna-se ainda mais difícil se levarmos em conta que o cuidado do indivíduo consigo mesmo passou a representar,desde a modernidade, não mais a negativa renúncia do eu, comum na moral cristã, mas uma conquista positiva de constituição do eu. Temos então a ambivalente exigência de, ao mesmo tempo, promover o desenvolvimento do indivíduo, com sua liberdade e autonomia, e despertar nele o espírito de socialidade respeitosa, tolerante e responsável. Encontrar um equilíbrio entre os interesses individuais e as necessidades sociais não é, de modo algum, uma tarefa simples. Aristóteles ensinou que a formação da pessoa tem sempre um caráter político, uma vez que o eu se constitui na estreita relação com a pólis, seus costumes, normas e valores (1999, p. 18). O ethos, de onde deriva ético, é a maneira de alguém se conduzir, sua forma de ser, de decidir e de agir diante de diferentes situações no interior da comunidade. Essa dupla dimensionalidade, individual e social, do ser humano confere igual duplicidade à formação moral que visa à formação do sujeito autônomo e livre, mas sempre na condição de ser político e social. Decisões e ações são, ou pelo menos deveriam sempre ser, gestos, a um tempo, solitários e solidários de uma liberdade refletida que implica limites negociados. O indivíduo se desenvolve como ser autônomo e livre nos limites de sua humanidade política. O equilíbrio dessa dupla condicionalidade encontra garantias objetivas e democráticas nas normas e prescrições que organizam os desejos e os instintos, adaptando-os às exigências da convivência entre liberdades. A liberdade, portanto, tem sempre um caráter político, como já sabiam os gregos. Liberdade significa não ser escravo de si, dos seus instintos e dos seus apetites e, ao mesmo tempo, não ser Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 57 escravo dos outros. Mas não ser escravo dos outros significa também que o outro não pode ser meu escravo. "A ação justa", dizia Arsitóteles (1999, p. 101), "é um meio termo entre o agir justamente e ser tratado justamente". Em conformidade com essa premissa, os sujeitos não podem formar-se, conhecer-se, constituir-se independentemente de sua relação com os outros. À liberdade do indivíduo, portanto, é inerente uma dimensão política e social. Disso podemos concluir que o comportamento moral está intrinsecamente relacionado ao conceito de democracia e de justiça social. E assim voltamos à pergunta de Hobbes: Como convencer os homens a não perseguirem apenas os seus interesses individuais? E é nisso que reside a grande dificuldade, numa época em que se privilegiam e se antepõem os interesses individuais aos sociais e comunitários. Essa relação entre o individual e o social liga-se a outra dificuldade presente na educação de modo geral, mas particularmente difícil no contexto da educação moral. Trata-se do problema da disciplina e da autoridade. Todo o debate a respeito das relações entre as gerações defronta-se com essa questão. Pode-se dizer que qualquer atividade humana que se propõe alcançar certos objetivos exige disciplina. Isso vale tanto para uma equipe desportiva, para uma orquestra, quanto para um grupo de pesquisa que queiram obter sucesso no seu trabalho. No entanto, desde a quebra do autoritarismo tradicional (Rousseau, 1992), tornou-se comum uma forte rejeição a qualquer tipo de autoridade, a ponto de chegarmos hoje a uma sociedade que endeusa a inexistência de limites. Particularmente a família e a escola se defrontam com esse problema. Filhos e alunos articulam uma difusa reinvindicação de igualdade com relação aos pais e professores. Em outras palavras, há hoje uma forte resistência em reconhecer o princípio da autoridade, em nome da qual se possa exigir disciplina. Teríamos aí um vasto campo de debates e discussões que não é o momento de explorar. No entanto, é importante registrar que essa crise de autoridade e de disciplina afeta também a educação moral, na medida em que se questiona a autoridade da norma moral. Retorna aqui o problema, já abordado anteriormente, da legitimação das normas e valores. Hoje, as normas e valores exigem uma legitimação racional, de modo que aqueles que são obrigados a segui-los possam compreender por que são obrigados a fazê-lo. Acontece, no entanto, que esse processo de legitimação não pode ser retomado a cada instante. A vida quotidiana pressupõe certa durabilidade, um reconhecimento, em princípio, da Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 58 autoridade, pelo fato de essa autoridade ter sido socialmente legitimada. Não é necessário dizer que isso não justifica o uso despótico dessa autoridade. É preciso que filhos e alunos estejam convencidos, primeiro, de que a disciplina e a autoridade são socialmente necessárias e, segundo, que a disciplina e a obediência, embora imponham limites aos impulsos e desejos imediatos, são vantajosas em termos da convivência civilizada. No entanto, essa argumentação é pouco convincente no contexto cultural em que predomina a eudaimonia, a busca do prazer, o sucesso e as vantagens pessoais. Ocorre nesse ambiente um notável dissenso entre virtude e felicidade. Está posta, assim, essa última questão: Por que praticar a virtude se ela não conduz à felicidade? Nas sociedades tradicionais havia um forte consenso a respeito do código de regras e dos fins sociais que deviam orientar a vida de cada um. Esse consenso se fundava na relação entre virtude e felicidade: o sacrifício da virtude era recompensado pelo ganho de felicidade. A relação entre virtude e felicidade, que preservava coesas tanto a polis grega quanto a comunitas medieval, parece romper-se na sociedade contemporânea. De um lado, sobrevivem os ideais tradicionais de honestidade, respeito e eqüidade, formulados na Grécia como forma de vida feliz na polis e, na Idade Média, como caminho para a felicidade eterna e, de outro, surgem os ideais da posse, do consumo e do poder que prometem a felicidade no sistema capitalista. A promessa de felicidade, que justificava as virtudes tradicionais, perdeu credibilidade e a felicidade contemporânea não necessita de virtude. Nas sociedades em que se dissociam virtude e felicidade, a educação moral tende a constituir-se num repertório de admoestações acompanhado de promessas de felicidade que desfrutam de pouca credibilidade. Disso resulta o que poderíamos chamar de uma moral cínica do capitalismo contemporâneo, ou seja, uma moral que exige um comportamento virtuoso como, por exemplo, obedecer às leis, submeter-se aos preceitos da ordem pública, pagar impostos, dizer a verdade, ser honesto etc., sem que tais comportamentos tragam a felicidade pessoal e social nos termos da eudaimonia dominante. Pior que isso, a felicidade, muitas vezes, encontra-se do lado daqueles que burlam os princípios dessa moral. A ambivalência mais perversa desse moralismo cínico da sociedade capitalista é que esse divórcio entre regras e fins, entre virtude e felicidade, atinge particularmente as parcelas menos favorecidas da população, que não podem aproveitar-se dos benefícios do sistema alcançados pela burla da norma. Essa parte da população tem que Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 59 obedecer às normas, tem que ser virtuosa para garantir o funcionamento de um sistema que, na verdade, apenas a aflige, reprime e exclui. No modelo cristão, o comportamento virtuoso garantia a felicidade eterna para todos os que agiam em conformidade com a lei. Na intenção, pode-se dizer o mesmo do modelo secularizado da modernidade, pois a obediência de todos às normas do contrato social deveria garantir o bem-estar e a felicidade de todos. Com o surgimentodo capitalismo, esta perspectiva foi alterada, na medida em que, enquanto permanece a exigência da virtude de todos, a felicidade fica reservada aos poucos que antepõem os interesses privados aos sociais. Na situação atual do capitalismo neoliberal, em que a felicidade consiste na busca do prazer imediato, chegamos ao ponto extremo não apenas da desconexão entre virtude e felicidade, mas da inversão dessa relação em antagonismo: a realização social, o sucesso, o bem estar são facilitados pela contravenção, pelo poder, pela exploração das pessoas e do meio. Uma vez ocorrida esta desconexão entre virtude e felicidade, o perigo reside em se manter a virtude na forma de pura coação ou repressão. Com isso, elimina-se a sedução da recompensa, que justifica o sacrifício, e a moral perde o sentido. Parece ser esse o risco que corremos numa sociedade em que as virtudes tradicionais já não são o mecanismo para alcançar a felicidade, pelo menos não nos termos hedonistas em que é formulada hoje. Num contexto em que o virtuoso não raro é considerado otário, a educação moral está condenada a enfrentar enorme dificuldade. Esses comentários nos permitem retornar à nossa tese inicial de que a reforma moral do indivíduo depende essencialmente de uma simultânea reforma moral de sociedade como um todo. Como esta reforma não é possível sem os indivíduos, é tarefa primeira da formação moral estimular a formação de sujeitos políticos que tenham a justiça como seu bem maior. Conclusão Essa reflexão mostra com bastante clareza que a tarefa da educação