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O ceticismo da fé Deus uma dúvida, uma certeza, uma distorção

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Cleiton Silva

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O ceticismo da fé – Deus: uma dúvida, uma certeza, uma distorção
Copyright © 2018 by Rodrigo Silva
Copyright © 2018 by Editora Ágape Ltda.
COORDENAÇÃO EDITORIAL: Rebeca Lacerda
PREPARAÇÃO:: Mauro Nogueira
REVISÃO: Fernanda Guerriero Antunes
CAPA: Brenda Sório
DIAGRAMAÇÃO: Rebeca Lacerda
EDITORIAL
Jacob Paes • João Paulo Putini • Nair Ferraz • Rebeca Lacerda • Renata de Mello
do Vale • Vitor Donofrio
DESENVOLVIMENTO DE EBOOK
Loope – design e publicações digitais | www.loope.com.br
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
(1990), em vigor desde 1º de janeiro de 2009.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Silva, Rodrigo
O ceticismo da fé: Deus: uma dúvida, uma certeza, uma distorção / Rodrigo Silva. ‑‑
Barueri, SP : Ágape, 2018.
ISBN: 978-85-8216-217-0
1. Religião e filosofia 2. Deus 3. Fé 4. Cristianismo 5. Deus ‑ Existência I. Título
18-0631 CDD-210
Índice para catálogo sistemático:
1. Religião e filosofia 210
http://www.loope.com.br
EDITORA ÁGAPE LTDA.
Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11º andar – Conjunto 1112
CEP 06455-000 – Alphaville Industrial, Barueri – SP – Brasil
Tel.: (11) 3699-7107 | Fax: (11) 3699-7323
www.editoraagape.com.br | atendimento@agape.com.br
http://www.editoraagape.com.br
mailto:atendimento@agape.com.br
“A verdade e a mentira foram tomar banho no rio. Despiram-se e entraram nas
águas. A mentira, enganosa como sempre, saiu primeiro e vestiu-se com as
roupas da verdade. A verdade preferiu andar nua a vestir as roupas da mentira.
Resultado? As pessoas preferiam uma mentira transvestida a uma verdade nua e
crua.”
Adaptado de um antigo conto do Oriente Médio 
(autor desconhecido).
Prefácio
O filósofo americano William James, em seu famoso texto “The Will to
Believe” (A Vontade de Crer), escreveu sobre a natureza das opções que
enfrentamos em nossa vida. Pense em todas as opções que estão ou já
estiveram diante de você para tomar uma decisão, desde opções rotineiras,
como entre ler um livro e lavar a louça acumulada, opções bizarras, como
imitar um coelho ou mostrar a língua para um estranho, até opções mais
sérias, como fazer faculdade de Medicina ou Agronomia. James diz que
existem três formas de classificar essas opções. Elas podem ser vivas ou
mortas: vivas se elas têm a possibilidade de serem verdade e mortas se não
existe (ou existe pouca) possibilidade de serem verdade. Elas também podem
ser forçadas ou não, ou seja, são forçadas se existe necessidade de você
escolher entre elas e não-forçadas se essa necessidade não existe.
Finalmente, uma opção pode ser significativa ou não, ou seja, ela é
significativa se muitas coisas da sua vida dependem de qual escolha você
fizer e não-significativa se a decisão não fará muita diferença na sua vida. No
mesmo texto, o filósofo sugere que a opção religiosa (entre crer e não crer) é
viva, forçada e significativa. Ou seja, a opção de crer ou não em afirmações
religiosas não somente é uma escolha em que ambas as opções têm a
possibilidade de ser verdade, mas existe uma necessidade de escolher entre
elas, e além disso, essa escolha muda completamente o rumo da sua vida!
O Dr. Rodrigo Silva reconhece isso e, baseado nesse reconhecimento,
escreveu este livro. Fundamentado em décadas de estudo, de interações com
crentes e descrentes, e de uma grande relação de amor com a filosofia e a
teologia, ele produziu uma obra sincera, honesta e rica, recheada de
importantes ensinamentos e insights para o leitor. A sinceridade, creio eu,
surge de sua própria caminhada cristã, uma que não teve escassez de
profundas dúvidas, ansiedade e sofrimento pessoal. A honestidade brota de
sua constante busca por uma opinião equilibrada, informada por anos de
estudo e, consequentemente, sincera admiração por filósofos e pensadores
enquanto reconhecendo suas miopias. Quanto à riqueza deste livro, ela
advém de sua curiosidade inquieta, buscando conexões e lições na literatura,
na história, na sociologia, na antropologia, na ciência, na cultura popular, e
até mesmo na intuição humana. Mas, como é de se esperar quando se trata
de um livro com este título, o carro-chefe é a filosofia. Com respeito e
sensatez, o Dr. Rodrigo utiliza-se de conceitos e insights da filosofia
continental e analítica para mostrar que a crença, longe de ser um atentado
à inteligência humana, é uma opção viável e, em última instância,
convincente. Nesse processo, o autor não subestima a inteligência do leitor,
fazendo-o constantemente engajar com material filosófico profundo, sem
deixar de lado o bom humor e a simplicidade de uma história ou anedota.
Falando como ex-aluna dele, devo dizer que é como se estivesse sentada na
sala de aula novamente escutando suas exposições.
Este livro vem para preencher uma lacuna enorme na literatura brasileira:
a perspectiva inteligente de um cristão brasileiro em meio ao debate mais
fervoroso da história entre a crença e a descrença em Deus. Essa lacuna
existe para dois públicos: crentes que querem pensar e pensantes que
(possivelmente) querem crer. O Dr. Rodrigo, na minha opinião, preenche
esse vácuo não somente mostrando ao crente que duvidar da própria crença
é aceitável e até necessário, mas também mostrando ao descrente que suas
dúvidas são sanáveis. Se você faz parte de um desses dois grupos, creio que
você terminará de ler este livro tendo saciado sua sede.
Marina Garner Assis
Professora de Filosofia e Religião.
Atualmente, concluindo o PhD em Filosofia da Religião
na Boston University.
Sumário
Introdução
Uma fé que duvida
Ufanismo?
Distorções semânticas
Discordando com classe
Capítulo 1 – Saia justa com o ateísmo
A fé dos adultos
Um tiro no pé?
Audaciosa honestidade
Capítulo 2 – Deus – uma dúvida, uma certeza, uma distorção
Distorções e paradoxos
Ameaça religiosa
Agressividades mútuas
Mais falsos dilemas
Capítulo 3 – Questiono mesmo, e daí?
Verdades que não ajudam
Questionar não é perigoso?
E quanto a Deus?
Genialidade e ateísmo
Experiências desastrosas
Ninguém é descrente
Religiosos podem questionar?
Discutir é conversar
Capítulo 4 – Você sabe em que (des)acredita?
Cosmovisão: uma ilustre desconhecida
Cosmovisões perigosas
Goebbels entra em cena
Sem escapatória
Como nasce uma cosmovisão?
A gênese do pensamento coletivo
O indivíduo e o meio
Estou correto?
Capítulo 5 – Decifrando Homer Simpson
Dados que assustam
Quem fez isso?
Saber versus conhecer
Que fale a Wikipédia
Capítulo 6 – Questionando a universidade
Educar pra quê?
Homer e Deus
Religião é veneno?
Qual a novidade?
Ateus mais inteligentes?
Ambiente lastimável
Quem incentiva?
Modelos de vida?
Goodbye, Deus
Reprovados!
Capítulo 7 – Crendices e devaneios
Fideísmo religioso
O absurdo da fé
Perguntar não ofende
Questionar na medida certa
Ouse saber
Capítulo 8 – Convivendo com a incerteza
A voz do povo
Um encontro com Berger
Teoria do Conhecimento
Essência do conhecimento
Certezas ou incertezas?
Certeza não é conhecimento
Testemunho pessoal
Capítulo 9 – As origens do ateísmo
Tema tabu
Pré-história
Um pouco de antropologia
Quebra-cabeça evolutivo
Subjetivismo em alta
Antropologia da religião
E o ateísmo?
Capítulo 10 – Ateísmo na Antiguidade
O ceticismo de Pirro e Homero
O Antigo Oriente
Budismo: um caso à parte
O paradoxo de Epicuro
Império Romano
Idade Média
Tempos modernos
O Deus de Spinoza
Um abalo na história
Sistematização da descrença
Capítulo 11 – Quando crentes viram bandidos
Religiosos no comando
Acabaremos com a Religião?
Capítulo 12 – A incoerência da fé
Propagandas de Cristo
Arautos ou palhaços?
Cristianismo sem Cristo
Capítulo 13 – Caça às bruxas
Guerra Santa?
Culpemos a religião!
As aparências enganam
Violência e fé
Não em nome de Deus!
A culpa é do Sagrado
Finalmente o Estado Ateu
Que podemos concluir?
Capítulo 14 – Compensa falar de Deus?
Que me importa?
A tese de Durkheim
A origem de Deus
Capítulo 15 – Ninguém escapa da transcendência
Expectativas fantasiosas?
Supersentido
Deus: termo em desgaste
Muitos deuses
Finalmente, a transcendência
Capítulo 16 – Intuição racionalO problema é quando trocamos a legítima busca do saber pela imposição
de uma ideia prévia (literalmente: pré-conceito). Ou então fazemos
perguntas retóricas sem nenhum interesse pela resposta. O único desejo é
sentir o prazer de ter dado um xeque-mate no adversário.
“Você já parou de bater em sua esposa?” – pergunta um promotor para um
acusado de agressão doméstica. Este tipo de pergunta não implica um
questionamento neutro. Antes, é a confirmação de uma sentença. O que o
advogado de acusação está dizendo é: “Tenho certeza de que você bate em
sua mulher! Disto não resta a menor dúvida. Meu intuito é induzir você a
confessar o delito perante o juiz”. Esta é a falácia da pressuposição. Ela
consiste na inclusão de uma certeza (pressuposição) que não foi previamente
esclarecida como verdadeira, ou seja, trabalha-se com uma premissa que, em
tese, não existe.
Mesmo quem tem ideias já estabelecidas deveria periodicamente reavaliá-
las, atualizá-las, ver se elas têm um ponto que precisa ser ajustado, corrigido.
Isso não significa falta de certeza. Trata-se de compreender que mesmo
verdades estabelecidas não devem ser uma camisa de força contra novos
raciocínios. O “vício do cachimbo” pode entortar a boca, e a repetição de
um mesmo conceito por anos não o torna necessariamente verdadeiro. Uma
mentira mil vezes repetida continua sendo uma mentira! Ela não se torna
verdade, ainda que muitos passem a crer nela.
Embora meu telhado também seja de vidro – pois sou um professor
universitário – devo admitir que muitas vezes a universidade, que deveria ser
o ambiente máximo da liberdade de expressão e pensamento (dentro de uma
ordem, é claro), torna-se um reduto de discursos herméticos que
simplesmente não toleram o questionamento. Tudo isso paradoxalmente em
nome da liberdade de cátedra.
A verdade é que todos nós queremos público para nossas ideias. É claro
que devemos divulgar com força aquilo que acreditamos ser correto, justo e
coerente. Mas não ao ponto de tornar o outro um mero repetidor de
opiniões alheias. Cada indivíduo tem uma capacidade própria de pensar e
agir. As pessoas que conseguem desenvolver bem essa faculdade tornam-se as
mais influentes no meio em que vivem. São líderes nos empreendimentos e
formadores de opinião – tanto para o bem como para o mal.
De qualquer modo, deveria ser um dever inegociável da sociedade
desenvolver certa autonomia nos indivíduos, preparando, especialmente os
mais jovens, para que sejam seres pensantes, e não meros refletores do
pensamento alheio. Costumo dizer a meus alunos que quando alguém
concorda com algum ponto que eu disse, se a concordância for legítima,
sincera e racional, aquela ideia já não será mais minha, porém dele. A
receita pode ser semelhante, mas o tempero vai ao gosto do freguês.
Em vez de limitar o estudo ao que autores têm dito e escrito, seria
interessante levar os alunos, filhos e demais membros da sociedade a um
encontro com outras fontes de informações muitas vezes negligenciadas na
academia: a natureza, o espírito, a história de cada um, a reflexão pessoal, o
exercício de fazer perguntas.
E quanto a Deus?
Começar a busca de Deus crendo ser nula a possibilidade de sua existência
não é um questionamento honesto. É uma tese concluída antes de se iniciar
a pesquisa! Alguém, no entanto, pode legitimamente argumentar que o
contrário também seria verdadeiro. Ou seja, começar afirmando que Deus
existe e não abrir espaço para o ateísmo também é um tipo de falácia por
pressuposição, e eu concordo com isso.
Qual seria, portanto, o equilíbrio entre os dois extremos? Trabalhar pelo
menos com a hipótese das possibilidades, isto é, dar a chance para que
ambos os lados apresentem suas evidências. A Bíblia diz que “quem dele se
aproxima precisa crer que ele existe” (Hebreus 11:6). Mas cuidado para não
fazer anacronismos do texto bíblico ou se fiar apenas na tradução em
português. Aqui não se trata de pressuposto, muito menos de fé cega. Não é
uma questão de se crer primeiro em algo inexistente e, a partir desta crença
cega, criar um devaneio e uma disposição mental que o faça ver tudo sob a
ótica daquela opinião infundada. Isto não é nem de longe o que a Bíblia está
propondo! Lembre-se: pessoas obcecadas também podem ver evidências de
uma certeza que só existe na cabeça delas.
Vou explicar o que esta passagem quis dizer. O Novo Testamento, em que
ela aparece, foi escrito em grego koiné, e muitos detalhes desta língua são
esclarecidos pela comparação linguística com o antigo grego clássico. Pois
bem, o verbo “crer” usado pelo autor (pisteusai em grego) significa
literalmente a garantia que advém de uma possibilidade de confiança. Este
sentido aparece em antigos escritores como Demócrito, Platão, Aristóteles e
outros25.
Seria mais ou menos assim: para ir ao banco pedir um empréstimo, você
não sai de casa com a certeza absoluta de que conseguirá o dinheiro. Isto
seria presunção, e gerentes não fazem empréstimos a presunçosos. Eles
preferem clientes que ofereçam um mínimo de lastro. Por outro lado, você
também não pode ficar totalmente incrédulo, do contrário nem tentará o
empréstimo e perderá a chance de obter o dinheiro que necessita.
Se você vai ao banco é porque existe, no mínimo, a possibilidade de que o
financiamento lhe seja concedido. Parafraseando o pensamento bíblico de
Hebreus 11:6, você deve ir ao banco crendo que ele concede empréstimos.
Por que tentar num banco, e não num cemitério? Ora, porque ninguém até
hoje, exceto os loucos, deu testemunho de ter conseguido um financiamento
com um defunto! Por outro lado, uma multidão de pessoas afirma ter
conseguido empréstimo com um gerente de banco. Sua confiança, portanto,
não é fé cega; ela se baseia no testemunho que outros deram. Ainda que
você nunca tenha feito um empréstimo pessoalmente, acaba tentando.
Afinal, tendo dado certo com outros, pode, hipoteticamente, dar certo com
você. É uma possibilidade real, vale a pena crer nela e arriscar uma chance.
Do mesmo modo Deus. Você há de convir que uma multidão de pessoas,
incluindo intelectuais de prestígio, dá testemunho de que ele existe e que é
razoável acreditar nele. Eu até poderia começar minha busca partindo do
pressuposto de que Deus não existe e que tudo não passa de crendice
popular. Mas o que eu faria com o testemunho de gênios da estirpe de
Leonardo da Vinci, Blaise Pascal, G. W. Leibniz, Isaac Newton, C. S. Lewis
e mais recentemente Antony Flew? Jogaria tudo no lixo? Ora, esses homens
não eram o tipo de gente que acreditaria em qualquer coisa sem um mínimo
de embasamento racional.
Genialidade e ateísmo
Talvez alguém lendo isso também diga: do mesmo modo, existem muitos
intelectuais de prestígio que não aceitam a existência de Deus. Se eu parto
do pressuposto de que Deus existe, o que faço com o testemunho de mentes
brilhantes como Ferreira Gullar, Arnaldo Jabor, Friedrich Nietzsche e Karl
Marx?
Aqui não podemos tomar seis por meia dúzia, sabe por quê? Por causa de
Aristóteles. É o seguinte: embora eu mesmo não concorde com
absolutamente tudo que ele escreveu, devo reconhecer os princípios da
lógica aristotélica e sua influência na história do pensamento ocidental,
moldando, inclusive, o raciocínio destes vultos que citamos anteriormente.
Pois bem, Aristóteles classificava as opiniões racionais e lógicas como juízos
entre o sujeito e o predicado. Esses juízos se dividem de acordo com a
qualidade, quantidade, relação e modalidade. Quanto à qualidade eles
podem ser afirmativos ou negativos26. Acontece, porém, que a afirmação e a
negação não ocorrem no mesmo momento nem estão no mesmo nível
epistemológico. Gottlob Frege, um dos principais idealizadores da lógica
matemática moderna, embora discordasse de Aristóteles em vários pontos,
ampliou o logicismo separando a lógica clássica aristotélica da lógica
simbólica. Como consequência, excluiu a negação como pensamento,
embora esta continue exercida de modo formal. Ele diz que a negação não
dá existência, nem tira a existência de nada, ela apenas deve ser concebida
como discursiva27.Para aqueles que não conhecem Frege, ele era um matemático alemão do
século 19 com forte inclinação filosófica sobre a realidade dos objetos
abstratos como os números, conjuntos e outros objetos matemáticos. Não
sou adepto de toda sua lógica nem quero atribuir a ele a defesa de algo que
não intentou. Só pincelei esse ponto para dar costura à minha
argumentação. Não o fiz, porém, fora de contexto. Para que você saiba,
Frege negava o argumento ontológico de Deus, argumentando que nossa
capacidade de nos referirmos a objetos abstratos em declarações que
consideramos ser verdadeiras exige que esses objetos existam. Não sei se eu
iria a tanto. Isto parecer ser uma tentativa de ler metafísica a partir da
linguagem, criando um conceito muito tênue de existência.
Seja como for, minha referência à sua declaração sobre a negação
ontológica segue numa sequência tomista de que a negação e a firmação não
são simultâneas, já que a negação é a causa de uma afirmação28. É preciso
primeiro que se afirme algo, para então poder negar. Até a lei da não
contradição aristotélica pressupõe isso, pois como se diz “uma coisa não
pode ser (primeira afirmação positiva) e não ser (depois a negativa) ao
mesmo tempo”. Por esta razão, digo que é necessário primeiro trabalhar com
a hipótese da existência de Deus (afirmação), para então poder negar sua
realidade, e não o contrário. Aí sim, a negação poderá fazer seu papel na
lógica, pois somente através do funcionamento discursivo oferecido pela
possibilidade negativa (através da contradição) que seria possível atingir a
verdade lógica (validade).
Portanto, essa nuvem de testemunhas que creem em Deus gera, no
mínimo, uma “possibilidade” a ser aventada, mesmo que o ônus da prova
recaia sobre os que afirmam a existência ontológica independente de
determinado ser. A negação só pode vir depois disso. No caso da ilustração
que usei antes, ignorar a chance de um empréstimo bancário, partindo do
pressuposto de que todos os que conseguiram estão enganados, não é uma
estratégia inteligente. Do mesmo modo, achar previamente que todos os que
creem em Deus são alienados sem primeiro experimentar a validade ou não
de seu testemunho é anular as chances reais de uma verificação empírica. É
preferir o preconceito e a fuga à possibilidade de um conhecimento real.
Isso não significa que preciso experimentar todas as coisas para ter uma
opinião legítima sobre cada uma delas. Cuidado com exageros! Como disse
James Oberg, “ter a mente aberta é uma virtude, mas não a ponto de o
cérebro cair para fora”29.
Experiências desastrosas
De acordo com a semiótica, há realidades que são autoidentificáveis em si
mesmas, não necessitam de experimentação para serem conhecidas. Nunca
me alimentei de dejetos humanos e não preciso fazer isso para saber que se
trata de uma má ideia. O mesmo se passa com o vício do crack: não preciso
usá-lo para saber que não presta, basta ver o que ele causou na vida dos que
foram por esse caminho.
A diferença, portanto, entre experimentar drogas (para ter certeza de que
não me convêm) e experimentar Deus (para saber se vale a pena crer nele)
está no fato de que, no caso de Deus, encontramos bons e maus testemunhos
daqueles que o experimentaram. Logo, a possibilidade aponta para os dois
lados. Falta saber qual o melhor. Já as drogas não possuem “bons”
testemunhos advindos de seus usuários. Até quem está no tráfico admite que
não vale a pena seguir por esse caminho. Logo, seria maluquice
experimentar algo ruim apenas para se confirmar o que todos já estão
dizendo.
Ademais, eu não preciso me posicionar em relação a tudo o que me rodeia.
Imagine uma montanha-russa, por exemplo. Que tal a Top Thrill Dragster
que fica em Ohio, nos Estados Unidos? Ela é uma das mais altas do mundo.
São 128 metros de altura e um looping de 270 graus. Seus carrinhos vão a
“apenas” 200 km por hora. É adrenalina garantida ou seu dinheiro de volta!
Alguns que a experimentaram disseram que foi a pior experiência de sua
vida. Outros acharam o máximo a sensação de velocidade e vertigem
durante o ponto mais alto dos trilhos e, uns poucos, talvez, não sentiram
nem uma coisa nem outra. Eu mesmo nunca estive na Top Thrill, logo não
sei com certeza absoluta que tipo de sensação eu teria. Se a oportunidade
algum dia vier, tudo bem, se não vier, tudo bem também. Posso passar a vida
inteira sem essa experiência que não terei minha existência comprometida
em nada pela falta dela.
O mesmo não posso dizer sobre Deus em relação a esse assunto. Se ele é
uma ilusão (para citar Dawkins), estou diante da pior mentira de todos os
tempos, e tenho de me posicionar contrário a ela, para o meu próprio bem e
das pessoas que amo. Se, porém, houver uma mínima chance de que Deus
seja real, então serei um idiota se não me render imediatamente a ele.
Neutralidade, neste caso, é algo que não existe. Omitir-me seria o mesmo
que me colocar em oposição e só um louco se oporia a um Deus todo-
poderoso.
Ninguém é descrente
Para muitos descrentes o subtítulo acima mereceria um troféu abacaxi
como aqueles dados nos tempos do Chacrinha a todos os calouros
desafinados. Supor que todos creem parece uma antífrase formulada por
quem não entendeu nada do pensamento cético.
Se tem uma coisa que a maioria dos ateus faz questão de deixar claro é que
eles não possuem qualquer crença nem em Deus nem em nada.
Argumentam que afirmar que Deus não existe não é sinônimo de crer que
ele não existe.
Num primeiro momento, os que afirmam isso estão certos. Apenas num
primeiro momento. Vou explicar o porquê. Em termos de lógica, há uma
diferença entre “não creio em X” e “creio em X (ou não X)”. Tudo vai
depender de onde, na sentença, entrará o elemento de negação.
Se eu disser: “não creio que haja cobras neste mato”, estarei fazendo uma
proposição bem diferente de “eu creio que não há cobras neste mato”. Não é
apenas um jogo de palavras. São duas proposições bem diferentes e espero
explicar o porquê. A primeira implica que eu não tenha uma opinião
formada sobre o assunto, apenas uma suposição. Não tenho uma crença que
me diga uma coisa nem outra. Já a segunda é mais assertiva, eu tenho uma
crença firme de que não há cobras ali.
Então, neste sentido, estou em acordo com meus amigos céticos. O
problema, a meu ver, é até onde se leva o argumento. Na prática, a história
do ateísmo não condiz com um movimento que se limita à não crença de
Deus existe, em vez de crer que Deus não existe. Tal característica
descreveria mais os agnósticos e, mesmo assim, nem tanto.
Você verá mais à frente dois capítulos narrando uma breve história do
ateísmo. Ali você poderá ver que o ateísmo real, visto como fenômeno
antropológico, ligado à história da humanidade, possui premissas e
argumentações que não condizem com aquela definição abstrata de ateu
como “sem crença em Deus”.
Se for assim, a situação fica pior para os que assim se definem; digo mais,
fica até ofensiva, pois o ateísmo deixa de ser posição ou convicção baseada
em fatos (convicção, segundo o Dicionário Houaiss, é “crença”)30 para se
tornar um estado psicológico destituído de certezas e que pode, por extensão,
ser partilhado por um animal ou uma pedra que não têm crença nem
opinião alguma acerca de nada. Tenho um cachorro chamado Gypsy e até
onde eu saiba nem ele nem os pedregulhos do meu quintal possuem
qualquer crença em Deus. Mas isso jamais faria deles “ateus” ou
“descrentes”.
Percebeu, portanto, que ateísmo é muito mais do que “não crença na
existência de Deus”? Os ateus, ou pelo menos uma boa parte deles, afirma
que “não há Deus”. Ora essa assertiva, assim como a outra de que “há um
Deus”, demanda a posse de um conhecimento que requer justificação e
argumentos. Logo, implica acreditar em alguma coisa, e não simplesmente
ausência de crenças.
Presumo (pode ser que eu esteja errado) que por detrás dessa insistente
negação de fé (ou crença) por parte dos ateus exista uma acomodação muito
maior que a velha fala de que fé é antônimo de fatos. O ponto seria o
seguinte: se o ateu pode ser tomado comoum simples “não teísta”, ele então
não precisa provar seu ponto. Basta negar a tese do outro.
A falta de evidências para a existência de Deus seria o suficiente para
presumir que ele não existe. Os teístas é que teriam o ônus da prova
contrária. Num tribunal, a falta de provas pode inocentar um réu, mas a
acusação sem provas não pode inocentar um acusador. Portanto, se o
ateísmo for tomado como convicção de que Deus não existe, seus
proponentes teriam de sustentar o ônus da prova que justifique sua
afirmação. Como muitos admitem que tal comprovação não existe, preferem
evitar a responsabilidade epistemológica tornando sua crença apenas uma
condição psicológica que nega, mas não faz asserções.
Assim, a não existência de Deus – suposta a partir da ausência de provas –
seria o pressuposto natural, e o silêncio estaria ao lado da descrença.
Lembrando mais uma vez que assim como “destemor” não significa sem
medo de nada – um soldado destemido pode ter medo de perder sua família
– “descrença” também não quer dizer incredulidade absoluta. Isso seria uma
falácia do tipo “inferência imediata”.
Por isso digo que todos temos nossas crenças pessoais. Até mesmo os
agnósticos; afinal, eles creem que não se pode crer em nada. Isso me lembra
de um livro muito interessante que li tempos atrás. O título era Em que
creem os que não creem, de Umberto Eco e Carlo M. Martini, dois dos
intelectuais mais respeitados da Itália. O que nos diferencia, portanto, não é
a falta de fé, mas o objeto dela e o argumento que usamos para a afirmação
dele.
Religiosos podem questionar?
O que vou dizer agora vale para todos. Religiosos, ateus, agnósticos… não
importa! No que diz respeito ao nosso sistema de crenças, ninguém pode
falar que crê ou descrê de algo se não experimentou a possibilidade da
dúvida e da busca sincera por uma resposta. No caso de uma convicção, seja
ela passada desde a infância ou adquirida ao longo da vida, enquanto não
trabalhamos sinceramente com a possibilidade de tudo estar errado e
vencemos com lucidez essa possibilidade em nossa consciência, o máximo
que podemos dizer é que estamos acostumados a pensar daquele jeito, e não
que cremos realmente naquilo.
Dizem que certa vez um hindu reverenciava as águas do rio Ganges. Um
amigo estrangeiro colocou algumas gotas no microscópio e lhe mostrou
quão poluídas as águas estavam. Desgostoso com a realidade, ele preferiu
tomar uma pedra, quebrar o microscópio e continuar sua reverência como
se nada houvesse acontecido.
Em outra situação, um professor de Filosofia estava apresentando uma
palestra, quando foi interpelado por um estudante que respeitosamente
discordava de suas ideias. De modo arrogante o acadêmico respondeu:
“Fique você sabendo, meu jovem, que há trinta anos eu estudo esse
assunto”. Mas o jovem tinha a primeira e a vigésima quarta edição do livro
do professor e sabia que elas não apresentavam nenhuma diferença, nem de
acréscimos, nem de atualizações, muito menos de correções. Então ele
replicou: “Por favor, professor, não se ofenda com o que vou perguntar, mas
há algo que não entendo: Há trinta anos o senhor estuda esse assunto ou há
trinta anos o senhor repete a mesma coisa sem mudar?”. Não sei como foi o
desfecho desta história, nem sei se é verdadeira ou fictícia, só sei que, ao
contrário do dito popular, uma mentira mil vezes repetida não se torna uma
verdade. Continua uma mentira, só que mil vezes repetida.
Deixe-me dizer que eu mesmo já passei por esse processo mental do
questionamento e terminei optando pela crença em Deus – crença, aliás,
que procuro atualizar e reexperimentar a cada dia. É sobre o meu processo
mental de busca e reconhecimento de Deus que gostaria de discutir com
você, e não se assuste com o uso do verbo “discutir”. Como de costume, a
nossa cultura distorceu o conceito de muitas palavras e “discussão” foi uma
delas. Hoje pensa-se que discutir é atacar uma pessoa, impor sua opinião
sobre ela. Isso é bem diferente de entrar num diálogo, em que se está
disposto a falar, ouvir e, mais do que isso, compreender exatamente o que se
ouviu, tomando uma posição diante do conteúdo.
Discutir vem do latim discutere (dis, separação, + quatere, quebrar). O
sentido original era quebrar, sacudir, abalar. Era isso o que os médicos
romanos faziam com as plantas para produzir um remédio. Eles quebravam
e sacudiam as raízes para separar a terra e verificar as que eram ou não fortes
o bastante para servirem de medicamento. Em virtude desta prática, discutir
também adquiriu um sentido adicional de “curar”.
Originalmente, portanto, “discutir” seria pegar um assunto e agitá-lo, até
ele se dividir em partes menores e se desprender daquelas que seriam
periféricas. Assim, ele fica mais fácil de ser digerido, pois não podemos
compreender tudo de uma só vez. É por isso que, em qualquer discussão,
todos os envolvidos parecem ter sempre um pouco de razão: cada um só vê a
parte que lhe interessa, a do outro é sempre a terra a ser desprendida ou o
pedaço de raiz que não serve para remédio. Deste modo, o importante numa
discussão é superar a tendência partidarista e usar as partes “sacudidas” para
se alcançar senão o consenso, pelo menos o respeito mútuo por aquele que
discorda de nossa opinião.
No campo pedagógico, segundo Castanho, discutir é algo fundamental:
[…] seu papel no ensino é exatamente esse: dado um ponto de vista (uma
teoria, um resultado de investigação, uma exposição qualquer) submetê-lo a um
esmiuçamento tal que sejam analisadas todas as implicações ali contidas […] [as
discussões] levam os alunos a não aceitarem passivamente uma posição antes de
uma análise profunda e multifacetada. Cabe em qualquer área do
conhecimento… Pode ser usada durante ou após uma aula expositiva… após
um filme, uma sessão de slides…31
Ou, no nosso caso, em um livro!
Discutir é conversar
Discutir e questionar significam, pois, uma conversa que seja pautada pela
busca mútua da verdade, e não pelos sentimentos vazios de ganho ou perda
em um debate. Não quero impor nada a você, apenas contar como e por que
cheguei a uma conclusão diferente da de muitos ateus e agnósticos, mesmo
passando por caminhos de busca idênticos aos que muitos deles passaram.
Portanto, mesmo que não cheguemos a um acordo em todos os aspectos,
ainda assim ganharemos. Afinal, compensa compreender como o outro
pensa, não necessariamente para concordar com ele, mas até mesmo para se
saber por que discordamos de suas conclusões e continuamos a respeitá-lo
mesmo assim. Numa conversa desse tipo, o preconceito foi superado e
surgiu o respeito mútuo. Passamos, finalmente, a questionar a ideia, sem
contudo deixar de reconhecer o ser humano que existe por detrás dela e
percebê-lo como irmão. Ainda que diferente, um irmão.
Todo aquele que diz acreditar em Deus pode e deve fazer perguntas que
sejam legítimas e razoáveis. Estou particularmente convicto de que o direito
de fazer perguntas é algo que me foi dado pelo próprio Criador, faz parte de
mim. Ao contrário do que muitos pensam, nem todo questionamento é
incompatível com a fé.
Pegue uma Bíblia qualquer e você encontrará ali mesmo no Antigo
Testamento passagens que sugerem uma busca inquiridora de Deus. Uma
delas diz: “Provem, e vejam como o Senhor é bom” (Salmo 34:8).
Interessante que a palavra hebraica traduzida por “provem” é ta’am, que
significa mais do que simplesmente questionar. Ela sugere a ideia de
experimentar algo sensorialmente, sentir o sabor de uma coisa. Em outra
passagem, é o próprio Deus que faz o desafio racional para a humanidade:
“Ponham-me à prova”, diz ele em Malaquias 3:10. E em outro texto, desta
vez do profeta Isaías, o próprio Deus “democraticamente” convida:
“Venham, vamos refletir juntos” (Isaías 1:18), ou, conforme uma tradução
mais antiga, “vamos arrazoar juntos”, isto é, discutir, entrar num acordo,
entender as razões um do outro.
Também nas páginas do Novo Testamento encontro uma gama de textos
me aconselhando a testar ou examinar criticamente todas as coisas antes de
crer apressadamente nelas (2Coríntios13:5; Efésios 4:14; 1Tessalonicenses
5:21; 1João 4:1). Se compreendo bem a advertência bíblica, devo estar alerta
a não concordar com algo apenas porque faz parte da tradição dos mais
antigos (Mateus 5:21-22; Colossenses 2:8), ou porque um líder influente
disse. A primeira carta de Pedro (2:1,3) alerta quanto a não acreditar em
falsos líderes que explorariam as pessoas com historietas emotivas que eles
mesmos inventariam (conf. também Mateus 7:15; 2Coríntios 11:5). Quer
um incentivo à reflexão e à racionalidade autônoma mais claro do que este?
Portanto, esse será um livro de reflexão, diálogos, admissões, mas também
de muitos questionamentos. Não tenho a genialidade de C. S. Lewis, mas, à
semelhança dele, às vezes me sinto “o mais relutante dos convertidos”32. Isso
não significa que eu esteja em crise com minha fé, mas que, por ser um
indivíduo de mente inquieta, vivo sempre à procura de respostas, admitindo
dificuldade de aceitar certas argumentações.
Sobre Deus? Bem, se ele existir mesmo como eu creio, sua imensidão
deverá ser tal que a aproximação de sua pessoa provocará mais perguntas que
respostas. Assim, não tenho medo de perguntas honestas. Talvez eu esteja
mais perto dele quando faço perguntas do que quando repito certezas.
E se errar? Bem, creio que, se Deus existe como eu creio, ele será menos
ofendido pela sinceridade de um pecador do que pela hipocrisia de um
santo. É assim que inicio essa jornada em busca de respostas.
21 Paulo Freire. Pedagogia do oprimido (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002).
22 John Emerich Edward Dalberg Acton. Historical Essays & Studies (London: Macmillan Co.,
1907), p. 504. Reprodução legal de BiblioLife, LLC.
23 Entrevista dada em 2015 para o Excellence Reporter. Disponível em . Acesso em: 11/03/2017.
24 Adaptado de Victor Codina. 40 nuevas parábolas (Bogotá: Ediciones San Pablo, 1993), p. 84.
25 R. Bultmann. “Pistew”, in Gerhard Kittel. Theological Dictionary of The New Testament (Grand
Rapids: Eerdmans Publishing Company, 1974), 6:177.
26 Aristóteles. Métaphysique, 2 vols. (Paris: Vrin, 1981).
27 G. Frege. “A negação. Uma investigação lógica”, in Investigações lógicas (Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1918-1919/2002).
28 S. Teo. II-II, 122, a.2, ad1.
29 Apud C. Sagan. The Demon-Haunted World: Science as a Candle in the Dark (New York:
Random House, 1996), p. 187.
30 Disponível em . Acesso
em: 11/06/2014.
31 M. E. L. M. Castanho. “Da discussão e do debate nasce a rebeldia”, in I. P. A. Veiga (org.).
Técnicas de ensino: por que não? (Campinas: Papirus, 1993), p. 93.
32 Esse foi o título de um livro de David Dawning sobre o autor.
https://excellencereporter.com/2015/03/11/elon�-musk�-on�-the�-meaning�-of�-life/
https://ciberduvidas.iscte�-iul.pt/consultorio/perguntas/conviccao/12849
Capítulo 4
Você sabe em que (des)acredita?
Contar histórias é um forte do povo do interior. Seja ele das caatingas do
Nordeste, do Pantanal mato-grossense ou dos rincões de Minas Gerais. Quer
eu esteja com um sertanejo do Brasil ou em companhia de um beduíno do
deserto, não escondo meu contentamento diante das poucas oportunidades
que tive de sentar e ouvir um velho contador de histórias. Há ainda aqueles
contadores de “causo” da cidade grande, que disfarçados de taxistas ou
frequentadores de botequim, amam narrar um fato que juram ter acontecido
de verdade. É claro que, para a narrativa não ficar insossa demais, dá-se um
retoque aqui e outro ali, mas nada que faça tudo virar uma grande mentira.
É só para dar um pouco de emoção àquilo que se conta.
Do ponto de vista sociológico, a narrativa popular tem dimensões de
pesquisa e estudo de caso. São elas que incorporaram o duplo sentido
humano de propagar e preservar memórias. Quando se conta, se relembra, e
ao relembrar cria-se um laço afetivo entre o eu que conta e o(s) outro(s) que
ouve(m). Já dizia o oráculo apocalíptico: “Feliz aquele que lê as palavras
desta profecia e felizes aqueles que ouvem…”. Paulo também expressou que
a fé vem “pelo ouvir”. Isso é verdade. Uma vez que todos compartilham a
mesma história, passam a ter uma espécie de pacto de sangue, pois se
tornam responsáveis por ela. É talvez por isso que nem a fome ou a miséria
são capazes de silenciar a voz de um povo criativo. Reinventar o cotidiano e
dar sentido para a vida é algo que mantém viva a cultura de uma nação.
Ninguém foi tão genial em perceber isso como Ariano Suassuna. Suas
obras, quer no formato de livro, teatro ou televisão, são formidáveis. Ele era
um gênio da literatura brasileira. Quem não riu da dupla Chicó e João Grilo
em O Auto da Compadecida? Ingênuos, porém espertos e de alma infantil,
os dois amigos faziam de tudo para driblar a fome e a necessidade, sendo
que João Grilo encontrou nas histórias que contava uma maneira
paradoxalmente “inocente” de “enganar” para sobreviver em meio à miséria
da seca.
Eram relatos praticamente infantis, coisas impossíveis de acontecer e que
desafiam a lógica de uma mente sensata: o cavalo Bento que cavalgou da
Paraíba até o Sergipe, atravessando o São Francisco; o peixe pirarucu que o
arrastou pelas águas por três dias, o papagaio que morreu de velhice sendo
ainda novo. Ao final de cada história, confrontado pela indagação de como
aquilo pode ter acontecido, João grilo disparava sua lógica universal: “Não
sei, só sei que foi assim”.
A saída de João Grilo bem poderia ser eleita a razão argumentativa da
maioria das pessoas. Dependendo de quem a usa, conscientemente ou não,
ela pode encerrar uma fé ingênua – quando o sujeito realmente acredita no
que diz; um deliberado engodo – nem ele mesmo acredita no que está
falando; ou ainda um desvio da atenção para que o assunto pare por ali e o
interlocutor não faça mais perguntas inoportunas. Fica o dito pelo não dito.
Cosmovisão: uma ilustre desconhecida
Todos nós, indistintamente, temos uma interpretação de mundo que é
moldada por nossos valores, crenças e também pelos nossos
questionamentos. Tudo isso forma nossa visão de mundo, isto é, nossa
cosmovisão. Muitas vezes nem nos damos conta dela, mas ela está aí, nos
acompanhando em praticamente todos os raciocínios que fazemos e
decisões que tomamos, desde as mais simples, até as mais complexas. De
fato, o mais interessante da cosmovisão é justamente esse detalhe de que as
pessoas a possuem mesmo sem ter a mínima noção do que ela é. E mais: a
possuem e a utilizam.
A cosmovisão funciona como uns óculos com os quais enxergamos a
realidade. Seria como pedir para pessoas diferentes opinarem sobre a vida do
Dalai Lama. O governo chinês o descreveria como traidor; um budista
tibetano, como a reencarnação do Buda; um político americano, como o
merecido ganhador do Prêmio Nobel; e o papa, como um religioso digno de
respeito. Os brasileiros que já ouviram falar nele dizem ser um bom líder ao
lado de Gandhi e Madre Teresa de Calcutá, enfim, um ícone da paz. Mas
não vão muito além disso.
Como você vê, quem conta uma história nem sempre buscará narrar os
fatos tais como aconteceram. A tendência natural é procurar uma
justificativa própria para o fato e as razões para ele. Obviamente que em
casos como o de Dalai Lama nossas interpretações tenderam ao lado em que
nosso país, por exemplo, está ou não está envolvido no assunto. Tudo isso
está inserido neste tema maior da cosmovisão. E o que ela seria?
“Cosmovisão é o conjunto das pressuposições cognitivas, afetivas e
valorativas fundamentais que um grupo de pessoas faz sobre as coisas da
natureza, e que elas usam para organizar as suas vidas.” Quem disse isso foi
Paul G. Hiebert, autor do livro Transformando cosmovisões, de leitura
recomendável. Quem, no entanto, percebeu bem esse fenômeno de
reconhecimento da realidade, ou pelo menos deu esse nome a ele, foram os
alemães lá pelo século 18. Procurando definir uma doutrina do
conhecimento e como os homens percebem o mundo em redor, os
epistemólogos criaram a palavra Weltanschauungpara se referir ao modo
como enxergamos as coisas que acontecem em redor. Quem usou pela
primeira vez o termo foi Immanuel Kant no seu livro Crítica do
julgamento, publicado em 1790.
Sei que, num primeiro momento, isso tudo parece uma perda de tempo.
Parar para discutir como se forma nossa compreensão de mundo talvez soe
para alguns como coisa de quem não tem o que fazer, mas não é bem assim.
Lembrando o aforismo nietzschiano: “nada aprisiona o homem mais do que
suas convicções”. De fato, é a crença em determinadas ideias e ideais éticos
que nos move a agir ou não agir em prol de uma causa. A crença interior
leva alguns ao sacrifício, à ação ou até mesmo ao genocídio. Portanto, o
conhecimento prévio dessas crenças pode prevenir males e evitar problemas.
Cosmovisões perigosas
“Crença interior” é uma expressão muito próxima da palavra cosmovisão.
É ela que move a história dos homens com suas guerras, suas ideologias, seu
amor e seu ódio, sua esperança e seu desespero. É a cosmovisão que leva
você a lutar por alguns direitos e agir como tem agido, seja de modo bom e
responsável, ou inspirado na delinquência. Pense, portanto, no perigo que
seria o nutrimento de uma cosmovisão errônea. Você consegue imaginar o
estrago que ela pode fazer? Senão, veja o caso da Alemanha e tire suas
próprias conclusões.
Numa época em que ninguém se importava com o atual “politicamente
correto”, alguns pensadores “eruditos” descobriram no livro indiano dos
Vedas o impulso ideológico de que precisavam para se firmarem como
nação e etnia. A ideia era encontrar a raça humana superior e todos queriam
pertencer a ela.
Um pouco antes disso a pesquisa pelas raízes filológicas dos indo-europeus
já havia gerado grande excitação na Europa e isso determinou a busca
frenética pelos arianos, uma suposta linhagem mais pura de seres humanos,
constituída por indivíduos altos, fortes, de pele clara e inteligentes. A palavra
“ariano” deriva de arya (“nobre”, em sânscrito) e serviu para denominar um
povo que na realidade nunca existiu.
Hoje todos sabemos que “ariano” não representa uma raça, e sim um
grupo linguístico, mais conhecido como indo-europeu. Porém, esse não era
o pensamento em voga no século 19. Foi um francês chamado Gobineau
que espalhou a ideia por toda a Europa, angariando muitas críticas, mas
também muitos adeptos, principalmente intelectuais alemães.
Os arianos representariam, de acordo com critérios puramente arbitrários,
o que se tinha de mais puro em termos de humanidade. Eram, enfim, a raça
humana superior da qual descenderam os nórdicos e germânicos. Eram estes
grupos étnicos que representavam, pois, o ápice da civilização. Foi graças a
eles que a humanidade progrediu.
No extremo oposto, residindo no setor mais baixo da hierarquia racial
humana, estariam os negros, ciganos, asiáticos e semitas (no caso, judeus).
Qualquer mistura dos puros com esses grupos inferiores traria prejuízos
incalculáveis.
Goebbels entra em cena
Em meio a tudo isso, um jovem de mente brilhante e caráter duvidoso
chamado Joseph Goebbels bebeu profundamente nas fontes que
alimentavam essa ideologia. Montando sua cosmovisão como um queijo
feito de muitas vacas, ele pegou um pouco de Heidegger33, Chamberlain,
Nietzsche, Max Heindel, Schlegel, Rosenberg e outros. Então passou a
propalar um vocabulário rico em palavras como combate (kampf), sacrifício
(opfer), destino (schicksal), comunidade do povo (volkgemeinschaft),
sangue e solo (blut und boden), adestramento (zucht), raça (rasse, stamm,
geschlecht) e a mais importante: dirigente ou führer.
O próprio Goebbels era um erudito com título de Doutor em Filosofia
expedido em 1921 pela conceituada Universidade de Heidelberg. Logo, a
doutrinação que recebeu, os autores com os quais entrou em contato (e que
não eram necessariamente “nazistas”), não constituíam nenhum episódio
circunstancial, isolado ou incongruente para a política da época.
Só para se ter uma noção, a Universidade de Freiburg tinha uma cátedra
chamada “Introdução à doutrina racial” e outra de “Biologia hereditária”,
cuja função era ensinar aos estudantes a visão do mundo nacional-socialista
e o pensamento da raça. Eugen Fischer, teórico do eugenismo e um dos
primeiros defensores do genocídio dos povos ditos “inferiores”, amigo pessoal
de Heidegger, foi quem coordenou o curso. Por isso, foi natural que o
partido nazista, já em seus primórdios, se apropriasse da ideia.
O pensamento de Goebbels era, como eu disse, uma cosmovisão particular
que expressava fidedignamente outra cosmovisão maior – na época coerente
– que precedeu a ascensão do nazismo e se prolongou para além do período
do reitorado, e até mesmo da própria queda de Adolf Hitler. Por falar em
Hitler, era esse o elemento que faltava ao mapa conceitual de Goebbels. Um
messias, um redentor, um füher! Dizem os biógrafos que Goebbels nunca se
recuperara do trauma de ser manco devido a uma poliomielite na infância,
de modo que seu complexo de inferioridade o fez se espelhar num tema e
numa pessoa que o fizessem se sentir grande, gigante! Hitler e o arianismo
fizeram isso por ele.
Resultado? Hitler não alcançaria o que alcançou se não fosse a brilhante
atuação de Goebbels, que se tornou seu publicitário particular e ministro da
propaganda nazista. Foi graças a ele que a Alemanha e outros países se
mobilizaram para formar o Terceiro Reich.
O saldo de tudo isso você já sabe: uma Europa destruída, seis milhões de
judeus assassinados, milhares de órfãos e um cálculo médio de 50 milhões
de mortos, 60% dos quais civis que nada tinham a ver com o conflito. O
próprio Goebbels e sua esposa se mataram no bunker, mas não sem antes
assassinarem os próprios filhos que tinham entre 12 e quatro anos de idade.
O motivo disso? A morte prévia de Adolf Hitler.
De acordo com o historiador Peter Longerich, autor de uma nova biografia
de Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista desenvolveu, graças à
sua visão de mundo, uma dependência psíquica de Hitler34. Sua esposa
também não ficara longe: para ela “um mundo sem o Füher não é digno de
vida”.
Sem escapatória
O perigo maior de histórias como esta é que ninguém está livre de possuir
uma cosmovisão ou ser afetado pela cosmovisão do outro. Imagine quantas
vidas foram interrompidas porque um maluco com problemas de autoestima
resolveu alavancar outro maluco no poder.
Não pense que o povo não tem participação nisso. A própria passividade
das pessoas – que pretendo destacar neste capítulo – as leva a alimentar o
monstro que há por detrás dos déspotas e corruptos que desviam a sociedade.
Como dizia Orson Scott Card: “Se os porcos pudessem votar, o homem com
o balde de comida seria eleito sempre, não importa quantos porcos ele já
tenha abatido”35.
Conta-se uma lenda vinculada a Stalin que foi reproduzida pelo
consagrado novelista russo Chingiz Aitmatov num artigo do jornal
Sovetskaya Kirgiziya publicado em 6 de maio de 198836:
Em uma de suas reuniões, o ditador pediu que lhe trouxessem uma galinha.
Agarrou-a forte com uma das mãos enquanto a depenava com a outra. A
galinha, desesperada pela dor, quis fugir, mas não pôde. Assim, Stalin tirou
todas suas penas, dizendo aos seus colaboradores. Agora, observem o que vai
acontecer. Stalin soltou a galinha no chão e se afastou um pouco dela. Pegou
um punhado de grãos de trigo e, enquanto seus colaboradores viam,
assombrados, como a galinha, assustada, dolorida e sangrando, corria atrás de
Stalin e tentava agarrar a barra de sua calça, enquanto este lhe jogava uns grãos
de trigo, dando voltas pela sala. A galinha o seguia por todos os lados. Então, ele
olha novamente para seus auxiliares, que estão totalmente surpreendidos, e lhes
diz: “Assim facilmente se governa os estúpidos. Viram como a galinha me
seguiu, apesar da dor que lhe causei? Do mesmo modo é a maioria das pessoas.
Seguem seus dirigentes, apesar da dor que estes lhes causam, pelo simples gesto
de receber um benefício barato ou algo para se alimentar por um ou dois dias.
Como nasce uma cosmovisão?
É difícil falar deuma receita para todos os casos de cosmovisão individual.
Afinal de contas, não existe outro de nós mesmos. Ainda que haja
experiências de vida muito parecidas, minha história é única, não existem
duas biografias exatamente iguais, nem de gêmeos univitelinos.
Por isso o máximo que podemos dizer é que as cosmovisões que
construímos parecem partir ou nascer de três fontes: 1) Noção de pertença –
todos nós queremos fazer parte de um grupo. 2) Necessidade de afeto – por
querer ser amados, queridos, terminamos nos adequando às regras desse ou
daquele grupo. É para ser aceitos que assumimos certos modos de vestir,
falar, comportar. 3) Identidade pessoal – não é normal recebermos tudo
automaticamente, nós reagimos ao que recebemos, seja pelo gosto, por um
trauma criado ou pelo simples movimento de nosso livre-arbítrio.
