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• 
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do 
conjunto teórico ou então a metodologia e seus procedimentos. 
Mas pode afetar também o "núcleo duro" de uma ciência, aque­
la base de conceitos fundamentais que designam as entidades 
(onta) ou o campo de objetos de investigação. Exemplos disso 
são conceitos como "extensão", "matéria", "movimento", "força", 
"massa", "espaço", "tempo", "número", "quantidade", "grandeza", 
"átomo", "genes", "instintos" e "pulsões". Questionar tais concei­
tos é algo que afeta o substrato ontológico e desestabiliza a com­
preensão de ser vigente em determinada disciplina científica. 
Esse tipo de probl~ma chama-se crise de paradigmas {modelo 
ou campo conceituai que dete~mina o ser dos entes de que uma 
54 • 
ciência se ocupa), ou revolução cientifica, enquanto as problema­
tizações periféricas são aquelas que surgem em períodos de 
vigência normal de certo paradigma. 
Não se pode negar que, desde o início do século passado, 
vivemos uma prolongada crise de paradigmas nas ciências for­
mais, naturais e humanas. Tanto nas ciências quanto na filosofia 
o horizonte de compreensão para o sentido do Ser encontra­
-se nublado. Para esse ofuscamento, não encontraremos saída 
enquanto não respondermos às questões ontológicas fundamen­
tais, incidentes sobre o estrato teórico dos conceitos básicos das 
ciências e da filosofia modernas. Esse é um dos legados mais 
importantes recebidos por Heidegger de seu mestre Husserl. 
Ninguém discute a importância das ciências em nosso mun­
do, mas não há dúvida, também, que nenhuma ciência particular 
- empírica ou formal - pode dar uma resposta para a pergunta 
pelo ser dos entes com os quais se ocupa porque toda normali­
dade científica assume como dado um determinado domínio de 
entidades que constitui seu objeto de investigação. As ciências 
ocupam-se dos entes que correspondem a seus conceitos - e 
mais nada. Elas diferem do senso comum ou de um mero saber 
do provável porque suas teorias são formadas por juízos com 
pretensão de universalidade e de necessidade objetiva. 
A ciência se ocupa com os entes; não se pergunta pelo 
estatuto de ser das entidades com as quais opera, mas assume 
tacitamente um sentido para: seus conceitos, objetos e rela­
ções - um sentido que pressupõe um entendimento irrefletido 
de Ser como presença (Vorhandenheit, ou presentidade, no léxico 
heideggeriano). 
O fenômeno mais importante na crise das ciências con­
temporâneas é que ela afeta a infraestrutura ontológica destas, 
o que evidencia a necessidade e a urgência de uma retomada 
da pergunta pelo sentido do Ser. Essa pergunta foi silenciada 
pela ontologia metafísica, na medida em que esta sempre se 
dedicou às condições do ser dos entes, em sua totalidade, e não 
aos sentidos do Ser como tal: razão pela qual sempre se man­
teve em um patamar meramente ôntico, ignorando a diferença 
ontológica, mais originária, entre ente e Ser. 
A essência dos entes não pode ser percebida pelos senti­
dos, tampouco ser identificada com nenhum fenômeno físico. 
Essências são entidades ideais, apreensíveis por intuição ou 
conceito e, em contraste com o universo físico, são de natureza 
metafísica (meta ta physika: além da física). Embora não presen­
tes no âmbito natural, intramundano, as essências ainda são 
entes. Alguns exemplos são as ideias de Platão, as causas de 
Aristóteles, Deus como ens supremum na filosofia medieval, a 
substância pensante na metafísica de Descartes ou as môna­
das em Leibniz. A metafísica constitui, portanto, um tipo de 
ontologia que se pergunta pelo sei dos entes, por sua essência, 
e responde a essa pergunta com a identificação de um ente ou 
um gênero supremo de entes metafísicos, cujo estatuto cabe 
à filosofia explicitar. 
Sem dúvida, temos aqui uma diferença entre o plano das 
entidades naturais ou físicas e o âmbito próprio - também ele 
ôntico - de entes cujo modo de existência difere dos naturais. 
Essa diferença circunscreve a região da metafísica - também 
as entidades intelectuais (metafísicas) existem como entes 
56 
representáveis, só que inacessíveis ao olhar, sendo apreensíveis 
apenas pela especulação ou a contemplação teórica. 
Com Platão, por exemplo, podemos dizer que a essência 
(o conceito) de cão nada tem a ver com qualquer cão deter­
minado, nem com nenhuma raça canina existente no mundo 
ou na imaginação. Ela consiste no elemento ideal (eidos, em 
grego; idea, em latim), presente em todo cão empírico e que 
o caracteriza como tal - e não como um gato - , mas que não 
é perceptível aos sentidos, apenas discernido pelo intelecto. 