moral não é apenas um compromisso dos pais, da escola ou de outra instância qualquer, mas um compromisso da sociedade como um todo e de todas as suas instituições políticas, jurídicas, midiáticas e também educacionais. Afirmar isso representa alimentar certa utopia, no seu sentido negativo, uma vez Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 60 que, no momento, nada indica que a sociedade venha a iluminar-se em todos os seus ambientes de um novo consenso de moralidade. A sociedade será sempre plena de contradições e é no interior delas que se estabelece a luta por práticas individuais e sociais que favoreçam o bem- estar e a felicidade de todos. É nessa perspectiva que deve ser vista a tarefa da educação moral realizada no interior da escola: uma tarefa árdua que se encontra entre paradoxais e contraditórias exigências. De um lado, sabe-se que ela precisa da tradição como condição educativa para o presente e para o futuro e, de outro, reconhece-se que ela necessita adaptar-se ao ritmo e à celeridade das mudanças e transformações. Se no passado o próprio acontecer histórico tinha o sentido alegórico que ilustrava as grandes ideias de Homem, de Deus, da Natureza, ideias estas que orientavam o mundo e representavam o sentido da vida, agora o movimento não é símbolo de nada, ele é pura e simplesmente movimento, mudança sem significado exterior a si mesmo. Com o esvaziamento dos grandes cenários de sentidos e significados teleológicos, o homem perdeu sua condição de dominador e foi jogado para o interior do próprio movimento, transformando-se em parte igual a todas as outras do todo em movimento. Adorno disse, certa vez, que a grande máquina da ciência e da tecnologia cuspiu seu maquinista e criador. Talvez se possa dizer, desde um outro ponto de vista, que o ser humano não foi ejetado, mas está ameaçado de ser absorvido pela grande máquina, no interior da qual está sendo consumido pelas chamas ardentes de um progresso que avança sozinho sem dar atenção aos sentidos transcendentes do humano. Parece, então, que nos encontramos bastante distantes do homem autônomo e socialmente responsável, que é o objetivo maior de toda a educação ética. Trata-se, sem dúvida, de um ambiente muito adverso para uma educação moral, mas o imponente movimento por uma nova moralidade individual e social nos convence primeiro de que ela é absolutamente necessária e, segundo, de que ela é possível. O caminho certamente não é nem curto nem fácil. Nem se deve imaginar que seja possível formar os sujeitos para depois termos uma sociedade mais moralizada. A formação das pessoas e o repensar das estruturas profundas de nossa sociedade são duas faces de um mesmo processo. É preciso empreender um grande debate da coisa pública, do espaço público como o âmbito de discernimento moral, em que o conceito de justiça assume centralidade e se torna o conceito definidor da mais elevada virtude da ética contemporânea. E a escola, em todos os seus níveis, Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 61 tem uma fundamental contribuição a dar: promover a renovação moral do indivíduo e da sociedade, no sentido de uma ordem mais justa. Notas 1. Sigo aqui as teses da Ética do discurso que, de um lado, "proíbe que, em nome de uma autoridade filosófica, se privilegiem e se fixem de uma vez por todas numa teoria moral determinados conteúdos normativos" e, de outro, afirma que "os juízos morais têm um conteúdo cognitivo; eles não se limitam a dar expressão às atitudes afetivas, preferências ou decisões contingentes de cada falante ou ator" (Habermas, 1989, p. 147-148). 2. Mesmo os autores considerados precursores ou pós-modernos, em sentido estrito, não colocam em dúvida a necessidade de valores. Veja-se o que diz Vattimo (1996, p. 5-6), ao analisar as posições de Nietzsche e de Heidegger: "Como essa definição coincide com o 'Deus está morto' e com a desvalorização dos valores supremos de Nietzsche? Pode-se percebê-lo ao se atentar para o fato de que também para Nietzsche não desapareceram os valores tout court, mas os valores supremos, resumidos precisamente no valor supremo por excelência: Deus. Tudo isso, porém, longe de tirar sentido da noção de valor, como Heidegger bem viu, liberta-a na sua potencialidade vertiginosa: somente onde não há instância terminal e 'interruptiva', bloqueadora, do valor supremo-Deus, os valores podem manifestar-se em sua verdadeira natureza, que é a convertibilidade, e a sua transformabilidade/ processualidade indefinida". Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 62 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, T. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ADORNO, T. A indústria cultural. In: Gohn, G. (Org.). Theodor Adorno. São Paulo: Ática, 1986. p. 92-99. ADORNO, T. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1995. ARISTÓTELES. Ética a Nicomacos. Brasília, DF: UNB, 1999. BAUMAN, Z. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1997. BAUMAN, Z. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2006. HUME, D. Uma investigação sobre os princípios da moral. Campinas: UNICAMP, 1995. KANT, I. Beantwortung der Frage: was ist Aufklärung. In: Kant, I. Ausgewählte kleine Schriften. Hamburg: Felix Meiner, 1969. LIPOVETSKY, G. A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Lisboa: Antropos, 1989. LYOTARD, J.-F. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 1985. MATTÉI, J.-F. A barbárie interior. São Paulo: unesp, 2002. POCHMANN, M. A exclusão social no mundo. São Paulo: Cortez, 2004. RAWLS, J. Teoria da justiça. Lisboa: Presença, 1993. ROUSSEAU, J.-J. Emilio ou da educação. São Paulo: Bertrand Brasil, 1992. ROUSSEAU, J.-J. Do contrato social. São Paulo: Martin Claret, 2007. VATTIMO, G. O fim da modernidade: nihilismo e hermenêutica na culturae a sua concepção de disciplina e educação, os conflitos, naturais em qualquer relação, são vistos como uma oportunidade para trabalhar valores e regras. A construção dos valores morais tem início, desde a mais tenra idade, quando a criança começa a interagir com os mais diversos ambientes sociais. A partir da relação familiar, as interações sociais com os seus colegas e com os profissionais envolvidos na comunidade escolar contribuirão para o desenvolvimento e a formação da personalidade do indivíduo que expressará de acordo com a construção de sua tábua de valores o seu senso moral e a sua consciência moral através de suas ações. Para educar em direção à consciência moral autônoma, Piaget faz considerações sobre a importância de educar em valores. Em sua obra, O juízo moral na criança, ele estuda o processo de construção da moralidade na criança, mostrando que enquanto ela organiza o pensamento e o julgamento, podemos observar três estágios de desenvolvimento e as atitudes dominantes de acordo com a idade. Segundo Piaget, a criança passa por uma fase pré-moral, caracterizada pela anomia (A: negação; nomia: regra, lei), coincidindo com o “egocentrismo” infantil e que vai até, aproximadamente, 4 ou 5 anos de idade. No período sensório-motor, não existem regras, são as necessidades básicas que determinam as normas de conduta. Quando a criança atinge 7 ou 8 anos de idade, tem início a fase da moralidade heterônoma, caracterizada pelo comportamento de submissão às regras e aos deveres impostos coercitivamente. Nesse período, ela compreende as regras como sagradas porque quem as informa é o adulto, cuja superioridade é para ela inquestionável e inatingível. Na relação estabelecida entre a criança e os adultos, particularmente, os pais, nasce a obediência por medo da punição. A noção de responsabilidade pelos atos é avaliada de acordo com as consequências objetivas das ações, e não pelas intenções. A relação estabelecida entre a criança e os mais velhos é o protótipo das relações coativas. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 8 Em torno de 11 ou 12 anos, a criança é capaz de avaliações morais pessoais e, em certos casos, ela entra em conflito com os sentimentos da moral heterônoma da obediência por perceber que mudar uma regra deixa de ser uma transgressão. Nesse momento, tem início o processo de passagem da moral heterônoma para a moral autônoma. Para Piaget (1933/1977), a personalidade autônoma é o produto mais refinado da socialização (p. 245) porque é somente em uma relação de respeito mútuo entre personalidades autônomas que é possível, simultaneamente, a diversidade e a igualdade. Mas, da mesma forma que nem todo indivíduo atinge o pensamento formal, nem todos chegam a formar uma personalidade autônoma; pelo contrário, “a consciência adulta autônoma é um produto social recente e excepcional” (PIAGET, 1944/1977, p. 186). Piaget também chama a atenção para o fato de que sem que se estabeleçam trocas do sujeito com o meio não há nem conhecimento nem ética possíveis. E que o desenvolvimento intelectual, isto é, a possibilidade de raciocínio lógico, a relação de respeito mútuo com o outro e a constituição de uma tábua de valores são condições necessárias para a conduta moral e ética. Na moralidade autônoma (autonomia: capacidade de governar a si mesmo), o indivíduo adquire a consciência moral, e os deveres são cumpridos com o reconhecimento de