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O ceticismo da fé – Deus: uma dúvida, uma certeza, uma distorção Copyright © 2018 by Rodrigo Silva Copyright © 2018 by Editora Ágape Ltda. COORDENAÇÃO EDITORIAL: Rebeca Lacerda PREPARAÇÃO:: Mauro Nogueira REVISÃO: Fernanda Guerriero Antunes CAPA: Brenda Sório DIAGRAMAÇÃO: Rebeca Lacerda EDITORIAL Jacob Paes • João Paulo Putini • Nair Ferraz • Rebeca Lacerda • Renata de Mello do Vale • Vitor Donofrio DESENVOLVIMENTO DE EBOOK Loope – design e publicações digitais | www.loope.com.br Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1º de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Silva, Rodrigo O ceticismo da fé: Deus: uma dúvida, uma certeza, uma distorção / Rodrigo Silva. ‑‑ Barueri, SP : Ágape, 2018. ISBN: 978-85-8216-217-0 1. Religião e filosofia 2. Deus 3. Fé 4. Cristianismo 5. Deus ‑ Existência I. Título 18-0631 CDD-210 Índice para catálogo sistemático: 1. Religião e filosofia 210 http://www.loope.com.br EDITORA ÁGAPE LTDA. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11º andar – Conjunto 1112 CEP 06455-000 – Alphaville Industrial, Barueri – SP – Brasil Tel.: (11) 3699-7107 | Fax: (11) 3699-7323 www.editoraagape.com.br | atendimento@agape.com.br http://www.editoraagape.com.br mailto:atendimento@agape.com.br “A verdade e a mentira foram tomar banho no rio. Despiram-se e entraram nas águas. A mentira, enganosa como sempre, saiu primeiro e vestiu-se com as roupas da verdade. A verdade preferiu andar nua a vestir as roupas da mentira. Resultado? As pessoas preferiam uma mentira transvestida a uma verdade nua e crua.” Adaptado de um antigo conto do Oriente Médio (autor desconhecido). Prefácio O filósofo americano William James, em seu famoso texto “The Will to Believe” (A Vontade de Crer), escreveu sobre a natureza das opções que enfrentamos em nossa vida. Pense em todas as opções que estão ou já estiveram diante de você para tomar uma decisão, desde opções rotineiras, como entre ler um livro e lavar a louça acumulada, opções bizarras, como imitar um coelho ou mostrar a língua para um estranho, até opções mais sérias, como fazer faculdade de Medicina ou Agronomia. James diz que existem três formas de classificar essas opções. Elas podem ser vivas ou mortas: vivas se elas têm a possibilidade de serem verdade e mortas se não existe (ou existe pouca) possibilidade de serem verdade. Elas também podem ser forçadas ou não, ou seja, são forçadas se existe necessidade de você escolher entre elas e não-forçadas se essa necessidade não existe. Finalmente, uma opção pode ser significativa ou não, ou seja, ela é significativa se muitas coisas da sua vida dependem de qual escolha você fizer e não-significativa se a decisão não fará muita diferença na sua vida. No mesmo texto, o filósofo sugere que a opção religiosa (entre crer e não crer) é viva, forçada e significativa. Ou seja, a opção de crer ou não em afirmações religiosas não somente é uma escolha em que ambas as opções têm a possibilidade de ser verdade, mas existe uma necessidade de escolher entre elas, e além disso, essa escolha muda completamente o rumo da sua vida! O Dr. Rodrigo Silva reconhece isso e, baseado nesse reconhecimento, escreveu este livro. Fundamentado em décadas de estudo, de interações com crentes e descrentes, e de uma grande relação de amor com a filosofia e a teologia, ele produziu uma obra sincera, honesta e rica, recheada de importantes ensinamentos e insights para o leitor. A sinceridade, creio eu, surge de sua própria caminhada cristã, uma que não teve escassez de profundas dúvidas, ansiedade e sofrimento pessoal. A honestidade brota de sua constante busca por uma opinião equilibrada, informada por anos de estudo e, consequentemente, sincera admiração por filósofos e pensadores enquanto reconhecendo suas miopias. Quanto à riqueza deste livro, ela advém de sua curiosidade inquieta, buscando conexões e lições na literatura, na história, na sociologia, na antropologia, na ciência, na cultura popular, e até mesmo na intuição humana. Mas, como é de se esperar quando se trata de um livro com este título, o carro-chefe é a filosofia. Com respeito e sensatez, o Dr. Rodrigo utiliza-se de conceitos e insights da filosofia continental e analítica para mostrar que a crença, longe de ser um atentado à inteligência humana, é uma opção viável e, em última instância, convincente. Nesse processo, o autor não subestima a inteligência do leitor, fazendo-o constantemente engajar com material filosófico profundo, sem deixar de lado o bom humor e a simplicidade de uma história ou anedota. Falando como ex-aluna dele, devo dizer que é como se estivesse sentada na sala de aula novamente escutando suas exposições. Este livro vem para preencher uma lacuna enorme na literatura brasileira: a perspectiva inteligente de um cristão brasileiro em meio ao debate mais fervoroso da história entre a crença e a descrença em Deus. Essa lacuna existe para dois públicos: crentes que querem pensar e pensantes que (possivelmente) querem crer. O Dr. Rodrigo, na minha opinião, preenche esse vácuo não somente mostrando ao crente que duvidar da própria crença é aceitável e até necessário, mas também mostrando ao descrente que suas dúvidas são sanáveis. Se você faz parte de um desses dois grupos, creio que você terminará de ler este livro tendo saciado sua sede. Marina Garner Assis Professora de Filosofia e Religião. Atualmente, concluindo o PhD em Filosofia da Religião na Boston University. Sumário Introdução Uma fé que duvida Ufanismo? Distorções semânticas Discordando com classe Capítulo 1 – Saia justa com o ateísmo A fé dos adultos Um tiro no pé? Audaciosa honestidade Capítulo 2 – Deus – uma dúvida, uma certeza, uma distorção Distorções e paradoxos Ameaça religiosa Agressividades mútuas Mais falsos dilemas Capítulo 3 – Questiono mesmo, e daí? Verdades que não ajudam Questionar não é perigoso? E quanto a Deus? Genialidade e ateísmo Experiências desastrosas Ninguém é descrente Religiosos podem questionar? Discutir é conversar Capítulo 4 – Você sabe em que (des)acredita? Cosmovisão: uma ilustre desconhecida Cosmovisões perigosas Goebbels entra em cena Sem escapatória Como nasce uma cosmovisão? A gênese do pensamento coletivo O indivíduo e o meio Estou correto? Capítulo 5 – Decifrando Homer Simpson Dados que assustam Quem fez isso? Saber versus conhecer Que fale a Wikipédia Capítulo 6 – Questionando a universidade Educar pra quê? Homer e Deus Religião é veneno? Qual a novidade? Ateus mais inteligentes? Ambiente lastimável Quem incentiva? Modelos de vida? Goodbye, Deus Reprovados! Capítulo 7 – Crendices e devaneios Fideísmo religioso O absurdo da fé Perguntar não ofende Questionar na medida certa Ouse saber Capítulo 8 – Convivendo com a incerteza A voz do povo Um encontro com Berger Teoria do Conhecimento Essência do conhecimento Certezas ou incertezas? Certeza não é conhecimento Testemunho pessoal Capítulo 9 – As origens do ateísmo Tema tabu Pré-história Um pouco de antropologia Quebra-cabeça evolutivo Subjetivismo em alta Antropologia da religião E o ateísmo? Capítulo 10 – Ateísmo na Antiguidade O ceticismo de Pirro e Homero O Antigo Oriente Budismo: um caso à parte O paradoxo de Epicuro Império Romano Idade Média Tempos modernos O Deus de Spinoza Um abalo na história Sistematização da descrença Capítulo 11 – Quando crentes viram bandidos Religiosos no comando Acabaremos com a Religião? Capítulo 12 – A incoerência da fé Propagandas de Cristo Arautos ou palhaços? Cristianismo sem Cristo Capítulo 13 – Caça às bruxas Guerra Santa? Culpemos a religião! As aparências enganam Violência e fé Não em nome de Deus! A culpa é do Sagrado Finalmente o Estado Ateu Que podemos concluir? Capítulo 14 – Compensa falar de Deus? Que me importa? A tese de Durkheim A origem de Deus Capítulo 15 – Ninguém escapa da transcendência Expectativas fantasiosas? Supersentido Deus: termo em desgaste Muitos deuses Finalmente, a transcendência Capítulo 16 – Intuição racionalO problema é quando trocamos a legítima busca do saber pela imposição de uma ideia prévia (literalmente: pré-conceito). Ou então fazemos perguntas retóricas sem nenhum interesse pela resposta. O único desejo é sentir o prazer de ter dado um xeque-mate no adversário. “Você já parou de bater em sua esposa?” – pergunta um promotor para um acusado de agressão doméstica. Este tipo de pergunta não implica um questionamento neutro. Antes, é a confirmação de uma sentença. O que o advogado de acusação está dizendo é: “Tenho certeza de que você bate em sua mulher! Disto não resta a menor dúvida. Meu intuito é induzir você a confessar o delito perante o juiz”. Esta é a falácia da pressuposição. Ela consiste na inclusão de uma certeza (pressuposição) que não foi previamente esclarecida como verdadeira, ou seja, trabalha-se com uma premissa que, em tese, não existe. Mesmo quem tem ideias já estabelecidas deveria periodicamente reavaliá- las, atualizá-las, ver se elas têm um ponto que precisa ser ajustado, corrigido. Isso não significa falta de certeza. Trata-se de compreender que mesmo verdades estabelecidas não devem ser uma camisa de força contra novos raciocínios. O “vício do cachimbo” pode entortar a boca, e a repetição de um mesmo conceito por anos não o torna necessariamente verdadeiro. Uma mentira mil vezes repetida continua sendo uma mentira! Ela não se torna verdade, ainda que muitos passem a crer nela. Embora meu telhado também seja de vidro – pois sou um professor universitário – devo admitir que muitas vezes a universidade, que deveria ser o ambiente máximo da liberdade de expressão e pensamento (dentro de uma ordem, é claro), torna-se um reduto de discursos herméticos que simplesmente não toleram o questionamento. Tudo isso paradoxalmente em nome da liberdade de cátedra. A verdade é que todos nós queremos público para nossas ideias. É claro que devemos divulgar com força aquilo que acreditamos ser correto, justo e coerente. Mas não ao ponto de tornar o outro um mero repetidor de opiniões alheias. Cada indivíduo tem uma capacidade própria de pensar e agir. As pessoas que conseguem desenvolver bem essa faculdade tornam-se as mais influentes no meio em que vivem. São líderes nos empreendimentos e formadores de opinião – tanto para o bem como para o mal. De qualquer modo, deveria ser um dever inegociável da sociedade desenvolver certa autonomia nos indivíduos, preparando, especialmente os mais jovens, para que sejam seres pensantes, e não meros refletores do pensamento alheio. Costumo dizer a meus alunos que quando alguém concorda com algum ponto que eu disse, se a concordância for legítima, sincera e racional, aquela ideia já não será mais minha, porém dele. A receita pode ser semelhante, mas o tempero vai ao gosto do freguês. Em vez de limitar o estudo ao que autores têm dito e escrito, seria interessante levar os alunos, filhos e demais membros da sociedade a um encontro com outras fontes de informações muitas vezes negligenciadas na academia: a natureza, o espírito, a história de cada um, a reflexão pessoal, o exercício de fazer perguntas. E quanto a Deus? Começar a busca de Deus crendo ser nula a possibilidade de sua existência não é um questionamento honesto. É uma tese concluída antes de se iniciar a pesquisa! Alguém, no entanto, pode legitimamente argumentar que o contrário também seria verdadeiro. Ou seja, começar afirmando que Deus existe e não abrir espaço para o ateísmo também é um tipo de falácia por pressuposição, e eu concordo com isso. Qual seria, portanto, o equilíbrio entre os dois extremos? Trabalhar pelo menos com a hipótese das possibilidades, isto é, dar a chance para que ambos os lados apresentem suas evidências. A Bíblia diz que “quem dele se aproxima precisa crer que ele existe” (Hebreus 11:6). Mas cuidado para não fazer anacronismos do texto bíblico ou se fiar apenas na tradução em português. Aqui não se trata de pressuposto, muito menos de fé cega. Não é uma questão de se crer primeiro em algo inexistente e, a partir desta crença cega, criar um devaneio e uma disposição mental que o faça ver tudo sob a ótica daquela opinião infundada. Isto não é nem de longe o que a Bíblia está propondo! Lembre-se: pessoas obcecadas também podem ver evidências de uma certeza que só existe na cabeça delas. Vou explicar o que esta passagem quis dizer. O Novo Testamento, em que ela aparece, foi escrito em grego koiné, e muitos detalhes desta língua são esclarecidos pela comparação linguística com o antigo grego clássico. Pois bem, o verbo “crer” usado pelo autor (pisteusai em grego) significa literalmente a garantia que advém de uma possibilidade de confiança. Este sentido aparece em antigos escritores como Demócrito, Platão, Aristóteles e outros25. Seria mais ou menos assim: para ir ao banco pedir um empréstimo, você não sai de casa com a certeza absoluta de que conseguirá o dinheiro. Isto seria presunção, e gerentes não fazem empréstimos a presunçosos. Eles preferem clientes que ofereçam um mínimo de lastro. Por outro lado, você também não pode ficar totalmente incrédulo, do contrário nem tentará o empréstimo e perderá a chance de obter o dinheiro que necessita. Se você vai ao banco é porque existe, no mínimo, a possibilidade de que o financiamento lhe seja concedido. Parafraseando o pensamento bíblico de Hebreus 11:6, você deve ir ao banco crendo que ele concede empréstimos. Por que tentar num banco, e não num cemitério? Ora, porque ninguém até hoje, exceto os loucos, deu testemunho de ter conseguido um financiamento com um defunto! Por outro lado, uma multidão de pessoas afirma ter conseguido empréstimo com um gerente de banco. Sua confiança, portanto, não é fé cega; ela se baseia no testemunho que outros deram. Ainda que você nunca tenha feito um empréstimo pessoalmente, acaba tentando. Afinal, tendo dado certo com outros, pode, hipoteticamente, dar certo com você. É uma possibilidade real, vale a pena crer nela e arriscar uma chance. Do mesmo modo Deus. Você há de convir que uma multidão de pessoas, incluindo intelectuais de prestígio, dá testemunho de que ele existe e que é razoável acreditar nele. Eu até poderia começar minha busca partindo do pressuposto de que Deus não existe e que tudo não passa de crendice popular. Mas o que eu faria com o testemunho de gênios da estirpe de Leonardo da Vinci, Blaise Pascal, G. W. Leibniz, Isaac Newton, C. S. Lewis e mais recentemente Antony Flew? Jogaria tudo no lixo? Ora, esses homens não eram o tipo de gente que acreditaria em qualquer coisa sem um mínimo de embasamento racional. Genialidade e ateísmo Talvez alguém lendo isso também diga: do mesmo modo, existem muitos intelectuais de prestígio que não aceitam a existência de Deus. Se eu parto do pressuposto de que Deus existe, o que faço com o testemunho de mentes brilhantes como Ferreira Gullar, Arnaldo Jabor, Friedrich Nietzsche e Karl Marx? Aqui não podemos tomar seis por meia dúzia, sabe por quê? Por causa de Aristóteles. É o seguinte: embora eu mesmo não concorde com absolutamente tudo que ele escreveu, devo reconhecer os princípios da lógica aristotélica e sua influência na história do pensamento ocidental, moldando, inclusive, o raciocínio destes vultos que citamos anteriormente. Pois bem, Aristóteles classificava as opiniões racionais e lógicas como juízos entre o sujeito e o predicado. Esses juízos se dividem de acordo com a qualidade, quantidade, relação e modalidade. Quanto à qualidade eles podem ser afirmativos ou negativos26. Acontece, porém, que a afirmação e a negação não ocorrem no mesmo momento nem estão no mesmo nível epistemológico. Gottlob Frege, um dos principais idealizadores da lógica matemática moderna, embora discordasse de Aristóteles em vários pontos, ampliou o logicismo separando a lógica clássica aristotélica da lógica simbólica. Como consequência, excluiu a negação como pensamento, embora esta continue exercida de modo formal. Ele diz que a negação não dá existência, nem tira a existência de nada, ela apenas deve ser concebida como discursiva27.Para aqueles que não conhecem Frege, ele era um matemático alemão do século 19 com forte inclinação filosófica sobre a realidade dos objetos abstratos como os números, conjuntos e outros objetos matemáticos. Não sou adepto de toda sua lógica nem quero atribuir a ele a defesa de algo que não intentou. Só pincelei esse ponto para dar costura à minha argumentação. Não o fiz, porém, fora de contexto. Para que você saiba, Frege negava o argumento ontológico de Deus, argumentando que nossa capacidade de nos referirmos a objetos abstratos em declarações que consideramos ser verdadeiras exige que esses objetos existam. Não sei se eu iria a tanto. Isto parecer ser uma tentativa de ler metafísica a partir da linguagem, criando um conceito muito tênue de existência. Seja como for, minha referência à sua declaração sobre a negação ontológica segue numa sequência tomista de que a negação e a firmação não são simultâneas, já que a negação é a causa de uma afirmação28. É preciso primeiro que se afirme algo, para então poder negar. Até a lei da não contradição aristotélica pressupõe isso, pois como se diz “uma coisa não pode ser (primeira afirmação positiva) e não ser (depois a negativa) ao mesmo tempo”. Por esta razão, digo que é necessário primeiro trabalhar com a hipótese da existência de Deus (afirmação), para então poder negar sua realidade, e não o contrário. Aí sim, a negação poderá fazer seu papel na lógica, pois somente através do funcionamento discursivo oferecido pela possibilidade negativa (através da contradição) que seria possível atingir a verdade lógica (validade). Portanto, essa nuvem de testemunhas que creem em Deus gera, no mínimo, uma “possibilidade” a ser aventada, mesmo que o ônus da prova recaia sobre os que afirmam a existência ontológica independente de determinado ser. A negação só pode vir depois disso. No caso da ilustração que usei antes, ignorar a chance de um empréstimo bancário, partindo do pressuposto de que todos os que conseguiram estão enganados, não é uma estratégia inteligente. Do mesmo modo, achar previamente que todos os que creem em Deus são alienados sem primeiro experimentar a validade ou não de seu testemunho é anular as chances reais de uma verificação empírica. É preferir o preconceito e a fuga à possibilidade de um conhecimento real. Isso não significa que preciso experimentar todas as coisas para ter uma opinião legítima sobre cada uma delas. Cuidado com exageros! Como disse James Oberg, “ter a mente aberta é uma virtude, mas não a ponto de o cérebro cair para fora”29. Experiências desastrosas De acordo com a semiótica, há realidades que são autoidentificáveis em si mesmas, não necessitam de experimentação para serem conhecidas. Nunca me alimentei de dejetos humanos e não preciso fazer isso para saber que se trata de uma má ideia. O mesmo se passa com o vício do crack: não preciso usá-lo para saber que não presta, basta ver o que ele causou na vida dos que foram por esse caminho. A diferença, portanto, entre experimentar drogas (para ter certeza de que não me convêm) e experimentar Deus (para saber se vale a pena crer nele) está no fato de que, no caso de Deus, encontramos bons e maus testemunhos daqueles que o experimentaram. Logo, a possibilidade aponta para os dois lados. Falta saber qual o melhor. Já as drogas não possuem “bons” testemunhos advindos de seus usuários. Até quem está no tráfico admite que não vale a pena seguir por esse caminho. Logo, seria maluquice experimentar algo ruim apenas para se confirmar o que todos já estão dizendo. Ademais, eu não preciso me posicionar em relação a tudo o que me rodeia. Imagine uma montanha-russa, por exemplo. Que tal a Top Thrill Dragster que fica em Ohio, nos Estados Unidos? Ela é uma das mais altas do mundo. São 128 metros de altura e um looping de 270 graus. Seus carrinhos vão a “apenas” 200 km por hora. É adrenalina garantida ou seu dinheiro de volta! Alguns que a experimentaram disseram que foi a pior experiência de sua vida. Outros acharam o máximo a sensação de velocidade e vertigem durante o ponto mais alto dos trilhos e, uns poucos, talvez, não sentiram nem uma coisa nem outra. Eu mesmo nunca estive na Top Thrill, logo não sei com certeza absoluta que tipo de sensação eu teria. Se a oportunidade algum dia vier, tudo bem, se não vier, tudo bem também. Posso passar a vida inteira sem essa experiência que não terei minha existência comprometida em nada pela falta dela. O mesmo não posso dizer sobre Deus em relação a esse assunto. Se ele é uma ilusão (para citar Dawkins), estou diante da pior mentira de todos os tempos, e tenho de me posicionar contrário a ela, para o meu próprio bem e das pessoas que amo. Se, porém, houver uma mínima chance de que Deus seja real, então serei um idiota se não me render imediatamente a ele. Neutralidade, neste caso, é algo que não existe. Omitir-me seria o mesmo que me colocar em oposição e só um louco se oporia a um Deus todo- poderoso. Ninguém é descrente Para muitos descrentes o subtítulo acima mereceria um troféu abacaxi como aqueles dados nos tempos do Chacrinha a todos os calouros desafinados. Supor que todos creem parece uma antífrase formulada por quem não entendeu nada do pensamento cético. Se tem uma coisa que a maioria dos ateus faz questão de deixar claro é que eles não possuem qualquer crença nem em Deus nem em nada. Argumentam que afirmar que Deus não existe não é sinônimo de crer que ele não existe. Num primeiro momento, os que afirmam isso estão certos. Apenas num primeiro momento. Vou explicar o porquê. Em termos de lógica, há uma diferença entre “não creio em X” e “creio em X (ou não X)”. Tudo vai depender de onde, na sentença, entrará o elemento de negação. Se eu disser: “não creio que haja cobras neste mato”, estarei fazendo uma proposição bem diferente de “eu creio que não há cobras neste mato”. Não é apenas um jogo de palavras. São duas proposições bem diferentes e espero explicar o porquê. A primeira implica que eu não tenha uma opinião formada sobre o assunto, apenas uma suposição. Não tenho uma crença que me diga uma coisa nem outra. Já a segunda é mais assertiva, eu tenho uma crença firme de que não há cobras ali. Então, neste sentido, estou em acordo com meus amigos céticos. O problema, a meu ver, é até onde se leva o argumento. Na prática, a história do ateísmo não condiz com um movimento que se limita à não crença de Deus existe, em vez de crer que Deus não existe. Tal característica descreveria mais os agnósticos e, mesmo assim, nem tanto. Você verá mais à frente dois capítulos narrando uma breve história do ateísmo. Ali você poderá ver que o ateísmo real, visto como fenômeno antropológico, ligado à história da humanidade, possui premissas e argumentações que não condizem com aquela definição abstrata de ateu como “sem crença em Deus”. Se for assim, a situação fica pior para os que assim se definem; digo mais, fica até ofensiva, pois o ateísmo deixa de ser posição ou convicção baseada em fatos (convicção, segundo o Dicionário Houaiss, é “crença”)30 para se tornar um estado psicológico destituído de certezas e que pode, por extensão, ser partilhado por um animal ou uma pedra que não têm crença nem opinião alguma acerca de nada. Tenho um cachorro chamado Gypsy e até onde eu saiba nem ele nem os pedregulhos do meu quintal possuem qualquer crença em Deus. Mas isso jamais faria deles “ateus” ou “descrentes”. Percebeu, portanto, que ateísmo é muito mais do que “não crença na existência de Deus”? Os ateus, ou pelo menos uma boa parte deles, afirma que “não há Deus”. Ora essa assertiva, assim como a outra de que “há um Deus”, demanda a posse de um conhecimento que requer justificação e argumentos. Logo, implica acreditar em alguma coisa, e não simplesmente ausência de crenças. Presumo (pode ser que eu esteja errado) que por detrás dessa insistente negação de fé (ou crença) por parte dos ateus exista uma acomodação muito maior que a velha fala de que fé é antônimo de fatos. O ponto seria o seguinte: se o ateu pode ser tomado comoum simples “não teísta”, ele então não precisa provar seu ponto. Basta negar a tese do outro. A falta de evidências para a existência de Deus seria o suficiente para presumir que ele não existe. Os teístas é que teriam o ônus da prova contrária. Num tribunal, a falta de provas pode inocentar um réu, mas a acusação sem provas não pode inocentar um acusador. Portanto, se o ateísmo for tomado como convicção de que Deus não existe, seus proponentes teriam de sustentar o ônus da prova que justifique sua afirmação. Como muitos admitem que tal comprovação não existe, preferem evitar a responsabilidade epistemológica tornando sua crença apenas uma condição psicológica que nega, mas não faz asserções. Assim, a não existência de Deus – suposta a partir da ausência de provas – seria o pressuposto natural, e o silêncio estaria ao lado da descrença. Lembrando mais uma vez que assim como “destemor” não significa sem medo de nada – um soldado destemido pode ter medo de perder sua família – “descrença” também não quer dizer incredulidade absoluta. Isso seria uma falácia do tipo “inferência imediata”. Por isso digo que todos temos nossas crenças pessoais. Até mesmo os agnósticos; afinal, eles creem que não se pode crer em nada. Isso me lembra de um livro muito interessante que li tempos atrás. O título era Em que creem os que não creem, de Umberto Eco e Carlo M. Martini, dois dos intelectuais mais respeitados da Itália. O que nos diferencia, portanto, não é a falta de fé, mas o objeto dela e o argumento que usamos para a afirmação dele. Religiosos podem questionar? O que vou dizer agora vale para todos. Religiosos, ateus, agnósticos… não importa! No que diz respeito ao nosso sistema de crenças, ninguém pode falar que crê ou descrê de algo se não experimentou a possibilidade da dúvida e da busca sincera por uma resposta. No caso de uma convicção, seja ela passada desde a infância ou adquirida ao longo da vida, enquanto não trabalhamos sinceramente com a possibilidade de tudo estar errado e vencemos com lucidez essa possibilidade em nossa consciência, o máximo que podemos dizer é que estamos acostumados a pensar daquele jeito, e não que cremos realmente naquilo. Dizem que certa vez um hindu reverenciava as águas do rio Ganges. Um amigo estrangeiro colocou algumas gotas no microscópio e lhe mostrou quão poluídas as águas estavam. Desgostoso com a realidade, ele preferiu tomar uma pedra, quebrar o microscópio e continuar sua reverência como se nada houvesse acontecido. Em outra situação, um professor de Filosofia estava apresentando uma palestra, quando foi interpelado por um estudante que respeitosamente discordava de suas ideias. De modo arrogante o acadêmico respondeu: “Fique você sabendo, meu jovem, que há trinta anos eu estudo esse assunto”. Mas o jovem tinha a primeira e a vigésima quarta edição do livro do professor e sabia que elas não apresentavam nenhuma diferença, nem de acréscimos, nem de atualizações, muito menos de correções. Então ele replicou: “Por favor, professor, não se ofenda com o que vou perguntar, mas há algo que não entendo: Há trinta anos o senhor estuda esse assunto ou há trinta anos o senhor repete a mesma coisa sem mudar?”. Não sei como foi o desfecho desta história, nem sei se é verdadeira ou fictícia, só sei que, ao contrário do dito popular, uma mentira mil vezes repetida não se torna uma verdade. Continua uma mentira, só que mil vezes repetida. Deixe-me dizer que eu mesmo já passei por esse processo mental do questionamento e terminei optando pela crença em Deus – crença, aliás, que procuro atualizar e reexperimentar a cada dia. É sobre o meu processo mental de busca e reconhecimento de Deus que gostaria de discutir com você, e não se assuste com o uso do verbo “discutir”. Como de costume, a nossa cultura distorceu o conceito de muitas palavras e “discussão” foi uma delas. Hoje pensa-se que discutir é atacar uma pessoa, impor sua opinião sobre ela. Isso é bem diferente de entrar num diálogo, em que se está disposto a falar, ouvir e, mais do que isso, compreender exatamente o que se ouviu, tomando uma posição diante do conteúdo. Discutir vem do latim discutere (dis, separação, + quatere, quebrar). O sentido original era quebrar, sacudir, abalar. Era isso o que os médicos romanos faziam com as plantas para produzir um remédio. Eles quebravam e sacudiam as raízes para separar a terra e verificar as que eram ou não fortes o bastante para servirem de medicamento. Em virtude desta prática, discutir também adquiriu um sentido adicional de “curar”. Originalmente, portanto, “discutir” seria pegar um assunto e agitá-lo, até ele se dividir em partes menores e se desprender daquelas que seriam periféricas. Assim, ele fica mais fácil de ser digerido, pois não podemos compreender tudo de uma só vez. É por isso que, em qualquer discussão, todos os envolvidos parecem ter sempre um pouco de razão: cada um só vê a parte que lhe interessa, a do outro é sempre a terra a ser desprendida ou o pedaço de raiz que não serve para remédio. Deste modo, o importante numa discussão é superar a tendência partidarista e usar as partes “sacudidas” para se alcançar senão o consenso, pelo menos o respeito mútuo por aquele que discorda de nossa opinião. No campo pedagógico, segundo Castanho, discutir é algo fundamental: […] seu papel no ensino é exatamente esse: dado um ponto de vista (uma teoria, um resultado de investigação, uma exposição qualquer) submetê-lo a um esmiuçamento tal que sejam analisadas todas as implicações ali contidas […] [as discussões] levam os alunos a não aceitarem passivamente uma posição antes de uma análise profunda e multifacetada. Cabe em qualquer área do conhecimento… Pode ser usada durante ou após uma aula expositiva… após um filme, uma sessão de slides…31 Ou, no nosso caso, em um livro! Discutir é conversar Discutir e questionar significam, pois, uma conversa que seja pautada pela busca mútua da verdade, e não pelos sentimentos vazios de ganho ou perda em um debate. Não quero impor nada a você, apenas contar como e por que cheguei a uma conclusão diferente da de muitos ateus e agnósticos, mesmo passando por caminhos de busca idênticos aos que muitos deles passaram. Portanto, mesmo que não cheguemos a um acordo em todos os aspectos, ainda assim ganharemos. Afinal, compensa compreender como o outro pensa, não necessariamente para concordar com ele, mas até mesmo para se saber por que discordamos de suas conclusões e continuamos a respeitá-lo mesmo assim. Numa conversa desse tipo, o preconceito foi superado e surgiu o respeito mútuo. Passamos, finalmente, a questionar a ideia, sem contudo deixar de reconhecer o ser humano que existe por detrás dela e percebê-lo como irmão. Ainda que diferente, um irmão. Todo aquele que diz acreditar em Deus pode e deve fazer perguntas que sejam legítimas e razoáveis. Estou particularmente convicto de que o direito de fazer perguntas é algo que me foi dado pelo próprio Criador, faz parte de mim. Ao contrário do que muitos pensam, nem todo questionamento é incompatível com a fé. Pegue uma Bíblia qualquer e você encontrará ali mesmo no Antigo Testamento passagens que sugerem uma busca inquiridora de Deus. Uma delas diz: “Provem, e vejam como o Senhor é bom” (Salmo 34:8). Interessante que a palavra hebraica traduzida por “provem” é ta’am, que significa mais do que simplesmente questionar. Ela sugere a ideia de experimentar algo sensorialmente, sentir o sabor de uma coisa. Em outra passagem, é o próprio Deus que faz o desafio racional para a humanidade: “Ponham-me à prova”, diz ele em Malaquias 3:10. E em outro texto, desta vez do profeta Isaías, o próprio Deus “democraticamente” convida: “Venham, vamos refletir juntos” (Isaías 1:18), ou, conforme uma tradução mais antiga, “vamos arrazoar juntos”, isto é, discutir, entrar num acordo, entender as razões um do outro. Também nas páginas do Novo Testamento encontro uma gama de textos me aconselhando a testar ou examinar criticamente todas as coisas antes de crer apressadamente nelas (2Coríntios13:5; Efésios 4:14; 1Tessalonicenses 5:21; 1João 4:1). Se compreendo bem a advertência bíblica, devo estar alerta a não concordar com algo apenas porque faz parte da tradição dos mais antigos (Mateus 5:21-22; Colossenses 2:8), ou porque um líder influente disse. A primeira carta de Pedro (2:1,3) alerta quanto a não acreditar em falsos líderes que explorariam as pessoas com historietas emotivas que eles mesmos inventariam (conf. também Mateus 7:15; 2Coríntios 11:5). Quer um incentivo à reflexão e à racionalidade autônoma mais claro do que este? Portanto, esse será um livro de reflexão, diálogos, admissões, mas também de muitos questionamentos. Não tenho a genialidade de C. S. Lewis, mas, à semelhança dele, às vezes me sinto “o mais relutante dos convertidos”32. Isso não significa que eu esteja em crise com minha fé, mas que, por ser um indivíduo de mente inquieta, vivo sempre à procura de respostas, admitindo dificuldade de aceitar certas argumentações. Sobre Deus? Bem, se ele existir mesmo como eu creio, sua imensidão deverá ser tal que a aproximação de sua pessoa provocará mais perguntas que respostas. Assim, não tenho medo de perguntas honestas. Talvez eu esteja mais perto dele quando faço perguntas do que quando repito certezas. E se errar? Bem, creio que, se Deus existe como eu creio, ele será menos ofendido pela sinceridade de um pecador do que pela hipocrisia de um santo. É assim que inicio essa jornada em busca de respostas. 21 Paulo Freire. Pedagogia do oprimido (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002). 22 John Emerich Edward Dalberg Acton. Historical Essays & Studies (London: Macmillan Co., 1907), p. 504. Reprodução legal de BiblioLife, LLC. 23 Entrevista dada em 2015 para o Excellence Reporter. Disponível em . Acesso em: 11/03/2017. 24 Adaptado de Victor Codina. 40 nuevas parábolas (Bogotá: Ediciones San Pablo, 1993), p. 84. 25 R. Bultmann. “Pistew”, in Gerhard Kittel. Theological Dictionary of The New Testament (Grand Rapids: Eerdmans Publishing Company, 1974), 6:177. 26 Aristóteles. Métaphysique, 2 vols. (Paris: Vrin, 1981). 27 G. Frege. “A negação. Uma investigação lógica”, in Investigações lógicas (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1918-1919/2002). 28 S. Teo. II-II, 122, a.2, ad1. 29 Apud C. Sagan. The Demon-Haunted World: Science as a Candle in the Dark (New York: Random House, 1996), p. 187. 30 Disponível em . Acesso em: 11/06/2014. 31 M. E. L. M. Castanho. “Da discussão e do debate nasce a rebeldia”, in I. P. A. Veiga (org.). Técnicas de ensino: por que não? (Campinas: Papirus, 1993), p. 93. 32 Esse foi o título de um livro de David Dawning sobre o autor. https://excellencereporter.com/2015/03/11/elon�-musk�-on�-the�-meaning�-of�-life/ https://ciberduvidas.iscte�-iul.pt/consultorio/perguntas/conviccao/12849 Capítulo 4 Você sabe em que (des)acredita? Contar histórias é um forte do povo do interior. Seja ele das caatingas do Nordeste, do Pantanal mato-grossense ou dos rincões de Minas Gerais. Quer eu esteja com um sertanejo do Brasil ou em companhia de um beduíno do deserto, não escondo meu contentamento diante das poucas oportunidades que tive de sentar e ouvir um velho contador de histórias. Há ainda aqueles contadores de “causo” da cidade grande, que disfarçados de taxistas ou frequentadores de botequim, amam narrar um fato que juram ter acontecido de verdade. É claro que, para a narrativa não ficar insossa demais, dá-se um retoque aqui e outro ali, mas nada que faça tudo virar uma grande mentira. É só para dar um pouco de emoção àquilo que se conta. Do ponto de vista sociológico, a narrativa popular tem dimensões de pesquisa e estudo de caso. São elas que incorporaram o duplo sentido humano de propagar e preservar memórias. Quando se conta, se relembra, e ao relembrar cria-se um laço afetivo entre o eu que conta e o(s) outro(s) que ouve(m). Já dizia o oráculo apocalíptico: “Feliz aquele que lê as palavras desta profecia e felizes aqueles que ouvem…”. Paulo também expressou que a fé vem “pelo ouvir”. Isso é verdade. Uma vez que todos compartilham a mesma história, passam a ter uma espécie de pacto de sangue, pois se tornam responsáveis por ela. É talvez por isso que nem a fome ou a miséria são capazes de silenciar a voz de um povo criativo. Reinventar o cotidiano e dar sentido para a vida é algo que mantém viva a cultura de uma nação. Ninguém foi tão genial em perceber isso como Ariano Suassuna. Suas obras, quer no formato de livro, teatro ou televisão, são formidáveis. Ele era um gênio da literatura brasileira. Quem não riu da dupla Chicó e João Grilo em O Auto da Compadecida? Ingênuos, porém espertos e de alma infantil, os dois amigos faziam de tudo para driblar a fome e a necessidade, sendo que João Grilo encontrou nas histórias que contava uma maneira paradoxalmente “inocente” de “enganar” para sobreviver em meio à miséria da seca. Eram relatos praticamente infantis, coisas impossíveis de acontecer e que desafiam a lógica de uma mente sensata: o cavalo Bento que cavalgou da Paraíba até o Sergipe, atravessando o São Francisco; o peixe pirarucu que o arrastou pelas águas por três dias, o papagaio que morreu de velhice sendo ainda novo. Ao final de cada história, confrontado pela indagação de como aquilo pode ter acontecido, João grilo disparava sua lógica universal: “Não sei, só sei que foi assim”. A saída de João Grilo bem poderia ser eleita a razão argumentativa da maioria das pessoas. Dependendo de quem a usa, conscientemente ou não, ela pode encerrar uma fé ingênua – quando o sujeito realmente acredita no que diz; um deliberado engodo – nem ele mesmo acredita no que está falando; ou ainda um desvio da atenção para que o assunto pare por ali e o interlocutor não faça mais perguntas inoportunas. Fica o dito pelo não dito. Cosmovisão: uma ilustre desconhecida Todos nós, indistintamente, temos uma interpretação de mundo que é moldada por nossos valores, crenças e também pelos nossos questionamentos. Tudo isso forma nossa visão de mundo, isto é, nossa cosmovisão. Muitas vezes nem nos damos conta dela, mas ela está aí, nos acompanhando em praticamente todos os raciocínios que fazemos e decisões que tomamos, desde as mais simples, até as mais complexas. De fato, o mais interessante da cosmovisão é justamente esse detalhe de que as pessoas a possuem mesmo sem ter a mínima noção do que ela é. E mais: a possuem e a utilizam. A cosmovisão funciona como uns óculos com os quais enxergamos a realidade. Seria como pedir para pessoas diferentes opinarem sobre a vida do Dalai Lama. O governo chinês o descreveria como traidor; um budista tibetano, como a reencarnação do Buda; um político americano, como o merecido ganhador do Prêmio Nobel; e o papa, como um religioso digno de respeito. Os brasileiros que já ouviram falar nele dizem ser um bom líder ao lado de Gandhi e Madre Teresa de Calcutá, enfim, um ícone da paz. Mas não vão muito além disso. Como você vê, quem conta uma história nem sempre buscará narrar os fatos tais como aconteceram. A tendência natural é procurar uma justificativa própria para o fato e as razões para ele. Obviamente que em casos como o de Dalai Lama nossas interpretações tenderam ao lado em que nosso país, por exemplo, está ou não está envolvido no assunto. Tudo isso está inserido neste tema maior da cosmovisão. E o que ela seria? “Cosmovisão é o conjunto das pressuposições cognitivas, afetivas e valorativas fundamentais que um grupo de pessoas faz sobre as coisas da natureza, e que elas usam para organizar as suas vidas.” Quem disse isso foi Paul G. Hiebert, autor do livro Transformando cosmovisões, de leitura recomendável. Quem, no entanto, percebeu bem esse fenômeno de reconhecimento da realidade, ou pelo menos deu esse nome a ele, foram os alemães lá pelo século 18. Procurando definir uma doutrina do conhecimento e como os homens percebem o mundo em redor, os epistemólogos criaram a palavra Weltanschauungpara se referir ao modo como enxergamos as coisas que acontecem em redor. Quem usou pela primeira vez o termo foi Immanuel Kant no seu livro Crítica do julgamento, publicado em 1790. Sei que, num primeiro momento, isso tudo parece uma perda de tempo. Parar para discutir como se forma nossa compreensão de mundo talvez soe para alguns como coisa de quem não tem o que fazer, mas não é bem assim. Lembrando o aforismo nietzschiano: “nada aprisiona o homem mais do que suas convicções”. De fato, é a crença em determinadas ideias e ideais éticos que nos move a agir ou não agir em prol de uma causa. A crença interior leva alguns ao sacrifício, à ação ou até mesmo ao genocídio. Portanto, o conhecimento prévio dessas crenças pode prevenir males e evitar problemas. Cosmovisões perigosas “Crença interior” é uma expressão muito próxima da palavra cosmovisão. É ela que move a história dos homens com suas guerras, suas ideologias, seu amor e seu ódio, sua esperança e seu desespero. É a cosmovisão que leva você a lutar por alguns direitos e agir como tem agido, seja de modo bom e responsável, ou inspirado na delinquência. Pense, portanto, no perigo que seria o nutrimento de uma cosmovisão errônea. Você consegue imaginar o estrago que ela pode fazer? Senão, veja o caso da Alemanha e tire suas próprias conclusões. Numa época em que ninguém se importava com o atual “politicamente correto”, alguns pensadores “eruditos” descobriram no livro indiano dos Vedas o impulso ideológico de que precisavam para se firmarem como nação e etnia. A ideia era encontrar a raça humana superior e todos queriam pertencer a ela. Um pouco antes disso a pesquisa pelas raízes filológicas dos indo-europeus já havia gerado grande excitação na Europa e isso determinou a busca frenética pelos arianos, uma suposta linhagem mais pura de seres humanos, constituída por indivíduos altos, fortes, de pele clara e inteligentes. A palavra “ariano” deriva de arya (“nobre”, em sânscrito) e serviu para denominar um povo que na realidade nunca existiu. Hoje todos sabemos que “ariano” não representa uma raça, e sim um grupo linguístico, mais conhecido como indo-europeu. Porém, esse não era o pensamento em voga no século 19. Foi um francês chamado Gobineau que espalhou a ideia por toda a Europa, angariando muitas críticas, mas também muitos adeptos, principalmente intelectuais alemães. Os arianos representariam, de acordo com critérios puramente arbitrários, o que se tinha de mais puro em termos de humanidade. Eram, enfim, a raça humana superior da qual descenderam os nórdicos e germânicos. Eram estes grupos étnicos que representavam, pois, o ápice da civilização. Foi graças a eles que a humanidade progrediu. No extremo oposto, residindo no setor mais baixo da hierarquia racial humana, estariam os negros, ciganos, asiáticos e semitas (no caso, judeus). Qualquer mistura dos puros com esses grupos inferiores traria prejuízos incalculáveis. Goebbels entra em cena Em meio a tudo isso, um jovem de mente brilhante e caráter duvidoso chamado Joseph Goebbels bebeu profundamente nas fontes que alimentavam essa ideologia. Montando sua cosmovisão como um queijo feito de muitas vacas, ele pegou um pouco de Heidegger33, Chamberlain, Nietzsche, Max Heindel, Schlegel, Rosenberg e outros. Então passou a propalar um vocabulário rico em palavras como combate (kampf), sacrifício (opfer), destino (schicksal), comunidade do povo (volkgemeinschaft), sangue e solo (blut und boden), adestramento (zucht), raça (rasse, stamm, geschlecht) e a mais importante: dirigente ou führer. O próprio Goebbels era um erudito com título de Doutor em Filosofia expedido em 1921 pela conceituada Universidade de Heidelberg. Logo, a doutrinação que recebeu, os autores com os quais entrou em contato (e que não eram necessariamente “nazistas”), não constituíam nenhum episódio circunstancial, isolado ou incongruente para a política da época. Só para se ter uma noção, a Universidade de Freiburg tinha uma cátedra chamada “Introdução à doutrina racial” e outra de “Biologia hereditária”, cuja função era ensinar aos estudantes a visão do mundo nacional-socialista e o pensamento da raça. Eugen Fischer, teórico do eugenismo e um dos primeiros defensores do genocídio dos povos ditos “inferiores”, amigo pessoal de Heidegger, foi quem coordenou o curso. Por isso, foi natural que o partido nazista, já em seus primórdios, se apropriasse da ideia. O pensamento de Goebbels era, como eu disse, uma cosmovisão particular que expressava fidedignamente outra cosmovisão maior – na época coerente – que precedeu a ascensão do nazismo e se prolongou para além do período do reitorado, e até mesmo da própria queda de Adolf Hitler. Por falar em Hitler, era esse o elemento que faltava ao mapa conceitual de Goebbels. Um messias, um redentor, um füher! Dizem os biógrafos que Goebbels nunca se recuperara do trauma de ser manco devido a uma poliomielite na infância, de modo que seu complexo de inferioridade o fez se espelhar num tema e numa pessoa que o fizessem se sentir grande, gigante! Hitler e o arianismo fizeram isso por ele. Resultado? Hitler não alcançaria o que alcançou se não fosse a brilhante atuação de Goebbels, que se tornou seu publicitário particular e ministro da propaganda nazista. Foi graças a ele que a Alemanha e outros países se mobilizaram para formar o Terceiro Reich. O saldo de tudo isso você já sabe: uma Europa destruída, seis milhões de judeus assassinados, milhares de órfãos e um cálculo médio de 50 milhões de mortos, 60% dos quais civis que nada tinham a ver com o conflito. O próprio Goebbels e sua esposa se mataram no bunker, mas não sem antes assassinarem os próprios filhos que tinham entre 12 e quatro anos de idade. O motivo disso? A morte prévia de Adolf Hitler. De acordo com o historiador Peter Longerich, autor de uma nova biografia de Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista desenvolveu, graças à sua visão de mundo, uma dependência psíquica de Hitler34. Sua esposa também não ficara longe: para ela “um mundo sem o Füher não é digno de vida”. Sem escapatória O perigo maior de histórias como esta é que ninguém está livre de possuir uma cosmovisão ou ser afetado pela cosmovisão do outro. Imagine quantas vidas foram interrompidas porque um maluco com problemas de autoestima resolveu alavancar outro maluco no poder. Não pense que o povo não tem participação nisso. A própria passividade das pessoas – que pretendo destacar neste capítulo – as leva a alimentar o monstro que há por detrás dos déspotas e corruptos que desviam a sociedade. Como dizia Orson Scott Card: “Se os porcos pudessem votar, o homem com o balde de comida seria eleito sempre, não importa quantos porcos ele já tenha abatido”35. Conta-se uma lenda vinculada a Stalin que foi reproduzida pelo consagrado novelista russo Chingiz Aitmatov num artigo do jornal Sovetskaya Kirgiziya publicado em 6 de maio de 198836: Em uma de suas reuniões, o ditador pediu que lhe trouxessem uma galinha. Agarrou-a forte com uma das mãos enquanto a depenava com a outra. A galinha, desesperada pela dor, quis fugir, mas não pôde. Assim, Stalin tirou todas suas penas, dizendo aos seus colaboradores. Agora, observem o que vai acontecer. Stalin soltou a galinha no chão e se afastou um pouco dela. Pegou um punhado de grãos de trigo e, enquanto seus colaboradores viam, assombrados, como a galinha, assustada, dolorida e sangrando, corria atrás de Stalin e tentava agarrar a barra de sua calça, enquanto este lhe jogava uns grãos de trigo, dando voltas pela sala. A galinha o seguia por todos os lados. Então, ele olha novamente para seus auxiliares, que estão totalmente surpreendidos, e lhes diz: “Assim facilmente se governa os estúpidos. Viram como a galinha me seguiu, apesar da dor que lhe causei? Do mesmo modo é a maioria das pessoas. Seguem seus dirigentes, apesar da dor que estes lhes causam, pelo simples gesto de receber um benefício barato ou algo para se alimentar por um ou dois dias. Como nasce uma cosmovisão? É difícil falar deuma receita para todos os casos de cosmovisão individual. Afinal de contas, não existe outro de nós mesmos. Ainda que haja experiências de vida muito parecidas, minha história é única, não existem duas biografias exatamente iguais, nem de gêmeos univitelinos. Por isso o máximo que podemos dizer é que as cosmovisões que construímos parecem partir ou nascer de três fontes: 1) Noção de pertença – todos nós queremos fazer parte de um grupo. 2) Necessidade de afeto – por querer ser amados, queridos, terminamos nos adequando às regras desse ou daquele grupo. É para ser aceitos que assumimos certos modos de vestir, falar, comportar. 