Platão deu a isso o nome de ideia - entidade de um mundo 
(metafísico) puramente inteligível. 
A essa diferença entre os entes e o ser dos entes em sua 
totalidade, Heidegger acrescenta outra, cuja função é axial no 
contexto de Ser e tempo: a distinção entre ôntico e ontológico, na 
qual o termo ontológico remete à pergunta pelo sentido do Ser 
enquanto Ser, e não ao ser dos entes em geral. A essa diferença 
ontológica corresponde, no léxico de Ser e tempo, a diferencia­
ção conceituai entre Existenziel (existencial-ôntico) e Existenzial 
(existencial-ontológico). 
Existencial-ôntico é um predicado dos entes como tais. 
O gênero mais elevado desse tipo de atribuição são os conceitos 
gerais, que podem ser predicados de todos os entes que figuram 
em um discurso e para os quais Aristóteles cunhou o nome 
de categorias. A substância e os atributos essenciais podem ser 
considerados, com outros conceitos do mesmo grau de gene­
ralidade, gêneros supremos do Ser. 
Diferentemente do existencial ôntico, limitado ao plano 
dos entes, o existencial-ontológico remete ao plano do Ser, em 
~7 
sua diferença para com os entes. O termo ontológico não diz 
respeito às características particulares dos entes existentes ou 
possíveis, mas designa o fundamento originário que os torna 
o que eles essencialmente são, ou seja, que os constitui em seu 
ser próprio. 
É a partir dessas noções que se explicita a temática da diferen­
ça ontológica tal como a pensa Heidegger. Os diferentes campos 
de objetos investigados pelas ciências particulares, com suas 
metodologias próprias e seus específicos regimes de verdade, 
são domínios ônticos (de entidades). São formados, por exem­
plo, pelo número e pelas figuras, pela matéria e o movimento, 
pelos astros, a natureza e a composição dos elementos quími­
cos, as forças e energias, a vida em suas diferentes formas, a 
sociedade, a política, a psique, as pulsões, para nos limitarmos 
a algumas indicações gerais. 
Essas regiões de entes formam o conjunto que denomi­
namos efetividade (Wirklichkeit), ou seja, o mundo dos objetos 
realmente existentes ou possíveis. Eles seriam, no sentido de 
Heidegger, entes intramundanos. As questões que os tomam por 
objeto são, portanto, perguntas ônticàs, as quais se limitam ao 
domínio dos entes em sua efetividade. Nesse sentido, o homem 
é um ente intramundano, como os outros animais, as plantas, 
os minerais, os números, as figuras e os seres fictícios. 
A pergunta sobre o sentido do Ser transcende esse plano 
ôntico (relativo aos entes), pois é da resposta a ela que depende a 
resolução das dificuldades epistemológicas que afetam as ciências. 
A crise contemporânea das ciências torna urgente uma 
recolocação da pergunta o~tológica, com uma sensibilidade 
58 
renovada para a relevância desse questionamento. Como em 
toda crise, há uma pressão difusa por julgamento e decisão. 
Ela se apresenta, então, como urgência de decisão quanto ao 
sentido da própria crise, já que não temos a menor dúvida a 
respeito da necessidade constringente com que as ciências se 
impõem em nosso mundo. Uma problematização dessa crise, 
porém, não pode ser levada a cabo em outra parte e de outra 
maneira senão como recolocação da pergunta pelo sentido do Ser, 
na medida em que a desestabilização da base ontológica das 
ciências contemporâneas atesta o esgotamentodas virtualida­
des teóricas da metafísica tradicional. 
Trata-se de carência que afeta os fundamentos e que, por 
isso, exige uma ontologia fundamental, não ligada apenas aos cam­
pos especiais de entidades assumidas como objetos das ciên­
cias particulares (posto que elas se tornaram insubsistentes em 
razão da crise e seu estatuto se encontra permanentemente 
em questão), mas ao âmbito geral das próprias modalidades 
de Ser dessas entidades. 
Em resposta a essa urgência, a ontologia de Ser e tempo está 
voltada para a meditação filosófica a respeito do sentido do Ser, 
visando não apenas ao ser dos entes, tais como se apresentam 
enquanto fenômenos, mas ao Ser enquanto tal. Ora, essa tarefa 
exige um ponto de partida absolutamente novo, uma vez que, na 
história da filosofia ocidental, o Ser sempre foi pensado apenas 
em relação aos entes, sempre a partir da presença das coisas que 
são, nunca sendo levadas em conta as diversas modalidades em 
que os entes se dão e se mostram, nunca sendo considerados a 
instância ou o limiar originário desse dar-se e mostrar-se. 