sua necessidade e significação. Na ausência da autoridade continua o mesmo, segue um código de ética interno, fiel a seus valores e a seus princípios. A responsabilidade é subjetiva, baseada na intencionalidade do ato, ou seja, é aquela em que o indivíduo atinge seus objetivos através de uma intenção deliberada. Sob uma perspectiva holística, podemos observar que os valores, ao mesmo tempo que estão relacionados intimamente à formação do indivíduo, também são eleitos e emergentes da cultura e/ou da sociedade a que cada indivíduo pertence (GRINSPUN, 1999). Para que um professor possa ser um educador em valores, é condição essencial ser ele mesmo um exemplo de tudo o que transmite através de suas ações e de sua postura. Pierre Weil (1993) nos desafia com suas reflexões a esse respeito quando afirma que: em sua formação também seria importante cultivar nos educadores uma disposição para trabalhar suas essências. Além disso, que eles sejam suficientemente lúcidos para viver a arte da atenção em si mesmos e serem honestos para mostrar como são para si próprios. Desejamos ainda que esses educadores Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 9 sejam levados a apresentar frequentemente atitudes e comportamentos ligados aos valores humanos: verdade, beleza e amor (p. 41). A educação tem tido um papel de socialização do conhecimento, da cultura e dos valores em todas as sociedades e em todos os tempos. O comportamento humano e o posicionamento de cada indivíduo frente aos valores e princípios, em um determinado momento de sua vida, não têm um caráter definitivo. Segundo Arruda (1998), os valores são num primeiro momento herdados por nós. Para construir a sua própria escala de valores, a criança ou o adolescente precisa do referencial do mundo adulto. Não nos cabe aqui um aprofundamento sobre o conceito filosófico do que se entende por valor. O que pretendemos é focalizar a nossa atenção para a necessidade de uma educação que eduque, também, em valores que estruturam as relações interpessoais e intrapessoais. Sendo assim, em uma perspectiva psicossocial, Novikoff (2002) faz uso da seguinte classificação dos valores básicos, essenciais para a convivência humana em sociedade: • Valores pessoais: inclui as representações qualitativas sobre as pessoas, incluindo as questões éticas. • Valores econômicos: refletem os objetos materiais ligados ao consumo/utilidade. • Valores espirituais: apontam os valores estéticos e os religiosos. Os valores estão referendados aí pelo senso moral e pela consciência moral – justiça, solidariedade, generosidade, integridade, honestidade e outros. os valores provam ainda sentimentos de vergonha, culpa, admiração, amor, dúvida, contentamento, cólera, medo, que interferem em nossas decisões nos levando a ações que atingirão a nós mesmos e aos outros. Marilena Chauí (1999) com sensibilidade esclarece que (...) os sentimentos e as ações, nascidos de uma opção entre o bom e o mau ou entre o bem e o mal, também estão referidos a algo mais profundo e subentendido: nosso desejo de afastar a dor e o sofrimento e de alcançar a felicidade, seja por ficarmos contentes conosco mesmo, seja por recebermos a aprovação dos outros. Portanto, o senso e a consciência moral dizem respeito a valores, sentimentos, intenções, decisões e ações referidas ao bem e ao mal e ao desejo de felicidade (p. 335). Os valores apontados devem atravessar os limites disciplinares e permear o cotidiano do aluno. Considerando que alguns conceitos são demasiadamente abstratos, é fundamental estimular através de dinâmicas e experiências concretas a vivência de situações que favoreçam o Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 10 processo de identidade pessoal, pois, assim, podemos identificar que valores estão sendo privilegiados naquela circunstância. As ciências do comportamento contribuem, significativamente, para uma melhor compreensão do desenvolvimento da moralidade na criança e no adolescente e de como se dá o processo da legitimação dos valores e das regras morais. Quando estamos diante de uma decisão a tomar, as nossaspós-moderna. São Paulo: Martins Fontes 1996. WEBER, M. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2005.dúvidas manifestam não só o nosso senso moral, mas colocam à prova a nossa consciência moral, pois exigem que façamos uma escolha, que justifiquemos para nós mesmos e para os outros as razões de nossas opções e que assumamos todas as consequências decorrentes de nossos atos. Portanto, a consciência moral é o resultado operativo de nosso senso moral (CHAUÍ, 2000). Sabemos que uma pessoa capaz de agir eticamente nem sempre de fato o faz. Assim como uma pessoa capaz de raciocinar logicamente nem sempre pensa de acordo com as normas lógicas. Piaget deixou intocado o mistério de por que mesmo uma pessoa que tenha as condições necessárias para a ação moral nem sempre age eticamente (FREITAS,1999). Na verdade, não é possível definir precisamente de que modo uma pessoa chega a legitimar determinadas normas de comportamento e conduzir-se de acordo com elas de maneira coerente. Sabemos que um conjunto de processos conscientes e inconscientes, ao longo de toda a vida, forma o nosso perfil individual. O modo como se dão o ensino e a aprendizagem, isto é, as opções didáticas, os métodos, a organização e o âmbito das atividades, a organização do tempo e do espaço na prática educativa, ensina valores, atitudes e conceitos. E a escola deve ser o lugar onde cada aluno reconheça que os valores e as regras são coerentes e passíveis de uma identidade pessoal ante a perspectiva de uma vida plena e feliz. 3. Um estudo de caso Partindo da concepção de que os valores estão presentes nas opções individuais e são referendados em todos os âmbitos da vida no cotidiano nas dimensões social, histórica, cultural, afetiva, política, econômica, cabe aqui indagar: qual é o papel da escola como referencial para o aluno na construção de sua escala de valores? Como estabelecer ações e estratégias para consolidar essa formação no momento atual? Que valores queremos transmitir em nossas Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 11 escolas? E estes valores estariam relacionados somente ao ambiente escolar? De que forma podemos criar um espaço sistemático de discussão sobre valores no ambiente escolar com a participação da comunidade escolar? Vamos focalizar um caso que permeia o nosso cotidiano profissional e nos coloca à prova ante essas indagações. Durante a aula, um aluno visivelmente maior agride um colega pelo fato de o mesmo ter usado o seu estojo de canetas sem autorização. O professor intercede e pede que, ao término da aula, ambos o aguardem na coordenação. Qual seria o procedimento mais adequado diante dessa situação? Afastando situações atípicas, os conflitos mais comuns no ambiente escolar, são: agressão física entre os alunos, rejeição por parte dos colegas ou dos professores (proibição de participação) e conflitos verbais (ofensas, provocações). Na escola tradicional, as desavenças e os atritos entre as crianças são tratados como problemas a serem extintos a qualquer custo. É importante ressaltar que, na maioria das vezes, os conflitos são vistos como nocivos e negativos. Piaget concebe os conflitos interpessoal e intrapessoal como necessários ao desenvolvimento porque através do processo de desequilibração o sujeito é motivado a buscar uma nova ordem interna. Os cursos de formação de profissionais em educação não preparam o futuro profissional para lidar com os conflitos que ocorrem nas instituições de educação. Para que o comportamento se enquadre no modelo que prioriza a obediência, as punições e as recompensas são as práticas adotadas: proibir uma atividade que dá prazer ao aluno, tirar ponto, suspender, fazer sermão, ameaçar etc. Nesse ambiente, as relações coercitivas se expressam através da valorização do poder hierarquizado, o que pressupõe uma educação que alimenta as atitudes interiores que predispõem o indivíduo na fase heterônoma, tais como medo, imposição, autoritarismo, castigo, prêmio, respeito unilateral, tirania. Consequentemente, contrariando o princípio democrático da liberdade, o máximo que se consegue é que as pessoas tenham comportamentos adequados (grifo nosso) quando estão sob controle, o que é essencialmente diferente se queremos educar para a autonomia. Se a professora se dirige ao agressor perguntando o porquê de ele ter agredido o colega, se ele gostaria que fosse com ele, e sugere um pedido de desculpas, embora a intenção seja cabível e louvável, a intervenção da professora elimina a possibilidade de o menino (agredido) se expressar e aprender a falar por si próprio sobre o que o incomodou perante o agressor. Essa é Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 12 uma questão corriqueira no dia a dia das crianças nas escolas, e cabe chamar a atenção para o fato de que, na busca de sua própria defesa, a criança é estimulada a fazer uso de suas próprias palavras e a participar da resolução do problema. A professora, em vez de resolver com autoridade a situação, pode contribuir para que ambos reflitam sobre o caso, atenta aos sentimentos que eles estão expressando naquele instante. Essa pode