3) Identidade pessoal – não é normal recebermos tudo automaticamente, nós reagimos ao que recebemos, seja pelo gosto, por um trauma criado ou pelo simples movimento de nosso livre-arbítrio. Sendo assim, uma cosmovisão não é algo que surge num único instante. Ela vai sendo construída aos poucos e está sempre sendo atualizada, modificada, confirmada. Depende das experiências que temos e de como respondemos a cada uma delas. Um trauma com um pai violento, e ao mesmo tempo religioso, pode fazer com que mudemos nossa concepção de céu a inferno, de crença em descrença. Em contrapartida, uma situação de “fundo de poço” pode nos levar a buscar uma espiritualidade da qual nunca fizemos caso. Os religiosos chamam isso de “conversão”. Assim, a filosofia, a religião, os amigos, os inimigos enfim, as relações sociais que temos ao longo de nossa existência vão ajudando a construir nossa cosmovisão, mas não a determiná-la. No final da história é você e não o outro quem decide como verá o mundo. Cada um é responsável por si, desde, é claro, que esteja no pleno uso de suas faculdades mentais. Em sua composição, a cosmovisão é constituída em parte por um núcleo central, isto é, uma estrutura que é fruto das relações sociais que temos. Esse mesmo núcleo costuma ser resistente a mudanças, embora não signifique que seja imutável – afinal ela está constantemente sendo atualizada! Na periferia estariam outras visões de mundo que estão sempre em dialética com nossas concepções, ora confirmando ora desafiando nosso entendimento. Tudo isto, porém, refere-se à atividade da cosmovisão no indivíduo e suas Tudo isto, porém, refere-se à atividade da cosmovisão no indivíduo e suas relações com o público externo. Existe, contudo, outra cosmovisão coletiva que também atua na história. Ela se constrói quando uma sociedade ou grupo social passa a pensar majoritariamente de um modo a ponto de ser assim caracterizada por aquele pensamento. Exemplo: mesmo havendo pessoas que não aceitassem a escravidão dos negros, podemos coletivamente dizer que o Brasil colonial era uma nação escravocrata. Percebeu o processo? Viu como a cosmovisão é algo ao mesmo tempo individual e coletivo? A diferença é que a individual dura uma vida e a coletiva pode durar por gerações inteiras. A gênese do pensamento coletivo Foi Émile Durkheim o primeiro a teorizar o conceito de “consciência coletiva” e como ela é originada. Não é um trabalho terminado, ainda há muitos pontos obscuros nesta temática, principalmente porque uma vez inseridos num sistema, é difícil perceber criticamente os costumes, a moral, o modismo que dão forma ao nosso contexto. É engraçado quando amigos já quarentões se encontram e começam a rever fotos da época de faculdade. “Nossa, que cabelo era esse?” – comenta uma colega que exibia um charmoso corte “Joãozinho”. “E eu? – complementa a outra. Onde estava com a cabeça de ir a um baile de formatura com um vestido desses?” Os homens também se entreolham, rindo das calças que usavam e dos estilos que julgavam estar arrasando corações. Até que alguém complementa: “É, o passar do tempo fez muito bem a todos nós”. “Isso mesmo!” – concluem os demais. Quem desenhou aqueles modelos antes considerados “fantásticos” e depois disse que estavam ultrapassados? Note que a decisão é tão séria que afeta até nossos gostos pessoais. Não conseguimos mais achar o estilo moderno e nos perguntamos como tivemos coragem de usar aquilo. Não sei como será daqui a algum tempo – pois as tendências mudam muito rápido –, mas no momento que escrevo este livro está na moda usar calça jeans surrada e rasgada no joelho ou na coxa. Antigamente seria motivo de protesto no Procon se a loja me vendesse um produto desses; hoje, é uma das mais caras da vitrine. Mediante isso, só tenho uma conclusão: se eles convencem um jovem que uma calça jeans rasgada é bonita, então podem convencer de quase qualquer coisa. Em termos gerais, os exemplos que dei da moda perfazem a cosmovisão ou a consciência coletiva que pode ser definida como o conjunto de características e conhecimentos comuns de uma sociedade, que faz com que os indivíduos pensem e ajam de forma minimamente semelhante. Corresponde às normas e às práticas, à moral, aos códigos culturais, como a etiqueta e as convenções sociais. Assim, o indivíduo e suas ações são fortemente influenciados tanto por essa consciência individual quanto pela coletiva. Mas os limites entre ambas não são muito claros, pois mesmo decisões consideradas extremamente individuais, como a de tirar a própria vida, podem ser influenciadas pelas condições sociais. Lembra o famoso caso da Baleia Azul? Um jogo de Internet que desafiava adolescentes a tarefas que iam desde cortar o próprio corpo até pular de um edifício. Em linhas bastante gerais posso dizer que elementos como língua, apego, educação, mídia são peças-chave na construção e ou transformação de culturas que se formam através de um mínimo de interação social. Por exemplo, o processo que cria novas ordens morais, formadas a partir do entusiasmo coletivo, é, muitas vezes, contrariado por processos em que esse entusiasmo diminuiu, como crises sociais profundas ou carência de modelos de liderança. Não vou esboçar aqui todas as teorias vigentes sobre a gênese dos pensamentos coletivos. Isso fugiria aos propósitos deste livro. Meu intuito apenas é levar você à reflexão de que o sentimento pessoal que advogamos pode ser reflexo de uma influência externa e subliminar que nos determinou agir e pensar dessa ou daquela forma. Um elemento midiático ou uma necessidade de aceitação no grupo podem ser exemplos disso. O contrário também é verdadeiro, isto é, quando determinada postura é assumida, não por incentivo de alguém, mas para provocar alguém. Neste caso, entramos numa reação em conflito e agimos exatamente do modo como o outro desaprova. Tal comportamento é muito comum entre pais e filhos que não possuem uma relação saudável. Por isso, devemos estar em constante estado de reflexão. Vendo e revendo nossos conceitos, nossos motivos, nossa perspectiva. O desafio é pôr em prática o que disse o filósofo e ensaísta americano Ralph Waldo Emerson: “É fácil viver no mundo conforme a opinião do mundo. É fácil viver na solidão, conforme a nossa opinião. Grande será o indivíduo que, mesmo em meio à multidão, conseguir manter com perfeita doçura a independência da solidão”37. O indivíduo e o meio Acho importante, a essa altura do diálogo, citar uma nota do antropólogo Alfredo Austin: “Pertencer a uma tradição ou possuir uma cosmovisão não implica, de maneira nenhuma, uniformidade de pensamento, mas sim capacidade relativa de intercomunicação e interação em um dado contexto social”38. Há autores que negam o conceito de cosmovisão para hoje, pois entendem que ele só diz respeito a sociedades tradicionais, com uma estrutura de tradição forte e estreita relação entre indivíduo e sistema. Hoje viveríamos um período “pós-estrutural” em que os indivíduos não são mais motivados a pensar conforme a cartilha de um único partido, religião ou governo, pois a sociedade tem muitas particularidades que desafiam qualquer ideia uniforme. Será? Tenho cá minhas dúvidas. A meu ver, as estruturas de pensamento individual e coletivo convivem em dialética e estão tão presentes hoje como estiveram no passado. Não existe, por exemplo, neutralidade na academia, sempre teremos paradigmas quedependem de visões de mundo. Há muitas delas: marxismo, humanismo, teísmo, ateísmo, agnosticismo, religiões orientais, materialismo, para nomear algumas. Dado que não podemos escapar dos pressupostos, o desafio é reconhecer as cosmovisões existentes e ter uma posição crítica em relação a elas, ou seja, saber por que você escolheu determinado caminho e que consequências advirão disso. Sei que o exemplo a seguir não valerá para todos, porém, é mais comum do que se imagina e vale para as outras áreas do conhecimento. Aconteceu comigo, num evento em que participei como palestrante. Um estudante chegou até mim com um amigo de ares bem arrogantes trazendo um monte de perguntas na manga. Ele era um jovem de uns 17 anos cheio de convicções adolescentes e não foi difícil perceber ali uma falácia do tipo plurium interrogationum, isto é, quando se exige uma resposta simples e rápida para questões complexas. Eu estava em pé no corredor depois da palestra, com várias pessoas querendo falar comigo. Não era o ambiente para aquele interrogatório, embora não creia que ela usara a falácia de modo consciente. Encurtando o diálogo, pois não havia tempo para muito mais que isso, Encurtando o diálogo, pois não havia tempo para muito mais que isso, perguntei: “Por que você se diz ateu?”. A resposta: “Por que não estou certo se Deus realmente existe”. “Ora”, eu retruquei, “então você está mais para agnóstico, pois um ateu tem certeza de que Deus não existe. Não há o ‘se’ na fala de um ateu.” Ele se desconcertou, mas para não perder a empáfia disse com convicção: “Isso! Sou um agnóstico!”. Descobri depois que ele na verdade queria desafiar a autoridade religiosa defendida por seus pais, mas isso é outra história. Continuando a conversa, perguntei: “E qual corrente agnóstica você segue? Empírica, modelar, apática, forte, ateísta ou teísta?”. Demonstrando não conhecer nenhuma ele chutou: “Forte!”. Sabendo que os agnósticos fortes negam qualquer possibilidade de certeza, perguntei: “Se você crê que não pode ter certeza de nada, como pode ter certeza de que não se pode ter certeza de nada?”. Ele demorou a entender o trocadilho e, mudando de assunto disse: “Admito que não sabia que o agnosticismo tinha tantas linhas, vou estudá-las melhor para ver qual se encaixa mais com o que penso sobre Deus. Por enquanto, só posso dizer que nasci na igreja e não gosto do tipo de Deus que meus pais me ensinaram na infância. Preciso primeiro saber se o que você diz de Deus é melhor ou é a mesma coisa que eles disseram. Só aí posso dizer que crerei ou não nele”. Então concluí: “Meu amigo, isso não é agnosticismo, é ignosticismo – um termo cunhado pelo filósofo judeu Sherwin Wine, para descrever posturas como a sua que preferem não se definir como ateus ou teístas por não terem uma compreensão exata ou aceitável do que seria Deus”. Estou correto? Ao imperativo de conhecer sua cosmovisão (particular e coletiva) acrescente o desafio de saber se você está ou não certo naquilo que pensa. Ter certezas é algo relativamente fácil; estar correto demanda maior esforço cognitivo. E não caia no erro de achar que o “comum” é necessariamente o “correto”. No século 19 era comum surrar uma senhora negra de idade apenas por ela deixar queimar o feijão de seus amos. Assumir posições críticas diante de eventos passados é relativamente fácil, difícil é reconhecê- los ainda em curso e se posicionar diante deles. Hoje muitos insistem que a certeza é algo ultrapassado. Estamos numa era de pós-verdades em que nada é, em si verdadeiro, tudo é relativo. Noções de certo e errado, belo ou feio, moral ou imoral são apenas convenções culturais. Não existe nada além da experiência pessoal humana, e Deus, caso exista, é apenas um espectador passivo da história. Finalmente somos nós que ditamos as regras. Será? Como ter certeza de que minha cosmovisão é correta e de que é importante mesmo ter uma cosmovisão? Quanto a essa última pergunta só posso dizer que a posse de uma cosmovisão não é um direito a ser exercido, é uma condição da qual não temos escapatória. O que está em nossas mãos é eleger que tipo de cosmovisão teremos para direcionar nosso caminho. Quanto à verdade, caso ela exista, poderia ser conceituada em termos absolutos como a expressão exata da realidade. Mas aqui nos deparamos com um quadrilátero de opções: 1 – não existe verdade, tudo é relativo; 2 – existe a verdade, mas jamais será alcançada; 3 – existe a verdade e ela é exatamente aquilo que dizemos; 4 – existe a verdade, mas a alcançamos apenas em parte. Independentemente da opção que cada um faça, uma coisa é certa: aquilo que conhecemos ou chamamos de verdade será sempre uma interpretação mental que temos da realidade conforme transmitida por nossos sentidos e interpretada pelos nossos neurônios. Seria desejável, ou prudente, pelo menos esperar que nossas conclusões sejam confirmadas por outros seres humanos inteligentes e destituídos de preconceito – isto é, do desejo ardente de que algo de interesse deles seja verdadeiro custe o que custar. Aí essa verdade poderá ser confirmada por equações matemáticas, vivências, experiências e outros instrumentos cognitivos que formam um modelo capaz de interpretar razoavelmente o passado e prevenir acontecimentos futuros diante das mesmas coordenadas. É até onde conseguimos ir ao encontro da verdade se nos limitarmos à razão como modo de possuí-la. Mas cuidado: o conceito de certeza pode ser por vezes confuso e impreciso. Mais à frente voltaremos a falar sobre isso. Por ora, basta lembrar que a confiança mental também tem suas limitações. Dado que a certeza, se for fruto de uma investigação cuidadosa das coisas, está correlacionada à verdade, é tentador pensar que a certeza implica a verdade. Mas isto é falso. Até a certeza filosófica, laboratorial e científica pode vir de uma premissa falsa. Isto acontece porque somos falhos e podemos ter o azar epistêmico de raciocinar bem com dados falsos. Dá-se também o caso de raciocinar mal com dados verdadeiros, criando assim falácias mentais que são mais comuns do que se imagina. E falácias são como perfume ruim, quem as usa dificilmente percebe. O já mencionado Descartes põe tudo em dúvida em busca de uma certeza sobre a qual possa erigir o seu conhecimento, e isto pode criar a ilusão de que a certeza implica o conhecimento. Novamente errado. A certeza, adequadamente adquirida, é apenas um bom guia, mas, por não ser infalível, não implica necessariamente a verdade. A certeza é um conceito epistêmico e a verdade última um conceito metafísico, e seria surpreendente se o primeiro implicasse o segundo. Portanto, alea jacta est – a sorte está lançada e o assunto só começando. Ainda temos muito que conversar ao longo deste livro. 33 Cf. Emmanuel Faye. Heidegger – L’Introduction du Nazisme Dans la Philosophie (Paris: Éditions Albin Michel, 2005). 34 Peter Longerich. Joseph Goebbels, uma biografia (Rio de Janeiro: Objetiva, 2014). 35 Apud Antti P. Balk. Balderdash: A Treatise on Ethics (Helsink, Washington, Londres: Thelema Publications, 2012), p. 365. 36 Apud. Disponível em . Acesso em: 30/08/2017. 37 Ralph Waldo Emerson; Eva March Tappan. “Self-Reliance”, in Select Essays and Poems (New York: Allyn and Bacon, 1808), p. 35, versão eletrônica. 38 Anales de Antropología, Universidad Nacional Autónoma de México, México, v. 32, n. 1, 1995, p. 217. http://hayrettinguelecyuez.webs.com/stalinism.htm Capítulo 5 Decifrando Homer Simpson Quem não conhece Homer Simpson, o pai de família mais atrapalhado da história? Ele deixa para trás candidatos como Fred Flintstone, George Jetson e Peter Griffin, da animação Family Guy. Não sei ao certo o que Matt Groening tinha na cabeça quando rascunhou os primeiros traços de um pai de família que era o oposto de tudo que se tem por politicamente correto. O fato é que ele conseguiu emplacar um fictício idiota, fã de cerveja e comedor de donuts como personalidade do ano! A revista americana Entertainment Weekly declarou serHomer Simpson o maior personagem de ficção das últimas décadas. Apesar de todas as suas debilidades mentais, Homer desbancou até mesmo o bruxo adolescente Harry Potter, que desde 1997 vendeu mais de 450 milhões de exemplares em todo o mundo, sendo 3 milhões apenas no Brasil3 9. Fico me perguntando até que ponto Homer Simpson é apenas um desenho ou uma caricatura histórica de todos nós. Não seriam seus gestos uma forma cômica de retratar de modo real a própria sociedade moderna? Não é por menos que até a linguagem que ele usa passou a fazer parte oficial do idioma inglês. D’oh é uma interjeição que Homer usa quando fica irritado ao perceber que cometeu um erro ou que algo ruim aconteceu. Ele já se expressou assim em vários episódios. Por isso, em 1988 o Oxford English Dictionary, o dicionário de inglês mais conceituado do mundo, reconheceu a popularidade da expressão ao ponto de incluí-la em sua lista de vocábulos. D’oh agora faz parte da língua inglesa e significa “expressão de frustração quando se percebe que as coisas deram errado ou não aconteceram como planejado, ou ainda que alguém acabou de fazer ou dizer algo estúpido”. Ora, se a pré-modernidade foi a era da fé, a modernidade a era da razão, não seria a pós-modernidade a era do D’oh? Afinal de contas, eu queria estar errado, mas sinto que vivo muitas vezes numa época em que a cultura inútil e o besteirol reinam soberanos por todos os lados. O mais irônico é como perdemos valores cognitivos básicos como compreensão do que se lê, poder de interpretação e noção de respeito próprio. Veja que interessante: nos anos 1940, Walt Disney visitou o Rio de Janeiro e, dentro do Copacabana Palace, criou um personagem para supostamente “homenagear” os brasileiros. Seu nome: Zé Carioca – um malandro, que não gosta de trabalhar, cheio de jeitinhos como o próprio povo “homenageado”. Sinceramente não sei que homenagem é essa que só enaltece defeitos do sujeito. Mas o fato é que o brasileiro se sentiu lisonjeado com a homenagem prestada pelo empresário americano. O tempo passou e hoje vejo uma revanche não planejada, quando Matt Groening cria uma paródia dos americanos bem pior que o simplório Zé Carioca dos brasileiros. E os estadunidenses, de alguma maneira, não se importaram ou até pareceram gostar da homenagem, pois riram muito com ela. Nem se deram conta de que Homer é mais um alerta que uma menção honrosa. É o retrato de uma sociedade moral e intelectualmente falida. Sei que também existe bondade no velho Homer. Ele tem um emprego para sustentar sua família, ama loucamente sua mulher e se esforça para ser um bom pai, embora nunca se lembre do nome da Meg – a caçula dos herdeiros. O ponto não é este. Não posso deixar que a filosofia do “nem tudo está perdido” me impeça de buscar melhorias e correções. Um obeso com arteriosclerose não vai deixar de ter uma doença só porque é um cara legal. Suas virtudes não compensarão seu descontrole alimentar. Ou ele muda de hábitos ou deixará uma esposa viúva e filhos sem pai. No caso do Homer – e de boa parte da sociedade – a ideia que passa é que os defeitos não são para serem corrigidos. Fazem parte do enredo. Se tirarmos os vícios, a atrapalhadas e tudo mais que, embora engraçado, seja condenável, os Simpsons perderão a graça e, com eles, a nossa própria história. Dados que assustam Em 1987 foi publicado um polêmico livro nos Estados Unidos que até hoje é tema de um intenso debate na educação daquele país. O título traduzido para o português seria “Instrução cultural: o que cada americano precisa saber”. Nele, o autor, E. D. Hirsch chega à polêmica conclusão de que uma grande parte dos alunos estadunidenses não teriam o background cultural mínimo para entender com profundidade nem a primeira página de um jornal. Isso é muito sério40. De fato, várias pesquisas parecem confirmar esta afirmação. Uma delas, a lista MindSet (modo de pensar), realizada anualmente pelo Beloit College de Wisconsin, revelou dados aterradores. Somente para constar: A maioria dos americanos que está prestes a entrar na universidade não consegue escrever em letra cursiva, acham que o e-mail é lento demais, que Beethoven é um cachorro e Michelangelo, um vírus de computador, ou uma das tartarugas ninja. Para os estudantes que se formaram em 2014, a Checoslováquia e a Iugoslávia nunca existiram, a Alemanha nunca foi um país dividido, e para a maioria dos que nasceram depois de 1980 João Paulo II, que assumiu o pontificado em 1978 e morreu em 2008, teria sido o primeiro papa da história. Em outra pesquisa realizada em Fullerton, Califórnia, mais da metade dos alunos não sabia quem foi Alexander Hamilton, mesmo com sua foto aparecendo na nota de dez dólares. Embora eu não tenha dados tão detalhados sobre o Brasil, não creio que estejamos melhores que os americanos, haja vista que numa das últimas divulgações do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), dentre os países que participaram da pesquisa, o Brasil ocupava, invariavelmente, as piores posições em todos os itens avaliados. No ano em que essa pesquisa foi realizada, nós, brasileiros, ficamos em 53º lugar de um total de 65 participantes. Perdemos em qualidade de educação até para países como Bulgária e Romênia. As respostas reveladas por esse tipo de avaliação educacional podem até parecer engraçadas (como as famosas “pérolas do Enem”), mas são trágicas. Se, como diz o ditado, os jovens são o futuro do mundo, arrepia-me imaginar um mundo gerenciado pelos entrevistados nessas enquetes. Quem fez isso? De quem seria a responsabilidade por isso? Talvez a resposta esteja na explicação de Allan Bloom41, eminente educador da Universidade de Chicago. Para ele o que estaria por detrás dessa ignorância coletiva é a convicção pós-moderna de que não existe verdade absoluta, de que tudo é relativo. Assim, o propósito da educação não é aprender a verdade ou dominar fatos, mas apenas adquirir a habilidade de obter sucesso, riqueza, fama e realização pessoal. A verdade última ficou irrelevante e desnecessária, é coisa de cada um. Logo, não me admira que estes sejam os desastrosos resultados da cultura. Afinal de contas como estabelecer o que é certo e errado num currículo? Como estabelecer o que os alunos devem aprender? Como saber que o que aprendem hoje não será desmentido ou atualizado amanhã? Como dizer que uma resposta está definitivamente errada? Lembremos, para a cultura pós-moderna estamos num tempo de pós- verdades, logo, qualquer resposta é válida, afinal, tudo é relativo. A ordem do dia é moldar os discursos às hermenêuticas de Nietzsche e Foucault, segundo as quais não há fatos, somente versões. Em 2016, a Oxford Dictionaries, departamento da Universidade de Oxford responsável pela elaboração de dicionários, elegeu o vocábulo “pós-verdade” como a palavra do ano na língua inglesa42. Saber versus conhecer Existe, porém, um dado aparentemente conflitante com o que foi dito anteriormente, que no fim corrobora com o que foi dito e piora o quadro que já era bastante ruim. Os jovens de hoje não são ignorantes. Eles sabem muito. Nunca houve uma época com tanta informação disponível e franqueada a praticamente todo mundo que esteja sob a tutela da tecnologia. Um amigo que trabalha com índios no Amazonas mencionou tribos no meio da mata navegando na Internet, usando antena parabólica, tudo alimentado por gerador de energia. Eu mesmo já me surpreendi ao encontrar em pleno deserto do Sinai um beduíno falando num iPhone (e olha que ele tinha sinal). Não, meu amigo, essa não pode ser a época da desinformação. Pelo contrário, todos sabem e sabem muitas coisas. Entre no Google e está tudo ali. O problema é que as pessoas sabem, mas não conhecem. Afinal de contas, saber e conhecer não são sinônimos perfeitos. Excesso de informação não implica necessariamente conhecimento adquirido. Estamos falando de funções cognitivas relacionadas, porém distintas. Conhecimento é quando você reage ao dado recebido – concordando ou discordando dele – e sabe o que fazer com o seu conteúdo,relacionando-o a outros saberes. Já a informação é o recebimento passivo, sem o exercício da reflexão, decisão e consciência. Você tem o dado, mas não sabe o que fazer com ele nem no sentido prático, quanto mais no sentido ético. Por isso, costumo dizer para meus alunos que em sala de aula eles “capturam” o conteúdo, mas não significa que o aprenderam. Isso dependerá do que farão com aquela informação ao deixar a sala de aula. Por exemplo: o carro para na estrada e o motorista fica parado olhando para o motor em pane. Por não saber o que fazer, podemos dizer que ele tem informações sobre o motor, mas nenhum conhecimento a respeito dele. Aí vem o mecânico e conserta o motor, esse sim tem conhecimento acerca dele. Que fale a Wikipédia A Wikipédia é um desses fenômenos sociais gigantescos que geram amor e ódio dos pesquisadores. Há professores que têm um ataque de nervos se o aluno colocar algo retirado dela, enquanto outros não parecem se importar muito. O fato é que a Wikipédia se tornou um caminho sem volta. Somente em 2013 ela tinha mais de 10 milhões de artigos em mais de 200 línguas que, se impressos, dariam uma série de mais de 1.800 volumes com 1.000 páginas cada. E olha que a empresa que a mantêm possui apenas seis empregados! Um dos problemas da coleção é que a linguagem de um acadêmico é ladeada à fala de um menino de 8 anos. Todo mundo coloca informação ali, diariamente. “A Wikipédia é obra da geração que vira noites na Internet”, concluiu Carolina Rossini, uma pesquisadora brasileira em Harvard43. Dizem que o próprio Jimmy Wales, idealizador do projeto, ironizou numa palestra para alunos que ninguém deveria usar sua criação em trabalhos de pesquisa: “Por tudo que é mais sagrado”, dizia ele, “vocês que estão na faculdade, não citem a Wikipédia!”. Porém, se deixar de lado os preconceitos justificáveis com relação a essa enciclopédia livre, posso tirar uma importante informação da Wikipédia que dificilmente viria de outra fonte: ela é uma evidência empírica de como o público está se doutorando em conhecimento perigoso e trivial. Principalmente as novas gerações, repletas de ph.D.s em cultura inútil. Como você sabe, o editor de uma enciclopédia sempre dá mais espaço para os verbetes mais importantes, que, por essa razão, demandam mais texto informativo que os demais. Não dá para falar sobre Karl Marx e Mickey Mouse usando a mesma quantidade de caracteres. Quem define isso, já disse, é o editor-chefe, que, com bom senso, seleciona os temas que terão maior ou menor peso. Pois bem, parece que os editores da Wikipédia – nossa geração de internautas – também tiveram seu critério, porém, diferente do esperado. Ao que tudo indica, as razões da morte de Tiradentes não são tão importantes quanto os motivos de um suposto terceiro divórcio entre Beyoncé e Jay-Z. Os números estão aí para provar. Uma comparação feita pelo jornalista Marcelo Zorzanelli entre o tamanho de artigos (em número de caracteres) sobre ícones da cultura pop e temas importantes do conhecimento humano revela diferenças intoleráveis44: Renascentismo: 16 mil – Pokémon: 47 mil. Homo sapiens: 10 mil – Super-Homem: 27 mil. Tiranossauro Rex: 13 mil – Yoshi: 16 mil. Apóstolos de Cristo: 7,5 mil – Paquitas da Xuxa: 12 mil Deus: 9,5 mil – Jogador Romário: 21 mil Há garotinhos na comunidade que não estão frequentando a escola, mas sabem montar e desmontar um fuzil com a precisão de um fuzileiro naval, manipulam uma droga com a maestria de um químico da Polícia Civil. Enquanto isso, na sala de aula, há muitos que não sabem nada de história do Brasil, mas conhecem tudo sobre o seriado Game of Thrones. E olha que nem entrei em assuntos polêmicos como pornografia, pedofilia e recrutamento para o terrorismo. Aqui já não falo mais da Wikipédia, mas da Internet de um modo geral. Percebeu aonde quero chegar? Estamos formando uma geração de Simpsons da vida real. Como dizia Umberto Eco, a TV já havia colocado o “idiota da aldeia” em um patamar no qual ele se sentia superior. “O drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”45. A dificuldade do professor, pai, adulto de hoje não é apenas inserir bons conteúdos na cabeça do jovem, aluno e filho. É preciso primeiramente liberar espaço, esvaziar o lixo que está tomando precioso espaço cognitivo, e isso dá muito trabalho. Se compararmos a mente a uma casa e o que se ensina a um decorador de ambientes, posso dizer que o desafio pedagógico moderno não é mobiliar ou remobiliar uma sala como faz o designer de interiores num ambiente normal. É retirar o lixo do ambiente, diante de um proprietário acumulador que, semelhante aos acumuladores de verdade, resiste à saída daquele monte de entulho perigoso e sem serventia. O pior é que o mesmo lixo mental que está na cabeça de grande parte da nova geração produz, por consequência, comportamentos doentios. Por isso vemos notícias tão absurdas de jovens se envolvendo com drogas, criminalidade, pedofilia, e toda a sorte de delinquências sociais que tiram o sono de qualquer pai consciente. Somos uma geração de Barts educados por uma geração de Homers. Às vezes me pergunto se não seria ainda pior, ou seja, se não somos uma geração que confunde ensino com educação achando que passar para o aluno o conhecimento de matemática pura, gramática ou biologia fará dele automaticamente um cidadão de bem. É necessário um pouco mais que isso para se formar um caráter. O aluno pode até sair da faculdade sabendo resolver qual a raiz quadrada de X. Mas o que ele responderia diante da questão a seguir? Pus um carro à venda, mas descobri depois disso que ele está para bater o motor e o reparo não ficará barato. Hoje surgiu um senhor querendo comprá-lo. Devo vender o carro assim mesmo, escondendo que o motor não terá muito tempo de vida? Esse tipo de pergunta, infelizmente, não cai no vestibular. Testes de caráter não constituem índices de aprovação para uma universidade que só deseja passar conhecimento, e não valores. 39 Disponível em e . Acessados em 05/10/2017. 40 E.D. Hirsch Jr. Cultural Literacy What Every American Needs to Know (Nova Iorque, Boston: Houghton Mifflin; Publication, 1987). 41 Allan Bloom. The Closing of the American Mind (New York: Simon Schuster Trade, 1987). 42 Disponível em . Acesso em: 16/4/2017. 43 Disponível em . Acesso em: 13/12/2014. 44 Disponível em . Acesso em: 12/08/2017. 45 Disponível em . Acesso em: 28/08/2017. https://oglobo.globo.com/sociedade/religiao/com�-novas�-versoes�-cada�-mes-mercado�-de�-biblias�-continua�-no�-topo�-18098150 http://veja.abril.com.br/entretenimento/curiosidades�-numericas�-da�-saga�-harry�-potter/ https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/11/16/O�-que�-%C3%A9�-%E2%80%98p%C3%B3s�-verdade%E2%80%99�-a�-palavra�-do�-ano�-segundo�-a�-Universidade�-de�-Oxford http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI8389-15565,00-O+TRIUNFO+DA+CULTURA+INUTIL.html http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI8389�-15565,00�-O+TRIUNFO+DA+CULTURA+INUTIL.html https://www.terra.com.br/noticias/educacao/redes�-sociais�-deram�-voz�-a�-legiao�-de�-imbecis�-diz�-umberto�-eco,6fc187c948a383255d784b70cab16129m6t0RCRD.html Capítulo 6 Questionando a universidade Todos sabemos que a instituição hoje chamada universidade surgiu das antigas escolas católicas da Idade Média chamadasuniversitas, termo latino que significa “denominar o conjunto de seres ou coisas que constituem um todo”. Daí o significado primitivo da palavra “universidade” no século 13, que era o de conjunto de mestres e de estudantes congregados na mesma escola e ligados pelos mesmos interesses culturais – Universitas magistrorum et scholarium. Mestres e estudantes formavam, assim, uma corporação, evidentemente comandada em maior ou menor grau pelos ditames da Igreja. Com o passar do tempo, porém, entre idas e vindas dos conflitos locais, expansões econômicas, nascimento do protestantismo e Revolução Francesa, a universidade foi se distanciando do poder eclesiástico e até se rebelando contra ele. Foi um processo natural, uma vez que o mundo estava cansado dos mandos e desmandos em nome de Deus. Os que tinham maior conhecimento, é claro, começaram a alertar o povo a esse respeito. O surgimento das universidades na Europa possibilitou a disseminação do pensamento crítico que acabaria por desencadear o Renascimento e, mais tarde, o Iluminismo. Quem estava à frente disso? Os chamados livres- pensadores – embora esse termo, a rigor, pertença à Idade Moderna. Seu objetivo era propagar uma liberdade de pensamento sem os grilhões do despotismo feudal, monárquico e eclesiástico. Até aí tudo bem. O problema, como pretendo demonstrar neste capítulo, é que esses precursores, ou os que vieram depois deles, exageraram na dose e o que era para ser uma fogueira tornou-se um incêndio incontrolável. Tomaram o ônibus certo e desceram no ponto errado. Literalmente jogaram fora a água suja, a bacia e o menino juntos. Aí deu nisso, a formação de um movimento completamente anárquico, antirreligioso, antideus e antifé. Como definiu Paulo Bitencourt, autor do livro Liberto da religião: o inestimável prazer de ser um livre-pensador: O livre pensamento é o oposto do pensamento dogmático. Logo, nada pode ser mais incompatível com o livre pensamento que crenças religiosas, pois em nada há mais dogmatismo que na religião. […] Só livres-pensadores são pessoas verdadeiramente racionais. Seu ceticismo não as deixa ser engodadas por nenhuma ideologia. Não acreditando em coisa alguma desprovida de evidências, livres-pensadores são imunes também a todo e qualquer tipo de superstição.46 Não pense, contudo, que a história se resume a isso ou que tudo acaba aqui. Estamos apenas no meio do enredo e já temos elementos mais que suficientes para ver que começamos bem, mas tomamos o rumo errado em alguma bifurcação da estrada. O que você verá a seguir é minha argumentação acerca disso. Educar pra quê? O grande educador brasileiro Anísio Teixeira deixou bem claro certa vez qual o papel das universidades na sociedade moderna. Ele disse: “São as universidades que fazem hoje, com efeito, a vida marchar. Nada as substitui. Nada as dispensa. Nenhuma outra instituição é tão assombrosamente útil”47. Concordo em parte com ele. Digo em parte por uma única razão: sua fala parece centralizar nas universidades uma função redentora que, embora válida, não é exclusiva nem prioritária delas. Há outros elementos da sociedade que participam desse processo com importância igual ou superior à universidade. Entre eles estão a família, a ética, as tradições, a fé. Os índios, beduínos, esquimós e aborígenes não têm universidade e sua vida marcha em alguns aspectos de maneira menos estressada que a nossa. Em que pese a superioridade acadêmica dos países de primeiro mundo, tenho certeza de que se fosse escrito um livro de História Geral dos Esquimós, a trama seria bem menos violenta, traiçoeira e sanguinária que a História da cidade universitária de Oxford, Inglaterra. Podemos até ter Harvard, Yale, USP, Unicamp, porém, se perdermos os valores citados anteriormente, perdemos tudo. De que adianta calcular precisamente a relação tempo-espaço e perder os momentos felizes que a vida proporciona? Entender como funciona o mundo subatômico e não compreender a cabeça de um filho adolescente? Desenhar todos os músculos da face e não saber sorrir sem estar maquiado? Não sou um pessimista schopenhaueriano, contudo, temo que o sucesso final se transforme em sucesso fatal. Que o preço do baile fique tão caro que não compense a dança. É por isso que, embora eu mesmo seja um professor, tenho minhas profundas decepções com a exacerbada confiança que se deposita no mundo acadêmico. Minha discordância de Anísio Teixeira continua no fato de que a educação, por si só, por mais elevada e importante que seja, não é garantia de uma sociedade justa e igualitária. Por isso um discurso unilateral símile ao slogan do “educação é tudo” não me fascina tanto. A qualidade educacional da Alemanha nazista era impecável e isso não os impediu de protagonizar um dos maiores massacres da humanidade. Há tempos ouvi falar de uma carta escrita por um sobrevivente de Há tempos ouvi falar de uma carta escrita por um sobrevivente de Auschwitz a um professor. Não sei se a fonte é histórica, o conteúdo, no entanto, é inspirador e nos faz refletir muito ainda que seja fictício: “Prezado Professor, Sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver. Câmaras de gás construídas por engenheiros formados. Crianças envenenadas por médicos diplomados. Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas. Mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim, tenho minhas suspeitas sobre a educação. Meu pedido é: ajude seus alunos a tornarem-se humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e aritmética só são importantes se fizerem nossas crianças mais humanas.” Agora vamos falar de hoje. Você acha que realmente a educação está cumprindo seu papel redentor? Veja, não estou falando em negar seus valores. Longe de mim favorecer qualquer espécie de obscurantismo. Estou questionando a concretização dos ideais humanistas, prometidos por aqueles que criam ser a fé um obstáculo à evolução racional da humanidade. Homer e Deus Volto a falar de Homer Simpson. A noção de valores e a relação com o Sagrado apresentadas no desenho são bastante reveladoras. As aparições de Deus em vários episódios até mereceriam um estudo de caso, a começar do fato de que o Altíssimo é um dos poucos personagens desenhados com cinco dedos. E como por um jogo de sorte ou azar, os encontros entre Deus e Homer sempre se dão num ambiente de sonho, morte e juízo final. Em todos eles surge um clima de reclamação e justificativas. Num momento é Deus que questiona a Homer por que deixou de ir à igreja, em outro é Homer que reclama que o culto é chato e o sermão entediante. Em Thank God It Doomsday, depois de chegar ao céu, Homer vê Marge e seus filhos sendo atormentados pelo diabo no inferno. Então ele tem uma conversa séria com Deus sobre como salvar sua família. Quando Deus se recusa a ajudá-lo, Homer, com raiva, começa a bagunçar o Paraíso até mudar a mente de Deus. Aliás, uma coisa é patente nos roteiros: Homer sempre muda a mente de Deus. O idiota da história tem mais argumentos que o Criador do universo! Seria isso uma indireta sobre a insensatez da fé e a manipulação do Sagrado? Considerando o humor judaico dos roteiristas, pode até ser. A paródia para mim está muito clara. Quando o humanismo se levantou contra a teologia, acreditou-se que a educação e a razão pura seriam a salvação da sociedade. Uma vez educado, o homem estaria livre de deuses, mitos e medos que o aprisionavam em um permanente estado de angústia mental. Logo, quanto mais racional fosse o sujeito, menos religioso se sentiria e, consequentemente, desenvolveria mais capacidade mental para enfrentar os dilemas da vida sem apelações espirituais. Seria, pois, um livre- pensador! Essa continua sendo a bandeira de muitos ícones do neoateísmo. Entendendo o racionalismo como uma barreira às coisas de religião, muitos acadêmicos, mesmo aqueles que não se declaram abertamente ateus, passam para os universitários a ideia de que a razão os ajudará a enfrentarA ignorância nossa de cada dia O despertar da ciência Mudança de rumos E a intuição? Desafiando a exclusividade científica O que faz um cientista? Tocando a realidade Outros questionadores O valor da ciência Capítulo 17 – Tocados pelo absurdo Um encontro com Camus O que é o absurdo? Fuga da realidade Confrontando a alienação A sede continua Capítulo 18 – Sistemas abertos, fechados e isolados Olhe lá fora Real versus circunstancial Obituário de Deus Senso sem sentido Capítulo 19 – O sentido de tudo Que falem os números Ciência do possível? Provável ou improvável? Algo além Capítulo 20 – Supermercado da fé Espiritualidade em alta Sociedade de consumo Mercado e religião O consumidor espiritual Relações de fé Os bonzinhos do inferno Mercenários da fé Pastores assalariados? Teatro e fast-food espiritual Capítulo 21 – O ser e o existir A questão da existência A ideia de Lavoisier Provocações mentais Ser ou não ser? A natureza da existência A mulher que não se conhecia Como conhecer a realidade? Limites semânticos Predicados da linguagem Unicórnios e cavalos Teoria da existência Contrassensos conceituais Coisas não surgem do nada Um conto para ilustrar Propriedades da existência genitora Capítulo 22 – Há alguém lá em cima? A criança e o adulto Voltando a falar do sonho Capítulo 23 – A improbabilidade de Deus Provas que não provam Ciência e senso comum Realidade supraexperimental Preconceitos infundados Dogmatismos científicos Matemática e Deus Geometria e Deus Capítulo 24 – Por que existimos? O bule celestial No princípio era o começo Por que tudo aconteceu? A proposta de Hawking Força ativa, ser pessoal? O movimento Deus das lacunas? Capítulo 25 – Valores morais existem? Tudo é relativo Questão dividida Tudo é permitido Interpretando Dostoiévski Ser crente é ser bom? Buscando o padrão Natureza moral Concluindo Capítulo 26 – Deus absconditus Teologia negativa Tentativa de equilíbrio Calculando o rombo Minha briga com Freud Qual o tamanho do vazio? Eternidade com propósito Capítulo 27 – Deus revelatus Carência contraditória Uma boa notícia A máscara de Deus Capítulo 28 – A singularidade do cristianismo Como é Deus? Audácia cristã O incomparável Jesus E os demais? Capítulo 29 – Igreja, quem precisa dela? “Jesus sim, Igreja não!” Cristo e Igreja Cristo fundou a igreja? Cristianismo ou igreja? A desconfiança continua A opinião dos jovens Evangelismo ateu? Propaganda e Fé E então? Capítulo 30 – A dor da sobriedade O vazio que persiste Realidade intolerável Por que o consumismo não satisfaz? Capítulo 31 – Jesus Cristo, mito ou realidade? Jesus da fé e da história Mudança de rumo Novo conceito de história O questionamento dos teólogos liberais Outras posições Um missionário descrente Uma historiografia de Jesus Cristo Na literatura judaica Fontes não judaicas História real ou ficção? Relatos lendários? O escândalo dos evangelhos Jesus humano Capítulo 32 – Milagres existem? Fé demais não cheira bem O ceticismo de Hume Respondendo a Hume A problemática quântica Milagres e leis naturais Sóbrios ou idiotas? O valor do testemunho Cientistas podem crer? Capítulo 33 – Que dizer da Bíblia? Livro perigoso Dialogando com Shaw A Bíblia na história Por que um livro? Como se produz um best-seller? Obra-prima ou rascunho? Um quase aborto literário Nem clássico nem best-seller Livro imposto? Livro perseguido Preservação única Os Manuscritos do Mar Morto A Bíblia foi modificada? Um livro que transforma Capítulo 34 – Escavando a verdade Como tudo começou Contribuições adicionais Arqueologia do Antigo Testamento Arqueologia do Novo Testamento Qumran e os Manuscritos do Mar Morto Conclusão Capítulo 35 – Seria Deus um genocida? Não seria assim na Bíblia? Como entender tudo isso? “Hold on”! Conhecendo culturas estranhas A mente de um radical Juntando os fatos História patriarcal O caso de Jericó Genocídio ordenado? E as crianças de peito? Deus ordena a violência? Cananitas abomináveis? Capítulo 36 – Deus e o sofrimento Sistematizando o problema Deus em Auschwitz Os que descreram E os judeus? Um caso para se pensar Capítulo 37 – Existe lógica na dor? A onipotência de Deus Um Deus legislador O dilema continua O melhor dos mundos? Capítulo 38 – Um enredo para o caos Um problema milenar O problema do mal na Antiguidade A teodiceia de Leibniz O que é o mal? A existência do mal Afetividade e escolha O caso de Jó A atitude de Deus A parábola do rei piedoso Conclusão – Finalmente em casa Céticos também se fascinam Superando convenções Então fazer o quê? Olhe pra cima Sozinhos ou acompanhados? Escala de Kardashev Roteiro de cinema Deus na escala Obrigado, Kardashev Convivendo com a incerteza Posso falar da eternidade? Referências Introdução Sou demasiado cético para ser incrédulo. – Benjamin Constant Este livro é sobre a existência de Deus, mas não foi escrito, a princípio, para crentes. Os religiosos conservadores até podem lê-lo, e ficarei muito feliz se o fizerem. Porém, a linguagem que uso não será para pessoas que creem e se sentem confortadas com sua crença. Eu me dirijo àqueles que perderam a fé ou pelo menos nutrem sérias dúvidas a respeito dela. É um compêndio para quem duvida (cético), para quem não tem certeza (agnóstico), ou ainda para quem acha que Deus existe, mas está distante de nós (deístas). Ah, também é um livro para ateus. Sim, especialmente os ateus. De princípio devo explicar que a palavra “existência” aqui será usada no sentido semântico de “ser, estar, viver, haver, subsistir, durar”. Digo isso porque é difícil predicar a Deus o sentido etimológico de existir. Segundo o Dicionário etimológico da Língua Portuguesa (José Pedro Machado), existir vem “do latim ex(s)istere [com o sentido de] ‘sair de’, ‘elevar-se de’, ‘nascer’, ‘provir de’”. Sendo assim, do ponto de vista etimológico seria um contrassenso falar em existência de Deus a partir uma perspectiva judaico- cristã, pois, se considerarmos que a ideia de existir é algo extraído de algo, seria mais coerente dizer que Deus não existe, Deus é! Contudo, para evitar desnecessárias questiúnculas vernáculas, valho-me do sentido atual do termo e simplesmente digo que falarei sobre a existência de Deus. Assim, todos entenderão o que digo sem muitas complicações. É claro que, devido ao forte conteúdo filosófico deste assunto, mesclado a discussões provenientes de outras áreas do conhecimento, advirto que este livro será fácil em algumas partes, hilário em outras e pesado num monte delas. Tentei simplificar ao máximo alguns conceitos para torná-los palatáveis ao leitor. Não sei, contudo, se consegui fazê-lo para a satisfação de todos. De qualquer modo, sei que o tema que proponho não costuma atrair pessoas que busquem uma sistematização do óbvio. Logo, o que aparenta ser difícil converte-se num interessante desafio. Você perceberá ao longo da leitura que é não tarefa fácil traduzir em Você perceberá ao longo da leitura que é não tarefa fácil traduzir em linguagem simples os autores citados e as problemáticas sobre as quais refletiram. Principalmente considerando que não os apresentei apenas num exercício de decalque ou de introdução ao seu pensamento. Pelo contrário, fiz uma leitura crítica deles, com concordâncias totais, parciais e, principalmente, discordâncias. Não me abstenho dos temas polêmicos de Deus: Por que ele se esconde? Como acreditar em sua bondade num mundo de tanto sofrimento? Por que um Deus de amor matou e mandou matar tanta gente no Antigo Testamento? Onde ele estava durante o massacre de Auschwitz? Com perguntas assim, você já deve ter percebido que esse será um livro polêmico e provocador. Até tentei ser politicamente correto em tudo que escrevi e, novamente, não tenho certeza se alcancei um bom resultado. É possível que a mesma fala arranque aplausos de uns e vaias de outros. O que importa é que se posicionem. Preciso de leitores racionais, e não do programa de leitura do Google. Fique tranquilo, pois você não verá aqui nenhuma soberba confessional. Meu objetivo primário não é um convencimento sobremelhor a realidade fria e ao mesmo tempo bela como ela é. Os alunos são, assim, ensinados a entender que estamos sozinhos neste mundo, que não existe deus nenhum lá fora, que o sucesso depende exclusivamente de seu esforço e a morte é o fim de todos. Logo, ser “educado” é superar a infantilidade da crença que, pelo medo da morte e do inferno, propõe a existência de deuses e caminhos de salvação. Religião é veneno? Michel Onfray é um desses promotores antirreligiosos. Ele entende que a religião é, ao mesmo tempo, um atentado à inteligência, um sinal de imaturidade psicológica e uma falta de coragem para enfrentar a realidade. Ela procede de uma pulsão de morte, que rejeita tudo que é racional, livre, vivo, feminino e corpóreo. Ao falar de mundo para além do material, a crença em Deus se mostra um obstáculo para a emancipação humana48. A realidade, porém, parece ir à contramão do otimismo de Onfray & cia. Considere meu raciocínio. Não tenho aqui dados que me digam o percentual de alunos ateus, agnósticos e religiosos das universidades. Aliás, sei que tais números variariam de campus para campus, de curso para curso – uma faculdade de Física certamente atrai mais alunos ateus que uma faculdade de Direito. Contudo, a despeito dessa ausência de dados, não creio ser ingênua a impressão de que o ambiente universitário (especialmente das grandes universidades públicas) é amplamente pró- ateísta ou, pelo menos, antirreligioso em seu discurso e comportamento. Pode-se até estudar o fenômeno religioso num ou noutro seminário, mas sempre como movimento social destituído de qualquer valorização intrínseca. O sincretismo entre católicos e religiões afrodescendentes no Brasil colonial é interessante para um trabalho de história ou sociologia, como seria uma avaliação social dos quadrinhos da Turma da Mônica. Já a análise dos ensinos de Cristo com vistas a averiguar sua relevância para o mundo moderno é assunto irrelevante. Como Homer, não nos importamos muito com coisas de Deus. O Bar do Moe, o show do Krusty e as rosquinhas recheadas são mais interessantes que o céu e o culto no domingo (os Simpsons são protestantes). E se Deus vier reclamar conosco, vamos convencê-lo de que ele está errado. Qual a novidade? O ateísmo e o materialismo em universidades certamente não são algo novo. De fato, a confluência de forças econômicas e políticas, na estruturação de um novo modo de produção, na passagem do feudalismo ao capitalismo e na derrubada da nobreza e do clero, estabeleceram a necessidade de construir um novo modo de pensar e agir, distanciando-se do controle teológico, e as universidades foram o território ideal para essa nova ordem. A novidade de hoje é que, diferentemente das gerações passadas, os universitários ateus, agnósticos e humanistas começam a considerar seu secularismo um aspecto importante e fundamental de sua identidade. Até pouco tempo, identificar-se como feminista, LGBT, afrodescendente, pacifista, ambientalista, socialista, libertário ou liberal era o fator primário da vida estudantil. A identidade secular (ateu ou agnóstico) vinha em segundo plano. É isso que está mudando. Identificar-se como assumidamente não religioso está se tornando cada vez mais importante para muitos deles. O que se vê, portanto, é um movimento ou uma tentativa de retorno à ordem do Iluminismo: a subjugação da natureza pelo intelecto e a organização racional da sociedade como base da emancipação final da humanidade. Não se assume, porém, o discurso colonialista do passado, nem a tentativa de controle através da dominação física e cultural. Afinal, todos querem parecer politicamente corretos, e o imperialismo está fora de moda em nossos dias. Porém, mesmo nesta época de pós-colonialismo, percebe-se a existência de discursos centralizadores