Sendo assim, uma cosmovisão não é algo que surge num único instante.
Ela vai sendo construída aos poucos e está sempre sendo atualizada,
modificada, confirmada. Depende das experiências que temos e de como
respondemos a cada uma delas. Um trauma com um pai violento, e ao
mesmo tempo religioso, pode fazer com que mudemos nossa concepção de
céu a inferno, de crença em descrença. Em contrapartida, uma situação de
“fundo de poço” pode nos levar a buscar uma espiritualidade da qual nunca
fizemos caso. Os religiosos chamam isso de “conversão”.
Assim, a filosofia, a religião, os amigos, os inimigos enfim, as relações
sociais que temos ao longo de nossa existência vão ajudando a construir
nossa cosmovisão, mas não a determiná-la. No final da história é você e não
o outro quem decide como verá o mundo. Cada um é responsável por si,
desde, é claro, que esteja no pleno uso de suas faculdades mentais.
Em sua composição, a cosmovisão é constituída em parte por um núcleo
central, isto é, uma estrutura que é fruto das relações sociais que temos. Esse
mesmo núcleo costuma ser resistente a mudanças, embora não signifique
que seja imutável – afinal ela está constantemente sendo atualizada! Na
periferia estariam outras visões de mundo que estão sempre em dialética
com nossas concepções, ora confirmando ora desafiando nosso
entendimento.
Tudo isto, porém, refere-se à atividade da cosmovisão no indivíduo e suas
Tudo isto, porém, refere-se à atividade da cosmovisão no indivíduo e suas
relações com o público externo. Existe, contudo, outra cosmovisão coletiva
que também atua na história. Ela se constrói quando uma sociedade ou
grupo social passa a pensar majoritariamente de um modo a ponto de ser
assim caracterizada por aquele pensamento. Exemplo: mesmo havendo
pessoas que não aceitassem a escravidão dos negros, podemos coletivamente
dizer que o Brasil colonial era uma nação escravocrata.
Percebeu o processo? Viu como a cosmovisão é algo ao mesmo tempo
individual e coletivo? A diferença é que a individual dura uma vida e a
coletiva pode durar por gerações inteiras.
A gênese do pensamento coletivo
Foi Émile Durkheim o primeiro a teorizar o conceito de “consciência
coletiva” e como ela é originada. Não é um trabalho terminado, ainda há
muitos pontos obscuros nesta temática, principalmente porque uma vez
inseridos num sistema, é difícil perceber criticamente os costumes, a moral,
o modismo que dão forma ao nosso contexto.
É engraçado quando amigos já quarentões se encontram e começam a
rever fotos da época de faculdade. “Nossa, que cabelo era esse?” – comenta
uma colega que exibia um charmoso corte “Joãozinho”. “E eu? –
complementa a outra. Onde estava com a cabeça de ir a um baile de
formatura com um vestido desses?” Os homens também se entreolham,
rindo das calças que usavam e dos estilos que julgavam estar arrasando
corações. Até que alguém complementa: “É, o passar do tempo fez muito
bem a todos nós”. “Isso mesmo!” – concluem os demais.
Quem desenhou aqueles modelos antes considerados “fantásticos” e depois
disse que estavam ultrapassados? Note que a decisão é tão séria que afeta até
nossos gostos pessoais. Não conseguimos mais achar o estilo moderno e nos
perguntamos como tivemos coragem de usar aquilo.
Não sei como será daqui a algum tempo – pois as tendências mudam
muito rápido –, mas no momento que escrevo este livro está na moda usar
calça jeans surrada e rasgada no joelho ou na coxa. Antigamente seria
motivo de protesto no Procon se a loja me vendesse um produto desses; hoje,
é uma das mais caras da vitrine. Mediante isso, só tenho uma conclusão: se
eles convencem um jovem que uma calça jeans rasgada é bonita, então
podem convencer de quase qualquer coisa.
Em termos gerais, os exemplos que dei da moda perfazem a cosmovisão ou
a consciência coletiva que pode ser definida como o conjunto de
características e conhecimentos comuns de uma sociedade, que faz com que
os indivíduos pensem e ajam de forma minimamente semelhante.
Corresponde às normas e às práticas, à moral, aos códigos culturais, como a
etiqueta e as convenções sociais.
Assim, o indivíduo e suas ações são fortemente influenciados tanto por essa
consciência individual quanto pela coletiva. Mas os limites entre ambas não
são muito claros, pois mesmo decisões consideradas extremamente
individuais, como a de tirar a própria vida, podem ser influenciadas pelas
condições sociais. Lembra o famoso caso da Baleia Azul? Um jogo de
Internet que desafiava adolescentes a tarefas que iam desde cortar o próprio
corpo até pular de um edifício.
Em linhas bastante gerais posso dizer que elementos como língua, apego,
educação, mídia são peças-chave na construção e ou transformação de
culturas que se formam através de um mínimo de interação social. Por
exemplo, o processo que cria novas ordens morais, formadas a partir do
entusiasmo coletivo, é, muitas vezes, contrariado por processos em que esse
entusiasmo diminuiu, como crises sociais profundas ou carência de modelos
de liderança.
Não vou esboçar aqui todas as teorias vigentes sobre a gênese dos
pensamentos coletivos. Isso fugiria aos propósitos deste livro. Meu intuito
apenas é levar você à reflexão de que o sentimento pessoal que advogamos
pode ser reflexo de uma influência externa e subliminar que nos determinou
agir e pensar dessa ou daquela forma. Um elemento midiático ou uma
necessidade de aceitação no grupo podem ser exemplos disso.
O contrário também é verdadeiro, isto é, quando determinada postura é
assumida, não por incentivo de alguém, mas para provocar alguém. Neste
caso, entramos numa reação em conflito e agimos exatamente do modo
como o outro desaprova. Tal comportamento é muito comum entre pais e
filhos que não possuem uma relação saudável.
Por isso, devemos estar em constante estado de reflexão. Vendo e revendo
nossos conceitos, nossos motivos, nossa perspectiva. O desafio é pôr em
prática o que disse o filósofo e ensaísta americano Ralph Waldo Emerson:
“É fácil viver no mundo conforme a opinião do mundo. É fácil viver na
solidão, conforme a nossa opinião. Grande será o indivíduo que, mesmo em
meio à multidão, conseguir manter com perfeita doçura a independência da
solidão”37.
O indivíduo e o meio
Acho importante, a essa altura do diálogo, citar uma nota do antropólogo
Alfredo Austin: “Pertencer a uma tradição ou possuir uma cosmovisão não
implica, de maneira nenhuma, uniformidade de pensamento, mas sim
capacidade relativa de intercomunicação e interação em um dado contexto
social”38.
Há autores que negam o conceito de cosmovisão para hoje, pois entendem
que ele só diz respeito a sociedades tradicionais, com uma estrutura de
tradição forte e estreita relação entre indivíduo e sistema. Hoje viveríamos
um período “pós-estrutural” em que os indivíduos não são mais motivados a
pensar conforme a cartilha de um único partido, religião ou governo, pois a
sociedade tem muitas particularidades que desafiam qualquer ideia
uniforme. Será? Tenho cá minhas dúvidas. A meu ver, as estruturas de
pensamento individual e coletivo convivem em dialética e estão tão
presentes hoje como estiveram no passado. Não existe, por exemplo,
neutralidade na academia, sempre teremos paradigmas quedependem de
visões de mundo. Há muitas delas: marxismo, humanismo, teísmo, ateísmo,
agnosticismo, religiões orientais, materialismo, para nomear algumas. Dado
que não podemos escapar dos pressupostos, o desafio é reconhecer as
cosmovisões existentes e ter uma posição crítica em relação a elas, ou seja,
saber por que você escolheu determinado caminho e que consequências
advirão disso.
Sei que o exemplo a seguir não valerá para todos, porém, é mais comum
do que se imagina e vale para as outras áreas do conhecimento. Aconteceu
comigo, num evento em que participei como palestrante. Um estudante
chegou até mim com um amigo de ares bem arrogantes trazendo um monte
de perguntas na manga. Ele era um jovem de uns 17 anos cheio de
convicções adolescentes e não foi difícil perceber ali uma falácia do tipo
plurium interrogationum, isto é, quando se exige uma resposta simples e
rápida para questões complexas. Eu estava em pé no corredor depois da
palestra, com várias pessoas querendo falar comigo. Não era o ambiente para
aquele interrogatório, embora não creia que ela usara a falácia de modo
consciente.
Encurtando o diálogo, pois não havia tempo para muito mais que isso,
Encurtando o diálogo, pois não havia tempo para muito mais que isso,
perguntei: “Por que você se diz ateu?”. A resposta: “Por que não estou certo
se Deus realmente existe”. “Ora”, eu retruquei, “então você está mais para
agnóstico, pois um ateu tem certeza de que Deus não existe. Não há o ‘se’ na
fala de um ateu.” Ele se desconcertou, mas para não perder a empáfia disse
com convicção: “Isso! Sou um agnóstico!”. Descobri depois que ele na
verdade queria desafiar a autoridade religiosa defendida por seus pais, mas
isso é outra história. Continuando a conversa, perguntei: “E qual corrente
agnóstica você segue? Empírica, modelar, apática, forte, ateísta ou teísta?”.
Demonstrando não conhecer nenhuma ele chutou: “Forte!”.
Sabendo que os agnósticos fortes negam qualquer possibilidade de certeza,
perguntei: “Se você crê que não pode ter certeza de nada, como pode ter
certeza de que não se pode ter certeza de nada?”. Ele demorou a entender o
trocadilho e, mudando de assunto disse: “Admito que não sabia que o
agnosticismo tinha tantas linhas, vou estudá-las melhor para ver qual se
encaixa mais com o que penso sobre Deus. Por enquanto, só posso dizer que
nasci na igreja e não gosto do tipo de Deus que meus pais me ensinaram na
infância. Preciso primeiro saber se o que você diz de Deus é melhor ou é a
mesma coisa que eles disseram. Só aí posso dizer que crerei ou não nele”.
Então concluí: “Meu amigo, isso não é agnosticismo, é ignosticismo – um
termo cunhado pelo filósofo judeu Sherwin Wine, para descrever posturas
como a sua que preferem não se definir como ateus ou teístas por não terem
uma compreensão exata ou aceitável do que seria Deus”.
Estou correto?
Ao imperativo de conhecer sua cosmovisão (particular e coletiva)
acrescente o desafio de saber se você está ou não certo naquilo que pensa.
Ter certezas é algo relativamente fácil; estar correto demanda maior esforço
cognitivo. E não caia no erro de achar que o “comum” é necessariamente o
“correto”. No século 19 era comum surrar uma senhora negra de idade
apenas por ela deixar queimar o feijão de seus amos. Assumir posições
críticas diante de eventos passados é relativamente fácil, difícil é reconhecê-
los ainda em curso e se posicionar diante deles.
Hoje muitos insistem que a certeza é algo ultrapassado. Estamos numa era
de pós-verdades em que nada é, em si verdadeiro, tudo é relativo. Noções de
certo e errado, belo ou feio, moral ou imoral são apenas convenções
culturais. Não existe nada além da experiência pessoal humana, e Deus, caso
exista, é apenas um espectador passivo da história.
Finalmente somos nós que ditamos as regras. Será? Como ter certeza de
que minha cosmovisão é correta e de que é importante mesmo ter uma
cosmovisão? Quanto a essa última pergunta só posso dizer que a posse de
uma cosmovisão não é um direito a ser exercido, é uma condição da qual
não temos escapatória. O que está em nossas mãos é eleger que tipo de
cosmovisão teremos para direcionar nosso caminho.
Quanto à verdade, caso ela exista, poderia ser conceituada em termos
absolutos como a expressão exata da realidade. Mas aqui nos deparamos com
um quadrilátero de opções:
1 – não existe verdade, tudo é relativo;
2 – existe a verdade, mas jamais será alcançada;
3 – existe a verdade e ela é exatamente aquilo que dizemos;
4 – existe a verdade, mas a alcançamos apenas em parte.
Independentemente da opção que cada um faça, uma coisa é certa: aquilo
que conhecemos ou chamamos de verdade será sempre uma interpretação
mental que temos da realidade conforme transmitida por nossos sentidos e
interpretada pelos nossos neurônios. Seria desejável, ou prudente, pelo
menos esperar que nossas conclusões sejam confirmadas por outros seres
humanos inteligentes e destituídos de preconceito – isto é, do desejo ardente
de que algo de interesse deles seja verdadeiro custe o que custar. Aí essa
verdade poderá ser confirmada por equações matemáticas, vivências,
experiências e outros instrumentos cognitivos que formam um modelo capaz
de interpretar razoavelmente o passado e prevenir acontecimentos futuros
diante das mesmas coordenadas. É até onde conseguimos ir ao encontro da
verdade se nos limitarmos à razão como modo de possuí-la.
Mas cuidado: o conceito de certeza pode ser por vezes confuso e
impreciso. Mais à frente voltaremos a falar sobre isso. Por ora, basta lembrar
que a confiança mental também tem suas limitações. Dado que a certeza, se
for fruto de uma investigação cuidadosa das coisas, está correlacionada à
verdade, é tentador pensar que a certeza implica a verdade. Mas isto é falso.
Até a certeza filosófica, laboratorial e científica pode vir de uma premissa
falsa. Isto acontece porque somos falhos e podemos ter o azar epistêmico de
raciocinar bem com dados falsos. Dá-se também o caso de raciocinar mal
com dados verdadeiros, criando assim falácias mentais que são mais comuns
do que se imagina. E falácias são como perfume ruim, quem as usa
dificilmente percebe.
O já mencionado Descartes põe tudo em dúvida em busca de uma certeza
sobre a qual possa erigir o seu conhecimento, e isto pode criar a ilusão de
que a certeza implica o conhecimento. Novamente errado. A certeza,
adequadamente adquirida, é apenas um bom guia, mas, por não ser infalível,
não implica necessariamente a verdade. A certeza é um conceito epistêmico
e a verdade última um conceito metafísico, e seria surpreendente se o
primeiro implicasse o segundo. Portanto, alea jacta est – a sorte está lançada
e o assunto só começando. Ainda temos muito que conversar ao longo deste
livro.
33 Cf. Emmanuel Faye. Heidegger – L’Introduction du Nazisme Dans la Philosophie (Paris:
Éditions Albin Michel, 2005).
34 Peter Longerich. Joseph Goebbels, uma biografia (Rio de Janeiro: Objetiva, 2014).
35 Apud Antti P. Balk. Balderdash: A Treatise on Ethics (Helsink, Washington, Londres: Thelema
Publications, 2012), p. 365.
36 Apud. Disponível em . Acesso em:
30/08/2017.
37 Ralph Waldo Emerson; Eva March Tappan. “Self-Reliance”, in Select Essays and Poems (New
York: Allyn and Bacon, 1808), p. 35, versão eletrônica.
38 Anales de Antropología, Universidad Nacional Autónoma de México, México, v. 32, n. 1, 1995, p.
217.
http://hayrettinguelecyuez.webs.com/stalinism.htm
Capítulo 5
Decifrando Homer Simpson
Quem não conhece Homer Simpson, o pai de família mais atrapalhado da
história? Ele deixa para trás candidatos como Fred Flintstone, George Jetson
e Peter Griffin, da animação Family Guy. Não sei ao certo o que Matt
Groening tinha na cabeça quando rascunhou os primeiros traços de um pai
de família que era o oposto de tudo que se tem por politicamente correto. O
fato é que ele conseguiu emplacar um fictício idiota, fã de cerveja e
comedor de donuts como personalidade do ano! A revista americana
Entertainment Weekly declarou serHomer Simpson o maior personagem
de ficção das últimas décadas.
Apesar de todas as suas debilidades mentais, Homer desbancou até mesmo
o bruxo adolescente Harry Potter, que desde 1997 vendeu mais de 450
milhões de exemplares em todo o mundo, sendo 3 milhões apenas no Brasil3
9. Fico me perguntando até que ponto Homer Simpson é apenas um
desenho ou uma caricatura histórica de todos nós. Não seriam seus gestos
uma forma cômica de retratar de modo real a própria sociedade moderna?
Não é por menos que até a linguagem que ele usa passou a fazer parte oficial
do idioma inglês.
D’oh é uma interjeição que Homer usa quando fica irritado ao perceber
que cometeu um erro ou que algo ruim aconteceu. Ele já se expressou assim
em vários episódios. Por isso, em 1988 o Oxford English Dictionary, o
dicionário de inglês mais conceituado do mundo, reconheceu a
popularidade da expressão ao ponto de incluí-la em sua lista de vocábulos.
D’oh agora faz parte da língua inglesa e significa “expressão de frustração
quando se percebe que as coisas deram errado ou não aconteceram como
planejado, ou ainda que alguém acabou de fazer ou dizer algo estúpido”.
Ora, se a pré-modernidade foi a era da fé, a modernidade a era da razão,
não seria a pós-modernidade a era do D’oh? Afinal de contas, eu queria estar
errado, mas sinto que vivo muitas vezes numa época em que a cultura inútil
e o besteirol reinam soberanos por todos os lados.
O mais irônico é como perdemos valores cognitivos básicos como
compreensão do que se lê, poder de interpretação e noção de respeito
próprio. Veja que interessante: nos anos 1940, Walt Disney visitou o Rio de
Janeiro e, dentro do Copacabana Palace, criou um personagem para
supostamente “homenagear” os brasileiros. Seu nome: Zé Carioca – um
malandro, que não gosta de trabalhar, cheio de jeitinhos como o próprio
povo “homenageado”. Sinceramente não sei que homenagem é essa que só
enaltece defeitos do sujeito. Mas o fato é que o brasileiro se sentiu lisonjeado
com a homenagem prestada pelo empresário americano.
O tempo passou e hoje vejo uma revanche não planejada, quando Matt
Groening cria uma paródia dos americanos bem pior que o simplório Zé
Carioca dos brasileiros. E os estadunidenses, de alguma maneira, não se
importaram ou até pareceram gostar da homenagem, pois riram muito com
ela. Nem se deram conta de que Homer é mais um alerta que uma menção
honrosa. É o retrato de uma sociedade moral e intelectualmente falida.
Sei que também existe bondade no velho Homer. Ele tem um emprego
para sustentar sua família, ama loucamente sua mulher e se esforça para ser
um bom pai, embora nunca se lembre do nome da Meg – a caçula dos
herdeiros. O ponto não é este.
Não posso deixar que a filosofia do “nem tudo está perdido” me impeça de
buscar melhorias e correções. Um obeso com arteriosclerose não vai deixar
de ter uma doença só porque é um cara legal. Suas virtudes não
compensarão seu descontrole alimentar. Ou ele muda de hábitos ou deixará
uma esposa viúva e filhos sem pai. No caso do Homer – e de boa parte da
sociedade – a ideia que passa é que os defeitos não são para serem corrigidos.
Fazem parte do enredo. Se tirarmos os vícios, a atrapalhadas e tudo mais
que, embora engraçado, seja condenável, os Simpsons perderão a graça e,
com eles, a nossa própria história.
Dados que assustam
Em 1987 foi publicado um polêmico livro nos Estados Unidos que até
hoje é tema de um intenso debate na educação daquele país. O título
traduzido para o português seria “Instrução cultural: o que cada americano
precisa saber”. Nele, o autor, E. D. Hirsch chega à polêmica conclusão de
que uma grande parte dos alunos estadunidenses não teriam o background
cultural mínimo para entender com profundidade nem a primeira página de
um jornal. Isso é muito sério40.
De fato, várias pesquisas parecem confirmar esta afirmação. Uma delas, a
lista MindSet (modo de pensar), realizada anualmente pelo Beloit College
de Wisconsin, revelou dados aterradores. Somente para constar:
A maioria dos americanos que está prestes a entrar na universidade não
consegue escrever em letra cursiva, acham que o e-mail é lento demais, que
Beethoven é um cachorro e Michelangelo, um vírus de computador, ou uma
das tartarugas ninja.
Para os estudantes que se formaram em 2014, a Checoslováquia e a Iugoslávia
nunca existiram, a Alemanha nunca foi um país dividido, e para a maioria dos
que nasceram depois de 1980 João Paulo II, que assumiu o pontificado em 1978
e morreu em 2008, teria sido o primeiro papa da história.
Em outra pesquisa realizada em Fullerton, Califórnia, mais da metade dos
alunos não sabia quem foi Alexander Hamilton, mesmo com sua foto
aparecendo na nota de dez dólares. Embora eu não tenha dados tão
detalhados sobre o Brasil, não creio que estejamos melhores que os
americanos, haja vista que numa das últimas divulgações do Pisa (Programa
Internacional de Avaliação de Alunos), dentre os países que participaram da
pesquisa, o Brasil ocupava, invariavelmente, as piores posições em todos os
itens avaliados. No ano em que essa pesquisa foi realizada, nós, brasileiros,
ficamos em 53º lugar de um total de 65 participantes. Perdemos em
qualidade de educação até para países como Bulgária e Romênia. As
respostas reveladas por esse tipo de avaliação educacional podem até parecer
engraçadas (como as famosas “pérolas do Enem”), mas são trágicas. Se,
como diz o ditado, os jovens são o futuro do mundo, arrepia-me imaginar
um mundo gerenciado pelos entrevistados nessas enquetes.
Quem fez isso?
De quem seria a responsabilidade por isso? Talvez a resposta esteja na
explicação de Allan Bloom41, eminente educador da Universidade de
Chicago. Para ele o que estaria por detrás dessa ignorância coletiva é a
convicção pós-moderna de que não existe verdade absoluta, de que tudo é
relativo. Assim, o propósito da educação não é aprender a verdade ou
dominar fatos, mas apenas adquirir a habilidade de obter sucesso, riqueza,
fama e realização pessoal. A verdade última ficou irrelevante e desnecessária,
é coisa de cada um. Logo, não me admira que estes sejam os desastrosos
resultados da cultura. Afinal de contas como estabelecer o que é certo e
errado num currículo? Como estabelecer o que os alunos devem aprender?
Como saber que o que aprendem hoje não será desmentido ou atualizado
amanhã? Como dizer que uma resposta está definitivamente errada?
Lembremos, para a cultura pós-moderna estamos num tempo de pós-
verdades, logo, qualquer resposta é válida, afinal, tudo é relativo. A ordem do
dia é moldar os discursos às hermenêuticas de Nietzsche e Foucault,
segundo as quais não há fatos, somente versões. Em 2016, a Oxford
Dictionaries, departamento da Universidade de Oxford responsável pela
elaboração de dicionários, elegeu o vocábulo “pós-verdade” como a palavra
do ano na língua inglesa42.
Saber versus conhecer
Existe, porém, um dado aparentemente conflitante com o que foi dito
anteriormente, que no fim corrobora com o que foi dito e piora o quadro
que já era bastante ruim. Os jovens de hoje não são ignorantes. Eles sabem
muito. Nunca houve uma época com tanta informação disponível e
franqueada a praticamente todo mundo que esteja sob a tutela da tecnologia.
Um amigo que trabalha com índios no Amazonas mencionou tribos no
meio da mata navegando na Internet, usando antena parabólica, tudo
alimentado por gerador de energia. Eu mesmo já me surpreendi ao
encontrar em pleno deserto do Sinai um beduíno falando num iPhone (e
olha que ele tinha sinal).
Não, meu amigo, essa não pode ser a época da desinformação. Pelo
contrário, todos sabem e sabem muitas coisas. Entre no Google e está tudo
ali. O problema é que as pessoas sabem, mas não conhecem. Afinal de
contas, saber e conhecer não são sinônimos perfeitos.
Excesso de informação não implica necessariamente conhecimento
adquirido. Estamos falando de funções cognitivas relacionadas, porém
distintas. Conhecimento é quando você reage ao dado recebido –
concordando ou discordando dele – e sabe o que fazer com o seu conteúdo,relacionando-o a outros saberes. Já a informação é o recebimento passivo,
sem o exercício da reflexão, decisão e consciência.
Você tem o dado, mas não sabe o que fazer com ele nem no sentido
prático, quanto mais no sentido ético. Por isso, costumo dizer para meus
alunos que em sala de aula eles “capturam” o conteúdo, mas não significa
que o aprenderam. Isso dependerá do que farão com aquela informação ao
deixar a sala de aula. Por exemplo: o carro para na estrada e o motorista fica
parado olhando para o motor em pane. Por não saber o que fazer, podemos
dizer que ele tem informações sobre o motor, mas nenhum conhecimento a
respeito dele. Aí vem o mecânico e conserta o motor, esse sim tem
conhecimento acerca dele.
Que fale a Wikipédia
A Wikipédia é um desses fenômenos sociais gigantescos que geram amor e
ódio dos pesquisadores. Há professores que têm um ataque de nervos se o
aluno colocar algo retirado dela, enquanto outros não parecem se importar
muito. O fato é que a Wikipédia se tornou um caminho sem volta. Somente
em 2013 ela tinha mais de 10 milhões de artigos em mais de 200 línguas
que, se impressos, dariam uma série de mais de 1.800 volumes com 1.000
páginas cada. E olha que a empresa que a mantêm possui apenas seis
empregados!
Um dos problemas da coleção é que a linguagem de um acadêmico é
ladeada à fala de um menino de 8 anos. Todo mundo coloca informação ali,
diariamente. “A Wikipédia é obra da geração que vira noites na Internet”,
concluiu Carolina Rossini, uma pesquisadora brasileira em Harvard43.
Dizem que o próprio Jimmy Wales, idealizador do projeto, ironizou numa
palestra para alunos que ninguém deveria usar sua criação em trabalhos de
pesquisa: “Por tudo que é mais sagrado”, dizia ele, “vocês que estão na
faculdade, não citem a Wikipédia!”.
Porém, se deixar de lado os preconceitos justificáveis com relação a essa
enciclopédia livre, posso tirar uma importante informação da Wikipédia que
dificilmente viria de outra fonte: ela é uma evidência empírica de como o
público está se doutorando em conhecimento perigoso e trivial.
Principalmente as novas gerações, repletas de ph.D.s em cultura inútil.
Como você sabe, o editor de uma enciclopédia sempre dá mais espaço
para os verbetes mais importantes, que, por essa razão, demandam mais texto
informativo que os demais. Não dá para falar sobre Karl Marx e Mickey
Mouse usando a mesma quantidade de caracteres. Quem define isso, já
disse, é o editor-chefe, que, com bom senso, seleciona os temas que terão
maior ou menor peso.
Pois bem, parece que os editores da Wikipédia – nossa geração de
internautas – também tiveram seu critério, porém, diferente do esperado. Ao
que tudo indica, as razões da morte de Tiradentes não são tão importantes
quanto os motivos de um suposto terceiro divórcio entre Beyoncé e Jay-Z. Os
números estão aí para provar. Uma comparação feita pelo jornalista Marcelo
Zorzanelli entre o tamanho de artigos (em número de caracteres) sobre
ícones da cultura pop e temas importantes do conhecimento humano revela
diferenças intoleráveis44:
Renascentismo: 16 mil – Pokémon: 47 mil.
Homo sapiens: 10 mil – Super-Homem: 27 mil.
Tiranossauro Rex: 13 mil – Yoshi: 16 mil.
Apóstolos de Cristo: 7,5 mil – Paquitas da Xuxa: 12 mil
Deus: 9,5 mil – Jogador Romário: 21 mil
Há garotinhos na comunidade que não estão frequentando a escola, mas
sabem montar e desmontar um fuzil com a precisão de um fuzileiro naval,
manipulam uma droga com a maestria de um químico da Polícia Civil.
Enquanto isso, na sala de aula, há muitos que não sabem nada de história do
Brasil, mas conhecem tudo sobre o seriado Game of Thrones. E olha que
nem entrei em assuntos polêmicos como pornografia, pedofilia e
recrutamento para o terrorismo. Aqui já não falo mais da Wikipédia, mas da
Internet de um modo geral.
Percebeu aonde quero chegar? Estamos formando uma geração de
Simpsons da vida real. Como dizia Umberto Eco, a TV já havia colocado o
“idiota da aldeia” em um patamar no qual ele se sentia superior. “O drama
da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”45.
A dificuldade do professor, pai, adulto de hoje não é apenas inserir bons
conteúdos na cabeça do jovem, aluno e filho. É preciso primeiramente
liberar espaço, esvaziar o lixo que está tomando precioso espaço cognitivo, e
isso dá muito trabalho.
Se compararmos a mente a uma casa e o que se ensina a um decorador de
ambientes, posso dizer que o desafio pedagógico moderno não é mobiliar ou
remobiliar uma sala como faz o designer de interiores num ambiente
normal. É retirar o lixo do ambiente, diante de um proprietário acumulador
que, semelhante aos acumuladores de verdade, resiste à saída daquele monte
de entulho perigoso e sem serventia.
O pior é que o mesmo lixo mental que está na cabeça de grande parte da
nova geração produz, por consequência, comportamentos doentios. Por isso
vemos notícias tão absurdas de jovens se envolvendo com drogas,
criminalidade, pedofilia, e toda a sorte de delinquências sociais que tiram o
sono de qualquer pai consciente. Somos uma geração de Barts educados por
uma geração de Homers.
Às vezes me pergunto se não seria ainda pior, ou seja, se não somos uma
geração que confunde ensino com educação achando que passar para o
aluno o conhecimento de matemática pura, gramática ou biologia fará dele
automaticamente um cidadão de bem. É necessário um pouco mais que isso
para se formar um caráter. O aluno pode até sair da faculdade sabendo
resolver qual a raiz quadrada de X. Mas o que ele responderia diante da
questão a seguir?
Pus um carro à venda, mas descobri depois disso que ele está para bater o
motor e o reparo não ficará barato. Hoje surgiu um senhor querendo
comprá-lo. Devo vender o carro assim mesmo, escondendo que o motor
não terá muito tempo de vida?
Esse tipo de pergunta, infelizmente, não cai no vestibular. Testes de caráter
não constituem índices de aprovação para uma universidade que só deseja
passar conhecimento, e não valores.
39 Disponível em e . Acessados em 05/10/2017.
40 E.D. Hirsch Jr. Cultural Literacy What Every American Needs to Know (Nova Iorque, Boston:
Houghton Mifflin; Publication, 1987).
41 Allan Bloom. The Closing of the American Mind (New York: Simon Schuster Trade, 1987).
42 Disponível em . Acesso em:
16/4/2017.
43 Disponível em . Acesso em: 13/12/2014.
44 Disponível em . Acesso em: 12/08/2017.
45 Disponível em . Acesso em:
28/08/2017.
https://oglobo.globo.com/sociedade/religiao/com�-novas�-versoes�-cada�-mes-mercado�-de�-biblias�-continua�-no�-topo�-18098150
http://veja.abril.com.br/entretenimento/curiosidades�-numericas�-da�-saga�-harry�-potter/
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/11/16/O�-que�-%C3%A9�-%E2%80%98p%C3%B3s�-verdade%E2%80%99�-a�-palavra�-do�-ano�-segundo�-a�-Universidade�-de�-Oxford
http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI8389-15565,00-O+TRIUNFO+DA+CULTURA+INUTIL.html
http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI8389�-15565,00�-O+TRIUNFO+DA+CULTURA+INUTIL.html
https://www.terra.com.br/noticias/educacao/redes�-sociais�-deram�-voz�-a�-legiao�-de�-imbecis�-diz�-umberto�-eco,6fc187c948a383255d784b70cab16129m6t0RCRD.html
Capítulo 6
Questionando a universidade
Todos sabemos que a instituição hoje chamada universidade surgiu das
antigas escolas católicas da Idade Média chamadasuniversitas, termo latino
que significa “denominar o conjunto de seres ou coisas que constituem um
todo”. Daí o significado primitivo da palavra “universidade” no século 13,
que era o de conjunto de mestres e de estudantes congregados na mesma
escola e ligados pelos mesmos interesses culturais – Universitas magistrorum
et scholarium. Mestres e estudantes formavam, assim, uma corporação,
evidentemente comandada em maior ou menor grau pelos ditames da
Igreja.
Com o passar do tempo, porém, entre idas e vindas dos conflitos locais,
expansões econômicas, nascimento do protestantismo e Revolução Francesa,
a universidade foi se distanciando do poder eclesiástico e até se rebelando
contra ele. Foi um processo natural, uma vez que o mundo estava cansado
dos mandos e desmandos em nome de Deus. Os que tinham maior
conhecimento, é claro, começaram a alertar o povo a esse respeito.
O surgimento das universidades na Europa possibilitou a disseminação do
pensamento crítico que acabaria por desencadear o Renascimento e, mais
tarde, o Iluminismo. Quem estava à frente disso? Os chamados livres-
pensadores – embora esse termo, a rigor, pertença à Idade Moderna. Seu
objetivo era propagar uma liberdade de pensamento sem os grilhões do
despotismo feudal, monárquico e eclesiástico.
Até aí tudo bem. O problema, como pretendo demonstrar neste capítulo, é
que esses precursores, ou os que vieram depois deles, exageraram na dose e o
que era para ser uma fogueira tornou-se um incêndio incontrolável.
Tomaram o ônibus certo e desceram no ponto errado.
Literalmente jogaram fora a água suja, a bacia e o menino juntos. Aí deu
nisso, a formação de um movimento completamente anárquico,
antirreligioso, antideus e antifé. Como definiu Paulo Bitencourt, autor do
livro Liberto da religião: o inestimável prazer de ser um livre-pensador:
O livre pensamento é o oposto do pensamento dogmático. Logo, nada pode ser
mais incompatível com o livre pensamento que crenças religiosas, pois em nada
há mais dogmatismo que na religião. […] Só livres-pensadores são pessoas
verdadeiramente racionais. Seu ceticismo não as deixa ser engodadas por
nenhuma ideologia. Não acreditando em coisa alguma desprovida de
evidências, livres-pensadores são imunes também a todo e qualquer tipo de
superstição.46
Não pense, contudo, que a história se resume a isso ou que tudo acaba
aqui. Estamos apenas no meio do enredo e já temos elementos mais que
suficientes para ver que começamos bem, mas tomamos o rumo errado em
alguma bifurcação da estrada. O que você verá a seguir é minha
argumentação acerca disso.
Educar pra quê?
O grande educador brasileiro Anísio Teixeira deixou bem claro certa vez
qual o papel das universidades na sociedade moderna. Ele disse: “São as
universidades que fazem hoje, com efeito, a vida marchar. Nada as substitui.
Nada as dispensa. Nenhuma outra instituição é tão assombrosamente útil”47.
Concordo em parte com ele. Digo em parte por uma única razão: sua fala
parece centralizar nas universidades uma função redentora que, embora
válida, não é exclusiva nem prioritária delas. Há outros elementos da
sociedade que participam desse processo com importância igual ou superior
à universidade. Entre eles estão a família, a ética, as tradições, a fé.
Os índios, beduínos, esquimós e aborígenes não têm universidade e sua
vida marcha em alguns aspectos de maneira menos estressada que a nossa.
Em que pese a superioridade acadêmica dos países de primeiro mundo,
tenho certeza de que se fosse escrito um livro de História Geral dos
Esquimós, a trama seria bem menos violenta, traiçoeira e sanguinária que a
História da cidade universitária de Oxford, Inglaterra. Podemos até ter
Harvard, Yale, USP, Unicamp, porém, se perdermos os valores citados
anteriormente, perdemos tudo.
De que adianta calcular precisamente a relação tempo-espaço e perder os
momentos felizes que a vida proporciona? Entender como funciona o
mundo subatômico e não compreender a cabeça de um filho adolescente?
Desenhar todos os músculos da face e não saber sorrir sem estar maquiado?
Não sou um pessimista schopenhaueriano, contudo, temo que o sucesso
final se transforme em sucesso fatal. Que o preço do baile fique tão caro que
não compense a dança.
É por isso que, embora eu mesmo seja um professor, tenho minhas
profundas decepções com a exacerbada confiança que se deposita no mundo
acadêmico. Minha discordância de Anísio Teixeira continua no fato de que
a educação, por si só, por mais elevada e importante que seja, não é garantia
de uma sociedade justa e igualitária. Por isso um discurso unilateral símile
ao slogan do “educação é tudo” não me fascina tanto. A qualidade
educacional da Alemanha nazista era impecável e isso não os impediu de
protagonizar um dos maiores massacres da humanidade.
Há tempos ouvi falar de uma carta escrita por um sobrevivente de
Há tempos ouvi falar de uma carta escrita por um sobrevivente de
Auschwitz a um professor. Não sei se a fonte é histórica, o conteúdo, no
entanto, é inspirador e nos faz refletir muito ainda que seja fictício:
“Prezado Professor,
Sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que
nenhum homem deveria ver.
Câmaras de gás construídas por engenheiros formados. Crianças envenenadas
por médicos diplomados. Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas.
Mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e
universidades. Assim, tenho minhas suspeitas sobre a educação. Meu pedido
é: ajude seus alunos a tornarem-se humanos. Seus esforços nunca deverão
produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e aritmética só
são importantes se fizerem nossas crianças mais humanas.”
Agora vamos falar de hoje. Você acha que realmente a educação está
cumprindo seu papel redentor? Veja, não estou falando em negar seus
valores. Longe de mim favorecer qualquer espécie de obscurantismo. Estou
questionando a concretização dos ideais humanistas, prometidos por aqueles
que criam ser a fé um obstáculo à evolução racional da humanidade.
Homer e Deus
Volto a falar de Homer Simpson. A noção de valores e a relação com o
Sagrado apresentadas no desenho são bastante reveladoras. As aparições de
Deus em vários episódios até mereceriam um estudo de caso, a começar do
fato de que o Altíssimo é um dos poucos personagens desenhados com cinco
dedos. E como por um jogo de sorte ou azar, os encontros entre Deus e
Homer sempre se dão num ambiente de sonho, morte e juízo final.
Em todos eles surge um clima de reclamação e justificativas. Num
momento é Deus que questiona a Homer por que deixou de ir à igreja, em
outro é Homer que reclama que o culto é chato e o sermão entediante. Em
Thank God It Doomsday, depois de chegar ao céu, Homer vê Marge e seus
filhos sendo atormentados pelo diabo no inferno. Então ele tem uma
conversa séria com Deus sobre como salvar sua família. Quando Deus se
recusa a ajudá-lo, Homer, com raiva, começa a bagunçar o Paraíso até
mudar a mente de Deus. Aliás, uma coisa é patente nos roteiros: Homer
sempre muda a mente de Deus. O idiota da história tem mais argumentos
que o Criador do universo! Seria isso uma indireta sobre a insensatez da fé e
a manipulação do Sagrado? Considerando o humor judaico dos roteiristas,
pode até ser.
A paródia para mim está muito clara. Quando o humanismo se levantou
contra a teologia, acreditou-se que a educação e a razão pura seriam a
salvação da sociedade. Uma vez educado, o homem estaria livre de deuses,
mitos e medos que o aprisionavam em um permanente estado de angústia
mental. Logo, quanto mais racional fosse o sujeito, menos religioso se
sentiria e, consequentemente, desenvolveria mais capacidade mental para
enfrentar os dilemas da vida sem apelações espirituais. Seria, pois, um livre-
pensador!
Essa continua sendo a bandeira de muitos ícones do neoateísmo.
Entendendo o racionalismo como uma barreira às coisas de religião, muitos
acadêmicos, mesmo aqueles que não se declaram abertamente ateus, passam
para os universitários a ideia de que a razão os ajudará a enfrentarA ignorância nossa de cada dia
O despertar da ciência
Mudança de rumos
E a intuição?
Desafiando a exclusividade científica
O que faz um cientista?
Tocando a realidade
Outros questionadores
O valor da ciência
Capítulo 17 – Tocados pelo absurdo
Um encontro com Camus
O que é o absurdo?
Fuga da realidade
Confrontando a alienação
A sede continua
Capítulo 18 – Sistemas abertos, fechados e isolados
Olhe lá fora
Real versus circunstancial
Obituário de Deus
Senso sem sentido
Capítulo 19 – O sentido de tudo
Que falem os números
Ciência do possível?
Provável ou improvável?
Algo além
Capítulo 20 – Supermercado da fé
Espiritualidade em alta
Sociedade de consumo
Mercado e religião
O consumidor espiritual
Relações de fé
Os bonzinhos do inferno
Mercenários da fé
Pastores assalariados?
Teatro e fast-food espiritual
Capítulo 21 – O ser e o existir
A questão da existência
A ideia de Lavoisier
Provocações mentais
Ser ou não ser?
A natureza da existência
A mulher que não se conhecia
Como conhecer a realidade?
Limites semânticos
Predicados da linguagem
Unicórnios e cavalos
Teoria da existência
Contrassensos conceituais
Coisas não surgem do nada
Um conto para ilustrar
Propriedades da existência genitora
Capítulo 22 – Há alguém lá em cima?
A criança e o adulto
Voltando a falar do sonho
Capítulo 23 – A improbabilidade de Deus
Provas que não provam
Ciência e senso comum
Realidade supraexperimental
Preconceitos infundados
Dogmatismos científicos
Matemática e Deus
Geometria e Deus
Capítulo 24 – Por que existimos?
O bule celestial
No princípio era o começo
Por que tudo aconteceu?
A proposta de Hawking
Força ativa, ser pessoal?
O movimento
Deus das lacunas?
Capítulo 25 – Valores morais existem?
Tudo é relativo
Questão dividida
Tudo é permitido
Interpretando Dostoiévski
Ser crente é ser bom?
Buscando o padrão
Natureza moral
Concluindo
Capítulo 26 – Deus absconditus
Teologia negativa
Tentativa de equilíbrio
Calculando o rombo
Minha briga com Freud
Qual o tamanho do vazio?
Eternidade com propósito
Capítulo 27 – Deus revelatus
Carência contraditória
Uma boa notícia
A máscara de Deus
Capítulo 28 – A singularidade do cristianismo
Como é Deus?
Audácia cristã
O incomparável Jesus
E os demais?
Capítulo 29 – Igreja, quem precisa dela?
“Jesus sim, Igreja não!”
Cristo e Igreja
Cristo fundou a igreja?
Cristianismo ou igreja?
A desconfiança continua
A opinião dos jovens
Evangelismo ateu?
Propaganda e Fé
E então?
Capítulo 30 – A dor da sobriedade
O vazio que persiste
Realidade intolerável
Por que o consumismo não satisfaz?
Capítulo 31 – Jesus Cristo, mito ou realidade?
Jesus da fé e da história
Mudança de rumo
Novo conceito de história
O questionamento dos teólogos liberais
Outras posições
Um missionário descrente
Uma historiografia de Jesus Cristo
Na literatura judaica
Fontes não judaicas
História real ou ficção?
Relatos lendários?
O escândalo dos evangelhos
Jesus humano
Capítulo 32 – Milagres existem?
Fé demais não cheira bem
O ceticismo de Hume
Respondendo a Hume
A problemática quântica
Milagres e leis naturais
Sóbrios ou idiotas?
O valor do testemunho
Cientistas podem crer?
Capítulo 33 – Que dizer da Bíblia?
Livro perigoso
Dialogando com Shaw
A Bíblia na história
Por que um livro?
Como se produz um best-seller?
Obra-prima ou rascunho?
Um quase aborto literário
Nem clássico nem best-seller
Livro imposto?
Livro perseguido
Preservação única
Os Manuscritos do Mar Morto
A Bíblia foi modificada?
Um livro que transforma
Capítulo 34 – Escavando a verdade
Como tudo começou
Contribuições adicionais
Arqueologia do Antigo Testamento
Arqueologia do Novo Testamento
Qumran e os Manuscritos do Mar Morto
Conclusão
Capítulo 35 – Seria Deus um genocida?
Não seria assim na Bíblia?
Como entender tudo isso?
“Hold on”!
Conhecendo culturas estranhas
A mente de um radical
Juntando os fatos
História patriarcal
O caso de Jericó
Genocídio ordenado?
E as crianças de peito?
Deus ordena a violência?
Cananitas abomináveis?
Capítulo 36 – Deus e o sofrimento
Sistematizando o problema
Deus em Auschwitz
Os que descreram
E os judeus?
Um caso para se pensar
Capítulo 37 – Existe lógica na dor?
A onipotência de Deus
Um Deus legislador
O dilema continua
O melhor dos mundos?
Capítulo 38 – Um enredo para o caos
Um problema milenar
O problema do mal na Antiguidade
A teodiceia de Leibniz
O que é o mal?
A existência do mal
Afetividade e escolha
O caso de Jó
A atitude de Deus
A parábola do rei piedoso
Conclusão – Finalmente em casa
Céticos também se fascinam
Superando convenções
Então fazer o quê?
Olhe pra cima
Sozinhos ou acompanhados?
Escala de Kardashev
Roteiro de cinema
Deus na escala
Obrigado, Kardashev
Convivendo com a incerteza
Posso falar da eternidade?
Referências
Introdução
Sou demasiado cético para ser incrédulo. 
– Benjamin Constant
Este livro é sobre a existência de Deus, mas não foi escrito, a princípio, para
crentes. Os religiosos conservadores até podem lê-lo, e ficarei muito feliz se o
fizerem. Porém, a linguagem que uso não será para pessoas que creem e se
sentem confortadas com sua crença. Eu me dirijo àqueles que perderam a fé
ou pelo menos nutrem sérias dúvidas a respeito dela. É um compêndio para
quem duvida (cético), para quem não tem certeza (agnóstico), ou ainda para
quem acha que Deus existe, mas está distante de nós (deístas). Ah, também é
um livro para ateus. Sim, especialmente os ateus.
De princípio devo explicar que a palavra “existência” aqui será usada no
sentido semântico de “ser, estar, viver, haver, subsistir, durar”. Digo isso
porque é difícil predicar a Deus o sentido etimológico de existir. Segundo o
Dicionário etimológico da Língua Portuguesa (José Pedro Machado),
existir vem “do latim ex(s)istere [com o sentido de] ‘sair de’, ‘elevar-se de’,
‘nascer’, ‘provir de’”. Sendo assim, do ponto de vista etimológico seria um
contrassenso falar em existência de Deus a partir uma perspectiva judaico-
cristã, pois, se considerarmos que a ideia de existir é algo extraído de algo,
seria mais coerente dizer que Deus não existe, Deus é! Contudo, para evitar
desnecessárias questiúnculas vernáculas, valho-me do sentido atual do termo
e simplesmente digo que falarei sobre a existência de Deus. Assim, todos
entenderão o que digo sem muitas complicações.
É claro que, devido ao forte conteúdo filosófico deste assunto, mesclado a
discussões provenientes de outras áreas do conhecimento, advirto que este
livro será fácil em algumas partes, hilário em outras e pesado num monte
delas. Tentei simplificar ao máximo alguns conceitos para torná-los
palatáveis ao leitor. Não sei, contudo, se consegui fazê-lo para a satisfação de
todos. De qualquer modo, sei que o tema que proponho não costuma atrair
pessoas que busquem uma sistematização do óbvio. Logo, o que aparenta ser
difícil converte-se num interessante desafio.
Você perceberá ao longo da leitura que é não tarefa fácil traduzir em
Você perceberá ao longo da leitura que é não tarefa fácil traduzir em
linguagem simples os autores citados e as problemáticas sobre as quais
refletiram. Principalmente considerando que não os apresentei apenas num
exercício de decalque ou de introdução ao seu pensamento. Pelo contrário,
fiz uma leitura crítica deles, com concordâncias totais, parciais e,
principalmente, discordâncias.
Não me abstenho dos temas polêmicos de Deus: Por que ele se esconde?
Como acreditar em sua bondade num mundo de tanto sofrimento? Por que
um Deus de amor matou e mandou matar tanta gente no Antigo
Testamento? Onde ele estava durante o massacre de Auschwitz?
Com perguntas assim, você já deve ter percebido que esse será um livro
polêmico e provocador. Até tentei ser politicamente correto em tudo que
escrevi e, novamente, não tenho certeza se alcancei um bom resultado. É
possível que a mesma fala arranque aplausos de uns e vaias de outros. O que
importa é que se posicionem. Preciso de leitores racionais, e não do
programa de leitura do Google.
Fique tranquilo, pois você não verá aqui nenhuma soberba confessional.
Meu objetivo primário não é um convencimento sobremelhor a
realidade fria e ao mesmo tempo bela como ela é. Os alunos são, assim,
ensinados a entender que estamos sozinhos neste mundo, que não existe
deus nenhum lá fora, que o sucesso depende exclusivamente de seu esforço
e a morte é o fim de todos. Logo, ser “educado” é superar a infantilidade da
crença que, pelo medo da morte e do inferno, propõe a existência de deuses
e caminhos de salvação.
Religião é veneno?
Michel Onfray é um desses promotores antirreligiosos. Ele entende que a
religião é, ao mesmo tempo, um atentado à inteligência, um sinal de
imaturidade psicológica e uma falta de coragem para enfrentar a realidade.
Ela procede de uma pulsão de morte, que rejeita tudo que é racional, livre,
vivo, feminino e corpóreo. Ao falar de mundo para além do material, a
crença em Deus se mostra um obstáculo para a emancipação humana48.
A realidade, porém, parece ir à contramão do otimismo de Onfray & cia.
Considere meu raciocínio. Não tenho aqui dados que me digam o
percentual de alunos ateus, agnósticos e religiosos das universidades. Aliás,
sei que tais números variariam de campus para campus, de curso para curso
– uma faculdade de Física certamente atrai mais alunos ateus que uma
faculdade de Direito. Contudo, a despeito dessa ausência de dados, não
creio ser ingênua a impressão de que o ambiente universitário
(especialmente das grandes universidades públicas) é amplamente pró-
ateísta ou, pelo menos, antirreligioso em seu discurso e comportamento.
Pode-se até estudar o fenômeno religioso num ou noutro seminário, mas
sempre como movimento social destituído de qualquer valorização
intrínseca. O sincretismo entre católicos e religiões afrodescendentes no
Brasil colonial é interessante para um trabalho de história ou sociologia,
como seria uma avaliação social dos quadrinhos da Turma da Mônica. Já a
análise dos ensinos de Cristo com vistas a averiguar sua relevância para o
mundo moderno é assunto irrelevante.
Como Homer, não nos importamos muito com coisas de Deus. O Bar do
Moe, o show do Krusty e as rosquinhas recheadas são mais interessantes que
o céu e o culto no domingo (os Simpsons são protestantes). E se Deus vier
reclamar conosco, vamos convencê-lo de que ele está errado.
Qual a novidade?