59 
A pergunta pelo sentido do Ser não pode partir aleatoria­
mente de qualquer ente, uma vez que neles o dar-se e o mostrar­
-se, como tais, não são problematizados. Ela deve partir de um 
ente especial, no qual e a partir do qual seja possível um acesso 
ao Ser e ao seu sentido, ao limiar e à clareira de onde provêm 
o dar-se e o mostrar-se. 
Essa ontologia tem de ser orientada por um vetor, em uma 
determinada direção, a saber: por um entendimento prévio 
do Ser como tal (para designá-lo, Heidegger recorre à for­
ma arcaica de sein, ser, em alemão: seyn), do qual procedem 
os entes. Ela tem de abrir-se às suas diferentes modalidades, 
descerradas pela pergunta por seu sentido. A partir de onde, 
ou de que, seria possível obter esse acesso privilegiado aos 
modos de Ser (Seyn)? 
Para o resgate das intuições e experiências originárias 
nas quais o logos (em grego: "verbo", "pensamento", "razão"; 
ratio, em latim), pela primeira vez no Ocidente, enunciou-se 
como linguagem, é necessário destruir as bases em que 
se consolidou a ontologia metafísica tradicional. Esta, ao tra­
tar do Ser e de seu sentido, privilegiou â categoria de essência 
à de existência, orientou o pensamento para a revelação do 
que são os entes, em seus atributos e predicamentos essen­
ciais, mas esqueceu-se da diferença entre o ser dos entes e 
o próprio Ser. 
-Invertendo o sentido vetorial, Heidegger mostra que 
a reflexão filosófica sobre Ó ser dos entes deve necessaria­
mente partir do ser-o-aí, na medida em que, entre todos 
os entes, este é o único para o qual a compreensão de ser é 
60 
originária e faz sentido. É também o único que tem interesse 
na pergunta pelo Ser (e primeiramente pelo sentido de seu 
próprio ser). 
Daí resulta que o ser-o-aí é um ente de natureza essencial­
mente ontológica, aberta e voltada para o Ser. É dessa instância 
que deve nascer o impulso para uma retomada da preocupação 
filosófica com o Ser - e não apenas sobre o ser dos entes -, 
capaz de liberar novamente o acesso às intuições fundamentais 
que inspiraram a compreensão originária de logos e, com isso, 
constituíram nossa identidade cultural. 
É esse o sentido mais próprio da expressão destruição 
da metafísica. A ontologia fundamental heideggeriana não 
perfaz um salto para fora da filosofia, tal como a conhece­
mos e a praticamos, nem constitui uma recusa da tradição 
filosófica ocidental. Ao contrário, trata-se de prosseguir no 
caminho dessa tradição, que também determina o futuro, 
já que se trata ainda e sempre de perguntar-se pelo sentido 
do Ser: 
Este caminho para a resposta à nossa questão não representa 
uma ruptura com a história, nem uma negação da história, mas 
uma apropriação e transformação do que foi transmitido. Tal 
apropriação da história é designada com a expressão "destrui­
ção". O sentido dessa palavra é claramente determinado em Ser 
e tempo. Destruição não significa ruína, mas desmontar, demo­
lir e pôr de lado - a saber, as afirmações puramente históricas 
sobre a história da filosofia . Destruição significa: abrir nosso 
ouvido, torná-lo livre para aquilo que na tradição do ser do ente 
61 
nos inspira. Mantendo nossos ouvidos dóceis a essa inspiração, 
conseguimos situar-nos na correspondência.6 
Ser-o-aí 
Para Heidegger, ser-o-aí (Dasein) deve ser descrito em suas 
estruturas ontológicas, e essa descrição constitui a tarefa de 
uma fenomenologia que parte do atributo essencial desse ente: 
sua essência consiste em ex-sistere: existir, subsistir, suster-se, 
colocar-se de pé, manter-se na exterioridade, na abertura. 
Escreve Heidegger, em Ser e tempo: 
A palavra grega phainomenon, à qual remete o termo "fenômeno", 
deriva do verbo phainestai, que significa: aquilo que se mostra, 
o manifesto. Phainestai é o infinitivo de phaino: trazer ao dia, colocar 
à luz. Phaino pertence à raiz pha-como phos, a luz, a claridade, isto é, 
aquilo em que algo pode tornar-se manifesto, visível em si mesmo. 