ser uma oportunidade para reconhecer as tendências de reação das crianças e o momento pode ser favorável à valorização do respeito pelo outro. A professora poderá ainda intervir explicitando o problema, ajudando-os a perceber a importância de controlar os impulsos de raiva e que a agressão física não é a melhor maneira de resolver as dificuldades com os colegas. Cabe também à professora chamar a atenção para o abuso da superioridade física, apontando para um possível ato de covardia. Nessa situação e em inúmeras outras similares, percebemos que a orientação de um professor habilidoso é capaz de promover um ambiente, em sala de aula, de cooperação e afetividade de democracia e de interação com os alunos, propiciando a troca de ideias e opiniões, o exercício da argumentação, a análise e proposta de soluções etc. Portanto, o modo como os conflitos sociomorais são resolvidos em sala de aula torna-se um excelente aliado para se trabalhar regras, princípios e valores. Não visando apenas à resolução do conflito, a conduta da professora é um procedimento mais coerente com a construção da autonomia. Como afirma Menin (1996, p. 61), “quer queiram ou não, todas as escolas atuam na formação moral de seus alunos; no entanto, nem todas o fazem na direção da autonomia”. As professoras Montserrat Moreno e Genoveva Sastre (2002) apontam que é fundamental que o professor desafie os alunos na direção da resolução dos conflitos a fim de conduzi-los permanentemente a: • buscar soluções próprias; • analisar as soluções apresentadas, antecipando suas consequências e observando se estas levam ao resultado esperado; • investigar as relações entre as causas e os conflitos apresentados; • considerar o que é uma boa solução para um determinado conflito; • pensar que as soluções para os conflitos devem ser justas, caso contrário, podem acarretar mais conflitos. É de suma importância reconhecer que a escolha da conduta mais adequada Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 13 perpassa pela qualidade da relação professor/aluno constituída. Nessa relação estão implícitos, por exemplo, o papel do professor como referencial para o aluno na construção de seus princípios éticos e morais, a sensibilização do aluno para as questões éticas e humanísticas, a educação em atitude e em direção à autonomia etc. 4. Considerações finais Apesar de a realidade escolar evidenciar a necessidade de educar para a resolução de conflitos sociomorais, as instituições responsáveis pela formaçãodos professores não investem em seus programas curriculares nessa modalidade de conhecimento. Consequentemente, a educação nas dimensões moral e ética é legada ao improviso e ao acaso. As práticas pedagógicas que auxiliam no desenvolvimento da moralidade devem ser constituídas desde atividades de rotina na sala de aula até a seleção de conteúdos que promovam esse desenvolvimento. Portanto, ao se trabalhar com a construção de valores, assim como nos demais conhecimentos, “a realização dos objetivos propostos implica necessariamente que sejam desde sempre praticados, pois não se desenvolve uma capacidade sem exercê-la” (BRASIL, 1997, p. 94). A educação, quando concebida como um processo de aprendizado ao longo de nossa existência, rompe as fronteiras demarcadas pela disciplinarização. Uma aula de qualquer disciplina pode e deve ter abertura para tomar qualquer direção, atravessando diferentes campos de conhecimento sem a identificação com apenas um deles. Essa interdependência leva à imprevisibilidade que desmitifica a obrigatoriedade de seguir apenas por caminhos predefinidos. É no espaço sagrado de nossa sala de aula que enveredamos magicamente por todos os caminhos imagináveis e inimagináveis que a mente humana pode alcançar. Essa experiência ímpar e enriquecedora cria condições favoráveis para que se estabeleçam diálogos abertos e os alunos experimentem a liberdade de opinar e expressar suas ideias com autoconfiança. Uma educação com tais características é o que verdadeiramente podemos chamar de educação conscientizadora e transformadora. O maior desafio para nós, profissionais de educação, é articular um trabalho nas diferentes áreas de conhecimento que encaminhe a prática Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 14 educativa objetivando reflexões sobre os princípios que fundamentam os valores. E que, ao longo desse processo, na conquista de sua autonomia, o aluno perceba que cabe a ele tomar decisões diante de situações que comprometam a sua qualidade de vida e a sua sobrevivência. Embora a família e outras instituições sociais veiculem valores e desempenhem um papel significativo no desenvolvimento moral e na formação de atitudes do aluno, a escola é o lugar onde esses valores são pensados, refletidos e dialogados. No atual contexto da globalização, a sociedade exige cada vez mais indivíduos dotados de poder de decisão e iniciativa. A fragilidade dos laços familiares e sociais compromete o processo de individuação do jovem e do adolescente cujas dificuldades emocionais são marcadamente difusas. O ato de aprender pressupõe uma relação com outra pessoa, a que ensina. É essencial que o professor esteja atento às transformações pelas quais está passando a estruturação emocional do adolescente de hoje. A liberação dos usos e costumes, assim como a diminuição das barreiras e proibições entre as gerações, é causadora de sérios problemas de estruturação psíquica durante a adolescência. Sob a perspectiva psicanalítica, a relação que se estabelece entre o professor e seu aluno é que determina as condições para aprender, sejam quais forem os conteúdos. É necessária uma atuação do professor para que o aluno atribua um sentido especial à sua figura e seja estimulado no seu desejo de saber e aprender. “A Construção dos Valores no Ambiente Escolar: um estudo de caso”, através da análise e reflexão sobre a experiência cotidiana, aponta novos caminhos ao propor um modo mais adequado e eficiente de lidar com questões que permeiam o cotidiano do professor. No dia a dia de nossa profissão são muitas as situações que vivenciamos, tanto no âmbito da relação professor/aluno quanto no universo das relações com profissionais de educação que, a exemplo do caso em estudo, se aprofundadas com aporte teórico, contribuiriam para qualificar a nossa prática profissional, estreitando e valorizando sempre a relação teoria/prática com sabedoria. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 15 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, Ulisses F. O sentimento de vergonha como um regulador moral. 1998. Tese (Doutorado) – IP, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998. BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Introdução aos parâmetros Curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997. CAPRA, Fritjof. Sabedoria incomum. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1995. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000. FREITAS, L.B.L. Do mundo amoral à possibilidade de ação moral. Psicologia: reflexão e crítica, n. 12, p. 447-458, 1999. FREITAS, L.B.L. A moral na obra de Jean Piaget: um projeto inacabado. 1997. Tese (Doutorado) – Curso de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997. FROMN, Erich. Do amor à vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. GADOTTI, Moacir. Boniteza de um sonho: ensinar e aprender com sentido. Rio de Janeiro: Feevale, 2004. GRINSPUN, Mírian Paura S. Zippin; NOVIKOFF, Cristina. Os adolescentes e a construção dos valores. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, 1999. Projeto de Pesquisa. GRINSPUN, Mírian Paura S. Zippin. Os valores do jovem no contexto atual. Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 1999. Projeto de pesquisa. MENIN, Maria S.S. Desenvolvimento moral: refletindo com pais e professores. In: MACEDO, Lino de (Org.). Cinco estudos de educação moral. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996. NOVIKOFF, Cristina. As representações sociais acerca dos adolescentes: perspectivas e práticas pedagógicas em construção. 2002. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002. PIAGET, Jean. O juízo moral na criança. São Paulo: Summus Editorial, 1994. 