O ateísmo e o materialismo em universidades certamente não são algo
novo. De fato, a confluência de forças econômicas e políticas, na
estruturação de um novo modo de produção, na passagem do feudalismo ao
capitalismo e na derrubada da nobreza e do clero, estabeleceram a
necessidade de construir um novo modo de pensar e agir, distanciando-se do
controle teológico, e as universidades foram o território ideal para essa nova
ordem.
A novidade de hoje é que, diferentemente das gerações passadas, os
universitários ateus, agnósticos e humanistas começam a considerar seu
secularismo um aspecto importante e fundamental de sua identidade. Até
pouco tempo, identificar-se como feminista, LGBT, afrodescendente,
pacifista, ambientalista, socialista, libertário ou liberal era o fator primário da
vida estudantil. A identidade secular (ateu ou agnóstico) vinha em segundo
plano. É isso que está mudando. Identificar-se como assumidamente não
religioso está se tornando cada vez mais importante para muitos deles.
O que se vê, portanto, é um movimento ou uma tentativa de retorno à
ordem do Iluminismo: a subjugação da natureza pelo intelecto e a
organização racional da sociedade como base da emancipação final da
humanidade. Não se assume, porém, o discurso colonialista do passado, nem
a tentativa de controle através da dominação física e cultural. Afinal, todos
querem parecer politicamente corretos, e o imperialismo está fora de moda
em nossos dias. Porém, mesmo nesta época de pós-colonialismo, percebe-se
a existência de discursos centralizadores e ufanistas, que rejeitam qualquer
conhecimento extramuros. Persiste uma profunda cegueira histórico-
sociológica que, ao atribuir à cultura racionalista exclusividade ou graus de
superioridade em relação a outras visões de mundo (principalmente
religiosa), reforça o sentido colonizador, messiânico e catequético do
racionalismo europeu, isso sem contar que ele romantiza o potencial
universalista do antigo Iluminismo e sua episteme como formadora por
excelência de verdades e valores.
Sei que nem todos concordarão com minha leitura. Certamente que as
análises e críticas deste fenômeno variam, especialmente se o referencial
teórico for Heidegger, Kant, Habermas ou Bauman. Porém, é inegável que o
impacto intervencionista humano gerado pela visão de mundo moderna
fracassou em concretizar o otimismo predito pelos primeiros livres-
pensadores.
A ambição iluminista de dominar a natureza e colocar a humanidade
acima dela produziu inevitavelmente consequências desastrosas para a
própria humanidade. A Primeira e Segunda Grande Guerra, as catástrofes
ecológicas, a especulação financeira e a contínua sensação de colapso da
história não foram consequências da fé, mas dos movimentos humanistas
modernos. O super-homem de Nietzsche que pensava subjugar a natureza
demonstrou-se perfeitamente capaz de escravizar seres humanos seja pelas
algemas, pela política, economia ou pelo marketing que conduz ao
consumismo desenfreado.
Mesmo assim, a velha proposta de estímulo ao ateísmo, ceticismo, uso
exclusivamente racionalista da ciência está de volta e com muita força.
Acredita-se que a supressão da fé em Deus fará com que os jovens
abandonem suas guerras culturais e adquiram uma postura não teísta que
contribua para a tolerância e a aceitação de grupos que a religião
marginalizou por séculos, devido à sua ênfase no pecado, na castidade, na
santificação. Mais uma vez, promete-se um paraíso construído bem aqui na
Terra, mas sem Deus, Adão e Eva e fruto proibido.
O movimento segue ganhando terreno. O rápido crescimento da Aliança
de Estudantes Seculares (SSA – Secular Student Alliance), um grupo de
proteção para o ateísmo e humanismo organizado em campi universitários e
escolas de ensino médio nos Estados Unidos, demonstra essa realidade.
Muitos estão orgulhosamente se declarando descrentes e inspirando outros a
fazer o mesmo. É um verdadeiro trabalho de catequização às avessas.
Tanto que universidades importantes como Harvard já possuem um serviço
de capelania humanista que atua há mais de 40 anos e com vibrante
trabalho ativista dentro do campus. Juntamente com a liderança estudantil
da Sociedade Secular de Harvard, a capelania fez da identificação cética
algo proeminente na universidade. Autor do livro Good Without God [Bom
sem Deus], Greg Epstein não esconde que seu intento e de um batalhão de
outros intelectuais é levar jovens para o lado do ateísmo, e eles parecem estar
conseguindo.
Sei que no Brasil a realidade é diferente. Porém, existem predisposições
Sei que no Brasil a realidade é diferente. Porém, existem predisposições
semelhantes entre o ambiente universitário brasileiro, europeu e norte-
americano no que diz respeito ao incentivo do “se é bom com Deus, melhor
ainda sem ele”. Admita seu ateísmo e não se envergonhe dele. Há muita
gente esperta que concorda com você. Agora que você sabe que Deus não
existe, pare de sonhar com o céu e comece a curtir a vida.
Ateus mais inteligentes?
Uma pesquisa feita há poucos anos nos Estados Unidos deve ter irritado
bastante tanto os ateus quanto os teístas. Ela foi conduzida por Tony Jack e
Richard Boyatzis, respectivamente professores dos departamentos de
Filosofia, Psicologia e Ciências Cognitivas da Case Western Reserve
University de Cleveland, Ohio – uma das mais bem-conceituadas escolas
privadas dos Estados Unidos.
Através de tomografias computadorizadas do cérebro e oito seletivos testes
psicológicos, eles avaliaram 527 adultos e chegaram a uma conclusão
audaciosa e surpreendente: religiosos são menos inteligentes que ateus
assumidos. Os resultados foram publicados na Public Library of Science
(PLoS ONE) – uma revista indexada de ciências49. Os pesquisadores
partiram do pressuposto de que o cérebro humano, formado por dois
hemisférios,geralmente tem suas distintas habilidades localizadas em uma
ou outra região que, por sua vez, demonstra mais estímulo se o sujeito for
melhor naquela área do que em outra. A linguagem e a inteligência lógica,
por exemplo, relacionadas à capacidade de utilizar fórmulas, criar
raciocínios lógicos, interpretar símbolos e resolver problemas matemáticos,
geralmente são observadas em pessoas que utilizam mais o hemisfério
esquerdo do cérebro. Estes seriam os matemáticos, engenheiros e cientistas.
Já o hemisfério direito é mais criativo, intuitivo, relacionado a capacidades
visuais. Não se esqueça, porém, de que, mesmo com essas predominâncias,
os hemisférios trocam constantemente informações e atuam sinergicamente
na maioria absoluta das vezes.
Disto posto, os resultados foram, como adiantei, bastante polêmicos. Os
religiosos demonstraram menos inteligência lógico-matemática e analítica
que os ateus. Estes últimos, no entanto, tenderam a pensar de forma
manipuladora, com frieza e pouca simpatia pela dor do outro. Ateus
estariam mais propensos a repelir a metade social do cérebro, voltando-se a
um comportamento mais impulsivo e autocentrado, semelhante ao dos
psicopatas. Já os religiosos teriam menos afeição à postura analítica, o que
também acarretaria uma perda do nível de inteligência.
Os autores reconhecem o risco do uso do termo “psicopata” na redação do
estudo. Sua análise, contudo, é puramente laboratorial, sem nenhum viés
preventivo, rotulante ou generalizador de comportamentos. Há muitos ateus
empáticos e sociopatas religiosos.
Eles ainda citam, por exemplo, o livro de Baruch Aba Shalev sobre os 100
anos do Prêmio Nobel que traz todos os ganhadores do prêmio desde 1901
até o ano 2000. Ali 89.5% dos laureados eram fiéis de uma religião, ao passo
que somente 10.5% eram ateus ou livres-pensadores.
Ambiente lastimável
Caso as pesquisas de Jack e Boyatzis sejam procedentes, fico me
perguntando que resultado encontraria num mundo universitário repleto de
alunos e professores ateus. Os dados a seguir oferecem uma pista, e já
adianto que não são nada fáceis de ser digeridos. Todos foram retirados de
pesquisas publicadas em revistas indexadas.
Antes de apresentá-los, porém, é importante corrigir algo que certamente
passará pela mente de muitos. Não devemos confundir passeatas,
quebradeiras, greves e protestos como sinônimos perfeitos da defesa ética de
valores. Colocar pneus queimados na portaria da faculdade depois que uma
menina foi estuprada no estacionamento é como fazer cócegas na pata de
um elefante esperando que ele se renda ao domador. Temos de ser mais
inteligentes que isso e abolir outras práticas infelizmente normais de
incentivo à imoralidade sexual que permeiam os corredores universitários
sem que ninguém faça qualquer protesto a esse respeito.
Nenhum dos que protestavam com palavras de ordem contra o governo e a
polícia pelo estupro da jovem estudante teve coragem de arrancar do quadro
de avisos o cartaz do diretório estudantil que marcava para a próxima semana
a noite da “calcinha molhada” com direito a muita “pegação” e “beijos”
enquanto a bebida durasse – isso não é uma parábola, nem um
acontecimento isolado; aconteceu de verdade e mais de uma vez!
Se um religioso fosse àquelas classes para ensinar valores morais cristãos
em relação a sexo, aborto e conceito de família, seria certamente hostilizado,
chamado de falso moralista, chauvinista ultrapassado e antifeminista. Caso a
reitoria insistisse em deixar que ele continuasse seu ciclo de palestras dentro
do campus, líderes feministas apareceriam na porta com faixas, gritos de
ordem e peitos à mostra ostentando frases do tipo: “o corpo é meu, faço com
ele o que quiser”.
Enquanto isso, o cartaz-convite da festa da “calcinha molhada” continua lá
fora, nenhum diretório acadêmico protesta contra ele. Pelo contrário, retirá-
lo seria uma censura, uma volta à ditatura militar. A celebração da
sensualidade, da farra e da “pegação” aguarda os mesmos notórios
estudantes, que, poucos dias depois, estarão na portaria da faculdade
protestando por causa do estupro da colega de sala, e não me diga que uma
coisa não tem nada a ver com a outra. Qualquer estudante sabe que ações
humanas são interligadas e geram consequências. Os acontecimentos
históricos ocorrem numa trama de ações e reações em cadeia.
O narcotráfico jamais será algo justificável. No entanto, quando um
adolescente do morro se torna um traficante perigoso, não creio ser justo
condenarmos isoladamente sua conduta ou a tratarmos como problema
social, desconsiderando a gama de artistas, jogadores de futebol, cantores e
outras figuras midiáticas tão idolatradas que usam drogas e acabam
influenciando a conduta dos jovens.
Desvios de conduta continuam e continuarão sempre sendo algo
condenável, contudo, não devo me surpreender quando o comportamento
de um grupo sinaliza os frutos de uma condição social prévia de incentivos
àquela determinada conduta. Seria hipocrisia condenar os influenciados e
continuar adulando os formadores de opinião.
Queria que tudo o que escrevi anteriormente fosse apenas uma invenção
de minha cabeça, mas são episódios reais. Sabendo, no entanto, que você
certamente gosta de fatos, deixe-me apresentar alguns dados que foram
coletados e publicados em revistas indexadas.
Um estudo feito pela Universidade Federal de Alfenas e a Escola de
Enfermagem da USP de Ribeirão Preto revelou que universitários do sexo
masculino compartilham normas de seu meio sociocultural, que valorizam o
uso de álcool e/ou outras drogas como forma de lidar com as exigências e o
estresse da vida universitária, criar identidade e ter pertencimento neste
contexto social, reforçando a influência da cultura50. Provavelmente por
causa disso, o uso de substâncias psicoativas (SPA) lícitas (bebidas alcoólicas,
tabaco, medicamentos com potencial de abuso) e ilícitas (cocaína, maconha,
ecstasy, entre outras) entre jovens universitários brasileiros é o dobro da taxa
da população em geral, concluiu outra pesquisa da Unicamp51, ou seja,
posso cientificamente afirmar que universitários são a parcela da população
que mais consome drogas. Isso é terrível, pois combater o narcotráfico com
armas ignorando aqueles que consomem e incentivam o consumo de seu
produto é como encher uma banheira com o ralo aberto. Nunca
alcançaremos o objetivo!
Dados adicionais publicados no Jornal Brasileiro de Psiquiatria52
demonstraram que o uso de drogas na vida é mais frequente entre os
estudantes norte-americanos, que relatam usar mais tabaco, tranquilizantes,
maconha, ecstasy, alucinógenos, cocaína, crack e heroína que os
universitários brasileiros. Em contrapartida, os universitários brasileiros
relatam usar quase duas vezes mais inalantes do que os universitários norte-
americanos. Esse padrão se repete ao se analisarem as diferenças
intragênero. A isso soma-se que os universitários brasileiros parecem se
envolver com mais frequência no uso de bebidas alcoólicas, maconha,
tranquilizantes, inalantes, alucinógenos e anfetamínicos que seus pares da
população geral não universitária.
Uma série de outras pesquisas demonstrou empiricamente que a entrada
na universidade se tornou um período crítico de vulnerabilidade propício ao
começo e à manutenção do uso de álcool e outras drogas. Veja, isso não
significa dizer que religiosos são moralmente melhores do que ateus. O
ponto aqui é outro. Se a Universidade deseja mesmo, através de um discurso
excludente de Deus, fazer os jovens moralmente melhores, algo parece não
estar funcionando nos resultados finais.
Segundo o Levantamento Nacional sobre Uso de Álcool, Tabaco e Outras
Drogas entre Universitários, realizado pelo Grupo Interdisciplinar de
Estudos de Álcool e Drogas da Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo (USP) em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas Sobre
Drogas (Senad) e o Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE), 49% dos
universitários pesquisados já experimentaram alguma droga ilícita pelo
menos uma vez e 80% dos entrevistados commenos de 18 anos já afirmaram
ter consumido bebida alcoólica.
Os autores do estudo apontaram um elemento adicional que me chamou a
atenção. A população universitária seria uma amostra da população geral
interessante de ser estudada epidemiologicamente, pois a saúde mental dos
estudantes pode ser um fator diferencial nas Instituições de Ensino Superior
(IES)53. Infelizmente, concluíram os autores, esse mesmo ambiente
universitário é pródigo em facilitar algumas condutas que venham a lhes
proporcionar problemas futuros, como o consumo abusivo de álcool e outras
drogas, além da adoção de comportamentos de risco.
Quem incentiva?
Não quero promover nenhuma caça às bruxas nem ser leviano em
acusações improcedentes. Contudo, minha mente inquieta não resiste em
questionar se os livres-pensadores que assumiram a paternidade universitária,
expulsando Deus da sala de aula, estariam fazendo seu dever de casa como
educadores. Lembre-se, a juventude de hoje mais do que nunca precisa de
modelos morais de vida. Informação por informação eles buscam no Google.
Muitos dos que entram no curso superior vêm de famílias que ensinavam
valores que agora são questionados como conceitos pré-modernos. Outros
vêm de lares desestruturados e, carentes de afeto, buscam igualmente nos
professores um referencial de vida e afetividade. Em ambos os casos, é dever
do docente ser mais que um mero “transmissor de conteúdos”. Ele se torna
um mentor para muitos jovens que ainda estão em processo de formação.
Tarefa, é claro, que não deve ser confundida com a figura de um
“doutrinador”, que, ultrapassando o papel docente, torna os alunos pequenas
extensões de sua vaidade acadêmica.
O que vemos, no entanto, são jovens expostos pela mídia e por muitos
acadêmicos a uma enxurrada de apologias imbecis como uso normal de
drogas, sexo livre, coisificação da mulher como objeto sexual, vulgarização
da fé religiosa e desdém do Sagrado. Depois culpam um sujeito
indeterminado pelos males da sociedade ou insistem que a superação das
antigas tradições trará a verdadeira redenção humana.
Recentemente um canal de TV brasileiro puniu um famoso ator por
assediar uma camareira no horário de trabalho. A suspensão do artista se deu
em função da denúncia da funcionária e da repercussão do assunto nas redes
sociais. Conquanto seja completamente repreensível a atitude nada
apreciável do dito galã, fico me perguntando se o que ele fez não foi apenas
um reflexo de uma prática comum naquele ambiente e que todos
considerariam perfeitamente normal se não tivesse tido a repercussão que
teve.
Sua punição foi, na concepção de muitos, apenas um quadro “para inglês
ver”. Se não fosse a opinião pública, ninguém faria nada. Aliás, a própria
camareira foi hostilizada por outras colegas por ter denunciado o sujeito, e a
TV demonstrou uma atitude no mínimo dúbia ao punir o ator e fazer
apologia do mesmo ato em várias de suas novelas, minisséries e propagandas.
Vivemos uma sociedade bipolar que idolatra Nelson Rodrigues e dramatiza
repúdio pelas mesmas situações que constroem seus romances – aliás ele
nunca reprende as situações que recria, parecem coisas normais de uma
sociedade moderna que superou os tabus da moralidade patriarcal.
Saindo da TV para o mundo universitário, veja o que aconteceu: uma
festa, segundo testemunhas, regada a drogas, nudez e rituais de satanismo foi
a atração máxima do campus de uma universidade pública brasileira cujo
nome não direi, mas sei ter sido a mesma a barrar um evento religioso sob a
égide de que ali é um espaço público não confessional. Pois bem, estudantes
da mesma instituição promoveram um evento chamado “Xereca Satânik”
cujo ponto alto foi a sutura ao vivo de uma vagina como forma de protesto a
favor do movimento feminista.
Quando o escândalo foi parar na imprensa, um grupo de alunos e
professores protestou dizendo que aquele rito foi uma forma legítima de
denunciar os constantes casos de estupro ocorridos na própria universidade e
protestar contra a onda de conservadorismo imbecil que ainda existia na
sociedade, especialmente nas igrejas.
Sei que nem todos ali concordaram com esse argumento, mas não aceito a
explicação de que se trata de um ato isolado. Os alunos compareceram em
massa a algo que já estava anunciado deste jeito, com todas as letras na
faculdade, no mural dos diretórios acadêmicos e nas redes sociais. Não havia
muitos elementos surpresa nem ocultamento do propósito do encontro.
Todos sabiam do que se tratava e do gosto duvidoso daquela temática.
O comportamento dos estudantes certamente refletiu os valores ou
(des)valores que aprenderam na mídia e em sala de aula. Tanto que veja a
nota desconcertante do chefe de departamento em que o evento foi
promovido: “Embora não tenham sido feitos ‘rituais satânicos’ e o título do
evento fosse essencialmente provocativo (ao contrário do que o jornalismo
marrom afirmou), precisamos dizer que não haverá de nossa parte qualquer
censura a atos do gênero”.
Sempre gosto de dar fontes das citações que uso, mas neste caso abrirei
uma exceção para não expor ainda mais a instituição envolvida. Só sei que o
caso é dramático e não é único. Que dizer aos pais que confiam seus filhos a
uma instituição pública, na expectativa de que aprendam novos valores e
adquiram conhecimento que os torne cidadãos de bem para a sociedade?
Durkheim afirmava haver três elementos na moralidade humana: o espírito
de disciplina, o apego aos grupos sociais e a autonomia da vontade54. O
primeiro seria primordial já que a moral é um conjunto de regras a serem
seguidas. O segundo seria importante, pois é o grupo que estimula o
indivíduo à prática. O terceiro seria desejável no sentido de que é contrário à
imposição de regras à consciência do indivíduo.
Após esclarecer estes elementos, Durkheim se pergunta como construir a
moralidade na criança, e eu acrescentaria, “também no jovem”.
Curiosamente ele não fala dos pais, mas do professor a quem compara com
o sacerdote das antigas sociedades patriarcais, que atuava em nome de Deus.
Suas regras não estariam em discussão, pois ele (professor/sacerdote) é o
representante das leis, uma autoridade. Só a autoridade da regra será maior
que a sua. Defende, portanto, uma sanção expiatória, necessária para
simbolizar uma defesa moral que leve a denunciar, condenar e punir o erro,
sem, é claro, recorrer à violência corporal, que para Durkheim seria um
despotismo.
Se Durkheim estiver certo, o silêncio e a “não censura” de acadêmicos que
preferem não se passar por conservadores pré-modernos são deploráveis.
Justamente por isso, o posicionamento dos alunos diante do uso de drogas e
entorpecentes é desconcertante: das representações dos universitários de
tecnologia, 60% foram favoráveis ao uso e 40% desfavoráveis; dos da área de
saúde, 44% tiveram um posicionamento favorável, 15% foram desfavoráveis
e 41% neutros. Das representações dos universitários da área jurídica, 32%
foram favoráveis e 68% desfavoráveis.
Modelos de vida?
Admito, no entanto, que o peso da crítica não deve cair somente em cima
dos docentes. Os próprios pais dessa nova geração já se encontram adaptados
aos modismos da atualidade. A ordem do dia é preparar jovens para um
mundo de realizações pessoais, onde somente pessoas bem-sucedidas são
felizes. Veja se não é essa a imagem que o mundo midiático nos passa. As
meninas podem até admirar Madre Teresa de Calcutá, e os rapazes,
Mahatma Gandhi, mas na hora de escolher seus modelos de vida preferem
se parecer com Beyoncé ou Justin Bieber. O ideal de vida não é ter a
renúncia de São Francisco, e sim o sucesso de Mark Zuckerberg, fundador
do Facebook. Gandhi pode até ter mobilizado milhões e pacificado uma
nação. E daí? Sua vida foi chata, ele não teve os sete bilhões de dólares de
Zuckerberg, nem os 500 milhões de seguidores do Facebook. Logo, quem
você acha está sendo a inspiração e o modelo de vida para muitos de nossos
jovens? Com quem eles querem se parecer? A quem estão sendo
incentivados a imitar? Um santo ou um pop star?
É por isso que algunsdiscursos de prevenção às drogas parecem tão
patéticos. Descriminalizar, tratar o assunto como saúde pública, combater
traficantes, aumentar a fiscalização nas fronteiras, conscientizar através de
cartazes e frases… Já estamos cansados desses chavões. Todos os esforços,
destituídos de um efetivo tratamento da alma humana que permanece
doente, soam como a história do homem que pega a mulher com outro no
sofá e queima o sofá achando que assim resolverá o problema.
Veja que quadro elucidativo temos nestes dados: quanto às causas do uso
de maconha, a mesma enquete citada mais anteriormente demonstrou que a
maioria dos estudantes aponta a fuga dos problemas como motivador para
esta conduta: 48% da área de tecnologia, 49% da jurídica e 61% de saúde55.
E, antes que eu seja mal-entendido, meu discurso aqui nada tem a ver com a
polêmica sobre a liberação do uso medicinal da Cannabis. Estou falando de
pessoas drogadas, não de uso medicamentoso de uma planta.
Disto posto, pergunto: Não seria mais sensato usar a energia gasta na defesa
da legalização das drogas em trabalhos de ajuda espiritual e emocional?
Uma abordagem assim talvez ensinaria melhor os alunos a enfrentarem os
problemas em vez de fugir deles através de um entorpecente ou uma
bebedeira. E não estou falando de autoajuda – as livrarias das faculdades
estão lotadas de livros assim e eles também não estão resolvendo o problema.
Refiro-me a uma abordagem global que envolva autoajuda, heteroajuda e, a
tão negligenciada, “alto” ajuda, isto é, a ajuda que vem de Deus.
Goodbye, Deus
Curioso que quando a chamada “utopia do paraíso” ainda era uma
promessa a ser considerada, milhares de cristãos não tiveram medo de
enfrentar a fome, a miséria e até a ameaça de morte, pois criam que uma
força sobrenatural estaria com eles nos momentos mais difíceis. Por isso
alguns mártires morreram cantando, e as primitivas catacumbas cristãs estão
repletas de frases de esperança e otimismo.
Mas alguns mais espertos resolveram contar para os jovens que tudo isso é
mentira. Não há céu, nem força divina alguma operando em favor deles.
Lembrando a mencionada pesquisa de Jack e Boyatzis, o jeito ateu de pensar
– valorizando mais a razão e menos a interpessoalidade – gerou
universitários órfãos que não sabem o que fazer diante dos problemas do dia
a dia.
Segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino
Superior (ANDIFES) cerca de 15% dos universitários passam por períodos
de depressão em algum ponto do curso, enquanto a média para jovens de até
25 anos fora da universidade fica em torno de 4%. Jovens universitários têm
de 3 a 4 vezes mais chances de se matar do que jovens fora da faculdade e
esse número pode ser ainda mais alto entre alunos das áreas de saúde56.
Se, como afirmou Edwin Shneidman, ateu e especialista em suicidiologia,
“[a] educação é o item mais importante na diminuição dos índices de
suicídio”57, das duas uma: ou algo está errado com a educação que
ofertamos ou ele falou uma grande bobagem.
Tive acesso a um estranho livro intitulado O dicionário de suicidas
ilustres, preparado pelo artista plástico J. Toledo. Chamou-me a atenção o
fato de que a grande lista de suicidas era composta por artistas, escritores,
filósofos, médicos e psicanalistas, a maioria dos quais, livres-pensadores.
Depois fiquei surpreso em descobrir que o próprio organizador da obra, J.
Toledo, resolveu, ele mesmo, dar cabo à sua vida.
Não me tome por insensível ao mencionar esse assunto do suicídio. Quem
o pratica por problemas emocionais é uma vítima, não um delinquente.
Contudo, não seria esse compêndio, somado às filosofias que esses
intelectuais defenderam e aos posicionamentos morais ensinados em sala de
aula, um espelho sobre o qual nossa juventude drogada, prostituída e suicida
reflete sua própria imagem?
Temas antes valorizados como a base da sociedade, hoje são vulgarizados.
Viraram caricatura moralista. Em seu lugar promove-se uma exagerada
adaptação de valores ao gosto do mundo, da moda e da cultura que nos
rodeia. Em nome da sobriedade e da prudência não queremos ser
marginalizados, ninguém quer ser esquisito. A ordem do dia não é lutar
contra o mundo, mas adaptar-se a ele.
Nesse sentido, até mesmo alguns princípios hoje defendidos, como o
famoso “politicamente correto”, caem na ambiguidade de se saber se são
defendidos porque o sujeito pensa realmente daquele jeito ou foi obrigado a
crer assim pela circunstância que o rodeia. Portanto ele hoje defende a
igualdade de raças, porque é louvável pensar desse jeito (apenas uma
minoria de loucos continua professando um racismo declarado). Contudo,
se o mesmo indivíduo vivesse no Brasil colônia, provavelmente estaria
defendendo a escravidão dos negros, contrário aos ideais de uma minoria
abolicionista.
“Caia fora, Deus! Você e sua corja de teólogos conservadores não têm
lugar na universidade!” E Deus, educadamente, saiu, deixando o lugar para
o discurso exclusivo do materialismo e da comprovação científica. As
crenças religiosas tornaram-se questionáveis cientificamente e foram
provadas como inválidas. O homem poderia finalmente ser dono do seu
destino, escolhendo o que é certo e errado. Porém, por uma triste ironia da
história, o céu não foi o único a ficar vazio.
Como bem resume o colunista Antônio Prata:
Nós expulsamos os deuses, mas preenchemos o vazio com um antropocentrismo
tão autoconfiante quanto ingênuo. Cremos que com sismógrafos e exercícios
físicos, com boas políticas e baixo teor de gorduras, com os algoritmos corretos e
pensamento positivo, estaremos livres de todo o mal.58
Os índices, no entanto, demonstram que o tal otimismo de um mundo
melhor sem Deus não passou de devaneio. Estávamos bêbados quando
anunciamos esta besteira.
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Reprovados!
O campus universitário, forjado para ser um oásis do conhecimento,
tornou-se o deserto das questões existenciais. Os livres-pensadores tornaram a
juventude livre de Deus e os aprisionaram em seus próprios dramas. É no
mínimo irônico que, com tanta informação filosófica e racional, os
problemas pessoais precisem ser resolvidos à base de álcool e drogas.
Não entendo como justamente aqueles que defendem a bandeira da
autonomia racional (daí o nome livres-pensadores) fabriquem tantos
repetidores de conceitos alheios. Pois, como se não bastassem os terríveis
dados apontados anteriormente, testes mostraram que alunos e egressos de
famosas universidades ainda sofrem de muitos problemas cognitivos tais
como:
Dificuldade de expressar ideias próprias, criatividade;
Dificuldade de se expressar por escrito;
Produção de texto e inteligência fluída;
Dificuldade de entender o que leram (analfabetismo funcional);
Dificuldade de reflexão;
E, a já comentada, dificuldade de lidar com questões existenciais.59
Já que mencionei tantos exemplos de besteirol que fazem sucesso
travestidos de intelectualidade, nada mais justo que citar o “grande” Homer
Simpson – filósofo dos novos tempos, que nos brindou com mais uma pérola
de “sabedoria”: “O problema das consequências”, dizia ele, “é que elas vêm
depois”. Aforismo redundante que não deixa de ser algo a se pensar.
46 Paulo Bitencourt. Liberto da religião: o inestimável prazer de ser um livre-pensador (Portuguese
Edition), eBook.
47 Anísio Teixeira. Educação e universidade (Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1988).
48 Michel Onfray. Traité d’athéologie – Physique de la Métaphysique (Paris: Grasset & Fasquelle,
2005).
49 Jack AI, Friedman JP, Boyatzis RE, Taylor SN. “Why do you Believe in God? Relationships
between Religious Belief, Analytic Thinking, Mentalizing and Moral Concern”, PLOS ONE (11[5],
2016): e0155283. Disponível em . Acesso em: 28/08/2017.
50 Disponível em .
Acesso em: 28/08/2017.
51 Disponível em .Acesso em: 28/08/2017.
http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0155283
https://doi.org/10.1371/journal.pone.0155283
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v50n5/pt_0080-6234-reeusp-50-05-0786.pdf
https://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/uso�-de�-drogas�-por�-universitarios
52 Disponível em . Acesso em: 28/08/2017.
53 Disponível em . Acesso em: 28/08/2017.
54 É. Durkheim. Ética e sociologia da moral (São Paulo: Landy, 2003); idem. Sociologia, educação
e moral (Portugal: Rés, 2. ed., 2001).
55 M.P.L. Coutinho; L. F. Araújo; B. Gontiès. “Uso da maconha e suas representações sociais: estudo
comparativo entre universitários”, in Revista Psicologia em Estudo (Maringá: set./dez. 2004):
469-477.
56 Disponível em ; . Acesso em:
28/08/2017.
57 Apud Paula Fontenelle. Suicídio: o futuro interrompido (São Paulo: Geração Editorial, 2008).
58 Folha de São Paulo, 23/03/2011, p. A16.
59 M.C. R. A Joly; A. A. A. Santos; F. F. Sisto (orgs.). Questões do cotidiano universitário (São Paulo:
Casa do Psicólogo, 2005).
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0047-20852008000300005&script=sci_abstract&tlng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0047�-20852013000300004&script=sci_abstract&tlng=pt
http://www.jornalismounaerp.com.br/blog/2017/02/13/indice�-de�-depressao�-e�-maior�-entre�-universitarios/
http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v25n3/a05v25n3.pdf
Capítulo 7
Crendices e devaneios
Em 1992 Steve Martin estrelou uma comédia intitulada Leap of Faith [O
pulo da fé]. A versão brasileira não poderia ter um título melhor: Fé demais
não cheira bem (intraduzível para o inglês). Eles mostraram de maneira
bem-humorada a tragédia de pregadores charlatães que brincam com a fé do
povo. Interessante que o enredo termina com um desfecho surpreendente e
até sério; uma demonstração real de fé que mexe com os brios do falso
pregador. É um filme velho, mas que vale a pena assistir.
O charlatão e o crédulo: eis uma mistura perigosa que resulta em muitos
estragos sociais, especialmente para as religiões. Apesar do intercâmbio
popular, crente e crédulo não são a mesma coisa. Machado de Assis os
diferenciou muito bem ao descrever Rubião – personagem do romance
Quincas Borba – como um sujeito “mais crédulo que crente”60. Até as
raízes etimológicas são distintas: crente vem do latim credente, que significa
aquele que crê, confia, a partir de uma evidência racional. Já o adjetivo
crédulo vem do latim credúlu e se refere ao ingênuo que crê facilmente em
qualquer coisa.
Não pense que charlatanismo e crendices são “privilégios” apenas do
mundo religioso. A sociedade como um todo está repleta de abusos e
crendice na política, nas ideologias, na mídia, no marketing e também na
academia. Nem mesmo cientistas especializados estão imunes à
possibilidade de um devaneio particular.
Veja o caso do físico René Prosper Blondlot, conforme aparece no The
Skeptic’s Dictionary [Dicionário dos céticos], editado por Robert Todd
Carroll61. Sua amarga experiência ocorreu no início do século 20, em plena
era das grandes descobertas relativas ao átomo. Na ocasião, respeitados
cientistas pesquisavam as características ocultas da matéria, e a descoberta
dos raios X havia sido uma delas. Blondlot, que vivia na França, anunciou
num congresso em 1903 que, enquanto tentava polarizar os raios X, acabou
descobrindo um outro raio que emanava de qualquer tipo de material,
exceto madeira recém-cortada e metais manipulados. Esse raio era invisível e
só poderia ser detectado em forma de espectro, quando irradiado em direção
a uma amostra de sulfito de cálcio. Ao receber a radiação, esse composto
químico emanava um leve brilho percebido através de um complicado
aparelho de detecção inventado pelo próprio Blondlot. Sua descoberta foi
batizada de Raios N e causou um tremendo furor no meio científico.
Curiosamente alguns físicos “confirmaram” a existência do tal raio em seu
laboratório de pesquisa. Outros, por sua vez, buscavam meios de construir
novos aparelhos capazes de detectar o suposto brilho.
Por fim, a revista Nature enviou o especialista Robert W. Wood, da
Universidade Johns Hopkins, para acompanhar o experimento ao lado de
Blondlot. Wood suspeitava que os Raios N eram uma ilusão, então usou um
truque simples para enganar o colega. Sem que ninguém percebesse, ele
retirou do aparelho o prisma que possibilitaria ver qualquer luz que
emanasse da substância. Sem essa peça a máquina não poderia funcionar.
O resultado foi assustador: mesmo sem o prisma, Blondlot continuava
vendo o brilho da amostra. Um brilho que não existia. Pior, o assistente de
Blondlot também afirmava estar vendo o brilho. Na mudança de uma
experiência para outra, pois o processo era repetido várias vezes, Wood
recolocou o prisma e pediu ao avaliador para avaliar. Esse, contudo, pensou
que Wood estaria tirando a peça, quando na verdade estava recolocando.
Resultado: mesmo com o prisma de volta à máquina, tanto o assistente
quanto Blondlot afirmavam não estar vendo mais o espectro. Um claro sinal
de alucinação coletiva.
Quando o truque veio à tona, o cientista francês entrou em depressão,
ficou louco e acabou morrendo atormentado pelo amargo incidente. E os
outros que também disseram ter visto os tais Raios N? A conclusão dos
especialistas é que neste caso não se trata de má-fé ou desonestidade
científica. Aqueles acadêmicos foram vitimados por uma autossugestão que
os levou a ver mais que havia. Às vezes a vontade de se chegar a um
determinado resultado é tão grande que o pesquisador é levado a ver coisas
que na verdade não estão ali.
Devemos tomar muito cuidado com isso, pois genialidade e acúmulo de
estudos não constituem um salvo-conduto contra equívocos e neuroses. Pelo
contrário, podem até contribuir com a demência em alguns casos. A história
está repleta de homens e mulheres talentosos que passaram a vida trafegando
por um vértice em que loucura e genialidade pareciam caminhar de mãos
dadas. Veja os exemplos de Di Cavalcanti, Van Gogh, Nietzsche, apenas
para citar alguns.
Se me permite uma dica, mais do que uma vida de clausura numa
biblioteca entupida de livros e computadores plugados na Internet, o segredo
da clareza mental está nos remédios da natureza: alimentação e descanso
equilibrados, abstinência de drogas lícitas e ilícitas, exercícios físicos
regulares, ar puro e, principalmente, paz de espírito. Mesmo casos mais
graves, que demandem a ação de um especialista, podem ser amenizados ou
até curados pela aquisição de hábitos saudáveis. Já diziam os latinos: mens
sana corpore sano – a mente estará sadia se o corpo estiver sadio e vice-versa.
Fideísmo religioso
A manipulação religiosa da fé é algo que me irrita profundamente.
Conheço pessoas sinceras que nutrem reservas quanto à crença espiritual
por causa da má conduta de um religioso ou devido a uma propaganda
enganosa feita por um charlatão em nome de Deus. Não sou perfeito e
confesso meu receio diante de pessoas “certinhas demais”. Contudo, tenho
constantemente a preocupação de não ser um obstáculo entre Deus e um
não religioso sincero de coração. Afinal de contas, a vida dos religiosos pode
ser a única Bíblia que muitos estão lendo fora das Igrejas, e acredito que
alguns se tornem ateus, simplesmente porque não puderam aceitar a
caricatura de Deus que foi rascunhada para eles. Não é por menos que a
filosofia da “Morte de Deus”, expressa por Nietzsche, termina com um
louco gritando pelos becos de um mercado: “Deus morreu! Nós o matamos!
Todos nós somos seus assassinos […] e o que são estas igrejas senão túmulos
e sepulturas de Deus?”62. O sentido expresso por Nietzsche parece ser o de
que a religião criou a ideia de Deus e a própria religião contribuiu para odemolir.
Pense num curandeiro dizendo que as pessoas precisam ter fé
inquestionável para serem curadas por seu intermédio. Ele pode até ter uma
Bíblia na mão e gritar o nome de Jesus que isso jamais será fé; trata-se, na
verdade de um fideísmo. Você já ouviu falar nesta palavra? Fideísmo é o
sentimento do crédulo, é uma fé cega que ignora ou minimiza o papel da
razão para se chegar à verdade suprema. Não há demanda alguma por
evidências; o “fideísta” acredita por acreditar. É como um místico apostando
suas cartas num amuleto. Ele realmente acredita, sem fundamento algum,
que o colar de ossos colocado no pescoço livrará seu corpo das doenças e das
flechas do inimigo. Para o charlatão, não poderia haver situação mais
confortável, pois, caso alguém não seja curado (e muitos certamente não o
serão), ele pode simplesmente dizer que o milagre deixou de ocorrer, não
porque ele mesmo fosse um impostor, mas porque faltou fé da parte daquele
que buscava a cura.
O antigo historiador Heródoto nos conta que no século 5 a.C., Creso, rei
da Lídia, fora ameaçado por Ciro II, rei da Pérsia, que acampou com seus
soldados na margem leste do Rio Hális. Na dúvida se deveria enfrentar o
inimigo ou permanecer seguro na cidadela de Sardes, Creso consultou uma
pitonisa (ou seja, uma vidente) do Oráculo de Delfos. Envolta pelos vapores
que emanavam do chão, a resposta da médium foi: “Se cruzares com teu
exército o Rio Hális, destruirás um grande reino”. Animado pela mensagem
que cria vir direto do deus Apolo, Creso saiu em combate e foi
vergonhosamente derrotado. Quando cobrou do Oráculo uma explicação
pelo acontecido, a vidente justificou que a profecia se cumpriu de fato. O
grande reino a ser destruído era o dele e não o de Ciro II63. Esse era um
homem de muita fé, pena que fé na pessoa errada.
O absurdo da fé
Uma frase latina, erroneamente atribuída a Tertuliano, pode ser
mencionada como a bandeira do fideísmo: credo quia absurdum est (Creio
porque é absurdo)64. Os fideístas apelam demais para o sentimentalismo em
detrimento da razão. A ideia é: “Deus disse, eu creio, isso é suficiente”. O
problema é que eu posso tomar esse mesmo raciocínio para acreditar em
absurdos.
Não creio que a razão possa substituir a fé ou ter prioridade em relação a
ela, mas também não vejo como poderia compreender e aceitar as
proposições da fé (especialmente aquelas reveladas por Deus) senão através
do exercício das habilidades racionais. O fideísta crê para crer mais ainda – é
um círculo vicioso. Eu, pelo contrário, prefiro “crer a fim de entender”
(credo ut intelligam). Deus seria um tirano se nos obrigasse a crer 100% no
vácuo, sem um mínimo de evidências que nos fizesse reconhecer que a voz
que ouvimos é realmente dele, e não de nossa imaginação doentia.
Certa vez, ao dar uma entrevista num programa de talkshow, falei sobre o
fideísmo e o entrevistador, que era Jô Soares, perguntou-me se a fé em Jesus
demonstrada pelo centurião romano não seria uma espécie de fideísmo. Ele
estava se referindo ao episódio descrito em Mateus 8:5-13, em que um chefe
do exército imperial pede a Cristo que cure seu servo a distância, sem a
necessidade de ir à sua casa. Jesus disse que o servo já estava curado e ele
saiu crendo nisso, mesmo sem evidência alguma. Seria, portanto, este
episódio um exemplo de fideísmo “em Jesus”? – provocou o apresentador.
O que Jô Soares não havia levado em conta, e eu mostrei isso em minha
resposta, é que o centurião tinha sim muitas evidências de Jesus. Ele morava
nas vizinhanças de Cafarnaum e certamente já tinha visto muitos milagres
realizados pelo Nazareno. Na versão de Lucas (que difere um pouco da de
Mateus), é dito que ele tinha ouvido falar de Cristo e, por isso, pediu aos
judeus mais velhos que levassem seu pedido ao Mestre. Ele jamais faria isso
se não soubesse a quem estava recorrendo. Era, portanto, uma fé legítima
que se baseava numa evidência – o comportamento exemplar de Jesus
somado ao testemunho que outros deram dele.
Há somente uma situação em que devemos crer sem questionar: quando já
conhecemos suficientemente os atributos daquele que está nos dizendo
alguma coisa. Veja se não é assim na sua vida: quando você conhece a
autoridade de uma pessoa e a competência com a qual ela age em sua
especialidade, você faz exatamente o que ela manda mesmo que não
entenda o porquê da ordem ou tudo pareça um grande absurdo. Imagine
que você esteja num prédio em chamas e um bombeiro apareça para salvá-
lo. Ele dirá: “Se quiser ser salvo, faça exatamente o que eu digo!”. Você será
um tolo se não obedecer imediatamente. Todos temos evidências de que um
bombeiro sabe o que está fazendo. Ele, então, quebra a janela e manda você
saltar de uma altura de quase vinte metros. Na verdade, há um colchão de ar
lá em baixo, mas você não sabe disso e não há tempo para muitas
explicações. Mesmo com medo e sem entender, se for inteligente, você pula.
O bombeiro sabe o que está dizendo, não compensa parar para questioná-lo.
É esse tipo de confiança que Deus pede em algumas situações específicas
da vida. Veja, porém, que ele primeiro dá evidências de quem é para depois
pedir que creiamos irrestritamente em sua pessoa. Mais à frente falaremos
sobre essas evidências; por ora, basta saber que, segundo a perspectiva
bíblica, é somente depois que o relacionamento de confiança está
plenamente criado, que Deus dá ordens explícitas que espera sejam
cumpridas inquestionavelmente para o bem daquele que crê, e não se
esqueça: essa situação de obedecer sem questionar é o passo número dois da
aproximação de Deus. Voltando ao exemplo do incêndio, eu jamais
obedeceria a um estranho no meio das chamas se não tivesse uma
informação mínima de quem ele era e qual a sua capacidade real de me tirar
dali.
O desespero pode levá-lo a seguir até mesmo um louco se o incêndio for
num hospício cheio de gente achando que é Nero. Uma fé racional, no
entanto, ajuda a saber quem, de fato, deverá merecer minha confiança
naquela multidão de vozes pedindo e oferecendo socorro.
Perguntar não ofende
É no mínimo interessante que, de acordo com a Bíblia, Deus tenha
escolhido exatamente os judeus para trazer o Messias ao mundo. Sabe por
que digo isso? Porque, talvez mais do que os gregos, esse foi o povo mais
questionador que havia na face da Terra. Até hoje os judeus questionam
tudo. São especialistas na arte de fazer perguntas.
Lembro-me de um israelense que conheci em Jerusalém tentando
conceituar o seu próprio povo para mim. Segundo ele, depois de conversar e
vender, o que todo judeu mais gosta de fazer é perguntar coisas. Tire as
fórmulas interrogativas e ele não saberá o que dizer. Tanto é, prosseguiu ele
numa típica piada judaica, que certa vez perguntaram a um rabino: “Por
que vocês, judeus, sempre respondem a uma pergunta com outra
pergunta?”. Ao que ele prontamente respondeu: “Há algum mal nisso?”.
Como bom judeu que era, Jesus de Nazaré se limitou em vários encontros
a fazer perguntas. Ele evitava fórmulas prontas que trocassem a reflexão
pessoal pela repetição sem sentido de um dogma ou conceito. Houve uma
vez que ele até repreendeu seus patrícios por ficarem repetindo frases
decoradas em orações públicas, sem ao menos lembrar o sentido do que
estavam dizendo (Mateus 6:7-8). Se Sócrates, o pai dos questionamentos
maiêuticos, morreu afirmando que devia um Galo para Asclépio, Jesus, que
não teve esse título, foi o exemplo maior de alguém que não temeu fazer
perguntas até o fim. “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”
(Mateus 27:46) foram quase suas últimas palavras. O interessante é que,
desta vez, não houve nenhuma resposta audível do céu e, mesmo assim,
segundo a narrativa do Evangelho, ele se entregou nas mãos de Deus. Jesus
realmente conhecia o Pai, por isso confiava nele mesmo diante do terrível
silêncio!
Quanto à legitimidade histórica destes episódios envolvendo Jesus e seu
ministério, discutiremos em outro momento. Um passo de cada vez. Por ora,
a menção destas passagens bíblicas nos serve apenas para reforçar a tese de
que a fé temespaço para o questionamento saudável.
A meu ver, melhor do que a nomenclatura do Homo sapiens popularizada
por Carl Linnaeus em 1735, seria mais apropriada a bem-humorada sugestão
de Varro, Cícero, Quintiliano e outros autores antigos que chamavam o ser
humano de Homo curiosus65, e “curiosidade” é nossa marca registrada.
Levante a mão quem nunca se machucou na infância como resultado da
curiosidade em fazer algo que disseram ser proibido. De um dedo na tomada
a uma queimadura por brincar com fósforos, todos temos cicatrizes de uma
infância cheia de curiosidades, buscas e questionamentos. Aquele que não
tem dúvidas seja o primeiro a lançar a pedra!
“Melhor do que ter todas as respostas – dizia o cartunista do The New
Yorker James Thurber – é estar entre aqueles que formularam as perguntas.”
66 Realmente, desde Einstein acredita-se que saber formular bem um
problema, isto é, fazer uma pergunta bem bolada, é algo talvez mais
importante que encontrar as soluções, pois, sem essa formulação clara e
objetiva, as respostas ficariam vagas e não serviriam para nada. Foram,
portanto, as perguntas que ajudaram a impulsionar a história, pois, para que
os homens fossem atrás das soluções, alguém teve de perceber um problema
e sistematizá-lo para os demais.
Portanto questione, questione à vontade. Não há lei que proíba isso. Mas
cuidado para não cair no devaneio. Um erro de dosagem pode ser a
diferença entre um remédio e um veneno.
Questionar na medida certa
Questionar é preciso, mas formular bem as perguntas é uma arte. Procuro
sempre dizer a meus alunos que, ao formularem uma pergunta, eles devem
saber com exatidão o tipo de resposta que estão procurando e que sejam
perguntas respondíveis dentre os padrões do bom senso. Perguntas feitas
simplesmente por amor ao questionamento têm o seu valor na retórica, mas
aqui não levam a nada. Seriam como um adolescente que se beija num
espelho e diz para todo mundo que está namorando a menina mais linda do
bairro.
As indagações humanas não podem ser um fim em si mesmas, caso
contrário terminam levando à especulação. É como ficar procurando a
terceira margem de um rio ou discutir quantos anjos caberiam na ponta de
um alfinete. Você certamente conhece a parábola atribuída a Voltaire e
aplicada a teólogos e metafísicos, mas que, no fundo, serve para qualquer
indivíduo: há questionadores que são como um homem cego num quarto
escuro procurando um gato preto que não existe. E o que é pior: tem gente
que jura ter encontrado o gato! Não obstante a advertência que vem desta
parábola, preciso dizer que é muito limitado o método de acreditar apenas
naquilo que se viu. Este seria o extremo oposto do fideísmo, e extremismo
será sempre um lado da verdade que ficou louco.
Foi-se a época em que era academicamente chique declarar-se um
convicto São Tomé que tinha de “ver para crer”. Ora, eu até hoje não vi
pessoalmente o DNA (a não ser em desenhos feitos em livros) e nem por isso
duvido que ele exista. Antes que algum biólogo me mande fotos pela
Internet, para compensar minha limitação nesta área, quero lembrar que
existem coisas “reais” que nem mesmo os especialistas conseguiram ver.
Peça a um físico para lhe mostrar uma foto original (sem nenhum efeito de
computador) que permita a ambos “verem” o Big Bang ou a Matéria Escura.
Eles sabem que ambos existem, mas ninguém jamais os contemplou de fato,
viram apenas “evidências que apontam para a sua existência”, como a
observação em 2006 de um choque galáctico registrado pelo telescópio de
raios X Chandra da Nasa que sugeriria a realidade da Matéria Escura. Trata-
se de uma evidência, não de uma certeza absoluta baseada em testemunho
ocular direto. Mesmo assim, a grande maioria dos físicos acredita que essa
substância misteriosa e invisível compreende cerca de 95% de toda a matéria
que compõe o universo.
Situações como estas me fazem concluir que em muitos rincões da ciência
e da racionalidade o correto é “crer para ver”, e não o contrário. Eu sei que o
método científico normalmente exige repetições que garantam a melhor
explicação para um evento, isto é, para aquele algo que ninguém consegue
ver (como a força gravitacional). Isso não seria necessariamente “crer para
ver”, pois, segundo eles diriam, é muito mais do que somente crer. Contudo,
há proposições legitimamente científicas que por natureza, complexidade e
tamanho fogem desse ideal de um ambiente controlado.
Sendo assim, por que então eu deveria mudar a ordem dos fatores em
relação a Deus? Afinal, se ele existe mesmo deve ser muito maior e mais
complexo que a Matéria Escura. Logo, não o verei diretamente, mas
observarei evidências que apontam para sua realidade criadora.
Qualquer ente mensurável ou menor do que o universo não é grande o
bastante para que eu possa absolutamente chamá-lo de Deus. Por maior que
ele seja, não passaria de mais um pontinho no universo. O Sol, por exemplo,
é esplendoroso e já foi diversas vezes cultuado no passado. Ainda assim, é
apenas uma fagulha cósmica, pequena demais para ser objeto de minha
adoração. Já um suposto Deus Criador de todas as coisas, inclusive da
Matéria Escura, este sim estaria acima da minha capacidade de verificação
direta. É maior do que tudo e não estou seguro de que haja um espaço que
possa cabalmente contê-lo. Longe de ser uma visão pessimista e apofática,
essa demanda mental pela imensidade divina abre, paradoxalmente, um
enorme espaço para conhecê-lo. Como disse o rabino Abraham Heschel:
“Estamos mais perto de Deus quando fazemos perguntas do que quando
pensamos que temos as respostas”67.