Devemos reter a significação da palavra "fenômeno": aquilo que se 
mostra em si mesmo, o manifesto. Os phainomena, "fenômenos", 
são, portanto, o conjunto daquilo que está ou pode ser trazido à luz 
e que os gregos, por vezes, identificavam simplesmente com ta anta 
(os entes, o ente). O ente, portanto, pode mostrar-se, a partir de si 
mesmo, de diversas maneiras, conforme o modo de acesso a ele.7 
A fenomenologia do ser-o-aí descreve a essencial remissão 
ao Ser constitutiva desse ente singular, o homem. Este é um 
6 Heidegger, M. "Que é isto - a filosofia?", p. 218. 
7 Idem, Sein und Zeit, p. 28, § 7 (tradução do aut?r) . 
62 
ente que, em seu modo de existir (em sua constituição ôntica), 
mantém uma relação essencial com o Ser. De nós mesmos parte 
a ontologia fundamental, na medida em que existimos tanto 
como Da quanto como sein. 
Dasein é uma palavra composta pelo verbo "ser" (sein) e pelo 
advérbio "aí" (da). Em acepção existencial-ontológica, o Dasein é 
ente a cuja essência pertence o ser; que existe (é) enquanto aí- no 
aberto, em abertura para o Ser. Essa é a condição ontológica do 
homem como Dasein, como ser-o-aí. Nesse sintagma, "da" não 
deve ser tomado em acepção espacial, como se indicasse uma 
localização, um "aqui" contraposto a "lá" ou "acolá". Em Ser e 
tempo, o "aí" significa uma dimensão de exterioridade, como a 
expressa pelo prefixo latino ex- em "expelir" ou "extirpar". 
O Ser é a contrapartida ontológica do "da" na fórmula Dasein. 
Como Dasein, o homem é essa abertura (o homem é, essencial­
mente, também esse aij, uma ex-stase: um estar fora de si, junto ao 
Ser. Se a ontologia geral concede privilégio teórico à essência em 
relação à existência, Heidegger, ao contrário, pensa o Dasein como 
ente cuja ex-sistência é ontologicamente fundamental, ou seja, é 
constitutiva da essência: uma existência contingente, temporal, 
mundana, finita, cujo sentido é ser-para-a-morte. 
O ponto de partida da ontologia fundamental é um ente a 
cuja existência o Ser pertence como elemento, o que explica o 
interesse coetâneo do Dasein pelo Ser, já a partir de seu próprio 
ex-sistere: subsistir, persistir na abertura para o Ser, estar fora 
de si. Como Dasein, o homem é ontológica e originariamente 
ex-sistência ex-tática. Êxtase é a essência da existência humana: 
t:.~ 
O homem desdobra-se assim em seu ser de tal maneira que ele é 
o "aí", isto é, a clareira do Ser. Este "ser" do aí, e somente ele, possui o 
traço fundamental da ec-sistência, isto significa o traço fundamental 
da in-sistência ec-stática na verdade do Ser. A essência ec-stática do 
homem reside em sua ec-sistência, que permanece distinta da exis­
tentia pensada metafisicarnente.8 
Por isso Heidegger sugeriu que, em francês, se traduzisse 
Dasein não por être-là (ser-aí), como usualmente era feito, mas 
por être-le-là (ser-o-aí): 
A palavra"Dasein" significa, segundo a tradição, ser/ estar presente, 
diante da mão (Vorhandensein), existência. Nesse sentido, fala-se, 
por exemplo, das provas para a existência de Deus. Em Ser e tempo, 
todavia, Dasein é entendido de outro modo. Os franceses também 
não observaram isso inicialmente, razão pela qual eles traduzem 
Dasein em Ser e tempo como être-là, o que significa: ser/ estar aí e não 
lá. Em Ser e tempo, o da não significa urna indicação de localização 
para um ente, mas deve nomear a abertura na qual o ente pode ser/ 
estar presente para o homem, também t;le mesmo, para si mesmo. 
O aí (da) para o ser distingue o ser-homem. A adequada tradução 
francesa para Dasein teria de soar: être-le-là.9 
8 Idem, "Sobre o 'humanismo"', p. 353. Sem dúvida, trata-se de um texto 
"taroio", datado de 1947, mas que, para nossos propósitos, é de importância 
capital, pois retoma, do ponto de vista da autorreflexão e da autocrítica, todo 
o programa filosófico de Ser e tempo. 
9 Idem, Zollikoner Seminare, pp. 156 s. (-tradução do autor). 
64 
,... 
A primazia ontológica do ser-o-aí como existência está 
fundada no seu interesse na pergunta pelo sentido do Ser. 