e ufanistas, que rejeitam qualquer conhecimento extramuros. Persiste uma profunda cegueira histórico- sociológica que, ao atribuir à cultura racionalista exclusividade ou graus de superioridade em relação a outras visões de mundo (principalmente religiosa), reforça o sentido colonizador, messiânico e catequético do racionalismo europeu, isso sem contar que ele romantiza o potencial universalista do antigo Iluminismo e sua episteme como formadora por excelência de verdades e valores. Sei que nem todos concordarão com minha leitura. Certamente que as análises e críticas deste fenômeno variam, especialmente se o referencial teórico for Heidegger, Kant, Habermas ou Bauman. Porém, é inegável que o impacto intervencionista humano gerado pela visão de mundo moderna fracassou em concretizar o otimismo predito pelos primeiros livres- pensadores. A ambição iluminista de dominar a natureza e colocar a humanidade acima dela produziu inevitavelmente consequências desastrosas para a própria humanidade. A Primeira e Segunda Grande Guerra, as catástrofes ecológicas, a especulação financeira e a contínua sensação de colapso da história não foram consequências da fé, mas dos movimentos humanistas modernos. O super-homem de Nietzsche que pensava subjugar a natureza demonstrou-se perfeitamente capaz de escravizar seres humanos seja pelas algemas, pela política, economia ou pelo marketing que conduz ao consumismo desenfreado. Mesmo assim, a velha proposta de estímulo ao ateísmo, ceticismo, uso exclusivamente racionalista da ciência está de volta e com muita força. Acredita-se que a supressão da fé em Deus fará com que os jovens abandonem suas guerras culturais e adquiram uma postura não teísta que contribua para a tolerância e a aceitação de grupos que a religião marginalizou por séculos, devido à sua ênfase no pecado, na castidade, na santificação. Mais uma vez, promete-se um paraíso construído bem aqui na Terra, mas sem Deus, Adão e Eva e fruto proibido. O movimento segue ganhando terreno. O rápido crescimento da Aliança de Estudantes Seculares (SSA – Secular Student Alliance), um grupo de proteção para o ateísmo e humanismo organizado em campi universitários e escolas de ensino médio nos Estados Unidos, demonstra essa realidade. Muitos estão orgulhosamente se declarando descrentes e inspirando outros a fazer o mesmo. É um verdadeiro trabalho de catequização às avessas. Tanto que universidades importantes como Harvard já possuem um serviço de capelania humanista que atua há mais de 40 anos e com vibrante trabalho ativista dentro do campus. Juntamente com a liderança estudantil da Sociedade Secular de Harvard, a capelania fez da identificação cética algo proeminente na universidade. Autor do livro Good Without God [Bom sem Deus], Greg Epstein não esconde que seu intento e de um batalhão de outros intelectuais é levar jovens para o lado do ateísmo, e eles parecem estar conseguindo. Sei que no Brasil a realidade é diferente. Porém, existem predisposições Sei que no Brasil a realidade é diferente. Porém, existem predisposições semelhantes entre o ambiente universitário brasileiro, europeu e norte- americano no que diz respeito ao incentivo do “se é bom com Deus, melhor ainda sem ele”. Admita seu ateísmo e não se envergonhe dele. Há muita gente esperta que concorda com você. Agora que você sabe que Deus não existe, pare de sonhar com o céu e comece a curtir a vida. Ateus mais inteligentes? Uma pesquisa feita há poucos anos nos Estados Unidos deve ter irritado bastante tanto os ateus quanto os teístas. Ela foi conduzida por Tony Jack e Richard Boyatzis, respectivamente professores dos departamentos de Filosofia, Psicologia e Ciências Cognitivas da Case Western Reserve University de Cleveland, Ohio – uma das mais bem-conceituadas escolas privadas dos Estados Unidos. Através de tomografias computadorizadas do cérebro e oito seletivos testes psicológicos, eles avaliaram 527 adultos e chegaram a uma conclusão audaciosa e surpreendente: religiosos são menos inteligentes que ateus assumidos. Os resultados foram publicados na Public Library of Science (PLoS ONE) – uma revista indexada de ciências49. Os pesquisadores partiram do pressuposto de que o cérebro humano, formado por dois hemisférios,geralmente tem suas distintas habilidades localizadas em uma ou outra região que, por sua vez, demonstra mais estímulo se o sujeito for melhor naquela área do que em outra. A linguagem e a inteligência lógica, por exemplo, relacionadas à capacidade de utilizar fórmulas, criar raciocínios lógicos, interpretar símbolos e resolver problemas matemáticos, geralmente são observadas em pessoas que utilizam mais o hemisfério esquerdo do cérebro. Estes seriam os matemáticos, engenheiros e cientistas. Já o hemisfério direito é mais criativo, intuitivo, relacionado a capacidades visuais. Não se esqueça, porém, de que, mesmo com essas predominâncias, os hemisférios trocam constantemente informações e atuam sinergicamente na maioria absoluta das vezes. Disto posto, os resultados foram, como adiantei, bastante polêmicos. Os religiosos demonstraram menos inteligência lógico-matemática e analítica que os ateus. Estes últimos, no entanto, tenderam a pensar de forma manipuladora, com frieza e pouca simpatia pela dor do outro. Ateus estariam mais propensos a repelir a metade social do cérebro, voltando-se a um comportamento mais impulsivo e autocentrado, semelhante ao dos psicopatas. Já os religiosos teriam menos afeição à postura analítica, o que também acarretaria uma perda do nível de inteligência. Os autores reconhecem o risco do uso do termo “psicopata” na redação do estudo. Sua análise, contudo, é puramente laboratorial, sem nenhum viés preventivo, rotulante ou generalizador de comportamentos. Há muitos ateus empáticos e sociopatas religiosos. Eles ainda citam, por exemplo, o livro de Baruch Aba Shalev sobre os 100 anos do Prêmio Nobel que traz todos os ganhadores do prêmio desde 1901 até o ano 2000. Ali 89.5% dos laureados eram fiéis de uma religião, ao passo que somente 10.5% eram ateus ou livres-pensadores. Ambiente lastimável Caso as pesquisas de Jack e Boyatzis sejam procedentes, fico me perguntando que resultado encontraria num mundo universitário repleto de alunos e professores ateus. Os dados a seguir oferecem uma pista, e já adianto que não são nada fáceis de ser digeridos. Todos foram retirados de pesquisas publicadas em revistas indexadas. Antes de apresentá-los, porém, é importante corrigir algo que certamente passará pela mente de muitos. Não devemos confundir passeatas, quebradeiras, greves e protestos como sinônimos perfeitos da defesa ética de valores. Colocar pneus queimados na portaria da faculdade depois que uma menina foi estuprada no estacionamento é como fazer cócegas na pata de um elefante esperando que ele se renda ao domador. Temos de ser mais inteligentes que isso e abolir outras práticas infelizmente normais de incentivo à imoralidade sexual que permeiam os corredores universitários sem que ninguém faça qualquer protesto a esse respeito. Nenhum dos que protestavam com palavras de ordem contra o governo e a polícia pelo estupro da jovem estudante teve coragem de arrancar do quadro de avisos o cartaz do diretório estudantil que marcava para a próxima semana a noite da “calcinha molhada” com direito a muita “pegação” e “beijos” enquanto a bebida durasse – isso não é uma parábola, nem um acontecimento isolado; aconteceu de verdade e mais de uma vez! Se um religioso fosse àquelas classes para ensinar valores morais cristãos em relação a sexo, aborto e conceito de família, seria certamente hostilizado, chamado de falso moralista, chauvinista ultrapassado e antifeminista. Caso a reitoria insistisse em deixar que ele continuasse seu ciclo de palestras dentro do campus, líderes feministas apareceriam na porta com faixas, gritos de ordem e peitos à mostra ostentando frases do tipo: “o corpo é meu, faço com ele o que quiser”. Enquanto isso, o cartaz-convite da festa da “calcinha molhada” continua lá fora, nenhum diretório acadêmico protesta contra ele. Pelo contrário, retirá- lo seria uma censura, uma volta à ditatura militar. A celebração da sensualidade, da farra e da “pegação” aguarda os mesmos notórios estudantes, que, poucos dias depois, estarão na portaria da faculdade protestando por causa do estupro da colega de sala, e não me diga que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Qualquer estudante sabe que ações humanas são interligadas e geram consequências. Os acontecimentos históricos ocorrem numa trama de ações e reações em cadeia. O narcotráfico jamais será algo justificável. No entanto, quando um adolescente do morro se torna um traficante perigoso, não creio ser justo condenarmos isoladamente sua conduta ou a tratarmos como problema social, desconsiderando a gama de artistas, jogadores de futebol, cantores e outras figuras midiáticas tão idolatradas que usam drogas e acabam influenciando a conduta dos jovens. Desvios de conduta continuam e continuarão sempre sendo algo condenável, contudo, não devo me surpreender quando o comportamento de um grupo sinaliza os frutos de uma condição social prévia de incentivos àquela determinada conduta. Seria hipocrisia condenar os influenciados e continuar adulando os formadores de opinião. Queria que tudo o que escrevi anteriormente fosse apenas uma invenção de minha cabeça, mas são episódios reais. Sabendo, no entanto, que você certamente gosta de fatos, deixe-me apresentar alguns dados que foram coletados e publicados em revistas indexadas. Um estudo feito pela Universidade Federal de Alfenas e a Escola de Enfermagem da USP de Ribeirão Preto revelou que universitários do sexo masculino compartilham normas de seu meio sociocultural, que valorizam o uso de álcool e/ou outras drogas como forma de lidar com as exigências e o estresse da vida universitária, criar identidade e ter pertencimento neste contexto social, reforçando a influência da cultura50. Provavelmente por causa disso, o uso de substâncias psicoativas (SPA) lícitas (bebidas alcoólicas, tabaco, medicamentos com potencial de abuso) e ilícitas (cocaína, maconha, ecstasy, entre outras) entre jovens universitários brasileiros é o dobro da taxa da população em geral, concluiu outra pesquisa da Unicamp51, ou seja, posso cientificamente afirmar que universitários são a parcela da população que mais consome drogas. Isso é terrível, pois combater o narcotráfico com armas ignorando aqueles que consomem e incentivam o consumo de seu produto é como encher uma banheira com o ralo aberto. Nunca alcançaremos o objetivo! Dados adicionais publicados no Jornal Brasileiro de Psiquiatria52 demonstraram que o uso de drogas na vida é mais frequente entre os estudantes norte-americanos, que relatam usar mais tabaco, tranquilizantes, maconha, ecstasy, alucinógenos, cocaína, crack e heroína que os universitários brasileiros. Em contrapartida, os universitários brasileiros relatam usar quase duas vezes mais inalantes do que os universitários norte- americanos. Esse padrão se repete ao se analisarem as diferenças intragênero. A isso soma-se que os universitários brasileiros parecem se envolver com mais frequência no uso de bebidas alcoólicas, maconha, tranquilizantes, inalantes, alucinógenos e anfetamínicos que seus pares da população geral não universitária. Uma série de outras pesquisas demonstrou empiricamente que a entrada na universidade se tornou um período crítico de vulnerabilidade propício ao começo e à manutenção do uso de álcool e outras drogas. Veja, isso não significa dizer que religiosos são moralmente melhores do que ateus. O ponto aqui é outro. Se a Universidade deseja mesmo, através de um discurso excludente de Deus, fazer os jovens moralmente melhores, algo parece não estar funcionando nos resultados finais. Segundo o Levantamento Nacional sobre Uso de Álcool, Tabaco e Outras Drogas entre Universitários, realizado pelo Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad) e o Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE), 49% dos universitários pesquisados já experimentaram alguma droga ilícita pelo menos uma vez e 80% dos entrevistados commenos de 18 anos já afirmaram ter consumido bebida alcoólica. Os autores do estudo apontaram um elemento adicional que me chamou a atenção. A população universitária seria uma amostra da população geral interessante de ser estudada epidemiologicamente, pois a saúde mental dos estudantes pode ser um fator diferencial nas Instituições de Ensino Superior (IES)53. Infelizmente, concluíram os autores, esse mesmo ambiente universitário é pródigo em facilitar algumas condutas que venham a lhes proporcionar problemas futuros, como o consumo abusivo de álcool e outras drogas, além da adoção de comportamentos de risco. Quem incentiva? Não quero promover nenhuma caça às bruxas nem ser leviano em acusações improcedentes. Contudo, minha mente inquieta não resiste em questionar se os livres-pensadores que assumiram a paternidade universitária, expulsando Deus da sala de aula, estariam fazendo seu dever de casa como educadores. Lembre-se, a juventude de hoje mais do que nunca precisa de modelos morais de vida. Informação por informação eles buscam no Google. Muitos dos que entram no curso superior vêm de famílias que ensinavam valores que agora são questionados como conceitos pré-modernos. Outros vêm de lares desestruturados e, carentes de afeto, buscam igualmente nos professores um referencial de vida e afetividade. Em ambos os casos, é dever do docente ser mais que um mero “transmissor de conteúdos”. Ele se torna um mentor para muitos jovens que ainda estão em processo de formação. Tarefa, é claro, que não deve ser confundida com a figura de um “doutrinador”, que, ultrapassando o papel docente, torna os alunos pequenas extensões de sua vaidade acadêmica. O que vemos, no entanto, são jovens expostos pela mídia e por muitos acadêmicos a uma enxurrada de apologias imbecis como uso normal de drogas, sexo livre, coisificação da mulher como objeto sexual, vulgarização da fé religiosa e desdém do Sagrado. Depois culpam um sujeito indeterminado pelos males da sociedade ou insistem que a superação das antigas tradições trará a verdadeira redenção humana. Recentemente um canal de TV brasileiro puniu um famoso ator por assediar uma camareira no horário de trabalho. A suspensão do artista se deu em função da denúncia da funcionária e da repercussão do assunto nas redes sociais. Conquanto seja completamente repreensível a atitude nada apreciável do dito galã, fico me perguntando se o que ele fez não foi apenas um reflexo de uma prática comum naquele ambiente e que todos considerariam perfeitamente normal se não tivesse tido a repercussão que teve. Sua punição foi, na concepção de muitos, apenas um quadro “para inglês ver”. Se não fosse a opinião pública, ninguém faria nada. Aliás, a própria camareira foi hostilizada por outras colegas por ter denunciado o sujeito, e a TV demonstrou uma atitude no mínimo dúbia ao punir o ator e fazer apologia do mesmo ato em várias de suas novelas, minisséries e propagandas. Vivemos uma sociedade bipolar que idolatra Nelson Rodrigues e dramatiza repúdio pelas mesmas situações que constroem seus romances – aliás ele nunca reprende as situações que recria, parecem coisas normais de uma sociedade moderna que superou os tabus da moralidade patriarcal. Saindo da TV para o mundo universitário, veja o que aconteceu: uma festa, segundo testemunhas, regada a drogas, nudez e rituais de satanismo foi a atração máxima do campus de uma universidade pública brasileira cujo nome não direi, mas sei ter sido a mesma a barrar um evento religioso sob a égide de que ali é um espaço público não confessional. Pois bem, estudantes da mesma instituição promoveram um evento chamado “Xereca Satânik” cujo ponto alto foi a sutura ao vivo de uma vagina como forma de protesto a favor do movimento feminista. Quando o escândalo foi parar na imprensa, um grupo de alunos e professores protestou dizendo que aquele rito foi uma forma legítima de denunciar os constantes casos de estupro ocorridos na própria universidade e protestar contra a onda de conservadorismo imbecil que ainda existia na sociedade, especialmente nas igrejas. Sei que nem todos ali concordaram com esse argumento, mas não aceito a explicação de que se trata de um ato isolado. Os alunos compareceram em massa a algo que já estava anunciado deste jeito, com todas as letras na faculdade, no mural dos diretórios acadêmicos e nas redes sociais. Não havia muitos elementos surpresa nem ocultamento do propósito do encontro. Todos sabiam do que se tratava e do gosto duvidoso daquela temática. O comportamento dos estudantes certamente refletiu os valores ou (des)valores que aprenderam na mídia e em sala de aula. Tanto que veja a nota desconcertante do chefe de departamento em que o evento foi promovido: “Embora não tenham sido feitos ‘rituais satânicos’ e o título do evento fosse essencialmente provocativo (ao contrário do que o jornalismo marrom afirmou), precisamos dizer que não haverá de nossa parte qualquer censura a atos do gênero”. Sempre gosto de dar fontes das citações que uso, mas neste caso abrirei uma exceção para não expor ainda mais a instituição envolvida. Só sei que o caso é dramático e não é único. Que dizer aos pais que confiam seus filhos a uma instituição pública, na expectativa de que aprendam novos valores e adquiram conhecimento que os torne cidadãos de bem para a sociedade? Durkheim afirmava haver três elementos na moralidade humana: o espírito de disciplina, o apego aos grupos sociais e a autonomia da vontade54. O primeiro seria primordial já que a moral é um conjunto de regras a serem seguidas. O segundo seria importante, pois é o grupo que estimula o indivíduo à prática. O terceiro seria desejável no sentido de que é contrário à imposição de regras à consciência do indivíduo. Após esclarecer estes elementos, Durkheim se pergunta como construir a moralidade na criança, e eu acrescentaria, “também no jovem”. Curiosamente ele não fala dos pais, mas do professor a quem compara com o sacerdote das antigas sociedades patriarcais, que atuava em nome de Deus. Suas regras não estariam em discussão, pois ele (professor/sacerdote) é o representante das leis, uma autoridade. Só a autoridade da regra será maior que a sua. Defende, portanto, uma sanção expiatória, necessária para simbolizar uma defesa moral que leve a denunciar, condenar e punir o erro, sem, é claro, recorrer à violência corporal, que para Durkheim seria um despotismo. Se Durkheim estiver certo, o silêncio e a “não censura” de acadêmicos que preferem não se passar por conservadores pré-modernos são deploráveis. Justamente por isso, o posicionamento dos alunos diante do uso de drogas e entorpecentes é desconcertante: das representações dos universitários de tecnologia, 60% foram favoráveis ao uso e 40% desfavoráveis; dos da área de saúde, 44% tiveram um posicionamento favorável, 15% foram desfavoráveis e 41% neutros. Das representações dos universitários da área jurídica, 32% foram favoráveis e 68% desfavoráveis. Modelos de vida? Admito, no entanto, que o peso da crítica não deve cair somente em cima dos docentes. Os próprios pais dessa nova geração já se encontram adaptados aos modismos da atualidade. A ordem do dia é preparar jovens para um mundo de realizações pessoais, onde somente pessoas bem-sucedidas são felizes. Veja se não é essa a imagem que o mundo midiático nos passa. As meninas podem até admirar Madre Teresa de Calcutá, e os rapazes, Mahatma Gandhi, mas na hora de escolher seus modelos de vida preferem se parecer com Beyoncé ou Justin Bieber. O ideal de vida não é ter a renúncia de São Francisco, e sim o sucesso de Mark Zuckerberg, fundador do Facebook. Gandhi pode até ter mobilizado milhões e pacificado uma nação. E daí? Sua vida foi chata, ele não teve os sete bilhões de dólares de Zuckerberg, nem os 500 milhões de seguidores do Facebook. Logo, quem você acha está sendo a inspiração e o modelo de vida para muitos de nossos jovens? Com quem eles querem se parecer? A quem estão sendo incentivados a imitar? Um santo ou um pop star? É por isso que algunsdiscursos de prevenção às drogas parecem tão patéticos. Descriminalizar, tratar o assunto como saúde pública, combater traficantes, aumentar a fiscalização nas fronteiras, conscientizar através de cartazes e frases… Já estamos cansados desses chavões. Todos os esforços, destituídos de um efetivo tratamento da alma humana que permanece doente, soam como a história do homem que pega a mulher com outro no sofá e queima o sofá achando que assim resolverá o problema. Veja que quadro elucidativo temos nestes dados: quanto às causas do uso de maconha, a mesma enquete citada mais anteriormente demonstrou que a maioria dos estudantes aponta a fuga dos problemas como motivador para esta conduta: 48% da área de tecnologia, 49% da jurídica e 61% de saúde55. E, antes que eu seja mal-entendido, meu discurso aqui nada tem a ver com a polêmica sobre a liberação do uso medicinal da Cannabis. Estou falando de pessoas drogadas, não de uso medicamentoso de uma planta. Disto posto, pergunto: Não seria mais sensato usar a energia gasta na defesa da legalização das drogas em trabalhos de ajuda espiritual e emocional? Uma abordagem assim talvez ensinaria melhor os alunos a enfrentarem os problemas em vez de fugir deles através de um entorpecente ou uma bebedeira. E não estou falando de autoajuda – as livrarias das faculdades estão lotadas de livros assim e eles também não estão resolvendo o problema. Refiro-me a uma abordagem global que envolva autoajuda, heteroajuda e, a tão negligenciada, “alto” ajuda, isto é, a ajuda que vem de Deus. Goodbye, Deus Curioso que quando a chamada “utopia do paraíso” ainda era uma promessa a ser considerada, milhares de cristãos não tiveram medo de enfrentar a fome, a miséria e até a ameaça de morte, pois criam que uma força sobrenatural estaria com eles nos momentos mais difíceis. Por isso alguns mártires morreram cantando, e as primitivas catacumbas cristãs estão repletas de frases de esperança e otimismo. Mas alguns mais espertos resolveram contar para os jovens que tudo isso é mentira. Não há céu, nem força divina alguma operando em favor deles. Lembrando a mencionada pesquisa de Jack e Boyatzis, o jeito ateu de pensar – valorizando mais a razão e menos a interpessoalidade – gerou universitários órfãos que não sabem o que fazer diante dos problemas do dia a dia. Segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino Superior (ANDIFES) cerca de 15% dos universitários passam por períodos de depressão em algum ponto do curso, enquanto a média para jovens de até 25 anos fora da universidade fica em torno de 4%. Jovens universitários têm de 3 a 4 vezes mais chances de se matar do que jovens fora da faculdade e esse número pode ser ainda mais alto entre alunos das áreas de saúde56. Se, como afirmou Edwin Shneidman, ateu e especialista em suicidiologia, “[a] educação é o item mais importante na diminuição dos índices de suicídio”57, das duas uma: ou algo está errado com a educação que ofertamos ou ele falou uma grande bobagem. Tive acesso a um estranho livro intitulado O dicionário de suicidas ilustres, preparado pelo artista plástico J. Toledo. Chamou-me a atenção o fato de que a grande lista de suicidas era composta por artistas, escritores, filósofos, médicos e psicanalistas, a maioria dos quais, livres-pensadores. Depois fiquei surpreso em descobrir que o próprio organizador da obra, J. Toledo, resolveu, ele mesmo, dar cabo à sua vida. Não me tome por insensível ao mencionar esse assunto do suicídio. Quem o pratica por problemas emocionais é uma vítima, não um delinquente. Contudo, não seria esse compêndio, somado às filosofias que esses intelectuais defenderam e aos posicionamentos morais ensinados em sala de aula, um espelho sobre o qual nossa juventude drogada, prostituída e suicida reflete sua própria imagem? Temas antes valorizados como a base da sociedade, hoje são vulgarizados. Viraram caricatura moralista. Em seu lugar promove-se uma exagerada adaptação de valores ao gosto do mundo, da moda e da cultura que nos rodeia. Em nome da sobriedade e da prudência não queremos ser marginalizados, ninguém quer ser esquisito. A ordem do dia não é lutar contra o mundo, mas adaptar-se a ele. Nesse sentido, até mesmo alguns princípios hoje defendidos, como o famoso “politicamente correto”, caem na ambiguidade de se saber se são defendidos porque o sujeito pensa realmente daquele jeito ou foi obrigado a crer assim pela circunstância que o rodeia. Portanto ele hoje defende a igualdade de raças, porque é louvável pensar desse jeito (apenas uma minoria de loucos continua professando um racismo declarado). Contudo, se o mesmo indivíduo vivesse no Brasil colônia, provavelmente estaria defendendo a escravidão dos negros, contrário aos ideais de uma minoria abolicionista. “Caia fora, Deus! Você e sua corja de teólogos conservadores não têm lugar na universidade!” E Deus, educadamente, saiu, deixando o lugar para o discurso exclusivo do materialismo e da comprovação científica. As crenças religiosas tornaram-se questionáveis cientificamente e foram provadas como inválidas. O homem poderia finalmente ser dono do seu destino, escolhendo o que é certo e errado. Porém, por uma triste ironia da história, o céu não foi o único a ficar vazio. Como bem resume o colunista Antônio Prata: Nós expulsamos os deuses, mas preenchemos o vazio com um antropocentrismo tão autoconfiante quanto ingênuo. Cremos que com sismógrafos e exercícios físicos, com boas políticas e baixo teor de gorduras, com os algoritmos corretos e pensamento positivo, estaremos livres de todo o mal.58 Os índices, no entanto, demonstram que o tal otimismo de um mundo melhor sem Deus não passou de devaneio. Estávamos bêbados quando anunciamos esta besteira. • • • • • • Reprovados! O campus universitário, forjado para ser um oásis do conhecimento, tornou-se o deserto das questões existenciais. Os livres-pensadores tornaram a juventude livre de Deus e os aprisionaram em seus próprios dramas. É no mínimo irônico que, com tanta informação filosófica e racional, os problemas pessoais precisem ser resolvidos à base de álcool e drogas. Não entendo como justamente aqueles que defendem a bandeira da autonomia racional (daí o nome livres-pensadores) fabriquem tantos repetidores de conceitos alheios. Pois, como se não bastassem os terríveis dados apontados anteriormente, testes mostraram que alunos e egressos de famosas universidades ainda sofrem de muitos problemas cognitivos tais como: Dificuldade de expressar ideias próprias, criatividade; Dificuldade de se expressar por escrito; Produção de texto e inteligência fluída; Dificuldade de entender o que leram (analfabetismo funcional); Dificuldade de reflexão; E, a já comentada, dificuldade de lidar com questões existenciais.59 Já que mencionei tantos exemplos de besteirol que fazem sucesso travestidos de intelectualidade, nada mais justo que citar o “grande” Homer Simpson – filósofo dos novos tempos, que nos brindou com mais uma pérola de “sabedoria”: “O problema das consequências”, dizia ele, “é que elas vêm depois”. Aforismo redundante que não deixa de ser algo a se pensar. 46 Paulo Bitencourt. Liberto da religião: o inestimável prazer de ser um livre-pensador (Portuguese Edition), eBook. 47 Anísio Teixeira. Educação e universidade (Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1988). 48 Michel Onfray. Traité d’athéologie – Physique de la Métaphysique (Paris: Grasset & Fasquelle, 2005). 49 Jack AI, Friedman JP, Boyatzis RE, Taylor SN. “Why do you Believe in God? Relationships between Religious Belief, Analytic Thinking, Mentalizing and Moral Concern”, PLOS ONE (11[5], 2016): e0155283. Disponível em . Acesso em: 28/08/2017. 50 Disponível em . Acesso em: 28/08/2017. 51 Disponível em .Acesso em: 28/08/2017. http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0155283 https://doi.org/10.1371/journal.pone.0155283 http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v50n5/pt_0080-6234-reeusp-50-05-0786.pdf https://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/uso�-de�-drogas�-por�-universitarios 52 Disponível em . Acesso em: 28/08/2017. 53 Disponível em . Acesso em: 28/08/2017. 54 É. Durkheim. Ética e sociologia da moral (São Paulo: Landy, 2003); idem. Sociologia, educação e moral (Portugal: Rés, 2. ed., 2001). 55 M.P.L. Coutinho; L. F. Araújo; B. Gontiès. “Uso da maconha e suas representações sociais: estudo comparativo entre universitários”, in Revista Psicologia em Estudo (Maringá: set./dez. 2004): 469-477. 56 Disponível em ; . Acesso em: 28/08/2017. 57 Apud Paula Fontenelle. Suicídio: o futuro interrompido (São Paulo: Geração Editorial, 2008). 58 Folha de São Paulo, 23/03/2011, p. A16. 59 M.C. R. A Joly; A. A. A. Santos; F. F. Sisto (orgs.). Questões do cotidiano universitário (São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005). http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0047-20852008000300005&script=sci_abstract&tlng=pt http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0047�-20852013000300004&script=sci_abstract&tlng=pt http://www.jornalismounaerp.com.br/blog/2017/02/13/indice�-de�-depressao�-e�-maior�-entre�-universitarios/ http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v25n3/a05v25n3.pdf Capítulo 7 Crendices e devaneios Em 1992 Steve Martin estrelou uma comédia intitulada Leap of Faith [O pulo da fé]. A versão brasileira não poderia ter um título melhor: Fé demais não cheira bem (intraduzível para o inglês). Eles mostraram de maneira bem-humorada a tragédia de pregadores charlatães que brincam com a fé do povo. Interessante que o enredo termina com um desfecho surpreendente e até sério; uma demonstração real de fé que mexe com os brios do falso pregador. É um filme velho, mas que vale a pena assistir. O charlatão e o crédulo: eis uma mistura perigosa que resulta em muitos estragos sociais, especialmente para as religiões. Apesar do intercâmbio popular, crente e crédulo não são a mesma coisa. Machado de Assis os diferenciou muito bem ao descrever Rubião – personagem do romance Quincas Borba – como um sujeito “mais crédulo que crente”60. Até as raízes etimológicas são distintas: crente vem do latim credente, que significa aquele que crê, confia, a partir de uma evidência racional. Já o adjetivo crédulo vem do latim credúlu e se refere ao ingênuo que crê facilmente em qualquer coisa. Não pense que charlatanismo e crendices são “privilégios” apenas do mundo religioso. A sociedade como um todo está repleta de abusos e crendice na política, nas ideologias, na mídia, no marketing e também na academia. Nem mesmo cientistas especializados estão imunes à possibilidade de um devaneio particular. Veja o caso do físico René Prosper Blondlot, conforme aparece no The Skeptic’s Dictionary [Dicionário dos céticos], editado por Robert Todd Carroll61. Sua amarga experiência ocorreu no início do século 20, em plena era das grandes descobertas relativas ao átomo. Na ocasião, respeitados cientistas pesquisavam as características ocultas da matéria, e a descoberta dos raios X havia sido uma delas. Blondlot, que vivia na França, anunciou num congresso em 1903 que, enquanto tentava polarizar os raios X, acabou descobrindo um outro raio que emanava de qualquer tipo de material, exceto madeira recém-cortada e metais manipulados. Esse raio era invisível e só poderia ser detectado em forma de espectro, quando irradiado em direção a uma amostra de sulfito de cálcio. Ao receber a radiação, esse composto químico emanava um leve brilho percebido através de um complicado aparelho de detecção inventado pelo próprio Blondlot. Sua descoberta foi batizada de Raios N e causou um tremendo furor no meio científico. Curiosamente alguns físicos “confirmaram” a existência do tal raio em seu laboratório de pesquisa. Outros, por sua vez, buscavam meios de construir novos aparelhos capazes de detectar o suposto brilho. Por fim, a revista Nature enviou o especialista Robert W. Wood, da Universidade Johns Hopkins, para acompanhar o experimento ao lado de Blondlot. Wood suspeitava que os Raios N eram uma ilusão, então usou um truque simples para enganar o colega. Sem que ninguém percebesse, ele retirou do aparelho o prisma que possibilitaria ver qualquer luz que emanasse da substância. Sem essa peça a máquina não poderia funcionar. O resultado foi assustador: mesmo sem o prisma, Blondlot continuava vendo o brilho da amostra. Um brilho que não existia. Pior, o assistente de Blondlot também afirmava estar vendo o brilho. Na mudança de uma experiência para outra, pois o processo era repetido várias vezes, Wood recolocou o prisma e pediu ao avaliador para avaliar. Esse, contudo, pensou que Wood estaria tirando a peça, quando na verdade estava recolocando. Resultado: mesmo com o prisma de volta à máquina, tanto o assistente quanto Blondlot afirmavam não estar vendo mais o espectro. Um claro sinal de alucinação coletiva. Quando o truque veio à tona, o cientista francês entrou em depressão, ficou louco e acabou morrendo atormentado pelo amargo incidente. E os outros que também disseram ter visto os tais Raios N? A conclusão dos especialistas é que neste caso não se trata de má-fé ou desonestidade científica. Aqueles acadêmicos foram vitimados por uma autossugestão que os levou a ver mais que havia. Às vezes a vontade de se chegar a um determinado resultado é tão grande que o pesquisador é levado a ver coisas que na verdade não estão ali. Devemos tomar muito cuidado com isso, pois genialidade e acúmulo de estudos não constituem um salvo-conduto contra equívocos e neuroses. Pelo contrário, podem até contribuir com a demência em alguns casos. A história está repleta de homens e mulheres talentosos que passaram a vida trafegando por um vértice em que loucura e genialidade pareciam caminhar de mãos dadas. Veja os exemplos de Di Cavalcanti, Van Gogh, Nietzsche, apenas para citar alguns. Se me permite uma dica, mais do que uma vida de clausura numa biblioteca entupida de livros e computadores plugados na Internet, o segredo da clareza mental está nos remédios da natureza: alimentação e descanso equilibrados, abstinência de drogas lícitas e ilícitas, exercícios físicos regulares, ar puro e, principalmente, paz de espírito. Mesmo casos mais graves, que demandem a ação de um especialista, podem ser amenizados ou até curados pela aquisição de hábitos saudáveis. Já diziam os latinos: mens sana corpore sano – a mente estará sadia se o corpo estiver sadio e vice-versa. Fideísmo religioso A manipulação religiosa da fé é algo que me irrita profundamente. Conheço pessoas sinceras que nutrem reservas quanto à crença espiritual por causa da má conduta de um religioso ou devido a uma propaganda enganosa feita por um charlatão em nome de Deus. Não sou perfeito e confesso meu receio diante de pessoas “certinhas demais”. Contudo, tenho constantemente a preocupação de não ser um obstáculo entre Deus e um não religioso sincero de coração. Afinal de contas, a vida dos religiosos pode ser a única Bíblia que muitos estão lendo fora das Igrejas, e acredito que alguns se tornem ateus, simplesmente porque não puderam aceitar a caricatura de Deus que foi rascunhada para eles. Não é por menos que a filosofia da “Morte de Deus”, expressa por Nietzsche, termina com um louco gritando pelos becos de um mercado: “Deus morreu! Nós o matamos! Todos nós somos seus assassinos […] e o que são estas igrejas senão túmulos e sepulturas de Deus?”62. O sentido expresso por Nietzsche parece ser o de que a religião criou a ideia de Deus e a própria religião contribuiu para odemolir. Pense num curandeiro dizendo que as pessoas precisam ter fé inquestionável para serem curadas por seu intermédio. Ele pode até ter uma Bíblia na mão e gritar o nome de Jesus que isso jamais será fé; trata-se, na verdade de um fideísmo. Você já ouviu falar nesta palavra? Fideísmo é o sentimento do crédulo, é uma fé cega que ignora ou minimiza o papel da razão para se chegar à verdade suprema. Não há demanda alguma por evidências; o “fideísta” acredita por acreditar. É como um místico apostando suas cartas num amuleto. Ele realmente acredita, sem fundamento algum, que o colar de ossos colocado no pescoço livrará seu corpo das doenças e das flechas do inimigo. Para o charlatão, não poderia haver situação mais confortável, pois, caso alguém não seja curado (e muitos certamente não o serão), ele pode simplesmente dizer que o milagre deixou de ocorrer, não porque ele mesmo fosse um impostor, mas porque faltou fé da parte daquele que buscava a cura. O antigo historiador Heródoto nos conta que no século 5 a.C., Creso, rei da Lídia, fora ameaçado por Ciro II, rei da Pérsia, que acampou com seus soldados na margem leste do Rio Hális. Na dúvida se deveria enfrentar o inimigo ou permanecer seguro na cidadela de Sardes, Creso consultou uma pitonisa (ou seja, uma vidente) do Oráculo de Delfos. Envolta pelos vapores que emanavam do chão, a resposta da médium foi: “Se cruzares com teu exército o Rio Hális, destruirás um grande reino”. Animado pela mensagem que cria vir direto do deus Apolo, Creso saiu em combate e foi vergonhosamente derrotado. Quando cobrou do Oráculo uma explicação pelo acontecido, a vidente justificou que a profecia se cumpriu de fato. O grande reino a ser destruído era o dele e não o de Ciro II63. Esse era um homem de muita fé, pena que fé na pessoa errada. O absurdo da fé Uma frase latina, erroneamente atribuída a Tertuliano, pode ser mencionada como a bandeira do fideísmo: credo quia absurdum est (Creio porque é absurdo)64. Os fideístas apelam demais para o sentimentalismo em detrimento da razão. A ideia é: “Deus disse, eu creio, isso é suficiente”. O problema é que eu posso tomar esse mesmo raciocínio para acreditar em absurdos. Não creio que a razão possa substituir a fé ou ter prioridade em relação a ela, mas também não vejo como poderia compreender e aceitar as proposições da fé (especialmente aquelas reveladas por Deus) senão através do exercício das habilidades racionais. O fideísta crê para crer mais ainda – é um círculo vicioso. Eu, pelo contrário, prefiro “crer a fim de entender” (credo ut intelligam). Deus seria um tirano se nos obrigasse a crer 100% no vácuo, sem um mínimo de evidências que nos fizesse reconhecer que a voz que ouvimos é realmente dele, e não de nossa imaginação doentia. Certa vez, ao dar uma entrevista num programa de talkshow, falei sobre o fideísmo e o entrevistador, que era Jô Soares, perguntou-me se a fé em Jesus demonstrada pelo centurião romano não seria uma espécie de fideísmo. Ele estava se referindo ao episódio descrito em Mateus 8:5-13, em que um chefe do exército imperial pede a Cristo que cure seu servo a distância, sem a necessidade de ir à sua casa. Jesus disse que o servo já estava curado e ele saiu crendo nisso, mesmo sem evidência alguma. Seria, portanto, este episódio um exemplo de fideísmo “em Jesus”? – provocou o apresentador. O que Jô Soares não havia levado em conta, e eu mostrei isso em minha resposta, é que o centurião tinha sim muitas evidências de Jesus. Ele morava nas vizinhanças de Cafarnaum e certamente já tinha visto muitos milagres realizados pelo Nazareno. Na versão de Lucas (que difere um pouco da de Mateus), é dito que ele tinha ouvido falar de Cristo e, por isso, pediu aos judeus mais velhos que levassem seu pedido ao Mestre. Ele jamais faria isso se não soubesse a quem estava recorrendo. Era, portanto, uma fé legítima que se baseava numa evidência – o comportamento exemplar de Jesus somado ao testemunho que outros deram dele. Há somente uma situação em que devemos crer sem questionar: quando já conhecemos suficientemente os atributos daquele que está nos dizendo alguma coisa. Veja se não é assim na sua vida: quando você conhece a autoridade de uma pessoa e a competência com a qual ela age em sua especialidade, você faz exatamente o que ela manda mesmo que não entenda o porquê da ordem ou tudo pareça um grande absurdo. Imagine que você esteja num prédio em chamas e um bombeiro apareça para salvá- lo. Ele dirá: “Se quiser ser salvo, faça exatamente o que eu digo!”. Você será um tolo se não obedecer imediatamente. Todos temos evidências de que um bombeiro sabe o que está fazendo. Ele, então, quebra a janela e manda você saltar de uma altura de quase vinte metros. Na verdade, há um colchão de ar lá em baixo, mas você não sabe disso e não há tempo para muitas explicações. Mesmo com medo e sem entender, se for inteligente, você pula. O bombeiro sabe o que está dizendo, não compensa parar para questioná-lo. É esse tipo de confiança que Deus pede em algumas situações específicas da vida. Veja, porém, que ele primeiro dá evidências de quem é para depois pedir que creiamos irrestritamente em sua pessoa. Mais à frente falaremos sobre essas evidências; por ora, basta saber que, segundo a perspectiva bíblica, é somente depois que o relacionamento de confiança está plenamente criado, que Deus dá ordens explícitas que espera sejam cumpridas inquestionavelmente para o bem daquele que crê, e não se esqueça: essa situação de obedecer sem questionar é o passo número dois da aproximação de Deus. Voltando ao exemplo do incêndio, eu jamais obedeceria a um estranho no meio das chamas se não tivesse uma informação mínima de quem ele era e qual a sua capacidade real de me tirar dali. O desespero pode levá-lo a seguir até mesmo um louco se o incêndio for num hospício cheio de gente achando que é Nero. Uma fé racional, no entanto, ajuda a saber quem, de fato, deverá merecer minha confiança naquela multidão de vozes pedindo e oferecendo socorro. Perguntar não ofende É no mínimo interessante que, de acordo com a Bíblia, Deus tenha escolhido exatamente os judeus para trazer o Messias ao mundo. Sabe por que digo isso? Porque, talvez mais do que os gregos, esse foi o povo mais questionador que havia na face da Terra. Até hoje os judeus questionam tudo. São especialistas na arte de fazer perguntas. Lembro-me de um israelense que conheci em Jerusalém tentando conceituar o seu próprio povo para mim. Segundo ele, depois de conversar e vender, o que todo judeu mais gosta de fazer é perguntar coisas. Tire as fórmulas interrogativas e ele não saberá o que dizer. Tanto é, prosseguiu ele numa típica piada judaica, que certa vez perguntaram a um rabino: “Por que vocês, judeus, sempre respondem a uma pergunta com outra pergunta?”. Ao que ele prontamente respondeu: “Há algum mal nisso?”. Como bom judeu que era, Jesus de Nazaré se limitou em vários encontros a fazer perguntas. Ele evitava fórmulas prontas que trocassem a reflexão pessoal pela repetição sem sentido de um dogma ou conceito. Houve uma vez que ele até repreendeu seus patrícios por ficarem repetindo frases decoradas em orações públicas, sem ao menos lembrar o sentido do que estavam dizendo (Mateus 6:7-8). Se Sócrates, o pai dos questionamentos maiêuticos, morreu afirmando que devia um Galo para Asclépio, Jesus, que não teve esse título, foi o exemplo maior de alguém que não temeu fazer perguntas até o fim. “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mateus 27:46) foram quase suas últimas palavras. O interessante é que, desta vez, não houve nenhuma resposta audível do céu e, mesmo assim, segundo a narrativa do Evangelho, ele se entregou nas mãos de Deus. Jesus realmente conhecia o Pai, por isso confiava nele mesmo diante do terrível silêncio! Quanto à legitimidade histórica destes episódios envolvendo Jesus e seu ministério, discutiremos em outro momento. Um passo de cada vez. Por ora, a menção destas passagens bíblicas nos serve apenas para reforçar a tese de que a fé temespaço para o questionamento saudável. A meu ver, melhor do que a nomenclatura do Homo sapiens popularizada por Carl Linnaeus em 1735, seria mais apropriada a bem-humorada sugestão de Varro, Cícero, Quintiliano e outros autores antigos que chamavam o ser humano de Homo curiosus65, e “curiosidade” é nossa marca registrada. Levante a mão quem nunca se machucou na infância como resultado da curiosidade em fazer algo que disseram ser proibido. De um dedo na tomada a uma queimadura por brincar com fósforos, todos temos cicatrizes de uma infância cheia de curiosidades, buscas e questionamentos. Aquele que não tem dúvidas seja o primeiro a lançar a pedra! “Melhor do que ter todas as respostas – dizia o cartunista do The New Yorker James Thurber – é estar entre aqueles que formularam as perguntas.” 66 Realmente, desde Einstein acredita-se que saber formular bem um problema, isto é, fazer uma pergunta bem bolada, é algo talvez mais importante que encontrar as soluções, pois, sem essa formulação clara e objetiva, as respostas ficariam vagas e não serviriam para nada. Foram, portanto, as perguntas que ajudaram a impulsionar a história, pois, para que os homens fossem atrás das soluções, alguém teve de perceber um problema e sistematizá-lo para os demais. Portanto questione, questione à vontade. Não há lei que proíba isso. Mas cuidado para não cair no devaneio. Um erro de dosagem pode ser a diferença entre um remédio e um veneno. Questionar na medida certa Questionar é preciso, mas formular bem as perguntas é uma arte. Procuro sempre dizer a meus alunos que, ao formularem uma pergunta, eles devem saber com exatidão o tipo de resposta que estão procurando e que sejam perguntas respondíveis dentre os padrões do bom senso. Perguntas feitas simplesmente por amor ao questionamento têm o seu valor na retórica, mas aqui não levam a nada. Seriam como um adolescente que se beija num espelho e diz para todo mundo que está namorando a menina mais linda do bairro. As indagações humanas não podem ser um fim em si mesmas, caso contrário terminam levando à especulação. É como ficar procurando a terceira margem de um rio ou discutir quantos anjos caberiam na ponta de um alfinete. Você certamente conhece a parábola atribuída a Voltaire e aplicada a teólogos e metafísicos, mas que, no fundo, serve para qualquer indivíduo: há questionadores que são como um homem cego num quarto escuro procurando um gato preto que não existe. E o que é pior: tem gente que jura ter encontrado o gato! Não obstante a advertência que vem desta parábola, preciso dizer que é muito limitado o método de acreditar apenas naquilo que se viu. Este seria o extremo oposto do fideísmo, e extremismo será sempre um lado da verdade que ficou louco. Foi-se a época em que era academicamente chique declarar-se um convicto São Tomé que tinha de “ver para crer”. Ora, eu até hoje não vi pessoalmente o DNA (a não ser em desenhos feitos em livros) e nem por isso duvido que ele exista. Antes que algum biólogo me mande fotos pela Internet, para compensar minha limitação nesta área, quero lembrar que existem coisas “reais” que nem mesmo os especialistas conseguiram ver. Peça a um físico para lhe mostrar uma foto original (sem nenhum efeito de computador) que permita a ambos “verem” o Big Bang ou a Matéria Escura. Eles sabem que ambos existem, mas ninguém jamais os contemplou de fato, viram apenas “evidências que apontam para a sua existência”, como a observação em 2006 de um choque galáctico registrado pelo telescópio de raios X Chandra da Nasa que sugeriria a realidade da Matéria Escura. Trata- se de uma evidência, não de uma certeza absoluta baseada em testemunho ocular direto. Mesmo assim, a grande maioria dos físicos acredita que essa substância misteriosa e invisível compreende cerca de 95% de toda a matéria que compõe o universo. Situações como estas me fazem concluir que em muitos rincões da ciência e da racionalidade o correto é “crer para ver”, e não o contrário. Eu sei que o método científico normalmente exige repetições que garantam a melhor explicação para um evento, isto é, para aquele algo que ninguém consegue ver (como a força gravitacional). Isso não seria necessariamente “crer para ver”, pois, segundo eles diriam, é muito mais do que somente crer. Contudo, há proposições legitimamente científicas que por natureza, complexidade e tamanho fogem desse ideal de um ambiente controlado. Sendo assim, por que então eu deveria mudar a ordem dos fatores em relação a Deus? Afinal, se ele existe mesmo deve ser muito maior e mais complexo que a Matéria Escura. Logo, não o verei diretamente, mas observarei evidências que apontam para sua realidade criadora. Qualquer ente mensurável ou menor do que o universo não é grande o bastante para que eu possa absolutamente chamá-lo de Deus. Por maior que ele seja, não passaria de mais um pontinho no universo. O Sol, por exemplo, é esplendoroso e já foi diversas vezes cultuado no passado. Ainda assim, é apenas uma fagulha cósmica, pequena demais para ser objeto de minha adoração. Já um suposto Deus Criador de todas as coisas, inclusive da Matéria Escura, este sim estaria acima da minha capacidade de verificação direta. É maior do que tudo e não estou seguro de que haja um espaço que possa cabalmente contê-lo. Longe de ser uma visão pessimista e apofática, essa demanda mental pela imensidade divina abre, paradoxalmente, um enorme espaço para conhecê-lo. Como disse o rabino Abraham Heschel: “Estamos mais perto de Deus quando fazemos perguntas do que quando pensamos que temos as respostas”67. Funciona assim o raciocínio: conquanto eu não possa “verificar laboratorialmente a Deus”, devido à minha limitação e à grandeza que suponho que ele possua, posso legitimamente fazer perguntas sobre ele. Assim, caso ele exista, não é inverossímil a chance de que ele mesmo responda de uma forma inteligível à minha mente finita. Mesmo que para isso ele tenha de se “adequar” à minha linguagem e compreensão. Ouse saber A palavra de ordem kantiana Sapere aude! (ouse saber) é muitas vezes aplicada para sustentar um raciocínio individualista que praticamente nega o testemunho de outrem, especialmente daqueles que viveram antes de nós68. É a falácia do argumentum ad novitatem ou a apelo à novidade. Ela consiste em afirmar que algo é melhor ou mais correto apenas porque é novo ou mais novo. Assim, um escritor cristão como Paulo jamais poderia ser equiparado à grandeza de um Sartre. Afinal, pobre Paulo, ele acreditava que Jesus ressuscitou e era o próprio Filho de Deus! Não podemos esperar muito de alguém que vivia numa época de fábulas, anterior às descobertas da modernidade. Nós, não! Somos herdeiros do racionalismo iluminista, há tempos superamos a ideia do milagre, do mito, do sobrenatural. Sartre é definitivamente melhor. Ora, não esqueçamos o alerta do próprio Kant para que pensadores modernos jamais ignorassem os limites da razão humana. A modernidade vive se esquecendo deste conselho. É claro que Kant, a meu ver, exagerou um pouco na dosagem de sua reflexão, mas ela tem um elemento de validade em sua advertência. Na época em que ele viveu, a atitude crítica era um fenômeno dominante na Europa. A pessoa crítica ou racional seria aquela com capacidade de pensar apenas por si sem aceitar totalmente o que os outros tivessem como dogmas. Veja, não é uma questão de avaliar o dogma, e sim de rejeitá-lo a priori. Então, por ter sido ainda mais crítico que seus contemporâneos, Kant questionou até mesmo a definição de sua época como o apogeu da razão e sistematizou o que ele chamava de os limites da razão humana. Para ele, a razão tende a ultrapassar os limites da experiência, fazendo afirmações baseadas apenas em conceitos, por si mesmos, insuficientes para qualquer declaração objetiva. Como disse, acho que Kant exagerou, mas tomo parte de suas observações e as aplico tanto na esfera individual quanto coletiva. O infinito não cabe em minha mente, todas as minhas experiências são apenas recortes pessoais da realidade, e não a totalidadedo que existe. Mesmo no que diz respeito ao conhecimento acumulado pela humanidade, devemos admitir que nenhum de nós pode ser especialista em tudo para obter conhecimento direto de todas as áreas do saber. Precisamos da mediação de outros, inclusive daqueles que nos antecederam. Eu, particularmente, que não entendo nada sobre física, preciso ter fé no testemunho dos astrônomos para acreditar naquela tal Matéria Escura que me disseram existir. Se negasse tudo o que não vejo por mim mesmo, tudo que não entendo com a minha razão autônoma, eu jamais aceitaria o que está escrito nos livros de Einstein ou Stephen Hawking. É claro que há coisas mais simples que posso verificar por mim mesmo. Não preciso de Newton para perceber a lei da gravidade. Um tombo é o suficiente para me lembrar de que ela existe. Contudo, a Teoria da Relatividade é mais complexa, preciso aceitar pela fé o que Einstein escreveu, pois não consigo compreender sequer o bê-á-bá da questão. Aliás, não somente eu, mas 99٪ da raça humana. Dizem que certa vez um repórter perguntou a Arthur Eddington, um dos maiores especialistas em Relatividade Física da década de 1920, se era verdade que no mundo só havia três pessoas que compreendiam bem a teoria de Einstein. Depois de uma longa pausa, ele respondeu: “Eu estava tentando descobrir quem seria essa terceira pessoa”69. Agora imagine alguém que se diz inteligente negando a Teoria da Relatividade sob a égide de que o que sabemos dela foi escrito por homens! Seria ridículo, não é mesmo? O que dizer então de pessoas que negam a priori a Bíblia, sob a alegação de que ela é um livro escrito por homens? Antes que eu seja apedrejado por comparar escritores bíblicos à genialidade de Einstein, deixe-me dizer que embora houvesse gente simples dentre seus autores, também havia muitos intelectuais naquele time. Paulo, que já mencionamos anteriormente, não ficava devendo nada para Sócrates, e os tratados de Moisés chegam em alguns pontos a ser superiores ao código de Hamurabi e às jurisprudências de Cícero. Tudo, portanto, pode ser resumido a uma disposição mental de abrir ou não a possibilidade de ouvir o outro lado da história. Algumas vezes a história acaba tendo três lados: o meu, o do outro e a verdade! Seria possível ouvir a Deus nessa multidão de vozes e teorias? 