Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
A Política Externa do governo de Rousseff: continuidade nas estratégias e ajustes nas prioridades e no estilo Publicado em: Umbrales de América del Sur n. 12. Buenos Aires, CEPES, abril- julho/2011. Miriam Gomes Saraiva Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais/Universidade do Estado do Rio de Janeiro miriamsaraiva@uerj.br Em termos gerais, a política externa brasileira é identificada pela continuidade. Como pano de fundo para esta perspectiva, pode ser identificado, por um lado, um discurso político da diplomacia brasileira que defende a continuidade e, por outro, algumas crenças que orientam sua evolução há muitos anos: a autonomia, a ação universalista e a idéia de que o país virá a ocupar um lugar de mais destaque na política internacional. A forte concentração do processo de formulação da política externa com a presença do Itamaraty enquanto burocracia especializada contribuiu para um comportamento mais estável pautado em princípios de longo prazo. Mas esta perspectiva convive com descontinuidades. As opções podem orientar- se para estratégias de caráter mais multipolar ou de buscar ganhos relativos no cenário internacional; para preferências por atuação mais autônoma ou por liderar iniciativas de países do Sul; para um comportamento do país como skateholder ou como revisionista soft.1 Nestes casos, as alternativas são definidas a partir do contexto internacional, da estratégia de desenvolvimento nacional, do perfil e de determinados cálculos dos formuladores de política externa que variaram de acordo com a visão política e a percepção destes formuladores do que seriam os interesses nacionais e a conjuntura internacional. Estes fatores têm influência sobre a escolha das estratégias externas por parte da diplomacia brasileira. Nos marcos do Itamaraty, encontram-se basicamente duas correntes de pensamento com percepções diferentes sobre estratégias e parcerias externas. Os 1 Maria Regina Soares de Lima, expondo sobre “As bases conceituais da Política Externa Brasileira” no Seminario Iniciativa México Brasil, LACC/FIU, Miami, 13 de maio de 2010. institucionalistas pragmáticos, predominantes durante o governo de F.H.Cardoso, caracterizam-se por dar maior importância ao apoio do Brasil aos regimes internacionais em vigência. Esta postura defende uma identificação maior do país com o Ocidente como um cenário favorável ao desenvolvimento econômico brasileiro. A corrente autonomista, que se consolidou como principal formulador da política externa durante o governo de Lula, busca uma projeção mais autônoma e proativa do Brasil na política internacional. Eles defendem uma reforma da dinâmica das instituições multilaterais no sentido de criar espaços de atuação para o país assumindo assim um perfil revisionista da ordem internacional. A construção da liderança regional, de uma liderança entre países do Sul e a ascensão para a posição de potência global são seus objetivos principais. No campo econômico buscam uma estratégia de inserção internacional orientada para o intercâmbio tecnológico e para a projeção de empresas brasileiras. A ascensão de Lula reforçou setores mais tradicionais dos autonomistas formados nos marcos do pragmatismo responsável dos anos de 1970 e incorporou ao processo de formulação de política externa uma nova corrente de pensamento vinculada a quadros internacionalistas do PT. Durante o governo de Lula este grupo estabeleceu um diálogo importante com o Itamaraty através da figura do presidente, que teve um forte desempenho no campo da diplomacia. Para estes pensadores, a integração regional com base em uma identidade sulamericana seria vista como prioridade da política externa. Esta composição trouxe uma descontinuidade na visão de mundo e nas estratégicas adotadas pela diplomacia brasileira, levando o país a um movimento de fortalecimento de sua presença internacional no papel de global player. Governo Lula: a ascensão do Brasil na política internacional e a América do Sul A política externa do governo de Lula foi marcada por uma descontinuidade na visão de mundo, nas estratégicas adotadas e alternativas de parcerias em relação ao período anterior. Em termos econômicos, sua gestão foi introduzindo progressivamente no decorrer dos dois mandatos elementos próprios ao desenvolvimentismo, como as iniciativas para o reforço da infraestrutura e um projeto de fortalecimento da industrialização com perspectivas de avanços tecnológicos em algumas áreas. Externamente empreendeu uma política forte de busca de mercados