A elaboração sistemática dessa pergunta tem a forma de uma 
análise fenomenológica do Dasein - e não do homem, tal como este 
é geralmente considerado, como sujeito de conhecimento 
e, ao mesmo tempo, objeto de disciplinas científicas, como 
a antropologia, a psicologia, a sociologia ou a biologia. Essa 
análise fenomenológica considera o ente que compreende sua 
relação com o Ser, para quem o Ser importa e dá a pensar, pois 
o homem é o único ente que pode liberar um acesso para o 
entendimento do próprio Ser, na diversidade de seus sentidos: 10 
O título fenomenologia, considerado em seu sentido, é distinto de 
designações corno teologia e outras desse tipo. Estas nomeiam os 
objetos de urna ciência que lhes corresponde, em seu respectivo 
teor de coisa (Sachhaltigkeit). "Fenomenologia" nem nomeia o obje­
to de suas investigações, nem é um título que dá nome ao teor da 
coisa sob investigação. A palavra apenas dá abertura para o corno 
da apresentação e tratamento daquilo que deve ser tratado nessa 
ciência. Ciência dos fenômenos diz: urna apreensão de seus objetos 
de tal modo que tudo aquilo que sobre eles está em discussão tem de 
ser tratado em demonstração e exibição patente direta. Fenome­
nologia é o modo de acesso e determinação exibitório-atestatória 
10 É importante lembrar que Heidegger diferencia conceitualmente Existenzial, 
que designa o constituinte ontológico essencial do ser-o-aí, e Existenziel, que de­
nota o significado usual do existir, seja como predicado distinto da essência, seja 
no sentido dos existencialismos ateus ou cristãos contemporâneos de Heidegger. 
65 
do que deve tornar-se tema da ontologia. A ontologia só é possível 
como fenomenologia. O conceito fenomenológico de fenômeno 
pensa aquilo que se mostra do ser do ente, seu sentido, suas modi­
ficações e derivados. 11 
A fenomenologia é uma analítica do ser-o-aí, tal como 
este se manifesta em sua estrutura ontológica. Por isso é indis­
pensável descrevê-lo em seus modos próprios de existência, 
sobretudo como se apresenta no cotidiano de seu mundo, 
para revelar aquelas determinações que não são mostradas 
pela definição tradicional de sua essência - esta é uma deter­
minação metafísica, que deve ser destruída, removida, para 
que a análise fenomenológica de sua existência possa trazer à 
luz os elementos ontológicos determinantes de sua estrutura 
como ser-o-aí. 
Essa fenomenologia é também hermenêutica, em um sentido 
muito preciso, que difere do método interpretativo das ciências 
da compreensão: em Heidegger, a hermenêutica é uma analí­
tica da condição Existenzial de um ente que compreende ser, que, 
em sentido rigoroso, é compreensão; a fenomenologia deve 
tornar manifesta a dimensão compreensiva como constituinte 
ontológica do ser-o-aí: 
Na explicitação dada das tarefas da ontologia, surge a necessi­
dade de uma ontologia fundamental, que tem por tema o ente 
especialmente distinguido, o ser-o-aí, a saber, de tal maneira 
11 Heidegger, M. Sein und Zeit, p. 35, § 7. 
66 
que ela se coloca diante do problema cardinal: a pergunta pelo 
sentido do Ser em geral. Da própria investigação resultará que 
o sentido metódico da descrição fenomenológica é interpre­
tação. O logos da fenomenologia do ser-o-aí tem o caráter do 
ermeneúein, por meio do qual são anunciados (kundgegeben) para 
a compreensão de ser pertencente ao próprio ser-o-aí o autên­
tico sentido de Ser e as estruturas fundamentais de seu próprio 
ser. A fenomenologia do ser-o-aí é hermenêutica, na acepção 
originária da palavra, segundo a qual ela designa aquilo de que 
se ocupa a interpretação. 12 
Ser-o-aí é o que nos é mais próximo, já que somos nós 
mesmos que existimos como tal. Porém, do ponto de vista 
ontológico é também o que há de mais estranho e distante 
para nós, quanto ao conhecimento de nossa essência. Para nos 
aproximarmos reflexivamente desse conhecimento, temos de 
perguntar pelo modo de ser da existência que somos. Esta é, 
fundamentalmente, contingência, temporalidade, facticidade 
(Faktizitiit), finitude. 
Ser-o-aí existe no tempo, e a temporalidade (Zeitlichkeit) é 
um componente fundamental de sua estrutura. Isso implica 
que toda compreensão possível de Ser, a partir do Dasein, é uma 
compreensão temporal. Por outro lado, se a temporalidade 
constitui um predicado ontológico originário da sua essência, 
então o ser-o-aí deve ser mostrado pela análise fenomenoló­
gica como sendo finito e mortal. 