60 Machado de Assis. Quincas Borba (São Paulo: Ática, 1995), p. 60,61. 61 Robert Todd Carroll (ed.). The Skeptic’s Dictionary (New Jersey: John Wiley and Sons Inc., 2003), p. 62,63. 62 Friedrich Nietzsche. The Gaya Science (1882, 1887), parágrafo 125, in Walter Kaufmann (ed.). (New York: Vintage, 1974), p. 181,182. 63 Heródoto (1994). Histórias, livro II. J. R. Ferreira & M. de F. Silva, versão do grego e notas. (Lisboa: Edições 70). #47-51. 64 Robert D. Sider. “Credo Quia Absurdum?”, in The Classical World, v. 73, nº 7 (Abril – Maio, 1980), p. 417-419. 65 Luigi Romeo. Ecce Homo – A Lexicon of Man (Amsterdam: John Benjamins B.V., 1979), p. 31,124. 66 Apud David Crystal; Hilary Crystal. Words on Words – Quotation about Language and Languages (Chicago/London: The University of Chicago Press/Penguin Books Ltd., 2000), citação 26:146. 67 Apud Heschel quotes – God, Man, Prayer, Life and Death. Disponível em . Acesso em: 25/10/2009. 68 “Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento.” I. Kant. “Resposta à pergunta: O que é esclarecimento? ‘Aufklärung’”, in Textos Seletos (Petrópolis: Vozes, 1974), p. 100. 69 Apud Fred Heeren. Mostre-me Deus (São Paulo: CLIO, 2008), p. 167. http://sunwalked.wordpress.com/2007/07/21/heschel�-quotes�-god�-man�-prayer�-life�-and�-death�-and�-video/ Capítulo 8 Convivendo com a incerteza A literatura poética, confesso, não é o gênero que mais mexe comigo. Contudo, vez ou outra, encontro algumas pérolas que realmente gostaria de memorizar para dizer de cor em público. São palavras bem colocadas que me fazem refletir. Pensamentos que eu até poderia ter tido, mas que jamais conseguiria exprimir de maneira tão apropriada e profunda usando apenas algumas palavras e um pouco de rima. Foi o caso do meu encontro “acidental” com o poema “Estado imaginário”, de um advogado desconhecido para mim chamado Sávio Lopes, que resume com excelência o tema que pretendo tratar neste capítulo. Tomo a liberdade de citar apenas um trecho do que ele escreveu: […] De tudo que aprendi, percebi, Que o saber e a dúvida Andam no mesmo passo E o conhecimento Leva-me a perguntas Das quais as respostas Nunca acho. Queria de volta a inocência, Os primeiros erros Do meu estado imaginário; Pois a multidão Das minhas verdades Afetam minha tranquilidade. Nos berços do meu solilóquio Vou juntando os dados, Questiono as certezas, E de silêncio as embriago, Quando a razão Esclarece outra mentira Deixando-me apavorado.70 Estes versos exprimem com maestria a luta intelectual e emocional de muitos em relação às questões da vida. Pessoas pensantes são naturalmente passíveis de assombros vindos do fantasma da dúvida. Inclusive ou principalmente nós, crentes! Não pense que a fé que possuímos é 100% inabalável. Eu mesmo tive momentos de tanta angústia e luta espiritual com Deus que só não fiquei pior durante a crise porque lembrei-me de vários casos bíblicos em que homens e mulheres de Deus igualmente tiveram duelos com a descrença. Se você nunca leu a Bíblia com esses olhos prepare-se para saber uma coisa: a história do Antigo e Novo Testamentos está repleta de situações em que as verdades divinas emergem não de uma calmaria, mas de um escândalo. Assim foi no passado e continua sendo hoje em dia. Lembro uma vez, internado em um hospital, em que olhei desolado para o teto do quarto e resmunguei: “Antes eu pensava ter um monte de respostas, agora já não lembro mais nem as perguntas”. O silêncio naquele caso não era sinônimo de tranquilidade. Era um castigo imposto a um ser carente de sentido que queria ouvir pelo menos uma frase de afeto vinda de quem realmente soubesse as respostas de que eu estava precisando. Fico feliz por ter superado aquele triste momento. Contudo, sei que nem todos tiveram a mesma sorte ou eventualidade que eu. Muitos, de fato, se precipitam cada vez mais fundo no poço das incertezas e não sabem como conviver com elas. Outros simulam uma pseudoconfiança doutrinária – seja em favor de Marx ou de Cristo – e assim passam o ar de que realmente estão seguros do que creem, quando na verdade estão apenas acostumados a pensar daquele jeito e não querem abrir mão de seu comodismo mental. Isso não quer dizer que ninguém creia ou descreia com sinceridade. Referi-me a uma fatia populacional que pretende ser o que não é, sem me importar em dar-lhe nome ou apontar sua quantidade. Admito o fenômeno sem identificá-lo com nomes. Fazê-lo estaria fora de minha alçada, seria bancar um juiz universal – o que eu não sou. A voz do povo Do solilóquio em segredo às muitas vozes que em vez de ajudar, às vezes, atrapalham, o sujeito pensante continua sua busca por verdades que possam ajudá-lo. O problema é que o barulho das multidões costuma trazer mais tormenta que solução. Quando vejo: governos corruptos e sem preparo eleitos pelo voto da maioria; gente popularesca com algum talento musical ou futebolístico tornando-se ídolos de uma geração inteira de jovens; programas de gosto duvidoso disparando no Ibope; e vídeos de conteúdo tosco bombando no YouTube, fico me perguntando se realmente a voz do povo é a voz de Deus ou a voz da ignorância coletiva. Quantas vezes a democracia é apenas a variante ditatorial de um povo manipuladoque demanda com protestos o coroamento de um idiota! A sabedoria popular, neste sentido, torna-se o coletivo de embrutecimentos individuais. Veja se não faz sentido minha crítica. Indústrias alimentícias nos convencem a consumir de tudo, menos comida realmente saudável; remédios fabricados para sarar e viciar em vez de trazer prevenção e cura; uma mídia bipolar que coloca em sequência feministas debatendo sobre respeito pela mulher e em seguida anunciando um show de variedades, que tem como quadro principal meninas de biquíni lutando numa banheira de lama ou lavando carro apenas de calcinha e sutiã. No intervalo, a mesma emissora coloca uma propaganda de homens no bar olhando sedentos para o corpo da mulher que traz cerveja e os serve, não sem antes dizer com sensualidade: “Experimente você também!”. No seguimento começa a novela das nove em que a protagonista aparecerá nua fazendo o papel de amante sedutora (cena que, aliás, as feministas do primeiro programa elogiarão no dia seguinte) e, para fechar, vem o jornal da meia-noite criticando a polícia por não conter a violência nos estádios. Então a programação segue – para os que aguentam ficar acordados – anunciando o filme Velozes e furiosos V, que enaltece justamente o tipo de delinquentes que você não queria ver morando em sua cidade. Por um lado, dizemos aos jovens: isso é errado! É imoral. Por outro, damos filmes, novelas e entretenimentos que os incentivam a ser justamente aquilo que condenamos. Somos uma sociedade bipolar! Tanto é que muitos desses jovens se aliaram ao Estado Islâmico atraindo para o terrorismo outros jovens justamente através de documentários bem-feitos, cujo conteúdo era justamente a violência à qual já estavam expostos nos games e filmes que consumiam. É por coisas como estas que há tempos abandonei a ilusão de que a maioria sempre está certa. Não quero com isso dizer que estou completamente incólume neste mar de influências negativas. Tal sentimento seria soberbo e autorrefutável, pois não existe nenhum “homem à frente de seu tempo” – isso é tolice. Ainda que reflitamos coisas que estão avançadas demais para nossa geração, mesmo assim continuamos falando, comendo e nos comportando em grande parte como os demais de nosso contexto social. Do mesmo modo esclareço que não abandono totalmente o valor de um saber coletivo, nem arvoro a exclusividade da reflexão autônoma. Pelo contrário, “Não havendo sábios conselhos, o povo cai, mas na multidão de conselhos há segurança” (Provérbios 11:14, ACF). Meu objetivo com essas observações é provocar uma análise do tempo em que vivemos e como ter certezas nesta época de tantos “ismos”. Foi neste sentido que questionei o adágio de que o assentimento de um povo seria um critério de verdade. Ouvi dizer – mas não achei a fonte primária disso – que a origem do provérbio “a voz do povo é a voz de Deus” viria do fato de Hermes, cultuado como Mercúrio em Roma, possuir, na Acaia, ao norte do Peloponeso, um templo onde se manifestava respondendo às consultas dos devotos pela singular e sugestiva fórmula das vozes anônimas. Purificado, o consulente se aproximava do altar e dizia em sussurro ao ouvido do ídolo o seu desejo secreto, formulando seu pedido, dúvida ou a súplica. Então ele se levantava, tapando os ouvidos, e corria para o pátio do templo ou para a praça principal, onde arredava os dedos, esperando ouvir as primeiras palavras dos transeuntes. O que viesse era a voz de Deus para ele. Teófilo Braga, político e ensaísta português do final do século 19, expõe que essa superstição ainda era vigente na Lisboa de seus dias: A voz humana tem poderes mágicos; um feiticeiro, para saber se uma pessoa era morta ou viva, dizia à janela: – Corte do Céu, ouvi-me! Corte do Céu, falai-me! Corte do Céu, respondei-me! – Das primeiras palavras que ouvia na rua acharia a resposta.71 Seja como for, existe uma referência mais antiga, do século 8, que é a carta de Alcuíno para Carlos Magno, na qual já alertava contra o perigo de se deixar levar sempre pela maioria. O trecho diz: Nec audiendi qui solent dicere, Vox populi, vox Dei, quum tumultuositas vulgi semper insaniae proxima sit. Tradução para português: E essas pessoas não devem ser ouvidas por quem continua dizendo que a voz do povo é a voz de Deus, já que a devassidão da multidão sempre está muito próxima da loucura. É por advertências como esta que eu não poderia escrever um capítulo sobre a certeza sem falar dessa perigosa democratização excessiva de valores e crenças que leva políticos, religiosos, professores, líderes de um modo geral a procurar agradar o povo a todo custo, a fim de se manterem confortáveis em seus cargos. Eles evitam o “politicamente incorreto” não porque estão convencidos de ser aquilo verdadeiro, mas pelo pânico de não serem rejeitados. Na contramão desse cenário, mas convivendo paradoxalmente com ele, há também os formadores de opinião que levam o povo a assumir posturas que foram sugestionadas com fins bastante específicos. Moda, marketing, consumo não são coisas que refletem apenas a vontade popular. Elas também impõem normas que o povo segue sem questionar, e quem vai contra essas normas é ultrapassado, fanático, fora de moda. Uma hora é a galinha que segue os pintinhos, noutra são os pintinhos que seguem a galinha numa jornada obsessiva de passos que conduzem ao precipício. É assim que a sociedade oferece sistemas de pensamento e ritos sociais que nos livram da reflexão e do exame de consciência. É o famoso mundo aceito sem discussão. Um encontro com Berger Se eu parasse aqui este capítulo deixaria a ideia de que é impossível ter certezas ou que, pelo menos, o agnosticismo seria o caminho recomendável. A situação que descrevi anteriormente parece referendar a observação irônica do romancista austríaco do Robert Musil, que declarou que “a voz da verdade tem um tom suspeito”. Ela não é tão absoluta como desejaria o “verdadeiro crente”. Será? Uma plausível resposta para esta colocação veio até mim através de um livro que valeu a pena ter lido. É sobre ele que quero falar neste momento. Como não sou sociólogo por formação, é claro que não domino todos os teóricos dessa área. Assim, o encontro com alguns deles se dá por uma feliz casualidade. Foi o que aconteceu com os escritos de Peter Berger, renomado sociólogo da Universidade de Boston, morto em 2017. Gregory Thornbury, presidente do King’s College de Nova York, disse em seu obituário que a obra de Berger “fez com que os teólogos quisessem ser sociólogos quando crescessem”. Adquiri seu livro, escrito em parceria com Anton Zijderveld, num congresso de teologia nos Estados Unidos. O título não poderia ser mais provocativo: In Praise of Doubt – how to Have Convictions without Becoming a Fanatic. Foi lançado em português com o título: Em favor da dúvida: como ter convicções sem se tornar um fanático. A primeira novidade da obra foi ver um sociólogo respeitado que ainda se diz incuravelmente religioso. Embora, a bem da verdade, ele se defina como evangelisch, mas não evangélico – o que não deixa de ser interessante, pois demonstra um compromisso com a fé que supera os limites de uma agremiação religiosa organizada, sem dirimir sua importância. Escrevendo com um rigor sociológico – pois esta é sua formação primária – Berger se dirige a todos os públicos, mas principalmente a crentes que vivem numa espécie de exílio, pois se sentem chamados por Deus de nação santa, porém não se encaixam com as normas sociais vigentes. Os que duelam com questões honestas também são contemplados na leitura, pois não é fácil num ambiente cristão (especialmente aquele mais conservador) o indivíduo admitir que ainda nutre certas dúvidas de fé. Aliás, o mesmo se passa no ambiente secular; um ateu não pode admitir para seus companheiros que nutre dúvidas sobre o ateísmo professado, sem ser marginalizado pelos demais. É muito triste quando tentam sanar nossas dúvidas com simplificações artificiais da problemática. Criam-se nomes para nos proteger de questões autênticas,mas perigosas para o sistema. Depois oferecem uma linguagem artificial que torna tudo muito bem arrumadinho quando na verdade não é. Por outro lado, há também os que se refugiam na dúvida como a maior de suas certezas. São os dogmaticamente céticos, o que inclui aqueles que questionam não porque possuem dúvidas reais, mas porque se tornou chique ser do contra. Amam a esquerda mesmo quando não têm motivo para ser esquerdista. Não atualizam o discurso. Apenas fumam maconha e repetem os chavões de Woodstock numa época em que a Guerra do Vietnã já virou passado. Os escritos de Berger lidam com todas estas questões sugerindo audaciosamente que o cultivo da dúvida – que eu qualificaria como “dúvida sadia” – pode ser a chave para lidar com questões morais, principalmente num universo de tantas posições vigorosamente rivais. Isso para mim caiu como luva naquilo que eu mesmo defendo há muito tempo e que você está vendo neste livro. A audácia da sugestão é justamente o fato de que a convicção e a dúvida geralmente são vistas como operações intelectuais opostas. Porém podem e devem ser harmonizadas. O livro também provoca o senso comum de que a sociedade está se tornando secularizada. Deus ainda não foi embora – para tristeza dos que promoveram sua morte no início do século 20. De modo geral, a ideia é dizer não ao dogma bem como à crença de que não há nada em que se deve crer ainda que provisoriamente. Respeitar a ideia do outro, saber o que acreditamos, evitar a soberba. Isso para mim foi extraordinário. Concordaria 100% com o autor? Não. Há coisas que penso diferente de Berger. Porém, saí de sua leitura com a grata satisfação de saber que é possível encontrar um caminho moderado entre o dogma e a dúvida que eu poderia chamar de certeza saudável e como ele funciona na prática. Segundo o autor é necessário que haja um exercício de moderação mental entre os posicionamentos relativista e fundamentalista, e isso não se reduz à religião apenas, mas aplica-se à política e a moralidade. Os fundamentalistas sempre tendem para a “ética dos fins absolutos”. Os moderados políticos tendem a uma ética da responsabilidade. A certeza moderada evita tanto o relativismo quanto o fundamentalismo. No entanto, pode ser inspirada por uma verdadeira paixão em defesa dos valores essenciais originados da percepção da condição humana e, eu acrescentaria, nas possíveis orientações de um Deus que se revela – sobre isso falaremos mais adiante. Teoria do Conhecimento A necessidade ou pelo menos a busca de certezas é uma modalidade humana que se confunde com a chamada Teoria do Conhecimento, às vezes usada como sinônimo de epistemologia, o que não é uma aplicação exata, uma vez que esta última, se usada em sentido estrito, se aplica mais ao estudo sistemático do conhecimento científico, sendo por isso mesmo reconhecida como filosofia da ciência. Seja como for, ambas referem-se a uma área da filosofia que procura refletir sobre o que é o conhecimento, a possibilidade ou não de se conhecer (i.e., de ter certeza de algo), e qual o fundamento, origens e valor do conhecimento adquirido. Não há como negar que somos aquilo que Descartes chamou de res cogitans ou coisa pensante, em oposição a um corpo que acaba servindo-lhe de obstáculo, a chamada res extensa. “O que sou eu? – perguntava o filósofo – Uma substância que pensa. O que é uma substância que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina e que sente.”72 O sujeito pensante, portanto, é uma substância que se define pelo pensamento. Uma substância espiritual que Descartes punha em oposição ontológica à substância material, mas que – no meu entender – permanecem indivisível, unitária (indivíduo) e sensivelmente sujeita à transcendência. Eu diria até que foi a sugestão cartesiana que inaugurou a “metafísica do sujeito”, entendida por muitos como a característica básica do pensamento moderno. Efetivamente, dessas duas noções cartesianas derivaram as duas correntes básicas da filosofia moderna: o racionalismo e o empirismo, ambas ancoradas no sujeito, transformado na nova sede do critério de verdade. A crítica cartesiana desautorizou o objetivismo e o realismo ingênuos que dominaram o pensamento antigo e medieval. Até aí vigorava o critério da evidência objetiva, segundo a qual o pensamento deve se submeter à evidência. É esse o caráter da definição clássica de verdade como a adequação do intelecto à coisa, ligada à consideração de que o critério último e universal de julgamento da verdade é a evidência objetiva. A partir de Descartes o critério de verdade desloca-se para o sujeito: nada terá estatuto de verdade sem passar pelo crivo da experiência subjetiva, expressa na arte de raciocinar a partir da dúvida. É claro que o exagero deste conceito deu origem à tradição racionalista que só aceita como verdadeiro aquilo que pode ser reduzido a ideias claras e distintas, o que, como pretendo argumentar, não pode ser procedente. O racionalismo é a corrente que assevera o papel preponderante da razão no processo cognoscitivo, pois os fatos não são fontes de todos os conhecimentos e não nos oferecem condições de “certeza”. Já o empirismo seria a corrente de pensamento que sustenta que a experiência sensorial é a origem única ou fundamental do conhecimento. Ambos se preocupam com o problema do conhecimento, que é o ponto de referência básica da filosofia moderna. Em contrapartida, constroem teorias distintas acerca do conhecimento que para um é intelectualista e para o outro sensitista. Por fim, apresentam fortes ligações com as ciências naturais e exatas, especialmente em física, química, astronomia, mecânica e matemática. O racionalismo usa, de preferência o a priori dedutivo da matemática, enquanto o empirismo opta pelo a posteriori indutivo da experimentação. Essência do conhecimento Em termos de essência do saber, a Teoria do Conhecimento possui uma área que, a meu ver, é a mais conflituosa, geradora de muitas divergências. Refiro-me ao campo do realismo e idealismo. O realismo traduz-se na orientação ou atitude do espírito que implica uma preeminência do objeto, dada a sua afirmação fundamental de que nós conhecemos coisas. Em outras palavras, é a independência ontológica da realidade, o sujeito raciocinando em função do objeto. O realismo é, normalmente, subdividido nestes grupos. O realismo ingênuo, natural, volitivo, tradicional e crítico/científico. O realismo ingênuo é aquele em que o homem aceita a identidade de seu conhecimento com as coisas que sua mente menciona, sem formular qualquer questionamento a respeito daquilo. É a atitude do senso comum, que reconhece as coisas e as concebe tais como parecem. Um pouco diferente do realismo ingênuo é o realismo natural, cercado por reflexões críticas sobre o conhecimento. Este dá destaque aos sentidos como meios – ainda que imperfeitos – de percepção da realidade. Coisa que o primeiro não faz. Suas raízes estão nas profundas transformações econômicas, políticas, sociais e culturais da segunda metade do século 19. Já o realismo volitivo afirma a existência de um mundo material fora de nós, percebido graças à nossa vontade de existir. Se fôssemos seres puramente intelectuais, sem nenhuma faculdade volitiva, não teríamos consciência alguma da realidade. Por outro lado, reconhece-se um choque constante com a realidade à medida que as coisas que existem resistem aos nossos desejos, e nestas resistências vivemos a realidade que nos cerca. O realismo tradicional seria aquele que indaga a respeito do porquê das coisas. Intensifica-se numa busca frenética por fundamentos teóricos, razões e arrazoados que justifiquem esta ou aquela premissa. É a atitude típica dos que seguem a linha aristotélica de raciocínio. Por último, posso citar o realismo científico, que é uma variação do realismo crítico. Ele parte do pressuposto de que existe uma realidade objetiva que pode ser reconhecida pelo senso comum, porém, é mais confiantemente descrita, explicada e prevista pelo métodoDeus, mas um testemunho pessoal a respeito dele. Não quero enganar você ou insultar sua inteligência. É claro que sou crente, mas a inspiração para este trabalho veio justamente da minha descrença. Isso mesmo que você leu! Tão paradoxal como o título que elegi, é meu ceticismo, que me conduz diariamente à fé. Como se dá isso? Leia e você verá. Não! Não sou um ex-ateu que se converteu. Note que a frase anterior foi redigida no presente do indicativo ativo. Sou um crente que ainda duela, dia após dia, contra inquietações, incertezas e questionamentos. Sou, como descreveu uma grande amiga, um sujeito de mente inquieta, muito inquieta! Nunca me senti tão bem retratado numa única frase. Uma fé que duvida Sempre encontro pessoas que acham estranho eu dizer que a fé comporta dúvidas. Essa, no entanto, é uma realidade inegável. René Descartes que o diga! Mesmo não sendo teólogo, nem pretendendo produzir uma declaração de fé religiosa, ele terminou dando-me um dos mais brilhantes insights confessionais que já li: “o homem”, dizia ele, “deve desconfiar de tudo para poder acreditar em alguma coisa”. Refiz o caminho proposto por Descartes e cheguei a uma conclusão surpreendente. Ao comprometer-me sinceramente com a dúvida encontrei, para minha surpresa, a produção de uma certeza inquestionável e, consequentemente, um fundamento sobre o qual edificar uma estrutura racional segura. Com a exceção de que não discriminei nenhuma possibilidade ontológica nem me limitei à razão humana como única capaz de alcançar verdades elevadas, também demoli alguns edifícios mentais e os reconstruí, exatamente como propõe o método cartesiano. Contudo, ao longo do processo, percebi que a demolição nem sempre será o caminho mais viável. Conquanto Descartes adote a preferência pela demolição total das coisas, não podemos nos esquecer de que somos seres em permanente estado de construção, isto é, seres inacabados, sempre em projeto. Logo, se algumas edificações se mostram corretas não há por que abandoná-las, mesmo que a obra não esteja completa. Diferentemente do que intencionara originalmente Descartes, os filósofos da modernidade acataram o método cartesiano, partindo também da dúvida, e insistiam que toda crença fosse considerada falsa até que fosse, pela razão, comprovada verdadeira. A partir desse ponto, rompe-se com a antiga cosmovisão teocêntrica e os raciocínios passam a pautar-se pelo antropocentrismo extremo. O ponto de partida para a reflexão passa a ser o homem e sua racionalidade, e não mais a revelação divina. Ironicamente, Descartes, que era cristão e acreditava na Bíblia, deu o pontapé inicial para um método que tornou-se, de certo modo, o fundamento do ateísmo contemporâneo com todas as suas implicações. Eu também comecei no caminho cartesiano, mas em alguma bifurcação tomei rumo diferente do ateísmo. Não foi um erro de rota, nem uma fuga da realidade. Foi uma decisão livre e consciente, moldada pela lógica dos fatos e pela interpretação de minha mente. Graças a Descartes, a sistematização da dúvida me conduziu a grandes certezas. Ufanismo? Não se trata de ufanismo religioso. Não sou dono da verdade muito menos especialista em Deus. Achei importantes verdades, mas não todas as verdades. O que creio advém de importantes pistas que encontrei pelo caminho. Não é uma fé gratuita, muito menos absolutista. Aliás, todos os absolutismos – seculares ou religiosos – terminam produzindo histerismos, por isso, corro deles. Aceito de bom grado a ciência, mas não o cientificismo. Busco sempre a racionalidade, mas fujo do racionalismo. Não se trata de evitar, mas tomar cuidado com as consequências práticas do uso indiscriminado do sufixo “ismo”. Ele pode levar ao autoritarismo ilegítimo de certos conceitos provenientes exclusivamente da vaidade humana. Lembre-se de que o sufixo “ismo”, advindo do mundo grego como conjunto de crenças e doutrinas religiosas ou não religiosas, foi incorporado à linguagem médica como uma patologia ou disfunção mental, resultante de intoxicação causada por agente obviamente tóxico (Dicionário Houaiss). Isso não quer dizer que zoroastrismo, judaísmo, cristianismo ou mesmo “ateísmo” signifiquem imediatamente “doenças de Deus”. O uso indistinto do termo pode gerar confusões. O importante é estar alerta em relação ao absolutismo de certos conceitos (seculares ou religiosos) que levam da anarquia ao totalitarismo, todos travestidos de pseudointelectualidade. Afinal, foi em nome tanto da religião quanto do materialismo marxista que se promoveram os mais cruéis assassinatos e a morte da liberdade. Tais regimes se pautaram sempre pela radicalidade das ações e pela força de falácias supostamente lógicas. No que diz respeito à fé, corre-se igualmente o risco de acoplá-la ao mesmo sufixo criando o fideísmo, que – com o perdão de Bayle e Kierkegaard – é, para mim, uma distorção da fé verdadeira, por abjurar qualquer valor da racionalidade. São muitos os que, por não entenderem o papel da fé na experiência mental, incorrem no risco de transformá-la em crendice. A fé não pode ser um salto cego num abismo divino para o qual não existe nenhuma racionalização ou racionalidade. Por outro lado, dizer que a razão manda na fé é como afirmar que o rabo abana o cachorro. Seria um contrassenso anular por completo qualquer função racional no ato de crer. Afinal se existe mesmo um Deus, ele nos criou como seres racionais. Negar isso é como tirar das aves a capacidade de voar. Distorções semânticas De modo geral, percebo que não é apenas a fé que sofre distorções. A própria palavra ateísmo tem sido usada de um modo às vezes diversificado, às vezes genérico demais, dando margem a leviandades que prejudicam a compreensão do assunto. Há religiosos conservadores que tomam o ateísmo como sinônimo de demonismo, depravação, enquanto humanistas seculares o interpretam como sinal de superioridade, clareza mental. De modo ufanista os primeiros agem como se somente eles fossem moralmente bons. Já os segundos não escondem a premissa de que ateus são os únicos com disposição mental esperta o bastante para admitir a realidade como ela é, sem mitos ou alienações coletivas. Eles seriam os mais sábios da cadeia evolutiva. Os únicos que captaram com profundidade a advertência de Marx sobre a religião e o ópio do povo. Seria bom se todos reconhecessem que rótulos e estereótipos são perigosos e inviabilizam diálogos. Sem contar que quase sempre criam um quadro distorcido do outro, a partir do que se julga saber do grupo a que ele pertence. É, enfim, uma caricatura malfeita que desmotiva até o senso de humor. Ambos os lados precisam entender que ateus não devoram criancinhas e crentes não comem alfafa com cavalos. Ninguém tem o direito de chamar o outro de “imoral” por sua descrença, nem “idiota” por sua fé. Sei que há radicalismos por toda parte e nenhum grupo está livre deles. Por isso não vale a pena refutar uma doutrina alheia baseado no comportamento censurável de um defensor dela. Cabe ao observador externo a prudência de não julgar a parte pelo todo, ainda que algumas atitudes pareçam, de fato, marcas de coletividade. Nazistas e antissemitas soam como sinônimos perfeitos e – em termos filosóficos – de fato o são. Contudo, no campo da individualidade não posso generalizar. Houve muitos alemães tanto civis quanto militares que se tornaram heróis anônimos, salvando judeus por não concordarem com o regime de Hitler, ainda que ostentassem uma insígnia alemã1. Seja de que lado você estiver, da crença ou da descrença, lembre-se de que posturas intolerantes e agressivas tornarão seu argumento mais suscetível à crítica racional. Principalmente quando ele esboçar uma fobia pela divergência e, sobretudo, pelo confronto racional de ideias. Discordando com classe Para que nosso diálogo ao longo deste livro seja realmente proveitoso, preciso tecer alguns comentários sobre surpresas que tive e preconceitos que testemunhei de ambos os lados da discussão. É imperioso falar disso já assim no começo para que você saibacientífico. Estas são descrições simples, apenas para se ter uma noção deste vasto Estas são descrições simples, apenas para se ter uma noção deste vasto campo do conhecimento. A síntese do realismo é a certeza de que existe uma correlação e adequação à inteligência, a algo que pode ser conhecido. O modo de referendar esse “algo” conhecível é que varia gerando as diferentes abordagens citadas anteriormente. Lembre-se, contudo, de que para os racionalistas os sentidos não são confiáveis, pois podem induzir ao erro. Ilusões de ótica estão aí para confirmar isso. Assim, que eles atribuem uma grande confiança no poder da razão humana como critério de reconhecimento da verdade. Nas palavras de Descartes: “nunca devemos nos deixar persuadir senão pela evidência de nossa razão”73. Com esses conceitos em mente, estou pronto para falar do contraponto do realismo que é o idealismo. Alguns afirmam que ele nasce com Platão, mas desenvolve-se com Descartes. Neste conceito, não há realidade objetiva, pois as coisas não existem por si mesmas. Elas vão existindo à medida que são pensadas ou representadas pelo nosso espírito, ou seja, há uma tendência a tornar tudo em redor, esquemas mentais ou formas espirituais. No idealismo, os objetos são criados a partir da subjetividade do indivíduo. Aquilo que ele não percebe não existe para ele. Assim, a certeza e o conhecimento são reduzidos à representação mental que fazemos das coisas, pois a verdade acerca dos objetos está menos neles do que em nós mesmos. Precisamos pensá-los ou percebê-los para que adquiram existência para nós. Sintetizando, o idealismo é a doutrina ou corrente de pensamento que subordina ou reduz o conhecimento à representação ou ao processo do pensamento mesmo, por entender que a verdade das coisas está menos nelas do que em nós, em nossa consciência ou em nossa mente, no fato de serem “percebidas” ou “pensadas”. Existem ainda os que dividem o idealismo em psicológico e lógico. Para o primeiro, entende-se tudo aquilo que constitui um ser percebido e, para o segundo, tudo o que se identifica como ser pensado. Sei que esse esquema pode soar um tanto estranho para muitos, mas saiba que importantes nomes estão por detrás de tudo o que foi dito nos parágrafos anteriores. Refiro-me a autores como Berkeley, Hume, Locke, Hegel e o próprio Descartes. Certezas ou incertezas? Com estes elementos gnosiológicos em mente, a próxima questão que nos interessa é se podemos ou não ter certeza de alguma coisa. Qual é, enfim, a possibilidade real do conhecimento? Novamente, os autores recorrem a duas formas de tratar o problema: o dogmatismo e o ceticismo. Ambos podem ser ainda qualificados como total e parcial, de modo que o dogmatismo afirma a possibilidade de se conhecerem verdades universais quanto ao ser, à existência e à conduta, transcendendo o campo das puras relações fenomenais e sem os limites impostos primariamente à razão. Já o ceticismo consiste numa constante atitude de dúvida, mesmo diante de opiniões obtidas no âmbito das relações empíricas. Suas conclusões são sempre provisórias, pois a atitude cética nunca abandona o que se filia a essa linha de pensamento. A parcialidade ou totalidade com que essas linhas são conduzidas demarcam os limites e as possibilidades que cada adepto supõe poder chegar no âmbito de reconhecer ou não a verdade. Hegel, por exemplo, era dogmático absoluto no sentido em que defendia a identificação absoluta entre pensamento e realidade. Hume e Kant eram menos taxativos, por entenderem que o indivíduo pensante não poderia atingir verdades últimas. Apenas no plano ético era possível atingir, de certa forma, o absoluto, predicando pela razão o certo e o errado em dadas circunstâncias. Blaise Pascal já ia para outro extremo afirmando o dogmatismo teórico da matemática e da ciência, duvidando, porém, da precisão teórica nos modos de agir da conduta humana. O ceticismo, por fim, se distingue de tudo isso por causa de sua posição de reserva e desconfiança constantes em relação a todas as coisas. Seus representantes na Grécia antiga eram Pirro, Górgias e, parcialmente, Carneades. Na filosofia moderna, seu principal representante foi Augusto Comte. Deixe-me agora dizer como eu mesmo me posiciono diante de tudo isso. Para tanto quero citar um pensamento de Jung que resume minha trajetória mental em busca de conhecimento. “Queremos ter certezas e não dúvidas, resultados e não experiências, mas nem mesmo percebemos que as certezas só podem surgir através das dúvidas e os resultados somente através das experiências”74. Antes de mais nada, não sou junguiano. Porém, valho-me desse recorte de seu pensamento e o destrincho para que você acompanhe minha experiência cognitiva. 1. Queremos ter certezas e não dúvidas – embora nem sempre querer signifique “poder”, acredito que essas inclinações psíquicas me revelam algo e não posso fechar os olhos para o que elas estão me dizendo. Pássaros nascem migrando para o sul e tartarugas marinhas correm para o mar. Seria ingênuo negar a existência do oceano e de um lugar chamado sul apenas porque algumas tartarugas e aves migratórias ficaram circunstancialmente confinadas num plano em que não podiam ver nem experimentar o objeto de seu instinto. Se quero ontologicamente ter certezas, e não dúvidas, isso significa que existe uma verdade para ser explorada e conhecida. Essa verdade antecede meu ser – pois nasço desejando-a – e pode ser negada, pois existe a dúvida, ou seja, ela não será tão óbvia para todos. 2. [Quero] resultados e não experiências – o anseio por verdades não é como um desejo efêmero por vitamina de abacate, que logo passa assim que tomo um copo gelado dela. Trata-se de algo que permanece comigo sempre. Tentar negá-lo é convidar a neurose sobre minha pessoa. Esses dias estive refletindo por que existe tanto consumo de drogas lícitas e ilícitas neste mundo. Por que as pessoas querem tanto estar embriagadas ou fora de área? Não seria por medo de encarar a realidade que descobriram? Por isso, fogem dela como o diabo foge da cruz, seja para a ilusão das drogas, seja para o universo paralelo dos entretenimentos, que estimulam a construção de uma realidade virtual. Doentia, porém, eficaz em alienar as mentes daquilo que realmente interessa. 3. Que as certezas só podem surgir através das dúvidas – já discorri neste livro sobre como a Bíblia permite e estimula o questionamento sadio. Perguntas sérias e honestas levam a resultados positivos, questões vazias atraem para o fosso. A capacidade de duvidar de si mesmo é sem dúvida uma das maiores contribuintes para o desenvolvimento humano, na dosagem certa ela melhora nosso desempenho emocional, pois nos estimula à busca constante e nos faz ter uma noção real de quem somos e quais são nossos limites. Einstein dizia que o mais importante é nunca pararmos de questionar. A dúvida e todas as questões que a vida apresenta podem determinar o grau de maturidade emocional que temos diante de nossa própria existência humana. A dúvida, em última instância, determina o grau da nossa sabedoria! 4. Resultados [podem surgir] somente através das experiências – neste ponto eu afirmo, porém ultrapasso o contexto do experimento laboratorial, acadêmico ou mental. Fora dos limites da razão humana quero falar de uma experiência transcendental, que apenas o que experimenta pode dizer como é. Certeza não é conhecimento Um erro que, a meu ver, muitos cometeram no passado foi afirmar que conhecimento e certeza estariam em pé de igualdade mental. O artigo de Gettier oferece boas argumentações contra esse pressuposto. Muitos, no entanto, ainda insistem em dizer que a certeza é o conhecimento claro e seguro de algo. Logo, a menos que tenham explorado todas as possibilidades, jamais poderão fazer uma afirmação segura. Mas onde estaria a justificativa para tal afirmação? Este para mim é um ceticismo intelectualmente injustificado! Certezas não implicam veracidades absolutas ou exatidão. Quer um exemplo? Alguns físicos teorizam (embora não haja nadaque evidencie isso) que existam infinitos universos paralelos, mas por esta forma de pensar eu jamais poderia afirmar nem duvidar disso, pois não explorei todo o cosmo e além dele para ver se realmente existem infinitos universos paralelos. Sendo assim, a certeza de que eu sou um sujeito com duas pernas, dois braços e uma cabeça é ilusória, pois não explorei todas as possibilidades para verificar, por exemplo, que não sou uma cabeça dentro de um aquário, vivendo num universo paralelo, cheia de tubos e mantida viva por um computador maluco que me estimula a pensar que tenho um corpo. Raciocínios assim são uma completa forma de nonsense. Diga para alguém picado por marimbondo que a dor é apenas uma projeção de sua mente! Repare que os que assim pensam igualam conhecimento com certeza. Se for assim, tudo o que eles falarem também pode ser questionado e jamais respondido. Um diálogo desta natureza termina andando em círculos e qualquer tentativa de conhecer qualquer coisa se torna pueril. Vejamos mais uma ilustração: imagine que seu amigo tenha na mão uma caixa com 100 cartões de papel, todos vermelhos. Ele então coloca todos os cartões numa urna de loteria e começa a girar. Você tem certeza de que ele tirará um cartão vermelho, pois é isso que a lógica lhe diz. Você tem, em outras palavras, uma certeza absoluta. Mas espere: suponhamos que você não tenha tido oportunidade de olhar cada um dos 100 cartões para ver por si mesmo que todos são vermelhos. E se houver um branco naquele meio? Mais ainda, suponha que o sorteio seja feito à noite e você não ficou o tempo todo vigiando a urna para saber que ninguém de fato mexeu nela introduzindo cartões verdes e amarelos no meio dos vermelhos. Sendo assim, sua certeza nunca será absoluta, pois sempre existirão possibilidades que fogem ao seu controle e conhecimento. Duvido, porém, que se alguém lhe oferecer um carro para acertar a cor do cartão sorteado, você preferirá não responder ou dirá verde ou amarelo. Você responderá com convicção: “Vermelho”! Aprecio averiguar as evidências – por isso batizei meu programa de TV com esse nome. Contudo, não posso confundir dúvidas saudáveis com questionamentos ad infinitum que não levam a nada senão a uma enganosa busca por evidencialismos. Neste sentido, há algo muito pessoal e sério que gostaria de compartilhar com você. Estou cansado de ver pessoas se tornarem neuróticas porque se contentam com respostas erradas ou inadequadas para as mais importantes questões da vida. Elas se contentam com refúgios sociais (casamento, carreira, dinheiro, hedonismos) que terminam por fazê-las infelizes de tanto querer ser felizes. Estão tentando saciar a sede com água salgada. Não dá certo. O mar é belo e serve para muitas coisas, mas não para matar a sede. Se as dúvidas não seguem junto a uma relação pessoal com o transcendente, elas poderão potencializar neuroses e demências como aquelas vistas num mundo acadêmico repleto de grandes cérebros, infantilmente aprisionados a vícios ordinários que destroem sua saúde, sua alma e sua autoestima. Lev Tolstói foi, sem dúvida, o maior novelista russo de todos os tempos. Autor de clássicos como Guerra e paz, ele se tornou um dos escritores mais lidos no mundo inteiro. Autor premiadíssimo. Ele morreu em 1910 e, apesar da genialidade literária, teve uma existência diversas vezes tomada pela dor e pelo desespero emocional. A dificuldade em saber qual o real sentido da vida quase o levou ao suicídio. Nada para ele fazia sentido, de modo que a morte talvez fosse a única resposta para sua inquietação. Até que Tolstói encontrou dentro de si um estranho senso da existência de Deus que o levou a prosseguir. Veja o que ele escreveu: Enquanto o meu intelecto estava trabalhando, algo em mim estava trabalhando também, e me impediu de agir […] posso chamar de uma consciência da vida, que era como uma força que obrigou minha mente a seguir em outra direção e me tirar da situação de desespero […] Meu coração se manteve definhando com outra emoção consumidora. Não posso chamar isso de outro nome que não de uma sede de Deus. Este desejo de Deus… veio do meu coração.75 Tolstói chegou perto. Nos momentos mais desesperadores de sua vida, ele encontrou um novo valor e significado na existência motivada pela “consciência da vida”, pelo “desejo por Deus”. Essas expressões descrevem a mesma experiência universal da humanidade, que Calvino chamou de divinitatis sensus, o senso de Deus. Mas para não ser confundido com um mito ou um fantasma é preciso ter certeza de quem ele é. Testemunho pessoal Quando se desenvolve uma relação pessoal com aquele que eu chamaria “Autor da vida”, as dúvidas persistem, mas passam a ser circunstanciais, e a certeza torna-se linear. Essa certeza que vem da relação com Deus não é uma crença intelectual baseada na possibilidade de existir alguém lá em cima. É uma comunhão contínua que, por conseguinte, possui evidências de sua realidade e não se limita a elas. É um sentimento que assume legitimamente caráter irrefutável. Ainda que alguns duvidem dele, será real para aquele que o possui. Eu mesmo já experimentei esse sentimento, mas fica difícil explicá-lo com números, dados ou equações. Talvez uma parábola me ajude a explicitar, ainda que parcialmente, o que sinto. Imagino-me (ou sinto-me) como um garoto que sabe que é amado por seu pai. Há muitas coisas da vida que ele não entende. As noções de apreço ou repreensão paternas nem sempre são claras para aquele que recebe o elogio ou o castigo. Se o pai, porém, é bom e amável alguma explicação existe, ainda que o filho desconheça. O escuro não lhe dá medo, pois, ainda que o candeeiro não permita ver com clareza o rosto de seu pai, a voz rouca contando uma história antes do sono o faz saber que não está sozinho, mesmo depois que o pai se ausentar para seu quarto e apagar a chama. Em situação de perigo, basta gritar por socorro: seu pai está ali ao lado. A história que ele conta toda noite é longa e precisa ser dividida em vários capítulos, que se tornam tão empolgantes quanto a relação entre pai e filho. A cada final, um suspense para o que será contado no outro dia. A cabeça da criança fica cheia de dúvidas: “Como será que o capitão se livrará do Pirata? Onde será que estaria o tesouro perdido que eles estavam procurando?”. São perguntas que permanecem, mas não lhe tiram o sono – pelo contrário, estimulam seu espírito a supor possibilidades e esperar ansiosamente o momento em que o pai continuará revelando o enredo. É assim, nesta parábola, que ilustro minha relação emocional e mental com a dúvida e a certeza. Não sei todas as coisas; e se pretender sabê-las, estarei me revelando o maior dos ignorantes: aquele que nem sabe que não sabe. Se a ciência fala de “verdades provisórias” eu também falo de “verdades Se a ciência fala de “verdades provisórias” eu também falo de “verdades presentes”, revelações divinas que podem ser próprias ou mais relevantes para uma época e não para outra. Isso explica as diferenças de pensamento entre verdadeiros cristãos ao longo do tempo. Também ajuda a entender a existência de valores e comportamentos que não são ideais, mas foram circunstancialmente tolerados pela Providência assim como um pai tolera o filho que faz xixi na cama porque ainda é recém-nascido, mas não espera que o faça quando estiver com 20 anos. Assim, reconheço que não ficaremos para sempre como crianças ternamente colocadas na cama por nossos pais. A natureza urge para que cresçamos e um dia tenhamos de sair de casa e dormir sozinhos. Porém, apenas na aparência. A voz do velho pai continua ecoando na memória, dando-nos a certeza de que somos amados, e, ainda que os brinquedos dos adultos sejam mais caros, e os machucados mais profundos, não somos órfãos de Deus! Não sou ingênuo a ponto de pensar que todos apreciarão o exemplo dado. Posso imaginar as críticas que alguns estejam fazendo. Entenda o que eu disse como a descrição simbólica de um sabor exótico que experimentei. Minha descrição parabólica não será eficaz a menosque o leitor experimente a mesma sensação, sem nenhum tipo de anestesia palatar, e decida a partir disso se está diante de algo bom ou ruim. Garanto que nunca será algo irrelevante. Supondo que a admissão de um desejo não ofende ninguém, eu apreciaria muito se alguém lendo isso desse uma chance para Deus se manifestar em sua vida, dando-lhe as certezas de que precisa. Aquele que eu chamo de “Autor da vida” está mais interessado em salvar você do que uma mãe de tirar o filho de uma casa em chamas. Agora, como dizem os ingleses: “It is up to you”! 