302p. SASTRE, G.; MORENO, M. Resolução de conflitos e aprendizagem emocional: gênero e transversalidade. Tradução: Ana Venite Fuzatol. São Paulo: Moderna, 2002. WEIL, P. A arte de viver em paz: uma nova consciência da paz. São Paulo: Gente, 1993. ______________________________________________________________________ Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 16 UNIDADE II - ESCOLA E CIDADANIA DIREITOS HUMANOS NA EDUCAÇÃO, UM PILAR PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA E A CONCRETIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Fernanda Prince Sotero Westphal Alexsandra Pizzetti Benincá INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo é demonstrar o valor que a educação tem para o desenvolvimento do ser humano enquanto cidadão e membro de uma sociedade civil. Os direitos humanos estão intimamente relacionados com a construção da cidadania e com a garantia do princípio da dignidade da pessoa humana. Desta maneira, a consolidação do cidadão enquanto partícipe das transformações sociais se concretiza através da educação. Para cumprir com esse objetivo o artigo se divide em tópicos que tratam o tema em um contexto global. Na primeira parte busca-se demonstrar a importância da educação para o desenvolvimento da cidadania, onde se garanta os direitos humanos postulados na Constituição Federal. Em seguida define-se o conceito de direitos humanos e fundamentais, suas principais características e distinções. Ao final é demonstrado o valor que a cidadania tem para a construção de uma sociedade democrática onde são garantidos os direitos humanos e o papel que a educação desenvolve para que este objetivo seja alcançado. Direitos Humanos são, modernamente, entendidos como aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser homem, por sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente. São direitosque não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir. O conceito de “Direitos Humanos” resultou de uma evolução do pensamento filosófico, jurídico e político da Humanidade. O retrospecto dessa evolução permite visualizar a posição que o homem desfrutou, aqui e ali, dentro da sociedade, através dos tempos. Mas a ressalva maior está no que condiz ao sistema de ensino. Este deve ter uma responsabilidade de enquadrar-se na formação do Estado Democrático, pois o sistema de ensino Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 17 deve contemplar a formação do cidadão, desenvolvendo uma visão moderna e bem fundamentada dos direitos civis, políticos e sociais, e também uma consciência mais abrangente dos direitos humanos. Ante a pergunta de como abarcar o ensino e aprendizagem dos Direitos Humanos no sistema educativo, alinham-se diversas respostas, pois por um lado estão todas aquelas que podem denominar-se de incorporação dos conteúdos. Estas consideram que é suficiente a inclusão desta temática em alguma das disciplinas existentes, ou, no máximo, o estudo de uma disciplina específica, para que os educandos logrem os objetivos que, sobre este aspecto, orientam a ação do sistema educativo. Duas objeções podem ser formuladas a esta postura. Uma delas consiste em que atrás desta posição, existe uma concepção meramente declaratória, nominalista, dos Direitos Humanos, que os reduz a um conjunto de informações cuja formulação é suficiente para assegurar sua existência real. Por outro lado, se fundamenta na difundida critica que se faz dos sistemas educativos em relação ao enciclopedismo curricular. O conjunto de temas ou disciplinas reforça este enciclopedismo e torna mais questionável a ação das instituições de ensino. Reconhecer a indivisibilidade dos Direitos Humanos e Fundamentais significa estar ciente de que a exclusão ou negação de um dos Direitos coloca em xeque a existência de todos os demais, porque cada qual tem uma função individual e compõe uma esfera do todo. Desta feita, há uma reconhecida inter-relação entre esses Direitos, que se complementam mutuamente, e conduzem a uma plenitude de vivência digna. A esfera da indivisibilidade dos Direitos Humanos e Fundamentais pressupõe o reconhecimento e o respeito ao outro, entendido como a aceitação do diferente, seja em relação a aspectos culturais, físicos, étnicos, religiosos, políticos, sociais e econômicos. Aceitar a concepção de Direitos Humanos inclui não apenas a ideia da defesa dos direitos próprios, que atendem às necessidades individuais, mas implica também o compromisso de reconhecer e defender os direitos que não aproveitam, os quais constituem o pressuposto de uma sociedade plural. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 18 1 EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS, SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA As transformações ocorridas na sociedade, nos dias de hoje, apontam para um cenário em que se torna imprescindível a educação como fator para o desenvolvimento da sociedade. Desenvolvimento este configurado não somente no âmbito dos avanços tecnológicos e do mercado de trabalho, mas essencialmente para que o indivíduo, como membro de uma estrutura social possa conviver harmonicamente com os demais seres humanos. A educação na sociedade serve como estrutura intermediária e para tanto, essencial para a promoção da dignidade da pessoa humana, para a construção da cidadania e consolidação de um Estado Democrático de Direito. O conhecimento adquirido nas escolas é uma ferramenta que liga a realidade do ser humano a seu crescimento como cidadão. Assim: A educação, no entanto, não constitui a cidadania. Ela dissemina os instrumentos básicos para o exercício da cidadania. Para que o cidadão possa atuar no sindicato, no partido político etc., é necessário que ele tenha acesso à formação educacional, ao mundo das letras e domínio do saber sistematizado. Em consequência disso a formação do cidadão passa necessariamente pela educação escolar (SANTOS, 2001, p. 65). A educação deve ser tratada como um processo de humanização do sujeito, que contribua na construção de políticas que efetivem melhorias da condição humana. Ao assegurar a qualidade educacional no País, busca-se promover o crescimento da sociedade e a redução das desigualdades. Cabe ao Estado desenvolver condições para a promoção dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Sobremaneira o acesso à educação para promover a construção cultural da democracia. Desta forma: A educação democrática assume assim uma enorme dimensão, que não se restringe a programas educacionais fragmentados, mas alcança a formação de um homem capaz de pensar e transformar o próprio mundo em que vive. Requer uma sociedade democratizada, requer políticas públicas de valorização do processo educacional, do profissional da educação, da permanência do aluno na escola e da qualidade do ensino ministrado. (RUTKOSKI, 2006, p. 365). A Magna Carta, em seu Capítulo III ao tratar da educação reforça a prioridade que o Estado deve dar para este tema, objetivando a construção de um cidadão como agente transformador da sociedade. Assim, consta no art. 205 da Constituição Brasileira que: Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 19 A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 2007, p. 93). Desta mesma maneira cita o art. 6º da Constituição Federal de 1998 que: São direitos sociais a educação, a saúde, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (BRASIL, 2007, p. 19). Os direitos sociais traduzem-se em uma obrigação de fazer do Estado em relação aos seus governados, são prestações positivas no sentido de oportunizar aos cidadãos garantias que tenham por objetivo a redução das desigualdades sociais. O Plano Nacional de Educação já cita que a educação se impõe como condição fundamental para o desenvolvimento do País. A qualificação das instituições faz-se necessária para que estas desempenhem sua missão educacional, institucional e pública na sociedade. A educação superior tem grande importância especialmente no que se refere ao desenvolvimento humano e na concretização de um Estado independente e desenvolvido. Entre seus objetivos pode-se destacar a busca em “[...] estabelecer uma política de expansão que diminua as desigualdades de oferta existentes entre as diferentes regiões do País” (BRASIL, 2007). Desta maneira o Plano Nacional de Educação objetiva o crescimento cultural da sociedade através da educação e com isto reduzir os desequilíbrios regionais que hoje existem no Brasil. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/96) traz, em seu art.1º que: A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais (BRASIL, 1996). E ainda cita que sua finalidade é buscar o pleno desenvolvimento do educando, preparando-o para o exercício da cidadania, além de qualificá-lo para o mercado de trabalho, que a cada dia está mais concorrido. A Lei de Diretrizes e Basesda Educação Nacional (9.394/96) no seu Capítulo IV, que trata da Educação Superior, ao se referir às suas finalidades, preceitua a importância desta para a criação e difusão da cultura como forma de desenvolvimento do pensamento reflexivo, além de fazer com que o homem procure entender sua condição de cidadão e também o papel que desenvolve dentro da sociedade. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 20 Em março de 1990, em Jomtien, na Tailândia, delegações de vários países se reuniram e assumiram compromissos com as metas de satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem de crianças, jovens e adultos, elaborando um documento intitulado como: Declaração Mundial sobre Educação para Todos. Através deste documento os participantes se comprometeram entre outros temas a buscar superar as desigualdades sociais e educacionais, onde os grupos excluídos: [...] os pobres: os meninos e meninas de rua ou trabalhadores; as populações das periferias urbanas e zonas rurais os nômades e os trabalhadores migrantes; os povos indígenas; as minorias étnicas, raciais e linguísticas: os refugiados; os deslocados pela guerra; e os povos submetidos a um regime de ocupação - não devem sofrer qualquer tipo de discriminação no acesso às oportunidades educacionais. (UNESCO 1990). Após dez anos da realização da Conferência Mundial de Educação para Todos, em Jomtien, foi promovido em 2000, o Fórum Mundial sobre Educação de Dakar, onde foi reiterado o compromisso destes países em proporcionar Educação para todos até 2015, suscitando no Brasil debates que contribuíram para: [...] elevar a consciência do poder público e da sociedade civil para a importância da educação como direito subjetivo de todas as pessoas e como condição insubstituível para o exercício de uma cidadania ativa visando a construção de cenários sociais pautados pela justiça e pela equidade. A Declaração Universal dos Direitos Humanos cita que “toda pessoa tem direito à educação”, porém, na realidade muitas crianças e jovens não têm acesso à educação, desta maneira é essencial a criação e manutenção de políticas públicas de que efetivem a educação a todos. A educação é de grande importância para o progresso social e individual, principalmente no que se refere a promoção do desenvolvimento. No mundo contemporâneo de rápidas transformações, o ensino de qualidade é fundamental para que o ser humano possa fazer uma avaliação crítica da real situação da sociedade e se torne um agente transformador no ambiente em que vive. Com a produção do conhecimento e a capacitação do indivíduo, este poderá viver civilizadamente e promover melhorias para o futuro da sociedade brasileira. Os direitos à educação é um direito de todos e como tal deve ser respeitado e garantido pelo Estado a todas as pessoas, independente de raça, cor, sexo, nacionalidade, eliminando qualquer forma de discriminação. A incorporação dos direitos humanos na educação de ensino superior torna-se primordial para a construção do sujeito como ser partícipe de uma sociedade, e como tal para a formação de sua cidadania. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 21 2 DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS, SEUS SIGNIFICADOS, SUAS DISTINÇÕES Sobre os Direitos Humanos e Fundamentais é necessário o reconhecimento e o respeito ao outro, entendido como a aceitação do diferente, seja em relação a aspectos culturais, físicos, étnicos, religiosos, políticos, sociais e econômicos. Tratar da questão dos Direitos Humanos significa não apenas defender os direitos próprios, individuais e também buscar a defesa dos direitos que envolvem a sociedade como um todo. No que se refere aos Direitos Fundamentais e Direitos Humanos é necessário saber que: [...] os Direitos Fundamentais se aplicam para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humanos como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional (...) Direitos fundamentais possuem sentido mais preciso e restrito, na medida em que constituem o conjunto de direitos e liberdades institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo direito positivo de determinado Estado (SARLET, 2001, p. 33-34). Ambos os termos, Direitos Fundamentais e Direitos Humanos, são utilizados normalmente como sinônimos, porém como observado ambos possuem pequenas distinções. Reconhecer essa diferença não significa, contudo desconsiderar a intima relação que esses termos possuem entre si. No que concerne à perspectiva histórica, é necessário aqui destacar que, os Direitos Humanos foram construídos em um período onde a economia de livre mercado gerou um quadro de injustiças sociais no Estado e estas desigualdades serviram como condição para o surgimento de direitos sociais como direitos humanos. Desta forma o Estado Social de Direito substituiu o Estado Liberal e incluiu no sistema de Direitos Fundamentais, não só as liberdades clássicas, mas os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Foi no âmbito das organizações internacionais, sobretudo após a 2ª Guerra Mundial, que se iniciou o processo de positivação dos Direitos Humanos para algumas minorias, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, editada pela ONU, em 1948 (SILVA, 1998, p. 167). O cenário pós-guerra e as atrocidades nazistas instigaram reflexões sobre a condição degradante a que é subjugada a pessoa humana quando esta diverge do grupo social dominante. Desta forma, a perspectiva individualista das declarações liberais do século XVIII cederam lugar às declarações voltadas aos direitos sociais e elevou o princípio da dignidade humana: Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 22 Ao emergir a 2ª Guerra Mundial, após três lustros de massacres e atrocidades de toda sorte, iniciados com o fortalecimento do totalitarismo estatal nos anos 30, a humanidade compreendeu, mais do que em qualquer outra época da História, o valor supremo da dignidade humana. O sofrimento como matriz da compreensão do mundo e dos homens, segundo a lição luminosa da sabedoria grega, veio aprofundar a afirmação histórica dos direitos humanos (COMPARATO, 1999, p. 44). A Constituição Federal de 1988 consagrou no seu bojo um Título que trata especificamente dos direitos e garantias fundamentais dos seres humanos, incluindo as garantias e direitos individuais inalteráveis, por constituírem cláusulas pétreas, segundo previsão do art. 60, § 4º, CF. Com essa medida, o constituinte primou pela proteção dos Direitos Humanos, limitando a atuação do pode constituinte derivado, impedindo-o de criar emendas que visem a modificação ou supressão de tais direitos do texto constitucional (BONAVIDES, 2006, p. 577). Contudo, ainda existem lacunas a serem preenchidas nas leis, no que se refere ao combate à exploração, na assistência à família e na acessibilidade aos portadores de deficiência. Apesar da legislação pátria prever algumas garantias, a falta de fiscalização do Estado leva a uma limitada eficácia das leis na sociedade. Faz-se necessário reconhecer a importância dos Direitos Humanos e Fundamentais, que conduzem a uma plenitude de vivência digna, sabendo que a falta de conhecimento e a exclusão de tais direitos ameaça as garantias conquistadas pelos cidadãos na sociedade. Um dos aspectos essenciais dos Direitos Humanos e Fundamentais pressupõeo reconhecimento e o respeito ao outro, aceitando cada qual com suas características que lhes são peculiares, seja em relação a aspectos culturais, físicos, étnicos, religiosos, políticos, sociais e econômicos. Aceitar a concepção de Direitos Humanos inclui não apenas a ideia da defesa dos direitos próprios, que atendem às necessidades individuais, mas também a responsabilidade de buscar direitos que procurem o bem-estar da sociedade. 3 CIDADANIA E SUA IMPORTÂNCIA PARA A CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA O tema direitos humanos e cidadania assume papel importante em nossa sociedade, principalmente através das transformações ocorridas nos últimos séculos. A noção de cidadania foi fortalecida, e ganhou novo significado a partir da Constituição Federativa de 1988 que reforçou a ideia de cidadãos como sujeitos sociais ativos que contribuem para o desenvolvimento Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 23 de um Estado Democrático Social de Direito. No processo democrático, o exercício da cidadania e a participação social tornam-se importantes para a criação e efetividade de políticas públicas que busquem reduzir as desigualdades existentes no País. A educação está intimamente ligada à cidadania, desde o ensino primário até o superior, pois é neste cenário imbuído de significação que são apresentados aos estudantes o real valor em ser cidadão. Desta maneira trabalha-se para despertar no aluno este anseio em se tornar um ser partícipe das transformações sociais. A educação torna-se o pilar para o desenvolvimento e crescimento do sujeito como cidadão, assim: A educação para a cidadania e os programas educacionais voltados para esse fim pressupõem a crença na tolerância, a marca do bom senso, da razão e da civilidade que faz com que os homens possam se relacionar entre si. Pressupõem também a crença na possibilidade de formar este homem, ensinando a tolerância e a civilidade dentro do espaço e do tempo da escola (SANTOS, 2001, p. 151). A educação pode ser considerada como um processo que busca integrar os indivíduos na sociedade, proporcionando a ele uma capacidade maior de interferir no meio em que vive. Esta interferência pode se dar principalmente pela busca de melhor qualidade de vida para a população, bem como pela luta na redução das desigualdades existentes. Ao atuar como um ser que participa como agente transformador, o sujeito passa a ser um importante instrumento para consolidar a democracia dentro da Sociedade Civil. O processo de construção da cidadania no Brasil perpassa o sistema educacional, tornando-se este, um fator primordial para a consolidação de sujeitos cidadãos portadores de direitos e deveres; que procurem superar carências sociais participando efetivamente da consagração de uma democracia que não trate desigualmente os desiguais. Segundo entendimento de Siqueira Júnior, o termo cidadania provém de cidade, do latim civitate, que significa aquele que tem ligação com a cidade. No período romano o vocábulo cidadania estava ligado à cidade e ao Estado, porém nesta época nem todos eram considerados cidadãos. O texto constitucional cita como princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito entre outros, em seu art. 1º, inc. II e III, a dignidade da pessoa humana e a cidadania. Estes dois fundamentos