12 Idem, ibidem, p. 37. 
67 
1 
1 
~ 
Na terminologia de Ser e tempo, o ser-o-aí é aberto a pos­
sibilidades indeterminadas de ser, como projeto (Entwwj) lançado 
(gewoifen) no mundo, e tem de assumir-se, inclusive em sua possibi­
lidade mais radical, como ser-para-a-morte. O tempo é o horizonte de 
compreensão do Ser pelo ser-o-aí. Correlativamente, todos os elementos 
constitutivos deste dão-se como modi da temporalidade originária. 
O que Heidegger quer dizer com "análise fenomenológica'? 
A palavra "análise" se refere à decomposição do ser-o-aí em suas 
estruturas ontológicas, que ele denomina existenciais-ontológicas, 
para diferenciar de todo predicado ôntico, referido unicamente 
aos entes. Análise fenomenológica, no sentido originário tanto 
de phainomenon quanto de logos, que, como o traduz Heidegger, 
é fundamentalmente verbo, discurso. Para ele, todas as outras 
significações do termo, como lógica, juízo, verdade, razão, fun­
damento, relação, são derivadas da acepção originária de fala 
(em alemão, Rede). Ligado ao verbo legein, logos é a palavra ou a 
enunciação que reúne e mostra, no sentido de fazer ver, aquilo de 
que fala o discurso. O próprio Heiddegger, em Ser e tempo, explora 
filologicamente essa exegese e autoriza a derivação etimológica 
de "mostrar" e "fazer aparecer" com apoio em logos e legein: 
68 
Logos, no sentido de discurso, significa deloun, tornar manifesto 
aquilo sobre o que se discorre no discurso. Aristóteles explicitou 
mais precisamente essa função como apophainestai. [ ... ] O logos 
faz ver (phainestaí) alguma coisa, a saber, aquilo sobre o que se dis­
correu; ele o faz ver àquele que discorre (forma média) ou àqueles 
que discorrem entre si. O discurso "faz ver" (apo) a partir daquilo 
sobre o que se discorre. No discurso (apophansis), enquanto ele é 
r 
autêntico, o que é dito se deve haurir daquilo sobre o que se fala, de 
tal modo que a comunicação discursiva torne manifesto, e assim 
acessível aos outros, aquilo de que se fala naquilo que é dito. Tal é 
a estrutura do logos como apophansis. 13 
Fenômeno significa, em Ser e tempo, "aquilo que em si mesmo 
se mostra", tal como aparece. Phdnomen, em sentido heideggeria­
no, não é sinônimo de "aparência" (Erscheinung), porque esta se 
diz em relação aoque nela justamente não se mostra, não aparece. 
Essa diferença é compreensível para nós, em diversas formula­
ções habituais em língua portuguesa, como, por exemplo: parece, 
mas não é; o que verdadeiramente é, não aparece; as aparências enga­
nam ... A ontologia fenomenológica rompe com essa dualidade 
metafísica para descrever os modos de ser dos fenômenos que 
se apresentam como objetos, com suas respectivas estruturas. 
No léxico metafísico, aparência é a contrapartida de rea­
lidade, efetividade. Uma dor de dente é aparência, existe ao 
modo de sintoma de uma inflamação nervosa: esta, sim, é a reali­
dade ou a efetividade, que apenas aparece como dor de dente. 
Inflamação é a realidade da dor de dente, que, relativamente 
a ela, é mera aparência (Schein). Verdadeiro é o discurso que 
manifesta, desvela aquilo de que fala, ou seja, traz à luz, retira 
de seu ocultamento aquilo de que se fala. 