70 Disponível em . Acesso em: 12/04/2016. 71 Apud Luís da Câmara Cascudo. Coisas que o povo diz (São Paulo: Global Editora, 2009). 72 René Descartes. Meditações metafísicas 2. Coleção Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural, 1973). 73 René Descartes. O discurso do método (São Paulo: José Olympio, 1960) 74 Jung. The Stages of Life # 752, in The Collected Works of C. G. Jung. Gerhard Adler; Michael Fordham; Herbert Read; William McGuire (eds.). Complete digital edition (Princeton University Press, 2009), vols. VIII e VI. http://poesiasdesaviolopes.blogspot.com.br/search?q=Estado+imagin%C3%A1rio 75 Tolstói apud William James. The Varieties of Religious Experiences: A Study In Human Nature (Nova York: Modern Library, 2002), p. 174. Capítulo 9 As origens do ateísmo Como nasceu o ateísmo? Quando ocorreram os primeiros questionamentos à existência de Deus? Pergunto porque, ao que tudo indica, na história humana o sentimento de fé é anterior à noção de descrença. Mesmo porque, é preciso primeiro se afirmar algo para então duvidar dele. É uma questão de lógica, e não somente isso. Mesmo pensadores assumidamente descomprometidos com qualquer crença religiosa admitem que a percepção mental do Sagrado ou da magia antecipa o ceticismo na história da evolução humana. Mas vamos com calma. Não quero criar discórdias desnecessárias com leitores céticos já no primeiro parágrafo. Sei que não é tão simples assim. Não se trata de dizer quem veio primeiro, “o ovo ou a galinha”. Mesmo porque, num contexto apologético, é de se esperar que ambos os discursos, da fé e do ateísmo, reivindiquem para si a anterioridade no sentimento humano. Isto faria do adversário um fenômeno secundário, não natural, algo que veio depois e, portanto, não faz parte da essência humana. Foi artificialmente imposto a ela. Por outro lado, os evolucionistas otimistas, que leem a teoria de Darwin como sinônimo de progresso constante, argumentam que o que vem depois é sempre melhor do que o que havia antes, pois é a evolução de um princípio primitivo. A discussão sobre isso é longa, com inúmeras propostas, e não quero cansar você com um histórico detalhado de todas elas. Esta é uma “breve” história do ateísmo – apenas para contextualizar nosso assunto e permitir um posicionamento racional acerca dele. Tema tabu Para começo de conversa, o ateísmo é um desses fenômenos sociais difíceis de mensurar historicamente. Dizer quando e por que ele começou não é tarefa fácil, principalmente por se tratar de um assunto tabu. Ateus são muitas vezes tidos por imorais, perigosos, delinquentes. Um estereótipo, convenhamos, sustentado por generalizações e preconceito cegos. Talvez tenha sido por estereótipos assim que tive tanta dificuldade em achar uma bibliografia adequada sobre o assunto. Mas minha busca encontrou bons resultados. Um dos livros mais completos que achei, descrito como um “resumo” de 762 páginas, foi A história do ateísmo, de Georges Minois. Segundo o autor, livros que tratam do tema são tão raros que o mais completo deles, publicado em quatro volumes, foi editado nos anos 1920 na Alemanha e nunca mais atualizado. Trata-se da obra de F. Mauthner, Der Atheismus und seine Geschichte im Abendlande [O ateísmo e sua história no Ocidente]. Mais um livro que apreciei muito foi Do ateísmo ao retorno da religião, escrito pelo teólogo francês Denis Lecompte76. Bem menos denso que o de Minois, ele é importante por apresentar o assunto de maneira distinta, mas igualmente honesta. Porém, para não transformar este texto numa tediosa resenha de publicações sobre o assunto, deixe-me apenas dizer que houve ainda alguns outros materiais muito interessantes que me ajudaram na formulação deste capítulo. Estes citarei apenas em nota77. Pré-história Normalmente a Pré-história é entendida como aquele período anterior à invenção da escrita e do uso dos metais, denominado pela arqueologia e pela antropologia como Idade da Pedra. A interpretação desse período vai depender do background cultural de cada pesquisador. É que, em termos gerais, muitos entendem que o ser humano é o resultado de um processo evolutivo, contínuo, a partir de formas primitivas, enquanto outros, geralmente religiosos, acentuam que há um hiato, um salto qualitativo muito grande entre o homem e os animais que não pode ser explicado por transformações sucessivas, mas pela diferença entre ambos. Portanto, não é a existência do homem pré-histórico e sim sua natureza que divide opiniões. Qual seria, pois, a singularidade desse gênero homo? Talvez aquilo que uns chamam de consciência “mítica”, outros “religiosa”, poderia estar no cerne da distinção humana e, portanto, mereceria ser estudado como uma das mais importantes características de nossa raça. Afinal, desconheço qualquer pesquisa comportamental em que alguém conseguiu tirar a banana de um primata (seja ele orangotango, chimpanzé ou lêmure) sob a promessa de que ele receberá infinitas bananas depois da morte. Esse tipo de barganha que troca o agora pelo porvir eterno parece funcionar só com seres humanos. Inclua-se ainda o fato de que somos os únicos, em meio à natureza, a exigir singularidade. O próprio Thomas Huxley, considerado o “buldogue de Darwin”, embora advogasse com fervor a estreiteza genealógica entre o homem e os símios, concluiu seu famoso livro O lugar do homem na natureza78 com uma nota sobre a necessidade humana de encontrar um lugar que lhe seja essencialmente único. Em outras palavras, conforme admissão recente do primatólogo Frans de Waal, desde o bípede implume de Platão até o animal moral de Richard Wright, continuamos como humanidade tentando achar aquilo que nos torna singulares, aquilo que nos faz sentir especiais no universo e nos torne livres da ideia de sermos apenas animais79. Se essa distinção é real ou fictícia falaremos em outro momento. Por ora, a questão que interessa é: Seria possível encaixar na linha evolutiva do Homo erectus, Homo-faber, Homo sapiens, a figura adicional do Homo religiosus (o que crê) ou do Homo scepticus (o que duvida)? Um pouco de antropologia Desde a era Darwin, os antropólogos amam dar nomes difíceis para os supostos ancestrais da raça humana, e a lista genealógica muda quase como atualizações de aplicativos. Em todo congresso surge uma nova proposta, e não é difícil perceber ideologias políticas, filosóficas e governamentais por detrás tanto de quem defende a ideia como dos que reagem a ela. Não estou falando de teoria da conspiração. Quem lida com o mundo acadêmico sabe que essas coisas existem! Quer um exemplo? Hoje é muito comum falar que o homem moderno evoluiu da África, mas, nos anos 1960 isso era inadmissível para grande parte dos antropólogos. O motivo da resistência estava na agenda racista de acadêmicos de renome da época. Em 1962, só para citar um caso, o antropólogo americano Carleton Coon, famoso professor de Harvard, afirmou: “Se a África foi o berço da humanidade, não passou de um jardim de infância como qualquer outro. A Europa e a Ásia foram realmente nossas principais escolas”80. Assim como ele, uma grande leva de antropólogos sociais preferiu falar de um poligenismo a uma origem única da humanidade. Essa ideia de que todos viríamos de um mesmo casal de ancestrais parecia coisa de criacionistas tentando defender a estória de Adão e Eva. Para eles, os seres humanos evoluíram de modo independente em diferentes regiões doplaneta, pelo que consideravam legítimo falar em “raças humanas”, assim mesmo, no plural, classificando-as, inclusive, em superiores e primitivas. Sei que alguém poderia dizer: “Mas isso é coisa do passado, as teorias mais recentes já superaram esse discurso racista”. Será? Não estou tão seguro disso. Para mim, a genialidade do discernimento temporal não é interpretar a história apenas quando ela se torna passado. É preciso perceber o movimento do tempo enquanto podemos ser testemunhas dele, e não especialistas do que já se foi. O fato é que a paleoantropologia, isto é, o estudo dos chamados hominídeos, seus fósseis e as evidências deixadas por eles, revela-se um amontoado particularmente complexo de hipóteses isoladas, atualizáveis e, em parte, bem contraditórias entre si. Esqueça, portanto, aquela figura bonitinha do seu livro de biologia em que Esqueça, portanto, aquela figura bonitinha do seu livro de biologia em que a sequência evolutiva é vista de modo linear como se o Homo ergaster desse origem ao Homo erectus, passando depois para o Homo habilis, o Australopithecus, o Neandertal até chegar ao Homo sapiens e ao homem moderno (sapiens)81. Pior ainda quando esse desenho vem sob o título “Ancestrais do ser humano”. Tal tipo de imagem faz persistir a falácia linear de que aquelas figurinhas antropomórficas que estão ali são modelos mais antigos de nós mesmos. Não há base alguma para essa afirmação. Interessante que quando eu via essa imagem na pré-adolescência eu já me perguntava: “Onde está a mulher nessa linha? Os homens se transformaram uns nos outros assim de uma hora para outra?”. A pergunta pode ser ingênua, mas não deixa de ter sentido. Primeiro porque não basta um casal de primatas para garantir a evolução, pois os descendentes também devem ser férteis e acasalar entre si ou com parceiros geneticamente compatíveis, o que torna o caso mais complicado do ponto de vista probabilístico. Segundo porque a ausência da mulher não deixa de ser suspeita. Seria este um exemplo de ideologia na ciência? Teríamos aqui um caso de misoginia inconsciente dos primeiros teóricos do evolucionismo? Deixo a pergunta em aberto para que você conclua por si mesmo. Quebra-cabeça evolutivo Voltando ao assunto da taxonomia desenhada pelo evolucionismo, as mais recentes propostas dizem que o Homo sapiens é a espécie sobrevivente do gênero Homo, mas não a única a ter existido. Acredita-se que houve outras que foram se extinguindo com o tempo e o difícil é saber quais delas foram ou não ancestrais do Homo sapiens. Os que advogam a teoria da substituição dizem que a incompatibilidade entre o Homo sapiens e os demais grupos fez com que ele evoluísse de modo independente e fosse o único a resistir, ao passo que os demais foram extintos. Por outro lado, existem o que preferem acreditar numa miscigenação das antigas espécies, de modo que o Homo sapiens procriou com outros grupos humanoides, como os neandertais e o Homo erectus. Isso teria acontecido paralelamente, de modo que, ao mesmo tempo em que surgia na África uma linhagem humana descendente de sapiens e erectus, nascia outra na Europa, fruto da mistura de sapiens e neandertais. Deste modo, africanos e europeus seriam aparentados, mas não constituiriam uma mesma raça humana. A polêmica sobre esse assunto ainda permanece. Não existe qualquer consenso acerca de quais grupos deveriam ou não ser considerados espécies em separado e sobre quais deveriam ser subespécies umas das outras. Em alguns casos, isso se dá pelo exagero de afirmações feitas com base numa lacuna de evidências que é a escassez de fósseis que pudessem validar a teoria. Em outros, por causa das diferenças mínimas usadas para distinguir espécies no gênero Homo – outro assunto ainda em discussão. Recentemente, novos estudos sobre DNA têm colocado mais lenha na fogueira. Vários antropólogos temem que a comprovação de uma teoria da miscigenação possa trazer de volta a pandora do racismo ao afirmar uma significativa diversidade genética entre as populações humanas atuais. Agora imagine a dificuldade, neste cenário nada unificado, de se estabelecer uma teoria para a origem da crença e da descrença humana que seja realmente objetiva (do ponto de vista científico) e agrade a todos. Tarefa difícil, para não dizer impossível. Subjetivismo em alta O tema das origens se torna mais delicado quando se percebe que os estudos clássicos neste sentido – tanto os que advogam quanto os que negam a anterioridade da fé – baseiam-se em indícios escassos – fósseis, ferramentas de pedra, pinturas rupestres, que, por sua vez, são interpretados de modo subjetivo por parte do pesquisador moderno. Por um bom tempo, a partir dos anos 1960, a Nova Arqueologia, também chamada processualismo, buscou com intensa energia encontrar regularidades no comportamento humano que pudessem ser medidas com rigor científico. A abordagem positivista era o sonho de consumo dos arqueólogos, antropólogos e também da sociologia. Mas os anos 1980 trouxeram consigo um profundo questionamento às pretensões processualistas de se tornar uma ciência exata. Alicerçados nos trabalhos de Ian Hodder, Michael Shanks e Christopher Tilley, esse novo movimento, chamado pós-processualismo, seria uma corrente de diversos segmentos contrários ao processualismo, reveladores da realidade que a interpretação arqueológica e antropológica ainda dissertava de maneira subjetiva, pois o que a verdade apurava a partir do registro arqueológico era muitas vezes relativa ao ponto de vista do pesquisador responsável por escavar os fósseis e apresentar os dados. O registro rupestre, por exemplo, é uma daquelas facetas com que o arqueólogo pré-histórico se depara no decorrer de suas atividades e que implica maior subjetividade nas diferentes tentativas de análise e interpretação do que estaria por detrás daqueles símbolos. Afinal, seus autores não estão mais vivos para explanarem o que quiseram dizer com aquilo. Já vi a mesma figura rupestre interpretada diferentemente como calendário, cena comum de caça e ritual de iniciação. E o pior é que todas foram tratadas como conclusões científicas a despeito das divergências subjetivas de seus pesquisadores. Todo esse esforço interpretativo era fruto de uma cooperação entre arqueologia e sociologia, tentando resolver o problema do hiato temporal entre nós e a Pré-história, por meio de observações sistemáticas atuais de comunidades ditas “primitivas” como os esquimós do Alasca e os aborígenes da Austrália. Importantes teóricos como Émile Durkheim, Lewis Binford e Claude Lévi-Strauss lançaram mão desse método analítico. Porém, fora a temerária permanência de um discurso racista e colonialista na interpretação dessas culturas – Foucault já alertara quanto a isso, temos ainda o problema do anacronismo e da subjetividade na análise da cultura material. A assimilação de um suposto pensamento de povos pré-históricos a partir do pensamento de grupos éticos atuais ditos “primitivos” é um pulo teórico bastante contestável. Quer alguns exemplos adicionais de discrepância na análise dos dados? John Lubbock (1834-1913) estudou atentamente povos “primitivos” da Austrália e da Terra do Fogo, concluindo que a humanidade seria basicamente ateia em suas origens, isto é, que o conceito de divindade veio apenas mais tarde na evolução humana82. Já Edward Taylor (1832-1917), analisando as mesmas evidências, chegou a uma conclusão contrária, dizendo que o homem é essencialmente religioso desde suas origens e que o animismo seria a forma original de religiosidade humana83. Antropologia da religião Depois de ler longamente os resultados de várias pesquisas sobre religião e o homem “primitivo” (embora eu não aprecie muito essa expressão), resolvi tomar minha posição sobre esse assunto, abdicando num primeiro momento de minhas pressuposições religiosas. O objetivo é tentar ver que conclusões ou hipóteses eu poderia levantar a partir da cultura material disponível, caso eu não tivesse a Bíblia como fonte de informação. Tal exercício ajudaa iniciar diálogo num campo comum com aqueles que possuem uma cosmovisão diferente da minha. Além disso, me permite criar uma antropologia da religião, ainda que provisória, assumidamente pessoal e esclarecedora de meu pensamento. Eis as conclusões a que cheguei. 1. Não posso assumir uma postura de desprezo em relação a tudo o que se publicou sobre o assunto. Caso contrário, corro o risco de cair numa atitude anti-intelectualista e anticientífica. Contudo, há boas razões para ser no mínimo cauteloso ao fazer inferências a partir de materiais ágrafos ou da comparação entre modernas sociedades caçadoras-coletoras e o homem pré- histórico. 2. Está claro, a despeito das divergências interpretativas, que o homem pré-histórico era um ser que abstraía significado espiritual das coisas. Quer seja de uma forma mágica, religiosa ou mítica, ele era definitivamente um ser espiritual ou, pelo menos, “espiritualizante”, pois não se contentava com o sentido meramente físico das coisas. 3. De fato, vestígios de religiosidade existem entre os povos primitivos. Ainda que revelados em forma de superstições, magias e rituais animistas esses elementos são a expressão clara de um senso do Sagrado. Se houve mesmo uma “revolução” cognitiva da humanidade eu não sei. Também não posso afirmar cientificamente a realidade de uma revelação divina, mas que a religião parece nascer em conjunto com as primeiras abstrações do Homo sapiens, disso não tenho dúvida. O homem pré-histórico (seja ele quem for) passou a crer a partir do momento em que passou a pensar. 4. A tentativa de se negar o caráter religioso ou espiritual dessas evidências talvez esteja na ambiguidade fundamental de qualificar como ateu ou não religioso tudo aquilo que fuja da concepção moderna e ocidental de “religiosidade”. Antigas culturas podem ignorar a nossa concepção de Deus, mas isso não significa que não tivessem uma ideia própria do Sagrado. 5. Alguns indícios levam a crer que a mentalidade pré-histórica era monista, mas não conforme o monismo clássico que conhecemos hoje. O homem daquela época não distinguia entre natural e sobrenatural, entre o culto e o trabalho. Havia uma recorrente dedicação da atividade comum à divindade, em reconhecimento à sustentação da vida. Religião e trabalho eram uma coisa só para ele, o que não quer dizer que não soubesse a diferença entre o comum e o Sagrado, entre o santo e o profano. O homem pré-histórico apenas conseguia ver algo que hoje já não é mais admissível na sociedade: o conceito de mundo físico como reflexo de realidades espirituais. 6. Há elementos suficientes para advogar uma qualificação imaterial de certas relações entre o homem e o universo que o rodeava. A clássica evocação do fascinans e o tremendum, isto é, do fato de estar “fascinado” e de “tremer” diante do Sagrado, é lógica para classificar o sentimento das comunidades pré-históricas. 7. Considerando que as marcas de rituais sagrados estão em toda parte, não é difícil admitir a universalidade de um sentimento religioso nos povos primitivos. Devo, porém, admitir que qualquer tentativa de querer com isso provar uma revelação original de Deus seria, num primeiro momento, um raciocínio abusivo. 8. Se houve mesmo uma gradação evolutiva conforme a teoria de Darwin, a atividade religiosa – contrária ao que afirmam alguns ateus modernos – não foi impeditiva da evolução, pelo contrário, impulsionou-a. Quer tenha surgido no Mioceno ou no Paleolítico superior – conforme as hipóteses que li, o fato é que ir ao topo de uma pedra para oferecer sacrifícios não tornou o clã menos apto à sobrevivência do que o seria se limitassem seu comportamento à caça e à colheita. 9. Pode-se até conjecturar que o sentimento religioso visto na Pré-história seria uma página ultrapassada da evolução e que agora não precisamos mais desse sentimento. Será? Quando ouço antropólogos evolucionistas descrevendo em detalhes a suposta cena de um grupo humano primitivo usando ópio, dançando em torno de uma fogueira e prestando devoção a um feiticeiro e um totem, não posso deixar de imaginar outra cena: alunos daquele mesmo professor correndo, depois da aula, para uma balada muitas vezes regada a maconha e álcool, devotando sua existência a um cantor famoso e a totens modernos como marcas de carro, seriados, filmes, roupa e celular. Ultrapassamos a religião ou apenas mudamos o objeto de culto, mantendo, porém, o rito? Algo a se pensar. Espero, sinceramente, que esta última análise não ofenda você, que se identificou com a cena descrita. Foi apenas uma leitura social. Afinal, se interpretamos com facilidade a sociedade alheia, não devemos nos ofender de interpretarem também a nossa. Se o homem primitivo tinha uma consciência mítica, o de hoje tem um fascínio pela ficção e pelo marketing. Os totens mudaram de forma, mas continuam os mesmos. Antes recorria-se ao guru, hoje vamos atrás dos especialistas em mercado, dos descolados, dos midiáticos. Tudo como uma espécie de soro contra o não afeto e a efemeridade da existência. Como nossos ancestrais, queremos com ritos modernos saciar em pequenas porções nossa sede de sentimentos bons. A cada semana uma nova coleção na vitrine, nova temporada do seriado, novas tendências no mercado da moda. Um restaurante recém- inaugurado no centro, um filme legal que estreia nos cinemas. O que seria isso senão seres humanos agindo como fiéis no templo do consumismo? Não quero, contudo, fazer disso uma tese. Foi apenas uma digressão ou provocação mental, sem pretensões sistemáticas. Afinal de contas não quero ser criticado por cair no mesmo erro processualista a que fiz menção poucas linhas atrás. Não obstante, você há de concordar comigo que usamos com facilidade as coisas, mas não temos a mesma naturalidade para refletir sobre elas e o que significam. O uso parece natural, mas a reflexão tem de ser provocada. E o ateísmo? Estou ciente de que as conclusões anteriores parecem não abrir espaço para o ateísmo na Pré-história. De fato, se trabalho apenas com os elementos antropológicos que a arqueologia me traz, fica difícil encontrar evidências de ceticismo ou ateísmo nessa fase da história humana. Temos indícios apenas daquilo em que se acreditou, mas não daquilo que se negou e, mesmo que o tivéssemos, para que a negação se consolide na história, é necessário que haja antes o elemento a ser negado. É por isso que, na lógica aristotélica, uma proposição ontológica negativa dificilmente será provada. Fica, é claro, a possibilidade de que as interpretações dadas estejam todas erradas e as externalizações pré-históricas nada tenham a ver com o Sagrado. Mas se assim for, esse sentimento não poderia ser chamado de ateísmo, pois não havia nenhuma divindade para ser negada. Muito menos ceticismo, pois não havia nada para ser descrido. Além disso, permanece a pergunta: De onde veio o sentimento humano de busca pelo Sagrado? Em que momento e por que ele irrompeu na trajetória da humanidade? Seria uma imposição social como supôs a proposta marxista? Ou uma necessidade do inconsciente como disse Freud? Seja como for, ainda que as implicações religiosas na Pré-história estejam insuficientemente sistematizadas e o estudo antropológico da indiferença espiritual seja inexistente, não vejo problema em admitir teoricamente que o questionamento às crenças religiosas já estivesse presente nas sociedades primitivas. Se me permitem usar por um instante a Bíblia, é possível perceber no testemunho do Gênesis que a apatia e oposição a Deus já eram vistas desde o princípio da história humana. Caim, os pré-diluvianos, a mulher de Ló, os habitantes de Sodoma são todos representantes de uma antirreligiosidade, ou, pelo menos, de um antagonismo àquela religião revelada por Javé. É claro que a descrição é pejorativa, mas, ainda assim, válida para afirmar que até a Bíblia reconhece o ceticismo e a heterodoxia nos primórdios da humanidade. 76 Denis Lecompte. Do ateísmo ao retorno da religião: Sempre Deus? (São Paulo: Loyola, 2000). 77 D. Berman. A History of Atheismin Britain: from Hobbes to Russell (London: Routledge, 1990); M. J. Buckley. At the origins of modern atheism (New Haven: Yale University Press, 1987); A. McGrath. The Twilight of Atheism: The Rise and Fall of Disbelief in the Modern World (London: Rider Books, 2004); James Thrower. A Short History of Western Atheism (London: Pemberton, 1971). Outra referência ainda mais antiga, da qual infelizmente não consegui qualquer acesso, é um livro publicado há mais de três séculos, em 1663, cujo título é Scrutinium atheismi historico- aetiologicum [Investigação histórico-etiológica do ateísmo], de Spitzel. 78 Disponível em . Acesso em: 13/08/2017. 79 Frans de Waal. Eu, primata: por que somos como somos (São Paulo: Companhia das Letras, 2007). 80 Carleton S. Coon. The Origins of Races (New York: Alfred A. Knopf, 1962), p. 656. 81 O Homo sapiens sapiens é considerado uma subespécie do Homo sapiens. As características do Homo sapiens sapiens são as que definem o homem moderno. No entanto, desde algum tempo essa denominação deixou de ser usada, uma vez que se descartou o nexo filogenético entre o Homo neanderthalensis e o ser humano de hoje em dia. Mas como nossos estudos a partir do DNA estão ressuscitando essa proposta, é possível que a expressão volte a aparecer nos livros didáticos. 82 John Lubbock. The Origin of Civilization and the Primitive Condition of Man: Mental and Social Condition of Savages (Cambridge: University Printing House, 2014). 83 Edward Tylor. Primitive Culture (1871). Disponível em . Acesso em: 13/08/2017. http://www.gutenberg.org/ebooks/2931 https://archive.org/details/primitiveculture01tylouoft Capítulo 10 Ateísmo na Antiguidade Como foi dito no capítulo anterior, não é tarefa fácil traçar uma cronologia linear do pensamento ateísta. O que se pode dizer é que desde longo tempo já existiam descrentes no mundo, embora fossem sempre uma minoria quase anônima. Daí a dificuldade de mapeá-los na história. Um exemplo clássico foi Jean Meslier (1664-1729), ateu convicto, que permaneceu padre e celebrou missas até o final de sua vida, em 1729. Não me surpreenderei se houver muitos outros Mesliers ocultos na história. Outro dado importante é que, ao falar de ateísmo na Antiguidade, temos de cuidar para não cometer erros de anacronismo, isto é, transferir artificialmente um dado comportamento para um tempo e realidade que não lhe dizem respeito. Por isso, não se pode descrever a descrença dos antigos de maneira indiscriminada, sem nenhum rigor. Ao apresentá-la, é importante que se explique em que sentido seus proponentes poderiam ou não ser classificados como “ateus”. Poucos talvez saibam, mas no passado os primeiros cristãos foram, oficialmente, declarados ateus pelo império Romano e, por isso, proibidos de exercer sua fé religiosa. Quem dá essa informação é Atenágoras, erudito cristão de Atenas, que escreveu no segundo século uma apologia ao Imperador Marco Aurélio chamada Legatio pro Christianis. O motivo da acusação de ateísmo não era porque os cristãos não aceitassem a existência de Deus, mas porque desprezavam os deuses greco-romanos. Essa, aliás, foi a mesma acusação sofrida 600 anos antes por Sócrates, um dos maiores pensadores da cultura grega. Ele foi condenado a beber veneno, porque havia corrompido a juventude ao questionar a eficácia e a moralidade dos deuses do Olimpo. Há ainda que considerar que o ateísmo é uma, mas não a única forma de questionamento de Deus. Temos também os desdobramentos do agnosticismo, deísmo, panteísmo e outras formas de ceticismo que não negam diretamente a existência de uma divindade, mas desconfiam fortemente da descrição da teologia proposta pela igreja. Neste capítulo, exceto por uma breve menção à Mesopotâmia e ao budismo, nosso foco ficará apenas na história clássica ocidental, por questões de objetividade do tema. O ceticismo de Pirro e Homero Se hoje devemos ter cuidado em definir alguém como ateu convicto imagine no passado. Vamos pensar no caso de Pirro. Muitos o tratam como pioneiro do ateísmo, com o que eu discordo. Ele viveu em Élida, oeste da Grécia, entre os séculos 4 e 3 a.C. Fez parte do exército de Alexandre, o Grande, e foi um dos primeiros filósofos céticos, fundador da escola pirrorista. O ceticismo de Pirro, porém, era contra toda forma de dogmatismo, até daquele que descria. Ou seja, muitos que hoje afirmam sem qualquer dúvida que Deus não existe não teriam o apoio dele. Sua postura intelectual estava mais para o agnosticismo empírico que para o ateísmo como entendido hoje. Se Pirro tivesse vivido no século 21 e fosse inquirido acerca da existência de Deus, provavelmente diria que a concepção de um universo criado por um ser transcendente é algo lógico e possível. Porém, também é possível imaginar um cosmo solitário e materialista. Como ambas as hipóteses são verossímeis, mas não verificáveis, é impossível afirmar uma coisa ou outra. Veja, no entanto, que interessante a visão questionadora de Deus que encontramos em outros textos da Antiguidade Clássica. Nas famosas Ilíada e Odisseia de Homero, compostas no século 9 a.C., os deuses são descritos como corruptos, vãos, caprichosos e egoístas – seres que, mesmo cultuados, não merecem respeito. Perceba que, embora o autor demonstre acreditar na existência das divindades, exalta mais o heroísmo humano que as desafia e as vence em diferentes situações. Por isso o poema, em vez de enaltecer o panteão do Olimpo, destaca os heróis humanos e semi-humanos como Ulisses, Aquiles, Agamenon, Heitor e Páris. Salvaguardadas as peculiaridades de cada tempo, arrisco dizer que a literatura homérica foi a primeira grande obra humanista da história ocidental. O Antigo Oriente Para representar o mundo do Antigo Oriente, eu elegeria o épico de Gilgamesh. Embora suas origens retrocedam ao segundo ou terceiro milênio a.C., as cópias que temos vêm do século 7 a.C., da biblioteca de Assurbanipal, rei da Assíria. Portanto, estamos no contexto da Antiguidade Clássica. Ali, semelhante aos textos homéricos, o protagonismo da histórica recai sobre heróis humanos ou semi-humanos como Enkidu, Utnapishtim e o próprio Gilgamesh. Novamente, percebe-se o poder dos deuses e a predominância humana a despeito disso. A saga se resume nisso: Gilgamesh era um poderoso rei de Uruk, protegido pelo deus Sol, que se tornou cruel e despótico para com seu povo. Num ato de extrema tirania ele obrigou o povo a construir uma gigantesca muralha em torno de sua cidade. Amedrontados e fatigados, os cidadãos clamaram à deusa Ishtar, que enviou Enkidu para salvá-los. Este herói vivia nas florestas e nada sabia a respeito do homem nem do cultivo da terra. Era o símbolo máximo do ser incivilizado. Seus cabelos longos e emaranhados são descritos no texto como sinal de personalidade rude e mais primitiva. Ele deveria desafiar e vencer Gilgamesh em um duelo, mas, em vez disso, tornou-se amigo do rei. A amizade de ambos os levou a diversas aventuras, destruindo monstros e harmonizando o mundo. Porém, Ishtar sentiu ciúmes dessa amizade e tentou seduzir Gilgamesh, sabendo que aquele que a amasse morreria. Esse, porém, não aceitou ser seu amante, pelo que ela, em ódio, envenenou Enkidu, infligindo a ele uma doença que o deixou agonizando por dias antes de morrer. Com a perda do amigo, Gilgamesh resolveu ir atrás de novas aventuras, até encontrar Utnapishtim, um homem imortal que lhe revelou a trama divina contra a humanidade: em tempos remotos os deuses decidiram inundar a terra de Shuruppak com um terrível dilúvio. Apenas ele, com algumas pessoas e animais que ele mesmo salvou, conseguiram escapar da enchente, fruto de um capricho dos deuses. Os homens faziam muito barulho e atrapalhavam sua sesta. Tal construção de argumentos fez o assiriólogo William L. Moran concluir que estamos diante de um verdadeiro relato humanista da antiga Suméria84. Ali se pode ver uma insistência tanto nos valores, quanto na limitação do gênerohumano. O caráter dos deuses não é descrito de maneira piedosa e o protagonismo do homem em desafiá-los é emblemático. Budismo: um caso à parte Não se pode traçar um quadro completo da história do ateísmo, ainda que resumido, sem passar pelo budismo. Não que se trate de um movimento necessariamente ateísta, afinal de contas continua sendo um seguimento religioso. Contudo, distingue-se em muitas coisas dos cultos tradicionalmente teístas e animistas. O budismo nasceu no norte da Índia, atualmente o Nepal, no século 6 a.C., com Siddhartha Gautama, mais tarde cognominado Buda (o Iluminado). Ele era um rico príncipe pertencente à família dos Śākyas que deixou tudo para buscar a iluminação. De acordo com seus biógrafos, não era intenção de Buda converter ninguém. Seu intuito era iluminar as pessoas com seus ensinamentos, frutos de sua própria experiência, e deixar que elas mesmas experimentassem a luz por si. Hoje o budismo se espalhou por lugares como Índia, Ásia, Ásia Central, Tibete, Sri Lanka, Sudeste Asiático, bem como China, Myanmar, Coreia, Vietnã e Japão. Embora em menor escala, ele também pode ser encontrado na Europa, na África e nas Américas. Mas seria o budismo uma religião realmente sem Deus? A resposta é não, por vários motivos. Primeiro vem a questão de ser ou não o budismo uma religião ou apenas uma filosofia de vida. Eu, particularmente, enxergo como religião, pelo menos nas formas que vemos sua prática nos dias de hoje. Digo “formas” porque o budismo está longe de ser um seguimento uniforme. Ademais, as divergências em torno do que realmente Buda ensinou são mais distintas que as ramificações do cristianismo em torno dos ensinos de Jesus. Além disso, ainda que Siddhartha pretendesse criar um caminho espiritual sem Deus, sentir-se-ia frustrado diante do que se tornou o seu movimento. No antigo Ceilão (atual Sri Lanka) e em Burma (República de Myanmar), ainda há muitos budistas que assumem os ensinamentos daquela forma antiga, tradicionalmente vinculada ao Buda. Porém, no Tibete, na China e em outros países, o budismo tem se tornado uma religião de “muitos ‘deuses’ e muitos ‘senhores’”. Buda prometeu tornar o homem livre através do conhecimento. Mas para muitos homens o conhecimento não é o bastante. Eles se sentem na necessidade de adorar, de modo que os deuses foram trazidos de volta para dentro de uma religião que tinha começado pela pretensão de viver à margem de qualquer tipo de divindade. É claro que se você perguntar a um budista se Deus existe ele dirá que você precisa ver isso por si mesmo. O conceito básico de um Deus eterno, autossuficiente e independente não aparece nos escritos de Buda. Entretanto, embora se esquivem em falar de um Deus pessoal, os budistas não negam sua existência, pois não creem poder afirmar coisas sem comprová-las na prática. Por isso eles preferem dar orientações, e não crenças, embora, às vezes seja difícil diferenciar entre uma coisa e outra. Portanto, é comum dizer que o budismo está mais para religião não teísta do que ateísta, pois não faz menção a nenhuma divindade, porém não nega a existência de nenhuma delas. O paradoxo de Epicuro É impossível fazer esse levantamento sem falar de Epicuro. Ele não era necessariamente ateu, mas descria na existência de um Deus preocupado com os seres humanos. Sua filosofia está mais próxima do que Voltaire chamaria no futuro de deísmo – um Deus que existe, é responsável pela existência do universo, mas não se importa com ele. Um paradoxo atribuído a Epicuro, que voltaremos a comentar, explica por que, em sua concepção, é impossível crer num Deus bom e poderoso, uma vez que lidamos com o problema do mal. Ou Deus quer abolir o mal e não pode; ou ele pode, mas não quer. Se ele quer, mas não pode, ele é impotente. Se ele pode e não quer, ele é cruel. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto, nem sequer é Deus. Mas se Deus tanto pode quanto quer abolir o mal, como pode haver maldade no mundo? Por que razão é que não os impede?85 Império Romano Dos tempos de Roma, extraímos as figuras de Cícero e Lucrécio, dois grandes pensadores que viveram no século 1 a.C. É claro que o ateísmo como conhecemos hoje também não se encontra presente neles, pois seus deuses também possuem certa forma de “existência”, embora muito afastada dos homens. Talvez seria melhor chamá-los de deístas. Contudo, esses dois personagens são reveladores, pois mostram que questionamentos a Deus ou às imagens distorcidas de Deus já é algo que vem de longa data. Afinal todos esses autores não pareciam se revoltar com outra coisa senão a propaganda religiosa que a elite financiava, a fim de sustentar a injustiça e o domínio impiedoso dos povos. Lucrécio, por exemplo, dizia que a religião era algo inventado pelos líderes para estar a serviço do terror. Cícero, por sua vez, grande advogado e estadista dos dias de Júlio Cesar, entrou em crise existencial depois da morte de sua filha Túlia. Ele então escreveu um livro “sobre os deveres” no qual defendeu que os homens são livres e não devem nada aos deuses. Esses seres divinos não têm controle algum da história. Nada na vida é certo e seguro, tudo está nas mãos do acaso, não há como fugir disso. Idade Média Devido à hegemonia eclesiástica nos tempos medievais, é praticamente impossível encontrar ali pensadores declaradamente ateus ou grupos organizados sob esta bandeira. Se houve, foram poucos e discretos. Metafísica, religião e teologia eram os temas de maior interesse entre os pensadores. Porém, fragmentos de correntes contrárias ao teísmo oficial da Igreja podem ser vistos nessa época, como, por exemplo, o ceticismo, cuja doutrina defende a impossibilidade de se alcançar o “verdadeiro conhecimento”, e o naturalismo, segundo o qual quem governa o mundo são apenas as forças naturais. Todos, é claro, vieram do mundo greco-romano. Acrescente-se a isso o surgimento de algumas concepções heterodoxas do Deus cristão. Elas, de certa forma, conseguiram conviver com a teologia oficial de Roma, embora incluíssem em seu bojo ideias bastante particulares como as definições sobre a natureza, transcendência e cognoscibilidade de Deus. Autores como João Escoto Erígena, David de Dinant, Amalrico de Bena e os Irmãos do Livre Espírito mantinham pontos de vista cristãos, mas com tendências panteístas. Nicolau de Cusa sustentava uma forma de fideísmo que chamou de docta ignorantia (ignorância aprendida), afirmando que Deus está além da categorização humana e que o nosso conhecimento dele é limitado pela conjectura. Guilherme de Ockham inspirou tendências antimetafísicas com a sua limitação nominalista do conhecimento humano para objetos singulares e afirmou que a essência divina não poderia ser intuitiva ou racionalmente apreendida pelo intelecto humano. Tempos modernos Todo estudante de história sabe que as definições de períodos, como Idade Antiga, Idade Média etc., são atributos artificiais difíceis de mensurar milimetricamente. Ou seja, não houve um dia em que um europeu fosse dormir na Antiguidade e acordasse no Período Bizantino. Assim, falamos por aproximação cronológica e conceitual, de modo que os tempos modernos começam com uma série de outros movimentos de singular importância como o renascentismo, o empirismo, a revolução científica etc. Ao que tudo indica, os movimentos ateus ou, pelo menos, desacordados com o teísmo eclesiástico oficial começam aos poucos a sair de seu anonimato e ganhar ares de publicidade. Entre os séculos 15 e 16, por exemplo, temos o italiano Pietro Pomponazzi, que negou a imortalidade da alma e, ainda veladamente, a existência de Deus. Seu compatriota Maquiavel separou a política da religião e considerou esta última um instrumento do poder. Nesta época, embora a palavra atheos já existisse no vocabulário grego antigo e até no da Bíblia Sagrada (Efésios 2:12), não havia um cognato que a descrevesse como seguimento ou escola de pensamento. Então surgiu no século 16 o termo ateísmo. Deve-se esclarecer, porém, que a ideia de um ateísmo positivistasó seria sistematizada a partir do século 18, quando pensadores declaradamente descrentes em Deus começaram a ter certa influência política e filosófica, especialmente na Europa posterior à Revolução Francesa. O que se nota é que o sentimento, mormente reprimido, tornou-se a partir de então um movimento declarado e quase um senso comum dentro de determinados grupos de pensadores. Sua força, no entanto, concentrava-se no território europeu. A princípio, o intento desses intelectuais era denunciar apaixonadamente mentiras, desmandos e ilusões atribuídos ao cristianismo. Homens como Robespierre, Diderot, Holbach e Marx pretendiam libertar as mentes da influência esmagadora de uma religião que, na visão deles, oprimia e manipulava os povos. Mas o que realmente deu início a esses movimentos modernos da negação de Deus? O Deus de Spinoza Baruch Spinoza – nascido em 1632 em Amsterdã, falecido em Haia em 21 de fevereiro de 1677 – foi um dos grandes racionalistas do século 17 dentro da chamada Filosofia Moderna, juntamente com René Descartes e Gottfried Leibniz. Era de família judaica portuguesa e é considerado o fundador do criticismo bíblico moderno. Sua metafísica é resumida na famosa frase em latim “Deus, sive Natura”, que, traduzida, significa “Deus ou a Natureza”. Há controvérsias se essas palavras deveras vieram dele, bem como se elas intentavam naturalizar Deus ou divinizar a natureza. Porém refletem a forma como ele via Deus na harmonia da natureza vivente, bem como seu pensamento inquisitivo em relação à Bíblia. Em seu livro Ética e no Tratado sobre a religião e o Estado, ele delineia a sua concepção de um Deus despersonalizado e geométrico, contrária a todas as formas teológicas de então que viam o Criador como uma entidade, oculta e transcendente, que se revela e age conforme sua vontade soberana. Sua teoria não compartilhava a ideia de um Deus autocrático, que controla a tudo e a todos e se refugia em algum ponto distante da abóbada celeste. Deus como base de sustentação e a condição subjacente da realidade como um todo. Um Deus imbuído da mais clara evidência e certeza racional; que se autoconstitui como causa de si e de todas as coisas; que se move em função de uma necessidade que lhe é intrínseca e gerada de sua própria essência, a rigor: por meio de processos mecânico-causais e de leis invariáveis, responsáveis pelo total funcionamento e ordenamento do mundo. Há quem diga que a visão de Spinoza era panteísta, pois iguala Deus à natureza. Logo, ele não seria o criador do mundo, como afirmam as religiões monoteístas, nem o Motor Imóvel de Aristóteles, que a tudo movimenta. Igualmente por não haver uma separação entre corpo e espírito, como afirmou Descartes, Deus seria, nesta concepção panteísta, uma substância única, de modo que todas as coisas que existem seriam variações dos atributos infinitos dessa substância fundamental. Deus é o próprio mundo, Deus é a própria natureza. Nossa mente e nosso corpo finitos são apenas dois atributos dessa substância infinita. Para Spinoza, nós somos, vivemos e nos movimentamos em Deus. Da mesma forma que aconteceu com Giordano Bruno, Spinoza foi condenado à fogueira por afirmar que o universo é infinito, igualando Deus à natureza. Antes disso, foi expulso da comunidade judaica e condenado ao ostracismo por afirmar que todas as coisas que existem são variações de uma única substância, que é o próprio Deus. Tanto a visão de Giordano como a de Espinosa, embora não sejam ateias, são, de fato, concepções panteístas da natureza. Algo, em princípio, inaceitável para tradição judaico-cristã. Um abalo na história No dia 1º de novembro 1755, ironicamente no “Dia de Todos os Santos”, o feriado católico foi interrompido por uma das maiores tragédias da história. Foi em Lisboa, Portugal, por volta das 9h40 da manhã (horário local). A cidade foi quase que inteiramente destruída por um terremoto que os especialistas consideram ter alcançado 9 pontos na escala Richter. As regiões de Setúbal e Algarve também sentiram os efeitos sísmicos. Em seguida veio um tsunami com ondas de 20 metros de altura atingido até a costa dos Estados Unidos. Some a isso tudo o fato de Lisboa ser uma cidade oceânica, com áreas de fácil inundação na parte baixa e péssimas condições de construção da época (a maior parte eram casebres de até sete andares). O porto, é claro, ficou submerso juntamente com o centro da cidade de Lisboa. Nas áreas não atingidas pela inundação, irromperam-se incêndios incontroláveis que duraram pelo menos cinco dias. Os prejuízos foram incalculáveis. Estimativas somam entre 10 e 90 mil o número de pessoas mortas em decorrência da catástrofe. O terremoto, não obstante, trouxe bem mais do que mortes e destruições físicas. Houve também um abalo filosófico cujas proporções não podem ser medidas pela escala Richter. Do outro lado da Europa, Voltaire, já com duas dezenas de obras publicadas, sentiu o chão de suas convicções tremer juntamente com os efeitos sísmicos. Onde estaria o grande Criador, Ser Supremo, de bondade e misericórdia, que largou a esmo o mundo deixando tudo isto acontecer? Castigo, dirão alguns! Se é um castigo divino; que se penalizem todos, e não apenas uma parte. A catástrofe portuguesa realmente fez ruir as concepções que Voltaire tinha do mundo e, na sua genialidade, ele terminou se tornando o precursor de outros questionamentos que certamente vieram como consequência de sua própria decepção com Deus. Tal coisa, dizia ele, jamais poderia acontecer se a Terra fosse, como até então se pensava, fruto da criação de Deus, regulada por princípios de ordem, cuidado e harmonia. Voltaire, então, responde à desilusão com a mesma força com que esta se apoderara dele. Para isso usa Cândido (1759), personagem fictício de uma comédia romântica que Voltaire preferiu assinar com o pseudônimo de Monsieur le docteur Ralph (Senhor Doutor Ralph). A Igreja Católica é o principal alvo da obra, através da qual o filósofo francês demonstra com humor que, após o terramoto que assolou Lisboa, só mesmo alguém muito ingênuo, muito cândido, poderia continuar a acreditar que vivia num mundo de bem, regido por bondade e misericórdia. Num poema intitulado “Sobre o desastre de Lisboa”, Voltaire escreveu: Ó infelizes mortais, ó terra deplorável. Ó ajuntamento assustador de seres humanos! Eterna diversão de inúteis dores! Filósofos alienados que proclamam: “Tudo vai bem”. Venham contemplar essas ruínas horrendas, esses destroços, esses farrapos, essas cinzas malditas, essas mulheres e essas crianças amontoadas sob mármores partidos, seus membros espalhados. Cem mil desafortunados que a terra devora, que sangrando, dilacerados, e ainda palpitando, enterrados sob seus tetos, sucumbem sem socorro, no horror de tormentas findando seus dias! Diante dos gritos de suas vozes moribundas, do horror de suas cinzas ainda crepitantes, vocês dirão: é a consequência de leis eternas que um Deus livre e bom resolveu aplicar?! Vocês dirão, vendo esse amontoado de vítimas: Deus vingou-se, e a morte deles é o preço de seus crimes?! Que crime, que falta cometeram essas crianças esmagadas e sangrentas sobre o seio materno? Lisboa, que não mais existe, teria mais vícios que Londres, que Paris, submersas em delícias? Lisboa está destruída e dança-se em Paris. Espectadores tranquilos, intrépidos espíritos, contemplando a desgraça desses moribundos, vocês procuram – em paz – as causas do desastre. Tudo vai bem – dizem vocês – e tudo é necessário. Por acaso o universo, sem esse abismo infernal, sem submergir Lisboa, estava sendo pior?86 Voltaire não se tornou ateu. Ele continuava crendo na existência de Deus. Porém, não mais em seu cuidado paternal. Antes seu pensamento, à semelhança de Newton, concebia um universo mecânico que obviamente exigia a existência de um grande engenheiro idealizador de todas as engrenagens cósmicas87. O relógio, figura de linguagem usada por Voltaire, demanda a imagem de um relojoeiro cósmico que origina tudo que existe. Contudo, um detalhe passou porseus olhos na ilustração e só veio à tona a partir de uma reflexão sobre a tragédia de Lisboa. O relojoeiro pode fazer o relógio e abandoná-lo. Basta que se dê corda e o mecanismo funcionará por si mesmo. Assim nasceu o deísmo, da ideia de um Deus que dá corda no universo e o deixa funcionado sem intervir em seu mecanismo. Ele fez e abandonou. A catástrofe foi motivo para equacionar várias outras questões sobre religião, ciência e fé. Novos conceitos filosóficos surgiam buscando encontrar qual o papel do homem na história deste mundo. As grandes interrogações que se punham, pelo menos na Europa das Luzes, poucas décadas antes da Grande Revolução de 1789, eram a prevalência (ou não) da vontade divina e a margem de manobra que o homem tinha para decidir o seu devir. Em síntese – Deus e o homem, quem decide o quê? Sistematização da descrença Se analisarmos o ateísmo como uma posição filosófica explícita e sistematizada então devemos dar um salto na história e localizar não suas raízes, mas pelo menos o seu desenvolvimento ou inspiração nas ideias tardias de René Descartes, John Locke e George Berkeley – embora eles também não fossem necessariamente ateus. Todos esses autores citados, do mesmo modo que os mais antigos, começaram por criticar a imagem de Deus que advinha de uma teologia corrupta como aquela que nasceu na Idade Média, mas ainda tinha sua influência na Idade Moderna. A Queda da Bastilha, o Iluminismo e a Revolução Francesa foram emblemáticos neste período de transformações mentais. Mais tarde vieram outros como Feuerbach, Marx, Darwin, Nietzsche e Freud num crescente rompimento cada vez mais aberto com a religiosidade, especialmente aquela de raízes judaico-cristãs. Um desdobramento ainda mais radical das ideias originais queria ultrapassar os limites da denúncia e fundar um humanismo oficial, absoluto. Muitos desses pensadores estavam convictos de que baniriam a religião do Ocidente, e a Europa parecia validar esse anseio. Ao adentrar os limites do século 20, era impressionante o número de igrejas que eram fechadas por falta de membros. A teologia advinda da Alemanha tornara-se cada vez mais liberal e influenciadora de importantes escolas na Europa e nos Estados Unidos. Os sociólogos finalmente respiravam os ares de que finalmente a humanidade fundaria um sistema de governo que fosse o verdadeiro paraíso na Terra, deixando para trás formas opressoras como o feudalismo, a monarquia e, na era marxista, o capitalismo. Sua utopia era a fundação de uma sociedade que devolveria ao homem a liberdade racional que a fé lhe roubou. Este era exatamente o projeto de Feuerbach e seus sucessores. Era realmente uma convicção ateísta e social que animava os herdeiros do humanismo e positivismo de Comte. A religião realmente parecia fadada ao fracasso. Mas a Segunda Guerra Mundial parece ter frustrado esses prognósticos. O desencanto com a tecnologia e os governos fez os sentimentos religiosos ressurgirem como a fênix, embora bem diferentes do que eram antigamente. Então vieram intelectuais batendo de frente com o ceticismo, alguns bem anti-humanistas, outros nem tanto. Nomes como Chesterton, C. S. Lewis, Tolkien, Teilhard de Chardin começaram a fazer parte da lista de acadêmicos sérios que ainda se apegavam à ideia de Deus. Assim, a concretização de um paraíso 100% humanístico ficou só na teoria. Deus e os anjos recusaram bater asas e ir embora. O mundo, a despeito das novas propostas neoateístas, continua majoritariamente crente em algum tipo de divindade. O placar está quase 9 a 1 para o teísmo. Vamos comemorar? De jeito nenhum. O expressivo percentual de teístas no mundo, desgraçadamente, não parece oferecer vantagem alguma. Afinal, se crer em Deus é algo realmente virtuoso, e descrer é um chamariz para castigos, o mundo deveria estar melhor por estar lotado de crentes, certo? O fato é que o planeta está um caos. Ele não parece mais bem gerido por governantes religiosos. Quanto maior o número de religiões, maior o número de guerras, atentados, disputas, corrupção e violência. Será que realmente o ateísmo tem aqui um ponto a favor de seu discurso? 