têm grande importância em nossa sociedade posto que a dignidade da pessoa humana está relacionada ao indivíduo, enquanto que a cidadania se refere ao social. O indivíduo, ao exercer a cidadania participa das atividades do Estado, ao buscar a melhoria na qualidade de vida da população. O indivíduo ao se integrar na sociedade e participar ativamente em suas transformações, exercendo seus direitos civis, políticos e sociais Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 24 está pondo em prática a cidadania. Neste sentido SIQUEIRA JUNIOR cita os elementos os quais T. H. Marshall vincula o conceito de cidadania: [...] (a) civil, composto das garantias e liberdades individuais; (b) político, capacidade de organizar partidos, votar e ser votado; (c) social, que são as condições mínimas necessárias para a vida digna, tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança, ao direito de participar, por completo, da herança social (2007, p. 243). Como elenca a Constituição Federal de 1988, “cidadania é ter direitos, os quais são reconhecidos a todos os cidadãos”. A partir da consciência da garantia destes direitos os cidadãos devem procurar atuar como agentes partícipes para a concretização da democracia. A democracia é inerente ao exercício da cidadania no que se refere à atuação do ser humano na sociedade o qual está inserido, assim: Cidadania qualifica os participantes da vida do Estado, o reconhecimento do indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal (art. 5º, LXXVII). Significa aí, também, que o funcionamento do Estado estará submetido À vontade popular. E aí o termo conexiona-se com o conceito de soberania popular (parágrafo único do art. 1º), com os direitos políticos (art. 14) e com o conceito de dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), com os objetivos da educação (art. 205), como base e meta essencial do regime democrático (SILVA, 2007, p. 104-105). Desta maneira, fica constatada a importância da cidadania na dinâmica estatal no momento em que o cidadão, ao reconhecer seus direitos, luta pela sua efetivação em prol de melhorias em seu ambiente social e de seus semelhantes, e principalmente pela concretização da democracia. Neste ponto cabe ressaltar a importância que a educação tem neste processo visto que ela é responsável pela construção do sujeito no exercício da cidadania, pois é através dela que o ser humano toma conhecimento de seus direitos e deveres e da importância da busca por sua efetivação. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os Direitos Humanos e Fundamentais constituem o pilar para a organização de um sistema constitucional e do próprio Estado. As normas constitucionais elaboradas pelo Estado para a organização da sociedade têm como alguns de seus fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana. A consolidação de tais direitos eleva a condição do cidadão que vive em uma Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 25 sociedade e zela pelo respeito mútuo. É de grande importância o reconhecimento, pelos cidadãos de seus direitos visto que desta maneira os mesmos podem lutar por melhorias na qualidade de vida. Ao exercer o papel de cidadão na sociedade, o sujeito visa participar da efetivação dos direitos que o tutelam e da afirmação dos Direitos Humanos e Fundamentais. Desta forma a educação passa a ter um papel essencial no conhecimento e construção de tais Direitos. Assim, se o conhecimento dos Direitos Humanos deve ser divulgado na sociedade, tanto mais se deve exigi-lo quando se trata de estudantes do ensino superior, pois estes, em face de sua posição privilegiada na sociedade brasileira, devem conhecer a fundo seus direitos e buscar seu reconhecimento na sociedade. Tratar da questão dos Direitos Humanos significa não apenas defender os direitos próprios é também buscar a defesa dos direitos que envolvem a sociedade como um todo. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Constituição Federal. 8. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007. ______. Plano Nacional de Educação. Disponível em: . Acesso em: 09 set. 2007. ______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/96). Disponível em: .Acesso em: 09 set. 2007. JACOBI, Pedro Roberto. Educação, ampliação da cidadania e participação. Educ. Pesqui. São Paulo, v. 26, n. 2, 2000 . Disponível em: . Acesso em: 11 Set 2007. RUTKOSKI, Joslai Silva. A pedagogia de Paulo Freire: Uma proposta da educação para os Direitos Humanos. In: PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos. Curitiba: Juruá, 2006. v.1. SANTOS, Gislene A. Universidade formação cidadania. São Paulo: Cortez, 2001. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3. ed., rev. atual. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. ______. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 26 SEVERINO, ANTÔNIO J. Educação, trabalho e cidadania: a educação brasileira e o desafio da formação humana no atual cenário histórico. São Paulo Perspec. São Paulo, v. 14, n. 2, 2000 . Disponível em: . Acesso em: 09 set. 2007. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 28. ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007. 928 p. SIQUEIRA JUNIOR, Paulo Hamilton; OLIVEIRA, Miguel Augusto Machado de. Direitos humanos e cidadania. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. 286 p. SOBRAL, FERNANDA A. DA FONSECA. Educação para a competitividade ou para a cidadania social?. São Paulo Perspec., São Paulo, v. 14, n. 1, 2000. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2007. UNESCO, Fórum Mundial sobre Educação de Dakar. Disponível em: . Acesso em: 09 set. 2007. ______. Declaração Mundial sobre Educação para Todos. Disponível em: . Acesso em: 09 set. 2007. PARA CONHECER MAIS SOBRE ESCOLA E FORMAÇÃO DA CIDADANIA, ACESSE: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/diadia/arquivos/File/conteudo/artigos_tese s/2010/Pedagogia/tcidadaniaesc.pdf e leia a tese de Aida Maria Monteiro Silva! Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 27 UNIDADE III - VALORES NA ESCOLA http://www.google.com.br/imgres?q=valores+na+escola&num=10&hl=pt-PT&biw=1 Valores na escola2 Maria Suzana de Stefano Menin Universidade do Estado de São Paulo Temos acompanhado as produções de um grupo de pesquisadores espanhóis que têm-se dedicado à educação moral ou em valores na escola (Grem Grupo de Ricierca en Educación Moral). Antes de nós, e provavelmente nos fornecendo modelos atuais de educação moral, autores como Cabanas (1996), Puig (1998), Buxarrais (1990,1997), Martinez (1994), e Martinez e Puig (1994) chegaram à proposição da ética como tema transversal nas escolas, o que agora aparece em nossos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998). Mas o que é ética, ou moral, e como colocá-las nas escolas? Segundo Cabanas (1996), a questão central da ética é a de responder à pergunta: o que nos obriga a sermos bons? Ou seja, é a ética que nos permite buscar critérios para definirmos o que é ser bom, correto ou moralmente certo e que nos fornece explicações para nosso senso de dever moral. A essa questão ¾ o que me 2 Educ. Pesqui. v.28 n.1 São Paulo jan./jun. 2002. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 28 obriga a ser bom, podem ser dadas respostas diferentes, ancoradas em diversas posições filosóficas ou ideológicas; e é quando a respondemos que encontramos valores morais. Segundo Cabanas (1996), para algumas posições filosóficas, valores são os critérios últimos de definição de metas ou fins para as ações humanas e não necessitam de explicações maiores além deles mesmos para assim existirem. Ou seja, devemos ser bons porque a bondade é um valor, honestos porque a honestidade é um valor, e assim por diante com outros valores como a solidariedade, a tolerância, a piedade, que têm um caráter natural, universal e obrigatório em nossa existência. Para outras posições, os valores são determinados por culturas particulares e em função de certos momentos históricos, variando, portanto, de acordo com cada sociedade e período de sua existência. As ações humanas seriam, assim, avaliadas de acordo com os costumes locais; algo considerado um dia como correto e justo poderia ser, em outra época, considerado errado ou injusto. Metodologicamente, podem acontecer, também, posturas opostas sobre como educar em valores. Há posturas doutrinárias, de acordo com as quais acredita-se que um conjunto de valores, considerados fundamentais, devem ser transmitidos prontos a todos, como verdades acabadas; e, por outro lado, há posturas mais relativistas, com as quais a escola exime-se de assumir tal educação em valores deixando que isso ocorra de forma assistemática, não-planejada, nos seus mais diversos espaços. Escolas religiosas, por exemplo, adotam uma postura doutrinária quando catequizam seus alunos a respeito de valores como fé, piedade, amor ao próximo, respeito, caridade, tolerância e outros. Certos valores são tomados como postulados, verdadeiros por si próprios e, deles, outros são derivados: a existência de Deus em cada um de nós e o respeito ao próximo como o respeito a ele, por exemplo. Nesses casos, normalmente deixa-se para certos professores especialistas o ensino da moral como