Funciona assim o raciocínio: conquanto eu não possa “verificar
laboratorialmente a Deus”, devido à minha limitação e à grandeza que
suponho que ele possua, posso legitimamente fazer perguntas sobre ele.
Assim, caso ele exista, não é inverossímil a chance de que ele mesmo
responda de uma forma inteligível à minha mente finita. Mesmo que para
isso ele tenha de se “adequar” à minha linguagem e compreensão.
Ouse saber
A palavra de ordem kantiana Sapere aude! (ouse saber) é muitas vezes
aplicada para sustentar um raciocínio individualista que praticamente nega o
testemunho de outrem, especialmente daqueles que viveram antes de nós68.
É a falácia do argumentum ad novitatem ou a apelo à novidade. Ela
consiste em afirmar que algo é melhor ou mais correto apenas porque é
novo ou mais novo. Assim, um escritor cristão como Paulo jamais poderia
ser equiparado à grandeza de um Sartre. Afinal, pobre Paulo, ele acreditava
que Jesus ressuscitou e era o próprio Filho de Deus! Não podemos esperar
muito de alguém que vivia numa época de fábulas, anterior às descobertas
da modernidade. Nós, não! Somos herdeiros do racionalismo iluminista, há
tempos superamos a ideia do milagre, do mito, do sobrenatural. Sartre é
definitivamente melhor. Ora, não esqueçamos o alerta do próprio Kant para
que pensadores modernos jamais ignorassem os limites da razão humana. A
modernidade vive se esquecendo deste conselho.
É claro que Kant, a meu ver, exagerou um pouco na dosagem de sua
reflexão, mas ela tem um elemento de validade em sua advertência. Na
época em que ele viveu, a atitude crítica era um fenômeno dominante na
Europa. A pessoa crítica ou racional seria aquela com capacidade de pensar
apenas por si sem aceitar totalmente o que os outros tivessem como dogmas.
Veja, não é uma questão de avaliar o dogma, e sim de rejeitá-lo a priori.
Então, por ter sido ainda mais crítico que seus contemporâneos, Kant
questionou até mesmo a definição de sua época como o apogeu da razão e
sistematizou o que ele chamava de os limites da razão humana. Para ele, a
razão tende a ultrapassar os limites da experiência, fazendo afirmações
baseadas apenas em conceitos, por si mesmos, insuficientes para qualquer
declaração objetiva.
Como disse, acho que Kant exagerou, mas tomo parte de suas observações
e as aplico tanto na esfera individual quanto coletiva. O infinito não cabe em
minha mente, todas as minhas experiências são apenas recortes pessoais da
realidade, e não a totalidadedo que existe. Mesmo no que diz respeito ao
conhecimento acumulado pela humanidade, devemos admitir que nenhum
de nós pode ser especialista em tudo para obter conhecimento direto de
todas as áreas do saber. Precisamos da mediação de outros, inclusive
daqueles que nos antecederam. Eu, particularmente, que não entendo nada
sobre física, preciso ter fé no testemunho dos astrônomos para acreditar
naquela tal Matéria Escura que me disseram existir. Se negasse tudo o que
não vejo por mim mesmo, tudo que não entendo com a minha razão
autônoma, eu jamais aceitaria o que está escrito nos livros de Einstein ou
Stephen Hawking.
É claro que há coisas mais simples que posso verificar por mim mesmo.
Não preciso de Newton para perceber a lei da gravidade. Um tombo é o
suficiente para me lembrar de que ela existe. Contudo, a Teoria da
Relatividade é mais complexa, preciso aceitar pela fé o que Einstein
escreveu, pois não consigo compreender sequer o bê-á-bá da questão. Aliás,
não somente eu, mas 99٪ da raça humana. Dizem que certa vez um repórter
perguntou a Arthur Eddington, um dos maiores especialistas em
Relatividade Física da década de 1920, se era verdade que no mundo só
havia três pessoas que compreendiam bem a teoria de Einstein. Depois de
uma longa pausa, ele respondeu: “Eu estava tentando descobrir quem seria
essa terceira pessoa”69.
Agora imagine alguém que se diz inteligente negando a Teoria da
Relatividade sob a égide de que o que sabemos dela foi escrito por homens!
Seria ridículo, não é mesmo? O que dizer então de pessoas que negam a
priori a Bíblia, sob a alegação de que ela é um livro escrito por homens?
Antes que eu seja apedrejado por comparar escritores bíblicos à genialidade
de Einstein, deixe-me dizer que embora houvesse gente simples dentre seus
autores, também havia muitos intelectuais naquele time. Paulo, que já
mencionamos anteriormente, não ficava devendo nada para Sócrates, e os
tratados de Moisés chegam em alguns pontos a ser superiores ao código de
Hamurabi e às jurisprudências de Cícero.
Tudo, portanto, pode ser resumido a uma disposição mental de abrir ou
não a possibilidade de ouvir o outro lado da história. Algumas vezes a
história acaba tendo três lados: o meu, o do outro e a verdade! Seria possível
ouvir a Deus nessa multidão de vozes e teorias?
60 Machado de Assis. Quincas Borba (São Paulo: Ática, 1995), p. 60,61.
61 Robert Todd Carroll (ed.). The Skeptic’s Dictionary (New Jersey: John Wiley and Sons Inc.,
2003), p. 62,63.
62 Friedrich Nietzsche. The Gaya Science (1882, 1887), parágrafo 125, in Walter Kaufmann (ed.).
(New York: Vintage, 1974), p. 181,182.
63 Heródoto (1994). Histórias, livro II. J. R. Ferreira & M. de F. Silva, versão do grego e notas.
(Lisboa: Edições 70). #47-51.
64 Robert D. Sider. “Credo Quia Absurdum?”, in The Classical World, v. 73, nº 7 (Abril – Maio,
1980), p. 417-419.
65 Luigi Romeo. Ecce Homo – A Lexicon of Man (Amsterdam: John Benjamins B.V., 1979), p.
31,124.
66 Apud David Crystal; Hilary Crystal. Words on Words – Quotation about Language and
Languages (Chicago/London: The University of Chicago Press/Penguin Books Ltd., 2000), citação
26:146.
67 Apud Heschel quotes – God, Man, Prayer, Life and Death. Disponível em . Acesso em:
25/10/2009.
68 “Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A
menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O
homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de
entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem.
Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do
esclarecimento.” I. Kant. “Resposta à pergunta: O que é esclarecimento? ‘Aufklärung’”, in Textos
Seletos (Petrópolis: Vozes, 1974), p. 100.
69 Apud Fred Heeren. Mostre-me Deus (São Paulo: CLIO, 2008), p. 167.
http://sunwalked.wordpress.com/2007/07/21/heschel�-quotes�-god�-man�-prayer�-life�-and�-death�-and�-video/
Capítulo 8
Convivendo com a incerteza
A literatura poética, confesso, não é o gênero que mais mexe comigo.
Contudo, vez ou outra, encontro algumas pérolas que realmente gostaria de
memorizar para dizer de cor em público. São palavras bem colocadas que
me fazem refletir. Pensamentos que eu até poderia ter tido, mas que jamais
conseguiria exprimir de maneira tão apropriada e profunda usando apenas
algumas palavras e um pouco de rima.
Foi o caso do meu encontro “acidental” com o poema “Estado
imaginário”, de um advogado desconhecido para mim chamado Sávio
Lopes, que resume com excelência o tema que pretendo tratar neste
capítulo. Tomo a liberdade de citar apenas um trecho do que ele escreveu:
[…]
De tudo que aprendi, percebi,
Que o saber e a dúvida
Andam no mesmo passo
E o conhecimento
Leva-me a perguntas
Das quais as respostas
Nunca acho.
Queria de volta a inocência,
Os primeiros erros
Do meu estado imaginário;
Pois a multidão
Das minhas verdades
Afetam minha tranquilidade.
Nos berços do meu solilóquio
Vou juntando os dados,
Questiono as certezas,
E de silêncio as embriago,
Quando a razão
Esclarece outra mentira
Deixando-me apavorado.70
Estes versos exprimem com maestria a luta intelectual e emocional de
muitos em relação às questões da vida. Pessoas pensantes são naturalmente
passíveis de assombros vindos do fantasma da dúvida. Inclusive ou
principalmente nós, crentes! Não pense que a fé que possuímos é 100%
inabalável.
Eu mesmo tive momentos de tanta angústia e luta espiritual com Deus que
só não fiquei pior durante a crise porque lembrei-me de vários casos bíblicos
em que homens e mulheres de Deus igualmente tiveram duelos com a
descrença. Se você nunca leu a Bíblia com esses olhos prepare-se para saber
uma coisa: a história do Antigo e Novo Testamentos está repleta de situações
em que as verdades divinas emergem não de uma calmaria, mas de um
escândalo. Assim foi no passado e continua sendo hoje em dia.
Lembro uma vez, internado em um hospital, em que olhei desolado para o
teto do quarto e resmunguei: “Antes eu pensava ter um monte de respostas,
agora já não lembro mais nem as perguntas”. O silêncio naquele caso não
era sinônimo de tranquilidade. Era um castigo imposto a um ser carente de
sentido que queria ouvir pelo menos uma frase de afeto vinda de quem
realmente soubesse as respostas de que eu estava precisando.
Fico feliz por ter superado aquele triste momento. Contudo, sei que nem
todos tiveram a mesma sorte ou eventualidade que eu. Muitos, de fato, se
precipitam cada vez mais fundo no poço das incertezas e não sabem como
conviver com elas. Outros simulam uma pseudoconfiança doutrinária – seja
em favor de Marx ou de Cristo – e assim passam o ar de que realmente estão
seguros do que creem, quando na verdade estão apenas acostumados a
pensar daquele jeito e não querem abrir mão de seu comodismo mental.
Isso não quer dizer que ninguém creia ou descreia com sinceridade.
Referi-me a uma fatia populacional que pretende ser o que não é, sem me
importar em dar-lhe nome ou apontar sua quantidade. Admito o fenômeno
sem identificá-lo com nomes. Fazê-lo estaria fora de minha alçada, seria
bancar um juiz universal – o que eu não sou.
A voz do povo
Do solilóquio em segredo às muitas vozes que em vez de ajudar, às vezes,
atrapalham, o sujeito pensante continua sua busca por verdades que possam
ajudá-lo. O problema é que o barulho das multidões costuma trazer mais
tormenta que solução.
Quando vejo: governos corruptos e sem preparo eleitos pelo voto da
maioria; gente popularesca com algum talento musical ou futebolístico
tornando-se ídolos de uma geração inteira de jovens; programas de gosto
duvidoso disparando no Ibope; e vídeos de conteúdo tosco bombando no
YouTube, fico me perguntando se realmente a voz do povo é a voz de Deus
ou a voz da ignorância coletiva. Quantas vezes a democracia é apenas a
variante ditatorial de um povo manipuladoque demanda com protestos o
coroamento de um idiota! A sabedoria popular, neste sentido, torna-se o
coletivo de embrutecimentos individuais.
Veja se não faz sentido minha crítica. Indústrias alimentícias nos
convencem a consumir de tudo, menos comida realmente saudável;
remédios fabricados para sarar e viciar em vez de trazer prevenção e cura;
uma mídia bipolar que coloca em sequência feministas debatendo sobre
respeito pela mulher e em seguida anunciando um show de variedades, que
tem como quadro principal meninas de biquíni lutando numa banheira de
lama ou lavando carro apenas de calcinha e sutiã.
No intervalo, a mesma emissora coloca uma propaganda de homens no bar
olhando sedentos para o corpo da mulher que traz cerveja e os serve, não
sem antes dizer com sensualidade: “Experimente você também!”. No
seguimento começa a novela das nove em que a protagonista aparecerá nua
fazendo o papel de amante sedutora (cena que, aliás, as feministas do
primeiro programa elogiarão no dia seguinte) e, para fechar, vem o jornal da
meia-noite criticando a polícia por não conter a violência nos estádios. Então
a programação segue – para os que aguentam ficar acordados – anunciando
o filme Velozes e furiosos V, que enaltece justamente o tipo de delinquentes
que você não queria ver morando em sua cidade.
Por um lado, dizemos aos jovens: isso é errado! É imoral. Por outro, damos
filmes, novelas e entretenimentos que os incentivam a ser justamente aquilo
que condenamos. Somos uma sociedade bipolar! Tanto é que muitos desses
jovens se aliaram ao Estado Islâmico atraindo para o terrorismo outros jovens
justamente através de documentários bem-feitos, cujo conteúdo era
justamente a violência à qual já estavam expostos nos games e filmes que
consumiam.
É por coisas como estas que há tempos abandonei a ilusão de que a
maioria sempre está certa. Não quero com isso dizer que estou
completamente incólume neste mar de influências negativas. Tal
sentimento seria soberbo e autorrefutável, pois não existe nenhum “homem
à frente de seu tempo” – isso é tolice. Ainda que reflitamos coisas que estão
avançadas demais para nossa geração, mesmo assim continuamos falando,
comendo e nos comportando em grande parte como os demais de nosso
contexto social.
Do mesmo modo esclareço que não abandono totalmente o valor de um
saber coletivo, nem arvoro a exclusividade da reflexão autônoma. Pelo
contrário, “Não havendo sábios conselhos, o povo cai, mas na multidão de
conselhos há segurança” (Provérbios 11:14, ACF). Meu objetivo com essas
observações é provocar uma análise do tempo em que vivemos e como ter
certezas nesta época de tantos “ismos”.
Foi neste sentido que questionei o adágio de que o assentimento de um
povo seria um critério de verdade. Ouvi dizer – mas não achei a fonte
primária disso – que a origem do provérbio “a voz do povo é a voz de Deus”
viria do fato de Hermes, cultuado como Mercúrio em Roma, possuir, na
Acaia, ao norte do Peloponeso, um templo onde se manifestava respondendo
às consultas dos devotos pela singular e sugestiva fórmula das vozes
anônimas.
Purificado, o consulente se aproximava do altar e dizia em sussurro ao
ouvido do ídolo o seu desejo secreto, formulando seu pedido, dúvida ou a
súplica. Então ele se levantava, tapando os ouvidos, e corria para o pátio do
templo ou para a praça principal, onde arredava os dedos, esperando ouvir as
primeiras palavras dos transeuntes. O que viesse era a voz de Deus para ele.
Teófilo Braga, político e ensaísta português do final do século 19, expõe
que essa superstição ainda era vigente na Lisboa de seus dias:
A voz humana tem poderes mágicos; um feiticeiro, para saber se uma pessoa era
morta ou viva, dizia à janela: – Corte do Céu, ouvi-me! Corte do Céu, falai-me!
Corte do Céu, respondei-me! – Das primeiras palavras que ouvia na rua acharia
a resposta.71
Seja como for, existe uma referência mais antiga, do século 8, que é a carta
de Alcuíno para Carlos Magno, na qual já alertava contra o perigo de se
deixar levar sempre pela maioria. O trecho diz:
Nec audiendi qui solent dicere, Vox populi, vox Dei, quum tumultuositas
vulgi semper insaniae proxima sit.
Tradução para português:
E essas pessoas não devem ser ouvidas por quem continua dizendo que a voz do
povo é a voz de Deus, já que a devassidão da multidão sempre está muito
próxima da loucura.
É por advertências como esta que eu não poderia escrever um capítulo
sobre a certeza sem falar dessa perigosa democratização excessiva de valores
e crenças que leva políticos, religiosos, professores, líderes de um modo geral
a procurar agradar o povo a todo custo, a fim de se manterem confortáveis
em seus cargos. Eles evitam o “politicamente incorreto” não porque estão
convencidos de ser aquilo verdadeiro, mas pelo pânico de não serem
rejeitados.
Na contramão desse cenário, mas convivendo paradoxalmente com ele, há
também os formadores de opinião que levam o povo a assumir posturas que
foram sugestionadas com fins bastante específicos. Moda, marketing,
consumo não são coisas que refletem apenas a vontade popular. Elas
também impõem normas que o povo segue sem questionar, e quem vai
contra essas normas é ultrapassado, fanático, fora de moda.
Uma hora é a galinha que segue os pintinhos, noutra são os pintinhos que
seguem a galinha numa jornada obsessiva de passos que conduzem ao
precipício. É assim que a sociedade oferece sistemas de pensamento e ritos
sociais que nos livram da reflexão e do exame de consciência. É o famoso
mundo aceito sem discussão.
Um encontro com Berger
Se eu parasse aqui este capítulo deixaria a ideia de que é impossível ter
certezas ou que, pelo menos, o agnosticismo seria o caminho recomendável.
A situação que descrevi anteriormente parece referendar a observação
irônica do romancista austríaco do Robert Musil, que declarou que “a voz da
verdade tem um tom suspeito”. Ela não é tão absoluta como desejaria o
“verdadeiro crente”. Será?
Uma plausível resposta para esta colocação veio até mim através de um
livro que valeu a pena ter lido. É sobre ele que quero falar neste momento.
Como não sou sociólogo por formação, é claro que não domino todos os
teóricos dessa área. Assim, o encontro com alguns deles se dá por uma feliz
casualidade. Foi o que aconteceu com os escritos de Peter Berger, renomado
sociólogo da Universidade de Boston, morto em 2017. Gregory Thornbury,
presidente do King’s College de Nova York, disse em seu obituário que a
obra de Berger “fez com que os teólogos quisessem ser sociólogos quando
crescessem”.
Adquiri seu livro, escrito em parceria com Anton Zijderveld, num
congresso de teologia nos Estados Unidos. O título não poderia ser mais
provocativo: In Praise of Doubt – how to Have Convictions without
Becoming a Fanatic. Foi lançado em português com o título: Em favor da
dúvida: como ter convicções sem se tornar um fanático.
A primeira novidade da obra foi ver um sociólogo respeitado que ainda se
diz incuravelmente religioso. Embora, a bem da verdade, ele se defina como
evangelisch, mas não evangélico – o que não deixa de ser interessante, pois
demonstra um compromisso com a fé que supera os limites de uma
agremiação religiosa organizada, sem dirimir sua importância.
Escrevendo com um rigor sociológico – pois esta é sua formação primária –
Berger se dirige a todos os públicos, mas principalmente a crentes que vivem
numa espécie de exílio, pois se sentem chamados por Deus de nação santa,
porém não se encaixam com as normas sociais vigentes.
Os que duelam com questões honestas também são contemplados na
leitura, pois não é fácil num ambiente cristão (especialmente aquele mais
conservador) o indivíduo admitir que ainda nutre certas dúvidas de fé. Aliás,
o mesmo se passa no ambiente secular; um ateu não pode admitir para seus
companheiros que nutre dúvidas sobre o ateísmo professado, sem ser
marginalizado pelos demais.
É muito triste quando tentam sanar nossas dúvidas com simplificações
artificiais da problemática. Criam-se nomes para nos proteger de questões
autênticas,mas perigosas para o sistema. Depois oferecem uma linguagem
artificial que torna tudo muito bem arrumadinho quando na verdade não é.
Por outro lado, há também os que se refugiam na dúvida como a maior de
suas certezas. São os dogmaticamente céticos, o que inclui aqueles que
questionam não porque possuem dúvidas reais, mas porque se tornou chique
ser do contra. Amam a esquerda mesmo quando não têm motivo para ser
esquerdista. Não atualizam o discurso. Apenas fumam maconha e repetem
os chavões de Woodstock numa época em que a Guerra do Vietnã já virou
passado.
Os escritos de Berger lidam com todas estas questões sugerindo
audaciosamente que o cultivo da dúvida – que eu qualificaria como “dúvida
sadia” – pode ser a chave para lidar com questões morais, principalmente
num universo de tantas posições vigorosamente rivais. Isso para mim caiu
como luva naquilo que eu mesmo defendo há muito tempo e que você está
vendo neste livro. A audácia da sugestão é justamente o fato de que a
convicção e a dúvida geralmente são vistas como operações intelectuais
opostas. Porém podem e devem ser harmonizadas.
O livro também provoca o senso comum de que a sociedade está se
tornando secularizada. Deus ainda não foi embora – para tristeza dos que
promoveram sua morte no início do século 20. De modo geral, a ideia é
dizer não ao dogma bem como à crença de que não há nada em que se deve
crer ainda que provisoriamente. Respeitar a ideia do outro, saber o que
acreditamos, evitar a soberba. Isso para mim foi extraordinário. Concordaria
100% com o autor? Não. Há coisas que penso diferente de Berger. Porém,
saí de sua leitura com a grata satisfação de saber que é possível encontrar um
caminho moderado entre o dogma e a dúvida que eu poderia chamar de
certeza saudável e como ele funciona na prática.
Segundo o autor é necessário que haja um exercício de moderação mental
entre os posicionamentos relativista e fundamentalista, e isso não se reduz à
religião apenas, mas aplica-se à política e a moralidade. Os fundamentalistas
sempre tendem para a “ética dos fins absolutos”. Os moderados políticos
tendem a uma ética da responsabilidade.
A certeza moderada evita tanto o relativismo quanto o fundamentalismo.
No entanto, pode ser inspirada por uma verdadeira paixão em defesa dos
valores essenciais originados da percepção da condição humana e, eu
acrescentaria, nas possíveis orientações de um Deus que se revela – sobre
isso falaremos mais adiante.
Teoria do Conhecimento
A necessidade ou pelo menos a busca de certezas é uma modalidade
humana que se confunde com a chamada Teoria do Conhecimento, às
vezes usada como sinônimo de epistemologia, o que não é uma aplicação
exata, uma vez que esta última, se usada em sentido estrito, se aplica mais ao
estudo sistemático do conhecimento científico, sendo por isso mesmo
reconhecida como filosofia da ciência. Seja como for, ambas referem-se a
uma área da filosofia que procura refletir sobre o que é o conhecimento, a
possibilidade ou não de se conhecer (i.e., de ter certeza de algo), e qual o
fundamento, origens e valor do conhecimento adquirido.
Não há como negar que somos aquilo que Descartes chamou de res
cogitans ou coisa pensante, em oposição a um corpo que acaba servindo-lhe
de obstáculo, a chamada res extensa. “O que sou eu? – perguntava o filósofo
– Uma substância que pensa. O que é uma substância que pensa? É uma
coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não
quer, que imagina e que sente.”72 O sujeito pensante, portanto, é uma
substância que se define pelo pensamento. Uma substância espiritual que
Descartes punha em oposição ontológica à substância material, mas que –
no meu entender – permanecem indivisível, unitária (indivíduo) e
sensivelmente sujeita à transcendência.
Eu diria até que foi a sugestão cartesiana que inaugurou a “metafísica do
sujeito”, entendida por muitos como a característica básica do pensamento
moderno. Efetivamente, dessas duas noções cartesianas derivaram as duas
correntes básicas da filosofia moderna: o racionalismo e o empirismo, ambas
ancoradas no sujeito, transformado na nova sede do critério de verdade. A
crítica cartesiana desautorizou o objetivismo e o realismo ingênuos que
dominaram o pensamento antigo e medieval.
Até aí vigorava o critério da evidência objetiva, segundo a qual o
pensamento deve se submeter à evidência. É esse o caráter da definição
clássica de verdade como a adequação do intelecto à coisa, ligada à
consideração de que o critério último e universal de julgamento da verdade
é a evidência objetiva. A partir de Descartes o critério de verdade desloca-se
para o sujeito: nada terá estatuto de verdade sem passar pelo crivo da
experiência subjetiva, expressa na arte de raciocinar a partir da dúvida. É
claro que o exagero deste conceito deu origem à tradição racionalista que só
aceita como verdadeiro aquilo que pode ser reduzido a ideias claras e
distintas, o que, como pretendo argumentar, não pode ser procedente.
O racionalismo é a corrente que assevera o papel preponderante da razão
no processo cognoscitivo, pois os fatos não são fontes de todos os
conhecimentos e não nos oferecem condições de “certeza”. Já o empirismo
seria a corrente de pensamento que sustenta que a experiência sensorial é a
origem única ou fundamental do conhecimento. Ambos se preocupam com
o problema do conhecimento, que é o ponto de referência básica da filosofia
moderna. Em contrapartida, constroem teorias distintas acerca do
conhecimento que para um é intelectualista e para o outro sensitista. Por
fim, apresentam fortes ligações com as ciências naturais e exatas,
especialmente em física, química, astronomia, mecânica e matemática. O
racionalismo usa, de preferência o a priori dedutivo da matemática,
enquanto o empirismo opta pelo a posteriori indutivo da experimentação.
Essência do conhecimento
Em termos de essência do saber, a Teoria do Conhecimento possui uma
área que, a meu ver, é a mais conflituosa, geradora de muitas divergências.
Refiro-me ao campo do realismo e idealismo. O realismo traduz-se na
orientação ou atitude do espírito que implica uma preeminência do objeto,
dada a sua afirmação fundamental de que nós conhecemos coisas. Em
outras palavras, é a independência ontológica da realidade, o sujeito
raciocinando em função do objeto. O realismo é, normalmente, subdividido
nestes grupos. O realismo ingênuo, natural, volitivo, tradicional e
crítico/científico.
O realismo ingênuo é aquele em que o homem aceita a identidade de seu
conhecimento com as coisas que sua mente menciona, sem formular
qualquer questionamento a respeito daquilo. É a atitude do senso comum,
que reconhece as coisas e as concebe tais como parecem.
Um pouco diferente do realismo ingênuo é o realismo natural, cercado por
reflexões críticas sobre o conhecimento. Este dá destaque aos sentidos como
meios – ainda que imperfeitos – de percepção da realidade. Coisa que o
primeiro não faz. Suas raízes estão nas profundas transformações
econômicas, políticas, sociais e culturais da segunda metade do século 19.
Já o realismo volitivo afirma a existência de um mundo material fora de
nós, percebido graças à nossa vontade de existir. Se fôssemos seres
puramente intelectuais, sem nenhuma faculdade volitiva, não teríamos
consciência alguma da realidade. Por outro lado, reconhece-se um choque
constante com a realidade à medida que as coisas que existem resistem aos
nossos desejos, e nestas resistências vivemos a realidade que nos cerca.
O realismo tradicional seria aquele que indaga a respeito do porquê das
coisas. Intensifica-se numa busca frenética por fundamentos teóricos, razões
e arrazoados que justifiquem esta ou aquela premissa. É a atitude típica dos
que seguem a linha aristotélica de raciocínio.
Por último, posso citar o realismo científico, que é uma variação do
realismo crítico. Ele parte do pressuposto de que existe uma realidade
objetiva que pode ser reconhecida pelo senso comum, porém, é mais
confiantemente descrita, explicada e prevista pelo métodoDeus, mas um
testemunho pessoal a respeito dele. Não quero enganar você ou insultar sua
inteligência. É claro que sou crente, mas a inspiração para este trabalho veio
justamente da minha descrença. Isso mesmo que você leu! Tão paradoxal
como o título que elegi, é meu ceticismo, que me conduz diariamente à fé.
Como se dá isso? Leia e você verá.
Não! Não sou um ex-ateu que se converteu. Note que a frase anterior foi
redigida no presente do indicativo ativo. Sou um crente que ainda duela, dia
após dia, contra inquietações, incertezas e questionamentos. Sou, como
descreveu uma grande amiga, um sujeito de mente inquieta, muito
inquieta! Nunca me senti tão bem retratado numa única frase.
Uma fé que duvida
Sempre encontro pessoas que acham estranho eu dizer que a fé comporta
dúvidas. Essa, no entanto, é uma realidade inegável. René Descartes que o
diga! Mesmo não sendo teólogo, nem pretendendo produzir uma declaração
de fé religiosa, ele terminou dando-me um dos mais brilhantes insights
confessionais que já li: “o homem”, dizia ele, “deve desconfiar de tudo para
poder acreditar em alguma coisa”.
Refiz o caminho proposto por Descartes e cheguei a uma conclusão
surpreendente. Ao comprometer-me sinceramente com a dúvida encontrei,
para minha surpresa, a produção de uma certeza inquestionável e,
consequentemente, um fundamento sobre o qual edificar uma estrutura
racional segura.
Com a exceção de que não discriminei nenhuma possibilidade ontológica
nem me limitei à razão humana como única capaz de alcançar verdades
elevadas, também demoli alguns edifícios mentais e os reconstruí,
exatamente como propõe o método cartesiano. Contudo, ao longo do
processo, percebi que a demolição nem sempre será o caminho mais viável.
Conquanto Descartes adote a preferência pela demolição total das coisas,
não podemos nos esquecer de que somos seres em permanente estado de
construção, isto é, seres inacabados, sempre em projeto. Logo, se algumas
edificações se mostram corretas não há por que abandoná-las, mesmo que a
obra não esteja completa.
Diferentemente do que intencionara originalmente Descartes, os filósofos
da modernidade acataram o método cartesiano, partindo também da dúvida,
e insistiam que toda crença fosse considerada falsa até que fosse, pela razão,
comprovada verdadeira. A partir desse ponto, rompe-se com a antiga
cosmovisão teocêntrica e os raciocínios passam a pautar-se pelo
antropocentrismo extremo. O ponto de partida para a reflexão passa a ser o
homem e sua racionalidade, e não mais a revelação divina.
Ironicamente, Descartes, que era cristão e acreditava na Bíblia, deu o
pontapé inicial para um método que tornou-se, de certo modo, o
fundamento do ateísmo contemporâneo com todas as suas implicações.
Eu também comecei no caminho cartesiano, mas em alguma bifurcação
tomei rumo diferente do ateísmo. Não foi um erro de rota, nem uma fuga da
realidade. Foi uma decisão livre e consciente, moldada pela lógica dos fatos
e pela interpretação de minha mente. Graças a Descartes, a sistematização
da dúvida me conduziu a grandes certezas.
Ufanismo?
Não se trata de ufanismo religioso. Não sou dono da verdade muito menos
especialista em Deus. Achei importantes verdades, mas não todas as
verdades. O que creio advém de importantes pistas que encontrei pelo
caminho. Não é uma fé gratuita, muito menos absolutista. Aliás, todos os
absolutismos – seculares ou religiosos – terminam produzindo histerismos,
por isso, corro deles.
Aceito de bom grado a ciência, mas não o cientificismo. Busco sempre a
racionalidade, mas fujo do racionalismo. Não se trata de evitar, mas tomar
cuidado com as consequências práticas do uso indiscriminado do sufixo
“ismo”. Ele pode levar ao autoritarismo ilegítimo de certos conceitos
provenientes exclusivamente da vaidade humana. Lembre-se de que o sufixo
“ismo”, advindo do mundo grego como conjunto de crenças e doutrinas
religiosas ou não religiosas, foi incorporado à linguagem médica como uma
patologia ou disfunção mental, resultante de intoxicação causada por agente
obviamente tóxico (Dicionário Houaiss).
Isso não quer dizer que zoroastrismo, judaísmo, cristianismo ou mesmo
“ateísmo” signifiquem imediatamente “doenças de Deus”. O uso indistinto
do termo pode gerar confusões. O importante é estar alerta em relação ao
absolutismo de certos conceitos (seculares ou religiosos) que levam da
anarquia ao totalitarismo, todos travestidos de pseudointelectualidade.
Afinal, foi em nome tanto da religião quanto do materialismo marxista que
se promoveram os mais cruéis assassinatos e a morte da liberdade. Tais
regimes se pautaram sempre pela radicalidade das ações e pela força de
falácias supostamente lógicas.
No que diz respeito à fé, corre-se igualmente o risco de acoplá-la ao mesmo
sufixo criando o fideísmo, que – com o perdão de Bayle e Kierkegaard – é,
para mim, uma distorção da fé verdadeira, por abjurar qualquer valor da
racionalidade. São muitos os que, por não entenderem o papel da fé na
experiência mental, incorrem no risco de transformá-la em crendice.
A fé não pode ser um salto cego num abismo divino para o qual não existe
nenhuma racionalização ou racionalidade. Por outro lado, dizer que a razão
manda na fé é como afirmar que o rabo abana o cachorro. Seria um
contrassenso anular por completo qualquer função racional no ato de crer.
Afinal se existe mesmo um Deus, ele nos criou como seres racionais. Negar
isso é como tirar das aves a capacidade de voar.
Distorções semânticas
De modo geral, percebo que não é apenas a fé que sofre distorções. A
própria palavra ateísmo tem sido usada de um modo às vezes diversificado,
às vezes genérico demais, dando margem a leviandades que prejudicam a
compreensão do assunto.
Há religiosos conservadores que tomam o ateísmo como sinônimo de
demonismo, depravação, enquanto humanistas seculares o interpretam
como sinal de superioridade, clareza mental. De modo ufanista os primeiros
agem como se somente eles fossem moralmente bons. Já os segundos não
escondem a premissa de que ateus são os únicos com disposição mental
esperta o bastante para admitir a realidade como ela é, sem mitos ou
alienações coletivas. Eles seriam os mais sábios da cadeia evolutiva. Os
únicos que captaram com profundidade a advertência de Marx sobre a
religião e o ópio do povo.
Seria bom se todos reconhecessem que rótulos e estereótipos são perigosos
e inviabilizam diálogos. Sem contar que quase sempre criam um quadro
distorcido do outro, a partir do que se julga saber do grupo a que ele
pertence. É, enfim, uma caricatura malfeita que desmotiva até o senso de
humor.
Ambos os lados precisam entender que ateus não devoram criancinhas e
crentes não comem alfafa com cavalos. Ninguém tem o direito de chamar o
outro de “imoral” por sua descrença, nem “idiota” por sua fé.
Sei que há radicalismos por toda parte e nenhum grupo está livre deles.
Por isso não vale a pena refutar uma doutrina alheia baseado no
comportamento censurável de um defensor dela. Cabe ao observador
externo a prudência de não julgar a parte pelo todo, ainda que algumas
atitudes pareçam, de fato, marcas de coletividade.
Nazistas e antissemitas soam como sinônimos perfeitos e – em termos
filosóficos – de fato o são. Contudo, no campo da individualidade não posso
generalizar. Houve muitos alemães tanto civis quanto militares que se
tornaram heróis anônimos, salvando judeus por não concordarem com o
regime de Hitler, ainda que ostentassem uma insígnia alemã1.
Seja de que lado você estiver, da crença ou da descrença, lembre-se de que
posturas intolerantes e agressivas tornarão seu argumento mais suscetível à
crítica racional. Principalmente quando ele esboçar uma fobia pela
divergência e, sobretudo, pelo confronto racional de ideias.
Discordando com classe
Para que nosso diálogo ao longo deste livro seja realmente proveitoso,
preciso tecer alguns comentários sobre surpresas que tive e preconceitos que
testemunhei de ambos os lados da discussão. É imperioso falar disso já assim
no começo para que você saibacientífico.
Estas são descrições simples, apenas para se ter uma noção deste vasto
Estas são descrições simples, apenas para se ter uma noção deste vasto
campo do conhecimento. A síntese do realismo é a certeza de que existe
uma correlação e adequação à inteligência, a algo que pode ser conhecido.
O modo de referendar esse “algo” conhecível é que varia gerando as
diferentes abordagens citadas anteriormente.
Lembre-se, contudo, de que para os racionalistas os sentidos não são
confiáveis, pois podem induzir ao erro. Ilusões de ótica estão aí para
confirmar isso. Assim, que eles atribuem uma grande confiança no poder da
razão humana como critério de reconhecimento da verdade. Nas palavras de
Descartes: “nunca devemos nos deixar persuadir senão pela evidência de
nossa razão”73.
Com esses conceitos em mente, estou pronto para falar do contraponto do
realismo que é o idealismo. Alguns afirmam que ele nasce com Platão, mas
desenvolve-se com Descartes. Neste conceito, não há realidade objetiva, pois
as coisas não existem por si mesmas. Elas vão existindo à medida que são
pensadas ou representadas pelo nosso espírito, ou seja, há uma tendência a
tornar tudo em redor, esquemas mentais ou formas espirituais.
No idealismo, os objetos são criados a partir da subjetividade do indivíduo.
Aquilo que ele não percebe não existe para ele. Assim, a certeza e o
conhecimento são reduzidos à representação mental que fazemos das coisas,
pois a verdade acerca dos objetos está menos neles do que em nós mesmos.
Precisamos pensá-los ou percebê-los para que adquiram existência para nós.
Sintetizando, o idealismo é a doutrina ou corrente de pensamento que
subordina ou reduz o conhecimento à representação ou ao processo do
pensamento mesmo, por entender que a verdade das coisas está menos nelas
do que em nós, em nossa consciência ou em nossa mente, no fato de serem
“percebidas” ou “pensadas”.
Existem ainda os que dividem o idealismo em psicológico e lógico. Para o
primeiro, entende-se tudo aquilo que constitui um ser percebido e, para o
segundo, tudo o que se identifica como ser pensado.
Sei que esse esquema pode soar um tanto estranho para muitos, mas saiba
que importantes nomes estão por detrás de tudo o que foi dito nos parágrafos
anteriores. Refiro-me a autores como Berkeley, Hume, Locke, Hegel e o
próprio Descartes.
Certezas ou incertezas?
Com estes elementos gnosiológicos em mente, a próxima questão que nos
interessa é se podemos ou não ter certeza de alguma coisa. Qual é, enfim, a
possibilidade real do conhecimento?
Novamente, os autores recorrem a duas formas de tratar o problema: o
dogmatismo e o ceticismo. Ambos podem ser ainda qualificados como total
e parcial, de modo que o dogmatismo afirma a possibilidade de se
conhecerem verdades universais quanto ao ser, à existência e à conduta,
transcendendo o campo das puras relações fenomenais e sem os limites
impostos primariamente à razão. Já o ceticismo consiste numa constante
atitude de dúvida, mesmo diante de opiniões obtidas no âmbito das relações
empíricas. Suas conclusões são sempre provisórias, pois a atitude cética
nunca abandona o que se filia a essa linha de pensamento. A parcialidade ou
totalidade com que essas linhas são conduzidas demarcam os limites e as
possibilidades que cada adepto supõe poder chegar no âmbito de reconhecer
ou não a verdade.
Hegel, por exemplo, era dogmático absoluto no sentido em que defendia a
identificação absoluta entre pensamento e realidade. Hume e Kant eram
menos taxativos, por entenderem que o indivíduo pensante não poderia
atingir verdades últimas. Apenas no plano ético era possível atingir, de certa
forma, o absoluto, predicando pela razão o certo e o errado em dadas
circunstâncias. Blaise Pascal já ia para outro extremo afirmando o
dogmatismo teórico da matemática e da ciência, duvidando, porém, da
precisão teórica nos modos de agir da conduta humana.
O ceticismo, por fim, se distingue de tudo isso por causa de sua posição de
reserva e desconfiança constantes em relação a todas as coisas. Seus
representantes na Grécia antiga eram Pirro, Górgias e, parcialmente,
Carneades. Na filosofia moderna, seu principal representante foi Augusto
Comte.
Deixe-me agora dizer como eu mesmo me posiciono diante de tudo isso.
Para tanto quero citar um pensamento de Jung que resume minha trajetória
mental em busca de conhecimento. “Queremos ter certezas e não dúvidas,
resultados e não experiências, mas nem mesmo percebemos que as certezas
só podem surgir através das dúvidas e os resultados somente através das
experiências”74.
Antes de mais nada, não sou junguiano. Porém, valho-me desse recorte de
seu pensamento e o destrincho para que você acompanhe minha
experiência cognitiva.
1. Queremos ter certezas e não dúvidas – embora nem sempre querer
signifique “poder”, acredito que essas inclinações psíquicas me revelam algo
e não posso fechar os olhos para o que elas estão me dizendo. Pássaros
nascem migrando para o sul e tartarugas marinhas correm para o mar. Seria
ingênuo negar a existência do oceano e de um lugar chamado sul apenas
porque algumas tartarugas e aves migratórias ficaram circunstancialmente
confinadas num plano em que não podiam ver nem experimentar o objeto
de seu instinto.
Se quero ontologicamente ter certezas, e não dúvidas, isso significa que
existe uma verdade para ser explorada e conhecida. Essa verdade antecede
meu ser – pois nasço desejando-a – e pode ser negada, pois existe a dúvida,
ou seja, ela não será tão óbvia para todos.
2. [Quero] resultados e não experiências – o anseio por verdades não é
como um desejo efêmero por vitamina de abacate, que logo passa assim que
tomo um copo gelado dela. Trata-se de algo que permanece comigo sempre.
Tentar negá-lo é convidar a neurose sobre minha pessoa.
Esses dias estive refletindo por que existe tanto consumo de drogas lícitas e
ilícitas neste mundo. Por que as pessoas querem tanto estar embriagadas ou
fora de área? Não seria por medo de encarar a realidade que descobriram?
Por isso, fogem dela como o diabo foge da cruz, seja para a ilusão das drogas,
seja para o universo paralelo dos entretenimentos, que estimulam a
construção de uma realidade virtual. Doentia, porém, eficaz em alienar as
mentes daquilo que realmente interessa.
3. Que as certezas só podem surgir através das dúvidas – já discorri neste
livro sobre como a Bíblia permite e estimula o questionamento sadio.
Perguntas sérias e honestas levam a resultados positivos, questões vazias
atraem para o fosso.
A capacidade de duvidar de si mesmo é sem dúvida uma das maiores
contribuintes para o desenvolvimento humano, na dosagem certa ela
melhora nosso desempenho emocional, pois nos estimula à busca constante
e nos faz ter uma noção real de quem somos e quais são nossos limites.
Einstein dizia que o mais importante é nunca pararmos de questionar. A
dúvida e todas as questões que a vida apresenta podem determinar o grau de
maturidade emocional que temos diante de nossa própria existência
humana. A dúvida, em última instância, determina o grau da nossa
sabedoria!
4. Resultados [podem surgir] somente através das experiências – neste
ponto eu afirmo, porém ultrapasso o contexto do experimento laboratorial,
acadêmico ou mental. Fora dos limites da razão humana quero falar de uma
experiência transcendental, que apenas o que experimenta pode dizer como
é.
Certeza não é conhecimento
Um erro que, a meu ver, muitos cometeram no passado foi afirmar que
conhecimento e certeza estariam em pé de igualdade mental. O artigo de
Gettier oferece boas argumentações contra esse pressuposto. Muitos, no
entanto, ainda insistem em dizer que a certeza é o conhecimento claro e
seguro de algo. Logo, a menos que tenham explorado todas as possibilidades,
jamais poderão fazer uma afirmação segura. Mas onde estaria a justificativa
para tal afirmação? Este para mim é um ceticismo intelectualmente
injustificado! Certezas não implicam veracidades absolutas ou exatidão.
Quer um exemplo? Alguns físicos teorizam (embora não haja nadaque
evidencie isso) que existam infinitos universos paralelos, mas por esta forma
de pensar eu jamais poderia afirmar nem duvidar disso, pois não explorei
todo o cosmo e além dele para ver se realmente existem infinitos universos
paralelos. Sendo assim, a certeza de que eu sou um sujeito com duas pernas,
dois braços e uma cabeça é ilusória, pois não explorei todas as possibilidades
para verificar, por exemplo, que não sou uma cabeça dentro de um aquário,
vivendo num universo paralelo, cheia de tubos e mantida viva por um
computador maluco que me estimula a pensar que tenho um corpo.
Raciocínios assim são uma completa forma de nonsense. Diga para alguém
picado por marimbondo que a dor é apenas uma projeção de sua mente!
Repare que os que assim pensam igualam conhecimento com certeza. Se for
assim, tudo o que eles falarem também pode ser questionado e jamais
respondido. Um diálogo desta natureza termina andando em círculos e
qualquer tentativa de conhecer qualquer coisa se torna pueril.
Vejamos mais uma ilustração: imagine que seu amigo tenha na mão uma
caixa com 100 cartões de papel, todos vermelhos. Ele então coloca todos os
cartões numa urna de loteria e começa a girar. Você tem certeza de que ele
tirará um cartão vermelho, pois é isso que a lógica lhe diz. Você tem, em
outras palavras, uma certeza absoluta. Mas espere: suponhamos que você
não tenha tido oportunidade de olhar cada um dos 100 cartões para ver por
si mesmo que todos são vermelhos. E se houver um branco naquele meio?
Mais ainda, suponha que o sorteio seja feito à noite e você não ficou o
tempo todo vigiando a urna para saber que ninguém de fato mexeu nela
introduzindo cartões verdes e amarelos no meio dos vermelhos. Sendo
assim, sua certeza nunca será absoluta, pois sempre existirão possibilidades
que fogem ao seu controle e conhecimento.
Duvido, porém, que se alguém lhe oferecer um carro para acertar a cor do
cartão sorteado, você preferirá não responder ou dirá verde ou amarelo. Você
responderá com convicção: “Vermelho”!
Aprecio averiguar as evidências – por isso batizei meu programa de TV
com esse nome. Contudo, não posso confundir dúvidas saudáveis com
questionamentos ad infinitum que não levam a nada senão a uma enganosa
busca por evidencialismos.
Neste sentido, há algo muito pessoal e sério que gostaria de compartilhar
com você. Estou cansado de ver pessoas se tornarem neuróticas porque se
contentam com respostas erradas ou inadequadas para as mais importantes
questões da vida. Elas se contentam com refúgios sociais (casamento,
carreira, dinheiro, hedonismos) que terminam por fazê-las infelizes de tanto
querer ser felizes. Estão tentando saciar a sede com água salgada. Não dá
certo. O mar é belo e serve para muitas coisas, mas não para matar a sede.
Se as dúvidas não seguem junto a uma relação pessoal com o
transcendente, elas poderão potencializar neuroses e demências como
aquelas vistas num mundo acadêmico repleto de grandes cérebros,
infantilmente aprisionados a vícios ordinários que destroem sua saúde, sua
alma e sua autoestima.
Lev Tolstói foi, sem dúvida, o maior novelista russo de todos os tempos.
Autor de clássicos como Guerra e paz, ele se tornou um dos escritores mais
lidos no mundo inteiro. Autor premiadíssimo. Ele morreu em 1910 e, apesar
da genialidade literária, teve uma existência diversas vezes tomada pela dor e
pelo desespero emocional. A dificuldade em saber qual o real sentido da vida
quase o levou ao suicídio. Nada para ele fazia sentido, de modo que a morte
talvez fosse a única resposta para sua inquietação.
Até que Tolstói encontrou dentro de si um estranho senso da existência de
Deus que o levou a prosseguir. Veja o que ele escreveu:
Enquanto o meu intelecto estava trabalhando, algo em mim estava trabalhando
também, e me impediu de agir […] posso chamar de uma consciência da vida,
que era como uma força que obrigou minha mente a seguir em outra direção e
me tirar da situação de desespero […] Meu coração se manteve definhando
com outra emoção consumidora. Não posso chamar isso de outro nome que
não de uma sede de Deus. Este desejo de Deus… veio do meu coração.75
Tolstói chegou perto. Nos momentos mais desesperadores de sua vida, ele
encontrou um novo valor e significado na existência motivada pela
“consciência da vida”, pelo “desejo por Deus”. Essas expressões descrevem a
mesma experiência universal da humanidade, que Calvino chamou de
divinitatis sensus, o senso de Deus. Mas para não ser confundido com um
mito ou um fantasma é preciso ter certeza de quem ele é.
Testemunho pessoal
Quando se desenvolve uma relação pessoal com aquele que eu chamaria
“Autor da vida”, as dúvidas persistem, mas passam a ser circunstanciais, e a
certeza torna-se linear. Essa certeza que vem da relação com Deus não é
uma crença intelectual baseada na possibilidade de existir alguém lá em
cima. É uma comunhão contínua que, por conseguinte, possui evidências
de sua realidade e não se limita a elas. É um sentimento que assume
legitimamente caráter irrefutável. Ainda que alguns duvidem dele, será real
para aquele que o possui.
Eu mesmo já experimentei esse sentimento, mas fica difícil explicá-lo com
números, dados ou equações. Talvez uma parábola me ajude a explicitar,
ainda que parcialmente, o que sinto. Imagino-me (ou sinto-me) como um
garoto que sabe que é amado por seu pai. Há muitas coisas da vida que ele
não entende. As noções de apreço ou repreensão paternas nem sempre são
claras para aquele que recebe o elogio ou o castigo. Se o pai, porém, é bom
e amável alguma explicação existe, ainda que o filho desconheça. O escuro
não lhe dá medo, pois, ainda que o candeeiro não permita ver com clareza o
rosto de seu pai, a voz rouca contando uma história antes do sono o faz saber
que não está sozinho, mesmo depois que o pai se ausentar para seu quarto e
apagar a chama. Em situação de perigo, basta gritar por socorro: seu pai está
ali ao lado.
A história que ele conta toda noite é longa e precisa ser dividida em vários
capítulos, que se tornam tão empolgantes quanto a relação entre pai e filho.
A cada final, um suspense para o que será contado no outro dia. A cabeça da
criança fica cheia de dúvidas: “Como será que o capitão se livrará do Pirata?
Onde será que estaria o tesouro perdido que eles estavam procurando?”. São
perguntas que permanecem, mas não lhe tiram o sono – pelo contrário,
estimulam seu espírito a supor possibilidades e esperar ansiosamente o
momento em que o pai continuará revelando o enredo.
É assim, nesta parábola, que ilustro minha relação emocional e mental
com a dúvida e a certeza. Não sei todas as coisas; e se pretender sabê-las,
estarei me revelando o maior dos ignorantes: aquele que nem sabe que não
sabe.
Se a ciência fala de “verdades provisórias” eu também falo de “verdades
Se a ciência fala de “verdades provisórias” eu também falo de “verdades
presentes”, revelações divinas que podem ser próprias ou mais relevantes
para uma época e não para outra. Isso explica as diferenças de pensamento
entre verdadeiros cristãos ao longo do tempo. Também ajuda a entender a
existência de valores e comportamentos que não são ideais, mas foram
circunstancialmente tolerados pela Providência assim como um pai tolera o
filho que faz xixi na cama porque ainda é recém-nascido, mas não espera
que o faça quando estiver com 20 anos.
Assim, reconheço que não ficaremos para sempre como crianças
ternamente colocadas na cama por nossos pais. A natureza urge para que
cresçamos e um dia tenhamos de sair de casa e dormir sozinhos. Porém,
apenas na aparência. A voz do velho pai continua ecoando na memória,
dando-nos a certeza de que somos amados, e, ainda que os brinquedos dos
adultos sejam mais caros, e os machucados mais profundos, não somos
órfãos de Deus!