84 William L. Moran. “The Gilgamesh Epic: A Masterpiece from Ancient Mesopotamia”, in Civilizations of the Ancient Near East, v. 4, Jack M. Sasson (ed.) (New York: Scribner’s Sons, 1995), p. 2.327-2.336. 85 A fonte “original” desta citação está numa obra cristã do século 4 produzida por Lactâncio, o que alguns consideram uma atribuição errada do teólogo cristão. Ela ecoa mais a linha de Carneades que a do epicurismo. Seja como for, ela está na obra De Ira Dei 13, 20-21. Cf. William Fletcher, in Ante- Nicene Fathers, v. 7, Alexander Roberts; James Donaldson; A. Cleveland Coxe (eds.) (Buffalo: Christian Literature Publishing Co., 1886). Revisado e editado eletronicamente para New Advent por Kevin Knight. Disponível em . Acesso em: 11/12/2017. 86 Apud Edward Paice. A ira de Deus (Alfragide: Casa das Letras, 2008), contracapa. 87 Voltaire. Tratado de metafísica. 2. ed. (São Paulo: Abril Cultural, 1978). http://www.newadvent.org/fathers/0703.htm Capítulo 11 Quando crentes viram bandidos Dizem por aí que contra números não há argumentos. Essa é uma bandeira defendida por muitos estatísticos. Contudo, deve-se levar em conta que a objetividade dos números pode contemplar mais de uma conclusão e, inclusive, induzir ao erro. “Torturem os números que eles confessam” – dizia o título de um livro sobre o exagero e o mau uso da estatística, escrito por Pedro Nogueira Ramos88. Lembro-me, por exemplo, de um militante antirreligioso que tentou argumentar, com um exemplo à brasileira, usando uma fala semelhante à de Sam Harris acerca de os presídios terem mais religiosos que ateus cumprindo pena89, ou seja, os criminosos estão mais no time dos crentes que dos descrentes. Ele então citou uma pesquisa coordenada pelo sociólogo Clemir Fernandes segundo a qual os evangélicos são incontestavelmente o grupo mais numeroso e disseminado nos presídios, especialmente do Rio de Janeiro. O estudo de fato existe, embora não publicado, e tive acesso a ele90. O problema é que quem citou o trabalho não mencionou três importantes conclusões a que o próprio grupo de pesquisa e seu coordenador chegaram. 1. Os números mostram que esta predominância acompanha o crescimento populacional dos evangélicos no Brasil, conforme dados do IBGE. O censo de 2000, comparado ao de 2010, revelou um aumento de 61% daqueles que se diziam evangélicos. Trata-se, portanto, de um reflexo populacional, e não uma evidência de que crentes são mais perigosos que ateus. 2. Os dados revelaram ainda uma mudança no perfil dos presidiários, coincidente com o aumento significativo de evangélicos ali. O ambiente, apesar de ainda conter rebeliões, é sensivelmente menos tenso, tanto para presos como para funcionários. 3. Muitos desses presos se “convertem” durante o cumprimento da pena e isso também decorre do acentuado trabalho que evangélicos fazem nos presídios com o fim de arrebanhar fiéis. Logo, o aumento da população carcerária evangélica também é um reflexo do trabalho social que tais agremiações religiosas fazem tanto nas periferias quanto nos presídios estaduais. E tem mais, o fato de muitos se identificarem como evangélicos não significa que o sejam de fato. Um dos documentos que sempre se ajuntam aos inquéritos de um detento é o que o ministério público chama de FAP (Folha de Antecedentes Penais), em que há um resumo da vida pregressa do sujeito. Um dos campos é justamente se o preso tinha ou não religião antes de ser preso e que lugares costumava frequentar. Pode ter certeza de que é a minoria das minorias que realmente foi membro assíduo de uma religião no passado. Daí a evidência de que não é a religião que torna o sujeito um criminoso. Ademais, o título de “convertido” lhe dá certos privilégios ligados ao “bom comportamento”. É mais fácil para ele conseguir indulto de Natal, saídas especiais e até liberdade condicional. Fora o fato deque, como crente, ele pode pedir para morar na “ala dos irmãos” – um setor do presídio com risco bem menor de trazer danos à sua integridade física. Quanto à veracidade de sua “entrega a Jesus” – isso já é outra história. Percebeu, portanto, o erro de se tomar apressadamente números e querer dizer coisas com eles? As cadeias refletem números sociais semelhantes ao que vemos fora delas. Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), há muito mais jovens negros e pobres nas prisões que brancos e ricos. Porém, essa realidade não permite dizer que a cor da pele faz do sujeito mais perigoso ou menos honesto. Percentagens nem sempre validam aquilo que queremos dizer com elas. O estudo estatístico é muito bem-vindo, mas precisa ser tecnicamente elaborado para não induzir ao erro. Estas observações, contudo, não eliminam outro dilema: vivemos num mundo, sem dúvida, numericamente dominado por religiosos ou, pelo menos, por pessoas que dizem crer em Deus. Os ateus são uma minoria que oscila entre 11 e 13% da população mundial dependendo da fonte e ninguém duvida disso91. Seria isso, porém, um motivo de comemoração nas igrejas? Estes dados merecem um culto de ação de graças pela vitória da fé? Em outras palavras, o mundo está melhor, por estar nas mãos de pessoas que se dizem crentes? A resposta parece ser um sonoro não. Religiosos no comando Em 1830, um jurista francês chamado Alexis de Tocqueville partiu para os Estados Unidos numa missão acadêmica e, ao mesmo tempo, político- diplomática: ele estava realizando uma pesquisa junto ao sistema penal norte-americano a fim de descobrir por que havia tão poucos crimes e tão poucas prisões. Nos Estados Unidos, na época, havia muito menos violência que na França, a qual, desde a Revolução Francesa, proclamara-se oficialmente um país ateu. Junto a outro jovem jurista chamado Gustave de Beaumont, Tocqueville aportou em Newport, Rhode Island, no dia 9 de maio de 1831. Durante os onze meses seguintes, ele e seu companheiro fizeram um longo percurso de 7.500 quilômetros dentro do território americano, passando por 18 dos 24 estados que então compunham a União. Partindo de Nova York, foram ao Canadá e, em seguida, a Nova Orleans. Das margens do Rio Mississipi, seguiram para o norte, rumo a Washington, DC. Já em Nova York, novamente, tomaram um navio para a França, em 20 de fevereiro de 1832. No caminho, entrevistaram até mesmo dois ex-presidentes americanos. Após vários meses de estudo, Tocqueville publicou em 1840 um livro intitulado A democracia na América, que foi traduzido para vários idiomas, entre eles, o português92. Ele concluiu que a importância que os americanos davam à religião e a uma vida pautada por normas bíblicas era, sem dúvida, o que fazia a diferença. Ele escreveu: Procurei pela grandeza norte-americana em seus pontos amplos, nos seus extensos rios, em seus campos férteis e nas suas florestas sem fim, mas ela não estava lá. Procurei nas minas cheias de riquezas, no seu vasto comércio mundial, no seu sofisticado sistema de escolas públicas e nas instituições de ensino superior, e também não estava lá. Procurei então no Congresso democrático e na constituição americana e até ouvi discursos inflamados de justiça. Só aí entendi o segredo de sua força e o espírito do seu poder. Os Estados Unidos são grandes porque são bons; se algum dia deixarem de ser bons, deixarão de ser grandes. O problema com essa declaração tão positiva e otimista em relação à América religiosa é que o cenário hoje está totalmente diferente, mesmo com a religião tão em alta naquele país. Sei que os mais conservadores dirão que a América de hoje não é mais como antigamente, quando a religião ocupava um papel fundamental na família. É verdade! A sensação que temos é exatamente essa. Contudo, os números – novamente os números – mostram que os americanos, mesmo com a evasão das igrejas, ainda são majoritariamente crentes em Deus. Em um estudo de 2015, quase nove entre cada dez americanos diziam acreditar em Deus e 56% deles afirmavam que a religião teve um papel “muito importante em suas vidas”, um número muito maior do que em qualquer outra nação desenvolvida93. Sendo assim, apesar da onda de secularismo crescente e da diminuição do compromisso religioso, os Estados Unidos ainda são um país predominantemente cristão. Logo, seguindo as conclusões de Tocqueville, os Estados Unidos deveriam ainda ser um país de princípios morais e baixa criminalidade. Mas o cenário corrente é bem diferente disso. Os Estados Unidos são o 5º país mais violento dentre os 47 que estão na lista de desenvolvimento humano elevado. Ou seja: têm alto índice de desenvolvimento e, mesmo assim, são bastante violentos94. Washington, D.C., tem um índice de homicídio por arma de fogo maior que a média brasileira95. Isso não faz sentido considerando se tratar de um país rico e religioso. Se eu projetar essa situação americana para o resto do mundo, aí a coisa se complica ainda mais para os religiosos. Afinal, pode-se dizer que vivemos num mundo crente, e não num mundo ateu. Mas em que essa crença majoritária em Deus tem ajudado a melhorar o planeta? Se for verdade que a religião e a crença em Deus enobrecem o caráter e edificam as pessoas, o mundo, por ter uma maioria religiosa e crente, deveria ser um lugar melhor para viver. Mas não é isso que vemos por aí. E, para piorar, os países mais religiosos são, hoje, os mais violentos. Como explicar isso? Acabaremos com a Religião? A essa altura do texto, você já deve ter percebido as implicações por detrás desses dados. Estaríamos melhor sob a égide da religião ou do ateísmo? O que é, afinal, melhor para a sociedade? Um ambiente religioso ou secular? Cito novamente o caso de Jean Meslier, um padre francês que, revoltado com “os erros e abusos dos governos” e a “falsidade de todos os deuses e religiões do mundo”, tornou-se ateu, mesmo celebrando missas e batizados até o fim de sua vida. Numa obra publicada postumamente por ninguém menos que Voltaire, o padre falava com muita força de seu último desejo: “Eu gostaria, e este será o último e o mais ardente dos meus desejos, que o último rei fosse estrangulado com as tripas do último padre”96. Por mais forte que sejam as palavras usadas, tanto a frase, como o “padre ateu” tornaram-se referenciais para iluministas posteriores, especialmente ligados à Revolução Francesa. Denis Diderot foi um desses que, amenizando a violência original da frase, escreveram em linguagem poética que os homens serão livres quando ouvirem melhor a natureza e observarem como ela, com as próprias mãos, “arranca as entranhas do padre/ na falta de uma corda para estrangular os reis”97. O Marquês de Sade, famoso bon-vivant do século 18, também dizia que “a religião é a fonte do despotismo”98. Logo, as pessoas iluminadas e esclarecidas deveriam se rebelar contra a religião através de sexo livre, sem nenhuma censura moral ou noção de pecado. Ao olhar as propostas atuais, percebo que o apelo antirreligioso não ficou restrito ao iluminismo do passado. Em anos recentes, vários autores voltaram a defender a mesma proposta governamental de um mundo sem religião e sem Deus, ainda que muitos julguem isso pura utopia. Richard Dawkins, aproveitando um dos versos da música Imagine de John Lennon, parodiou: Imagine um mundo sem religião, imagine nenhum homem bomba, nenhum 11 de setembro, nenhuma Cruzada, nenhum conflito na Irlanda do Norte, nenhuma guerra entre Israel e Palestina. Imagine nenhum Taleban para explodir as estátuas gigantes de Buda no Afeganistão.99 Robert Reich, ex-secretário do Trabalho americano no governo Clinton, também deu sua alfinetada ao dizer: “O maior perigo que enfrentaremos no século 21 não será o terrorismo, as epidemias patológicas, a pobreza, a fome ou as guerras, mas sim a crença religiosa”100. Não pense que o ataque se destina às formas extremistas de religiosidade. Para alguns proponentes, “religião sem fanatismo é uma impossibilidade lógica”, conforme afirmou Timothy Shortell,principalmente como “não” pretendo defender minha posição. Certa vez gravei um programa para a TV Novo Tempo, o qual intitulei “Discordando com classe”. Meu objetivo era tentar trazer um pouco mais de civilidade às muitas discussões ideológicas ou filosóficas que saem do campo das ideias para atacar pessoas, demonizar grupos e promover o ódio. Por falar em ódio, que dizer da postura dos haters da Internet? Eles já viraram até estudo de caso em faculdades de Psicologia. Trata-se daquelas pessoas, segundo os especialistas, com sérios sintomas de distúrbio emocional que postam comentários de ódio ou crítica sem qualquer tipo de critério. Daí o nome hater da palavra hate (ódio em inglês). Veja o livro O discurso do ódio em redes sociais, de Marco Aurélio Moura. Ele dá uma boa ideia desse fenômeno e seu perigo para a sociedade. É desanimador tentar abrir um diálogo com eles. Haters parecem ter um prazer doentio em fazer ataques nos fóruns e nas redes sociais. São especialistas em cyberbullying. Esse tipo de oponente precisa de terapia, não de uma resposta honesta. Pior é que muitos deles são altamente inteligentes, o que prova que “inteligência” não é sinônimo de “sabedoria”. Quer despertar o ódio deles? Simples. Pense numa ideia, publique na Internet e espere como um pescador à beira do lago. Em pouco tempo, os haters aparecerão. Não pense que ao falar desse tipo de comportamento estou me referindo exclusivamente a ateus & cia. (cuidado com os estereótipos!). Há desequilíbrio em todos os lados, eu disse. Supondo que eu tenha leitores tanto religiosos quando descrentes. Deixe-me dar um recado especial para os “advogados de Deus”, tanto os que o defendem como os que o acusam. Se Deus existe, não precisa de defensores, precisa de testemunhas, e se não existe não tem como nem por que ser condenado. Portanto, todos aqueles que entram neste debate julgando-se advogados, promotores ou juízes de Deus estão perdendo seu tempo. Definitivamente, esse não é nosso papel, seja de que lado estivermos na discussão. Aprendamos com o erro do apóstolo Pedro. É um episódio que está na Bíblia. Quando Cristo foi preso no Jardim das Oliveiras, o apóstolo tomou uma pequena espada e agrediu Malco, um servo do sacerdote, que estava junto aos que vieram acorrentar Jesus. De um só golpe, cortou-lhe a orelha, deixando-o em prantos. Por que será que ele não agrediu um dos soldados? Por ser mais fácil bater em alguém desarmado? Não sei, mas a dura repreensão de Cristo me dá uma certeza: não é cortando a orelha de Malco que defenderemos nosso Senhor! Melhor seria seguir a máxima de Che Guevara que diz: “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. Chocado por eu citar um revolucionário comunista? Ora, como poderia escrever um livro como este se não tivesse a capacidade de deixar de lado o preconceito e selecionar o que concordo e o que discordo numa mesma pessoa? Portanto, deixando de lado o preconceito, gostaria de convidá-lo a ler este livro, no qual traço meu testemunho de fé. Depois você pode fazer o que quiser com ele. Não permitamos que a hipocrisia generalizada faça uma conversa honesta parecer sarcasmo. A leitura de um texto sempre gera um diálogo interessante: eu escrevo, você lê, sua alma responde, todos ganhamos. E então? Aceita minha proposta? 1 Ian Kershaw. De volta do inferno – Europa, 1914-1949 (São Paulo: Companhia das Letras, 2016). Capítulo 1 Saia justa com o ateísmo Ao tempo em que eu escrevia este livro, um amigo me enviou um link da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA), que publicou um trecho de uma palestra minha sob o curioso título “parece que esse pastor está a caminho do ateísmo”2. Era um vídeo no qual eu admitia a saia justa em que estaria diante de ateus, caso eles me confrontassem com alguns dados, e continuo admitindo o desconforto. Foi uma experiência muito curiosa. Admirei-me de ver muitos comentários elogiosos, outros ufanistas (acreditando que eu estava mesmo tendo uma crise de fé) e outros tantos debochados, pelo fato de, no finalzinho da fala, eu expressar minha crença na volta de Cristo – algo para eles é equivalente a acreditar em Chapeuzinho Vermelho. Isso sem contar os famosos haters, que amam atacar cruelmente qualquer um por qualquer ideia que apresente. Mas, no geral, o tom não foi tão hostil como era de se imaginar. Caso não tenha visto o vídeo, você deve estar curioso em saber que dados foram esses que admiti que me deixariam numa saia justa com o ateísmo. Pois bem, foram alguns testes feitos pelo Pew Forum on Religion and Public Life [Fórum Pew sobre religião e vida pública], nos Estados Unidos, que concluiu que ateus e agnósticos estão sabendo mais sobre religião e Bíblia que os próprios religiosos do país3. Os números são, de fato, desconcertantes e não sei se apresentariam resultados muito diferentes caso a pesquisa fosse feita no Brasil. Os incrédulos acertaram mais questões sobre cristianismo e outras religiões que os crentes, e, para vergonha da ala conservadora, os mais bem colocados entre os religiosos foram os judeus – que não creem que Jesus é o Messias – e os mórmons – considerados seita pelos principais heresiólogos da atualidade, isto é, os especialistas em heresias do cristianismo. No fim da lista, com a menor pontuação, ficaram os católicos hispanos. Quando torcedores do time adversário sabem mais sobre seu clube que você mesmo, alguma coisa está errada. Pior ainda é quando seu conhecimento sobre o assunto fica abaixo do aceitável para alguém que diz amar tanto aquela causa. Pois é isso que os dados mostram acerca da massa religiosa. Aproveitando a ilustração futebolística, lembro-me de um caso ocorrido em Londres, em dezembro e 2014. Considerando a chegada das festas natalinas, o jornal inglês Daily Mirror [Espelho diário] encomendou uma pesquisa sobre conhecimento religioso envolvendo um pouco mais de mil juvenis e pré-adolescentes4. O questionário foi feito com a pergunta “Quem é Jesus Cristo?”. As opções de resposta eram: A) jogador do Chelsea, B) Filho de Deus, C) apresentador de TV, D) candidato de um show de calouros ou E) um astronauta. A primeira opção foi escolhida por um em cada cinco entrevistados. Ou seja, para 20% dos jovens, Jesus era um jogador de futebol ou, pelo menos, alguém confundido com Jesus Navas, que, na época, era um meia espanhol do Manchester City. Não pense que foi uma brincadeira de juvenis. Os testes foram feitos por profissionais em estatística com margens de erro bem estabelecidas, tabulação de dados, amostragem e fórmulas de validação dos resultados. O desastre continuou: um em cada quatro jovens entrevistados pensava que o nascimento virginal de Jesus aconteceu dentro de uma igreja, e um em cada dez respondeu acreditar que Rudolph, a famosa rena do nariz vermelho, existiu de verdade. Isso sem contar que pouco mais da metade respondeu que tanto Jesus como Santa Claus (o Papai Noel) nasceram em 25 de dezembro; por isso todos ganham presente neste dia. A pérola do desconhecimento veio por último, quando 25% dos menores – já aficionados por smartphones – disseram que os magos encontraram no Google Maps a localização da cidade de Belém da Judeia. Muitos desses ensinos absurdos certamente vêm de casa, onde os pais, quase sempre sem tempo, dizem qualquer coisa para entreter as crianças, deixando para os professores o dever de ensinar o que é correto. Sendo assim, não é difícil entender por que boa parte desses jovens abandonará a fé de seus pais ao entrarem para a universidade. O que receberam até ali não passou de ritos litúrgicos inexplicados, anacronismos sem sentido e histórias desconexas. A fé dos adultos Os próprios pais e adultos também não se mostram melhores conhecedores daquilo em que dizem acreditar como religiosos. No final de 2013, o instituto de pesquisa ComRes, do Reino Unido, fez uma pesquisa a pedido de uma agremiação cristã para checar o grau de conhecimento bíblico de religiosos ingleses, todos adultos. Fora-lhes apresentada uma relação de histórias supostamente relacionadasprofessor de sociologia do Brooklyn College de Nova York. E ele continua: Todo aquele cujo pensamento for enclausurado por este tipo de prisão mental [i.e., a religião] estará susceptível às mais extremas formas de ódio e violência. A fé é, por sua própria natureza, obsessiva e compulsiva. Todas as religiões fomentam sua própria forma de guerra santa. Aqueles cuja devoção é moderada são apenas fanáticos covardes […] fé, em última instância, é raciocinar como uma criança.101 Sam Harris não teve medo de ser processado ao afirmar que: o mundo precisa agora de intolerância e não de tolerância […] o grau em que ideias religiosas ainda determinam as políticas governamentais – especialmente nos Estados Unidos – representa um perigo para todos.102 Achou pouco? Numa fala pública, Harris chegou a dizer que, se tivesse o poder mágico de fazer desaparecer um dos dois males, o estupro ou a religião, ele não hesitaria em fazer desaparecer a religião103. Confesso que às vezes fico sem entender o raciocínio de Sam Harris sobre religião e tolerância. Se você ler os escritos dele e de alguns outros renomados ateus da mesma linha (nem todos são assim, felizmente), verá um ataque descomunal aos extremistas religiosos por causa de sua intolerância para com os que discordam de sua doutrina. Por outro lado, ele também ataca os religiosos moderados por sua tolerância, por exemplo, famílias islâmicas vivendo na Europa ou na América. Ao mesmo tempo que condena a religião por sua intolerância, ele próprio admite não tolerar nenhuma forma de fé. Se tivesse o poder nas mãos, acabaria com todas. Isso é tão paradoxal como se um pianista, por não suportar cantores de rock, fizesse uma campanha para acabarmos com toda forma de concerto. Será que ele percebeu que os pianistas também seriam atingidos por essa proposta? A despeito, porém, do paradoxo, a conclusão de Harris & cia. é óbvia: as crenças religiosas têm de ser combatidas para que a sociedade possa avançar. Que a religião termine para que a humanidade amadureça. Será? 88 Pedro Nogueira Ramos. Torturem os números que eles confessam: sobre o mau uso e abuso das estatísticas em Portugal, e não só (Coimbra: Almedina, 2013). 89 Sam Harris. Letter to a Christian Nation (New York: Alfred A. Knopf, 2006). 90 Clemir Fernandes Silva; T. Duarte; R. Santanna; A. L. J. Rodrigues. Assistência religiosa em prisões do Rio de Janeiro: um estudo a partir da perspectiva de servidores públicos, presos e agentes religiosos (2015). 91 Os números aparecem nas pesquisas de Phil Zuckerman (2007), Richard Lynn (2008) e Elaine Howard Ecklund (2010), de acordo com a ONU. Disponível em: adherents.com, American Religious Identification Survey, The Pew Research Center, Gallup Poll, The New York Times, Good, Nature, Live Science e Discovery Magazine>. Acesso em: 15/03/2018. 92 Alexis de Tocqueville. A democracia na América: sentimentos e opiniões de uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. Tradução de Eduardo Brandão (São Paulo, Martins Fontes, 2004). 93 Disponível em e . Acesso em: 17/03/2017. 94 Disponível em . Acesso em: 17/03/2017. 95 Disponível em . Acesso em: 17/03/2017. 96 Apud Paulo Jonas de Lima Piva. Os manuscritos de um padre anticristão e ateu: materialismo e revolta em Jean Meslier (Tese de doutorado em Filosofia: Universidade de São Paulo, 2004). 97 Denis Diderot. “Et ses mains ourdiraient les entrailles du prêtre, Au défaut d’un cordon pour étrangler les rois”, in Les Éleuthéromanes avec un commentaire historique (Paris: Ghio,1884). Disponível em . Acesso em: 15/03/2018. 98 Marquês de Sade. La Philosophie dans le boudoir. Disponível em . Acesso em: 17/03/2017. 99 Richard Dawkins. Deus, um delírio. Tradução de Fernanda Ravagnani (São Paulo: Companhia das Letras, 2007). 100 Apud Gale Heide. Domesticated Glory: How the Politics of America Has Tamed God (Eugene: Pickwick, 2010). 101 Disponível em . Acesso em: 17/03/2017. 102 Sam Harris. The End of Faith: Religion, Terror, and the Future of Reason (New York: W.W. Norton & Co., 2004). 103 Jörg Blech (October 26, 2006). “The new atheists: Researchers crusade against American fundamentalists”, Spiegel on-line>. Acesso em: 20/05/2015. http://www.pewresearch.org/fact�-tank/2015/12/23/americans�-are�-in�-the�-middle�-of�-the�-pack�-globally�-when�-it�-comes�-to�-importance�-of�-religion/ http://www.pewforum.org/2015/11/03/chapter�-1�-importance�-of�-religion�-and�-religious�-beliefs/#belief�-in�-god https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121931738/eua-e-o-quinto-pais-mais-violento-dentre-os-paises-mais-desenvolvidos https://www.citylab.com/equity/2013/01/gun-violence-us-cities-compared-deadliest-nations-world/4412/ http://pt.calameo.com/books/00010704468e2883c70c4 https://beq.ebooksgratuits.com/libertinage/Sade_La_philosophie_dans_le_boudoir.pdf http://www.discoverthenetworks.org/individualProfile.asp?indid=2242 Capítulo 12 A incoerência da fé Sobre o fato de o mundo ainda ser maiormente religioso e mesmo assim perverso, deixe-me tecer alguns comentários breves sobre o cristianismo, que é a fé que professo. Acho muito “interessante”, para usar um eufemismo, a postura incoerente de muitos cristãos neste século em que vivemos. Por que expor aqui esse tipo de análise? Por dois motivos. Primeiro porque, pela minha experiência com pessoas não religiosas, o que observei na maioria dos contextos que vivi foi que minha fé foi respeitada por colegas que não participavam dela. Sei que esta não é a experiência de todos. Há muitos religiosos hostilizados por descrentes e vice-versa. Talvez eu tenha tido mais sorte que alguns, não sei, mas o fato é que não me recordo de nenhuma vez em que fui chacoteado por tomar suco de laranja enquanto meus colegas tomavam cerveja. Eles pareciam conviver bem com minha abstinência alcoólica. Havia uma coisa, porém, que eles não suportavam, e diversas vezes comentavam comigo: o assunto da incoerência. “Tudo bem que o fulano sabatista não possa se reunir no sábado para fazer o trabalho de grupo, por causa da religião dele. A gente muda para outro dia. Mas encontrar o mesmo fulano sexta feira à noite104 numa balada agarrando uma menina, isso não dá para entender”. Isso é muito sério e talvez seja um grande motivo para muitos não quererem saber de igreja. Percebi que, em muitas instâncias, nós, cristãos, não seremos criticados por aquilo que cremos, mas por aquilo que fazemos e deixamos de fazer. Para ser muito honesto com você, tenho cá meus receios de que os religiosos se tornem o maior argumento de muitos para não quererem saber de Deus. “Se Jesus é como você, ironizou um descrente, prefiro tocar na banda do anticristo”. A segunda razão por que faço essa análise é para que você veja que o cristianismo, pelo menos como entendo da Bíblia, admite e incentiva uma autocrítica. Não somos alienados. Relembro aqui o que disse nos primeiros capítulos quando abrimos o diálogo neste livro. Não se trata de um texto acusatório. É, repito, uma autocrítica que faço e convido você a pensar nela comigo. Se se sentir melhor assim, digo aos que não são religiosos, imagine que estou pensando em voz alta e permitindo que você ouça. Ou, quem sabe, desabafando com um amigo. Para os religiosos que me leem, entendam que não estou fazendo nada além de colocar em prática o próprio método bíblico.Afinal de contas o que constitui a maior parte da narrativa dos profetas, senão confissões de culpa coletiva, admoestações ao povo e anseio por mudança? Se todo cidadão agisse como os profetas bíblicos em relação às questões sociais, talvez assuntos como drogas, violência e desonestidade fossem tratados de um modo diferente. Não seriam apenas números de estatística, muito menos remédio para sintomas. Eles não se limitariam a mandar dependentes químicos para clínicas de tratamento. Assim, como quebraram os ídolos de Baal, baniriam das mídias todo incentivo ao uso de entorpecentes, seja por meio de um cantor famoso ou de uma atriz com carinha de anjo. Não teriam medo do politicamente correto. Ficariam firmes pelo que é ético ainda que caíssem os céus. Mas não temos uma nação de profetas e não é da sociedade comum que quero falar. Meu assunto, como disse, é o cristianismo e a autocrítica que faço dele. Propagandas de Cristo Se tem um negócio que, a despeito de crises, gera muitos resultados é a publicidade e propaganda. Um marketing bem-feito pode dar muito lucro, mas também muito prejuízo. Há vários casos de empresas que perderam grande quantia de dinheiro por causa de um comercial que não saiu direito. Um caso, porém, não se deveu ao trabalho dos publicitários, mas ao garoto-propaganda. A gafe do protagonista lhe custou patrocinadores e muito dinheiro, mais de 1 milhão de dólares em prejuízo. Estou falando do nadador americano Ryan Lochte, que foi pego mentindo nas Olimpíadas do Rio 2016. Ele inventou um assalto à mão armada, apenas para esconder do público uma noite de farra fora do alojamento. Quando estourou o escândalo, marcas parceiras caíram fora do patrocínio, entre elas a Speedo. O episódio feriu a credibilidade do atleta e causou problemas para o time americano. Nenhuma marca queria mais ser vista como patrocinadora do Pinóquio das piscinas. Das Olímpiadas para Bíblia, não é muito diferente em relação ao cristianismo. O apóstolo Paulo declarou certa vez que os cristãos seriam “o bom perfume de Cristo” (2Coríntios 2:15). Não creio que esteja cometendo nenhum erro hermenêutico se disser que isso equivaleria hoje a dizer: “os cristãos são (ou deveriam ser) a boa propaganda de Cristo”. Mas nem sempre é assim. Não sou perfeito, mas procuro sempre me lembrar de que minha vida pode ser a única Bíblia que muitos leem fora da igreja e, dependendo da situação, isso pode não ser muito bom. Daí a responsabilidade daqueles que dizem crer em Deus. Já ouvi falar que Gandhi dizia não ser cristão por causa dos cristãos. A princípio julguei ser frase de Internet, como as milhares falsamente atribuídas a Clarice Lispector, Einstein, Charlie Chaplin, John Lennon e outros. Mas depois de ver que vários biógrafos de Gandhi confirmam o dito, resolvi dar mais atenção a ele e me arrepiei ao ver o contexto que o envolveu. Tudo começa com o trabalho de um missionário metodista, Eli Stanley Jones, que partiu para a Índia em 1907 a fim de pregar o evangelho. Ao chegar lá, ele se dedicou às classes mais baixas da população, incluindo os dalits – como faria posteriormente Madre Teresa de Calcutá. Por se envolver ativamente com grupos assistenciais, ele acabou fazendo amizade com muitos líderes do movimento de libertação da Índia, dentre eles, um certo Sr. Gandhi, que ainda não havia se tornado o famoso “Mahatma”, isto é, a Grande Alma. Em várias de suas obras, mas especialmente o Mahatma Gandhi: An Interpretation (1948), é possível encontrar excertos de sua correspondência pessoal com o grande libertador da Índia. Sua franqueza ao falar do cristianismo é estarrecedora. Mesmo sendo considerado um Billy Graham da Índia – um título, a meu ver, anacrônico –, Jones não escondeu o fato de que fora ali para pregar Jesus e saíra de lá com a sensação de que foi Gandhi quem o evangelizou, tornando-o um promotor do pacifismo. Tanto que Jones foi indicado em 1948 para o Prêmio Nobel da Paz por seu trabalho de reconciliação na Ásia, África, e entre o Japão e os Estados Unidos. Veja o que Jones escreveu sobre o amigo e líder indiano: “Deus faz uso de muitos instrumentos; e Ele pode ter recorrido ao Mahatma Gandhi para cristianizar um cristianismo não cristão”105. Agora perceba o caos de um mau exemplo. Jones conta que uma vez Gandhi considerou se tornar cristão e chegou a frequentar uma igreja metodista, mas a igreja era feia, irmãos sonolentos durante o sermão… naquela atmosfera fria e indiferente, [ele] foi compelido a desistir de frequentar aquela igreja […] – Aquela decisão que Gandhi tomou afetou o destino de quatrocentos milhões de pessoas na Índia.106 É que Jones pensava que, por causa de sua influência no país, se Gandhi houvesse se tornado seguidor de Jesus Cristo, talvez a Índia fosse hoje o maior país cristão do mundo. Um episódio, ocorrido na África do Sul, em pleno regime do Apartheid, tornou a rejeição de Gandhi pelo cristianismo ainda mais acirrada. Os detalhes abaixo foram publicados na Christianity Today. Jones não conta todos os detalhes, mas aponta para sua historicidade: Quando [Gandhi] era um jovem advogado, ele ficou atraído pela fé cristã, pois tinha estudado a Bíblia e os ensinamentos de Jesus. Estava explorando seriamente a possibilidade de tornar-se um cristão, quando decidiu assistir a um culto em uma igreja local. Mas, assim que subiu os degraus, o ancião da igreja, um sul-africano branco, barrou seu caminho na porta. – Aonde você pensa que vai, kaffir [tratamento pejorativo dado aos negros e estrangeiros]? – perguntou o ancião em um tom de voz beligerante. Gandhi replicou: – Eu gostaria de assistir ao culto, aqui. Mas o ancião rosnou: – Não existe lugar para kaffirs nesta igreja. Fora daqui ou eu chamarei meus assistentes para atirá-lo escada abaixo107. Depois de um episódio desses, fica difícil dizer alguma coisa que amenize a situação, não é mesmo? Mas, ao que parece, Gandhi, embora negasse a possibilidade de se tornar um cristão, não perdeu a admiração pelos ensinos de Jesus, especialmente o Sermão da Montanha. Quando ele e Jones se encontraram pela primeira vez, o missionário não hesitou em perguntar-lhe o que os cristãos poderiam fazer para que o cristianismo fosse mais naturalmente aceito na Índia, e não mais identificado com uma cultura de opressão, vinda de um governo estrangeiro. Veja o que ele respondeu: – Em primeiro lugar eu gostaria de sugerir que todos vocês, pastores, missionários e cristãos, vivessem mais à semelhança de Cristo. Que vocês pratiquem a vossa religião sem adulterá-la ou torcer a sua mensagem. Que vocês amem mais e enfatizem o amor, pois o amor é a mensagem central do cristianismo. Estudem mais a religião alheia e procurem por alguma coisa boa que possa existir nelas, no sentido de serem mais simpáticos com aqueles que são diferentes.108 Arautos ou palhaços? Quando fazia o mestrado com os padres Jesuítas eu li o livro Introdução ao cristianismo, de Joseph Ratzinger, escrito antes de ele se tornar o papa Bento XVI109. Já na introdução, ele conta uma parábola descrita originalmente por Kierkegaard, um grande filósofo do século 19, sobre um palhaço e seu desafio de alertar a todos sobre um incêndio que começara. Certa vez houve um incêndio num circo ambulante na Dinamarca. O diretor mandou imediatamente o palhaço, que já se encontrava vestido e maquilado a caráter, para a vila mais próxima, para que buscasse ajuda, advertindo de que existia o perigo de o fogo se espalhar pelos campos ceifados e ressequidos, com risco iminente para as casas do próprio povoado. O palhaço correu até a vila e pediu aos moradores que viessem ajudar a apagar o incêndio que estava destruindo o circo. Mas os habitantes viram nos gritos do palhaço apenas um belo truque de publicidade que visava levá-los em grande número às apresentações do circo; aplaudiam e morriam de rir. Diante dessa reação, o palhaço sentiu mais vontade de chorar do que de rir. Fez de tudo para convencer as pessoas de que não estava representando, de que não era um truque e sim um apelo da maior seriedade:tratava-se realmente de um incêndio. Mas a sua insistência só fazia aumentar os risos, achavam excelente a sua performance – até que o fogo alcançou de fato a vila. Aí já era tarde, e o fogo acabou destruindo não só o circo, como também o povoado. Na aplicação de Ratzinger, o palhaço seria um teólogo que tenta alertar ao mundo moderno usando uma roupagem medieval que não traz credibilidade alguma, ou seja, o desafio é apresentar ao mundo de hoje uma mensagem que tem trajes e pensamentos da Antiguidade. Muito bem ponderado. Contudo, tomo licença para ir em outra direção. O problema da estória, a meu ver, não está na mensagem nem na roupa, mas no mensageiro. Ele sempre se portou como palhaço, falou como palhaço, viveu de tirar gargalhadas das pessoas e agora que precisa falar sério, ninguém lhe dá atenção. Assim também será comigo e com todos os que professam servir a Deus. Tomando novamente o cristianismo como estudo de caso: todas as vezes que falo de Cristo, mas não vivo como ele viveu, pareço um palhaço com uma mensagem certa. O fogo pode até ser verdadeiro e o perigo iminente, mas tudo não passará de uma grande piada. Sei que existem os que zombam por puro amor da zombaria. São doentes emocionais que, por fugirem da responsabilidade, não conseguem levar nada a sério. Contudo, isso não olvida a realidade de que minha conduta pode fazer da cruz objeto de escárnio. Citando um trecho do profeta Isaías, Paulo escreveu aos cristãos de Roma: “Como está escrito: O nome de Deus é blasfemado entre os povos, por causa de vocês” (Romanos 2:24). Cristianismo sem Cristo A primeira coisa que percebo, com muita tristeza, é que muitos se dizem seguidores de Cristo, mas nem sabem direito quem ele foi. Outros dizem amar a Jesus, mas odeiam esse negócio de igreja e a consideram uma péssima ideia. Há alguns anos houve um lema da juventude alemã, que chegou a virar tema de livro. Eles diziam “Jesus sim, igreja não”. Nos Estados Unidos também é crescente o número dos que se adequam ao chamado churchless christianity, isto é, um cristianismo sem Igreja. Veja que curioso o título de um panfleto sobre política americana: “Eles odeiam o cristianismo, mas amam Jesus”. Isso para mim soa como “eles odeiam jogar bola, mas amam o futebol”. Você já deve ter percebido que não vinculo moralidade a uma questão de crença, especialmente no sentido de que um ateu não possa ser considerado moral. Contudo, também não posso negar que a percepção de Deus ou a negação de sua existência modelam muito nossas atitudes e motivações. Uma pessoa que vive sem Deus não faz caridade pelos mesmos motivos de alguém que vive com ele. Ambos podem ser igualmente caridosos – disso não resta dúvida –, mas o arrazoado de um não será o mesmo do outro. Agora, se posso ser muito honesto com você, o que temo não é tanto o ateu teórico – aquele que admite sinceramente não crer em Deus. Ele é honesto com sua descrença. O que me preocupa é o ateu prático – aquele que diz crer em Deus, mas vive como se Deus não existisse. A falta de honestidade neste segundo caso é muito perigosa, pois gera neuroses e incoerências comportamentais. Talvez seja por isso que, embora vivamos num mundo crente, as pessoas agem como se Deus não estivesse aqui desaprovando o comportamento delas. Deixe-me reproduzir com minhas palavras uma parábola contada por Philip Yancey no livro Perguntas que precisam de resposta110: De modo muito poético, o autor se pergunta como seria uma sociedade que descobrisse para além de qualquer questionamento que não há Deus, não há céu, nem salvação eterna? Tal sociedade entenderia que a vida é só essa e não há outra; logo, a juventude seria mais valorizada que a velhice, pois não há futuro melhor para ansiar, o esporte seria uma obsessão nacional, as capas de revistas exibiriam rostos sem rugas e corpos perfeitos, a imagem e a estética estariam acima da ética e o lema de todos seria “aproveite o dia de hoje antes que se arrependa” e a ética hedonista: “não resista às tentações, pode ser que não tenha uma segunda chance”. Yancey continua imaginando uma cidade com cada vez mais crimes, mais hedonismo, e maior medo da morte, pois este é o fim absoluto de tudo. Então ele termina de modo irônico, agradecendo por viver num país que, ao contrário daquela cidade, acredita em Deus, no céu e na salvação! Mas, como eu disse, ele foi irônico, pois é exatamente assim que nossa sociedade se encontra. A pergunta óbvia é: Vivemos realmente numa sociedade que professa sua fé? O conhecido psiquiatra Karl Menninger escreveu um livro cuja tradução do título é “O que foi feito do pecado?”111. Nele o autor comenta a paradoxal atitude da modernidade em relação às questões morais. Ele observa que os desvios de comportamento atuais são estranhamente explicados ou justificados a partir de questões mentais ou psicológicas como se não existisse pecado. Os vícios não são mais combatidos, são tolerados e compreendidos. Alguém violento, assassino, ladrão pode ser até um bandido, mas nunca um “pecador”. Os mais emotivos dirão que o delinquente é sempre e simplesmente uma vítima da sociedade ou de traumas de infância. Mas nunca alguém que está “pecando” contra a lei de Deus. Isso, para o Dr. Menninger, era paradoxal numa sociedade que se dizia religiosa. É como se as pessoas não mais pecassem, entende?! Esse livro foi escrito há mais de quarenta anos. Se o autor estivesse vivo hoje, ficaria mais perplexo ainda diante da crescente perda de valores morais. Especialmente nas igrejas. Embora seja religioso, repito mais uma vez a visão nietzschiana da morte de Deus, se puder lê-la como o anúncio de uma morte circunstancial e filosófica. E vou mais longe! Concordo, honestamente, com o fato de que, em muitas instâncias, houve igrejas e agremiações religiosas que ajudaram a celebrar o culto fúnebre de Deus, como se ele houvesse mesmo morrido para seus membros. Às vezes, vejo a indiferença espiritual e me pergunto: Não é exatamente isso que Nietzsche descrevia? Lembro-me do personagem louco que aparece no A Gaia Ciência, gritando angustiosamente pelas ruas: “Deus morreu! Deus morreu!”. Aparentemente, ele era o único a se importar com isso. Desvairado, o louco adentra várias igrejas e ali entoa o seu Requiem aeternam deo ou “o descanso eterno de Deus”. O Requiem era um tipo de missa fúnebre em latim. “Acompanhado até a porta e questionado energicamente, ele retrucava sem parar apenas o seguinte: ‘O que são ainda afinal estas igrejas, senão túmulos e mausoléus de Deus?’.”112 A impressão que fica é que, embora o mundo não tenha teoricamente comprado a proposta do ateísmo, aceitou “ativamente” que Deus não existe. Por isso agem como crianças travessas quando os pais não estão em casa. Aprontam, quebram e bagunçam, depois põem a culpa no gato da vizinha. Provavelmente seja esse o enfoque da pergunta de Cristo: “Quando vier o filho do homem achará fé na Terra?” (Lucas 18:8). 104 Para boa parte dos que observam o sábado como dia sagrado, este começa não à meia-noite, mas ao pôr do sol de sexta-feira. 105 E. Stanley Jones. The Christ of the Indian Road (London: Hodder & Stoughton, 1925), p. 86. 106 E. Stanley Jones. A conversão (São Paulo: Imprensa Metodista, 1984). 