Como legein, o logos é ajuntar, coligar. Nele se colhe e colige 
um ente que o discurso manifesta em sua verdade. Desvelar-se 
do ente em seu ser pelo discurso é o significado originário de 
13 Idem, ibidem, p. 32. 
"-~ 
J 
verdade como alétheia, o que exibe a ligação essencial entre o 
ser-o-aí e a verdade do Ser: 
O pôr que recolhe, enquanto logos, pôs tudo, isto é, as coisas pre­
sentes, em seu desvelamento. Pôr é um abrigar. Todas as coisas 
presentes são, assim, abrigadas na sua própria presença, lá onde é 
possível ao legein humano ir sempre procurar, especialmente, para 
as produzir como coisas presentes. O logos coloca na presença e 
dispõe, isto é, repõe a coisa presente na presença. Presentar-se, entre­
tanto, significa: uma vez manifestado, durar no desvelamento. Ora, 
o desvelamento é a alétheia. Esta e o logos são a mesma coisa. O legein 
deixa a alétheia, o desvelado enquanto tal, ficar disposta-diante-de. 14 
Desse modo, Ser e tempo pode s~r compreendido a partir da 
tarefa a que se destina: uma fenomenologia das estruturas ontoló­
gicas do ser-o-aí. Para Heidegger, nem a ontologia é uma parte da 
filosofia, nem a fenomenologia é apenas um método. Ontologia 
e fenomenologia são a mesma coisa - são a própria filosofia: 
Os dois títulos caracterizam a própria filosofia, segundo o objeto 
e seu modo de tratamento. Filosofia é ontologia fenomenológica 
universal, partindo da hermenêutica do Dasein, que, como analítica 
da Existenz, fixou a extremidade do fio condutor de todo questiona­
mento filosófico no ponto a partir de onde este questionar irrompe 
(entspringt) e em direção ao qual ele reverbera (zurückschliigt). 15 
14 Stein, E. Compreensão e jinitude, p. 112; citação ligeiramente modificada . 
15 Heidegger, M. Sein und Zeit, p. 38, §' 7. 
70 
Ser-o-aí é esse ponto extremo de onde surge o fio de pru­
mo do questionamento filosófico e para o qual este regressa. 
Retornar às coisas mesmas é, para Heidegger, a diretriz para 
uma descrição do Dasein em seu modo de ser, tal como este se 
mostra em sua facticidade, partindo de suas predeterminações 
ontológicas. 
Predeterminações ontológicas do ser-o-aí 
Predeterminação denota um elemento mais originário do que 
um princípio lógico. É um limiar aquém do qual nenhuma 
análise pode remontar, pois é uma instância ontológica do 
ser-o-aí no qual radica a própria lógica. Predeterminação é a 
anterioridade da existência em relação à essência. A metafísica 
sempre priorizou a essência e a substância em relação aos atri­
butos acidentais, que são modalidades das primeiras. Ser-o-aí 
é ex-sistência contingente, fática. 
Porque o ser-o-aí existe lançado no Ser, ele carece de defi­
nição essencial que conferiria finalidade ou necessidade à sua 
existência. Porque essa condição consiste em existir no mundo 
como um fato irremissível, ela não pode ser explicada ou repor­
tada a nenhuma razão ou fundamento, pois o ser-o-aí é o grau 
zero (infundado) de toda compreensão e explicação possível. 
Essa contingência é também originária, é a facticidade do ser­
-o-aí, decorrente de sua condição de projeto lançado (geworfener 
Enwurf) no ser como ec-sistência. Sua essência consiste em inde­
finidas possibilidades de ser. Como poder-ser, ele é essas mes­
mas possibilidades (Heidegger dá a isso o nome de Zu-Sein: para 
ser), inclusive a mais extrema de todas elas: a possibilidade da 
71 
~ 
,i 
1 impossibilidade, de não atender seu poder-ser, também de deixar 
de ser, ser-para-a-morte, outra determinação originária do ser-o-aí. 
O mundo não é a totalidade dos objetos de representação, 
atuais ou possíveis; o mundo constitui o ser-o-aí, como 
a ambiência no interior do qual transcorre sua existência 
irremissível, em diferentes planos de relação. É no mundo que 
o ser-o-aí pode ser como um si próprio ou não ser como um si 
próprio, permanecendo na inautenticidade. 
Ser-no-mundo e ser-com 
Intramundano, o ser-o-aí existe desde sempre em comércio 
com os outros entes, em um relacionamento que pode ser: 
a , Objetivo: é o plano da relação entre sujeito e objeto, 
no qual o mundo é disposto ou coloca-se diante de nós como 
universo re-presentado. Nesse sentido·, o mundo é a totalidade dos 
objetos presentes (Vorhanden) para um sujeito do conhecimento. 
Representar é reapresentar: dispor objetivamente os entes para a 
apreensão teórica, de modo a extrair deles um saber científico, 
que enseja controle e disponibilização para operações técnicas. 
b , Trato ou lida (Umgang): difere~temente dos objetos do 
conhecimento, lidamos com coisas que nos defrontam - como 
os utensílios - e suscitam perguntas como: "Para quê?", "Com 
que finalidade?". 
Seu modo de existir não é o da presentidade (Vorhandenheit). 
Essas coisas se dão a nós no vetor de sentido da Zuhandenheit 
- 'termo que designa aquilo que está à mão, não simples­
mente como objeto presente, mas como entidade que tem 
a condição de utensílio. No modo de desvelamento próprio 
72 
........ 
da condição ôntica de Zuhandenheit, os entes vêm ao nosso 
encontro como entes geradores, coisas das quais nos servimos 
para criar outras coisas e, por causa disso, estas são denomina­
das Zeug: trata-se do dispor de um instrumento útil para fazer 
coisas , ferramenta com que fazemos, produzimos, geramos 
outras coisas. Portanto, nessa acepção, o termo Zeug significa 
tanto "coisa" como "gerar" (nesse caso, na forma verbal: zeugen). 