Não sou ingênuo a ponto de pensar que todos apreciarão o exemplo dado.
Posso imaginar as críticas que alguns estejam fazendo. Entenda o que eu
disse como a descrição simbólica de um sabor exótico que experimentei.
Minha descrição parabólica não será eficaz a menosque o leitor
experimente a mesma sensação, sem nenhum tipo de anestesia palatar, e
decida a partir disso se está diante de algo bom ou ruim. Garanto que nunca
será algo irrelevante.
Supondo que a admissão de um desejo não ofende ninguém, eu apreciaria
muito se alguém lendo isso desse uma chance para Deus se manifestar em
sua vida, dando-lhe as certezas de que precisa. Aquele que eu chamo de
“Autor da vida” está mais interessado em salvar você do que uma mãe de
tirar o filho de uma casa em chamas. Agora, como dizem os ingleses: “It is
up to you”!
70 Disponível em . Acesso em: 12/04/2016.
71 Apud Luís da Câmara Cascudo. Coisas que o povo diz (São Paulo: Global Editora, 2009).
72 René Descartes. Meditações metafísicas 2. Coleção Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural,
1973).
73 René Descartes. O discurso do método (São Paulo: José Olympio, 1960)
74 Jung. The Stages of Life # 752, in The Collected Works of C. G. Jung. Gerhard Adler; Michael
Fordham; Herbert Read; William McGuire (eds.). Complete digital edition (Princeton University
Press, 2009), vols. VIII e VI.
http://poesiasdesaviolopes.blogspot.com.br/search?q=Estado+imagin%C3%A1rio
75 Tolstói apud William James. The Varieties of Religious Experiences: A Study In Human Nature
(Nova York: Modern Library, 2002), p. 174.
Capítulo 9
As origens do ateísmo
Como nasceu o ateísmo? Quando ocorreram os primeiros questionamentos
à existência de Deus? Pergunto porque, ao que tudo indica, na história
humana o sentimento de fé é anterior à noção de descrença. Mesmo porque,
é preciso primeiro se afirmar algo para então duvidar dele. É uma questão de
lógica, e não somente isso. Mesmo pensadores assumidamente
descomprometidos com qualquer crença religiosa admitem que a percepção
mental do Sagrado ou da magia antecipa o ceticismo na história da evolução
humana.
Mas vamos com calma. Não quero criar discórdias desnecessárias com
leitores céticos já no primeiro parágrafo. Sei que não é tão simples assim.
Não se trata de dizer quem veio primeiro, “o ovo ou a galinha”. Mesmo
porque, num contexto apologético, é de se esperar que ambos os discursos,
da fé e do ateísmo, reivindiquem para si a anterioridade no sentimento
humano. Isto faria do adversário um fenômeno secundário, não natural, algo
que veio depois e, portanto, não faz parte da essência humana. Foi
artificialmente imposto a ela.
Por outro lado, os evolucionistas otimistas, que leem a teoria de Darwin
como sinônimo de progresso constante, argumentam que o que vem depois
é sempre melhor do que o que havia antes, pois é a evolução de um
princípio primitivo.
A discussão sobre isso é longa, com inúmeras propostas, e não quero cansar
você com um histórico detalhado de todas elas. Esta é uma “breve” história
do ateísmo – apenas para contextualizar nosso assunto e permitir um
posicionamento racional acerca dele.
Tema tabu
Para começo de conversa, o ateísmo é um desses fenômenos sociais difíceis
de mensurar historicamente. Dizer quando e por que ele começou não é
tarefa fácil, principalmente por se tratar de um assunto tabu. Ateus são
muitas vezes tidos por imorais, perigosos, delinquentes. Um estereótipo,
convenhamos, sustentado por generalizações e preconceito cegos.
Talvez tenha sido por estereótipos assim que tive tanta dificuldade em
achar uma bibliografia adequada sobre o assunto. Mas minha busca
encontrou bons resultados. Um dos livros mais completos que achei, descrito
como um “resumo” de 762 páginas, foi A história do ateísmo, de Georges
Minois. Segundo o autor, livros que tratam do tema são tão raros que o mais
completo deles, publicado em quatro volumes, foi editado nos anos 1920 na
Alemanha e nunca mais atualizado. Trata-se da obra de F. Mauthner, Der
Atheismus und seine Geschichte im Abendlande [O ateísmo e sua história
no Ocidente]. Mais um livro que apreciei muito foi Do ateísmo ao retorno
da religião, escrito pelo teólogo francês Denis Lecompte76. Bem menos
denso que o de Minois, ele é importante por apresentar o assunto de
maneira distinta, mas igualmente honesta.
Porém, para não transformar este texto numa tediosa resenha de
publicações sobre o assunto, deixe-me apenas dizer que houve ainda alguns
outros materiais muito interessantes que me ajudaram na formulação deste
capítulo. Estes citarei apenas em nota77.
Pré-história
Normalmente a Pré-história é entendida como aquele período anterior à
invenção da escrita e do uso dos metais, denominado pela arqueologia e pela
antropologia como Idade da Pedra. A interpretação desse período vai
depender do background cultural de cada pesquisador.
É que, em termos gerais, muitos entendem que o ser humano é o resultado
de um processo evolutivo, contínuo, a partir de formas primitivas, enquanto
outros, geralmente religiosos, acentuam que há um hiato, um salto
qualitativo muito grande entre o homem e os animais que não pode ser
explicado por transformações sucessivas, mas pela diferença entre ambos.
Portanto, não é a existência do homem pré-histórico e sim sua natureza que
divide opiniões.
Qual seria, pois, a singularidade desse gênero homo? Talvez aquilo que
uns chamam de consciência “mítica”, outros “religiosa”, poderia estar no
cerne da distinção humana e, portanto, mereceria ser estudado como uma
das mais importantes características de nossa raça. Afinal, desconheço
qualquer pesquisa comportamental em que alguém conseguiu tirar a banana
de um primata (seja ele orangotango, chimpanzé ou lêmure) sob a promessa
de que ele receberá infinitas bananas depois da morte. Esse tipo de barganha
que troca o agora pelo porvir eterno parece funcionar só com seres humanos.
Inclua-se ainda o fato de que somos os únicos, em meio à natureza, a exigir
singularidade.
O próprio Thomas Huxley, considerado o “buldogue de Darwin”, embora
advogasse com fervor a estreiteza genealógica entre o homem e os símios,
concluiu seu famoso livro O lugar do homem na natureza78 com uma nota
sobre a necessidade humana de encontrar um lugar que lhe seja
essencialmente único. Em outras palavras, conforme admissão recente do
primatólogo Frans de Waal, desde o bípede implume de Platão até o animal
moral de Richard Wright, continuamos como humanidade tentando achar
aquilo que nos torna singulares, aquilo que nos faz sentir especiais no
universo e nos torne livres da ideia de sermos apenas animais79.
Se essa distinção é real ou fictícia falaremos em outro momento. Por ora, a
questão que interessa é: Seria possível encaixar na linha evolutiva do Homo
erectus, Homo-faber, Homo sapiens, a figura adicional do Homo religiosus
(o que crê) ou do Homo scepticus (o que duvida)?
Um pouco de antropologia
Desde a era Darwin, os antropólogos amam dar nomes difíceis para os
supostos ancestrais da raça humana, e a lista genealógica muda quase como
atualizações de aplicativos. Em todo congresso surge uma nova proposta, e
não é difícil perceber ideologias políticas, filosóficas e governamentais por
detrás tanto de quem defende a ideia como dos que reagem a ela. Não estou
falando de teoria da conspiração. Quem lida com o mundo acadêmico sabe
que essas coisas existem!
Quer um exemplo? Hoje é muito comum falar que o homem moderno
evoluiu da África, mas, nos anos 1960 isso era inadmissível para grande parte
dos antropólogos. O motivo da resistência estava na agenda racista de
acadêmicos de renome da época. Em 1962, só para citar um caso, o
antropólogo americano Carleton Coon, famoso professor de Harvard,
afirmou: “Se a África foi o berço da humanidade, não passou de um jardim
de infância como qualquer outro. A Europa e a Ásia foram realmente nossas
principais escolas”80.
Assim como ele, uma grande leva de antropólogos sociais preferiu falar de
um poligenismo a uma origem única da humanidade. Essa ideia de que
todos viríamos de um mesmo casal de ancestrais parecia coisa de
criacionistas tentando defender a estória de Adão e Eva. Para eles, os seres
humanos evoluíram de modo independente em diferentes regiões doplaneta, pelo que consideravam legítimo falar em “raças humanas”, assim
mesmo, no plural, classificando-as, inclusive, em superiores e primitivas.
Sei que alguém poderia dizer: “Mas isso é coisa do passado, as teorias mais
recentes já superaram esse discurso racista”. Será? Não estou tão seguro
disso. Para mim, a genialidade do discernimento temporal não é interpretar
a história apenas quando ela se torna passado. É preciso perceber o
movimento do tempo enquanto podemos ser testemunhas dele, e não
especialistas do que já se foi.
O fato é que a paleoantropologia, isto é, o estudo dos chamados
hominídeos, seus fósseis e as evidências deixadas por eles, revela-se um
amontoado particularmente complexo de hipóteses isoladas, atualizáveis e,
em parte, bem contraditórias entre si.
Esqueça, portanto, aquela figura bonitinha do seu livro de biologia em que
Esqueça, portanto, aquela figura bonitinha do seu livro de biologia em que
a sequência evolutiva é vista de modo linear como se o Homo ergaster desse
origem ao Homo erectus, passando depois para o Homo habilis, o
Australopithecus, o Neandertal até chegar ao Homo sapiens e ao homem
moderno (sapiens)81. Pior ainda quando esse desenho vem sob o título
“Ancestrais do ser humano”. Tal tipo de imagem faz persistir a falácia linear
de que aquelas figurinhas antropomórficas que estão ali são modelos mais
antigos de nós mesmos. Não há base alguma para essa afirmação.
Interessante que quando eu via essa imagem na pré-adolescência eu já me
perguntava: “Onde está a mulher nessa linha? Os homens se transformaram
uns nos outros assim de uma hora para outra?”. A pergunta pode ser
ingênua, mas não deixa de ter sentido. Primeiro porque não basta um casal
de primatas para garantir a evolução, pois os descendentes também devem
ser férteis e acasalar entre si ou com parceiros geneticamente compatíveis, o
que torna o caso mais complicado do ponto de vista probabilístico. Segundo
porque a ausência da mulher não deixa de ser suspeita. Seria este um
exemplo de ideologia na ciência? Teríamos aqui um caso de misoginia
inconsciente dos primeiros teóricos do evolucionismo? Deixo a pergunta em
aberto para que você conclua por si mesmo.
Quebra-cabeça evolutivo
Voltando ao assunto da taxonomia desenhada pelo evolucionismo, as mais
recentes propostas dizem que o Homo sapiens é a espécie sobrevivente do
gênero Homo, mas não a única a ter existido. Acredita-se que houve outras
que foram se extinguindo com o tempo e o difícil é saber quais delas foram
ou não ancestrais do Homo sapiens.
Os que advogam a teoria da substituição dizem que a incompatibilidade
entre o Homo sapiens e os demais grupos fez com que ele evoluísse de
modo independente e fosse o único a resistir, ao passo que os demais foram
extintos. Por outro lado, existem o que preferem acreditar numa
miscigenação das antigas espécies, de modo que o Homo sapiens procriou
com outros grupos humanoides, como os neandertais e o Homo erectus.
Isso teria acontecido paralelamente, de modo que, ao mesmo tempo em que
surgia na África uma linhagem humana descendente de sapiens e erectus,
nascia outra na Europa, fruto da mistura de sapiens e neandertais. Deste
modo, africanos e europeus seriam aparentados, mas não constituiriam uma
mesma raça humana.
A polêmica sobre esse assunto ainda permanece. Não existe qualquer
consenso acerca de quais grupos deveriam ou não ser considerados espécies
em separado e sobre quais deveriam ser subespécies umas das outras. Em
alguns casos, isso se dá pelo exagero de afirmações feitas com base numa
lacuna de evidências que é a escassez de fósseis que pudessem validar a
teoria. Em outros, por causa das diferenças mínimas usadas para distinguir
espécies no gênero Homo – outro assunto ainda em discussão.
Recentemente, novos estudos sobre DNA têm colocado mais lenha na
fogueira. Vários antropólogos temem que a comprovação de uma teoria da
miscigenação possa trazer de volta a pandora do racismo ao afirmar uma
significativa diversidade genética entre as populações humanas atuais.
Agora imagine a dificuldade, neste cenário nada unificado, de se
estabelecer uma teoria para a origem da crença e da descrença humana que
seja realmente objetiva (do ponto de vista científico) e agrade a todos. Tarefa
difícil, para não dizer impossível.
Subjetivismo em alta
O tema das origens se torna mais delicado quando se percebe que os
estudos clássicos neste sentido – tanto os que advogam quanto os que negam
a anterioridade da fé – baseiam-se em indícios escassos – fósseis, ferramentas
de pedra, pinturas rupestres, que, por sua vez, são interpretados de modo
subjetivo por parte do pesquisador moderno.
Por um bom tempo, a partir dos anos 1960, a Nova Arqueologia, também
chamada processualismo, buscou com intensa energia encontrar
regularidades no comportamento humano que pudessem ser medidas com
rigor científico. A abordagem positivista era o sonho de consumo dos
arqueólogos, antropólogos e também da sociologia.
Mas os anos 1980 trouxeram consigo um profundo questionamento às
pretensões processualistas de se tornar uma ciência exata. Alicerçados nos
trabalhos de Ian Hodder, Michael Shanks e Christopher Tilley, esse novo
movimento, chamado pós-processualismo, seria uma corrente de diversos
segmentos contrários ao processualismo, reveladores da realidade que a
interpretação arqueológica e antropológica ainda dissertava de maneira
subjetiva, pois o que a verdade apurava a partir do registro arqueológico era
muitas vezes relativa ao ponto de vista do pesquisador responsável por
escavar os fósseis e apresentar os dados.
O registro rupestre, por exemplo, é uma daquelas facetas com que o
arqueólogo pré-histórico se depara no decorrer de suas atividades e que
implica maior subjetividade nas diferentes tentativas de análise e
interpretação do que estaria por detrás daqueles símbolos. Afinal, seus
autores não estão mais vivos para explanarem o que quiseram dizer com
aquilo. Já vi a mesma figura rupestre interpretada diferentemente como
calendário, cena comum de caça e ritual de iniciação. E o pior é que todas
foram tratadas como conclusões científicas a despeito das divergências
subjetivas de seus pesquisadores.
Todo esse esforço interpretativo era fruto de uma cooperação entre
arqueologia e sociologia, tentando resolver o problema do hiato temporal
entre nós e a Pré-história, por meio de observações sistemáticas atuais de
comunidades ditas “primitivas” como os esquimós do Alasca e os aborígenes
da Austrália. Importantes teóricos como Émile Durkheim, Lewis Binford e
Claude Lévi-Strauss lançaram mão desse método analítico.
Porém, fora a temerária permanência de um discurso racista e colonialista
na interpretação dessas culturas – Foucault já alertara quanto a isso, temos
ainda o problema do anacronismo e da subjetividade na análise da cultura
material. A assimilação de um suposto pensamento de povos pré-históricos a
partir do pensamento de grupos éticos atuais ditos “primitivos” é um pulo
teórico bastante contestável.
Quer alguns exemplos adicionais de discrepância na análise dos dados?
John Lubbock (1834-1913) estudou atentamente povos “primitivos” da
Austrália e da Terra do Fogo, concluindo que a humanidade seria
basicamente ateia em suas origens, isto é, que o conceito de divindade veio
apenas mais tarde na evolução humana82. Já Edward Taylor (1832-1917),
analisando as mesmas evidências, chegou a uma conclusão contrária,
dizendo que o homem é essencialmente religioso desde suas origens e que o
animismo seria a forma original de religiosidade humana83.
Antropologia da religião
Depois de ler longamente os resultados de várias pesquisas sobre religião e
o homem “primitivo” (embora eu não aprecie muito essa expressão), resolvi
tomar minha posição sobre esse assunto, abdicando num primeiro momento
de minhas pressuposições religiosas. O objetivo é tentar ver que conclusões
ou hipóteses eu poderia levantar a partir da cultura material disponível, caso
eu não tivesse a Bíblia como fonte de informação.
Tal exercício ajudaa iniciar diálogo num campo comum com aqueles que
possuem uma cosmovisão diferente da minha. Além disso, me permite criar
uma antropologia da religião, ainda que provisória, assumidamente pessoal e
esclarecedora de meu pensamento. Eis as conclusões a que cheguei.
1. Não posso assumir uma postura de desprezo em relação a tudo o que se
publicou sobre o assunto. Caso contrário, corro o risco de cair numa atitude
anti-intelectualista e anticientífica. Contudo, há boas razões para ser no
mínimo cauteloso ao fazer inferências a partir de materiais ágrafos ou da
comparação entre modernas sociedades caçadoras-coletoras e o homem pré-
histórico.
2. Está claro, a despeito das divergências interpretativas, que o homem
pré-histórico era um ser que abstraía significado espiritual das coisas. Quer
seja de uma forma mágica, religiosa ou mítica, ele era definitivamente um
ser espiritual ou, pelo menos, “espiritualizante”, pois não se contentava com
o sentido meramente físico das coisas.
3. De fato, vestígios de religiosidade existem entre os povos primitivos.
Ainda que revelados em forma de superstições, magias e rituais animistas
esses elementos são a expressão clara de um senso do Sagrado. Se houve
mesmo uma “revolução” cognitiva da humanidade eu não sei. Também não
posso afirmar cientificamente a realidade de uma revelação divina, mas que
a religião parece nascer em conjunto com as primeiras abstrações do Homo
sapiens, disso não tenho dúvida. O homem pré-histórico (seja ele quem for)
passou a crer a partir do momento em que passou a pensar.
4. A tentativa de se negar o caráter religioso ou espiritual dessas evidências
talvez esteja na ambiguidade fundamental de qualificar como ateu ou não
religioso tudo aquilo que fuja da concepção moderna e ocidental de
“religiosidade”. Antigas culturas podem ignorar a nossa concepção de Deus,
mas isso não significa que não tivessem uma ideia própria do Sagrado.
5. Alguns indícios levam a crer que a mentalidade pré-histórica era
monista, mas não conforme o monismo clássico que conhecemos hoje. O
homem daquela época não distinguia entre natural e sobrenatural, entre o
culto e o trabalho. Havia uma recorrente dedicação da atividade comum à
divindade, em reconhecimento à sustentação da vida. Religião e trabalho
eram uma coisa só para ele, o que não quer dizer que não soubesse a
diferença entre o comum e o Sagrado, entre o santo e o profano. O homem
pré-histórico apenas conseguia ver algo que hoje já não é mais admissível na
sociedade: o conceito de mundo físico como reflexo de realidades
espirituais.
6. Há elementos suficientes para advogar uma qualificação imaterial de
certas relações entre o homem e o universo que o rodeava. A clássica
evocação do fascinans e o tremendum, isto é, do fato de estar “fascinado” e
de “tremer” diante do Sagrado, é lógica para classificar o sentimento das
comunidades pré-históricas.
7. Considerando que as marcas de rituais sagrados estão em toda parte, não
é difícil admitir a universalidade de um sentimento religioso nos povos
primitivos. Devo, porém, admitir que qualquer tentativa de querer com isso
provar uma revelação original de Deus seria, num primeiro momento, um
raciocínio abusivo.
8. Se houve mesmo uma gradação evolutiva conforme a teoria de Darwin,
a atividade religiosa – contrária ao que afirmam alguns ateus modernos –
não foi impeditiva da evolução, pelo contrário, impulsionou-a. Quer tenha
surgido no Mioceno ou no Paleolítico superior – conforme as hipóteses que
li, o fato é que ir ao topo de uma pedra para oferecer sacrifícios não tornou o
clã menos apto à sobrevivência do que o seria se limitassem seu
comportamento à caça e à colheita.
9. Pode-se até conjecturar que o sentimento religioso visto na Pré-história
seria uma página ultrapassada da evolução e que agora não precisamos mais
desse sentimento. Será? Quando ouço antropólogos evolucionistas
descrevendo em detalhes a suposta cena de um grupo humano primitivo
usando ópio, dançando em torno de uma fogueira e prestando devoção a um
feiticeiro e um totem, não posso deixar de imaginar outra cena: alunos
daquele mesmo professor correndo, depois da aula, para uma balada muitas
vezes regada a maconha e álcool, devotando sua existência a um cantor
famoso e a totens modernos como marcas de carro, seriados, filmes, roupa e
celular. Ultrapassamos a religião ou apenas mudamos o objeto de culto,
mantendo, porém, o rito? Algo a se pensar.
Espero, sinceramente, que esta última análise não ofenda você, que se
identificou com a cena descrita. Foi apenas uma leitura social. Afinal, se
interpretamos com facilidade a sociedade alheia, não devemos nos ofender
de interpretarem também a nossa. Se o homem primitivo tinha uma
consciência mítica, o de hoje tem um fascínio pela ficção e pelo marketing.
Os totens mudaram de forma, mas continuam os mesmos.
Antes recorria-se ao guru, hoje vamos atrás dos especialistas em mercado,
dos descolados, dos midiáticos. Tudo como uma espécie de soro contra o
não afeto e a efemeridade da existência. Como nossos ancestrais, queremos
com ritos modernos saciar em pequenas porções nossa sede de sentimentos
bons. A cada semana uma nova coleção na vitrine, nova temporada do
seriado, novas tendências no mercado da moda. Um restaurante recém-
inaugurado no centro, um filme legal que estreia nos cinemas. O que seria
isso senão seres humanos agindo como fiéis no templo do consumismo?
Não quero, contudo, fazer disso uma tese. Foi apenas uma digressão ou
provocação mental, sem pretensões sistemáticas. Afinal de contas não quero
ser criticado por cair no mesmo erro processualista a que fiz menção poucas
linhas atrás. Não obstante, você há de concordar comigo que usamos com
facilidade as coisas, mas não temos a mesma naturalidade para refletir sobre
elas e o que significam. O uso parece natural, mas a reflexão tem de ser
provocada.
E o ateísmo?
Estou ciente de que as conclusões anteriores parecem não abrir espaço
para o ateísmo na Pré-história. De fato, se trabalho apenas com os elementos
antropológicos que a arqueologia me traz, fica difícil encontrar evidências de
ceticismo ou ateísmo nessa fase da história humana.
Temos indícios apenas daquilo em que se acreditou, mas não daquilo que
se negou e, mesmo que o tivéssemos, para que a negação se consolide na
história, é necessário que haja antes o elemento a ser negado. É por isso que,
na lógica aristotélica, uma proposição ontológica negativa dificilmente será
provada.
Fica, é claro, a possibilidade de que as interpretações dadas estejam todas
erradas e as externalizações pré-históricas nada tenham a ver com o Sagrado.
Mas se assim for, esse sentimento não poderia ser chamado de ateísmo, pois
não havia nenhuma divindade para ser negada. Muito menos ceticismo, pois
não havia nada para ser descrido.
Além disso, permanece a pergunta: De onde veio o sentimento humano de
busca pelo Sagrado? Em que momento e por que ele irrompeu na trajetória
da humanidade? Seria uma imposição social como supôs a proposta
marxista? Ou uma necessidade do inconsciente como disse Freud? Seja
como for, ainda que as implicações religiosas na Pré-história estejam
insuficientemente sistematizadas e o estudo antropológico da indiferença
espiritual seja inexistente, não vejo problema em admitir teoricamente que o
questionamento às crenças religiosas já estivesse presente nas sociedades
primitivas.
Se me permitem usar por um instante a Bíblia, é possível perceber no
testemunho do Gênesis que a apatia e oposição a Deus já eram vistas desde o
princípio da história humana. Caim, os pré-diluvianos, a mulher de Ló, os
habitantes de Sodoma são todos representantes de uma antirreligiosidade,
ou, pelo menos, de um antagonismo àquela religião revelada por Javé. É
claro que a descrição é pejorativa, mas, ainda assim, válida para afirmar que
até a Bíblia reconhece o ceticismo e a heterodoxia nos primórdios da
humanidade.
76 Denis Lecompte. Do ateísmo ao retorno da religião: Sempre Deus? (São Paulo: Loyola, 2000).
77 D. Berman. A History of Atheismin Britain: from Hobbes to Russell (London: Routledge, 1990);
M. J. Buckley. At the origins of modern atheism (New Haven: Yale University Press, 1987); A.
McGrath. The Twilight of Atheism: The Rise and Fall of Disbelief in the Modern World (London:
Rider Books, 2004); James Thrower. A Short History of Western Atheism (London: Pemberton,
1971). Outra referência ainda mais antiga, da qual infelizmente não consegui qualquer acesso, é um
livro publicado há mais de três séculos, em 1663, cujo título é Scrutinium atheismi historico-
aetiologicum [Investigação histórico-etiológica do ateísmo], de Spitzel.
78 Disponível em . Acesso em: 13/08/2017.
79 Frans de Waal. Eu, primata: por que somos como somos (São Paulo: Companhia das Letras,
2007).
80 Carleton S. Coon. The Origins of Races (New York: Alfred A. Knopf, 1962), p. 656.
81 O Homo sapiens sapiens é considerado uma subespécie do Homo sapiens. As características do
Homo sapiens sapiens são as que definem o homem moderno. No entanto, desde algum tempo essa
denominação deixou de ser usada, uma vez que se descartou o nexo filogenético entre o Homo
neanderthalensis e o ser humano de hoje em dia. Mas como nossos estudos a partir do DNA estão
ressuscitando essa proposta, é possível que a expressão volte a aparecer nos livros didáticos.
82 John Lubbock. The Origin of Civilization and the Primitive Condition of Man: Mental and
Social Condition of Savages (Cambridge: University Printing House, 2014).
83 Edward Tylor. Primitive Culture (1871). Disponível em . Acesso em: 13/08/2017.
http://www.gutenberg.org/ebooks/2931
https://archive.org/details/primitiveculture01tylouoft
Capítulo 10
Ateísmo na Antiguidade
Como foi dito no capítulo anterior, não é tarefa fácil traçar uma cronologia
linear do pensamento ateísta. O que se pode dizer é que desde longo tempo
já existiam descrentes no mundo, embora fossem sempre uma minoria quase
anônima. Daí a dificuldade de mapeá-los na história. Um exemplo clássico
foi Jean Meslier (1664-1729), ateu convicto, que permaneceu padre e
celebrou missas até o final de sua vida, em 1729. Não me surpreenderei se
houver muitos outros Mesliers ocultos na história.
Outro dado importante é que, ao falar de ateísmo na Antiguidade, temos
de cuidar para não cometer erros de anacronismo, isto é, transferir
artificialmente um dado comportamento para um tempo e realidade que
não lhe dizem respeito. Por isso, não se pode descrever a descrença dos
antigos de maneira indiscriminada, sem nenhum rigor. Ao apresentá-la, é
importante que se explique em que sentido seus proponentes poderiam ou
não ser classificados como “ateus”.
Poucos talvez saibam, mas no passado os primeiros cristãos foram,
oficialmente, declarados ateus pelo império Romano e, por isso, proibidos de
exercer sua fé religiosa.
Quem dá essa informação é Atenágoras, erudito cristão de Atenas, que
escreveu no segundo século uma apologia ao Imperador Marco Aurélio
chamada Legatio pro Christianis. O motivo da acusação de ateísmo não era
porque os cristãos não aceitassem a existência de Deus, mas porque
desprezavam os deuses greco-romanos.
Essa, aliás, foi a mesma acusação sofrida 600 anos antes por Sócrates, um
dos maiores pensadores da cultura grega. Ele foi condenado a beber veneno,
porque havia corrompido a juventude ao questionar a eficácia e a
moralidade dos deuses do Olimpo.
Há ainda que considerar que o ateísmo é uma, mas não a única forma de
questionamento de Deus. Temos também os desdobramentos do
agnosticismo, deísmo, panteísmo e outras formas de ceticismo que não
negam diretamente a existência de uma divindade, mas desconfiam
fortemente da descrição da teologia proposta pela igreja. Neste capítulo,
exceto por uma breve menção à Mesopotâmia e ao budismo, nosso foco
ficará apenas na história clássica ocidental, por questões de objetividade do
tema.
O ceticismo de Pirro e Homero
Se hoje devemos ter cuidado em definir alguém como ateu convicto
imagine no passado. Vamos pensar no caso de Pirro. Muitos o tratam como
pioneiro do ateísmo, com o que eu discordo. Ele viveu em Élida, oeste da
Grécia, entre os séculos 4 e 3 a.C. Fez parte do exército de Alexandre, o
Grande, e foi um dos primeiros filósofos céticos, fundador da escola
pirrorista.
O ceticismo de Pirro, porém, era contra toda forma de dogmatismo, até
daquele que descria. Ou seja, muitos que hoje afirmam sem qualquer
dúvida que Deus não existe não teriam o apoio dele. Sua postura intelectual
estava mais para o agnosticismo empírico que para o ateísmo como
entendido hoje. Se Pirro tivesse vivido no século 21 e fosse inquirido acerca
da existência de Deus, provavelmente diria que a concepção de um universo
criado por um ser transcendente é algo lógico e possível. Porém, também é
possível imaginar um cosmo solitário e materialista. Como ambas as
hipóteses são verossímeis, mas não verificáveis, é impossível afirmar uma
coisa ou outra.
Veja, no entanto, que interessante a visão questionadora de Deus que
encontramos em outros textos da Antiguidade Clássica. Nas famosas Ilíada e
Odisseia de Homero, compostas no século 9 a.C., os deuses são descritos
como corruptos, vãos, caprichosos e egoístas – seres que, mesmo cultuados,
não merecem respeito. Perceba que, embora o autor demonstre acreditar na
existência das divindades, exalta mais o heroísmo humano que as desafia e as
vence em diferentes situações.
Por isso o poema, em vez de enaltecer o panteão do Olimpo, destaca os
heróis humanos e semi-humanos como Ulisses, Aquiles, Agamenon, Heitor
e Páris. Salvaguardadas as peculiaridades de cada tempo, arrisco dizer que a
literatura homérica foi a primeira grande obra humanista da história
ocidental.
O Antigo Oriente
Para representar o mundo do Antigo Oriente, eu elegeria o épico de
Gilgamesh. Embora suas origens retrocedam ao segundo ou terceiro milênio
a.C., as cópias que temos vêm do século 7 a.C., da biblioteca de
Assurbanipal, rei da Assíria. Portanto, estamos no contexto da Antiguidade
Clássica. Ali, semelhante aos textos homéricos, o protagonismo da histórica
recai sobre heróis humanos ou semi-humanos como Enkidu, Utnapishtim e
o próprio Gilgamesh. Novamente, percebe-se o poder dos deuses e a
predominância humana a despeito disso.
A saga se resume nisso: Gilgamesh era um poderoso rei de Uruk, protegido
pelo deus Sol, que se tornou cruel e despótico para com seu povo. Num ato
de extrema tirania ele obrigou o povo a construir uma gigantesca muralha
em torno de sua cidade. Amedrontados e fatigados, os cidadãos clamaram à
deusa Ishtar, que enviou Enkidu para salvá-los. Este herói vivia nas florestas
e nada sabia a respeito do homem nem do cultivo da terra. Era o símbolo
máximo do ser incivilizado. Seus cabelos longos e emaranhados são descritos
no texto como sinal de personalidade rude e mais primitiva.
Ele deveria desafiar e vencer Gilgamesh em um duelo, mas, em vez disso,
tornou-se amigo do rei. A amizade de ambos os levou a diversas aventuras,
destruindo monstros e harmonizando o mundo. Porém, Ishtar sentiu ciúmes
dessa amizade e tentou seduzir Gilgamesh, sabendo que aquele que a
amasse morreria. Esse, porém, não aceitou ser seu amante, pelo que ela, em
ódio, envenenou Enkidu, infligindo a ele uma doença que o deixou
agonizando por dias antes de morrer. Com a perda do amigo, Gilgamesh
resolveu ir atrás de novas aventuras, até encontrar Utnapishtim, um homem
imortal que lhe revelou a trama divina contra a humanidade: em tempos
remotos os deuses decidiram inundar a terra de Shuruppak com um terrível
dilúvio. Apenas ele, com algumas pessoas e animais que ele mesmo salvou,
conseguiram escapar da enchente, fruto de um capricho dos deuses. Os
homens faziam muito barulho e atrapalhavam sua sesta.
Tal construção de argumentos fez o assiriólogo William L. Moran concluir
que estamos diante de um verdadeiro relato humanista da antiga Suméria84.
Ali se pode ver uma insistência tanto nos valores, quanto na limitação do
gênerohumano. O caráter dos deuses não é descrito de maneira piedosa e o
protagonismo do homem em desafiá-los é emblemático.
Budismo: um caso à parte
Não se pode traçar um quadro completo da história do ateísmo, ainda que
resumido, sem passar pelo budismo. Não que se trate de um movimento
necessariamente ateísta, afinal de contas continua sendo um seguimento
religioso. Contudo, distingue-se em muitas coisas dos cultos
tradicionalmente teístas e animistas.
O budismo nasceu no norte da Índia, atualmente o Nepal, no século 6
a.C., com Siddhartha Gautama, mais tarde cognominado Buda (o
Iluminado). Ele era um rico príncipe pertencente à família dos Śākyas que
deixou tudo para buscar a iluminação.
De acordo com seus biógrafos, não era intenção de Buda converter
ninguém. Seu intuito era iluminar as pessoas com seus ensinamentos, frutos
de sua própria experiência, e deixar que elas mesmas experimentassem a luz
por si.
Hoje o budismo se espalhou por lugares como Índia, Ásia, Ásia Central,
Tibete, Sri Lanka, Sudeste Asiático, bem como China, Myanmar, Coreia,
Vietnã e Japão. Embora em menor escala, ele também pode ser encontrado
na Europa, na África e nas Américas.
Mas seria o budismo uma religião realmente sem Deus? A resposta é não,
por vários motivos. Primeiro vem a questão de ser ou não o budismo uma
religião ou apenas uma filosofia de vida. Eu, particularmente, enxergo como
religião, pelo menos nas formas que vemos sua prática nos dias de hoje.
Digo “formas” porque o budismo está longe de ser um seguimento
uniforme. Ademais, as divergências em torno do que realmente Buda
ensinou são mais distintas que as ramificações do cristianismo em torno dos
ensinos de Jesus.
Além disso, ainda que Siddhartha pretendesse criar um caminho espiritual
sem Deus, sentir-se-ia frustrado diante do que se tornou o seu movimento.
No antigo Ceilão (atual Sri Lanka) e em Burma (República de Myanmar),
ainda há muitos budistas que assumem os ensinamentos daquela forma
antiga, tradicionalmente vinculada ao Buda. Porém, no Tibete, na China e
em outros países, o budismo tem se tornado uma religião de “muitos ‘deuses’
e muitos ‘senhores’”. Buda prometeu tornar o homem livre através do
conhecimento. Mas para muitos homens o conhecimento não é o bastante.
Eles se sentem na necessidade de adorar, de modo que os deuses foram
trazidos de volta para dentro de uma religião que tinha começado pela
pretensão de viver à margem de qualquer tipo de divindade.
É claro que se você perguntar a um budista se Deus existe ele dirá que
você precisa ver isso por si mesmo. O conceito básico de um Deus eterno,
autossuficiente e independente não aparece nos escritos de Buda.
Entretanto, embora se esquivem em falar de um Deus pessoal, os budistas
não negam sua existência, pois não creem poder afirmar coisas sem
comprová-las na prática. Por isso eles preferem dar orientações, e não
crenças, embora, às vezes seja difícil diferenciar entre uma coisa e outra.
Portanto, é comum dizer que o budismo está mais para religião não teísta do
que ateísta, pois não faz menção a nenhuma divindade, porém não nega a
existência de nenhuma delas.
O paradoxo de Epicuro
É impossível fazer esse levantamento sem falar de Epicuro. Ele não era
necessariamente ateu, mas descria na existência de um Deus preocupado
com os seres humanos. Sua filosofia está mais próxima do que Voltaire
chamaria no futuro de deísmo – um Deus que existe, é responsável pela
existência do universo, mas não se importa com ele.
Um paradoxo atribuído a Epicuro, que voltaremos a comentar, explica por
que, em sua concepção, é impossível crer num Deus bom e poderoso, uma
vez que lidamos com o problema do mal. Ou Deus quer abolir o mal e não
pode; ou ele pode, mas não quer. Se ele quer, mas não pode, ele é
impotente. Se ele pode e não quer, ele é cruel. Se nem quer nem pode, é
invejoso e impotente: portanto, nem sequer é Deus. Mas se Deus tanto pode
quanto quer abolir o mal, como pode haver maldade no mundo? Por que
razão é que não os impede?85
Império Romano
Dos tempos de Roma, extraímos as figuras de Cícero e Lucrécio, dois
grandes pensadores que viveram no século 1 a.C. É claro que o ateísmo
como conhecemos hoje também não se encontra presente neles, pois seus
deuses também possuem certa forma de “existência”, embora muito afastada
dos homens. Talvez seria melhor chamá-los de deístas. Contudo, esses dois
personagens são reveladores, pois mostram que questionamentos a Deus ou
às imagens distorcidas de Deus já é algo que vem de longa data. Afinal todos
esses autores não pareciam se revoltar com outra coisa senão a propaganda
religiosa que a elite financiava, a fim de sustentar a injustiça e o domínio
impiedoso dos povos.
Lucrécio, por exemplo, dizia que a religião era algo inventado pelos líderes
para estar a serviço do terror. Cícero, por sua vez, grande advogado e
estadista dos dias de Júlio Cesar, entrou em crise existencial depois da morte
de sua filha Túlia. Ele então escreveu um livro “sobre os deveres” no qual
defendeu que os homens são livres e não devem nada aos deuses. Esses seres
divinos não têm controle algum da história. Nada na vida é certo e seguro,
tudo está nas mãos do acaso, não há como fugir disso.
Idade Média
Devido à hegemonia eclesiástica nos tempos medievais, é praticamente
impossível encontrar ali pensadores declaradamente ateus ou grupos
organizados sob esta bandeira. Se houve, foram poucos e discretos.
Metafísica, religião e teologia eram os temas de maior interesse entre os
pensadores.
Porém, fragmentos de correntes contrárias ao teísmo oficial da Igreja
podem ser vistos nessa época, como, por exemplo, o ceticismo, cuja doutrina
defende a impossibilidade de se alcançar o “verdadeiro conhecimento”, e o
naturalismo, segundo o qual quem governa o mundo são apenas as forças
naturais. Todos, é claro, vieram do mundo greco-romano.
Acrescente-se a isso o surgimento de algumas concepções heterodoxas do
Deus cristão. Elas, de certa forma, conseguiram conviver com a teologia
oficial de Roma, embora incluíssem em seu bojo ideias bastante particulares
como as definições sobre a natureza, transcendência e cognoscibilidade de
Deus. Autores como João Escoto Erígena, David de Dinant, Amalrico de
Bena e os Irmãos do Livre Espírito mantinham pontos de vista cristãos, mas
com tendências panteístas.
Nicolau de Cusa sustentava uma forma de fideísmo que chamou de docta
ignorantia (ignorância aprendida), afirmando que Deus está além da
categorização humana e que o nosso conhecimento dele é limitado pela
conjectura. Guilherme de Ockham inspirou tendências antimetafísicas com
a sua limitação nominalista do conhecimento humano para objetos
singulares e afirmou que a essência divina não poderia ser intuitiva ou
racionalmente apreendida pelo intelecto humano.
Tempos modernos
Todo estudante de história sabe que as definições de períodos, como Idade
Antiga, Idade Média etc., são atributos artificiais difíceis de mensurar
milimetricamente. Ou seja, não houve um dia em que um europeu fosse
dormir na Antiguidade e acordasse no Período Bizantino.
Assim, falamos por aproximação cronológica e conceitual, de modo que os
tempos modernos começam com uma série de outros movimentos de
singular importância como o renascentismo, o empirismo, a revolução
científica etc. Ao que tudo indica, os movimentos ateus ou, pelo menos,
desacordados com o teísmo eclesiástico oficial começam aos poucos a sair de
seu anonimato e ganhar ares de publicidade.
Entre os séculos 15 e 16, por exemplo, temos o italiano Pietro Pomponazzi,
que negou a imortalidade da alma e, ainda veladamente, a existência de
Deus. Seu compatriota Maquiavel separou a política da religião e
considerou esta última um instrumento do poder.
Nesta época, embora a palavra atheos já existisse no vocabulário grego
antigo e até no da Bíblia Sagrada (Efésios 2:12), não havia um cognato que a
descrevesse como seguimento ou escola de pensamento. Então surgiu no
século 16 o termo ateísmo. Deve-se esclarecer, porém, que a ideia de um
ateísmo positivistasó seria sistematizada a partir do século 18, quando
pensadores declaradamente descrentes em Deus começaram a ter certa
influência política e filosófica, especialmente na Europa posterior à
Revolução Francesa.
O que se nota é que o sentimento, mormente reprimido, tornou-se a partir
de então um movimento declarado e quase um senso comum dentro de
determinados grupos de pensadores. Sua força, no entanto, concentrava-se
no território europeu.
A princípio, o intento desses intelectuais era denunciar apaixonadamente
mentiras, desmandos e ilusões atribuídos ao cristianismo. Homens como
Robespierre, Diderot, Holbach e Marx pretendiam libertar as mentes da
influência esmagadora de uma religião que, na visão deles, oprimia e
manipulava os povos. Mas o que realmente deu início a esses movimentos
modernos da negação de Deus?
O Deus de Spinoza
Baruch Spinoza – nascido em 1632 em Amsterdã, falecido em Haia em 21
de fevereiro de 1677 – foi um dos grandes racionalistas do século 17 dentro
da chamada Filosofia Moderna, juntamente com René Descartes e Gottfried
Leibniz. Era de família judaica portuguesa e é considerado o fundador do
criticismo bíblico moderno.
Sua metafísica é resumida na famosa frase em latim “Deus, sive Natura”,
que, traduzida, significa “Deus ou a Natureza”. Há controvérsias se essas
palavras deveras vieram dele, bem como se elas intentavam naturalizar Deus
ou divinizar a natureza. Porém refletem a forma como ele via Deus na
harmonia da natureza vivente, bem como seu pensamento inquisitivo em
relação à Bíblia.
Em seu livro Ética e no Tratado sobre a religião e o Estado, ele delineia a
sua concepção de um Deus despersonalizado e geométrico, contrária a todas
as formas teológicas de então que viam o Criador como uma entidade,
oculta e transcendente, que se revela e age conforme sua vontade soberana.
Sua teoria não compartilhava a ideia de um Deus autocrático, que controla a
tudo e a todos e se refugia em algum ponto distante da abóbada celeste.
Deus como base de sustentação e a condição subjacente da realidade como
um todo. Um Deus imbuído da mais clara evidência e certeza racional; que
se autoconstitui como causa de si e de todas as coisas; que se move em
função de uma necessidade que lhe é intrínseca e gerada de sua própria
essência, a rigor: por meio de processos mecânico-causais e de leis
invariáveis, responsáveis pelo total funcionamento e ordenamento do
mundo.
Há quem diga que a visão de Spinoza era panteísta, pois iguala Deus à
natureza. Logo, ele não seria o criador do mundo, como afirmam as religiões
monoteístas, nem o Motor Imóvel de Aristóteles, que a tudo movimenta.
Igualmente por não haver uma separação entre corpo e espírito, como
afirmou Descartes, Deus seria, nesta concepção panteísta, uma substância
única, de modo que todas as coisas que existem seriam variações dos
atributos infinitos dessa substância fundamental. Deus é o próprio mundo,
Deus é a própria natureza. Nossa mente e nosso corpo finitos são apenas dois
atributos dessa substância infinita. Para Spinoza, nós somos, vivemos e nos
movimentamos em Deus.
Da mesma forma que aconteceu com Giordano Bruno, Spinoza foi
condenado à fogueira por afirmar que o universo é infinito, igualando Deus
à natureza. Antes disso, foi expulso da comunidade judaica e condenado ao
ostracismo por afirmar que todas as coisas que existem são variações de uma
única substância, que é o próprio Deus. Tanto a visão de Giordano como a
de Espinosa, embora não sejam ateias, são, de fato, concepções panteístas da
natureza. Algo, em princípio, inaceitável para tradição judaico-cristã.
Um abalo na história
No dia 1º de novembro 1755, ironicamente no “Dia de Todos os Santos”, o
feriado católico foi interrompido por uma das maiores tragédias da história.
Foi em Lisboa, Portugal, por volta das 9h40 da manhã (horário local). A
cidade foi quase que inteiramente destruída por um terremoto que os
especialistas consideram ter alcançado 9 pontos na escala Richter. As regiões
de Setúbal e Algarve também sentiram os efeitos sísmicos. Em seguida veio
um tsunami com ondas de 20 metros de altura atingido até a costa dos
Estados Unidos.
Some a isso tudo o fato de Lisboa ser uma cidade oceânica, com áreas de
fácil inundação na parte baixa e péssimas condições de construção da época
(a maior parte eram casebres de até sete andares). O porto, é claro, ficou
submerso juntamente com o centro da cidade de Lisboa.
Nas áreas não atingidas pela inundação, irromperam-se incêndios
incontroláveis que duraram pelo menos cinco dias. Os prejuízos foram
incalculáveis. Estimativas somam entre 10 e 90 mil o número de pessoas
mortas em decorrência da catástrofe.
O terremoto, não obstante, trouxe bem mais do que mortes e destruições
físicas. Houve também um abalo filosófico cujas proporções não podem ser
medidas pela escala Richter. Do outro lado da Europa, Voltaire, já com duas
dezenas de obras publicadas, sentiu o chão de suas convicções tremer
juntamente com os efeitos sísmicos.
Onde estaria o grande Criador, Ser Supremo, de bondade e misericórdia,
que largou a esmo o mundo deixando tudo isto acontecer? Castigo, dirão
alguns! Se é um castigo divino; que se penalizem todos, e não apenas uma
parte.
A catástrofe portuguesa realmente fez ruir as concepções que Voltaire tinha
do mundo e, na sua genialidade, ele terminou se tornando o precursor de
outros questionamentos que certamente vieram como consequência de sua
própria decepção com Deus.
Tal coisa, dizia ele, jamais poderia acontecer se a Terra fosse, como até
então se pensava, fruto da criação de Deus, regulada por princípios de
ordem, cuidado e harmonia. Voltaire, então, responde à desilusão com a
mesma força com que esta se apoderara dele.
Para isso usa Cândido (1759), personagem fictício de uma comédia
romântica que Voltaire preferiu assinar com o pseudônimo de Monsieur le
docteur Ralph (Senhor Doutor Ralph). A Igreja Católica é o principal alvo
da obra, através da qual o filósofo francês demonstra com humor que, após o
terramoto que assolou Lisboa, só mesmo alguém muito ingênuo, muito
cândido, poderia continuar a acreditar que vivia num mundo de bem, regido
por bondade e misericórdia.
Num poema intitulado “Sobre o desastre de Lisboa”, Voltaire escreveu:
Ó infelizes mortais, ó terra deplorável.
Ó ajuntamento assustador de seres humanos!
Eterna diversão de inúteis dores!
Filósofos alienados que proclamam: “Tudo vai bem”.
Venham contemplar essas ruínas horrendas,
esses destroços, esses farrapos, essas cinzas malditas,
essas mulheres e essas crianças amontoadas sob mármores partidos,
seus membros espalhados.
Cem mil desafortunados que a terra devora,
que sangrando, dilacerados, e ainda palpitando,
enterrados sob seus tetos, sucumbem sem socorro,
no horror de tormentas findando seus dias!
Diante dos gritos de suas vozes moribundas,
do horror de suas cinzas ainda crepitantes,
vocês dirão: é a consequência de leis eternas
que um Deus livre e bom resolveu aplicar?!
Vocês dirão, vendo esse amontoado de vítimas:
Deus vingou-se, e a morte deles é o preço de seus crimes?!
Que crime, que falta cometeram essas crianças esmagadas
e sangrentas sobre o seio materno?
Lisboa, que não mais existe, teria mais vícios
que Londres, que Paris, submersas em delícias?
Lisboa está destruída e dança-se em Paris.
Espectadores tranquilos, intrépidos espíritos,
contemplando a desgraça desses moribundos,
vocês procuram – em paz – as causas do desastre.
Tudo vai bem – dizem vocês – e tudo é necessário.
Por acaso o universo, sem esse abismo infernal,
sem submergir Lisboa, estava sendo pior?86
Voltaire não se tornou ateu. Ele continuava crendo na existência de Deus.
Porém, não mais em seu cuidado paternal. Antes seu pensamento, à
semelhança de Newton, concebia um universo mecânico que obviamente
exigia a existência de um grande engenheiro idealizador de todas as
engrenagens cósmicas87.
O relógio, figura de linguagem usada por Voltaire, demanda a imagem de
um relojoeiro cósmico que origina tudo que existe. Contudo, um detalhe
passou porseus olhos na ilustração e só veio à tona a partir de uma reflexão
sobre a tragédia de Lisboa. O relojoeiro pode fazer o relógio e abandoná-lo.
Basta que se dê corda e o mecanismo funcionará por si mesmo. Assim
nasceu o deísmo, da ideia de um Deus que dá corda no universo e o deixa
funcionado sem intervir em seu mecanismo. Ele fez e abandonou.
A catástrofe foi motivo para equacionar várias outras questões sobre
religião, ciência e fé. Novos conceitos filosóficos surgiam buscando
encontrar qual o papel do homem na história deste mundo. As grandes
interrogações que se punham, pelo menos na Europa das Luzes, poucas
décadas antes da Grande Revolução de 1789, eram a prevalência (ou não) da
vontade divina e a margem de manobra que o homem tinha para decidir o
seu devir. Em síntese – Deus e o homem, quem decide o quê?
Sistematização da descrença
Se analisarmos o ateísmo como uma posição filosófica explícita e
sistematizada então devemos dar um salto na história e localizar não suas
raízes, mas pelo menos o seu desenvolvimento ou inspiração nas ideias
tardias de René Descartes, John Locke e George Berkeley – embora eles
também não fossem necessariamente ateus.
Todos esses autores citados, do mesmo modo que os mais antigos,
começaram por criticar a imagem de Deus que advinha de uma teologia
corrupta como aquela que nasceu na Idade Média, mas ainda tinha sua
influência na Idade Moderna.
A Queda da Bastilha, o Iluminismo e a Revolução Francesa foram
emblemáticos neste período de transformações mentais. Mais tarde vieram
outros como Feuerbach, Marx, Darwin, Nietzsche e Freud num crescente
rompimento cada vez mais aberto com a religiosidade, especialmente aquela
de raízes judaico-cristãs.