107 O episódio é descrito em o filme As Bruxas de Salém, que fez muito sucesso, principalmente entre o público adolescente. Era uma história ambientada no século 17, quando meninas apaixonadas fizeram um feitiço e, sendo descobertas, foram acusadas de bruxaria. O que se segue dali em diante é uma série de histerismos e acusações em que muita gente inocente foi morta acusada de um crime religioso que nunca cometeu. Poucos talvez saibam, mas a prática de caça às bruxas aconteceu mesmo e a história de Salém não foi inventada. De uma só vez, a pequena aldeia puritana acusou mais de 200 mulheres e alguns homens de serem feiticeiros, e, desses, pelo menos 20 cidadãos e cidadãs foram mortos queimados, enforcados ou por afogamento. Depois de algum tempo, o governo admitiu que matar essas pessoas foi um engano e até buscou maneiras de indenizar as famílias das vítimas, porém, tarde demais, a repercussão do processo dura até hoje. De fato, qualquer questionamento ou descrença em relação a uma crença institucionalizada sempre foi visto de modo muito negativo, mesmo quando não se trata de ser ateu, mas apenas de descrer do credo oficial imposto. Neste sentido, os que mais sofreram nas mãos de autoridades religiosas foram os próprios religiosos que tinham uma compreensão diferente da fé. Veja o caso dos cátaros, albigenses, dos seguidores de Pedro Valdo. Judeus foram vítimas da inquisição espanhola promovida por reis católicos, e a lista não para por aí. Há pouco tempo folheei um excelente livro de Frans Leonard Schalkwijk intitulado Igreja e Estado no Brasil Holandês (1630 a 1654)113. Ali o autor mostra como Domingos Fernandes Calabar, tratado como o mais vil traidor dos portugueses, foi por fim garroteado e esquartejado não por questões meramente políticas, mas por ter se convertido ao evangelho pregado pelos holandeses reformados. Para que ninguém saia impune, não posso deixar de lado o triste episódio envolvendo João Calvino, reformador protestante, e a execução na fogueira do médico Miguel de Servet, condenado em 1553 por não acreditar na Trindade. E aqui, permita-me dizer, há uma imprecisão histórica de autores ateus como George Minois, que, a despeito de sua monumental obra historiográfica, afirma que os descrentes sofrem há séculos a perseguição de religiosos, o que constitui, hoje, “uma pesada herança passional […] a palavra ateu ainda carrega um vago odor de fogueira”114. A imprecisão reside não no que foi dito, mas no que falta dizer. É que declarações como esta criam um quadro monolítico de crentes constantemente perseguindo descrentes que lutam pela liberdade de não crer. Ora, quando se fala em fogueira e ateísmo, desconheço na história relatos processuais de perseguição em massa contra ateus ou condenações à heresia do ateísmo. Os mártires geralmente eram cristãos marginalizados e judeus que criam em Deus de um modo diferente daquele institucionalizado pela Igreja. Logo, se há também ateus neste meio, digo-lhes que são bem-vindos ao grupo dos perseguidos, contudo, saiba que eles não constituem a maioria, muito menos as únicas vítimas do sistema. Mesmo cientistas como Galileu e Giordano Bruno não foram condenados por seu ateísmo (pois eles criam em Deus), mas por sua visão de ciência. Se querem liberdade para descrer, devem igualmente lutar pela liberdade de religião que estes mártires corajosamente defenderam. Por isso me preocupo com certas militâncias que de modo declarado ou subliminar desejam não a liberdade de expressão, mas a imposição de um conceito. Algumas delas que se identificam com a causa ateísta querem mais que o direito de não serem segregadas, desejam ganhar o mundo para o seu lado e acabar com qualquer movimento que discorde das suas ideias. É assim que entendo escritos como os de Feuerbach. Ali percebo a presença de um elemento “libertador” da humanidade que perpassa toda sua obra. O autor não quer defender o direito de um simples exercício mental de ateísmo. Sua intenção é acabar com a religião ou matar os deuses, a fim de que o homem possa ascender finalmente. Essa é a conscientização criada pela filosofia feuerbachiana115 e alguns ditos neoateus que ouço hoje, embora busquem um mínimo de linguagem politicamente correta, terminam sugerindo o mesmo, ao propor um reducionismo antropológico que tem como condição sine qua non para o progresso a cura dessa doença chamada religião. Como propôs Michel Onfray, “o ateísmo não é uma terapia, mas uma saúde metal recuperada”116. Ora, não se pode dar à loucura o mesmo direito de existir que o da sanidade. A uma se preserva, à outra procura-se extinguir. Logo, não creio que muitos ateus queiram apenas liberdade para viver em paz sua descrença, o que querem é uma imposição de seu ateísmo. Para eles qualquer religião é como uma versão Nescau do crente Toddynho, só tem um pouco mais de marketing, mas no fim é a mesma coisa. Lembra o que Estados ateus, como a China de Mao e a União Soviética de Stalin, fizeram a muitos crentes por sua fé? Portanto, não quero negar que religiosos perseguiram a descrentes. Apenas entendo que não há legitimidade histórica em ateus reclamarem somente para si o direito de expressarem sua descrença – como se isso lhe seja atualmente proibido. Primeiro porque creio que tenho os mesmos direitos de expressar minha fé sem ser atacado por isso. Segundo porque desconheço qualquer país de maioria cristã que tenha proibido um autor ateu de publicar seus livros ou apresentar suas palestras. Só o tratado de ateologia de Michel Onfray vendeu mais de 200 mil exemplares na primeira edição e não vi nenhum bispo queimando seus livros em praça pública. Aliás, que livro defendendo o ateísmo foi queimado durante a Idade Média e Moderna? Que eu saiba, eles queimavam livros de heresias, mas principalmente Bíblias! Isso mesmo, o livro mais destruído em praça pública de todos os tempos foi a Bíblia, e não um tratado de ateísmo. Guerra Santa? Toda vez que ouço ou leio uma notícia sobre atentados ou guerras no Oriente Médio, identificadas como “guerra santa”, não posso deixar de anotar a imprecisão desse título. Para começo de conversa, não existe “guerra santa”. Guerra é guerra e ponto final. Nem Deus gosta disso (mais adiante falarei das guerras na Bíblia). Ademais, o Ocidente tem uma compreensão equivocada de “guerra santa”. De acordo com William Cavanaugh, autor do livro Myth of Religious Violence (2009), existe uma falsa dicotomia inventada pela modernidade ocidental, segundo a qual temos sempre de classificar as ideologias entre religiosas e seculares117. A partir disso definem que motivações religiosas tendem a ser mais violentas que as seculares. Porém, temos aqui um grave problema de anacronismo, pois tal distinção não existia nos tempos antigos, nem nas atuais culturas do Oriente Médio. Querer usar tal critério para classificar algo fora deste contexto ocidental moderno seria o mesmo que usar a velocidade média da Fórmula 1 para julgar se cavalos romanos eram ou não velozes de fato. Não existe na Antiguidade Clássica nada que possa expressar uma ideia de guerra religiosa versus guerra civil ou secular. O mais próximo que chegamos deste conceito – e ainda assim muito distante do que se diz hoje em dia – é a referência a uma guerra pelo controle de um santuário grego (Delfos). Ela é mencionada por Tucídides118 e Aristófanes119, que a chamam de hieros polemos, “guerra do santuário”. Mas essa é a única atestação que temos em grego desde os tempos clássicos adentrando o período bizantino e depois dele. Já a expressão “guerra santa” (do latim bellum sacrum) foi uma invenção da Idade Média, de uso raro, ligada especialmente ao contexto das Cruzadas e da guerra aos albigenses. Nem por neologismo ou semântica, ela teria algo a ver com o uso moderno ou as verdadeiras razões por detrás de muitas batalhas rotuladas artificialmente com esse nome120. Existe hoje um vasto debate sobre a causa das guerras ao longo da história e, ao que parece, as motivações religiosas seriam a menor hipótese a ser aventada. Muito à frente delas estariam razões étnicas,políticas, econômicas e, acima de tudo, a sede de poder. Até a palavra jihad, tantas vezes traduzida por “guerra santa”, não comporta linguisticamente esse conceito. Jihad significa apenas luta, empenho, esforço pessoal121. A aplicação do termo à “morte dos infiéis” é uma interpretação adicional e partidária que não está originalmente inserida no termo. O mesmo se dá com a expressão “guerra religiosa”. Normalmente os autores a definem como um conflito causado por divergências de credo, mas essa é outra concepção artificial. Religião nem é uma palavra de origem bíblica, mas latina (religio). Seu sentido tem a ver com uma virtude pessoal de adoração a Deus, e não com “doutrinas teológicas”. Somente a partir do século 17 é que religião passou a englobar a ideia de conteúdo de fé. Chamar, portanto, uma guerra da Antiguidade de “religiosa” é tão anacrônico como chamar de supermercado um comércio de frutas da antiga cidade de Roma. Culpemos a religião! Ignorando, porém, todo esse contexto histórico e linguístico, autores como Dawkins, Hitchens, Harris, Reich, Diderot e outros insistem em apelar para o tema da guerra em nome de Deus como “evidência” de que as religiões são a raiz de todos males do mundo. A religião seria, em síntese, a causa mestra da violência humana, argumenta Hitchens, embora ele mesmo não mostre nenhum exemplo causal que vincule violência e fé122. Sua tese, numa frase, é que as religiões fazem mais mal do que bem à humanidade. Aliás, para alguns, elas não fazem bem nenhum. Tentar encontrar algo de bom nas religiões seria como buscar nutrientes num prato de junk food devorado às pressas. Pode até ter alguma proteína ali, mas os malefícios são tão grandes que não vale a pena se alimentar daquilo. O argumento básico são novamente os números. “A religião”, afirmou Harris, “tem explícita e literalmente causado milhões de mortes nos últimos dez anos”123. Considerando que isso foi dito por ele no livro A morte da fé, publicado em 2004, fiquei tentando descobrir qual teria sido a fonte da informação. Pesquisei no decênio 1994-2004, período em que a religião matou literalmente milhões de pessoas, e não pude encontrar nada que sustente isso. Harris dá exemplos geográficos de onde essa matança religiosa teria ocorrido: Palestina (judeus versus mulçumanos), Bálcãs (ortodoxos sérvios versus católicos croatas); Irlanda do Norte (protestantes versus católicos), Caxemira (hindus versus mulçumanos), Sudão (mulçumanos versus cristãos animistas), Nigéria (mulçumanos versus cristãos), Irã e Iraque. Ora, vamos com calma analisar o que ele diz: em primeiro lugar, se você fizer as contas de quantas pessoas morreram nesses lugares desde o início dos conflitos até hoje não chegará nem perto de 1 milhão de vítimas124. Sei que números de guerra nem sempre são precisos, mas ainda que eu duplique os dados oficiais não chego ao montante citado por Harris. Novamente fico me perguntando de onde ele tirou os milhões que menciona sendo mortos em apenas uma década! Não pense, contudo, que meu raciocínio se limita a números, pois seria muito desumano e pueril de minha parte. Que sejam 20 os mortos em nome da religião, ainda assim seria algo deplorável. Estatísticas podem amenizar o quadro, mas não anulam realidades de injustiça que precisam ser denunciadas. A questão aqui é descobrir se realmente a religião é causadora de tantos assassinatos e genocídios. Neste ponto, chamou-me a atenção que nenhum dos estudos técnicos sobre a história das guerras em geral arrisca afirmar taxativamente que a religião é propulsora do sentimento de matança da humanidade. Os que fazem tal afirmação, como no caso de Harris, devem admitir que se apoiam não em evidências científicas, mas em sugestões “autoevidentes”, isto é, sugestões que são verdadeiras apenas na aparência, mas carecem de validação científica. Posso, por exemplo, afirmar que o videogame e o cinema tornaram a juventude mais agressiva e que esses entretenimentos são responsáveis pela violência juvenil de nossos dias. Porém, sem um estudo comprovatório que ampare esta conclusão, minhas palavras não passam de uma impressão leiga e nada mais. Semelhante àquela de nossos ancestrais que julgavam ser perigoso misturar leite com manga! Do mesmo modo, a conclusão de Harris & cia. acerca da relação entre religião e guerras não passa de “achismo” e quem concluiu isso foram autores não religiosos de um estudo sociológico publicado na revista Skeptic 125. Mesmo não sendo religiosos ou defensores da fé, eles criticam diretamente o argumento autoevidente de Sam Harris que não levou em conta outras análises mais pertinentes dos dados. Para quem não sabe, essa revista é a menina dos olhos de muitos ateus, por causa de sua linha editorial contrária aos discursos da religião. As aparências enganam Sei que talvez algum leitor ainda não esteja aceitando a crítica. Você vê os atentados islâmicos, a história da inquisição, os conflitos da Irlanda do Norte e tudo parece indicar que a religião foi, sem sombra de dúvida, a responsável por tudo isso, mas não foi. O que existe aqui é um argumento de aparência ou o que chamamos em lógica de falácia por causa falsa. Ela acontece quando alguém supõe rapidamente que a relação real ou percebida entre duas coisas significa que uma é a causa da outra. Em latim isso é expresso pela frase cum hoc ergo propter hoc – com isso, logo, por causa disso. O fato de duas coisas estarem acontecendo juntas ou uma em sequência da outra nem sempre quer dizer que uma é a causa da outra! Existem outras possibilidades, por exemplo, de que haja uma causa comum para ambas ou, ainda, que nenhuma relação exista entre elas, senão uma coincidência factual. Ilustrando: um palestrante aponta para uma série de gráficos que mostram o aumento do número de estupros na cidade de São Paulo em relação às décadas de 1930 a 1950. Depois mostra como a partir dos anos 1960 as mulheres passaram a vestir minissaia e calça comprida. Logo, conclui, com ares de triunfo, que o fato de as mulheres usarem roupas curtas é a causa principal dos atuais casos de estupro. Se elas se vestissem decentemente, os estupros não haveriam aumentado. Ora, esse sujeito se esqueceu de anotar que em países mulçumanos adeptos do uso da burca também há um crescente número de estupros. Um dado que por si só desfaz o silogismo dele. Para que você não pense que o exemplo anterior foi inteiramente fictício, veja como essa aparente combinação de fatores gera estereótipos no povo: uma pesquisa divulgada em 2014 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão do governo brasileiro, mostrou que 58,5% dos entrevistados concordavam totalmente (35,3%) ou parcialmente (23,2%) com a frase “Se as mulheres soubessem como se comportar [incluindo no vestir], haveria menos estupros”126. Triste é ver pessoas cultas como Sam Harris caindo no mesmo erro apenas por questão de retórica antirreligiosa. Violência e fé Embora não compartilhe todas as ideias da autora Karen Armstrong, respeito muito o modo acadêmico como ela procura defender seus pontos de vista acerca da religião. Num recente trabalho intitulado Fields of Blood: Religion and the History of Violence127, ela traça um registro histórico não só da tradição cristã, mas também do budismo, hinduísmo, judaísmo, confucionismo e outros, desde seu começo, anotando como elementos de combate foram atrelados a certas observâncias do Sagrado. Conquanto guerras façam parte da história das religiões, Armstrong não encontrou qualquer indício de que a violência através dos tempos – especialmente a violência moderna – possa ser diretamente atribuída à religião. Mais recentemente, outra pesquisa foi feita, chegando-se à mesma conclusão. Quem a realizou foi o Institute for Economics and Peace (IEP), entidade internacional que se dedica aos estudos sobre a paz, além de prestar serviços de consultoria para a Organização das Nações Unidas (ONU). De acordo com o estudo, 30 dos 35 conflitos armados registrados no planeta em 2013 até contavam com elementos religiososcomo uma de suas causas. Contudo, eles não eram o motivo principal: 86% dos confrontos estouraram pela influência de mais de uma razão, como a oposição ao governo, ao sistema econômico, à ideologia política ou social daquele país. De fato, explica a pesquisa, foi constatado que 15 casos tiveram como causa as tentativas de mudar o sistema vigente de governo para um sistema islâmico. Portanto, as motivações por trás destes casos são consideradas de cunho religioso pelo IEP e também de caráter opositor. “Curiosamente, a religião por si só não foi a única causa de sequer um conflito armado em 2013”, avaliou o IEP128. O estudo mais uma vez desmistificou os conceitos que invariavelmente ligam uma coisa à outra. Isso, porém, não nega a realidade de que a religião, como qualquer outro organismo social, possa absorver elementos de beligerância, o que não significa ser a causa dela. Qual seria, pois, a causa do ódio e da violência generalizada? Não em nome de Deus! Poderia citar ainda muitos outros autores, principalmente ateus, que afirmam taxativamente não ser possível classificar uma guerra como “secular” ou “religiosa”, mesmo que haja questões religiosas envolvidas no conflito. Também não se pode dizer que a religião seja o motivo impulsionador da violência humana. Neste ponto, para ser honesto com o leitor, também não posso deixar que passe por verdadeiro o argumento usado por alguns apologistas cristãos de que apenas 6% das guerras ocorridas no mundo seriam, de fato, religiosas129. As fontes que se usam para afirmar isso não trazem esse dado. Desconhecem-se estudos que possam afirmar qualquer percentual neste sentido130. O máximo que os estudos revelam é que, em muitos casos, os que participam das guerras podem até fazê-lo por motivos religiosos, mas quem as inicia o faz por razões outras que nada têm a ver com a religião. Ou seja, ainda que o sentimento religioso seja usado como propaganda pelos combatentes, não é a “causa primordial” da deflagração militar131. A culpa é do Sagrado Sei que com o fim da Guerra Fria o número de conflitos envolvendo países mulçumanos aumentou exponencialmente ou, pelo menos, chamou mais a atenção da mídia ocidental. Por isso, os antirreligiosos batem tanto nesta tecla. Afinal de contas, não foram ateus que promoveram o ataque às torres gêmeas ou os atentados em Paris, Berlim e Istambul. É claro que medo do terrorismo, após o 11 de setembro e o radicalismo dos que se infiltram na Europa para fazer atentados agregam valor exponencial à retórica do argumento. Daí, como comentei anteriormente, os casos atuais de “explosões em nome de Allah” são projetados para o passado e usados para explicar a inquisição, as torturas medievais e a maior parte do derramamento de sangue, testemunhado pela humanidade, ou seja, tudo em nome da fé, tudo em nome de Deus! Ora, que muitos absurdos, assassinatos e horrores foram praticados por líderes religiosos ninguém duvida, a história está aí repleta de exemplos. É inegável a quantidade de males feitos sob um suposto mandato divino. Mas daí a dizer que a religião é a raiz de todos os males e que sem ela nada disso existiria é pura especulação. Duvida? Então acompanhe meu raciocínio. Quando a sociologia começou a dar seus primeiros passos após a Revolução Francesa, a grande busca de seus pioneiros era a criação daquilo que Thomas More já havia chamado de Utopia em 1516 – uma sociedade perfeita, símile à República idealizada por Platão. Muitos, seguindo no que já havia sido preconizado por More, permitiam à religião ocupar um lugar positivo e atuante nesta sociedade imaginada, em que todos viveriam em cooperação e justiça. Um lugar onde “ninguém possua coisa alguma, mas todos sejam igualmente ricos”132. A ideia era uma sociedade igualitária, sem propriedade privada e repleta de liberdade religiosa. Mas Augusto Comte, um dos principais idealistas do novo sistema, começou aos poucos a romper com parte desse planejamento. Enquanto More criticava apenas os autoritarismos do Rei (especificamente Henrique VIII) e os desmandos da Igreja Anglicana, Comte já demonstrava uma relativização da importância da religião na sociedade. Embora a atividade religiosa fosse uma necessidade existencial humana, a evolução da sociedade demandaria para Comte uma superação e um abandono das crenças à medida que saíssemos dos estados teológico e metafísico e atingíssemos o estágio científico ou positivista. Sua última obra, Sistema de política positiva (1857)133, discute essa questão, afirmando que a forma atual de religião, com suas crenças e organização oficial, era incompatível com a sociedade perfeita por ele idealizada. O motivo era sua herança do estado teológico e militarista, caracterizado pela força, pelo dogma e pelo comando irracional. Outros pensadores seguiram na mesma linha, buscando levar o tema da utopia para o lado da política, e chegaram ainda mais longe. Eles saíram do campo da teoria social, arriscando emplacar uma nova modalidade de governo com viés fortemente secularizado, sem espaço para a religião. A revolução Russa foi, sem dúvida, um dos mais significativos movimentos nesta direção. Sendo uma das maiores soberanias da Europa, a Rússia passou a ter condições políticas e militares de dominar uma grande extensão de terras. Sua esfera de atuação era imensa. Assim com a queda dos czares e a adoção das filosofias marxista e leninista, a Rússia passou a exportar uma ideologia nova e radical de governo que se espalhou pela Eurásia tanto pelo argumento quanto pela força armada. Suas raízes ideológicas estavam nas filosofias de Feuerbach, Hegel e os já mencionados Marx e Lenin. Criou-se, portanto, um sistema governamental que rejeitava a religião ao defender inteiramente um entendimento materialista/dialético da natureza. A religião, é claro, seria o “ópio do povo”, expressão usada por Marx no sentido de que ela levaria as pessoas a aceitarem passivamente o sofrimento, na esperança de uma vida melhor no paraíso. Por isso, entendiam que, para o progresso da então criada União Soviética, a religião deveria ser abolida134. Foi um momento ideológico muito marcante, pois nem mesmo a Revolução Francesa, que dialogou estreitamente com ideais humanistas, se tornara um movimento 100% ateu. Muitos de seus líderes ainda nutriam fé em algum tipo de divindade, mesmo que fosse um Deus distante conforme propunha o deísmo de Voltaire. Mas a proposta do “marxismo leninista” era de que um verdadeiro socialismo deveria se fundar num Estado e numa sociedade necessariamente ateístas, ou seja, a estrada do socialismo, para aquela corrente, demandava a morte a Deus. Finalmente o Estado Ateu A antiga União Soviética foi a oportunidade dos teóricos ateus de criarem um Estado livre das mazelas da religião. Em outras palavras, eles já tiveram sua proposta concretizada na história não só na União Soviética, mas também na China de Mao Tsé-Tung, na Albânia de Enver Hoxha e na Coreia do Norte. A pergunta óbvia seria: A vida nesses países foi melhor sem religião? A violência diminuiu? Vamos deixar a resposta com Rudolph Rummel, politólogo, falecido professor de ciências políticas da Universidade do Havaí. Rummel, sem dúvida, foi uma das maiores autoridades do mundo sobre mortes em massa, causadas por regimes políticos, especialmente aqueles declaradamente ateus, sem vínculo algum com a religião. Autor de vários livros e artigos científicos, Rummel se surpreendeu com os números encontrados. Somente o comunismo soviético-russo assassinou por tiro, enforcamento, fome, congelamento ou tortura um total de aproximadamente 170 milhões pessoas – incluindo idosos e crianças135. E olha que isso foi em apenas 73 anos de regime! Já o massacre religioso da Inquisição Espanhola, que durou muito mais tempo (1478 a 1834), ceifou a vida de aproximadamente 341 mil pessoas, um número bem menor que os dados soviéticos136. Quem ceifou mais vidas? Rummel chegou a sugerir um neologismo para descrever o horror dos massacres em nome das políticas de governo. Em vez de falar degenocídio, que para ele era um tanto vago, preferiu usar o termo não dicionarizado democídio – a matança em nome do partido137. Nenhuma dessas mortes, sequer, teve motivação religiosa. Pelo contrário, a religião estava banida da agenda desses ditadores. Que podemos concluir? A essa altura você já percebeu que, se formos comparar os números, mesmo com a dificuldade de se classificar um conflito em religioso ou não religioso, a situação não melhora para o lado dos ateus. Assassinatos assumidamente em nome de uma causa antirreligiosa foram muito maiores que os cometidos em nome da fé. Em valores absolutos, o maior matador não foi um papa, um inquisidor espanhol ou um Emir mulçumano. Foi o ditador ateu Mao Tsé-Tung, que mandou nada menos que 77 milhões de compatriotas para a cova rasa. Logo, o que se conclui é que existe violência nos governos religiosos e também ou maior nos governos ateus. Portanto, não posso dizer que o ateísmo ou a religião sejam a causa principal ou isolada dos conflitos. Talvez o motivo da violência esteja em outro lugar: na natureza humana. Afinal de contas, qual é o elemento comum em todas as guerras, senão o ser humano? De onde vêm as guerras e pelejas entre vós? Porventura não vêm disto, a saber, dos vossos deleites, que nos vossos membros guerreiam? Cobiçais, e nada tendes; matais, e sois invejosos, e nada podeis alcançar; combateis e guerreais, e nada tendes (Tiago 4 1:2). Os psicólogos se dividem quanto à origem da maldade humana, se seria ela inata ou aprendida. Mas com uma coisa todos concordam. O ser humano opta, em meio ao ambiente em que vive, que rumo ético tomará em sua vida. Se não houvesse o tão discutido “livre-arbítrio” – infelizmente negado por alguns deterministas – jamais encontraríamos na sociedade nazista pessoas que, resistentes a Hitler, ajudassem clandestinamente judeus. Por mais que haja influências do ambiente, é a decisão individual de cada um de nós que determinará as escolhas éticas que fazemos. O meio influencia, mas não determina, tanto é que vemos pessoas de bem morando no meio de traficantes e pessoas eticamente desprezíveis ocupando apartamentos de luxo. Se me permitem o jargão religioso, sei que todos somos falhos e pecadores, mas alguns se tornam perversos e isso é algo que não se deve tolerar. Existe perdão para o pecador arrependido e condenação para o perverso impenitente. Fecho este capítulo com as palavras de Viktor Frankl, psiquiatra austríaco- Fecho este capítulo com as palavras de Viktor Frankl, psiquiatra austríaco- judeu, sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz: O ser humano não é uma coisa entre outras; coisas se determinam mutuamente, mas o ser humano, em última análise, se determina a si mesmo. Aquilo que ele se torna – dentro dos limites dos seus dons e do meio ambiente – é ele que faz de si mesmo. No campo de concentração, por exemplo, nesse laboratório vivo e campo de testes que ele foi, observamos e testemunhamos alguns dos nossos companheiros se portarem como porcos, ao passo que outros agiram como se fossem santos. A pessoa humana tem dentro de si ambas as potencialidades; qual será concretizada, depende de decisões e não de condições.138 113 Frans Leonard Schalkwijk. Igreja e Estado no Brasil holandês (1630 a 1654) (São Paulo: Cultura Cristã, 2004). 114 Georges Minois. História do ateísmo – os descrentes no mundo ocidental, das origens aos nossos dias (São Paulo: Editora Unesp, 2014). 115 L. Feuerbach. Preleções sobre a essência da religião (Rio de Janeiro: Vozes, 2009). 116 Michel Onfray. Antimanual de filosofia (São Paulo: Edaf, 2005), p. 30. 117 W. Cavanaugh. The Myth of Religious Violence: Secular Ideology and the Roots of Modern Conflict (Oxford: Oxford University Press, 2009). 118 Tucídides. “Guerra do Pel. i: 112”, in Historia de la Guerra del Peloponeso. Obra completa (Madrid: Editorial Gredos, 1990/1992). 119 Aristófanes. “As Aves 556”, in As Aves. Tradução, introdução, notas e glossário de Adriane da Silva Duarte. Edição bilíngue (São Paulo: Hucitec, 2000). 120 James R. Ginther. The Westminster Handbook to Medieval Theology (Westminster: John Knox Press, 2009), p. 112; Patricia Crone. “One Wonders if Medieval Latin Bellum Sacrum is not more Likely to Lie behind the Modern Term”, in Medieval Islamic Political Thought. New Edinburgh Islamic Surveys (Edinburgh: Edinburgh University Press, 2004), nota 18. 121 “Jihad: A Misunderstood Concept from Islam – What Jihad is, and is not”. Disponível em . Acesso em: 15/03/2017. 122 Christopher Hitchens. God Is Not Great: How Religion Poisons Everything (New York: Twelve, 2007), p. 18. 123 Sam Harris. The End of Faith: Religion, Terror, and the Future of Reason (New York: W.W. Norton & Co., 2004), p. 26. 124 Dados sobre a quantidade de mortos em conflitos podem ser obtidos em fontes como: Aleksey G. Arbatov (ed.). Armaments, Disarmament and International Security by SIPRI Yearbook 2011 (Oxford: Oxford University Press, 2011); Milton Leitenberg. Deaths in Wars and Conflicts in the 20th Century. Cornell University Peace Studies Program, Occasional Paper #29 (Center for International Security Studies at Maryland, School of Public Policy, University of Maryland, College Park, MD, 3. ed., 2006). Disponível em . Acesso em: 24/03/2017; Jacob Bercovitch; Richard Jackson. International Conflict: A Chronological Encyclopedia of Conflicts and Their Management 1945-1995 http://islamicsupremecouncil.org/understanding-islam/legal-rulings/5-jihad-a-misunderstood-concept-from-islam.html http://www.clingendael.nl/sites/default/files/20060800_cdsp_occ_leitenberg.pdf (Washington: Congressional Quarterly, 1997); , Acesso em: 10/02/2017 e , acesso em 24/03/2017. 125 Ben Purzycki; Kyle Gibson. “Religion and Violence: An Anthropological Study on Religious Belief and Violent Behavior”, in Skeptic 16.2 (2011): 24-29. 126 Disponível em . Acesso em: 24/11/2014. 127 Karen Armstrong. Fields of Blood: Religion and the History of Violence (New York: Alfred A. Knopf, 2014). 128 Disponível em . Acesso em: 15/12/2015. 129 Veja por exemplo: . Acesso em: 24/03/2017; Alan Lurie. “Is Religion the Cause of Most Wars?”, in Huffington Post (Updated June 1, 2012). Acesso em: 30/03/2014. 130 Alan Axelrod; Charles Phillips. Encyclopedia of Wars, 3 volumes (New York: Facts on File, 2005); Gordon Martel. The Encyclopedia of War (Malden e Oxford: Wiley-Blackwell, 2012), 5 vols. 131 Gordon Martel. The Encyclopedia of War, p. xxii. 132 Thomas More. Utopia (New York: Dover Thrift Edition, 1516/1997), p. 128. 133 Augusto Comte (1854). Système de politique positive publié entre 1851 et 1854. Collection: “SUP – Les Grands Textes” (Paris: Les Presses universitaires de France, Troisième édition, 1969). 134 Dimitry V. Pospielovsky. A History of Soviet Atheism in Theory, and Practice, and the Believer, v. 1: A History of Marxist-Leninist Atheism and Soviet Anti-Religious Policies (New York: St. Martin’s Press, 1987). 135 R. J. Rummel. Death by Government (New Brunswick: Transaction Publishers, 1994), p. 9. 136 Paul Johnson. A History of the Jews (New York: Harper & Row, 1987), p. 226. 137 J. Rummel. Statistics of Democide: Genocide and Mass Murder since 1900 (Münster: Lit Verlag, 1999). 138 Viktor E. Frankl. Em busca de sentido, um psicólogo no campo de concentração (Petrópolis: Vozes/Sinodal, 1991). http://www.scaruffi.com/politics/massacre.html http://necrometrics.com/wars21c.htm http://g1.globo.com/brasil/noticia/2014/03/para�-585�-comportamento�-feminino�-influencia�-estupros�-diz�-pesquisa.htmlhttp://exame.abril.com.br/mundo/a�-religiao�-e�-a�-maior�-causa�-de�-guerras�-atuais�-nao�-exatamente/ https://www.str.org/articles/debunking-the-religious-wars-myth#.WtoLg0xFxy0 Capítulo 14 Compensa falar de Deus? Confesso que fico admirado com os céticos que leram este livro até aqui. Explico a razão de meu espanto. Alguém destituído de fé poderia conjecturar que não valeria a pena ler minhas considerações por um motivo óbvio: religião, fé e Deus não são assuntos que lhe interessam muito e, portanto, seria perda de tempo tentar entender por que um crente continua crendo. De fato, por questões de especialidade e foco de estudos, eu não tenho interesse em determinados temas como, por exemplo, a culinária da ilha de Java. Posso até assistir a um documentário a respeito ou ler um artigo num avião, mas apenas por questões de cultura geral. Pior ainda se estiver falando de algo que eu considere pueril ou cultura inútil. Eu dificilmente teria interesse num livro intitulado “Por que creio nos elfos”, isto é, aquelas criaturinhas místicas que supostamente moram na floresta e têm poderes mágicos. Tenho prioridades de leitura e esta não estará na lista, principalmente levando em conta que não creio em elfos. Mesmo em se tratando de áreas sérias de estudo que não fazem parte de meu rol de preferências, tenho de selecionar o que leio, pois não dá para repousar os olhos em tudo que é publicado. Por exemplo: recentemente, foi divulgado na imprensa especializada e popular que os físicos puderam, finalmente, confirmar a teoria das ondas gravitacionais de Albert Einstein. Como não sou da área, evidentemente não tive a mesma empolgação de um pesquisador do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA). Portei-me, confesso, como alguém que não acompanha seriados e encontra um fã de Game of Thrones me dizendo que na nova temporada o garoto Greyjoy se reencontrará com Jon Snow pela primeira vez desde que se voltou contra os Starks, sua família de criação. Como esperado, o bastardo não aceitará isso de mão aberta. Ao ouvir essa revelação, consigo imaginar que se trata de algo importante na trama, mas como não acompanho o seriado não sei ao certo qual a profundidade do que ele diz. No caso das ondas gravitacionais de Einstein, sua descoberta abre a possibilidade de conhecer melhor o ciclo das estrelas e o modo como se formam os buracos negros. O universo será estudado de um modo totalmente novo. Como não acompanho todos os capítulos desse recorte do saber, reservo-me à condição de leigo e fico apenas na admiração, sem me envolver muito no debate. Afinal, todos somos leigos em alguma coisa. Não podemos dominar profissionalmente todos os assuntos. Se eu conversar com um físico sobre um novo achado da arqueologia ou uma nova interpretação dos escritos de Wittgenstein, talvez ele também fique no campo da admiração, sem ter muito o que dizer. Não quero com isso insinuar que diferentes áreas não possam dialogar ou que somente especialistas podem opinar sobre determinado assunto. Isso seria exagerar meu argumento. O ponto aqui é que há conhecimentos fúteis ou importantes que podem ocorrer paralelos à minha vida, sem que eu interaja com eles ou me posicione a seu respeito. A neutralidade neste caso não causa prejuízo algum em minha existência. Posso viver meus dias completamente alheio a esses temas que isso não modificará em nada minha trajetória. Contudo, existe uma diferença marcante entre Game of Thrones, ondas gravitacionais, elfos e o tema de “Deus”. Primeiro, porque Deus não é uma especialidade acadêmica para ficar restrito a um grupo de teólogos, apenas, tanto é que as livrarias e redes sociais estão repletas de ateus sem formação teológica ávidos para debater temas bíblicos. Por mim tudo bem desde que sejam coerentes com as fontes e admitam que não sabem grego, hebraico ou como fazer exegese! Em segundo, Deus é tema diferente porque não se trata de uma cultura localizada que interessa apenas ao povo de determinada região; não estou falando da centralidade dos elfos na mitologia escandinava – o assunto “Deus” é muito mais amplo que isso. A realidade ou não desse Ser Supremo e daquilo que ele representa (caso exista, é claro) tem relação direta com aquilo que somos, fazemos e valorizamos, bem como com os motivos pelos quais agimos quer como indivíduos ou como sociedade. E não caiamos na velha máxima de que futebol, religião e política não se discutem. Contrariando esse dito popular, as redes sociais se enchem de debates acalorados sobre esses três temas e não é raro encontrar situações em que a rede se transforma num agressivo ringue de ideias. Que me importa? Deixe-me explorar melhor esse conceito da importância do tema de “Deus”. A questão que interessa aqui é que a fé em algum tipo de divindade não é como a crença num elfo escandinavo. A história do Sagrado (ainda que alguns a considerem mito) permeia a história da humanidade em todos os tempos e em todas as culturas. Entre nas caravelas de Cabral e verá que os índios que aqui havia já cultuavam divindades. Vá com Marco Polo ao Extremo Oriente e se surpreenda pela religião já estar lá há muito tempo. Sei que a religião constitui um organismo plural e diversificado, mas isso não contradiz o fato de que seja um fenômeno universal. Esta não é uma conclusão de crentes sem cultura. Autores renomados como Émile Durkheim, Sigmund Freud, Carl G. Jung e Lévi-Strauss já diziam isso. Lothar Käser apresenta o que parece ser um consenso da etnologia moderna: a despeito do surgimento de países oficialmente ateus como China, França e Rússia, a religião ainda é considerada um fenômeno universal, presente em todas as culturas139. O ateísmo, por sua vez, constitui uma manifestação de cunho mais individual ou no máximo uma opção sociopolítica, posterior ao rompimento com a fé. Do ponto de vista cultural, todas as coletividades sociais apresentam manifestações religiosas e a crença é o fator natural comum a todas elas. Ainda que muitos filósofos atuais tenham abandonado o argumento do consensus gentium, isto é, afirmar que a crença universal em Deus comprova sua existência, desconheço qualquer contra-argumentação séria que negue o fato de que existe naturalmente uma inclinação humana para o Sagrado. Ou seja, no DNA de todas as mais diferentes culturas até agora mapeadas pela antropologia, está registrada a força do rito e da atividade sagrada, seja ela qual for140. Logo, a ideia de divindade não parece ter surgido a partir de um grupo de homens que, reunidos numa sala secreta, resolveram criar Deus e vender o conceito para um povo supostamente ateu. Não se trata de uma Coca-Cola inventada e posta no mercado. O conceito está conosco desde os tempos mais remotos da humanidade. É certo que existem muitas “versões de Deus” (algumas de gosto bastante duvidoso). Mas até os que se opõem à religião admitem que a ideia original de divindade não parece ter sido criação de seres humanos. Neste ponto preciso apenas esclarecer um aspecto importante, que é a diferença entre a busca instintiva de Deus e manifestação religiosa. A religião para mim (e aqui sigo o pensamento de Viktor Frankl) é apenas uma manifestação da dimensão espiritual, mas não a determinação dela. É impreterível considerar que essa realidade em sua característica essencialmente humana expressa a busca ontológica por um significado. A tese de Durkheim Talvez alguém argumente que Émile Durkheim concluiu diferentemente, afirmando que embora as crenças religiosas estejam no centro do primeiro sistema de representações do ser humano, elas nada teriam a ver com a ideia de Deus ou de vida eterna. Seriam apenas representações dualísticas do mundo e da sociedade. Mas vamos devagar com a proposta para não cair no argumento por autoridade. Durkheim realmente fez um grande trabalho na tentativa de demonstrar que os fatos sociais têm existência própria e independente daquilo que pensa e faz cada indivíduo em particular. Embora todos possuam suas “consciências individuais”, seus modos próprios de se comportar e interpretara vida, pode-se notar, no interior de qualquer grupo ou sociedade, formas padronizadas de conduta e pensamento. Essa constatação está na base do que Durkheim chamou consciência coletiva. Esta foi uma proposta realmente fascinante. As formas elementares da vida religiosa141, lançado originalmente em 1912, foi seu tratado mais importante de sociologia da religião. Mas há quem diga que ele transcendeu o elemento religioso, tornando-se um livro de sociologia do conhecimento e da moral. Contudo, em que pese a contribuição de seu insight, Durkheim não está isento de críticas. Embora não seja um especialista em sociologia, permita- me tecer alguns comentários que também são esboçados por outros autores. Sabe-se que Durkheim elegeu o sistema totêmico australiano como suporte empírico de sua investigação sobre os fundamentos coletivos da crença religiosa. Ele queria encontrar traços comuns que permitissem criar uma teoria das origens da religiosidade humana em diferentes grupos étnicos. O que seria, portanto, o sistema totêmico australiano? Trata-se de um tipo de religião comum entre os aborígenes que tem como ponto central a figura de um totem, isto é, um objeto sagrado que funciona como um talismã para determinados grupos sociais. Ele pode ser um animal, uma pedra, um brasão ou um poste esculpido com figuras antropomórficas, como aqueles vistos em tribos indígenas dos Estados Unidos e do Canadá. Durkheim entendeu que os elementos religiosos dos aborígenes não simbolizavam o mundo transcendental, mas a própria sociedade e os valores materiais tornados objetos de culto. Eram imagens religiosas do universo, retiradas das representações que as sociedades fazem de si mesmas. Assim, o sagrado não é originalmente algo que tem a ver com uma divindade acima dos homens. Tratava-se, antes, de uma força primitiva derivada da coletividade. Os brasões religiosos seriam, portanto, um símbolo do próprio clã. O totemismo, neste sentido, seria uma espécie de religião sem deus e serviria para demonstrar a tese de que o traço distintivo do pensamento religioso em todas as partes é representar o mundo “em dois domínios, um que compreende tudo o que é sagrado, e outro que compreende tudo que é profano”. Ambos, porém, têm a ver com o universo em redor, e não com uma busca por divindades espiritualmente superiores. Durkheim entendeu que esses grupos da Austrália poderiam ser estudados de modo científico, oferecendo características comuns que serviriam como uma espécie de padrão do comportamento humano. Mas aí que nasce o primeiro de seus problemas. Ele fez a pesquisa numa época em que estava em moda a busca por padronizações do comportamento humano que hoje se demonstraram bem inferiores àquilo que prometiam. Foi uma tentativa, vista posteriormente no processualismo, de se estudar a atividade humana, utilizando-se de metodologias positivistas. Seu intento era explicar cientificamente a religião, a partir de supostos fenômenos sociais oriundos de observações comportamentais de determinados agrupamentos étnicos. O problema, no entanto, com esta abordagem é a desconsideração ao fato de que as pessoas não foram feitas em série como se fossem automóveis. Os comportamentos, mesmo aqueles coletivos, se mostram particulares e pouco previsíveis. Essa é uma abordagem que não dá mais conta da realidade social. Imaginava-se, de modo geral, que a tarefa do sociólogo com relação à religião deveria ser examinar as forças sociais que dominam o crente, concebidas enquanto um produto direto dos sentimentos coletivos. Outro problema é que Durkheim ainda respirava um ar eurocentrista, segundo o qual o chamado “homem branco” emitia juízo de valores sobre culturas ditas “primitivas” e as analisava sob uma ótica que nem sempre era a mesma do analisado. Por exemplo, o que para um observador europeu seria um rito de iniciação, para o nativo poderia ser um ato penitencial. As análises não escapavam ao subjetivismo prévio do observador. Logo, poderiam ser anacrônicas em relação à verdadeira identidade do símbolo. Para piorar, ao que tudo indica, Durkheim não contatou pessoalmente todos os grupos citados, mas valeu-se de um trabalho prévio de Spencer e Gillen, antropólogos que se ocuparam de um conjunto de tribos australianas. Porém, mesmo estes não foram observadores diretos de tudo que escreveram. Em muitos casos, eles utilizavam impressões fornecidas por viajantes, comerciantes e missionários. Ou seja, não era um trabalho de primeira mão, mas um amontoado de impressões sobre impressões que pouco espaço deram para a voz do próprio sujeito pesquisado. Durkheim ainda tomou por pressuposto que o “totemismo” seria a forma mais simples e primitiva de religião. Logo, a partir dela, ele poderia traçar a evolução da sacralidade humana e fundamentar uma teoria. Evidentemente, essa ideia de “simplicidade” é possivelmente um dos pontos mais frágeis e mais contestados de sua proposta, podendo ser considerada um resquício das concepções evolucionistas que ainda faziam parte do imaginário sociológico e antropológico da época e que, por isso mesmo, soa como uma ofensa às consciências contemporâneas142. O antropólogo Van Gennep, que também pertencia à escola francesa de Durkheim e foi pioneiro na abordagem etnográfica comparada, não poupou críticas ao colega, afirmando que um culto a uma entidade impessoal seria inconcebível, sobretudo entre os grupos mais primitivos143. E finalmente, Lévi-Strauss também criticou bastante a obra de Durkheim denominando sua teoria de reducionista, projetista de imagens não reais144. Toda a grandeza e debilidade da pesquisa durkheimiana encontra-se exatamente nos pressupostos com os quais ele trabalha. A origem de Deus O que se conclui de tudo? Que a despeito de existirem muitas fábricas de deuses para todos os gostos, o “conceito de divindade” pode ser sistematizado pelo homem, mas nunca criado por ele. Seria como os astrônomos que podem estudar as estrelas, mas jamais as produzir. A crença no divino não parece ter certidão de nascimento. Suas origens coincidem com o surgimento da humanidade, e é exatamente aí que tal conceito não pode passar despercebido. Ele influencia a vida de todos, seja para um lado ou para o outro. Se a existência de Deus ou deuses for um mito, ela precisa urgentemente ser combatida, para o bem de todos. Afinal é uma mentira contada há séculos, afetando a vida de todos nós. Mas se for verdadeira, precisa ser abraçada por quem tiver bom senso. Não seria sensato viver alheio a Deus. Seria como brincar na praia fingindo que o tsunami não está vindo! Logo, não posso ficar neutro em relação a esse assunto, como se isso fosse coisa de somenos importância. Ou corro para Deus ou combato sua existência. É uma questão de coerência e bom senso. Neutralidade é um termo que não pode existir nesta questão. Ainda que alguns argumentem com John Locke que a ideia de Deus e sua crença não é inata ao ser humano (tenho cá minhas dúvidas em relação a isso), deverão, pelo menos, fazer coro com Marx, Durkheim e Freud de que existe uma abertura humana para o transcendente que precisa ser explicada, ainda que com argumentos naturais. Marx enfatizava a mistificação, Freud a compensação e Weber, a secularização. Seja como for, ninguém está livre do fenômeno religioso ou, se preferir, da busca transcendental. Eu sei que existem religiões que se denominam como não necessitadas de um conceito de Deus (que também não sejam durkheimianas). Refiro-me a rigor a seguimentos como daoismo, confucionismo e budismo. Elas, no entanto, têm o sentido da transcendência. E é justamente por terem um agudo sentido da transcendência que querem ultrapassar a determinação de um deus pessoal”. Sendo assim, como veremos no próximo capítulo, as pessoas podem até dispensar conceitos humanos de Deus, mas ninguém escapa da ideia da Transcendência! 139 Lothar Käser. Diferentes culturas (Londrina: Descoberta, 2004), p. 187. 140 Thomas Kelly. “Consensus Gentium: Reflections on the ‘Common Consent’ Argument for the Existence of God”, inClark and VanArragon (eds.). Evidence and Religious Belief (Oxford: Oxford University Press, 2011), p. 167-196. 141 É. Durkheim. As formas elementares da vida religiosa (São Paulo: Martins Fontes, 2003). 142 Raquel Weiss. Durkheim e as formas elementares da vida religiosa (Debates do NER, ano 13, nº 22, 2012), p. 95-119; M. C. C. Zanini. Totemismo revisitado: perguntas distintas, distintas abordagens (Hábitus: Goiânia, v. 4, n. 1, jan./jun. 2006), p. 513-533. 143 A. van Gennep. L’etat actuel du problème totémique (Paris: Leroux, 1920), p. 50. 144 C. Lévi-Strauss. Totemismo hoje (Petrópolis: Vozes, 1975). Capítulo 15 Ninguém escapa da transcendência Meus leitores ateus, céticos e agnósticos não podem ignorar toda a bagagem cultural e profundamente humana da ideia de Deus. Ninguém escapa da transcendência. Faz parte ontológica do gênero humano perceber que sua existência é parte de algo maior que ele mesmo, que a vida não é completamente acidental e inútil. Nossa razão tem fome de propósito e sede de significado. É como um buraco negro, nem a luz consegue escapar de sua gravidade. Sei que muitos céticos negarão o que digo, talvez até por uma questão de autoafirmação, rebeldia, sei lá. Mas, ouvindo o discurso e os argumentos de vários ateus, nutro a forte percepção de que, se houver mesmo um Deus bom, justo e salvador, que trará o paraíso para a Terra, os de sã consciência achariam isso uma maravilha. Imagine um planeta onde não haverá mais morte, nem pranto, nem dor. O fim eterno do sofrimento, da desilusão, do tédio. Se houver a mínima possibilidade de que isso ocorra, até os ateus de bom senso poderão fazer uma oração muito sincera que diria: “Senhor, que tu existas! Amém!”