para as exportações do país dando prioridade para parceiros emergentes e para exportação de bens completos, assim como para acordos de cooperação tecnológica de diferentes matizes. A ascensão da corrente autonomista diminuiu a convicção nos regimes internacionais, que foi substituída por um comportamento ativo com vistas a modificá- los em favor dos países do Sul ou em benefício próprio. A ideia de trazer junto a si outros países do Sul, emergentes ou de menos recursos, serviu de base para a atuação internacional do país. A liderança regional na América do Sul tornou-se um objetivo e, ainda mais, uma vontade político da presidência. A construção desta liderança regional apoiou-se em uma articulação entre os autonomistas do Itamaraty e o grupo vinculado ao PT. A aproximação com os países vizinhos é percebida pelos autonomistas como o instrumento para melhor inserção internacional, que possibilita a realização do potencial brasileiro e a formação de um bloco capaz de exercer maior influência internacional. Também abriria caminhos para a projeção das indústrias brasileiras na medida em que estas pudessem ocupar espaços vazios decorrentes das limitações das indústrias dos países vizinhos. Para os pensadores do partido do presidente, seria importante que o Brasil assumisse o papel de paymaster do processo de integração na região e frente a países vizinhos com governos anti- liberais. Grosso modo, o resultado foi uma assunção progressiva por parte da diplomacia brasileira do papel de paymaster, junto com uma busca pela construção de consensos políticos entre seus pares frente a temas que afetam a região. Com este objetivo, a diplomacia brasileira deu um novo peso à construção de uma liderança brasileira na região com padrões calcados no reforço do multilateralismo (com destaque para a Unasul). Atualizou os princípios da não intervenção na forma da “não-indiferença” e vinculou iniciativas de cooperação e integração regional com incentivos ao desenvolvimento brasileiro. A cooperação técnica com vizinhos de menos recursos, calcada em diferentes agências de governo, e os investimentos implementados através de financiamento de obras de infraestrutura com recursos do BNDES cresceram. E contribuíram para avanços, limitados, na construção de uma infraestrutura regional. O Mercosul, por seu turno, deixou de ter um papel importante na estratégia brasileira global podendo ser visto dentro da perspectiva sulmaericana. Embora haja enfrentado problemas na dimensão comercial, a cooperação entre diferentes ministérios (educação, cultura, energia, ciência e tecnologia) cresceu no período. O processo de integração com os vizinhos ao sul seguiu sendo uma política de estado calcada na manutenção de laços de cooperação com a Argentina. Novas expectativas com o governo de Dilma Rousseff Em seus três primeiros meses, o governo de Dilma Rousseff parece significar a manutenção das estratégias de política externa do governo anterior: a trajetória revisionista frente às instituições internacionais, a atuação como representante dos países do Sul e a liderança regional. Referências à continuidade vêm sendo recorrentes no discurso diplomático. Os autonomistas, em termos gerais, mantiveram sua predominância dentro do Itamaraty, embora dando lugar a gerações maisjovens com uma visão de mundo mais globalizada. A estratégia econômica de traços desenvolvimentista vem sendo aprofundada. E a ampliação do número de agências de governo que participam das ações de política externa –como nos casos da cooperação técnica e investimentos- garante maior estabilidade à política. O diálogo entre ações empresariais e o governo que existe atualmente no cenário externo também contribui para a continuidade.2 Mas sua trajetória já começou a mostrar inflexões no que diz respeito ao processo de formulação de política externa e ajustes em sua implementação. Vigevani e Cepaluni defendem a existência de modificações na política externa a nível de “mudança de tonalidade e de ênfase (ajustes)”, que não chegam necessariamente a alterar a forma de inserção internacional do país.3 O argumento aqui defendido é que, embora haja continuidade na utilização da política externa como instrumento para conseguir insumos para o desenvolvimento, assim como na visão de mundo e na estratégia de inserção externa revisionista seguida durante o governo de Lula, há ajustes de ênfase e de estilo. No que diz respeito à formulação da política externa, existe uma tendência do Itamaraty recuperar a centralidade, em detrimento do grupo aqui identificado como vinculado ao PT. A