Um desdobramento ainda mais radical das ideias originais queria
ultrapassar os limites da denúncia e fundar um humanismo oficial, absoluto.
Muitos desses pensadores estavam convictos de que baniriam a religião do
Ocidente, e a Europa parecia validar esse anseio.
Ao adentrar os limites do século 20, era impressionante o número de
igrejas que eram fechadas por falta de membros. A teologia advinda da
Alemanha tornara-se cada vez mais liberal e influenciadora de importantes
escolas na Europa e nos Estados Unidos. Os sociólogos finalmente
respiravam os ares de que finalmente a humanidade fundaria um sistema de
governo que fosse o verdadeiro paraíso na Terra, deixando para trás formas
opressoras como o feudalismo, a monarquia e, na era marxista, o
capitalismo. Sua utopia era a fundação de uma sociedade que devolveria ao
homem a liberdade racional que a fé lhe roubou. Este era exatamente o
projeto de Feuerbach e seus sucessores.
Era realmente uma convicção ateísta e social que animava os herdeiros do
humanismo e positivismo de Comte. A religião realmente parecia fadada ao
fracasso. Mas a Segunda Guerra Mundial parece ter frustrado esses
prognósticos. O desencanto com a tecnologia e os governos fez os
sentimentos religiosos ressurgirem como a fênix, embora bem diferentes do
que eram antigamente. Então vieram intelectuais batendo de frente com o
ceticismo, alguns bem anti-humanistas, outros nem tanto. Nomes como
Chesterton, C. S. Lewis, Tolkien, Teilhard de Chardin começaram a fazer
parte da lista de acadêmicos sérios que ainda se apegavam à ideia de Deus.
Assim, a concretização de um paraíso 100% humanístico ficou só na teoria.
Deus e os anjos recusaram bater asas e ir embora. O mundo, a despeito das
novas propostas neoateístas, continua majoritariamente crente em algum
tipo de divindade. O placar está quase 9 a 1 para o teísmo. Vamos
comemorar? De jeito nenhum. O expressivo percentual de teístas no
mundo, desgraçadamente, não parece oferecer vantagem alguma.
Afinal, se crer em Deus é algo realmente virtuoso, e descrer é um chamariz
para castigos, o mundo deveria estar melhor por estar lotado de crentes,
certo? O fato é que o planeta está um caos. Ele não parece mais bem gerido
por governantes religiosos. Quanto maior o número de religiões, maior o
número de guerras, atentados, disputas, corrupção e violência. Será que
realmente o ateísmo tem aqui um ponto a favor de seu discurso?
84 William L. Moran. “The Gilgamesh Epic: A Masterpiece from Ancient Mesopotamia”, in
Civilizations of the Ancient Near East, v. 4, Jack M. Sasson (ed.) (New York: Scribner’s Sons, 1995),
p. 2.327-2.336.
85 A fonte “original” desta citação está numa obra cristã do século 4 produzida por Lactâncio, o que
alguns consideram uma atribuição errada do teólogo cristão. Ela ecoa mais a linha de Carneades que
a do epicurismo. Seja como for, ela está na obra De Ira Dei 13, 20-21. Cf. William Fletcher, in Ante-
Nicene Fathers, v. 7, Alexander Roberts; James Donaldson; A. Cleveland Coxe (eds.) (Buffalo:
Christian Literature Publishing Co., 1886). Revisado e editado eletronicamente para New Advent por
Kevin Knight. Disponível em . Acesso em: 11/12/2017.
86 Apud Edward Paice. A ira de Deus (Alfragide: Casa das Letras, 2008), contracapa.
87 Voltaire. Tratado de metafísica. 2. ed. (São Paulo: Abril Cultural, 1978).
http://www.newadvent.org/fathers/0703.htm
Capítulo 11
Quando crentes viram bandidos
Dizem por aí que contra números não há argumentos. Essa é uma
bandeira defendida por muitos estatísticos. Contudo, deve-se levar em conta
que a objetividade dos números pode contemplar mais de uma conclusão e,
inclusive, induzir ao erro. “Torturem os números que eles confessam” –
dizia o título de um livro sobre o exagero e o mau uso da estatística, escrito
por Pedro Nogueira Ramos88.
Lembro-me, por exemplo, de um militante antirreligioso que tentou
argumentar, com um exemplo à brasileira, usando uma fala semelhante à de
Sam Harris acerca de os presídios terem mais religiosos que ateus
cumprindo pena89, ou seja, os criminosos estão mais no time dos crentes que
dos descrentes. Ele então citou uma pesquisa coordenada pelo sociólogo
Clemir Fernandes segundo a qual os evangélicos são incontestavelmente o
grupo mais numeroso e disseminado nos presídios, especialmente do Rio de
Janeiro.
O estudo de fato existe, embora não publicado, e tive acesso a ele90. O
problema é que quem citou o trabalho não mencionou três importantes
conclusões a que o próprio grupo de pesquisa e seu coordenador chegaram.
1. Os números mostram que esta predominância acompanha o
crescimento populacional dos evangélicos no Brasil, conforme dados do
IBGE. O censo de 2000, comparado ao de 2010, revelou um aumento de
61% daqueles que se diziam evangélicos. Trata-se, portanto, de um reflexo
populacional, e não uma evidência de que crentes são mais perigosos que
ateus.
2. Os dados revelaram ainda uma mudança no perfil dos presidiários,
coincidente com o aumento significativo de evangélicos ali. O ambiente,
apesar de ainda conter rebeliões, é sensivelmente menos tenso, tanto para
presos como para funcionários.
3. Muitos desses presos se “convertem” durante o cumprimento da pena e
isso também decorre do acentuado trabalho que evangélicos fazem nos
presídios com o fim de arrebanhar fiéis. Logo, o aumento da população
carcerária evangélica também é um reflexo do trabalho social que tais
agremiações religiosas fazem tanto nas periferias quanto nos presídios
estaduais.
E tem mais, o fato de muitos se identificarem como evangélicos não
significa que o sejam de fato. Um dos documentos que sempre se ajuntam
aos inquéritos de um detento é o que o ministério público chama de FAP
(Folha de Antecedentes Penais), em que há um resumo da vida pregressa do
sujeito. Um dos campos é justamente se o preso tinha ou não religião antes
de ser preso e que lugares costumava frequentar. Pode ter certeza de que é a
minoria das minorias que realmente foi membro assíduo de uma religião no
passado. Daí a evidência de que não é a religião que torna o sujeito um
criminoso.
Ademais, o título de “convertido” lhe dá certos privilégios ligados ao “bom
comportamento”. É mais fácil para ele conseguir indulto de Natal, saídas
especiais e até liberdade condicional. Fora o fato deque, como crente, ele
pode pedir para morar na “ala dos irmãos” – um setor do presídio com risco
bem menor de trazer danos à sua integridade física. Quanto à veracidade de
sua “entrega a Jesus” – isso já é outra história.
Percebeu, portanto, o erro de se tomar apressadamente números e querer
dizer coisas com eles? As cadeias refletem números sociais semelhantes ao
que vemos fora delas. Segundo dados do Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias (Infopen), há muito mais jovens negros e pobres
nas prisões que brancos e ricos. Porém, essa realidade não permite dizer que
a cor da pele faz do sujeito mais perigoso ou menos honesto. Percentagens
nem sempre validam aquilo que queremos dizer com elas. O estudo
estatístico é muito bem-vindo, mas precisa ser tecnicamente elaborado para
não induzir ao erro.
Estas observações, contudo, não eliminam outro dilema: vivemos num
mundo, sem dúvida, numericamente dominado por religiosos ou, pelo
menos, por pessoas que dizem crer em Deus. Os ateus são uma minoria que
oscila entre 11 e 13% da população mundial dependendo da fonte e
ninguém duvida disso91.
Seria isso, porém, um motivo de comemoração nas igrejas? Estes dados
merecem um culto de ação de graças pela vitória da fé? Em outras palavras,
o mundo está melhor, por estar nas mãos de pessoas que se dizem crentes? A
resposta parece ser um sonoro não.
Religiosos no comando
Em 1830, um jurista francês chamado Alexis de Tocqueville partiu para os
Estados Unidos numa missão acadêmica e, ao mesmo tempo, político-
diplomática: ele estava realizando uma pesquisa junto ao sistema penal
norte-americano a fim de descobrir por que havia tão poucos crimes e tão
poucas prisões. Nos Estados Unidos, na época, havia muito menos violência
que na França, a qual, desde a Revolução Francesa, proclamara-se
oficialmente um país ateu.
Junto a outro jovem jurista chamado Gustave de Beaumont, Tocqueville
aportou em Newport, Rhode Island, no dia 9 de maio de 1831. Durante os
onze meses seguintes, ele e seu companheiro fizeram um longo percurso de
7.500 quilômetros dentro do território americano, passando por 18 dos 24
estados que então compunham a União. Partindo de Nova York, foram ao
Canadá e, em seguida, a Nova Orleans. Das margens do Rio Mississipi,
seguiram para o norte, rumo a Washington, DC. Já em Nova York,
novamente, tomaram um navio para a França, em 20 de fevereiro de 1832.
No caminho, entrevistaram até mesmo dois ex-presidentes americanos.
Após vários meses de estudo, Tocqueville publicou em 1840 um livro
intitulado A democracia na América, que foi traduzido para vários idiomas,
entre eles, o português92. Ele concluiu que a importância que os americanos
davam à religião e a uma vida pautada por normas bíblicas era, sem dúvida,
o que fazia a diferença.
Ele escreveu:
Procurei pela grandeza norte-americana em seus pontos amplos, nos seus
extensos rios, em seus campos férteis e nas suas florestas sem fim, mas ela não
estava lá. Procurei nas minas cheias de riquezas, no seu vasto comércio
mundial, no seu sofisticado sistema de escolas públicas e nas instituições de
ensino superior, e também não estava lá. Procurei então no Congresso
democrático e na constituição americana e até ouvi discursos inflamados de
justiça. Só aí entendi o segredo de sua força e o espírito do seu poder. Os
Estados Unidos são grandes porque são bons; se algum dia deixarem de ser
bons, deixarão de ser grandes.
O problema com essa declaração tão positiva e otimista em relação à
América religiosa é que o cenário hoje está totalmente diferente, mesmo
com a religião tão em alta naquele país. Sei que os mais conservadores dirão
que a América de hoje não é mais como antigamente, quando a religião
ocupava um papel fundamental na família. É verdade! A sensação que temos
é exatamente essa. Contudo, os números – novamente os números –
mostram que os americanos, mesmo com a evasão das igrejas, ainda são
majoritariamente crentes em Deus.
Em um estudo de 2015, quase nove entre cada dez americanos diziam
acreditar em Deus e 56% deles afirmavam que a religião teve um papel
“muito importante em suas vidas”, um número muito maior do que em
qualquer outra nação desenvolvida93.
Sendo assim, apesar da onda de secularismo crescente e da diminuição do
compromisso religioso, os Estados Unidos ainda são um país
predominantemente cristão. Logo, seguindo as conclusões de Tocqueville,
os Estados Unidos deveriam ainda ser um país de princípios morais e baixa
criminalidade. Mas o cenário corrente é bem diferente disso.
Os Estados Unidos são o 5º país mais violento dentre os 47 que estão na
lista de desenvolvimento humano elevado. Ou seja: têm alto índice de
desenvolvimento e, mesmo assim, são bastante violentos94. Washington,
D.C., tem um índice de homicídio por arma de fogo maior que a média
brasileira95. Isso não faz sentido considerando se tratar de um país rico e
religioso.
Se eu projetar essa situação americana para o resto do mundo, aí a coisa se
complica ainda mais para os religiosos. Afinal, pode-se dizer que vivemos
num mundo crente, e não num mundo ateu. Mas em que essa crença
majoritária em Deus tem ajudado a melhorar o planeta?
Se for verdade que a religião e a crença em Deus enobrecem o caráter e
edificam as pessoas, o mundo, por ter uma maioria religiosa e crente, deveria
ser um lugar melhor para viver. Mas não é isso que vemos por aí. E, para
piorar, os países mais religiosos são, hoje, os mais violentos. Como explicar
isso?
Acabaremos com a Religião?
A essa altura do texto, você já deve ter percebido as implicações por detrás
desses dados. Estaríamos melhor sob a égide da religião ou do ateísmo? O
que é, afinal, melhor para a sociedade? Um ambiente religioso ou secular?
Cito novamente o caso de Jean Meslier, um padre francês que, revoltado
com “os erros e abusos dos governos” e a “falsidade de todos os deuses e
religiões do mundo”, tornou-se ateu, mesmo celebrando missas e batizados
até o fim de sua vida. Numa obra publicada postumamente por ninguém
menos que Voltaire, o padre falava com muita força de seu último desejo:
“Eu gostaria, e este será o último e o mais ardente dos meus desejos, que o
último rei fosse estrangulado com as tripas do último padre”96.
Por mais forte que sejam as palavras usadas, tanto a frase, como o “padre
ateu” tornaram-se referenciais para iluministas posteriores, especialmente
ligados à Revolução Francesa.
Denis Diderot foi um desses que, amenizando a violência original da frase,
escreveram em linguagem poética que os homens serão livres quando
ouvirem melhor a natureza e observarem como ela, com as próprias mãos,
“arranca as entranhas do padre/ na falta de uma corda para estrangular os
reis”97.
O Marquês de Sade, famoso bon-vivant do século 18, também dizia que “a
religião é a fonte do despotismo”98. Logo, as pessoas iluminadas e
esclarecidas deveriam se rebelar contra a religião através de sexo livre, sem
nenhuma censura moral ou noção de pecado.
Ao olhar as propostas atuais, percebo que o apelo antirreligioso não ficou
restrito ao iluminismo do passado. Em anos recentes, vários autores voltaram
a defender a mesma proposta governamental de um mundo sem religião e
sem Deus, ainda que muitos julguem isso pura utopia.
Richard Dawkins, aproveitando um dos versos da música Imagine de John
Lennon, parodiou:
Imagine um mundo sem religião, imagine nenhum homem bomba, nenhum
11 de setembro, nenhuma Cruzada, nenhum conflito na Irlanda do Norte,
nenhuma guerra entre Israel e Palestina. Imagine nenhum Taleban para
explodir as estátuas gigantes de Buda no Afeganistão.99
Robert Reich, ex-secretário do Trabalho americano no governo Clinton,
também deu sua alfinetada ao dizer: “O maior perigo que enfrentaremos no
século 21 não será o terrorismo, as epidemias patológicas, a pobreza, a fome
ou as guerras, mas sim a crença religiosa”100.
Não pense que o ataque se destina às formas extremistas de religiosidade.
Para alguns proponentes, “religião sem fanatismo é uma impossibilidade
lógica”, conforme afirmou Timothy Shortell,principalmente como “não” pretendo
defender minha posição.
Certa vez gravei um programa para a TV Novo Tempo, o qual intitulei
“Discordando com classe”. Meu objetivo era tentar trazer um pouco mais de
civilidade às muitas discussões ideológicas ou filosóficas que saem do campo
das ideias para atacar pessoas, demonizar grupos e promover o ódio.
Por falar em ódio, que dizer da postura dos haters da Internet? Eles já
viraram até estudo de caso em faculdades de Psicologia. Trata-se daquelas
pessoas, segundo os especialistas, com sérios sintomas de distúrbio
emocional que postam comentários de ódio ou crítica sem qualquer tipo de
critério. Daí o nome hater da palavra hate (ódio em inglês). Veja o livro O
discurso do ódio em redes sociais, de Marco Aurélio Moura. Ele dá uma
boa ideia desse fenômeno e seu perigo para a sociedade. É desanimador
tentar abrir um diálogo com eles. Haters parecem ter um prazer doentio em
fazer ataques nos fóruns e nas redes sociais. São especialistas em
cyberbullying.
Esse tipo de oponente precisa de terapia, não de uma resposta honesta. Pior
é que muitos deles são altamente inteligentes, o que prova que
“inteligência” não é sinônimo de “sabedoria”. Quer despertar o ódio deles?
Simples. Pense numa ideia, publique na Internet e espere como um
pescador à beira do lago. Em pouco tempo, os haters aparecerão.
Não pense que ao falar desse tipo de comportamento estou me referindo
exclusivamente a ateus & cia. (cuidado com os estereótipos!). Há
desequilíbrio em todos os lados, eu disse. Supondo que eu tenha leitores
tanto religiosos quando descrentes. Deixe-me dar um recado especial para os
“advogados de Deus”, tanto os que o defendem como os que o acusam. Se
Deus existe, não precisa de defensores, precisa de testemunhas, e se não
existe não tem como nem por que ser condenado. Portanto, todos aqueles
que entram neste debate julgando-se advogados, promotores ou juízes de
Deus estão perdendo seu tempo. Definitivamente, esse não é nosso papel,
seja de que lado estivermos na discussão.
Aprendamos com o erro do apóstolo Pedro. É um episódio que está na
Bíblia. Quando Cristo foi preso no Jardim das Oliveiras, o apóstolo tomou
uma pequena espada e agrediu Malco, um servo do sacerdote, que estava
junto aos que vieram acorrentar Jesus. De um só golpe, cortou-lhe a orelha,
deixando-o em prantos. Por que será que ele não agrediu um dos soldados?
Por ser mais fácil bater em alguém desarmado?
Não sei, mas a dura repreensão de Cristo me dá uma certeza: não é
cortando a orelha de Malco que defenderemos nosso Senhor! Melhor seria
seguir a máxima de Che Guevara que diz: “hay que endurecerse, pero sin
perder la ternura jamás”. Chocado por eu citar um revolucionário
comunista? Ora, como poderia escrever um livro como este se não tivesse a
capacidade de deixar de lado o preconceito e selecionar o que concordo e o
que discordo numa mesma pessoa?
Portanto, deixando de lado o preconceito, gostaria de convidá-lo a ler este
livro, no qual traço meu testemunho de fé. Depois você pode fazer o que
quiser com ele. Não permitamos que a hipocrisia generalizada faça uma
conversa honesta parecer sarcasmo. A leitura de um texto sempre gera um
diálogo interessante: eu escrevo, você lê, sua alma responde, todos
ganhamos. E então? Aceita minha proposta?
1 Ian Kershaw. De volta do inferno – Europa, 1914-1949 (São Paulo: Companhia das Letras, 2016).
Capítulo 1
Saia justa com o ateísmo
Ao tempo em que eu escrevia este livro, um amigo me enviou um link da
Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA), que publicou um
trecho de uma palestra minha sob o curioso título “parece que esse pastor
está a caminho do ateísmo”2. Era um vídeo no qual eu admitia a saia justa
em que estaria diante de ateus, caso eles me confrontassem com alguns
dados, e continuo admitindo o desconforto.
Foi uma experiência muito curiosa. Admirei-me de ver muitos comentários
elogiosos, outros ufanistas (acreditando que eu estava mesmo tendo uma
crise de fé) e outros tantos debochados, pelo fato de, no finalzinho da fala,
eu expressar minha crença na volta de Cristo – algo para eles é equivalente a
acreditar em Chapeuzinho Vermelho. Isso sem contar os famosos haters,
que amam atacar cruelmente qualquer um por qualquer ideia que
apresente. Mas, no geral, o tom não foi tão hostil como era de se imaginar.
Caso não tenha visto o vídeo, você deve estar curioso em saber que dados
foram esses que admiti que me deixariam numa saia justa com o ateísmo.
Pois bem, foram alguns testes feitos pelo Pew Forum on Religion and
Public Life [Fórum Pew sobre religião e vida pública], nos Estados Unidos,
que concluiu que ateus e agnósticos estão sabendo mais sobre religião e
Bíblia que os próprios religiosos do país3.
Os números são, de fato, desconcertantes e não sei se apresentariam
resultados muito diferentes caso a pesquisa fosse feita no Brasil. Os
incrédulos acertaram mais questões sobre cristianismo e outras religiões que
os crentes, e, para vergonha da ala conservadora, os mais bem colocados
entre os religiosos foram os judeus – que não creem que Jesus é o Messias –
e os mórmons – considerados seita pelos principais heresiólogos da
atualidade, isto é, os especialistas em heresias do cristianismo. No fim da
lista, com a menor pontuação, ficaram os católicos hispanos.
Quando torcedores do time adversário sabem mais sobre seu clube que
você mesmo, alguma coisa está errada. Pior ainda é quando seu
conhecimento sobre o assunto fica abaixo do aceitável para alguém que diz
amar tanto aquela causa. Pois é isso que os dados mostram acerca da massa
religiosa.
Aproveitando a ilustração futebolística, lembro-me de um caso ocorrido em
Londres, em dezembro e 2014. Considerando a chegada das festas natalinas,
o jornal inglês Daily Mirror [Espelho diário] encomendou uma pesquisa
sobre conhecimento religioso envolvendo um pouco mais de mil juvenis e
pré-adolescentes4. O questionário foi feito com a pergunta “Quem é Jesus
Cristo?”. As opções de resposta eram: A) jogador do Chelsea, B) Filho de
Deus, C) apresentador de TV, D) candidato de um show de calouros ou E)
um astronauta. A primeira opção foi escolhida por um em cada cinco
entrevistados. Ou seja, para 20% dos jovens, Jesus era um jogador de futebol
ou, pelo menos, alguém confundido com Jesus Navas, que, na época, era
um meia espanhol do Manchester City.
Não pense que foi uma brincadeira de juvenis. Os testes foram feitos por
profissionais em estatística com margens de erro bem estabelecidas,
tabulação de dados, amostragem e fórmulas de validação dos resultados. O
desastre continuou: um em cada quatro jovens entrevistados pensava que o
nascimento virginal de Jesus aconteceu dentro de uma igreja, e um em cada
dez respondeu acreditar que Rudolph, a famosa rena do nariz vermelho,
existiu de verdade. Isso sem contar que pouco mais da metade respondeu
que tanto Jesus como Santa Claus (o Papai Noel) nasceram em 25 de
dezembro; por isso todos ganham presente neste dia. A pérola do
desconhecimento veio por último, quando 25% dos menores – já
aficionados por smartphones – disseram que os magos encontraram no
Google Maps a localização da cidade de Belém da Judeia.
Muitos desses ensinos absurdos certamente vêm de casa, onde os pais,
quase sempre sem tempo, dizem qualquer coisa para entreter as crianças,
deixando para os professores o dever de ensinar o que é correto. Sendo
assim, não é difícil entender por que boa parte desses jovens abandonará a fé
de seus pais ao entrarem para a universidade. O que receberam até ali não
passou de ritos litúrgicos inexplicados, anacronismos sem sentido e histórias
desconexas.
A fé dos adultos
Os próprios pais e adultos também não se mostram melhores conhecedores
daquilo em que dizem acreditar como religiosos. No final de 2013, o
instituto de pesquisa ComRes, do Reino Unido, fez uma pesquisa a pedido
de uma agremiação cristã para checar o grau de conhecimento bíblico de
religiosos ingleses, todos adultos. Fora-lhes apresentada uma relação de
histórias supostamente relacionadasprofessor de sociologia do
Brooklyn College de Nova York. E ele continua:
Todo aquele cujo pensamento for enclausurado por este tipo de prisão mental
[i.e., a religião] estará susceptível às mais extremas formas de ódio e violência. A
fé é, por sua própria natureza, obsessiva e compulsiva. Todas as religiões
fomentam sua própria forma de guerra santa. Aqueles cuja devoção é moderada
são apenas fanáticos covardes […] fé, em última instância, é raciocinar como
uma criança.101
Sam Harris não teve medo de ser processado ao afirmar que:
o mundo precisa agora de intolerância e não de tolerância […] o grau em que
ideias religiosas ainda determinam as políticas governamentais – especialmente
nos Estados Unidos – representa um perigo para todos.102
Achou pouco? Numa fala pública, Harris chegou a dizer que, se tivesse o
poder mágico de fazer desaparecer um dos dois males, o estupro ou a
religião, ele não hesitaria em fazer desaparecer a religião103.
Confesso que às vezes fico sem entender o raciocínio de Sam Harris sobre
religião e tolerância. Se você ler os escritos dele e de alguns outros
renomados ateus da mesma linha (nem todos são assim, felizmente), verá
um ataque descomunal aos extremistas religiosos por causa de sua
intolerância para com os que discordam de sua doutrina. Por outro lado, ele
também ataca os religiosos moderados por sua tolerância, por exemplo,
famílias islâmicas vivendo na Europa ou na América.
Ao mesmo tempo que condena a religião por sua intolerância, ele próprio
admite não tolerar nenhuma forma de fé. Se tivesse o poder nas mãos,
acabaria com todas. Isso é tão paradoxal como se um pianista, por não
suportar cantores de rock, fizesse uma campanha para acabarmos com toda
forma de concerto. Será que ele percebeu que os pianistas também seriam
atingidos por essa proposta? A despeito, porém, do paradoxo, a conclusão de
Harris & cia. é óbvia: as crenças religiosas têm de ser combatidas para que a
sociedade possa avançar. Que a religião termine para que a humanidade
amadureça. Será?
88 Pedro Nogueira Ramos. Torturem os números que eles confessam: sobre o mau uso e abuso das
estatísticas em Portugal, e não só (Coimbra: Almedina, 2013).
89 Sam Harris. Letter to a Christian Nation (New York: Alfred A. Knopf, 2006).
90 Clemir Fernandes Silva; T. Duarte; R. Santanna; A. L. J. Rodrigues. Assistência religiosa em
prisões do Rio de Janeiro: um estudo a partir da perspectiva de servidores públicos, presos e agentes
religiosos (2015).
91 Os números aparecem nas pesquisas de Phil Zuckerman (2007), Richard Lynn (2008) e Elaine
Howard Ecklund (2010), de acordo com a ONU. Disponível em: adherents.com, American Religious
Identification Survey, The Pew Research Center, Gallup Poll, The New York Times, Good, Nature,
Live Science e Discovery Magazine>. Acesso em: 15/03/2018.
92 Alexis de Tocqueville. A democracia na América: sentimentos e opiniões de uma profusão de
sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. Tradução de
Eduardo Brandão (São Paulo, Martins Fontes, 2004).
93 Disponível em e . Acesso em: 17/03/2017.
94 Disponível em . Acesso em: 17/03/2017.
95 Disponível em . Acesso em: 17/03/2017.
96 Apud Paulo Jonas de Lima Piva. Os manuscritos de um padre anticristão e ateu: materialismo e
revolta em Jean Meslier (Tese de doutorado em Filosofia: Universidade de São Paulo, 2004).
97 Denis Diderot. “Et ses mains ourdiraient les entrailles du prêtre, Au défaut d’un cordon pour
étrangler les rois”, in Les Éleuthéromanes avec un commentaire historique (Paris: Ghio,1884).
Disponível em . Acesso em: 15/03/2018.
98 Marquês de Sade. La Philosophie dans le boudoir. Disponível em . Acesso em: 17/03/2017.
99 Richard Dawkins. Deus, um delírio. Tradução de Fernanda Ravagnani (São Paulo: Companhia
das Letras, 2007).
100 Apud Gale Heide. Domesticated Glory: How the Politics of America Has Tamed God (Eugene:
Pickwick, 2010).
101 Disponível em . Acesso
em: 17/03/2017.
102 Sam Harris. The End of Faith: Religion, Terror, and the Future of Reason (New York: W.W.
Norton & Co., 2004).
103 Jörg Blech (October 26, 2006). “The new atheists: Researchers crusade against American
fundamentalists”, Spiegel on-line>. Acesso em: 20/05/2015.
http://www.pewresearch.org/fact�-tank/2015/12/23/americans�-are�-in�-the�-middle�-of�-the�-pack�-globally�-when�-it�-comes�-to�-importance�-of�-religion/
http://www.pewforum.org/2015/11/03/chapter�-1�-importance�-of�-religion�-and�-religious�-beliefs/#belief�-in�-god
https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121931738/eua-e-o-quinto-pais-mais-violento-dentre-os-paises-mais-desenvolvidos
https://www.citylab.com/equity/2013/01/gun-violence-us-cities-compared-deadliest-nations-world/4412/
http://pt.calameo.com/books/00010704468e2883c70c4
https://beq.ebooksgratuits.com/libertinage/Sade_La_philosophie_dans_le_boudoir.pdf
http://www.discoverthenetworks.org/individualProfile.asp?indid=2242
Capítulo 12
A incoerência da fé
Sobre o fato de o mundo ainda ser maiormente religioso e mesmo assim
perverso, deixe-me tecer alguns comentários breves sobre o cristianismo, que
é a fé que professo. Acho muito “interessante”, para usar um eufemismo, a
postura incoerente de muitos cristãos neste século em que vivemos.
Por que expor aqui esse tipo de análise? Por dois motivos. Primeiro porque,
pela minha experiência com pessoas não religiosas, o que observei na
maioria dos contextos que vivi foi que minha fé foi respeitada por colegas
que não participavam dela. Sei que esta não é a experiência de todos. Há
muitos religiosos hostilizados por descrentes e vice-versa. Talvez eu tenha
tido mais sorte que alguns, não sei, mas o fato é que não me recordo de
nenhuma vez em que fui chacoteado por tomar suco de laranja enquanto
meus colegas tomavam cerveja. Eles pareciam conviver bem com minha
abstinência alcoólica.
Havia uma coisa, porém, que eles não suportavam, e diversas vezes
comentavam comigo: o assunto da incoerência. “Tudo bem que o fulano
sabatista não possa se reunir no sábado para fazer o trabalho de grupo, por
causa da religião dele. A gente muda para outro dia. Mas encontrar o mesmo
fulano sexta feira à noite104 numa balada agarrando uma menina, isso não dá
para entender”.
Isso é muito sério e talvez seja um grande motivo para muitos não
quererem saber de igreja. Percebi que, em muitas instâncias, nós, cristãos,
não seremos criticados por aquilo que cremos, mas por aquilo que fazemos e
deixamos de fazer. Para ser muito honesto com você, tenho cá meus receios
de que os religiosos se tornem o maior argumento de muitos para não
quererem saber de Deus. “Se Jesus é como você, ironizou um descrente,
prefiro tocar na banda do anticristo”.
A segunda razão por que faço essa análise é para que você veja que o
cristianismo, pelo menos como entendo da Bíblia, admite e incentiva uma
autocrítica. Não somos alienados. Relembro aqui o que disse nos primeiros
capítulos quando abrimos o diálogo neste livro.
Não se trata de um texto acusatório. É, repito, uma autocrítica que faço e
convido você a pensar nela comigo. Se se sentir melhor assim, digo aos que
não são religiosos, imagine que estou pensando em voz alta e permitindo
que você ouça. Ou, quem sabe, desabafando com um amigo.
Para os religiosos que me leem, entendam que não estou fazendo nada
além de colocar em prática o próprio método bíblico.Afinal de contas o que
constitui a maior parte da narrativa dos profetas, senão confissões de culpa
coletiva, admoestações ao povo e anseio por mudança?
Se todo cidadão agisse como os profetas bíblicos em relação às questões
sociais, talvez assuntos como drogas, violência e desonestidade fossem
tratados de um modo diferente. Não seriam apenas números de estatística,
muito menos remédio para sintomas.
Eles não se limitariam a mandar dependentes químicos para clínicas de
tratamento. Assim, como quebraram os ídolos de Baal, baniriam das mídias
todo incentivo ao uso de entorpecentes, seja por meio de um cantor famoso
ou de uma atriz com carinha de anjo. Não teriam medo do politicamente
correto. Ficariam firmes pelo que é ético ainda que caíssem os céus. Mas
não temos uma nação de profetas e não é da sociedade comum que quero
falar. Meu assunto, como disse, é o cristianismo e a autocrítica que faço
dele.
Propagandas de Cristo
Se tem um negócio que, a despeito de crises, gera muitos resultados é a
publicidade e propaganda. Um marketing bem-feito pode dar muito lucro,
mas também muito prejuízo.
Há vários casos de empresas que perderam grande quantia de dinheiro por
causa de um comercial que não saiu direito. Um caso, porém, não se deveu
ao trabalho dos publicitários, mas ao garoto-propaganda. A gafe do
protagonista lhe custou patrocinadores e muito dinheiro, mais de 1 milhão
de dólares em prejuízo. Estou falando do nadador americano Ryan Lochte,
que foi pego mentindo nas Olimpíadas do Rio 2016. Ele inventou um
assalto à mão armada, apenas para esconder do público uma noite de farra
fora do alojamento.
Quando estourou o escândalo, marcas parceiras caíram fora do patrocínio,
entre elas a Speedo. O episódio feriu a credibilidade do atleta e causou
problemas para o time americano. Nenhuma marca queria mais ser vista
como patrocinadora do Pinóquio das piscinas.
Das Olímpiadas para Bíblia, não é muito diferente em relação ao
cristianismo. O apóstolo Paulo declarou certa vez que os cristãos seriam “o
bom perfume de Cristo” (2Coríntios 2:15). Não creio que esteja cometendo
nenhum erro hermenêutico se disser que isso equivaleria hoje a dizer: “os
cristãos são (ou deveriam ser) a boa propaganda de Cristo”. Mas nem sempre
é assim.
Não sou perfeito, mas procuro sempre me lembrar de que minha vida pode
ser a única Bíblia que muitos leem fora da igreja e, dependendo da situação,
isso pode não ser muito bom. Daí a responsabilidade daqueles que dizem
crer em Deus.
Já ouvi falar que Gandhi dizia não ser cristão por causa dos cristãos. A
princípio julguei ser frase de Internet, como as milhares falsamente
atribuídas a Clarice Lispector, Einstein, Charlie Chaplin, John Lennon e
outros. Mas depois de ver que vários biógrafos de Gandhi confirmam o dito,
resolvi dar mais atenção a ele e me arrepiei ao ver o contexto que o
envolveu.
Tudo começa com o trabalho de um missionário metodista, Eli Stanley
Jones, que partiu para a Índia em 1907 a fim de pregar o evangelho. Ao
chegar lá, ele se dedicou às classes mais baixas da população, incluindo os
dalits – como faria posteriormente Madre Teresa de Calcutá. Por se
envolver ativamente com grupos assistenciais, ele acabou fazendo amizade
com muitos líderes do movimento de libertação da Índia, dentre eles, um
certo Sr. Gandhi, que ainda não havia se tornado o famoso “Mahatma”, isto
é, a Grande Alma. Em várias de suas obras, mas especialmente o Mahatma
Gandhi: An Interpretation (1948), é possível encontrar excertos de sua
correspondência pessoal com o grande libertador da Índia. Sua franqueza ao
falar do cristianismo é estarrecedora.
Mesmo sendo considerado um Billy Graham da Índia – um título, a meu
ver, anacrônico –, Jones não escondeu o fato de que fora ali para pregar Jesus
e saíra de lá com a sensação de que foi Gandhi quem o evangelizou,
tornando-o um promotor do pacifismo. Tanto que Jones foi indicado em
1948 para o Prêmio Nobel da Paz por seu trabalho de reconciliação na Ásia,
África, e entre o Japão e os Estados Unidos.
Veja o que Jones escreveu sobre o amigo e líder indiano: “Deus faz uso de
muitos instrumentos; e Ele pode ter recorrido ao Mahatma Gandhi para
cristianizar um cristianismo não cristão”105.
Agora perceba o caos de um mau exemplo. Jones conta que uma vez
Gandhi considerou se tornar cristão e chegou a frequentar uma igreja
metodista, mas
a igreja era feia, irmãos sonolentos durante o sermão… naquela atmosfera fria e
indiferente, [ele] foi compelido a desistir de frequentar aquela igreja […] –
Aquela decisão que Gandhi tomou afetou o destino de quatrocentos milhões de
pessoas na Índia.106
É que Jones pensava que, por causa de sua influência no país, se Gandhi
houvesse se tornado seguidor de Jesus Cristo, talvez a Índia fosse hoje o
maior país cristão do mundo.
Um episódio, ocorrido na África do Sul, em pleno regime do Apartheid,
tornou a rejeição de Gandhi pelo cristianismo ainda mais acirrada. Os
detalhes abaixo foram publicados na Christianity Today. Jones não conta
todos os detalhes, mas aponta para sua historicidade:
Quando [Gandhi] era um jovem advogado, ele ficou atraído pela fé cristã, pois
tinha estudado a Bíblia e os ensinamentos de Jesus. Estava explorando
seriamente a possibilidade de tornar-se um cristão, quando decidiu assistir a um
culto em uma igreja local. Mas, assim que subiu os degraus, o ancião da igreja,
um sul-africano branco, barrou seu caminho na porta.
– Aonde você pensa que vai, kaffir [tratamento pejorativo dado aos negros e
estrangeiros]? – perguntou o ancião em um tom de voz beligerante.
Gandhi replicou:
– Eu gostaria de assistir ao culto, aqui.
Mas o ancião rosnou:
– Não existe lugar para kaffirs nesta igreja. Fora daqui ou eu chamarei meus
assistentes para atirá-lo escada abaixo107.
Depois de um episódio desses, fica difícil dizer alguma coisa que amenize a
situação, não é mesmo? Mas, ao que parece, Gandhi, embora negasse a
possibilidade de se tornar um cristão, não perdeu a admiração pelos ensinos de
Jesus, especialmente o Sermão da Montanha.
Quando ele e Jones se encontraram pela primeira vez, o missionário não
hesitou em perguntar-lhe o que os cristãos poderiam fazer para que o
cristianismo fosse mais naturalmente aceito na Índia, e não mais identificado
com uma cultura de opressão, vinda de um governo estrangeiro. Veja o que ele
respondeu:
– Em primeiro lugar eu gostaria de sugerir que todos vocês, pastores,
missionários e cristãos, vivessem mais à semelhança de Cristo. Que vocês
pratiquem a vossa religião sem adulterá-la ou torcer a sua mensagem. Que vocês
amem mais e enfatizem o amor, pois o amor é a mensagem central do
cristianismo. Estudem mais a religião alheia e procurem por alguma coisa boa
que possa existir nelas, no sentido de serem mais simpáticos com aqueles que
são diferentes.108
Arautos ou palhaços?
Quando fazia o mestrado com os padres Jesuítas eu li o livro Introdução ao
cristianismo, de Joseph Ratzinger, escrito antes de ele se tornar o papa Bento
XVI109. Já na introdução, ele conta uma parábola descrita originalmente por
Kierkegaard, um grande filósofo do século 19, sobre um palhaço e seu
desafio de alertar a todos sobre um incêndio que começara.
Certa vez houve um incêndio num circo ambulante na Dinamarca. O diretor
mandou imediatamente o palhaço, que já se encontrava vestido e maquilado a
caráter, para a vila mais próxima, para que buscasse ajuda, advertindo de que
existia o perigo de o fogo se espalhar pelos campos ceifados e ressequidos, com
risco iminente para as casas do próprio povoado. O palhaço correu até a vila e
pediu aos moradores que viessem ajudar a apagar o incêndio que estava
destruindo o circo. Mas os habitantes viram nos gritos do palhaço apenas um
belo truque de publicidade que visava levá-los em grande número às
apresentações do circo; aplaudiam e morriam de rir. Diante dessa reação, o
palhaço sentiu mais vontade de chorar do que de rir. Fez de tudo para
convencer as pessoas de que não estava representando, de que não era um
truque e sim um apelo da maior seriedade:tratava-se realmente de um
incêndio. Mas a sua insistência só fazia aumentar os risos, achavam excelente a
sua performance – até que o fogo alcançou de fato a vila. Aí já era tarde, e o
fogo acabou destruindo não só o circo, como também o povoado.
Na aplicação de Ratzinger, o palhaço seria um teólogo que tenta alertar ao
mundo moderno usando uma roupagem medieval que não traz
credibilidade alguma, ou seja, o desafio é apresentar ao mundo de hoje uma
mensagem que tem trajes e pensamentos da Antiguidade. Muito bem
ponderado. Contudo, tomo licença para ir em outra direção. O problema da
estória, a meu ver, não está na mensagem nem na roupa, mas no
mensageiro. Ele sempre se portou como palhaço, falou como palhaço, viveu
de tirar gargalhadas das pessoas e agora que precisa falar sério, ninguém lhe
dá atenção.
Assim também será comigo e com todos os que professam servir a Deus.
Tomando novamente o cristianismo como estudo de caso: todas as vezes que
falo de Cristo, mas não vivo como ele viveu, pareço um palhaço com uma
mensagem certa. O fogo pode até ser verdadeiro e o perigo iminente, mas
tudo não passará de uma grande piada.
Sei que existem os que zombam por puro amor da zombaria. São doentes
emocionais que, por fugirem da responsabilidade, não conseguem levar
nada a sério. Contudo, isso não olvida a realidade de que minha conduta
pode fazer da cruz objeto de escárnio.
Citando um trecho do profeta Isaías, Paulo escreveu aos cristãos de Roma:
“Como está escrito: O nome de Deus é blasfemado entre os povos, por causa
de vocês” (Romanos 2:24).
Cristianismo sem Cristo
A primeira coisa que percebo, com muita tristeza, é que muitos se dizem
seguidores de Cristo, mas nem sabem direito quem ele foi. Outros dizem
amar a Jesus, mas odeiam esse negócio de igreja e a consideram uma
péssima ideia. Há alguns anos houve um lema da juventude alemã, que
chegou a virar tema de livro. Eles diziam “Jesus sim, igreja não”. Nos
Estados Unidos também é crescente o número dos que se adequam ao
chamado churchless christianity, isto é, um cristianismo sem Igreja. Veja
que curioso o título de um panfleto sobre política americana: “Eles odeiam
o cristianismo, mas amam Jesus”. Isso para mim soa como “eles odeiam
jogar bola, mas amam o futebol”.
Você já deve ter percebido que não vinculo moralidade a uma questão de
crença, especialmente no sentido de que um ateu não possa ser considerado
moral. Contudo, também não posso negar que a percepção de Deus ou a
negação de sua existência modelam muito nossas atitudes e motivações.
Uma pessoa que vive sem Deus não faz caridade pelos mesmos motivos de
alguém que vive com ele. Ambos podem ser igualmente caridosos – disso
não resta dúvida –, mas o arrazoado de um não será o mesmo do outro.
Agora, se posso ser muito honesto com você, o que temo não é tanto o ateu
teórico – aquele que admite sinceramente não crer em Deus. Ele é honesto
com sua descrença. O que me preocupa é o ateu prático – aquele que diz
crer em Deus, mas vive como se Deus não existisse. A falta de honestidade
neste segundo caso é muito perigosa, pois gera neuroses e incoerências
comportamentais. Talvez seja por isso que, embora vivamos num mundo
crente, as pessoas agem como se Deus não estivesse aqui desaprovando o
comportamento delas.
Deixe-me reproduzir com minhas palavras uma parábola contada por
Philip Yancey no livro Perguntas que precisam de resposta110: De modo
muito poético, o autor se pergunta como seria uma sociedade que
descobrisse para além de qualquer questionamento que não há Deus, não há
céu, nem salvação eterna?
Tal sociedade entenderia que a vida é só essa e não há outra; logo, a
juventude seria mais valorizada que a velhice, pois não há futuro melhor
para ansiar, o esporte seria uma obsessão nacional, as capas de revistas
exibiriam rostos sem rugas e corpos perfeitos, a imagem e a estética estariam
acima da ética e o lema de todos seria “aproveite o dia de hoje antes que se
arrependa” e a ética hedonista: “não resista às tentações, pode ser que não
tenha uma segunda chance”.
Yancey continua imaginando uma cidade com cada vez mais crimes, mais
hedonismo, e maior medo da morte, pois este é o fim absoluto de tudo.
Então ele termina de modo irônico, agradecendo por viver num país que, ao
contrário daquela cidade, acredita em Deus, no céu e na salvação! Mas,
como eu disse, ele foi irônico, pois é exatamente assim que nossa sociedade
se encontra. A pergunta óbvia é: Vivemos realmente numa sociedade que
professa sua fé?
O conhecido psiquiatra Karl Menninger escreveu um livro cuja tradução
do título é “O que foi feito do pecado?”111. Nele o autor comenta a
paradoxal atitude da modernidade em relação às questões morais. Ele
observa que os desvios de comportamento atuais são estranhamente
explicados ou justificados a partir de questões mentais ou psicológicas como
se não existisse pecado. Os vícios não são mais combatidos, são tolerados e
compreendidos.
Alguém violento, assassino, ladrão pode ser até um bandido, mas nunca
um “pecador”. Os mais emotivos dirão que o delinquente é sempre e
simplesmente uma vítima da sociedade ou de traumas de infância. Mas
nunca alguém que está “pecando” contra a lei de Deus. Isso, para o Dr.
Menninger, era paradoxal numa sociedade que se dizia religiosa. É como se
as pessoas não mais pecassem, entende?! Esse livro foi escrito há mais de
quarenta anos. Se o autor estivesse vivo hoje, ficaria mais perplexo ainda
diante da crescente perda de valores morais. Especialmente nas igrejas.
Embora seja religioso, repito mais uma vez a visão nietzschiana da morte
de Deus, se puder lê-la como o anúncio de uma morte circunstancial e
filosófica. E vou mais longe! Concordo, honestamente, com o fato de que,
em muitas instâncias, houve igrejas e agremiações religiosas que ajudaram a
celebrar o culto fúnebre de Deus, como se ele houvesse mesmo morrido
para seus membros.
Às vezes, vejo a indiferença espiritual e me pergunto: Não é exatamente
isso que Nietzsche descrevia? Lembro-me do personagem louco que aparece
no A Gaia Ciência, gritando angustiosamente pelas ruas: “Deus morreu!
Deus morreu!”. Aparentemente, ele era o único a se importar com isso.
Desvairado, o louco adentra várias igrejas e ali entoa o seu Requiem
aeternam deo ou “o descanso eterno de Deus”. O Requiem era um tipo de
missa fúnebre em latim. “Acompanhado até a porta e questionado
energicamente, ele retrucava sem parar apenas o seguinte: ‘O que são ainda
afinal estas igrejas, senão túmulos e mausoléus de Deus?’.”112
A impressão que fica é que, embora o mundo não tenha teoricamente
comprado a proposta do ateísmo, aceitou “ativamente” que Deus não existe.
Por isso agem como crianças travessas quando os pais não estão em casa.
Aprontam, quebram e bagunçam, depois põem a culpa no gato da vizinha.
Provavelmente seja esse o enfoque da pergunta de Cristo: “Quando vier o
filho do homem achará fé na Terra?” (Lucas 18:8).
104 Para boa parte dos que observam o sábado como dia sagrado, este começa não à meia-noite, mas
ao pôr do sol de sexta-feira.
105 E. Stanley Jones. The Christ of the Indian Road (London: Hodder & Stoughton, 1925), p. 86.
106 E. Stanley Jones. A conversão (São Paulo: Imprensa Metodista, 1984).
107 O episódio é descrito em
o filme As Bruxas de Salém, que fez
muito sucesso, principalmente entre o público adolescente. Era uma história
ambientada no século 17, quando meninas apaixonadas fizeram um feitiço
e, sendo descobertas, foram acusadas de bruxaria. O que se segue dali em
diante é uma série de histerismos e acusações em que muita gente inocente
foi morta acusada de um crime religioso que nunca cometeu.
Poucos talvez saibam, mas a prática de caça às bruxas aconteceu mesmo e
a história de Salém não foi inventada. De uma só vez, a pequena aldeia
puritana acusou mais de 200 mulheres e alguns homens de serem feiticeiros,
e, desses, pelo menos 20 cidadãos e cidadãs foram mortos queimados,
enforcados ou por afogamento. Depois de algum tempo, o governo admitiu
que matar essas pessoas foi um engano e até buscou maneiras de indenizar
as famílias das vítimas, porém, tarde demais, a repercussão do processo dura
até hoje.
De fato, qualquer questionamento ou descrença em relação a uma crença
institucionalizada sempre foi visto de modo muito negativo, mesmo quando
não se trata de ser ateu, mas apenas de descrer do credo oficial imposto.
Neste sentido, os que mais sofreram nas mãos de autoridades religiosas foram
os próprios religiosos que tinham uma compreensão diferente da fé.
Veja o caso dos cátaros, albigenses, dos seguidores de Pedro Valdo. Judeus
foram vítimas da inquisição espanhola promovida por reis católicos, e a lista
não para por aí. Há pouco tempo folheei um excelente livro de Frans
Leonard Schalkwijk intitulado Igreja e Estado no Brasil Holandês (1630 a
1654)113. Ali o autor mostra como Domingos Fernandes Calabar, tratado
como o mais vil traidor dos portugueses, foi por fim garroteado e
esquartejado não por questões meramente políticas, mas por ter se
convertido ao evangelho pregado pelos holandeses reformados. Para que
ninguém saia impune, não posso deixar de lado o triste episódio envolvendo
João Calvino, reformador protestante, e a execução na fogueira do médico
Miguel de Servet, condenado em 1553 por não acreditar na Trindade.
E aqui, permita-me dizer, há uma imprecisão histórica de autores ateus
como George Minois, que, a despeito de sua monumental obra
historiográfica, afirma que os descrentes sofrem há séculos a perseguição de
religiosos, o que constitui, hoje, “uma pesada herança passional […] a
palavra ateu ainda carrega um vago odor de fogueira”114. A imprecisão reside
não no que foi dito, mas no que falta dizer. É que declarações como esta
criam um quadro monolítico de crentes constantemente perseguindo
descrentes que lutam pela liberdade de não crer.
Ora, quando se fala em fogueira e ateísmo, desconheço na história relatos
processuais de perseguição em massa contra ateus ou condenações à heresia
do ateísmo. Os mártires geralmente eram cristãos marginalizados e judeus
que criam em Deus de um modo diferente daquele institucionalizado pela
Igreja. Logo, se há também ateus neste meio, digo-lhes que são bem-vindos
ao grupo dos perseguidos, contudo, saiba que eles não constituem a maioria,
muito menos as únicas vítimas do sistema. Mesmo cientistas como Galileu e
Giordano Bruno não foram condenados por seu ateísmo (pois eles criam em
Deus), mas por sua visão de ciência. Se querem liberdade para descrer,
devem igualmente lutar pela liberdade de religião que estes mártires
corajosamente defenderam.
Por isso me preocupo com certas militâncias que de modo declarado ou
subliminar desejam não a liberdade de expressão, mas a imposição de um
conceito. Algumas delas que se identificam com a causa ateísta querem mais
que o direito de não serem segregadas, desejam ganhar o mundo para o seu
lado e acabar com qualquer movimento que discorde das suas ideias.