. Quer fazer um teste? Raciocine comigo, pegue um grupo de materialistas radicais que neguem qualquer evento ou propósito acima da materialidade. Eles são pessoas espertas que adoram postar comentários antirreligiosos e encurralar crentes com perguntas capciosas. Só trabalham com dados científicos, números e evidências. Não aceitam superstições, medicina alternativa e ainda dispensam as preces feitas em favor de si mesmos. São pessoas, enfim, que se definem como tendo coragem de viver a realidade como ela é, sem rodeios nem embelezamentos espirituais. Para elas a vida é apenas um traço entre duas datas. Quem dá sentido a esse traço somos nós mesmos, vivendo da melhor maneira que pudermos e buscando ao máximo desfrutar a felicidade antes que o tempo passe e seja tarde demais. Até que, certo dia, um dos membros do grupo recebe um laudo de câncer do mais agressivo que se pode imaginar. Suas chances sobreviver são mínimas. Contudo, assim que ele compartilha a má notícia com os colegas do grupo, provavelmente a maioria ignorará as estatísticas acerca dessa doença e lhe dirá frases de efeito do tipo: “Tenha bom ânimo, você vai sair dessa”, “Estamos juntos”, “Força, amigo, não desanime”, “Estou torcendo por você”. Ora, seria esse comportamento coerente com sua filosofia de vida? Óbvio que não! Não digo que o desejo de o amigo viver mais tempo seja o problema aqui. A questão é que, racionalmente falando, desejo e realidade não deveriam estar em rivalidade. O primeiro deve submeter-se ao segundo para evitar colocações não realistas. O simples motivo pragmático de não permitir que o amigo fique totalmente depressivo não justifica a negação de realidade como eles a entendem. Caso contrário estariam fazendo justamente o que mais criticam na religião – iludindo alguém com falsas esperanças para que ele não se sinta pior. Se não existe Deus, nem realidade alguma acima do universo material em que vivemos, “torcer pela recuperação de um amigo” é tão inútil quanto orar em prol de um ente querido. Seria o mesmo que sacudir um pouco mais a urna já misturada, achando que isso aumentará suas chances de ganhar o prêmio. Se tenho 1 cupom em mil, essa será minha chance matemática não importa quantas vezes revirem os papéis que estão ali dentro. Seria estatisticamente estúpido pedir para girar novamente a urna. Na cena imaginada, seria mais coerente com os princípios filosóficos do grupo dizer algo do tipo: “Bem, já que você tem poucos dias de vida, então aproveite, meu amigo. O que pretende fazer no pouco tempo que lhe resta? Se quiser posso lhe dar algumas sugestões de como aproveitar seus últimos dias ou tirar uma licença para você não morrer sozinho. Um detalhe importante: se for viajar, sugiro que não vá para muito longe, nem para fora do país, pois será mais caro pagar o traslado de seu corpo do exterior. Já fez um seguro de vida para deixar para sua esposa? A propósito: você se importa se eu não te devolver o taco de golfe que me emprestou? Afinal, você não vai mais precisar dele. Outra coisa: deixe claro se quer ser cremado ou enterrado, pois pode ser que nos momentos finais você perca a consciência e fiquemos na dúvida sobre seu último desejo. Qualquer coisa, conte comigo, somos seus amigos e queremos fazer de tudo para que você tenha um final de existência feliz”. Frio demais? Não creio. Talvez irônico, mas bastante realista. A comparação pode até parecer exagerada, mas não é falaciosa. Seu objetivo foi chamar a atenção da discrepância entre o que se afirma no momento da calma e o que se faz na hora da dor. Disseram certa vez, numa piada, que ninguém é hétero quando a barata é voadora, e eu digo que ninguém é 100% materialista quando a morte bate à sua porta, afetando a si ou a um ente querido. Se fosse, ele não temeria ler o resultado dos exames. Afinal, todos vamos morrer um dia, não há nada de novo nisso. É só uma questão de saber quem vai primeiro. Se a morte é um processo natural – a religião que tenta negar isso – então pessoas mais esclarecidas não deveriam ter nenhum receio dela. A naturalidade da morte deveria torná-la mais palatável, pelo menos é o que entendo ao ler a ironia de autores como Saramago, que procura tratar o fim da vida com humor, expressando a inutilidade da existência. E, por favor, não bata no peito dizendo que não tem medo de morrer, que isso é coisa para religiosos. Eu não disse “medo”, disse “receio”, angústia do dia em que ela chegará para você ou para alguém que você ama. Veja se não é assim: em condições normais ninguém tem receio de dormir, comer, fazer sexo ou usar o banheiro. São coisas normais da natureza e, por isso mesmo, não deveriam causar nenhum espanto a não ser por tabus sociais. Porém, no quesito “morte” parece que a dita evolução fez uma piadinha de mau gosto criando um paradoxo existencial: não somos imortais, mesmo assim, não queremos deixar de existir. Tal dilema parece indicar que algo não está funcionando de acordo com o projeto. O carro projetado para correr a 300 km/h não está conseguindo passar dos 100! Tem coisa errada aí. Expectativas fantasiosas? Dizem por aí que a morte é a única convicção da vida. Contudo, contrariando essa certeza, todos, crentes ou não, queremos desesperadamente encontrar uma alternativa para ela, como se pudéssemos adiá-la indefinidamente. “Sabemos que não vamos viver eternamente, mas sempre temos a expectativa da vida”, tanto é que ninguém consegue imaginar sua morte ou sua não existência. Sempre que nos imaginamos mortos, na verdade visualizamos nosso eu vivo em algum lugar, assistindo de camarote ao que ocorre no mundo dos vivos. O estado da inconsciência não alcança nossa imaginação. E não somente isso. Nossa mente possui uma forma quase contínua de tentar driblar a fria realidade em que vivemos. Precisamos o tempo todo de algo que dê sentido ao sofrimento ou que possa nos prevenir dele, mesmo sabendo que tal coisa talvez não exista. Nem os mais prodigiosos escapam disso. Conta-se que o rêmio Nobel Niels Bohr, o maior nome na física do século 20, depois de Einstein, tinha uma ferradura pendurada na porta de sua casa. Um amigo lhe perguntou se ele realmente acreditava que aquilo traria sorte para sua vida. Ele respondeu que não, mas que haviam lhe dito que a coisa funciona mesmo assim, então ele resolveu “arriscar”. Isso soa tão contraditórioao nascimento de Jesus e, em seguida, perguntaram a cada um que histórias, fatos ou personagens – dentre os apresentados – estariam presentes no relato dos evangelhos. Cerca de 5% disseram que Papai Noel estaria citado no Evangelho de Lucas e 7% que a árvore de Natal fazia parte original do lugar onde Jesus nascera5. Uma pesquisa semelhante foi feita nos Estados Unidos, onde apenas 4% da população se descreve como ateu ou agnóstico6. Um país, portanto, orgulhosamente religioso! Os resultados, no entanto, foram ainda piores. De acordo com o Instituto Barna, sediado em Greendale7, Califórnia: 93% das residências pesquisadas possuem um ou mais exemplares da Bíblia; 12% dos entrevistados garantiram ler as Escrituras todos os dias; 38% recorriam a ela momentaneamente, em períodos de necessidade; 57% confessaram que passaram mais de uma semana sem ler a Bíblia; 31% acreditam que o dito popular “Deus ajuda a quem cedo madruga” está nas páginas da Bíblia; 48% acreditam que o livro de Tomé – um livro apócrifo – é um dos livros que compõem a Bíblia cristã; 52% não sabiam que existe o livro de Jonas; 58% desconheciam quem pregou o Sermão do Monte. Certamente eu ficaria com vergonha se, desconhecendo esses dados, um ateu os apresentasse em público num debate. O estereótipo que muitos religiosos apresentam dos descrentes é de pessoas que negam por desconhecer. Mas os dados mostram que isso nem sempre é verdade, e a pergunta honesta que faço é: Se os ateus negam mesmo conhecendo, os crentes – que demonstram menor conhecimento – creem baseados no quê? Essa é uma questão que realmente me incomoda. Seria a fé contemporânea sustentada num achismo e a descrença num exame real de fatos? Um tiro no pé? Sei que parece um tiro no pé revelar esses dados e admitir tal desconforto assim, de cara, num livro supostamente escrito para defesa da fé. Talvez fosse melhor nem apresentar esses números e deixar que o estereótipo do “crente biblicamente letrado versus ateu desinformado” permaneça. Isso, porém, não seria nem um pouco ético ou honesto. Além do mais, não posso fugir da realidade que me cerca, nem insultar a inteligência de nenhum leitor supondo que ele nunca perceberá o óbvio. A informação está presente à palma da mão. Basta um celular e um sinal de Wi-Fi. Ou enfrentamos a realidade, respondendo-a honestamente, ou nos rendamos à ideia do outro, deixando de ser teimosos e desonestos. Estou até disposto a “trocar meus velhos sapatos”, como dizia um ex- professor da faculdade, desde que me deem sapatos novos e mais apropriados. O que não posso é ficar descalço, nem com sapatos errados. Se não for assim, o único jeito de trocar o calçado, para lembrar uma fala de John Newman, “seria colocando o direito no pé esquerdo e o esquerdo no pé direito, pois esses são os únicos sapatos apropriados que possuo”8. Note, porém, que não se trata de ficar com os mesmos sapatos apenas por uma questão de comodismo. É o oposto disso! Mudanças, via de regra, envolvem inconveniências grandes ou pequenas, mas necessárias. O ponto é que não podemos, igualmente, desistir de um conceito apenas porque tornou-se “fora de moda”. Mudanças apressadas podem ser tão prejudiciais quanto a manutenção de erros por amor da conveniência. Sobre as mudanças necessárias, Karl Marx dizia que não basta aos filósofos interpretarem o mundo, o que eles precisam é transformá-lo, e eu concordo com isso9. Pois, mesmo crendo numa intervenção escatológica de Deus na história, compreendo ser meu dever, como cidadão, transformar para melhor o mundo no qual eu vivo, mesmo que essa melhora não seja universal ou definitiva. Trocando isso para a linguagem religiosa, não poderei ajudar a construir o reino de Deus neste mundo enquanto permanecer acomodado em meu mundinho religioso. Ratifico, porém, que qualquer mudança só deve ser um imperativo, se necessária. Tão importante quanto a transformação necessária, é saber a hora e os pontos em que não se deve mexer numa ideia prévia. Já dizia Sir Lucius Cary, visconde de Falkland, no século 17: “Quando não é necessário mudar, é necessário que não se mude”10. Audaciosa honestidade Para não assustar demais os religiosos que estiverem lendo este livro, deixe- me dizer que minha inspiração para a franqueza na admissão de certas ideias vem justamente da Bíblia Sagrada. Desconheço outro clássico da humanidade que seja tão honesto em apontar os defeitos de seus heróis, como o faz esse livro base do cristianismo. Um editor moderno certamente omitiria os crimes, fraquezas e adultério de Davi. A menos, é claro, que se trate de uma biografia de denúncia ou um estudo técnico da vida do indivíduo, sem fins publicitários. É preciso muita coragem para admitir que “o homem segundo o coração de Deus” matou seu melhor soldado para continuar dormindo com a mulher dele. Ora, se a Bíblia foi assim tão franca, por que não posso também honestamente admitir os problemas da religiosidade moderna? Se tem algo que pode ser muito perigoso aos crentes é o ufanismo religioso, que leva o sujeito a crer que não existe ética, honestidade, nem vida espiritual fora de seu próprio sistema de valores. Que o céu foi projetado para pessoas que pensam e agem igualzinho a ele. Recentemente li que a McAfee, fabricante de softwares para proteger empresas de ataques pela Internet, recrutou uma equipe de hackers “white hat” ou os hackers do bem, para justamente invadir seu sistema de segurança, revelando os pontos vulneráveis do programa. Assim eles poderão descobrir as falhas e corrigi-las, tornando seu sistema mais eficiente. A soberba de achar que não existem erros ou tornar as falhas um assunto proibido não ajudaria nada neste sentido. Só tornaria a rede mais vulnerável. Assim, proponho fazer o mesmo com a fé que sigo, descobrir vulnerabilidades e ver como posso honestamente lidar com elas. Disto posto, aqui vai mais um caso para a coleção de fatalidades sociais com tempero de religião: a história de Ayaan Hirsi Ali, uma mulher que nasceu numa família altamente religiosa e se tornou ateia, justamente por causa das brutalidades que testemunhou em nome de Deus. Para falar dela, preciso primeiro reportar um incidente ocorrido em novembro de 2004 quando o cineasta Theo van Gogh foi morto a tiros em Amsterdã por um fanático religioso, que, em seguida, o degolou e lhe cravou no peito uma carta em que anunciava sua próxima vítima: a então deputada Ayaan Hirsi Ali, que, por causa disso, teve de abandonar a Holanda e se refugiar nos Estados Unidos. Mas quem era essa mulher? Por que tanto ódio em relação a ela? Ayaan Hirsi Ali nasceu na Somália em 1969 e, desde cedo, presenciou o horror baseado em ensinamentos religiosos. Aos cinco anos ela e sua irmã de quatro anos sofreram uma mutilação cruel que vitima milhares de meninas todos os anos em várias partes do mundo. Trata-se da infibulação, que é a amputação do clitóris e dos pequenos lábios vaginais. Depois dessa tortura – guiada por sua própria avó –, seus grandes lábios foram seccionados, aproximados e suturados com espinhos de acácia, sendo deixada uma minúscula abertura necessária ao escoamento da urina e da menstruação. Esse orifício geralmente é mantido aberto por um filete de madeira, que é, em geral, um palito de fósforo. Em casos assim, as perninhas da criança devem ficar amarradas durante várias semanas até a total cicatrização. O desaparecimento da vulva é a primeira consequência. Em seu lugar fica apenas uma dura cicatriz, que será “aberta” no dia do casamento pelo marido ou por uma “matrona” designada para o ofício. O rompimento traz uma dor igual ou pior que a do dia da castração. Mais tarde, quando se tem o primeiro filho, essa abertura é aumentada e, em algumas vezes, após cada parto, a mulher é novamente infibulada. Imagine a criança passando por um horror assim e ouvindo que “deus se alegra disso”. Fugindo de um casamento forçado, Ayaan foi parar na Europa, onde passou fome, humilhação, mas conseguiu vencer, graduando-se em política na universidade de Leiden, Holanda, e se tornando,como se alguém dissesse: “não sou supersticioso, pois isso dá azar”. Ainda que a resposta tenha sido uma ironia do cientista, o fato é que a ferradura estava lá. Tal comportamento é hoje confirmado por vários artigos indexados que demonstram como a magia e a superstição persistem no raciocínio até mesmo de físicos, químicos, geólogos e acadêmicos do MIT. Ao serem colocados em situações controladas de pressão emocional, esses intelectuais céticos demonstraram alta tendência para anexar desígnios transcendentais a eventos naturais. Seria algo do tipo: a casa pegou fogo para ensinar-lhe uma lição145. Por mais contraditório que pareça, há pessoas supostamente “descrentes” que ainda alimentam algum tipo de crença supersticiosa como: receio de fantasmas, busca astrológica, noção de karma, reencarnação e telepatia. Outros tentam se apoiar em representações sociais que nada têm a ver com as igrejas, mas que podem ser psicologicamente qualificadas como “religiosas”: torcer por um time, tornar-se vegano, fazer ioga, entrar para um partido político. Há pouco tempo, o antropólogo Ryan Hornbeck, de Pasadena, Califórnia, descobriu indícios de que o videogame on-line World of Warcraft estaria assumindo uma função espiritual para muitos jovens na China. Segundo o autor da pesquisa, “o game parece oferecer oportunidades de desenvolver alguns traços morais que a vida comum na sociedade contemporânea não consegue”146. Veja que ele estava falando da China, onde os jovens podem estar sendo preparados para tudo, menos para acreditar em Deus. A pergunta que nos resta é: Por que o inconsciente humano insiste tanto em correr para a transcendência, mesmo com uma mente treinada para negar qualquer coisa além da materialidade? Esta foi apenas uma pergunta retórica. Só para reflexão mesmo. Não caia no erro de sugerir uma resposta apressada, isso não seria nada acadêmico. Os dados levantados até agora apenas demonstraram a realidade do persistente raciocínio transcendental humano, mas não deram a razão dele. Logo, esperamos trabalhos futuros que possam dizer o porquê de tudo isso. Por ora resta-nos a intuição e somente ela. Embora, para ser honesto com você, não esteja certo se as pesquisas de campo algum dia conseguirão dar uma razão absoluta para esta insistente busca por significado, mesmo por parte de pessoas céticas. Este é um tema que estaria além das estatísticas. Supersentido Houve, a bem da verdade, uma tentativa de dar uma explicação científica para esta constante busca por significado. Ela veio do pesquisador ateu Bruce Hood, professor de psicologia comportamental na Universidade de Bristol, Inglaterra. Quando vi na livraria seu livro Supersentido: porque acreditamos no inacreditável, comprei sem pestanejar. Interessava-me ver o que um cético teria a dizer sobre o assunto. A primeira coisa que me chamou a atenção no livro foi que, diferentemente de outros autores como Richard Dawkins, Hood concluiu que as crenças supersticiosas são inevitáveis e até benéficas ao ser humano. Hood não está sozinho em seu raciocínio. Outros acadêmicos de renome concordam com ele. A própria Nature trouxe certa vez o artigo de um professor de antropologia da Universidade de Washington chamado Pascal Boyer, que disse: O pensamento religioso parece ser o caminho da última resistência para nossos sistemas cognitivos […] a descrença, pelo contrário, geralmente é uma ação deliberada, um esforço contra nossa disposição natural cognitiva […] algo em nossa constituição cognitiva nos predispôs para a fé.147 Mas é importante dizer que Hood diferencia crenças religiosas de crenças seculares. Estas últimas seriam universalmente aplicáveis em todas as sociedades, enquanto as primeiras seriam específicas de determinada cultura. É a superstição secular inata que predispõe o indivíduo para a crença religiosa. Assim, o que eu chamo de abertura para o transcendente (adiante falarei sobre isso), ele chama de supersentido. De acordo com o autor, na infância o supersentido é parte integrante de nosso modo de ver e processar o mundo em redor. É ele que nos faz ter medo do escuro, do bicho-papão. Trata-se de uma proteção de nosso inconsciente que nos leva a raciocinar sobre “aspectos invisíveis” do mundo ao nosso redor. Ao fazer isso, começamos a desenvolver a base das noções sobrenaturais que terão mais tarde poder sobre nossa vida quando nos tornamos adultos. O curioso, segundo a conclusão de Hood, é que todas essas conexões da infância continuarão sempre no fundo da nossa mente “nos empurrando em direção ao sobrenatural”. Neste ponto da leitura fui obrigado a me perguntar por quê. Afinal de contas, tudo que li até agora sobre desenvolvimento da criança, de Freud a Piaget, não esquecendo Vygotsky, fala de “etapas superadas” – crenças e valores que são importantes na infância, mas precisam ser amadurecidas para um desenvolvimento sadio do ser humano. A propensão ao sobrenatural, contudo, não vai embora. Apenas muda de temática e insiste em ficar. Por quê? Hood afirma que isso se dá por causa do modo como raciocinamos. Nossa mente evoluiu para organizar e enxergar estruturas. Assim, buscamos padrões em tudo – seria como na infância olhando nuvens que se transformam em rostos e animais. Isso continua na forma de um receio, na sensação de déjà-vu ou nas vezes em que uma coincidência parecia ser mais que coincidência. Assim, como temos dificuldade em pensar em eventos aleatórios, nós sempre buscamos ordem, causas e consequências. Essa explicação, para mim coloca em xeque o próprio método do livro. Quem pode garantir que os padrões de raciocínio humano observados pelo autor não seriam “ilusões” de sua própria mente predisposta a ver uma estrutura sistêmica onde não existe? Afinal o que ele fez senão organizar a episteme humana numa teoria que faça sentido? Apesar disso, me deliciei com as descrições que ele faz de suas pesquisas. Em cada uma delas ele mostra como pessoas, inclusive céticas, são inevitavelmente propensas ao sobrenatural, à superstição e ao inacreditável. Mesmo entrevistados, ateus demonstraram asco em vestir o suéter de um serial killer ou morar numa casa onde uma pessoa foi morta. Isso, confesso que achei incrível. Meu único problema com as conclusões de Hood, como já disse, são as perguntas às quais ele não responde. Se o sobrenatural é apenas um modo de entender o mundo (e não é real), por que então não conseguimos nos livrar desse sistema de crenças? E Hood? Para poder apontar algo como resultado do supersentido, ele mesmo tem de ter se livrado dele, certo? Deveria ser como um espectador no teatro que, diferentemente da plateia, consegue ver os fios ocultos que o mágico usa no truque de levitação. Por outro lado, se o supersentido é algo saudável, então aquele que o superou ou perdeu – para poder perceber a ilusão do outro – tornou-se deficiente, pois não teria mais consigo esse elemento vital. Bem, são coisas para se pensar. Por enquanto, permaneço com a certeza de que diagnosticaram nossa propensão ao transcendente, mas não deram razão dela. Deus: termo em desgaste Se eu transformasse a palavra “Deus” num livro que traçasse a história do termo desde sua criação até a semântica dos nossos dias, teria de escrever muitos capítulos de contradições e ironias. Recordo-me, por exemplo, quando aprendi no seminário que o livro bíblico de Ester custou a entrar no cânon, porque era o único texto hebraico/aramaico que não trazia o nome de Deus (JHVH). Deixar de mencionar textualmente o Altíssimo era uma falha grave naqueles tempos. Depois veio a técnica de se escrever o nome de Deus com reverência, trocando-se até a tinta e a caneta, como demonstram alguns antigos manuscritos da Bíblia. Hoje os judeus tendem a escrever D’us, assim dessa maneira, talvez para manter a tradição do respeito pelo nome divino. Há, inclusive, uma tradição também judaica de que o nome “Deus” (ou D’us) uma vez escrito num pedaço de papel não pode ser apagado, pois isso seria um sacrilégio. Uma discussão moderna desse assunto levou aos rabinos aposteriormente, representante de Estado. Ali ela descobriu muitos novos conceitos. A primeira vez que conheceu uma colega vinda de Israel, ela admitiu que em toda sua infância a única coisa que sabia de judeus e ocidentais era que estes eram infiéis que deveriam morrer como animais peçonhentos. Ativista dos direitos femininos e de outros grupos menores, Ayaan também passou por muitos questionamentos existenciais ao longo do processo e, ao final deles, já não conseguia mais acreditar em Deus. A imagem divina era traumática demais e quem a convenceu de que ele não existe não foi Richard Dawkins nem Sam Harris, paladinos da causa ateísta. Foram religiosos radicais que de um modo perverso fizeram-na crer que se Deus existe e é como a apresentaram, seria então uma questão de honra não ficar ao lado dele. Apesar de o exemplo anterior envolver o islamismo, os filiados de outros seguimentos não deveriam ficar muito confortáveis pensando que isso só acontece no mundo de Allah. A situação é mais generalizada do que parece. Até mesmo o budismo, comumente reconhecido como uma religião pacífica, tem uma ala tão violenta que já mereceu estudos acadêmicos a esse respeito: “a violência em nome de Buda”11. Não é raro ouvir histórias de violência de budistas contra a minoria muçulmana de Mianmar. Numa dessas, está o relato de mulheres e crianças rohingyas impelidas para o alto-mar por líderes budistas, num simples barco de pesca, praticamente sem provisões de água ou mantimento. Várias morreram à deriva antes que pudessem ser resgatadas pela guarda costeira. E o que dizer do cristianismo? Aí sim que a lista de horrores poderá ser mais longa. São questões que mexem comigo e, se não mexessem, creio que estaria perdendo minha humanidade. Não posso estar anestesiado diante desses fatos, nem fingir alienação. Não quero ser um cidadão de plástico em cujas veias não têm sangue, e sim água. Não posso fingir que desconheço essas coisas, ou ficar insensível diante delas. Por isso eu entendo a postura de alguns incrédulos. Compreendo, com muita honestidade, por que muitos optam por não mais acreditar. Se Deus é aquilo que os religiosos representam dele, então é melhor não crer que ele exista. Pelo menos assim teremos alguém a menos para odiar. Ou como ironizou um famoso aforismo atribuído a Voltaire: “Deus criou os homens à sua imagem e semelhança, e estes, agora, estão lhe retribuindo o favor”12. Seria engraçado, se não fosse trágico. A despeito de tudo isso, isto é, de todas as admissões, sigo acreditando em Deus. Por quê? Por um devaneio? Essa resposta será construída à medida que os demais capítulos forem lidos. Um passo de cada vez. Como disse na introdução, meu objetivo aqui não é convencer ninguém de nada, mas testemunhar por que eu, igualmente honesto com meus pensamentos, decidi acreditar em Deus e me entregar a ele. Espero que você continue comigo nas páginas que se seguem e, se não concordar com minha fé, pelo menos entenda a razão de minha crença. 2 Disponível em . Acesso em: 28/02/2017. 3 Disponível em . Acesso em: 10/10/2015. 4 Disponível em . Acesso em: 13/02/2016. 5 John Grant. Debunk It!: How to Stay Sane in a World of Misinformation (São Francisco: Ca. Zest Book, 2014), p. 24. 6 Disponível em . Acesso em: 13/03/2017. 7 Disponível em . Acesso em: 13/03/2017 8 Michael J. Curkey. Bishop John Neumann, C.SS.R. (Filadelfia: Bishop Neumann Center, 1952). 9 Karl Marx. Theses on Feuerbach, in Karl Marx: Selected Writings. L. Simon (ed.) (Indianapolis: Hackett, 1994). 10 Lucius Cary. Discourses of Infallibility. Disponível em . Acesso em: 15/03/2017. 11 Mahinda Deegalle. Buddhism, Conflict and Violence in Modern Sri Lanka (Abingdon: Routledge, 2006); Michael K. Jerryson. Buddhist Fury: Religion and Violence in Southern Thailand (Oxford: Oxford University Press, 2011). 12 Apud René Pomeau. La Religion de Voltaire (Paris: Librairie Nizet, 1958), p. 159, 183. https://www.facebook.com/ATEA.ORG.BR/posts/1453979304632647 http://www.pewforum.org/2010/09/28/u�-s�-religious�-knowledge�-survey/ https://www.mirror.co.uk/news/uk�-news/one�-five�-children�-think-jesus�-4784708 http://www.pewforum.org/2010/09/28/u�-s�-religious�-knowledge�-survey/ https://www.barna.com/ http://quod.lib.umich.edu/e/eebo2/A85082.0001.001?view=toc Capítulo 2 Deus – uma dúvida, uma certeza, uma distorção “Não sou contra, nem a favor, muito pelo contrário…”. Você certamente já ouviu essa máxima do paradoxo popular. Trata-se de uma anedota, é claro. Ninguém em sã consciência a levaria a sério. Contudo, em termos de inconsciente coletivo, não é difícil ver pessoas, mesmo intelectuais, pautando-se pelos ditames da incongruência e do raciocínio non sequitur. Lembro o caso clássico do historiador e cronista Pero de Magalhães Gândavo em seu antigo Tratado da Terra do Brasil, o qual dizia que a língua falada pelo índio brasileiro não tinha F, L ou R. “Cousa digna de espanto”, concluía ele, “porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei”13. Este foi um texto de vestibular e até hoje me pergunto o que tem uma coisa a ver com outra. Existe também aquele que diz querer descobrir a verdade, mas, de fato, deseja apenas que a verdade esteja ao seu lado custe o que custar. Quando uma pessoa é fechada numa agenda ideológica, dificilmente consegue uma brecha para um diálogo honesto. Tudo o que ela faz, mesmo diante de novas evidências, é ratificar seus velhos conceitos. Aqui vai um diálogo anedótico que ilustra bem essa situação. Vamos chamar nossos personagens de João, Marcelo e Inês: João: Não tem sentido nenhum no mundo o maldito do horóscopo. Você viu as evidências que apresentei? Como responde a elas? Marcelo: Ah, simples: você é muito parecido com o meu pai. Só posso dizer por esse seu tipo de fala que você é de Leão, né? João: Não, não sou de Leão, eu já disse, eu não acredito em… Inês: Ah, já sei, você é de Peixes? João: Não, não sou de peixes. Eu… Marcelo: Claro! Que bobagem a nossa. Você é Aquário… João: Sim, sou, mas… Inês: Ai… minha tia é de Aquário; ela é muito parecida com você, tem um gênio igualzinho… João: Vocês não estão me entendendo… Marcelo: Verdade, cara, você tem objetivos na vida e não os deixa de jeito Marcelo: Verdade, cara, você tem objetivos na vida e não os deixa de jeito nenhum, gosta de estar perto dos amigos, é valente… Qual o seu ascendente? Percebeu? Foi isso que eu quis dizer com a diferença entre querer estar ao lado da verdade ou querer que ela esteja do meu lado custe o que custar. Este é apenas um lado do problema de hoje. Existe ainda outra situação de consequência igual ou pior, que é quando uma espécie de preguiça mental leva outros tantos ao campo da indiferença. Eles parecem acreditar piamente que esse território lhes tratará a paz de espírito que livra da obrigação de decidir diante de um tema difícil. Seu comodismo ético e mental tende à covardia e à fuga da realidade. Evita a reflexão e com ela o posicionamento. Dizem por aí que foi Martin Luther King quem declarou: “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”. Seja de sua autoria ou não, a frase é de uma virtude inquestionável. Há também um texto do Pastor Luterano Martin Niemöller cuja citação pode variar de fonte, pois foi feita de modo espontâneo em vários pronunciamentos do período pós-guerra. Há quem diga que ele estaria parafraseando Vladimir Maiakovski ou Bertold Brecht. Falando do nazismo Niemöller declarou: Um dia, vieram e levaram meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho, que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia, vieram e levaram meu vizinho católico.Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram. Já não havia mais ninguém para brigar por mim.14 É no mínimo desconcertante deixar que o silêncio dos de bem se torne cúmplice do engano e da perversidade dos maus. Quando os bons se calam, os perversos triunfam. Mas estou certo de que isso não se aplica a você. Se seu caso fosse o de comodismo, você talvez nem começaria a ler este livro. Por isso, posso iniciar nosso diálogo propondo que não dá para ser neutro sobre assuntos de grande relevância, e aqui entra o tema de “Deus”. Quer ele exista ou não, estamos diante da maior verdade ou da pior mentira de todos os tempos. Admiti-la implica compromisso, negá-la demanda denúncia. Em outras palavras, sou obrigado a assinalar uma dentre duas opções: adesão ou combate, nunca neutralidade. Há de se notar, contudo, que o problema não se resolve apenas com uma tomada de posição. É importante saber o que decidimos, por que decidimos e o que faremos a partir disso, lembrando que ideias implicam consequências. Isso não significa que teremos sempre todas as respostas e todas as certezas. Como diz uma velha canção do Padre Zezinho, Cantiga por um ateu: Eu sei que da verdade eu não sou dono, Eu sei que não sei tudo sobre Deus. Às vezes, quem duvida e faz perguntas É muito mais honesto do que eu. Distorções e paradoxos O grande problema, talvez, com a apresentação desse tema a leitores não religiosos seja a falta de piedade na vida de pessoas que afirmam acreditar em Deus, mas vivem como se ele não existisse. Esse, a meu ver, é o tendão de Aquiles da religiosidade em todos os tempos. A incoerência dos que se dizem crentes é difícil de ser digerida. Por que igrejas tradicionais são às vezes as agremiações mais frias de que se tem notícia? Há situações em que é mais fácil encontrar sexo numa esquina do que um abraço no final da missa. Sei que isso não se aplica a todos, é claro, mas nega a realidade aquele que finge que tais paradoxos não existem. Fico observando, por exemplo, num país como o nosso, de maioria cristã, como a cruz (símbolo máximo cristianismo) tem se tornado cada vez mais um mero amuleto de boa sorte. Entre gnomos, figas e cristais energéticos, você sempre poderá encontrar pelo menos uma dúzia de cruzes feitas dos mais diferentes materiais e com as mais diversas funções. Se falasse da Alemanha, precisaria ainda mencionar a cruz de ferro com a suástica usada orgulhosamente por soldados nazistas. Parece que o mercado fabricou tipos de cruz para todos os gostos. De letreiros a pingentes, todos têm um modelo adequado. Até mesmo aqueles que desprezam a filiação religiosa não se envergonham de ostentar uma cruz como piercing no mamilo, ou como brinco numa das orelhas. Grupos de Heavy Metal dos anos 1980 amavam a estampa de cruzes ladeadas por demônios e caveiras ensanguentadas. Aliás, vale aqui uma observação quanto ao uso de crucifixos, retratos do Sagrado Coração e estampas com o rosto de Cristo que enfeitam desde as paredes de hospitais, igrejas e casas de família, até bordéis, bares, casas de jogos e repartições públicas. Assistindo outro dia a um documentário sobre exploração sexual de crianças, não pude deixar de perceber em alguns prostíbulos da periferia a presença de um crucifixo pendurado na cabeceira das camas ou nas paredes dos quartos. Agora imagine um adulto violentando uma criança sob o olhar de Jesus crucificado! Concluo tristemente que a imagem do Cristo já não impõe respeito algum nem àqueles que se dizem religiosos. Sem contar que o mesmo símbolo presente em alguns tribunais de justiça também não impede o advogado desonesto de mentir, nem o juiz corrupto de se vender15. O sociólogo Gilberto Freyre conta que, no Brasil mais antigo, era comum venderem remédios caseiros para curar doenças contraídas em zonas de prostituição. Havia elixires para curar desde um simples herpes ou dermatite até a sífilis e outras doenças sexuais. O mais interessante, porém, era que nos rótulos das garrafas apareciam figuras como a do menino Jesus segurando um cordeirinho. Até em estampas devotas, com imagens do menino Jesus cercado de anjinhos, anunciava-se que o elixir tal cura sífilis, e que se o próprio Cristo viesse hoje ao mundo, seria ele que ergueria sua palavra santa para aconselhar o uso do elixir.1 6 Num Carnaval recente, foliões e mulheres seminuas dançavam irreverentes ao som da música “Erguei as mãos”, numa versão carnavalesca feita por determinada escola de samba do Rio de Janeiro. Enquanto a música seguia, traficantes distribuíam lança-perfume e drogas para jovens, que pulavam freneticamente ao som da mesma melodia. O pior é que se fizéssemos uma enquete naquela multidão, descobriríamos que não se tratava de ateus zombando do cristianismo. Eram pessoas que, na sua maioria, diziam crer em Deus. Mas se eu falasse para eles que aquilo era “pecado” e “blasfêmia”, sairia execrado dali sem dó nem piedade. E muitos deles, “doidões”, voltariam a cantar “Erguei as mãos” num ambiente regado a drogas, álcool e promiscuidades. Antes que você feche o livro pensando Ah, já vi que esse autor é um moralista ultrapassado, dê-me apenas a chance de dizer duas coisas: primeiro, o exemplo dado não foi para fazer apologia moral de A ou B. O objetivo é ilustrar a ironia de que os mesmos que participaram da cena descrita certamente se irritariam se um grupo de ateus fizesse uma sátira de Jesus pulando Carnaval, usando drogas e abraçado com uma dançarina seminua. Segundo que, à semelhança dos tempos do panis et circensis (pão e circo), em que o povo adorava divertimentos de gosto duvidoso, seria muito difícil hoje aceitar as críticas de Sêneca, como foi para os romanos daquela época, mesmo sabendo que ele era um dos poucos pensadores lúcidos do palácio de Nero César17. É difícil se posicionar criticamente contra o show quando você mesmo faz parte da peça. Ainda mais se tratando de uma época como a nossa, que, apesar de se declarar plural, apresenta alguns absolutismos dominantes, como a ideia de que apetites e pulsões não devem ser reprimidos, mas antes “resolvidos” com vícios e comportamento liberal, bem ao gosto de uma clientela viciada em consumismo. Ameaça religiosa Acho irônico que, em meio a uma religiosidade desastrosa como a de hoje, muitos insistam que os ateus seriam a maior ameaça à fé. Não sou ingênuo em dizer que Richard Dawkins não fez nenhum estrago. Claro que fez! Contudo, não sei se é ele realmente o maior problema do cristianismo. Lembra-se do filme O inimigo mora ao lado? Pois é, ironia das ironias, o enredo bem valeria para uma paródia religiosa em que o assassino da fé não estaria em outro lugar senão dentro das igrejas ou pelo menos na porta delas fazendo sinal da cruz enquanto passa diante do edifício. E tem mais: essa leva de exemplos constrangedores não poderia terminar sem a menção do comércio da fé, em que curas e bênçãos são prometidas em troca de doações generosas para aumentar a conta dos líderes religiosos. Alguém esses dias ironizou que só falta criarem A Seita (trocadilho de “aceita”) Cartão de Crédito com promoção de dizimo a 8% durante os seis primeiros meses de filiação. Seria engraçado, se não fosse trágico. Confesso que isso é muito estranho para mim. Cobrar valores morais de alguns religiosos tornou-se uma guerra inglória. Para muitos que se dizem cristãos, aceitar a mensagem do evangelho é tão absurdo como aproveitar o dia de chuva para se bronzear ao ar livre. Eles simplesmente não querem saber disso. Não esconderei dos leitores céticos meu desconforto diante de tudo isso. Embora eu mesmo não seja perfeito, sei que há uma diferença entre ser pecador e ser perverso, entre ter falhas e brincar com coisas sagradas. A incoerência, a meu ver, é a ponte que liga o que é ruim ao que há de pior. O primeiro ato falho é tolerável e pode ser perdoado, o segundo (da perversidade e do desamor) é inadmissível e impenitente. Por isso é mais confortável conviver com um descrente ético do que com um religioso ambivalente. A incoerênciado segundo pode potencializar o ceticismo do primeiro. Agressividades mútuas O irônico disso tudo é que os mesmos que promovem um culto à leviandade são os primeiros a se transformar em cães de guarda da fé, atacando o ateísmo como se esse fosse realmente o pior problema da sociedade. Não estou com isso dizendo que aplaudo o ateísmo e o reputo por virtude, porém, acho desmedida a generalização que muitos de meus irmãos de fé fazem contra os que não creem. Ser ateu tornou-se sinônimo de delinquente, imoral, perigoso, satanista. Ao comentar, em julho de 2010, o caso de um bandido que matou uma criança de dois anos e tentou atirar em outras pessoas, um apresentador de TV disse que esse crime era “típico de um sujeito que não acredita em Deus”. Eu até entendo o estereótipo da expressão, mas a coisa não é tão preto no branco. Há muitos descrentes honestos e religiosos perigosíssimos. Na época da reportagem, um grupo de ateus entrou na justiça pedindo direito de resposta, que não sei se foi deferido pelo juiz. Porém, não sou de defender o indefensável. O jornalista realmente foi infeliz na declaração. Digo isso porque prefiro um oponente honesto e respeitoso a um partidário defendendo o que eu penso com argumentos que eu jamais utilizaria. O estereótipo de que é impossível ser bom e ateu ao mesmo tempo não merece meu apoio. A rígida distinção entre mau ateu e bom cristão é um claro exemplo de falácia por “falso dilema”. O que temos aí é um típico preconceito chauvinista. Nenhum religioso de verdade (especialmente cristão) deveria se apropriar deste pensamento. Senão, o que dizer de Herbert de Souza, o Betinho? Ateu e caridoso como poucos que conheço. Aliás, gostei do modo inteligente como Marceu Vieira o descreveu ainda com vida em seu livro Nada, não: e outras crônicas18. Ele disse: “Betinho hoje é ateu. Não acredita em Deus. Mas algo faz crer que Deus acredita nele”. Betinho me ensinou que é possível ser bom e ateu ao mesmo tempo (o julgamento de sua vida cabe a Deus, e não aos homens). Existem, também, por outro lado, vários tipos de ateísmo e não estou falando de diferentes correntes filosóficas. Refiro-me ao modo como cada um expressa sua descrença. Há aqueles que realmente não tratam seu ateísmo como uma proposta, e sim como um dogma, agressivo, expresso de forma intolerante e antidemocrática. Assim como os já mencionados “paladinos guardadores da fé”, há do outro lado os que agem como “hienas do ceticismo” rindo enquanto devoram suas presas. E o que é pior é que os que assim agem não parecem pessoas que pensam por si mesmas. Antes deixam o ódio falar por si e se projetam sobre autores, igualmente agressivos, cujo comportamento não é nada diferente da religiosidade déspota que eles tanto denunciam. A única diferença é que os oficiais do Santo Ofício, para dar um exemplo, tinham um poder político que eles não possuem, pois se o tivessem estariam ordenando o fechamento de igrejas e o aprisionamento de clérigos. Alguns desses ateus intolerantes deixam realmente em dúvida se estão defendendo uma ideia ou destilando um ódio pós-traumático contra um pai agressivo, um abuso na infância ou uma revolta pela perda de um ente querido. São muitas as possibilidades para um ódio desenfreado contra um Deus que não existe. Sinceramente não posso afirmar com certeza absoluta que haja uma causa freudiana para o ateísmo ou a religiosidade de cada um. A observação que fiz não se baseia numa análise psicanalítica que sirva para todos. Contudo, não considero incongruente a observação de que certas posturas, de crença e descrença, concorrem sintomaticamente para a hipótese de um sério desequilíbrio emocional. Basta ver a agressividade com que muitos impõem suas ideias ironizando, debochando, demonizando os que discordam deles. Certa vez, ao ser questionado sobre o direito de comediantes zombarem de religiões alheias, Rowan Atkinson, intérprete do famoso Mr. Bean, manifestou a seguinte opinião: “o direito de ofender é muito mais importante do que qualquer direito de não ser ofendido”19. Sinceramente, gosto muito do senso de humor desse sujeito, mas, com uma declaração tão horripilante como esta, fico feliz que o personagem que lhe rendeu tanto sucesso era justamente alguém que praticamente não falava nada. Mais falsos dilemas Se por um lado existem os que dividem a ética entre crentes e ateus, por outro há os que dicotomizam o conhecimento entre obscurantismo (os crentes) e intelectualismo (os ateus). Fico muito incomodado com a postura de alguns céticos que insistem em dizer que tenho de optar entre a crença e a academia, entre a fé e a inteligência racional. Por quê? Isso é outro exemplo da falácia por falso dilema. Onde está escrito que razão e fé haveriam de se repelir? O que faço com aqueles grandes gênios da humanidade que eram crentes? Newton, Pascal, Jung etc.? Pelo que vejo, o preconceito chauvinista não está somente do lado de religiosos fundamentalistas. Não é incomum ver em muitas faculdades professores céticos transformando alunos num público-alvo cativo. A sala de aula torna-se um púlpito e a atividade docente um meio catequético. Não estou falando de um padre durante uma missa, e sim de um acadêmico cético que não aceita a religião na academia, mas usa várias aulas para convencer os alunos de que Deus não existe. Ora o que seria o tema da “não existência de Deus” senão um assunto religioso? Afinal devemos ou não trazer temas religiosos para a sala de aula? E se a resposta for positiva, por que trazer apenas um lado da moeda e negar o direito de apresentação do outro? Essa atitude pedagógica de negar religião na sala de aula e falar prodigamente da não existência de Deus é um contrassenso curricular. Parecem monges medievais proibidos de falar de sexo no convento, mas que gastam várias aulas condenando o “pecado do orgasmo”. Ora, o que é isso senão a temática que eles mesmos proibiram? Não me tome por deselegante, nesta crítica e sim por sincero. É triste ver, como afirmou o jornalista Karl Kraus – inimigo número 1 do senso comum, “que os alunos comem o que os professores digerem”. Confesso que eu antes pensava que a academia era o paraíso da coerência, da lógica, da liberdade de expressão, do bom senso. Hoje, no entanto, percebo que isso nem sempre é verdade. Novamente recorro a Kraus para expressar o que testemunhei: “há imbecis superficiais e imbecis profundos”20. Já vi livres pensadores que só se conservam pluralistas enquanto você concorda com eles. Na hora da discordância – quando você opina em público que sua opção é o paraíso de Deus, e não o materialismo dialético que ele defende – aí o caldo entorna! O mesmo que iniciou a classe se dizendo pluralista, transforma-se num xiita de carteirinha e, mesmo não acreditando na existência do diabo, faz da universidade um inferno para religiosos conservadores que discordam do seu pensamento. Sei que nem todos são assim. Tive, por exemplo, vários colegas ateus na USP que respeitaram muito minha fé religiosa e até demonstraram descontentamento com o espírito xiita de outros ateus radicais. Nos grupos de pesquisa de que participei nunca me senti invalidado pelos demais. Contudo, lembro-me de um dia em que dois deles me revelaram que se eu estivesse estudando em outro departamento (que por ética não direi qual), sentiria a forte animosidade dos antirreligiosos. Tive um colega, hoje falecido, que teve sua defesa de doutorado quase interrompida na Unicamp por causa de um protesto que alunos e professores ateus faziam do lado de fora do auditório. O motivo? Ele estava fazendo um doutorado em Biologia e sua tese nada tinha a ver com religião. Porém, como era autor de livros que defendiam o criacionismo, os militantes achavam que seria um crime dar o título de doutor a um homem com crenças tão retrógradas, e eu pensava que eram provas, trabalhos e notas que aprovariam um acadêmico, e não suas crenças pessoais! Assim, embora eu não costume tomar a parte pelo todo, também não ignoro que quando a “parte” quer fazer um estrago, ela faz. Poroutro lado, fico feliz pelos amigos de mente aberta que encontrei nas universidades por onde passei e por haver leitores que, mesmo sem acreditar em Deus ou na Bíblia, tomam tempo para ler um livro como este. Parabéns por ser um deles e vencer o preconceito! Se Betinho estivesse vivo, talvez fizesse a gentileza de também ler o meu livro. Afinal, ele sempre ouvia os dois lados. 13 Pero de Magalhães Gândavo. Tratado da Terra do Brasil. História da Província Santa Cruz (Belo Horizonte: Itatiaia, 1980). 14 Essa citação eu tomei como aparece numa placa de exposição permanente no US Holocaust Memoriam Museum de Washington, DC. 15 V.V.A.A. Quem é Jesus Cristo no Brasil? (São Paulo: ASTE, 1974). 16 Gilberto Freyre. Casa-grande & senzala (Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1952), p. 134. 17 Ao fazer referência a Sêneca e à política do “pão e circo”, estou cônscio de que existe hoje uma vertente de historiadores que critica aquela perspectiva historiográfica mais antiga, representada por Paul Veyne (Le pain et le cirque: sociologie historique d´un plurarisme politique), segundo a qual os setores subalternos seriam manipulados pelo panis et circensis (pão e circo), marcados pela passividade e pela não intervenção nas relações políticas, e preocupada com as doações e os divertimentos. Não é esse, contudo, meu intento ao me referir ao costume imperial, e sim relembrar que o povo tinha sim prazer em entretenimentos pouco louváveis, como guerras mortais nas arenas, consumo desenfreado de ópio etc. Quanto a isso não parece haver nenhuma crítica que eu conheça. 18 Marceu Vieira. Nada, não: e outras crônicas (Rio de Janeiro: Mauad Editora, 1999). 19 Disponível em . Acesso em: 17/01/2017. 20 Karl Kraus. Ditos e desditos (São Paulo: Brasiliense, 1988). http://www.telegraph.co.uk/education/3348850/Atkinson�-defends�-right�-to-offend.html Capítulo 3 Questiono mesmo, e daí? A primeira coisa que pensei ao escrever o título deste capítulo é que meu editor iria querer mudá-lo. Ele parece ter um ar subversivo que talvez não agrade certos leitores! De fato, pessoas excessivamente conservadoras (para não dizer autoritárias) não apreciariam esse tipo de linguagem. Os anarquistas também não, pois adoram fazer o discurso da oposição e do quebra-quebra somente enquanto não assumem a liderança. Então reprimem com o mesmo rigor, ou pior ainda, aqueles que agora discordam de seu regime ou de suas ideias. A Internet está cheia de exemplos paradoxais que ilustram como o questionamento nem sempre é fácil de ser digerido. Basta ver como os mesmos internautas que levantam a bandeira da tolerância, da liberdade e do respeito podem se tornar altamente hostis com aqueles que divergem de sua agenda. O lema de muitos é: “aceito a discordância, desde que você assine embaixo do que digo”. Não é fácil equacionar civilizadamente o direito de defender uma proposta num universo de contrapropostas. Paulo Freire estava certo quando falou da dinâmica do opressor-oprimido, na qual a vítima e o revolucionário de ontem se tornam os ditadores de hoje ao assumirem o controle21. Sei que há felizes exceções, mas todo oprimido tende a se tornar um opressor quando está no comando. “O poder”, escreveu Lord Acton, “tende para a corrupção e o poder absoluto corrompe absolutamente”22. E olha que ele estava se referindo ao poder religioso, outrora perseguido, que se tornou opressor quando assumiu a soberania na Europa. Talvez alguém me pergunte: Por que inserir no livro esse incentivo ao questionamento? Não soa anarquista demais? A resposta é simples: fazer perguntas sinceras é o passo primordial para se adquirir qualquer tipo de conhecimento. Existe uma citação atribuída a Einstein (eu particularmente não creio que seja dele) que diz: Se eu tivesse uma hora para resolver um problema e minha vida dependesse da solução, eu gastaria os primeiros 55 minutos determinando a pergunta certa a se fazer, e uma vez que eu soubesse a pergunta, eu poderia resolver o problema em menos de 5 minutos. Seja de Einstein ou não, essa fala tem em si um importante princípio. Às vezes gastamos tempo demais resolvendo problemas que não existem ou que não são realmente o cerne da questão naquele momento. Elon Musk, gênio do Vale do Silício, para muitos o novo Steve Jobs da América, declarou o mesmo princípio numa entrevista. Ele disse: Acredito que um dos principais pontos [numa busca] é que em muitos momentos a pergunta é mais difícil que a resposta, e, se você puder, de modo apropriado, elaborar a questão, então respondê-la será a parte mais fácil. Assim, à medida que vamos conhecendo melhor o universo, poderemos saber melhor que perguntas devem ser feitas.23 Em outras palavras: questionar corretamente é a forma mais apropriada de alcançar o entendimento. Mas veja: isso não significa que todas as dúvidas são produtivas. Há perguntas mal-formuladas ou, em alguns casos, mal- intencionadas (que não demandam um questionamento honesto). Dizem que certa vez um jovem atrevido perguntou a um palestrante: “O que Deus estava fazendo antes de criar o universo?”, ao que ele respondeu: “Estava preparando o inferno para quem faz esse tipo de pergunta”. Portanto, risos à parte, as pessoas têm o direito de perguntar. O problema é que muitos que dizem ter uma dúvida apresentam na verdade uma tese, e não uma questão honesta. Querem desafiar o outro, e não ter sua indagação honestamente respondida. Ao formular uma questão, o sujeito tem de sinceramente saber se está mesmo querendo uma resposta ou um endosso para seu pensamento ruim. Verdades que não ajudam Existem também aquelas famosas respostas que não respondem, ou seja, argumentos falaciosos disfarçados de esclarecimentos que, na verdade, não ajudam ou são irrelevantes. Respostas como as que recebeu certo paraquedista que, por um erro de cálculo, foi arrastado quilômetros do seu local de pouso e ficou preso em uma árvore, sem poder fazer nada. Por fim, passou embaixo da árvore um indivíduo cheio de livros, a quem o paraquedista interpelou: – Ei, amigo, poderia me dizer em que lugar estou? Poderia me ajudar a descer? – Ah – disse o sujeito com ares de descoberta –, você é um paraquedista, não é mesmo? – Sou, disse o homem. Ajude-me a descer. – Sim, ah, e percebo que é um major, pois vejo sua patente no uniforme… – Sim, eu sou um major. Ajude-me, por favor… – E vejo que você pulou de um avião militar que passou há pouco, pois pude ouvir o ronco dos motores… Já impaciente, o paraquedista replicou… – Vejo que você é um pregador religioso [ou um estudante de Filosofia, segundo outra versão da estória]. – Sim, eu sou! Como o senhor percebeu? Pelos livros que carrego? – Não! É pelo fato de você estar há um tempão dizendo um monte de verdades que não servem para nada24. Viu?! O problema nem sempre está em fazer perguntas, e sim em dar respostas coerentes. Questionar não é perigoso? Tudo bem, dirá alguém, mas esse incentivo num livro desta natureza poderá fomentar o surgimento de “questionadores” perigosos. Será? Mesmo que isso aconteça acho que vale a pena arriscar. Deixe-me explicar o porquê. Todos sabemos que a língua é um organismo vivo e suas palavras sofrem constantes processos semânticos. Hoje o adjetivo “questionador” tornou-se pejorativo qualificando, sobretudo, aquele sujeito que tem problemas com autoridade, os famosos “do contra” ou “rebeldes sem causa”. Contudo, essa é uma definição limitada que não leva em conta a riqueza etimológica do termo. Questionar vem do latim quaerere, que quer dizer “buscar conhecer”, “desejar o conhecimento”. Os verbos “querer” em português e “buscar” em inglês (to quest) vêm da mesma raiz. Portanto, o ato de questionar envolve um desejo, uma busca pelo conhecimento, que é parte da natureza humana. É, enfim, levantar questões que podem e merecem ser discutidas. Não se trata necessariamente de rebeldia, nem de especulação. É a favor desse questionamento que levanto minha bandeira.