matéria à parte, com status próprio. Essa posição pode não refletir uma ideologia comum a toda uma escola; pode ocorrer em escolas laicas e estar em certos professores que assumem, para si, a transmissão de valores considerados por eles como essenciais. Numa pesquisa realizada em 1992 (Menin, 1992), com classes de primeiro colegial de uma escola pública, observamos uma professora de Biologia que, antes de suas aulas, passava na lousa provérbios ou pequenos ditados morais a seus alunos e solicitava a estes que os copiassem e os memorizassem, pois cairiam como matéria nas suas avaliações. Alguns exemplos das frases colocadas pela professora: Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 29 Não deixe que a calúnia o perturbe! Todos nós estamos sujeitos à calúnia. Mas saiba superá-la, vivendo de tal maneira que o caluniador não tenha razão. Não revide um ataque com outro ataque. Não se magoe com o caluniador. Perdoe sempre. Apenas vive de tal maneira que jamais o caluniador tenha razão. (MENIN, 1992, p. 496) ... a felicidade não pode estar em nada que esteja fora de vocês. Busque-a dentro de você mesmo; pois a felicidade é Deus e Deus mora dentro de você. Pense positivamente, nossos pensamentos emitem ondas reais que se irradiam de nosso cérebro... Pensamentos positivos atraem coisas positivas. Pensamentos negativos atraem coisas negativas. Os homens por amor vão muito além daquilo que a imposição, o dever, a razão, a necessidade conseguem obter deles. (MENIN, 1992, p. 498) Após escrever cada frase, a professora tecia comentários sobre elas e buscava relacioná-las à vida escolar do aluno. Por exemplo, após a última frase citada, a professora comentou: Um aluno que ri da nota, não se valoriza. É preciso ver que você é importante... tenha um ideal de vida. Se vocênão se valorizar ninguém vai querer ficar com você. Primeiro é se amar, colocar amor em tudo o que você faz: dê valor à escola, dê valor ao que é seu, o seu caderno, por exemplo. Valorize o seu caderno. (MENIN, 1992, p. 498) Esse é um claro exemplo de uma educação em valores realizada de forma explícita, por transmissão de normas prontas, assumida por um professor e por meio da qual se colocam normas morais no mesmo status que matérias científicas para as quais se cobram estudo e obediência. Tivemos no Brasil, durante a ditadura militar (1969 a 1986), um exemplo de educação moral nas escolas realizada, também, de forma doutrinária. As disciplinas Educação Moral e Cívica ou Estudos dos Problemas Brasileiros eram consideradas matérias específicas e por Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 30 intermédio delas professores especialistas deveriam passar certos valores assumidos como fundamentais. Lepre (2001) relata, em sua dissertação sobre indisciplina e estágios de julgamento moral em crianças de ensino fundamental, como essas disciplinas foram estruturadas pelo decreto-lei de 1969 com a clara finalidade de controlar a "desordem social" vista como causadora dos malefícios da sociedade brasileira. Valores como o nacionalismo, visto como o amor à pátria e aos seus governantes para o alcance do progresso geral foram colocados como fins de toda a educação. São exemplos de trechos do decreto de 1969: A Educação Moral e Cívica, apoiando-se nas tradições nacionais, tem como finalidade: a defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a inspiração de Deus; a preservação, o fortalecimento de valores e a projeção de valores espirituais e éticos da nacionalidade; o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana; o culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e aos grandes vultos de sua história;... o culto à obediência à lei, da fidelidade ao trabalho, e da integração na comunidade; (...). ( Lepre, 2001, p. 71-72). Nesse mesmo decreto, estabelecia-se a obrigatoriedade de todas as escolas terem um professor dessas matérias e, caso não houvesse um, o diretor da escola deveria responsabilizar-se por ela. Foi criada, também, uma Comissão Nacional de Moral e Civismo (CNMC), integrada por nove membros escolhidos pelo presidente da República, que tinha como funções básicas: verificar a implantação e manutenção da doutrina de Educação Moral e Cívica nas escolas; colaborar na elaboração do currículo para essa disciplina; influenciar e convocar a cooperação das instituições e órgãos formadores da opinião pública (difusão cultural, jornais, revistas, teatros cinemas, estações de rádio e televisão...) para servir aos objetivos da Educação Moral e Cívica; assessorar o Ministério da Educação na aprovação de livros didáticos, etc. Ora, todos sabemos dos frutos desse período de educação moral nas escolas feita dessa forma doutrinária por imposição de valores morais acabados, assim como podemos prever as reações dos alunos daquela professora de Biologia que passava ditados morais na lousa: valores impostos por uma autoridade são aceitos por temor enquanto perdurar o controle dessa autoridade e deixam de ser assumidos como valores no momento em que a força do controle é enfraquecida. Todos nós que assistimos às aulas, na época, de Educação Moral e Cívica, sabemos o quanto essa disciplina nos parecia artificial, demagógica e como se tornou alvo de desprezo a ponto do termo Educação Moral se tornar algo pejorativo no Brasil e em outros países que passaram por processos semelhantes. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 31 A educação em valores nas escolas pode, no entanto, se dar de forma oposta à maneira doutrinária. É o laissez-faire em termos de valores: cada professor e seus alunos podem ter posições diferentes sobre o que é correto, bom, justo, ou seja, sobre o que tem valor. Nesse caso, a escola não teria um código moral ou de valores declarado e assumido, e a adoção de valores seria questão individual, pessoal. Predomina o entendimento de que tudo é relativo e de que não há obrigatoriamente uma posição mais correta que outra. Nessas escolas, o corpo de professores pode ser completamente diverso em termos dos valores mais adotados e sua transmissão fica a cargo de cada um, de forma assistemática e acidental. Assim, podem existir, na mesma escola, professores que incentivam a cooperação entre alunos, outros a competição; alguns teriam aversão às mais variadas formas de violência, enquanto outros seriam tolerantes a certas manifestações violentas ou agressivas dos alunos ou dos próprios professores. Observações de certas práticas disciplinares nas escolas e das regras que os professores dispõem aos alunos podem revelar uma grande diversidade de valores entre os mesmos e até incompatibilidades. Assim, por exemplo, embora constatemos que nos últimos anos têm-se fortalecido uma posição antiviolência nas escolas, como as campanhas pela paz, de 1998 para cá, observamos, no entanto, na mesma época, em cursos para professores de pré-escola, que a violência física entre crianças pode ser admitida como uma forma de realizar justiça. Ainda predomina via senso comum que o revide é uma forma justa de resolver conflitos entre crianças ou que uma criança que apanhou não deve voltar para casa chorando; é a mentalidade do "levou, bateu". É importante nos perguntar como isso pode ser tolerado e mesmo, às vezes, ensinado nas escolas e, em seguida, exigir-se dos adolescentes que tenham controle sobre sua agressividade. Uma posição relativista em educação de valores pode permitir, como podemos constatar, um vale-tudo na educação, em que valores e contravalores podem coexistir e nem sempre serem fruto de reflexão ou de sua clara adoção. Podem, numa mesma escola, ser encontrados professores que incentivam a competição entre alunos ancorando-se no fato de que na sociedade atual predomina o "cada um por si" ou o "vence o mais forte", outros defendendo a cooperação e a solidariedade para a construção de uma sociedade melhor, e outros, ainda, completamente indiferentes a essas questões e que consideram a moral como um assunto particular. Numa pesquisa realizada por Shimizu (1998) em que foram entrevistados quarenta professores das séries iniciais da rede pública numa cidade do interior paulista, constatou-se que Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 32 eles conheciam muito pouco das teorias psicológicas que poderiam lhes dar uma base para realizar algum tipo de educação moral e que utilizavam, na grande maioria, opiniões do senso comum para decidir o que é moral, imoral ou como educar moralmente. Assim, nessa pesquisa, grande parte dos professores afirmou que a moralidade de seus alunos vem de exemplos familiares, de influências religiosas e pouca importância foi dada à própria escola nessa formação: é como se houvesse a crença que, em moral, a família é tudo e a escola, nada. Vemos que as duas posições extremistas sobre educação em valores têm-nos levado a erros ou são completamente ineficazes como forma de educar moralmente e poderíamos então nos perguntar: existem outras posições? Autores como Cabanas (1996), Buxarrais (1990, 1997) e Martinez (1994) buscam apresentar uma outra posição sobre valores e educação moral ou ética, inspirada, principalmente, nos ensinamentos de Piaget (1977). Esse autor, estudando a construção da moralidade infantil, descobriu