É assim que entendo escritos como os de Feuerbach. Ali percebo a
presença de um elemento “libertador” da humanidade que perpassa toda sua
obra. O autor não quer defender o direito de um simples exercício mental
de ateísmo. Sua intenção é acabar com a religião ou matar os deuses, a fim
de que o homem possa ascender finalmente. Essa é a conscientização criada
pela filosofia feuerbachiana115 e alguns ditos neoateus que ouço hoje,
embora busquem um mínimo de linguagem politicamente correta,
terminam sugerindo o mesmo, ao propor um reducionismo antropológico
que tem como condição sine qua non para o progresso a cura dessa doença
chamada religião. Como propôs Michel Onfray, “o ateísmo não é uma
terapia, mas uma saúde metal recuperada”116. Ora, não se pode dar à
loucura o mesmo direito de existir que o da sanidade. A uma se preserva, à
outra procura-se extinguir.
Logo, não creio que muitos ateus queiram apenas liberdade para viver em
paz sua descrença, o que querem é uma imposição de seu ateísmo. Para eles
qualquer religião é como uma versão Nescau do crente Toddynho, só tem
um pouco mais de marketing, mas no fim é a mesma coisa.
Lembra o que Estados ateus, como a China de Mao e a União Soviética de
Stalin, fizeram a muitos crentes por sua fé? Portanto, não quero negar que
religiosos perseguiram a descrentes. Apenas entendo que não há
legitimidade histórica em ateus reclamarem somente para si o direito de
expressarem sua descrença – como se isso lhe seja atualmente proibido.
Primeiro porque creio que tenho os mesmos direitos de expressar minha fé
sem ser atacado por isso. Segundo porque desconheço qualquer país de
maioria cristã que tenha proibido um autor ateu de publicar seus livros ou
apresentar suas palestras. Só o tratado de ateologia de Michel Onfray vendeu
mais de 200 mil exemplares na primeira edição e não vi nenhum bispo
queimando seus livros em praça pública. Aliás, que livro defendendo o
ateísmo foi queimado durante a Idade Média e Moderna? Que eu saiba, eles
queimavam livros de heresias, mas principalmente Bíblias! Isso mesmo, o
livro mais destruído em praça pública de todos os tempos foi a Bíblia, e não
um tratado de ateísmo.
Guerra Santa?
Toda vez que ouço ou leio uma notícia sobre atentados ou guerras no
Oriente Médio, identificadas como “guerra santa”, não posso deixar de
anotar a imprecisão desse título. Para começo de conversa, não existe
“guerra santa”. Guerra é guerra e ponto final. Nem Deus gosta disso (mais
adiante falarei das guerras na Bíblia).
Ademais, o Ocidente tem uma compreensão equivocada de “guerra santa”.
De acordo com William Cavanaugh, autor do livro Myth of Religious
Violence (2009), existe uma falsa dicotomia inventada pela modernidade
ocidental, segundo a qual temos sempre de classificar as ideologias entre
religiosas e seculares117. A partir disso definem que motivações religiosas
tendem a ser mais violentas que as seculares.
Porém, temos aqui um grave problema de anacronismo, pois tal distinção
não existia nos tempos antigos, nem nas atuais culturas do Oriente Médio.
Querer usar tal critério para classificar algo fora deste contexto ocidental
moderno seria o mesmo que usar a velocidade média da Fórmula 1 para
julgar se cavalos romanos eram ou não velozes de fato.
Não existe na Antiguidade Clássica nada que possa expressar uma ideia de
guerra religiosa versus guerra civil ou secular. O mais próximo que
chegamos deste conceito – e ainda assim muito distante do que se diz hoje
em dia – é a referência a uma guerra pelo controle de um santuário grego
(Delfos). Ela é mencionada por Tucídides118 e Aristófanes119, que a
chamam de hieros polemos, “guerra do santuário”. Mas essa é a única
atestação que temos em grego desde os tempos clássicos adentrando o
período bizantino e depois dele.
Já a expressão “guerra santa” (do latim bellum sacrum) foi uma invenção
da Idade Média, de uso raro, ligada especialmente ao contexto das Cruzadas
e da guerra aos albigenses. Nem por neologismo ou semântica, ela teria algo
a ver com o uso moderno ou as verdadeiras razões por detrás de muitas
batalhas rotuladas artificialmente com esse nome120. Existe hoje um vasto
debate sobre a causa das guerras ao longo da história e, ao que parece, as
motivações religiosas seriam a menor hipótese a ser aventada. Muito à frente
delas estariam razões étnicas,políticas, econômicas e, acima de tudo, a sede
de poder.
Até a palavra jihad, tantas vezes traduzida por “guerra santa”, não comporta
linguisticamente esse conceito. Jihad significa apenas luta, empenho,
esforço pessoal121. A aplicação do termo à “morte dos infiéis” é uma
interpretação adicional e partidária que não está originalmente inserida no
termo.
O mesmo se dá com a expressão “guerra religiosa”. Normalmente os
autores a definem como um conflito causado por divergências de credo, mas
essa é outra concepção artificial. Religião nem é uma palavra de origem
bíblica, mas latina (religio). Seu sentido tem a ver com uma virtude pessoal
de adoração a Deus, e não com “doutrinas teológicas”. Somente a partir do
século 17 é que religião passou a englobar a ideia de conteúdo de fé.
Chamar, portanto, uma guerra da Antiguidade de “religiosa” é tão
anacrônico como chamar de supermercado um comércio de frutas da antiga
cidade de Roma.
Culpemos a religião!
Ignorando, porém, todo esse contexto histórico e linguístico, autores como
Dawkins, Hitchens, Harris, Reich, Diderot e outros insistem em apelar para
o tema da guerra em nome de Deus como “evidência” de que as religiões
são a raiz de todos males do mundo. A religião seria, em síntese, a causa
mestra da violência humana, argumenta Hitchens, embora ele mesmo não
mostre nenhum exemplo causal que vincule violência e fé122.
Sua tese, numa frase, é que as religiões fazem mais mal do que bem à
humanidade. Aliás, para alguns, elas não fazem bem nenhum. Tentar
encontrar algo de bom nas religiões seria como buscar nutrientes num prato
de junk food devorado às pressas. Pode até ter alguma proteína ali, mas os
malefícios são tão grandes que não vale a pena se alimentar daquilo.
O argumento básico são novamente os números. “A religião”, afirmou
Harris, “tem explícita e literalmente causado milhões de mortes nos últimos
dez anos”123. Considerando que isso foi dito por ele no livro A morte da fé,
publicado em 2004, fiquei tentando descobrir qual teria sido a fonte da
informação. Pesquisei no decênio 1994-2004, período em que a religião
matou literalmente milhões de pessoas, e não pude encontrar nada que
sustente isso.
Harris dá exemplos geográficos de onde essa matança religiosa teria
ocorrido: Palestina (judeus versus mulçumanos), Bálcãs (ortodoxos sérvios
versus católicos croatas); Irlanda do Norte (protestantes versus católicos),
Caxemira (hindus versus mulçumanos), Sudão (mulçumanos versus cristãos
animistas), Nigéria (mulçumanos versus cristãos), Irã e Iraque.
Ora, vamos com calma analisar o que ele diz: em primeiro lugar, se você
fizer as contas de quantas pessoas morreram nesses lugares desde o início dos
conflitos até hoje não chegará nem perto de 1 milhão de vítimas124. Sei que
números de guerra nem sempre são precisos, mas ainda que eu duplique os
dados oficiais não chego ao montante citado por Harris. Novamente fico me
perguntando de onde ele tirou os milhões que menciona sendo mortos em
apenas uma década!
Não pense, contudo, que meu raciocínio se limita a números, pois seria
muito desumano e pueril de minha parte. Que sejam 20 os mortos em nome
da religião, ainda assim seria algo deplorável. Estatísticas podem amenizar o
quadro, mas não anulam realidades de injustiça que precisam ser
denunciadas. A questão aqui é descobrir se realmente a religião é causadora
de tantos assassinatos e genocídios.
Neste ponto, chamou-me a atenção que nenhum dos estudos técnicos
sobre a história das guerras em geral arrisca afirmar taxativamente que a
religião é propulsora do sentimento de matança da humanidade. Os que
fazem tal afirmação, como no caso de Harris, devem admitir que se apoiam
não em evidências científicas, mas em sugestões “autoevidentes”, isto é,
sugestões que são verdadeiras apenas na aparência, mas carecem de
validação científica.
Posso, por exemplo, afirmar que o videogame e o cinema tornaram a
juventude mais agressiva e que esses entretenimentos são responsáveis pela
violência juvenil de nossos dias. Porém, sem um estudo comprovatório que
ampare esta conclusão, minhas palavras não passam de uma impressão leiga
e nada mais. Semelhante àquela de nossos ancestrais que julgavam ser
perigoso misturar leite com manga!
Do mesmo modo, a conclusão de Harris & cia. acerca da relação entre
religião e guerras não passa de “achismo” e quem concluiu isso foram
autores não religiosos de um estudo sociológico publicado na revista Skeptic
125. Mesmo não sendo religiosos ou defensores da fé, eles criticam
diretamente o argumento autoevidente de Sam Harris que não levou em
conta outras análises mais pertinentes dos dados. Para quem não sabe, essa
revista é a menina dos olhos de muitos ateus, por causa de sua linha editorial
contrária aos discursos da religião.
As aparências enganam
Sei que talvez algum leitor ainda não esteja aceitando a crítica. Você vê os
atentados islâmicos, a história da inquisição, os conflitos da Irlanda do Norte
e tudo parece indicar que a religião foi, sem sombra de dúvida, a responsável
por tudo isso, mas não foi.
O que existe aqui é um argumento de aparência ou o que chamamos em
lógica de falácia por causa falsa. Ela acontece quando alguém supõe
rapidamente que a relação real ou percebida entre duas coisas significa que
uma é a causa da outra. Em latim isso é expresso pela frase cum hoc ergo
propter hoc – com isso, logo, por causa disso.
O fato de duas coisas estarem acontecendo juntas ou uma em sequência da
outra nem sempre quer dizer que uma é a causa da outra! Existem outras
possibilidades, por exemplo, de que haja uma causa comum para ambas ou,
ainda, que nenhuma relação exista entre elas, senão uma coincidência
factual. Ilustrando: um palestrante aponta para uma série de gráficos que
mostram o aumento do número de estupros na cidade de São Paulo em
relação às décadas de 1930 a 1950. Depois mostra como a partir dos anos
1960 as mulheres passaram a vestir minissaia e calça comprida. Logo,
conclui, com ares de triunfo, que o fato de as mulheres usarem roupas curtas
é a causa principal dos atuais casos de estupro. Se elas se vestissem
decentemente, os estupros não haveriam aumentado. Ora, esse sujeito se
esqueceu de anotar que em países mulçumanos adeptos do uso da burca
também há um crescente número de estupros. Um dado que por si só desfaz
o silogismo dele.
Para que você não pense que o exemplo anterior foi inteiramente fictício,
veja como essa aparente combinação de fatores gera estereótipos no povo:
uma pesquisa divulgada em 2014 pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), órgão do governo brasileiro, mostrou que 58,5% dos
entrevistados concordavam totalmente (35,3%) ou parcialmente (23,2%)
com a frase “Se as mulheres soubessem como se comportar [incluindo no
vestir], haveria menos estupros”126. Triste é ver pessoas cultas como Sam
Harris caindo no mesmo erro apenas por questão de retórica antirreligiosa.
Violência e fé
Embora não compartilhe todas as ideias da autora Karen Armstrong,
respeito muito o modo acadêmico como ela procura defender seus pontos de
vista acerca da religião. Num recente trabalho intitulado Fields of Blood:
Religion and the History of Violence127, ela traça um registro histórico não
só da tradição cristã, mas também do budismo, hinduísmo, judaísmo,
confucionismo e outros, desde seu começo, anotando como elementos de
combate foram atrelados a certas observâncias do Sagrado. Conquanto
guerras façam parte da história das religiões, Armstrong não encontrou
qualquer indício de que a violência através dos tempos – especialmente a
violência moderna – possa ser diretamente atribuída à religião.
Mais recentemente, outra pesquisa foi feita, chegando-se à mesma
conclusão. Quem a realizou foi o Institute for Economics and Peace (IEP),
entidade internacional que se dedica aos estudos sobre a paz, além de prestar
serviços de consultoria para a Organização das Nações Unidas (ONU). De
acordo com o estudo, 30 dos 35 conflitos armados registrados no planeta em
2013 até contavam com elementos religiososcomo uma de suas causas.
Contudo, eles não eram o motivo principal: 86% dos confrontos estouraram
pela influência de mais de uma razão, como a oposição ao governo, ao
sistema econômico, à ideologia política ou social daquele país.
De fato, explica a pesquisa, foi constatado que 15 casos tiveram como causa
as tentativas de mudar o sistema vigente de governo para um sistema
islâmico. Portanto, as motivações por trás destes casos são consideradas de
cunho religioso pelo IEP e também de caráter opositor.
“Curiosamente, a religião por si só não foi a única causa de sequer um
conflito armado em 2013”, avaliou o IEP128. O estudo mais uma vez
desmistificou os conceitos que invariavelmente ligam uma coisa à outra.
Isso, porém, não nega a realidade de que a religião, como qualquer outro
organismo social, possa absorver elementos de beligerância, o que não
significa ser a causa dela. Qual seria, pois, a causa do ódio e da violência
generalizada?
Não em nome de Deus!
Poderia citar ainda muitos outros autores, principalmente ateus, que
afirmam taxativamente não ser possível classificar uma guerra como
“secular” ou “religiosa”, mesmo que haja questões religiosas envolvidas no
conflito. Também não se pode dizer que a religião seja o motivo
impulsionador da violência humana.
Neste ponto, para ser honesto com o leitor, também não posso deixar que
passe por verdadeiro o argumento usado por alguns apologistas cristãos de
que apenas 6% das guerras ocorridas no mundo seriam, de fato, religiosas129.
As fontes que se usam para afirmar isso não trazem esse dado.
Desconhecem-se estudos que possam afirmar qualquer percentual neste
sentido130.
O máximo que os estudos revelam é que, em muitos casos, os que
participam das guerras podem até fazê-lo por motivos religiosos, mas quem
as inicia o faz por razões outras que nada têm a ver com a religião. Ou seja,
ainda que o sentimento religioso seja usado como propaganda pelos
combatentes, não é a “causa primordial” da deflagração militar131.
A culpa é do Sagrado
Sei que com o fim da Guerra Fria o número de conflitos envolvendo países
mulçumanos aumentou exponencialmente ou, pelo menos, chamou mais a
atenção da mídia ocidental. Por isso, os antirreligiosos batem tanto nesta
tecla. Afinal de contas, não foram ateus que promoveram o ataque às torres
gêmeas ou os atentados em Paris, Berlim e Istambul. É claro que medo do
terrorismo, após o 11 de setembro e o radicalismo dos que se infiltram na
Europa para fazer atentados agregam valor exponencial à retórica do
argumento.
Daí, como comentei anteriormente, os casos atuais de “explosões em nome
de Allah” são projetados para o passado e usados para explicar a inquisição,
as torturas medievais e a maior parte do derramamento de sangue,
testemunhado pela humanidade, ou seja, tudo em nome da fé, tudo em
nome de Deus!
Ora, que muitos absurdos, assassinatos e horrores foram praticados por
líderes religiosos ninguém duvida, a história está aí repleta de exemplos. É
inegável a quantidade de males feitos sob um suposto mandato divino. Mas
daí a dizer que a religião é a raiz de todos os males e que sem ela nada disso
existiria é pura especulação.
Duvida? Então acompanhe meu raciocínio. Quando a sociologia começou
a dar seus primeiros passos após a Revolução Francesa, a grande busca de
seus pioneiros era a criação daquilo que Thomas More já havia chamado de
Utopia em 1516 – uma sociedade perfeita, símile à República idealizada
por Platão.
Muitos, seguindo no que já havia sido preconizado por More, permitiam à
religião ocupar um lugar positivo e atuante nesta sociedade imaginada, em
que todos viveriam em cooperação e justiça. Um lugar onde “ninguém
possua coisa alguma, mas todos sejam igualmente ricos”132. A ideia era uma
sociedade igualitária, sem propriedade privada e repleta de liberdade
religiosa.
Mas Augusto Comte, um dos principais idealistas do novo sistema,
começou aos poucos a romper com parte desse planejamento. Enquanto
More criticava apenas os autoritarismos do Rei (especificamente Henrique
VIII) e os desmandos da Igreja Anglicana, Comte já demonstrava uma
relativização da importância da religião na sociedade.
Embora a atividade religiosa fosse uma necessidade existencial humana, a
evolução da sociedade demandaria para Comte uma superação e um
abandono das crenças à medida que saíssemos dos estados teológico e
metafísico e atingíssemos o estágio científico ou positivista. Sua última obra,
Sistema de política positiva (1857)133, discute essa questão, afirmando que
a forma atual de religião, com suas crenças e organização oficial, era
incompatível com a sociedade perfeita por ele idealizada. O motivo era sua
herança do estado teológico e militarista, caracterizado pela força, pelo
dogma e pelo comando irracional.
Outros pensadores seguiram na mesma linha, buscando levar o tema da
utopia para o lado da política, e chegaram ainda mais longe. Eles saíram do
campo da teoria social, arriscando emplacar uma nova modalidade de
governo com viés fortemente secularizado, sem espaço para a religião. A
revolução Russa foi, sem dúvida, um dos mais significativos movimentos
nesta direção.
Sendo uma das maiores soberanias da Europa, a Rússia passou a ter
condições políticas e militares de dominar uma grande extensão de terras.
Sua esfera de atuação era imensa. Assim com a queda dos czares e a adoção
das filosofias marxista e leninista, a Rússia passou a exportar uma ideologia
nova e radical de governo que se espalhou pela Eurásia tanto pelo
argumento quanto pela força armada. Suas raízes ideológicas estavam nas
filosofias de Feuerbach, Hegel e os já mencionados Marx e Lenin.
Criou-se, portanto, um sistema governamental que rejeitava a religião ao
defender inteiramente um entendimento materialista/dialético da natureza.
A religião, é claro, seria o “ópio do povo”, expressão usada por Marx no
sentido de que ela levaria as pessoas a aceitarem passivamente o sofrimento,
na esperança de uma vida melhor no paraíso. Por isso, entendiam que, para
o progresso da então criada União Soviética, a religião deveria ser abolida134.
Foi um momento ideológico muito marcante, pois nem mesmo a
Revolução Francesa, que dialogou estreitamente com ideais humanistas, se
tornara um movimento 100% ateu. Muitos de seus líderes ainda nutriam fé
em algum tipo de divindade, mesmo que fosse um Deus distante conforme
propunha o deísmo de Voltaire.
Mas a proposta do “marxismo leninista” era de que um verdadeiro
socialismo deveria se fundar num Estado e numa sociedade necessariamente
ateístas, ou seja, a estrada do socialismo, para aquela corrente, demandava a
morte a Deus.
Finalmente o Estado Ateu
A antiga União Soviética foi a oportunidade dos teóricos ateus de criarem
um Estado livre das mazelas da religião. Em outras palavras, eles já tiveram
sua proposta concretizada na história não só na União Soviética, mas
também na China de Mao Tsé-Tung, na Albânia de Enver Hoxha e na
Coreia do Norte. A pergunta óbvia seria: A vida nesses países foi melhor sem
religião? A violência diminuiu?
Vamos deixar a resposta com Rudolph Rummel, politólogo, falecido
professor de ciências políticas da Universidade do Havaí. Rummel, sem
dúvida, foi uma das maiores autoridades do mundo sobre mortes em massa,
causadas por regimes políticos, especialmente aqueles declaradamente ateus,
sem vínculo algum com a religião.
Autor de vários livros e artigos científicos, Rummel se surpreendeu com os
números encontrados. Somente o comunismo soviético-russo assassinou por
tiro, enforcamento, fome, congelamento ou tortura um total de
aproximadamente 170 milhões pessoas – incluindo idosos e crianças135. E
olha que isso foi em apenas 73 anos de regime! Já o massacre religioso da
Inquisição Espanhola, que durou muito mais tempo (1478 a 1834), ceifou a
vida de aproximadamente 341 mil pessoas, um número bem menor que os
dados soviéticos136. Quem ceifou mais vidas?
Rummel chegou a sugerir um neologismo para descrever o horror dos
massacres em nome das políticas de governo. Em vez de falar degenocídio,
que para ele era um tanto vago, preferiu usar o termo não dicionarizado
democídio – a matança em nome do partido137. Nenhuma dessas mortes,
sequer, teve motivação religiosa. Pelo contrário, a religião estava banida da
agenda desses ditadores.
Que podemos concluir?
A essa altura você já percebeu que, se formos comparar os números,
mesmo com a dificuldade de se classificar um conflito em religioso ou não
religioso, a situação não melhora para o lado dos ateus. Assassinatos
assumidamente em nome de uma causa antirreligiosa foram muito maiores
que os cometidos em nome da fé. Em valores absolutos, o maior matador
não foi um papa, um inquisidor espanhol ou um Emir mulçumano. Foi o
ditador ateu Mao Tsé-Tung, que mandou nada menos que 77 milhões de
compatriotas para a cova rasa.
Logo, o que se conclui é que existe violência nos governos religiosos e
também ou maior nos governos ateus. Portanto, não posso dizer que o
ateísmo ou a religião sejam a causa principal ou isolada dos conflitos. Talvez
o motivo da violência esteja em outro lugar: na natureza humana. Afinal de
contas, qual é o elemento comum em todas as guerras, senão o ser humano?
De onde vêm as guerras e pelejas entre vós? Porventura não vêm disto, a saber,
dos vossos deleites, que nos vossos membros guerreiam? Cobiçais, e nada
tendes; matais, e sois invejosos, e nada podeis alcançar; combateis e guerreais, e
nada tendes (Tiago 4 1:2).
Os psicólogos se dividem quanto à origem da maldade humana, se seria ela
inata ou aprendida. Mas com uma coisa todos concordam. O ser humano
opta, em meio ao ambiente em que vive, que rumo ético tomará em sua
vida. Se não houvesse o tão discutido “livre-arbítrio” – infelizmente negado
por alguns deterministas – jamais encontraríamos na sociedade nazista
pessoas que, resistentes a Hitler, ajudassem clandestinamente judeus.
Por mais que haja influências do ambiente, é a decisão individual de cada
um de nós que determinará as escolhas éticas que fazemos. O meio
influencia, mas não determina, tanto é que vemos pessoas de bem morando
no meio de traficantes e pessoas eticamente desprezíveis ocupando
apartamentos de luxo. Se me permitem o jargão religioso, sei que todos
somos falhos e pecadores, mas alguns se tornam perversos e isso é algo que
não se deve tolerar. Existe perdão para o pecador arrependido e condenação
para o perverso impenitente.
Fecho este capítulo com as palavras de Viktor Frankl, psiquiatra austríaco-
Fecho este capítulo com as palavras de Viktor Frankl, psiquiatra austríaco-
judeu, sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz:
O ser humano não é uma coisa entre outras; coisas se determinam
mutuamente, mas o ser humano, em última análise, se determina a si mesmo.
Aquilo que ele se torna – dentro dos limites dos seus dons e do meio ambiente –
é ele que faz de si mesmo. No campo de concentração, por exemplo, nesse
laboratório vivo e campo de testes que ele foi, observamos e testemunhamos
alguns dos nossos companheiros se portarem como porcos, ao passo que outros
agiram como se fossem santos. A pessoa humana tem dentro de si ambas as
potencialidades; qual será concretizada, depende de decisões e não de
condições.138
113 Frans Leonard Schalkwijk. Igreja e Estado no Brasil holandês (1630 a 1654) (São Paulo:
Cultura Cristã, 2004).
114 Georges Minois. História do ateísmo – os descrentes no mundo ocidental, das origens aos nossos
dias (São Paulo: Editora Unesp, 2014).
115 L. Feuerbach. Preleções sobre a essência da religião (Rio de Janeiro: Vozes, 2009).
116 Michel Onfray. Antimanual de filosofia (São Paulo: Edaf, 2005), p. 30.
117 W. Cavanaugh. The Myth of Religious Violence: Secular Ideology and the Roots of Modern
Conflict (Oxford: Oxford University Press, 2009).
118 Tucídides. “Guerra do Pel. i: 112”, in Historia de la Guerra del Peloponeso. Obra completa
(Madrid: Editorial Gredos, 1990/1992).
119 Aristófanes. “As Aves 556”, in As Aves. Tradução, introdução, notas e glossário de Adriane da Silva
Duarte. Edição bilíngue (São Paulo: Hucitec, 2000).
120 James R. Ginther. The Westminster Handbook to Medieval Theology (Westminster: John Knox
Press, 2009), p. 112; Patricia Crone. “One Wonders if Medieval Latin Bellum Sacrum is not more
Likely to Lie behind the Modern Term”, in Medieval Islamic Political Thought. New Edinburgh
Islamic Surveys (Edinburgh: Edinburgh University Press, 2004), nota 18.
121 “Jihad: A Misunderstood Concept from Islam – What Jihad is, and is not”. Disponível em . Acesso em: 15/03/2017.
122 Christopher Hitchens. God Is Not Great: How Religion Poisons Everything (New York: Twelve,
2007), p. 18.
123 Sam Harris. The End of Faith: Religion, Terror, and the Future of Reason (New York: W.W.
Norton & Co., 2004), p. 26.
124 Dados sobre a quantidade de mortos em conflitos podem ser obtidos em fontes como: Aleksey G.
Arbatov (ed.). Armaments, Disarmament and International Security by SIPRI Yearbook 2011
(Oxford: Oxford University Press, 2011); Milton Leitenberg. Deaths in Wars and Conflicts in the
20th Century. Cornell University Peace Studies Program, Occasional Paper #29 (Center for
International Security Studies at Maryland, School of Public Policy, University of Maryland, College
Park, MD, 3. ed., 2006). Disponível em . Acesso em: 24/03/2017; Jacob Bercovitch; Richard Jackson. International
Conflict: A Chronological Encyclopedia of Conflicts and Their Management 1945-1995
http://islamicsupremecouncil.org/understanding-islam/legal-rulings/5-jihad-a-misunderstood-concept-from-islam.html
http://www.clingendael.nl/sites/default/files/20060800_cdsp_occ_leitenberg.pdf
(Washington: Congressional Quarterly, 1997); ,
Acesso em: 10/02/2017 e , acesso em 24/03/2017.
125 Ben Purzycki; Kyle Gibson. “Religion and Violence: An Anthropological Study on Religious
Belief and Violent Behavior”, in Skeptic 16.2 (2011): 24-29.
126 Disponível em . Acesso em: 24/11/2014.
127 Karen Armstrong. Fields of Blood: Religion and the History of Violence (New York: Alfred A.
Knopf, 2014).
128 Disponível em . Acesso em: 15/12/2015.
129 Veja por exemplo: . Acesso em: 24/03/2017; Alan Lurie. “Is Religion the Cause of Most Wars?”, in
Huffington Post (Updated June 1, 2012). Acesso em: 30/03/2014.
130 Alan Axelrod; Charles Phillips. Encyclopedia of Wars, 3 volumes (New York: Facts on File,
2005); Gordon Martel. The Encyclopedia of War (Malden e Oxford: Wiley-Blackwell, 2012), 5 vols.
131 Gordon Martel. The Encyclopedia of War, p. xxii.
132 Thomas More. Utopia (New York: Dover Thrift Edition, 1516/1997), p. 128.
133 Augusto Comte (1854). Système de politique positive publié entre 1851 et 1854. Collection:
“SUP – Les Grands Textes” (Paris: Les Presses universitaires de France, Troisième édition, 1969).
134 Dimitry V. Pospielovsky. A History of Soviet Atheism in Theory, and Practice, and the Believer,
v. 1: A History of Marxist-Leninist Atheism and Soviet Anti-Religious Policies (New York: St. Martin’s
Press, 1987).
135 R. J. Rummel. Death by Government (New Brunswick: Transaction Publishers, 1994), p. 9.
136 Paul Johnson. A History of the Jews (New York: Harper & Row, 1987), p. 226.
137 J. Rummel. Statistics of Democide: Genocide and Mass Murder since 1900 (Münster: Lit
Verlag, 1999).
138 Viktor E. Frankl. Em busca de sentido, um psicólogo no campo de concentração (Petrópolis:
Vozes/Sinodal, 1991).
http://www.scaruffi.com/politics/massacre.html
http://necrometrics.com/wars21c.htm
http://g1.globo.com/brasil/noticia/2014/03/para�-585�-comportamento�-feminino�-influencia�-estupros�-diz�-pesquisa.htmlhttp://exame.abril.com.br/mundo/a�-religiao�-e�-a�-maior�-causa�-de�-guerras�-atuais�-nao�-exatamente/
https://www.str.org/articles/debunking-the-religious-wars-myth#.WtoLg0xFxy0
Capítulo 14
Compensa falar de Deus?
Confesso que fico admirado com os céticos que leram este livro até aqui.
Explico a razão de meu espanto. Alguém destituído de fé poderia
conjecturar que não valeria a pena ler minhas considerações por um motivo
óbvio: religião, fé e Deus não são assuntos que lhe interessam muito e,
portanto, seria perda de tempo tentar entender por que um crente continua
crendo.
De fato, por questões de especialidade e foco de estudos, eu não tenho
interesse em determinados temas como, por exemplo, a culinária da ilha de
Java. Posso até assistir a um documentário a respeito ou ler um artigo num
avião, mas apenas por questões de cultura geral. Pior ainda se estiver falando
de algo que eu considere pueril ou cultura inútil. Eu dificilmente teria
interesse num livro intitulado “Por que creio nos elfos”, isto é, aquelas
criaturinhas místicas que supostamente moram na floresta e têm poderes
mágicos. Tenho prioridades de leitura e esta não estará na lista,
principalmente levando em conta que não creio em elfos.
Mesmo em se tratando de áreas sérias de estudo que não fazem parte de
meu rol de preferências, tenho de selecionar o que leio, pois não dá para
repousar os olhos em tudo que é publicado. Por exemplo: recentemente, foi
divulgado na imprensa especializada e popular que os físicos puderam,
finalmente, confirmar a teoria das ondas gravitacionais de Albert Einstein.
Como não sou da área, evidentemente não tive a mesma empolgação de um
pesquisador do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA). Portei-me,
confesso, como alguém que não acompanha seriados e encontra um fã de
Game of Thrones me dizendo que na nova temporada o garoto Greyjoy se
reencontrará com Jon Snow pela primeira vez desde que se voltou contra os
Starks, sua família de criação. Como esperado, o bastardo não aceitará isso
de mão aberta.
Ao ouvir essa revelação, consigo imaginar que se trata de algo importante
na trama, mas como não acompanho o seriado não sei ao certo qual a
profundidade do que ele diz. No caso das ondas gravitacionais de Einstein,
sua descoberta abre a possibilidade de conhecer melhor o ciclo das estrelas e
o modo como se formam os buracos negros. O universo será estudado de um
modo totalmente novo. Como não acompanho todos os capítulos desse
recorte do saber, reservo-me à condição de leigo e fico apenas na admiração,
sem me envolver muito no debate. Afinal, todos somos leigos em alguma
coisa. Não podemos dominar profissionalmente todos os assuntos. Se eu
conversar com um físico sobre um novo achado da arqueologia ou uma nova
interpretação dos escritos de Wittgenstein, talvez ele também fique no
campo da admiração, sem ter muito o que dizer.
Não quero com isso insinuar que diferentes áreas não possam dialogar ou
que somente especialistas podem opinar sobre determinado assunto. Isso
seria exagerar meu argumento. O ponto aqui é que há conhecimentos fúteis
ou importantes que podem ocorrer paralelos à minha vida, sem que eu
interaja com eles ou me posicione a seu respeito. A neutralidade neste caso
não causa prejuízo algum em minha existência. Posso viver meus dias
completamente alheio a esses temas que isso não modificará em nada minha
trajetória.
Contudo, existe uma diferença marcante entre Game of Thrones, ondas
gravitacionais, elfos e o tema de “Deus”. Primeiro, porque Deus não é uma
especialidade acadêmica para ficar restrito a um grupo de teólogos, apenas,
tanto é que as livrarias e redes sociais estão repletas de ateus sem formação
teológica ávidos para debater temas bíblicos. Por mim tudo bem desde que
sejam coerentes com as fontes e admitam que não sabem grego, hebraico ou
como fazer exegese!
Em segundo, Deus é tema diferente porque não se trata de uma cultura
localizada que interessa apenas ao povo de determinada região; não estou
falando da centralidade dos elfos na mitologia escandinava – o assunto
“Deus” é muito mais amplo que isso. A realidade ou não desse Ser Supremo
e daquilo que ele representa (caso exista, é claro) tem relação direta com
aquilo que somos, fazemos e valorizamos, bem como com os motivos pelos
quais agimos quer como indivíduos ou como sociedade.
E não caiamos na velha máxima de que futebol, religião e política não se
discutem. Contrariando esse dito popular, as redes sociais se enchem de
debates acalorados sobre esses três temas e não é raro encontrar situações em
que a rede se transforma num agressivo ringue de ideias.
Que me importa?
Deixe-me explorar melhor esse conceito da importância do tema de
“Deus”. A questão que interessa aqui é que a fé em algum tipo de divindade
não é como a crença num elfo escandinavo. A história do Sagrado (ainda
que alguns a considerem mito) permeia a história da humanidade em todos
os tempos e em todas as culturas. Entre nas caravelas de Cabral e verá que os
índios que aqui havia já cultuavam divindades. Vá com Marco Polo ao
Extremo Oriente e se surpreenda pela religião já estar lá há muito tempo.
Sei que a religião constitui um organismo plural e diversificado, mas isso
não contradiz o fato de que seja um fenômeno universal. Esta não é uma
conclusão de crentes sem cultura. Autores renomados como Émile
Durkheim, Sigmund Freud, Carl G. Jung e Lévi-Strauss já diziam isso.
Lothar Käser apresenta o que parece ser um consenso da etnologia
moderna: a despeito do surgimento de países oficialmente ateus como
China, França e Rússia, a religião ainda é considerada um fenômeno
universal, presente em todas as culturas139. O ateísmo, por sua vez, constitui
uma manifestação de cunho mais individual ou no máximo uma opção
sociopolítica, posterior ao rompimento com a fé. Do ponto de vista cultural,
todas as coletividades sociais apresentam manifestações religiosas e a crença
é o fator natural comum a todas elas.
Ainda que muitos filósofos atuais tenham abandonado o argumento do
consensus gentium, isto é, afirmar que a crença universal em Deus
comprova sua existência, desconheço qualquer contra-argumentação séria
que negue o fato de que existe naturalmente uma inclinação humana para o
Sagrado. Ou seja, no DNA de todas as mais diferentes culturas até agora
mapeadas pela antropologia, está registrada a força do rito e da atividade
sagrada, seja ela qual for140.
Logo, a ideia de divindade não parece ter surgido a partir de um grupo de
homens que, reunidos numa sala secreta, resolveram criar Deus e vender o
conceito para um povo supostamente ateu. Não se trata de uma Coca-Cola
inventada e posta no mercado. O conceito está conosco desde os tempos
mais remotos da humanidade.
É certo que existem muitas “versões de Deus” (algumas de gosto bastante
duvidoso). Mas até os que se opõem à religião admitem que a ideia original
de divindade não parece ter sido criação de seres humanos.
Neste ponto preciso apenas esclarecer um aspecto importante, que é a
diferença entre a busca instintiva de Deus e manifestação religiosa. A
religião para mim (e aqui sigo o pensamento de Viktor Frankl) é apenas uma
manifestação da dimensão espiritual, mas não a determinação dela. É
impreterível considerar que essa realidade em sua característica
essencialmente humana expressa a busca ontológica por um significado.
A tese de Durkheim
Talvez alguém argumente que Émile Durkheim concluiu diferentemente,
afirmando que embora as crenças religiosas estejam no centro do primeiro
sistema de representações do ser humano, elas nada teriam a ver com a ideia
de Deus ou de vida eterna. Seriam apenas representações dualísticas do
mundo e da sociedade.
Mas vamos devagar com a proposta para não cair no argumento por
autoridade. Durkheim realmente fez um grande trabalho na tentativa de
demonstrar que os fatos sociais têm existência própria e independente
daquilo que pensa e faz cada indivíduo em particular. Embora todos
possuam suas “consciências individuais”, seus modos próprios de se
comportar e interpretara vida, pode-se notar, no interior de qualquer grupo
ou sociedade, formas padronizadas de conduta e pensamento. Essa
constatação está na base do que Durkheim chamou consciência coletiva.
Esta foi uma proposta realmente fascinante.
As formas elementares da vida religiosa141, lançado originalmente em
1912, foi seu tratado mais importante de sociologia da religião. Mas há quem
diga que ele transcendeu o elemento religioso, tornando-se um livro de
sociologia do conhecimento e da moral.
Contudo, em que pese a contribuição de seu insight, Durkheim não está
isento de críticas. Embora não seja um especialista em sociologia, permita-
me tecer alguns comentários que também são esboçados por outros autores.
Sabe-se que Durkheim elegeu o sistema totêmico australiano como suporte
empírico de sua investigação sobre os fundamentos coletivos da crença
religiosa. Ele queria encontrar traços comuns que permitissem criar uma
teoria das origens da religiosidade humana em diferentes grupos étnicos.
O que seria, portanto, o sistema totêmico australiano? Trata-se de um tipo
de religião comum entre os aborígenes que tem como ponto central a figura
de um totem, isto é, um objeto sagrado que funciona como um talismã para
determinados grupos sociais. Ele pode ser um animal, uma pedra, um brasão
ou um poste esculpido com figuras antropomórficas, como aqueles vistos em
tribos indígenas dos Estados Unidos e do Canadá.
Durkheim entendeu que os elementos religiosos dos aborígenes não
simbolizavam o mundo transcendental, mas a própria sociedade e os valores
materiais tornados objetos de culto. Eram imagens religiosas do universo,
retiradas das representações que as sociedades fazem de si mesmas. Assim, o
sagrado não é originalmente algo que tem a ver com uma divindade acima
dos homens. Tratava-se, antes, de uma força primitiva derivada da
coletividade. Os brasões religiosos seriam, portanto, um símbolo do próprio
clã.
O totemismo, neste sentido, seria uma espécie de religião sem deus e
serviria para demonstrar a tese de que o traço distintivo do pensamento
religioso em todas as partes é representar o mundo “em dois domínios, um
que compreende tudo o que é sagrado, e outro que compreende tudo que é
profano”. Ambos, porém, têm a ver com o universo em redor, e não com
uma busca por divindades espiritualmente superiores.
Durkheim entendeu que esses grupos da Austrália poderiam ser estudados
de modo científico, oferecendo características comuns que serviriam como
uma espécie de padrão do comportamento humano. Mas aí que nasce o
primeiro de seus problemas.
Ele fez a pesquisa numa época em que estava em moda a busca por
padronizações do comportamento humano que hoje se demonstraram bem
inferiores àquilo que prometiam. Foi uma tentativa, vista posteriormente no
processualismo, de se estudar a atividade humana, utilizando-se de
metodologias positivistas. Seu intento era explicar cientificamente a religião,
a partir de supostos fenômenos sociais oriundos de observações
comportamentais de determinados agrupamentos étnicos. O problema, no
entanto, com esta abordagem é a desconsideração ao fato de que as pessoas
não foram feitas em série como se fossem automóveis. Os comportamentos,
mesmo aqueles coletivos, se mostram particulares e pouco previsíveis. Essa é
uma abordagem que não dá mais conta da realidade social.
Imaginava-se, de modo geral, que a tarefa do sociólogo com relação à
religião deveria ser examinar as forças sociais que dominam o crente,
concebidas enquanto um produto direto dos sentimentos coletivos.
Outro problema é que Durkheim ainda respirava um ar eurocentrista,
segundo o qual o chamado “homem branco” emitia juízo de valores sobre
culturas ditas “primitivas” e as analisava sob uma ótica que nem sempre era a
mesma do analisado. Por exemplo, o que para um observador europeu seria
um rito de iniciação, para o nativo poderia ser um ato penitencial. As
análises não escapavam ao subjetivismo prévio do observador. Logo,
poderiam ser anacrônicas em relação à verdadeira identidade do símbolo.
Para piorar, ao que tudo indica, Durkheim não contatou pessoalmente
todos os grupos citados, mas valeu-se de um trabalho prévio de Spencer e
Gillen, antropólogos que se ocuparam de um conjunto de tribos
australianas. Porém, mesmo estes não foram observadores diretos de tudo
que escreveram. Em muitos casos, eles utilizavam impressões fornecidas por
viajantes, comerciantes e missionários. Ou seja, não era um trabalho de
primeira mão, mas um amontoado de impressões sobre impressões que
pouco espaço deram para a voz do próprio sujeito pesquisado.
Durkheim ainda tomou por pressuposto que o “totemismo” seria a forma
mais simples e primitiva de religião. Logo, a partir dela, ele poderia traçar a
evolução da sacralidade humana e fundamentar uma teoria.
Evidentemente, essa ideia de “simplicidade” é possivelmente um dos
pontos mais frágeis e mais contestados de sua proposta, podendo ser
considerada um resquício das concepções evolucionistas que ainda faziam
parte do imaginário sociológico e antropológico da época e que, por isso
mesmo, soa como uma ofensa às consciências contemporâneas142.
O antropólogo Van Gennep, que também pertencia à escola francesa de
Durkheim e foi pioneiro na abordagem etnográfica comparada, não poupou
críticas ao colega, afirmando que um culto a uma entidade impessoal seria
inconcebível, sobretudo entre os grupos mais primitivos143.
E finalmente, Lévi-Strauss também criticou bastante a obra de Durkheim
denominando sua teoria de reducionista, projetista de imagens não reais144.
Toda a grandeza e debilidade da pesquisa durkheimiana encontra-se
exatamente nos pressupostos com os quais ele trabalha.
A origem de Deus
O que se conclui de tudo? Que a despeito de existirem muitas fábricas de
deuses para todos os gostos, o “conceito de divindade” pode ser sistematizado
pelo homem, mas nunca criado por ele. Seria como os astrônomos que
podem estudar as estrelas, mas jamais as produzir. A crença no divino não
parece ter certidão de nascimento. Suas origens coincidem com o
surgimento da humanidade, e é exatamente aí que tal conceito não pode
passar despercebido. Ele influencia a vida de todos, seja para um lado ou
para o outro.
Se a existência de Deus ou deuses for um mito, ela precisa urgentemente
ser combatida, para o bem de todos. Afinal é uma mentira contada há
séculos, afetando a vida de todos nós. Mas se for verdadeira, precisa ser
abraçada por quem tiver bom senso. Não seria sensato viver alheio a Deus.
Seria como brincar na praia fingindo que o tsunami não está vindo!
Logo, não posso ficar neutro em relação a esse assunto, como se isso fosse
coisa de somenos importância. Ou corro para Deus ou combato sua
existência. É uma questão de coerência e bom senso. Neutralidade é um
termo que não pode existir nesta questão.
Ainda que alguns argumentem com John Locke que a ideia de Deus e sua
crença não é inata ao ser humano (tenho cá minhas dúvidas em relação a
isso), deverão, pelo menos, fazer coro com Marx, Durkheim e Freud de que
existe uma abertura humana para o transcendente que precisa ser explicada,
ainda que com argumentos naturais. Marx enfatizava a mistificação, Freud a
compensação e Weber, a secularização. Seja como for, ninguém está livre
do fenômeno religioso ou, se preferir, da busca transcendental. Eu sei que
existem religiões que se denominam como não necessitadas de um conceito
de Deus (que também não sejam durkheimianas). Refiro-me a rigor a
seguimentos como daoismo, confucionismo e budismo. Elas, no entanto,
têm o sentido da transcendência. E é justamente por terem um agudo
sentido da transcendência que querem ultrapassar a determinação de um
deus pessoal”. Sendo assim, como veremos no próximo capítulo, as pessoas
podem até dispensar conceitos humanos de Deus, mas ninguém escapa da
ideia da Transcendência!
139 Lothar Käser. Diferentes culturas (Londrina: Descoberta, 2004), p. 187.
140 Thomas Kelly. “Consensus Gentium: Reflections on the ‘Common Consent’ Argument for the
Existence of God”, inClark and VanArragon (eds.). Evidence and Religious Belief (Oxford: Oxford
University Press, 2011), p. 167-196.
141 É. Durkheim. As formas elementares da vida religiosa (São Paulo: Martins Fontes, 2003).
142 Raquel Weiss. Durkheim e as formas elementares da vida religiosa (Debates do NER, ano 13, nº
22, 2012), p. 95-119; M. C. C. Zanini. Totemismo revisitado: perguntas distintas, distintas
abordagens (Hábitus: Goiânia, v. 4, n. 1, jan./jun. 2006), p. 513-533.
143 A. van Gennep. L’etat actuel du problème totémique (Paris: Leroux, 1920), p. 50.
144 C. Lévi-Strauss. Totemismo hoje (Petrópolis: Vozes, 1975).
Capítulo 15
Ninguém escapa da transcendência
Meus leitores ateus, céticos e agnósticos não podem ignorar toda a
bagagem cultural e profundamente humana da ideia de Deus. Ninguém
escapa da transcendência. Faz parte ontológica do gênero humano perceber
que sua existência é parte de algo maior que ele mesmo, que a vida não é
completamente acidental e inútil. Nossa razão tem fome de propósito e sede
de significado. É como um buraco negro, nem a luz consegue escapar de
sua gravidade.
Sei que muitos céticos negarão o que digo, talvez até por uma questão de
autoafirmação, rebeldia, sei lá. Mas, ouvindo o discurso e os argumentos de
vários ateus, nutro a forte percepção de que, se houver mesmo um Deus
bom, justo e salvador, que trará o paraíso para a Terra, os de sã consciência
achariam isso uma maravilha. Imagine um planeta onde não haverá mais
morte, nem pranto, nem dor. O fim eterno do sofrimento, da desilusão, do
tédio. Se houver a mínima possibilidade de que isso ocorra, até os ateus de
bom senso poderão fazer uma oração muito sincera que diria: “Senhor, que
tu existas! Amém!”.
Quer fazer um teste? Raciocine comigo, pegue um grupo de materialistas
radicais que neguem qualquer evento ou propósito acima da materialidade.
Eles são pessoas espertas que adoram postar comentários antirreligiosos e
encurralar crentes com perguntas capciosas. Só trabalham com dados
científicos, números e evidências. Não aceitam superstições, medicina
alternativa e ainda dispensam as preces feitas em favor de si mesmos.
São pessoas, enfim, que se definem como tendo coragem de viver a
realidade como ela é, sem rodeios nem embelezamentos espirituais. Para
elas a vida é apenas um traço entre duas datas. Quem dá sentido a esse traço
somos nós mesmos, vivendo da melhor maneira que pudermos e buscando
ao máximo desfrutar a felicidade antes que o tempo passe e seja tarde
demais.
Até que, certo dia, um dos membros do grupo recebe um laudo de câncer
do mais agressivo que se pode imaginar. Suas chances sobreviver são
mínimas. Contudo, assim que ele compartilha a má notícia com os colegas
do grupo, provavelmente a maioria ignorará as estatísticas acerca dessa
doença e lhe dirá frases de efeito do tipo: “Tenha bom ânimo, você vai sair
dessa”, “Estamos juntos”, “Força, amigo, não desanime”, “Estou torcendo
por você”.
Ora, seria esse comportamento coerente com sua filosofia de vida? Óbvio
que não! Não digo que o desejo de o amigo viver mais tempo seja o
problema aqui. A questão é que, racionalmente falando, desejo e realidade
não deveriam estar em rivalidade. O primeiro deve submeter-se ao segundo
para evitar colocações não realistas. O simples motivo pragmático de não
permitir que o amigo fique totalmente depressivo não justifica a negação de
realidade como eles a entendem. Caso contrário estariam fazendo
justamente o que mais criticam na religião – iludindo alguém com falsas
esperanças para que ele não se sinta pior.
Se não existe Deus, nem realidade alguma acima do universo material em
que vivemos, “torcer pela recuperação de um amigo” é tão inútil quanto orar
em prol de um ente querido. Seria o mesmo que sacudir um pouco mais a
urna já misturada, achando que isso aumentará suas chances de ganhar o
prêmio. Se tenho 1 cupom em mil, essa será minha chance matemática não
importa quantas vezes revirem os papéis que estão ali dentro. Seria
estatisticamente estúpido pedir para girar novamente a urna.
Na cena imaginada, seria mais coerente com os princípios filosóficos do
grupo dizer algo do tipo: “Bem, já que você tem poucos dias de vida, então
aproveite, meu amigo. O que pretende fazer no pouco tempo que lhe resta?
Se quiser posso lhe dar algumas sugestões de como aproveitar seus últimos
dias ou tirar uma licença para você não morrer sozinho. Um detalhe
importante: se for viajar, sugiro que não vá para muito longe, nem para fora
do país, pois será mais caro pagar o traslado de seu corpo do exterior. Já fez
um seguro de vida para deixar para sua esposa? A propósito: você se importa
se eu não te devolver o taco de golfe que me emprestou? Afinal, você não vai
mais precisar dele. Outra coisa: deixe claro se quer ser cremado ou
enterrado, pois pode ser que nos momentos finais você perca a consciência e
fiquemos na dúvida sobre seu último desejo. Qualquer coisa, conte comigo,
somos seus amigos e queremos fazer de tudo para que você tenha um final
de existência feliz”.
Frio demais? Não creio. Talvez irônico, mas bastante realista. A
comparação pode até parecer exagerada, mas não é falaciosa. Seu objetivo
foi chamar a atenção da discrepância entre o que se afirma no momento da
calma e o que se faz na hora da dor. Disseram certa vez, numa piada, que
ninguém é hétero quando a barata é voadora, e eu digo que ninguém é
100% materialista quando a morte bate à sua porta, afetando a si ou a um
ente querido. Se fosse, ele não temeria ler o resultado dos exames. Afinal,
todos vamos morrer um dia, não há nada de novo nisso. É só uma questão de
saber quem vai primeiro.
Se a morte é um processo natural – a religião que tenta negar isso – então
pessoas mais esclarecidas não deveriam ter nenhum receio dela. A
naturalidade da morte deveria torná-la mais palatável, pelo menos é o que
entendo ao ler a ironia de autores como Saramago, que procura tratar o fim
da vida com humor, expressando a inutilidade da existência. E, por favor,
não bata no peito dizendo que não tem medo de morrer, que isso é coisa
para religiosos. Eu não disse “medo”, disse “receio”, angústia do dia em que
ela chegará para você ou para alguém que você ama.