diplomacia presidencial se está reduzindo, assim como o papel da presidência como elemento equilibrador de diferentes visões de política externa que 2 Ver o artigo de Mônica Hirst, Maria Regina Soares de Lima e Letícia Pinheiro publicaram recentemente um artigo que traz reflexões importantes sobre as novos padrões e atores da política externa brasileira. A Política Externa Brasileira em tempos de novos horizontes e desafios, OPSA, Análise de Conjuntura n.12, dez./2010. Disponível em http://www.opsa.com.br/analises.php. 3 Vigevani, Tullo & Cepaluni, Gabriel. A política externa de Lula da Silva: a estratégia da autonomia pela diversificação. Contexto Internacional vol 29 n.2., jul.dez./2007, p.293-335. aconteceu durante o governo anterior. Isto reduz o espaço para maior intercâmbio de posições e percepções. No interior da corrente autonomista, por seu turno, os grupos que ascenderam a cargos decisórios têm menos resistência a uma identificação com o Ocidente o e dão preferência a um comportamento mais pragmático frente a temas polêmicos que marcam a política internacional.4 Esta mudança já é identificada por artigos de imprensa, e há um debate público sobre as possíveis descontinuidades. No campo das ações, em termos mais globais, os ajustes da política externa se fazem sentir na defesa dos direitos humanos que, durante o governo de Lula, foi preterida em nome de outras prioridades. O voto brasileiro a favor de investigações de denúncia de violações destes direitos no Irã e na Síria aponta para a nova preferência do governo de Dilma.5 As relações com os Estados Unidos, embora sem mudanças em seu conteúdo, ganharam um tom mais pragmático e a disposição de superar alguns obstáculos que afastam os dois países. Em relação à América do Sul, embora não haja havido posições diferentes, já é possível identificar a perda de importância no espectro da nova política externa brasileira. Na medida em que lideranças políticas simpáticas a governos anti-liberais perdem capacidade de influir sobre o comportamento externo do país, as ações brasileiras na região vão assumindo um caráter mais pragmático e de mais baixo perfil. A prioridade da construção de uma liderança na região cede espaço para a construção de outro tipo de liderança mais ampliado, aonde a diplomacia brasileira concentra seus esforços na construção de uma liderança brasileira em um cenário maior – entre países sulamericanos e também africanos, de menos recursos. No entanto, o processo de articulação entre países sulamericanos, e os vínculos bilaterais brasileiros com países vizinhos através da cooperação técnica e financeira estão estabelecidos e ramificados por diferentes esferas governamentais dando um caráter de mais longo prazo para as políticas brasileiras para a região. Com menos vigor, os avanços no campo da integração regional conseguidos no período de Lula estão tendo continuidade. Durante estes primeiros meses não houve uma crise na região que pusesse a prova a atuação da diplomacia brasileira. Em relação ao Mercosul, a posição adotada durante o governo de Lula vem sendo mantida: não é prioridade, mas sua defesa é uma política de estado. Os avanços devem se concentrar em áreas não-comerciais, e se buscará espaços para a expansão 4 Comportamentos percebidos como eficientes é um dos principais pilares do governo de Dilma Rousseff. 5 Embora lideranças políticas do PT evitam aceitar que haja mudanças de rumo. industrial e o desenvolvimento de infraestrutura. É fundamental manter estreitos laços de cooperação com a Argentina que evitem o renascimento de qualquer tipo de rivalidade que pode provocar danos nas estratégias brasileiras. A guisa de conclusão Com três meses de mandato ainda é cedo para se fazer uma análise mais detalhada da política externa mas, ao que tudo indica, a continuidade de suas principais estratégias convive já com ajustes. Mas o mais relevante de ser ressaltado, por ora, é o fato da política externa brasileira ter entrado no governo de Dilma Rousseff como uma política que desperta interesse na sociedade civil, incorpora um maior numero de atores e temas, e é avaliada em sua essência pelos meios de comunicação. Apesar da tendência do Itamaraty de recuperar um papel mais central na formulação da política externa, a ideia histórica de uma política externa encapsulada e formulada dentro de uma burocracia fechada cedeu lugar a uma política própria dos regimes democráticos, mais aberta para o debate político. Neste caso, as mudanças de rumo –e sobretudo os ajustes- serão sempre mais passíveis de acontecer.
Compartilhar