Veja se não é assim: em condições normais ninguém tem receio de dormir,
comer, fazer sexo ou usar o banheiro. São coisas normais da natureza e, por
isso mesmo, não deveriam causar nenhum espanto a não ser por tabus
sociais. Porém, no quesito “morte” parece que a dita evolução fez uma
piadinha de mau gosto criando um paradoxo existencial: não somos imortais,
mesmo assim, não queremos deixar de existir. Tal dilema parece indicar que
algo não está funcionando de acordo com o projeto. O carro projetado para
correr a 300 km/h não está conseguindo passar dos 100! Tem coisa errada aí.
Expectativas fantasiosas?
Dizem por aí que a morte é a única convicção da vida. Contudo,
contrariando essa certeza, todos, crentes ou não, queremos
desesperadamente encontrar uma alternativa para ela, como se pudéssemos
adiá-la indefinidamente. “Sabemos que não vamos viver eternamente, mas
sempre temos a expectativa da vida”, tanto é que ninguém consegue
imaginar sua morte ou sua não existência. Sempre que nos imaginamos
mortos, na verdade visualizamos nosso eu vivo em algum lugar, assistindo de
camarote ao que ocorre no mundo dos vivos. O estado da inconsciência não
alcança nossa imaginação. E não somente isso. Nossa mente possui uma
forma quase contínua de tentar driblar a fria realidade em que vivemos.
Precisamos o tempo todo de algo que dê sentido ao sofrimento ou que possa
nos prevenir dele, mesmo sabendo que tal coisa talvez não exista.
Nem os mais prodigiosos escapam disso. Conta-se que o rêmio Nobel Niels
Bohr, o maior nome na física do século 20, depois de Einstein, tinha uma
ferradura pendurada na porta de sua casa. Um amigo lhe perguntou se ele
realmente acreditava que aquilo traria sorte para sua vida. Ele respondeu
que não, mas que haviam lhe dito que a coisa funciona mesmo assim, então
ele resolveu “arriscar”. Isso soa tão contraditórioao nascimento de Jesus e, em seguida,
perguntaram a cada um que histórias, fatos ou personagens – dentre os
apresentados – estariam presentes no relato dos evangelhos. Cerca de 5%
disseram que Papai Noel estaria citado no Evangelho de Lucas e 7% que a
árvore de Natal fazia parte original do lugar onde Jesus nascera5.
Uma pesquisa semelhante foi feita nos Estados Unidos, onde apenas 4% da
população se descreve como ateu ou agnóstico6. Um país, portanto,
orgulhosamente religioso! Os resultados, no entanto, foram ainda piores.
De acordo com o Instituto Barna, sediado em Greendale7, Califórnia:
93% das residências pesquisadas possuem um ou mais exemplares da Bíblia;
12% dos entrevistados garantiram ler as Escrituras todos os dias;
38% recorriam a ela momentaneamente, em períodos de necessidade;
57% confessaram que passaram mais de uma semana sem ler a Bíblia;
31% acreditam que o dito popular “Deus ajuda a quem cedo madruga” está nas
páginas da Bíblia;
48% acreditam que o livro de Tomé – um livro apócrifo – é um dos livros que
compõem a Bíblia cristã;
52% não sabiam que existe o livro de Jonas;
58% desconheciam quem pregou o Sermão do Monte.
Certamente eu ficaria com vergonha se, desconhecendo esses dados, um
ateu os apresentasse em público num debate. O estereótipo que muitos
religiosos apresentam dos descrentes é de pessoas que negam por
desconhecer. Mas os dados mostram que isso nem sempre é verdade, e a
pergunta honesta que faço é: Se os ateus negam mesmo conhecendo, os
crentes – que demonstram menor conhecimento – creem baseados no quê?
Essa é uma questão que realmente me incomoda. Seria a fé contemporânea
sustentada num achismo e a descrença num exame real de fatos?
Um tiro no pé?
Sei que parece um tiro no pé revelar esses dados e admitir tal desconforto
assim, de cara, num livro supostamente escrito para defesa da fé. Talvez fosse
melhor nem apresentar esses números e deixar que o estereótipo do “crente
biblicamente letrado versus ateu desinformado” permaneça. Isso, porém,
não seria nem um pouco ético ou honesto. Além do mais, não posso fugir da
realidade que me cerca, nem insultar a inteligência de nenhum leitor
supondo que ele nunca perceberá o óbvio. A informação está presente à
palma da mão. Basta um celular e um sinal de Wi-Fi. Ou enfrentamos a
realidade, respondendo-a honestamente, ou nos rendamos à ideia do outro,
deixando de ser teimosos e desonestos.
Estou até disposto a “trocar meus velhos sapatos”, como dizia um ex-
professor da faculdade, desde que me deem sapatos novos e mais
apropriados. O que não posso é ficar descalço, nem com sapatos errados. Se
não for assim, o único jeito de trocar o calçado, para lembrar uma fala de
John Newman, “seria colocando o direito no pé esquerdo e o esquerdo no
pé direito, pois esses são os únicos sapatos apropriados que possuo”8.
Note, porém, que não se trata de ficar com os mesmos sapatos apenas por
uma questão de comodismo. É o oposto disso! Mudanças, via de regra,
envolvem inconveniências grandes ou pequenas, mas necessárias. O ponto é
que não podemos, igualmente, desistir de um conceito apenas porque
tornou-se “fora de moda”. Mudanças apressadas podem ser tão prejudiciais
quanto a manutenção de erros por amor da conveniência.
Sobre as mudanças necessárias, Karl Marx dizia que não basta aos filósofos
interpretarem o mundo, o que eles precisam é transformá-lo, e eu concordo
com isso9. Pois, mesmo crendo numa intervenção escatológica de Deus na
história, compreendo ser meu dever, como cidadão, transformar para melhor
o mundo no qual eu vivo, mesmo que essa melhora não seja universal ou
definitiva. Trocando isso para a linguagem religiosa, não poderei ajudar a
construir o reino de Deus neste mundo enquanto permanecer acomodado
em meu mundinho religioso.
Ratifico, porém, que qualquer mudança só deve ser um imperativo, se
necessária. Tão importante quanto a transformação necessária, é saber a hora
e os pontos em que não se deve mexer numa ideia prévia. Já dizia Sir Lucius
Cary, visconde de Falkland, no século 17: “Quando não é necessário mudar,
é necessário que não se mude”10.
Audaciosa honestidade
Para não assustar demais os religiosos que estiverem lendo este livro, deixe-
me dizer que minha inspiração para a franqueza na admissão de certas ideias
vem justamente da Bíblia Sagrada. Desconheço outro clássico da
humanidade que seja tão honesto em apontar os defeitos de seus heróis,
como o faz esse livro base do cristianismo.
Um editor moderno certamente omitiria os crimes, fraquezas e adultério
de Davi. A menos, é claro, que se trate de uma biografia de denúncia ou um
estudo técnico da vida do indivíduo, sem fins publicitários. É preciso muita
coragem para admitir que “o homem segundo o coração de Deus” matou
seu melhor soldado para continuar dormindo com a mulher dele. Ora, se a
Bíblia foi assim tão franca, por que não posso também honestamente admitir
os problemas da religiosidade moderna?
Se tem algo que pode ser muito perigoso aos crentes é o ufanismo
religioso, que leva o sujeito a crer que não existe ética, honestidade, nem
vida espiritual fora de seu próprio sistema de valores. Que o céu foi projetado
para pessoas que pensam e agem igualzinho a ele.
Recentemente li que a McAfee, fabricante de softwares para proteger
empresas de ataques pela Internet, recrutou uma equipe de hackers “white
hat” ou os hackers do bem, para justamente invadir seu sistema de
segurança, revelando os pontos vulneráveis do programa. Assim eles poderão
descobrir as falhas e corrigi-las, tornando seu sistema mais eficiente. A
soberba de achar que não existem erros ou tornar as falhas um assunto
proibido não ajudaria nada neste sentido. Só tornaria a rede mais vulnerável.
Assim, proponho fazer o mesmo com a fé que sigo, descobrir
vulnerabilidades e ver como posso honestamente lidar com elas.
Disto posto, aqui vai mais um caso para a coleção de fatalidades sociais
com tempero de religião: a história de Ayaan Hirsi Ali, uma mulher que
nasceu numa família altamente religiosa e se tornou ateia, justamente por
causa das brutalidades que testemunhou em nome de Deus.
Para falar dela, preciso primeiro reportar um incidente ocorrido em
novembro de 2004 quando o cineasta Theo van Gogh foi morto a tiros em
Amsterdã por um fanático religioso, que, em seguida, o degolou e lhe cravou
no peito uma carta em que anunciava sua próxima vítima: a então deputada
Ayaan Hirsi Ali, que, por causa disso, teve de abandonar a Holanda e se
refugiar nos Estados Unidos.
Mas quem era essa mulher? Por que tanto ódio em relação a ela? Ayaan
Hirsi Ali nasceu na Somália em 1969 e, desde cedo, presenciou o horror
baseado em ensinamentos religiosos.
Aos cinco anos ela e sua irmã de quatro anos sofreram uma mutilação
cruel que vitima milhares de meninas todos os anos em várias partes do
mundo. Trata-se da infibulação, que é a amputação do clitóris e dos
pequenos lábios vaginais. Depois dessa tortura – guiada por sua própria avó
–, seus grandes lábios foram seccionados, aproximados e suturados com
espinhos de acácia, sendo deixada uma minúscula abertura necessária ao
escoamento da urina e da menstruação.
Esse orifício geralmente é mantido aberto por um filete de madeira, que é,
em geral, um palito de fósforo. Em casos assim, as perninhas da criança
devem ficar amarradas durante várias semanas até a total cicatrização.
O desaparecimento da vulva é a primeira consequência. Em seu lugar fica
apenas uma dura cicatriz, que será “aberta” no dia do casamento pelo
marido ou por uma “matrona” designada para o ofício. O rompimento traz
uma dor igual ou pior que a do dia da castração. Mais tarde, quando se tem
o primeiro filho, essa abertura é aumentada e, em algumas vezes, após cada
parto, a mulher é novamente infibulada. Imagine a criança passando por um
horror assim e ouvindo que “deus se alegra disso”.
Fugindo de um casamento forçado, Ayaan foi parar na Europa, onde
passou fome, humilhação, mas conseguiu vencer, graduando-se em política
na universidade de Leiden, Holanda, e se tornando,como se alguém dissesse:
“não sou supersticioso, pois isso dá azar”.
Ainda que a resposta tenha sido uma ironia do cientista, o fato é que a
ferradura estava lá. Tal comportamento é hoje confirmado por vários artigos
indexados que demonstram como a magia e a superstição persistem no
raciocínio até mesmo de físicos, químicos, geólogos e acadêmicos do MIT.
Ao serem colocados em situações controladas de pressão emocional, esses
intelectuais céticos demonstraram alta tendência para anexar desígnios
transcendentais a eventos naturais. Seria algo do tipo: a casa pegou fogo
para ensinar-lhe uma lição145.
Por mais contraditório que pareça, há pessoas supostamente “descrentes”
que ainda alimentam algum tipo de crença supersticiosa como: receio de
fantasmas, busca astrológica, noção de karma, reencarnação e telepatia.
Outros tentam se apoiar em representações sociais que nada têm a ver com
as igrejas, mas que podem ser psicologicamente qualificadas como
“religiosas”: torcer por um time, tornar-se vegano, fazer ioga, entrar para um
partido político.
Há pouco tempo, o antropólogo Ryan Hornbeck, de Pasadena, Califórnia,
descobriu indícios de que o videogame on-line World of Warcraft estaria
assumindo uma função espiritual para muitos jovens na China. Segundo o
autor da pesquisa, “o game parece oferecer oportunidades de desenvolver
alguns traços morais que a vida comum na sociedade contemporânea não
consegue”146. Veja que ele estava falando da China, onde os jovens podem
estar sendo preparados para tudo, menos para acreditar em Deus.
A pergunta que nos resta é: Por que o inconsciente humano insiste tanto
em correr para a transcendência, mesmo com uma mente treinada para
negar qualquer coisa além da materialidade?
Esta foi apenas uma pergunta retórica. Só para reflexão mesmo. Não caia
no erro de sugerir uma resposta apressada, isso não seria nada acadêmico. Os
dados levantados até agora apenas demonstraram a realidade do persistente
raciocínio transcendental humano, mas não deram a razão dele. Logo,
esperamos trabalhos futuros que possam dizer o porquê de tudo isso. Por ora
resta-nos a intuição e somente ela. Embora, para ser honesto com você, não
esteja certo se as pesquisas de campo algum dia conseguirão dar uma razão
absoluta para esta insistente busca por significado, mesmo por parte de
pessoas céticas. Este é um tema que estaria além das estatísticas.
Supersentido
Houve, a bem da verdade, uma tentativa de dar uma explicação científica
para esta constante busca por significado. Ela veio do pesquisador ateu
Bruce Hood, professor de psicologia comportamental na Universidade de
Bristol, Inglaterra. Quando vi na livraria seu livro Supersentido: porque
acreditamos no inacreditável, comprei sem pestanejar. Interessava-me ver o
que um cético teria a dizer sobre o assunto. A primeira coisa que me
chamou a atenção no livro foi que, diferentemente de outros autores como
Richard Dawkins, Hood concluiu que as crenças supersticiosas são
inevitáveis e até benéficas ao ser humano.
Hood não está sozinho em seu raciocínio. Outros acadêmicos de renome
concordam com ele. A própria Nature trouxe certa vez o artigo de um
professor de antropologia da Universidade de Washington chamado Pascal
Boyer, que disse:
O pensamento religioso parece ser o caminho da última resistência para nossos
sistemas cognitivos […] a descrença, pelo contrário, geralmente é uma ação
deliberada, um esforço contra nossa disposição natural cognitiva […] algo em
nossa constituição cognitiva nos predispôs para a fé.147
Mas é importante dizer que Hood diferencia crenças religiosas de crenças
seculares. Estas últimas seriam universalmente aplicáveis em todas as
sociedades, enquanto as primeiras seriam específicas de determinada
cultura. É a superstição secular inata que predispõe o indivíduo para a
crença religiosa. Assim, o que eu chamo de abertura para o transcendente
(adiante falarei sobre isso), ele chama de supersentido.
De acordo com o autor, na infância o supersentido é parte integrante de
nosso modo de ver e processar o mundo em redor. É ele que nos faz ter
medo do escuro, do bicho-papão. Trata-se de uma proteção de nosso
inconsciente que nos leva a raciocinar sobre “aspectos invisíveis” do mundo
ao nosso redor. Ao fazer isso, começamos a desenvolver a base das noções
sobrenaturais que terão mais tarde poder sobre nossa vida quando nos
tornamos adultos.
O curioso, segundo a conclusão de Hood, é que todas essas conexões da
infância continuarão sempre no fundo da nossa mente “nos empurrando em
direção ao sobrenatural”. Neste ponto da leitura fui obrigado a me perguntar
por quê. Afinal de contas, tudo que li até agora sobre desenvolvimento da
criança, de Freud a Piaget, não esquecendo Vygotsky, fala de “etapas
superadas” – crenças e valores que são importantes na infância, mas
precisam ser amadurecidas para um desenvolvimento sadio do ser humano.
A propensão ao sobrenatural, contudo, não vai embora. Apenas muda de
temática e insiste em ficar. Por quê?
Hood afirma que isso se dá por causa do modo como raciocinamos. Nossa
mente evoluiu para organizar e enxergar estruturas. Assim, buscamos
padrões em tudo – seria como na infância olhando nuvens que se
transformam em rostos e animais. Isso continua na forma de um receio, na
sensação de déjà-vu ou nas vezes em que uma coincidência parecia ser mais
que coincidência. Assim, como temos dificuldade em pensar em eventos
aleatórios, nós sempre buscamos ordem, causas e consequências.
Essa explicação, para mim coloca em xeque o próprio método do livro.
Quem pode garantir que os padrões de raciocínio humano observados pelo
autor não seriam “ilusões” de sua própria mente predisposta a ver uma
estrutura sistêmica onde não existe? Afinal o que ele fez senão organizar a
episteme humana numa teoria que faça sentido?
Apesar disso, me deliciei com as descrições que ele faz de suas pesquisas.
Em cada uma delas ele mostra como pessoas, inclusive céticas, são
inevitavelmente propensas ao sobrenatural, à superstição e ao inacreditável.
Mesmo entrevistados, ateus demonstraram asco em vestir o suéter de um
serial killer ou morar numa casa onde uma pessoa foi morta. Isso, confesso
que achei incrível. Meu único problema com as conclusões de Hood, como
já disse, são as perguntas às quais ele não responde. Se o sobrenatural é
apenas um modo de entender o mundo (e não é real), por que então não
conseguimos nos livrar desse sistema de crenças? E Hood? Para poder
apontar algo como resultado do supersentido, ele mesmo tem de ter se
livrado dele, certo? Deveria ser como um espectador no teatro que,
diferentemente da plateia, consegue ver os fios ocultos que o mágico usa no
truque de levitação.
Por outro lado, se o supersentido é algo saudável, então aquele que o
superou ou perdeu – para poder perceber a ilusão do outro – tornou-se
deficiente, pois não teria mais consigo esse elemento vital. Bem, são coisas
para se pensar. Por enquanto, permaneço com a certeza de que
diagnosticaram nossa propensão ao transcendente, mas não deram razão
dela.
Deus: termo em desgaste
Se eu transformasse a palavra “Deus” num livro que traçasse a história do
termo desde sua criação até a semântica dos nossos dias, teria de escrever
muitos capítulos de contradições e ironias. Recordo-me, por exemplo,
quando aprendi no seminário que o livro bíblico de Ester custou a entrar no
cânon, porque era o único texto hebraico/aramaico que não trazia o nome
de Deus (JHVH). Deixar de mencionar textualmente o Altíssimo era uma
falha grave naqueles tempos.
Depois veio a técnica de se escrever o nome de Deus com reverência,
trocando-se até a tinta e a caneta, como demonstram alguns antigos
manuscritos da Bíblia. Hoje os judeus tendem a escrever D’us, assim dessa
maneira, talvez para manter a tradição do respeito pelo nome divino.
Há, inclusive, uma tradição também judaica de que o nome “Deus” (ou
D’us) uma vez escrito num pedaço de papel não pode ser apagado, pois isso
seria um sacrilégio. Uma discussão moderna desse assunto levou aos rabinos
aposteriormente,
representante de Estado. Ali ela descobriu muitos novos conceitos. A
primeira vez que conheceu uma colega vinda de Israel, ela admitiu que em
toda sua infância a única coisa que sabia de judeus e ocidentais era que estes
eram infiéis que deveriam morrer como animais peçonhentos.
Ativista dos direitos femininos e de outros grupos menores, Ayaan também
passou por muitos questionamentos existenciais ao longo do processo e, ao
final deles, já não conseguia mais acreditar em Deus. A imagem divina era
traumática demais e quem a convenceu de que ele não existe não foi
Richard Dawkins nem Sam Harris, paladinos da causa ateísta. Foram
religiosos radicais que de um modo perverso fizeram-na crer que se Deus
existe e é como a apresentaram, seria então uma questão de honra não ficar
ao lado dele.
Apesar de o exemplo anterior envolver o islamismo, os filiados de outros
seguimentos não deveriam ficar muito confortáveis pensando que isso só
acontece no mundo de Allah. A situação é mais generalizada do que parece.
Até mesmo o budismo, comumente reconhecido como uma religião
pacífica, tem uma ala tão violenta que já mereceu estudos acadêmicos a esse
respeito: “a violência em nome de Buda”11.
Não é raro ouvir histórias de violência de budistas contra a minoria
muçulmana de Mianmar. Numa dessas, está o relato de mulheres e crianças
rohingyas impelidas para o alto-mar por líderes budistas, num simples barco
de pesca, praticamente sem provisões de água ou mantimento. Várias
morreram à deriva antes que pudessem ser resgatadas pela guarda costeira.
E o que dizer do cristianismo? Aí sim que a lista de horrores poderá ser
mais longa. São questões que mexem comigo e, se não mexessem, creio que
estaria perdendo minha humanidade. Não posso estar anestesiado diante
desses fatos, nem fingir alienação. Não quero ser um cidadão de plástico em
cujas veias não têm sangue, e sim água. Não posso fingir que desconheço
essas coisas, ou ficar insensível diante delas.
Por isso eu entendo a postura de alguns incrédulos. Compreendo, com
muita honestidade, por que muitos optam por não mais acreditar. Se Deus é
aquilo que os religiosos representam dele, então é melhor não crer que ele
exista. Pelo menos assim teremos alguém a menos para odiar.
Ou como ironizou um famoso aforismo atribuído a Voltaire: “Deus criou
os homens à sua imagem e semelhança, e estes, agora, estão lhe retribuindo
o favor”12. Seria engraçado, se não fosse trágico.
A despeito de tudo isso, isto é, de todas as admissões, sigo acreditando em
Deus. Por quê? Por um devaneio? Essa resposta será construída à medida
que os demais capítulos forem lidos. Um passo de cada vez. Como disse na
introdução, meu objetivo aqui não é convencer ninguém de nada, mas
testemunhar por que eu, igualmente honesto com meus pensamentos,
decidi acreditar em Deus e me entregar a ele. Espero que você continue
comigo nas páginas que se seguem e, se não concordar com minha fé, pelo
menos entenda a razão de minha crença.
2 Disponível em . Acesso em:
28/02/2017.
3 Disponível em . Acesso em:
10/10/2015.
4 Disponível em .
Acesso em: 13/02/2016.
5 John Grant. Debunk It!: How to Stay Sane in a World of Misinformation (São Francisco: Ca. Zest
Book, 2014), p. 24.
6 Disponível em . Acesso em:
13/03/2017.
7 Disponível em . Acesso em: 13/03/2017
8 Michael J. Curkey. Bishop John Neumann, C.SS.R. (Filadelfia: Bishop Neumann Center, 1952).
9 Karl Marx. Theses on Feuerbach, in Karl Marx: Selected Writings. L. Simon (ed.) (Indianapolis:
Hackett, 1994).
10 Lucius Cary. Discourses of Infallibility. Disponível em . Acesso em: 15/03/2017.
11 Mahinda Deegalle. Buddhism, Conflict and Violence in Modern Sri Lanka (Abingdon:
Routledge, 2006); Michael K. Jerryson. Buddhist Fury: Religion and Violence in Southern Thailand
(Oxford: Oxford University Press, 2011).
12 Apud René Pomeau. La Religion de Voltaire (Paris: Librairie Nizet, 1958), p. 159, 183.
https://www.facebook.com/ATEA.ORG.BR/posts/1453979304632647
http://www.pewforum.org/2010/09/28/u�-s�-religious�-knowledge�-survey/
https://www.mirror.co.uk/news/uk�-news/one�-five�-children�-think-jesus�-4784708
http://www.pewforum.org/2010/09/28/u�-s�-religious�-knowledge�-survey/
https://www.barna.com/
http://quod.lib.umich.edu/e/eebo2/A85082.0001.001?view=toc
Capítulo 2
Deus – uma dúvida, uma certeza, uma distorção
“Não sou contra, nem a favor, muito pelo contrário…”. Você certamente já
ouviu essa máxima do paradoxo popular. Trata-se de uma anedota, é claro.
Ninguém em sã consciência a levaria a sério. Contudo, em termos de
inconsciente coletivo, não é difícil ver pessoas, mesmo intelectuais,
pautando-se pelos ditames da incongruência e do raciocínio non sequitur.
Lembro o caso clássico do historiador e cronista Pero de Magalhães
Gândavo em seu antigo Tratado da Terra do Brasil, o qual dizia que a
língua falada pelo índio brasileiro não tinha F, L ou R. “Cousa digna de
espanto”, concluía ele, “porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei”13.
Este foi um texto de vestibular e até hoje me pergunto o que tem uma coisa
a ver com outra.
Existe também aquele que diz querer descobrir a verdade, mas, de fato,
deseja apenas que a verdade esteja ao seu lado custe o que custar. Quando
uma pessoa é fechada numa agenda ideológica, dificilmente consegue uma
brecha para um diálogo honesto. Tudo o que ela faz, mesmo diante de novas
evidências, é ratificar seus velhos conceitos. Aqui vai um diálogo anedótico
que ilustra bem essa situação. Vamos chamar nossos personagens de João,
Marcelo e Inês:
João: Não tem sentido nenhum no mundo o maldito do horóscopo. Você
viu as evidências que apresentei? Como responde a elas?
Marcelo: Ah, simples: você é muito parecido com o meu pai. Só posso
dizer por esse seu tipo de fala que você é de Leão, né?
João: Não, não sou de Leão, eu já disse, eu não acredito em…
Inês: Ah, já sei, você é de Peixes?
João: Não, não sou de peixes. Eu…
Marcelo: Claro! Que bobagem a nossa. Você é Aquário…
João: Sim, sou, mas…
Inês: Ai… minha tia é de Aquário; ela é muito parecida com você, tem um
gênio igualzinho…
João: Vocês não estão me entendendo…
Marcelo: Verdade, cara, você tem objetivos na vida e não os deixa de jeito
Marcelo: Verdade, cara, você tem objetivos na vida e não os deixa de jeito
nenhum, gosta de estar perto dos amigos, é valente… Qual o seu
ascendente?
Percebeu? Foi isso que eu quis dizer com a diferença entre querer estar ao
lado da verdade ou querer que ela esteja do meu lado custe o que custar.
Este é apenas um lado do problema de hoje.
Existe ainda outra situação de consequência igual ou pior, que é quando
uma espécie de preguiça mental leva outros tantos ao campo da indiferença.
Eles parecem acreditar piamente que esse território lhes tratará a paz de
espírito que livra da obrigação de decidir diante de um tema difícil. Seu
comodismo ético e mental tende à covardia e à fuga da realidade. Evita a
reflexão e com ela o posicionamento.
Dizem por aí que foi Martin Luther King quem declarou: “O que me
preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”. Seja de sua
autoria ou não, a frase é de uma virtude inquestionável. Há também um
texto do Pastor Luterano Martin Niemöller cuja citação pode variar de fonte,
pois foi feita de modo espontâneo em vários pronunciamentos do período
pós-guerra. Há quem diga que ele estaria parafraseando Vladimir Maiakovski
ou Bertold Brecht. Falando do nazismo Niemöller declarou:
Um dia, vieram e levaram meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu,
não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho, que
era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia,
vieram e levaram meu vizinho católico.Como não sou católico, não me
incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram. Já não havia mais ninguém
para brigar por mim.14
É no mínimo desconcertante deixar que o silêncio dos de bem se torne
cúmplice do engano e da perversidade dos maus. Quando os bons se calam,
os perversos triunfam. Mas estou certo de que isso não se aplica a você. Se
seu caso fosse o de comodismo, você talvez nem começaria a ler este livro.
Por isso, posso iniciar nosso diálogo propondo que não dá para ser neutro
sobre assuntos de grande relevância, e aqui entra o tema de “Deus”. Quer
ele exista ou não, estamos diante da maior verdade ou da pior mentira de
todos os tempos. Admiti-la implica compromisso, negá-la demanda
denúncia. Em outras palavras, sou obrigado a assinalar uma dentre duas
opções: adesão ou combate, nunca neutralidade.
Há de se notar, contudo, que o problema não se resolve apenas com uma
tomada de posição. É importante saber o que decidimos, por que decidimos
e o que faremos a partir disso, lembrando que ideias implicam
consequências. Isso não significa que teremos sempre todas as respostas e
todas as certezas. Como diz uma velha canção do Padre Zezinho, Cantiga
por um ateu:
Eu sei que da verdade eu não sou dono,
Eu sei que não sei tudo sobre Deus.
Às vezes, quem duvida e faz perguntas
É muito mais honesto do que eu.
Distorções e paradoxos
O grande problema, talvez, com a apresentação desse tema a leitores não
religiosos seja a falta de piedade na vida de pessoas que afirmam acreditar
em Deus, mas vivem como se ele não existisse. Esse, a meu ver, é o tendão
de Aquiles da religiosidade em todos os tempos.
A incoerência dos que se dizem crentes é difícil de ser digerida. Por que
igrejas tradicionais são às vezes as agremiações mais frias de que se tem
notícia? Há situações em que é mais fácil encontrar sexo numa esquina do
que um abraço no final da missa. Sei que isso não se aplica a todos, é claro,
mas nega a realidade aquele que finge que tais paradoxos não existem.
Fico observando, por exemplo, num país como o nosso, de maioria cristã,
como a cruz (símbolo máximo cristianismo) tem se tornado cada vez mais
um mero amuleto de boa sorte. Entre gnomos, figas e cristais energéticos,
você sempre poderá encontrar pelo menos uma dúzia de cruzes feitas dos
mais diferentes materiais e com as mais diversas funções. Se falasse da
Alemanha, precisaria ainda mencionar a cruz de ferro com a suástica usada
orgulhosamente por soldados nazistas.
Parece que o mercado fabricou tipos de cruz para todos os gostos. De
letreiros a pingentes, todos têm um modelo adequado. Até mesmo aqueles
que desprezam a filiação religiosa não se envergonham de ostentar uma cruz
como piercing no mamilo, ou como brinco numa das orelhas. Grupos de
Heavy Metal dos anos 1980 amavam a estampa de cruzes ladeadas por
demônios e caveiras ensanguentadas.
Aliás, vale aqui uma observação quanto ao uso de crucifixos, retratos do
Sagrado Coração e estampas com o rosto de Cristo que enfeitam desde as
paredes de hospitais, igrejas e casas de família, até bordéis, bares, casas de
jogos e repartições públicas. Assistindo outro dia a um documentário sobre
exploração sexual de crianças, não pude deixar de perceber em alguns
prostíbulos da periferia a presença de um crucifixo pendurado na cabeceira
das camas ou nas paredes dos quartos. Agora imagine um adulto violentando
uma criança sob o olhar de Jesus crucificado!
Concluo tristemente que a imagem do Cristo já não impõe respeito algum
nem àqueles que se dizem religiosos. Sem contar que o mesmo símbolo
presente em alguns tribunais de justiça também não impede o advogado
desonesto de mentir, nem o juiz corrupto de se vender15.
O sociólogo Gilberto Freyre conta que, no Brasil mais antigo, era comum
venderem remédios caseiros para curar doenças contraídas em zonas de
prostituição. Havia elixires para curar desde um simples herpes ou dermatite
até a sífilis e outras doenças sexuais. O mais interessante, porém, era que nos
rótulos das garrafas apareciam figuras como a do menino Jesus segurando
um cordeirinho.
Até em estampas devotas, com imagens do menino Jesus cercado de anjinhos,
anunciava-se que o elixir tal cura sífilis, e que se o próprio Cristo viesse hoje ao
mundo, seria ele que ergueria sua palavra santa para aconselhar o uso do elixir.1
6
Num Carnaval recente, foliões e mulheres seminuas dançavam
irreverentes ao som da música “Erguei as mãos”, numa versão carnavalesca
feita por determinada escola de samba do Rio de Janeiro. Enquanto a
música seguia, traficantes distribuíam lança-perfume e drogas para jovens,
que pulavam freneticamente ao som da mesma melodia.
O pior é que se fizéssemos uma enquete naquela multidão, descobriríamos
que não se tratava de ateus zombando do cristianismo. Eram pessoas que, na
sua maioria, diziam crer em Deus. Mas se eu falasse para eles que aquilo era
“pecado” e “blasfêmia”, sairia execrado dali sem dó nem piedade. E muitos
deles, “doidões”, voltariam a cantar “Erguei as mãos” num ambiente regado
a drogas, álcool e promiscuidades.
Antes que você feche o livro pensando Ah, já vi que esse autor é um
moralista ultrapassado, dê-me apenas a chance de dizer duas coisas:
primeiro, o exemplo dado não foi para fazer apologia moral de A ou B. O
objetivo é ilustrar a ironia de que os mesmos que participaram da cena
descrita certamente se irritariam se um grupo de ateus fizesse uma sátira de
Jesus pulando Carnaval, usando drogas e abraçado com uma dançarina
seminua.
Segundo que, à semelhança dos tempos do panis et circensis (pão e circo),
em que o povo adorava divertimentos de gosto duvidoso, seria muito difícil
hoje aceitar as críticas de Sêneca, como foi para os romanos daquela época,
mesmo sabendo que ele era um dos poucos pensadores lúcidos do palácio de
Nero César17.
É difícil se posicionar criticamente contra o show quando você mesmo faz
parte da peça. Ainda mais se tratando de uma época como a nossa, que,
apesar de se declarar plural, apresenta alguns absolutismos dominantes,
como a ideia de que apetites e pulsões não devem ser reprimidos, mas antes
“resolvidos” com vícios e comportamento liberal, bem ao gosto de uma
clientela viciada em consumismo.
Ameaça religiosa
Acho irônico que, em meio a uma religiosidade desastrosa como a de hoje,
muitos insistam que os ateus seriam a maior ameaça à fé. Não sou ingênuo
em dizer que Richard Dawkins não fez nenhum estrago. Claro que fez!
Contudo, não sei se é ele realmente o maior problema do cristianismo.
Lembra-se do filme O inimigo mora ao lado? Pois é, ironia das ironias, o
enredo bem valeria para uma paródia religiosa em que o assassino da fé não
estaria em outro lugar senão dentro das igrejas ou pelo menos na porta delas
fazendo sinal da cruz enquanto passa diante do edifício. E tem mais: essa
leva de exemplos constrangedores não poderia terminar sem a menção do
comércio da fé, em que curas e bênçãos são prometidas em troca de doações
generosas para aumentar a conta dos líderes religiosos. Alguém esses dias
ironizou que só falta criarem A Seita (trocadilho de “aceita”) Cartão de
Crédito com promoção de dizimo a 8% durante os seis primeiros meses de
filiação. Seria engraçado, se não fosse trágico.
Confesso que isso é muito estranho para mim. Cobrar valores morais de
alguns religiosos tornou-se uma guerra inglória. Para muitos que se dizem
cristãos, aceitar a mensagem do evangelho é tão absurdo como aproveitar o
dia de chuva para se bronzear ao ar livre. Eles simplesmente não querem
saber disso.
Não esconderei dos leitores céticos meu desconforto diante de tudo isso.
Embora eu mesmo não seja perfeito, sei que há uma diferença entre ser
pecador e ser perverso, entre ter falhas e brincar com coisas sagradas. A
incoerência, a meu ver, é a ponte que liga o que é ruim ao que há de pior. O
primeiro ato falho é tolerável e pode ser perdoado, o segundo (da
perversidade e do desamor) é inadmissível e impenitente. Por isso é mais
confortável conviver com um descrente ético do que com um religioso
ambivalente. A incoerênciado segundo pode potencializar o ceticismo do
primeiro.
Agressividades mútuas
O irônico disso tudo é que os mesmos que promovem um culto à
leviandade são os primeiros a se transformar em cães de guarda da fé,
atacando o ateísmo como se esse fosse realmente o pior problema da
sociedade. Não estou com isso dizendo que aplaudo o ateísmo e o reputo
por virtude, porém, acho desmedida a generalização que muitos de meus
irmãos de fé fazem contra os que não creem. Ser ateu tornou-se sinônimo de
delinquente, imoral, perigoso, satanista.
Ao comentar, em julho de 2010, o caso de um bandido que matou uma
criança de dois anos e tentou atirar em outras pessoas, um apresentador de
TV disse que esse crime era “típico de um sujeito que não acredita em
Deus”. Eu até entendo o estereótipo da expressão, mas a coisa não é tão
preto no branco. Há muitos descrentes honestos e religiosos perigosíssimos.
Na época da reportagem, um grupo de ateus entrou na justiça pedindo
direito de resposta, que não sei se foi deferido pelo juiz. Porém, não sou de
defender o indefensável. O jornalista realmente foi infeliz na declaração.
Digo isso porque prefiro um oponente honesto e respeitoso a um partidário
defendendo o que eu penso com argumentos que eu jamais utilizaria.
O estereótipo de que é impossível ser bom e ateu ao mesmo tempo não
merece meu apoio. A rígida distinção entre mau ateu e bom cristão é um
claro exemplo de falácia por “falso dilema”. O que temos aí é um típico
preconceito chauvinista. Nenhum religioso de verdade (especialmente
cristão) deveria se apropriar deste pensamento. Senão, o que dizer de
Herbert de Souza, o Betinho? Ateu e caridoso como poucos que conheço.
Aliás, gostei do modo inteligente como Marceu Vieira o descreveu ainda
com vida em seu livro Nada, não: e outras crônicas18. Ele disse: “Betinho
hoje é ateu. Não acredita em Deus. Mas algo faz crer que Deus acredita
nele”. Betinho me ensinou que é possível ser bom e ateu ao mesmo tempo
(o julgamento de sua vida cabe a Deus, e não aos homens).
Existem, também, por outro lado, vários tipos de ateísmo e não estou
falando de diferentes correntes filosóficas. Refiro-me ao modo como cada
um expressa sua descrença. Há aqueles que realmente não tratam seu
ateísmo como uma proposta, e sim como um dogma, agressivo, expresso de
forma intolerante e antidemocrática.
Assim como os já mencionados “paladinos guardadores da fé”, há do outro
lado os que agem como “hienas do ceticismo” rindo enquanto devoram suas
presas. E o que é pior é que os que assim agem não parecem pessoas que
pensam por si mesmas. Antes deixam o ódio falar por si e se projetam sobre
autores, igualmente agressivos, cujo comportamento não é nada diferente da
religiosidade déspota que eles tanto denunciam. A única diferença é que os
oficiais do Santo Ofício, para dar um exemplo, tinham um poder político
que eles não possuem, pois se o tivessem estariam ordenando o fechamento
de igrejas e o aprisionamento de clérigos.
Alguns desses ateus intolerantes deixam realmente em dúvida se estão
defendendo uma ideia ou destilando um ódio pós-traumático contra um pai
agressivo, um abuso na infância ou uma revolta pela perda de um ente
querido. São muitas as possibilidades para um ódio desenfreado contra um
Deus que não existe.
Sinceramente não posso afirmar com certeza absoluta que haja uma causa
freudiana para o ateísmo ou a religiosidade de cada um. A observação que fiz
não se baseia numa análise psicanalítica que sirva para todos. Contudo, não
considero incongruente a observação de que certas posturas, de crença e
descrença, concorrem sintomaticamente para a hipótese de um sério
desequilíbrio emocional. Basta ver a agressividade com que muitos impõem
suas ideias ironizando, debochando, demonizando os que discordam deles.
Certa vez, ao ser questionado sobre o direito de comediantes zombarem de
religiões alheias, Rowan Atkinson, intérprete do famoso Mr. Bean,
manifestou a seguinte opinião: “o direito de ofender é muito mais
importante do que qualquer direito de não ser ofendido”19. Sinceramente,
gosto muito do senso de humor desse sujeito, mas, com uma declaração tão
horripilante como esta, fico feliz que o personagem que lhe rendeu tanto
sucesso era justamente alguém que praticamente não falava nada.
Mais falsos dilemas
Se por um lado existem os que dividem a ética entre crentes e ateus, por
outro há os que dicotomizam o conhecimento entre obscurantismo (os
crentes) e intelectualismo (os ateus). Fico muito incomodado com a postura
de alguns céticos que insistem em dizer que tenho de optar entre a crença e
a academia, entre a fé e a inteligência racional. Por quê? Isso é outro
exemplo da falácia por falso dilema. Onde está escrito que razão e fé
haveriam de se repelir? O que faço com aqueles grandes gênios da
humanidade que eram crentes? Newton, Pascal, Jung etc.?
Pelo que vejo, o preconceito chauvinista não está somente do lado de
religiosos fundamentalistas. Não é incomum ver em muitas faculdades
professores céticos transformando alunos num público-alvo cativo. A sala de
aula torna-se um púlpito e a atividade docente um meio catequético.
Não estou falando de um padre durante uma missa, e sim de um
acadêmico cético que não aceita a religião na academia, mas usa várias aulas
para convencer os alunos de que Deus não existe. Ora o que seria o tema da
“não existência de Deus” senão um assunto religioso? Afinal devemos ou não
trazer temas religiosos para a sala de aula? E se a resposta for positiva, por
que trazer apenas um lado da moeda e negar o direito de apresentação do
outro?
Essa atitude pedagógica de negar religião na sala de aula e falar
prodigamente da não existência de Deus é um contrassenso curricular.
Parecem monges medievais proibidos de falar de sexo no convento, mas que
gastam várias aulas condenando o “pecado do orgasmo”. Ora, o que é isso
senão a temática que eles mesmos proibiram?
Não me tome por deselegante, nesta crítica e sim por sincero. É triste ver,
como afirmou o jornalista Karl Kraus – inimigo número 1 do senso comum,
“que os alunos comem o que os professores digerem”. Confesso que eu antes
pensava que a academia era o paraíso da coerência, da lógica, da liberdade
de expressão, do bom senso. Hoje, no entanto, percebo que isso nem sempre
é verdade. Novamente recorro a Kraus para expressar o que testemunhei: “há
imbecis superficiais e imbecis profundos”20.
Já vi livres pensadores que só se conservam pluralistas enquanto você
concorda com eles. Na hora da discordância – quando você opina em
público que sua opção é o paraíso de Deus, e não o materialismo dialético
que ele defende – aí o caldo entorna! O mesmo que iniciou a classe se
dizendo pluralista, transforma-se num xiita de carteirinha e, mesmo não
acreditando na existência do diabo, faz da universidade um inferno para
religiosos conservadores que discordam do seu pensamento.
Sei que nem todos são assim. Tive, por exemplo, vários colegas ateus na
USP que respeitaram muito minha fé religiosa e até demonstraram
descontentamento com o espírito xiita de outros ateus radicais. Nos grupos
de pesquisa de que participei nunca me senti invalidado pelos demais.
Contudo, lembro-me de um dia em que dois deles me revelaram que se eu
estivesse estudando em outro departamento (que por ética não direi qual),
sentiria a forte animosidade dos antirreligiosos.
Tive um colega, hoje falecido, que teve sua defesa de doutorado quase
interrompida na Unicamp por causa de um protesto que alunos e professores
ateus faziam do lado de fora do auditório. O motivo? Ele estava fazendo um
doutorado em Biologia e sua tese nada tinha a ver com religião. Porém,
como era autor de livros que defendiam o criacionismo, os militantes
achavam que seria um crime dar o título de doutor a um homem com
crenças tão retrógradas, e eu pensava que eram provas, trabalhos e notas que
aprovariam um acadêmico, e não suas crenças pessoais!
Assim, embora eu não costume tomar a parte pelo todo, também não
ignoro que quando a “parte” quer fazer um estrago, ela faz. Poroutro lado,
fico feliz pelos amigos de mente aberta que encontrei nas universidades por
onde passei e por haver leitores que, mesmo sem acreditar em Deus ou na
Bíblia, tomam tempo para ler um livro como este. Parabéns por ser um deles
e vencer o preconceito! Se Betinho estivesse vivo, talvez fizesse a gentileza
de também ler o meu livro. Afinal, ele sempre ouvia os dois lados.
13 Pero de Magalhães Gândavo. Tratado da Terra do Brasil. História da Província Santa Cruz (Belo
Horizonte: Itatiaia, 1980).
14 Essa citação eu tomei como aparece numa placa de exposição permanente no US Holocaust
Memoriam Museum de Washington, DC.
15 V.V.A.A. Quem é Jesus Cristo no Brasil? (São Paulo: ASTE, 1974).
16 Gilberto Freyre. Casa-grande & senzala (Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1952), p.
134.
17 Ao fazer referência a Sêneca e à política do “pão e circo”, estou cônscio de que existe hoje uma
vertente de historiadores que critica aquela perspectiva historiográfica mais antiga, representada por
Paul Veyne (Le pain et le cirque: sociologie historique d´un plurarisme politique), segundo a qual os
setores subalternos seriam manipulados pelo panis et circensis (pão e circo), marcados pela
passividade e pela não intervenção nas relações políticas, e preocupada com as doações e os
divertimentos. Não é esse, contudo, meu intento ao me referir ao costume imperial, e sim relembrar
que o povo tinha sim prazer em entretenimentos pouco louváveis, como guerras mortais nas arenas,
consumo desenfreado de ópio etc. Quanto a isso não parece haver nenhuma crítica que eu conheça.
18 Marceu Vieira. Nada, não: e outras crônicas (Rio de Janeiro: Mauad Editora, 1999).
19 Disponível em . Acesso em: 17/01/2017.
20 Karl Kraus. Ditos e desditos (São Paulo: Brasiliense, 1988).
http://www.telegraph.co.uk/education/3348850/Atkinson�-defends�-right�-to-offend.html
Capítulo 3
Questiono mesmo, e daí?
A primeira coisa que pensei ao escrever o título deste capítulo é que meu
editor iria querer mudá-lo. Ele parece ter um ar subversivo que talvez não
agrade certos leitores! De fato, pessoas excessivamente conservadoras (para
não dizer autoritárias) não apreciariam esse tipo de linguagem. Os
anarquistas também não, pois adoram fazer o discurso da oposição e do
quebra-quebra somente enquanto não assumem a liderança. Então
reprimem com o mesmo rigor, ou pior ainda, aqueles que agora discordam
de seu regime ou de suas ideias.
A Internet está cheia de exemplos paradoxais que ilustram como o
questionamento nem sempre é fácil de ser digerido. Basta ver como os
mesmos internautas que levantam a bandeira da tolerância, da liberdade e
do respeito podem se tornar altamente hostis com aqueles que divergem de
sua agenda. O lema de muitos é: “aceito a discordância, desde que você
assine embaixo do que digo”. Não é fácil equacionar civilizadamente o
direito de defender uma proposta num universo de contrapropostas.
Paulo Freire estava certo quando falou da dinâmica do opressor-oprimido,
na qual a vítima e o revolucionário de ontem se tornam os ditadores de hoje
ao assumirem o controle21. Sei que há felizes exceções, mas todo oprimido
tende a se tornar um opressor quando está no comando. “O poder”, escreveu
Lord Acton, “tende para a corrupção e o poder absoluto corrompe
absolutamente”22. E olha que ele estava se referindo ao poder religioso,
outrora perseguido, que se tornou opressor quando assumiu a soberania na
Europa.
Talvez alguém me pergunte: Por que inserir no livro esse incentivo ao
questionamento? Não soa anarquista demais? A resposta é simples: fazer
perguntas sinceras é o passo primordial para se adquirir qualquer tipo de
conhecimento.
Existe uma citação atribuída a Einstein (eu particularmente não creio que
seja dele) que diz:
Se eu tivesse uma hora para resolver um problema e minha vida dependesse da
solução, eu gastaria os primeiros 55 minutos determinando a pergunta certa a se
fazer, e uma vez que eu soubesse a pergunta, eu poderia resolver o problema em
menos de 5 minutos.
Seja de Einstein ou não, essa fala tem em si um importante princípio. Às
vezes gastamos tempo demais resolvendo problemas que não existem ou que
não são realmente o cerne da questão naquele momento.
Elon Musk, gênio do Vale do Silício, para muitos o novo Steve Jobs da
América, declarou o mesmo princípio numa entrevista. Ele disse:
Acredito que um dos principais pontos [numa busca] é que em muitos
momentos a pergunta é mais difícil que a resposta, e, se você puder, de modo
apropriado, elaborar a questão, então respondê-la será a parte mais fácil. Assim,
à medida que vamos conhecendo melhor o universo, poderemos saber melhor
que perguntas devem ser feitas.23
Em outras palavras: questionar corretamente é a forma mais apropriada de
alcançar o entendimento. Mas veja: isso não significa que todas as dúvidas
são produtivas. Há perguntas mal-formuladas ou, em alguns casos, mal-
intencionadas (que não demandam um questionamento honesto). Dizem
que certa vez um jovem atrevido perguntou a um palestrante: “O que Deus
estava fazendo antes de criar o universo?”, ao que ele respondeu: “Estava
preparando o inferno para quem faz esse tipo de pergunta”.
Portanto, risos à parte, as pessoas têm o direito de perguntar. O problema é
que muitos que dizem ter uma dúvida apresentam na verdade uma tese, e
não uma questão honesta. Querem desafiar o outro, e não ter sua indagação
honestamente respondida. Ao formular uma questão, o sujeito tem de
sinceramente saber se está mesmo querendo uma resposta ou um endosso
para seu pensamento ruim.
Verdades que não ajudam
Existem também aquelas famosas respostas que não respondem, ou seja,
argumentos falaciosos disfarçados de esclarecimentos que, na verdade, não
ajudam ou são irrelevantes. Respostas como as que recebeu certo
paraquedista que, por um erro de cálculo, foi arrastado quilômetros do seu
local de pouso e ficou preso em uma árvore, sem poder fazer nada. Por fim,
passou embaixo da árvore um indivíduo cheio de livros, a quem o
paraquedista interpelou:
– Ei, amigo, poderia me dizer em que lugar estou? Poderia me ajudar a
descer?
– Ah – disse o sujeito com ares de descoberta –, você é um paraquedista,
não é mesmo?
– Sou, disse o homem. Ajude-me a descer.
– Sim, ah, e percebo que é um major, pois vejo sua patente no uniforme…
– Sim, eu sou um major. Ajude-me, por favor…
– E vejo que você pulou de um avião militar que passou há pouco, pois
pude ouvir o ronco dos motores…
Já impaciente, o paraquedista replicou…
– Vejo que você é um pregador religioso [ou um estudante de Filosofia,
segundo outra versão da estória].
– Sim, eu sou! Como o senhor percebeu? Pelos livros que carrego?
– Não! É pelo fato de você estar há um tempão dizendo um monte de
verdades que não servem para nada24.
Viu?! O problema nem sempre está em fazer perguntas, e sim em dar
respostas coerentes.
Questionar não é perigoso?
Tudo bem, dirá alguém, mas esse incentivo num livro desta natureza
poderá fomentar o surgimento de “questionadores” perigosos. Será? Mesmo
que isso aconteça acho que vale a pena arriscar. Deixe-me explicar o porquê.
Todos sabemos que a língua é um organismo vivo e suas palavras sofrem
constantes processos semânticos. Hoje o adjetivo “questionador” tornou-se
pejorativo qualificando, sobretudo, aquele sujeito que tem problemas com
autoridade, os famosos “do contra” ou “rebeldes sem causa”. Contudo, essa é
uma definição limitada que não leva em conta a riqueza etimológica do
termo.
Questionar vem do latim quaerere, que quer dizer “buscar conhecer”,
“desejar o conhecimento”. Os verbos “querer” em português e “buscar” em
inglês (to quest) vêm da mesma raiz. Portanto, o ato de questionar envolve
um desejo, uma busca pelo conhecimento, que é parte da natureza humana.
É, enfim, levantar questões que podem e merecem ser discutidas. Não se
trata necessariamente de rebeldia, nem de especulação. É a favor desse
questionamento que levanto minha bandeira.

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