Assim, em Werkzeug (ferramenta) temos uma coisa, que, ao lidar 
com ela, geramos ou produzimos outras coisas. Já no caso de 
Spielzeug, defrontamo-nos com uma coisa com a qual brincamos. 
Não se trata aqui de relação teórica, objetivante, mas de 
lida pragmática. Produzir é, etimologicamente, producere: con­
duzir diante de, trazer à frente- como téchne (técnica) , em sua 
significação originária, está ligada à poiésis (produzir, criar), 
pois é também uma modalidade de desocultar, trazer à luz, 
revelar. Nosso comportamento com os utensílios é trato, não 
cognição. Eles exigem um saber próprio do lidar, são de trato 
relativamente mais fácil ou mais difícil. Tocar um violão, por 
exemplo, não exige um conhecimento do processo de cons­
tituição do instrumento, nem de sua história, nem necessa­
riamente de teoria musical; brincamos com brinquedos, ou 
voamos em aeronaves, sem manter com essas coisas nenhum 
relacionamento cognitivo aprofundado. 
c , Relação ética: engajamo-nos com certos entes em um 
relacionamento que não é nem o de cognição nem o de lida 
prático-instrumental, mas uma relação pessoal, ética. Essa 
relação não se limita à que estabelecemos com os outros, mas 
está também ontologicamente vinculada à relação que criamos 
73 
conosco, a um tipo originário de cuidado de si, de préstimo e 
cura das possibilidades sempre abertas que constituem nossa existên­
cia. Existir significa, em sentido radical, cuidar de poder ser 
no mundo, que é também (e não menos essencialmente) ser­
-com-os-outros. 
Ser-no-mundo é, antes de tudo, abertura (Erschlossenheit),estar aberto para a mundanidade (Weltlichkeit), nos planos da 
relação cognitiva, tecnocientífica, é lidar com as coisas, manter 
um relacionamento com elas enquanto utensílios (Zuhandenheit) 
ou, enfim, relacionar-se com os outros como pessoas, em um 
modo de ser-com, de compartilhar (mit-sein). 
Cabe à fenomenologia a tarefa de descrever a mundani­
dade como elemento constitutivo do ser-lançado no mun­
do. O poder-ser é indefinido, mas ~ão infinito. _Temporal, ele 
implica finitude e possibilidade da impossibilidade, de não 
ser. Por isso, o ser-o-aí é pré-ocupação, cuidado com os entes 
intramundanos, cura do mundo. Não há ser-o-aí sem mundo, 
nem mundo sem ser-o-aí. É nesse sentido que a fenomeno­
logia existencial de Ser e tempo é também uma ética originária 
do cuidado de si e do cuidado do mundo. É nessa condição 
que se ancoram as duas possibilidades de ser que mais profun­
damente penetram na raiz da facticidade: o existir autêntico, 
como ser si-próprio (das Selbst), e a existência inautêntica: o 
impessoal (das Man, "a gente"). 
Aberturas existenciais do ser-o-aí 
À analítica existencial compete tornar manifesta a parte 
correlativa de ser-no-mundo (Iti-der-Welt-Sein). Este denota as 
74 
modalidades intramundanas do ser-o-aí - ou seja, o plano do 
trato com os outros entes. Sua contrapartida fenomenológica 
destaca o ser-em (Sein-in), com o acento deslocado do polo "no 
mundo" para o modo do "ser-no" - para analisar de forma feno­
menológica como esse ente se instala originariamente em sua 
condição de ser-no-mundo. 
Ser-o-aí é essencialmente temporalidade (Zeitlichkeit). Mas 
também é ser ao modo da abertura - abertura para seu próprio 
ser e para os demais entes que, como ele, habitam o mundo. 
Ser-em se mostra como transparência a si, como aí (da). 
Três são as modalidades originárias dessa abertura - ou 
os existenciais, que denotam as estruturas fundamentais do 
ser-o-aí como ser-em: 
a, Estar disposto, afinação (Be.findlichkeit): O ser-o-aí se encon­
tra no mundo em determinadas disposições e estados: ins­
talado em um lugar (em São Paulo, por exemplo); afinado 
nessa ou naquela modulação do afeto (alegre ou triste, por 
exemplo). A abertura para o mundo implica sempre um esta­
do de ânimo, não um tipo particular de sentimento, como 
estado psicológico determinado, mas um tônus afetivo geral, 
um modo de viver o relacionamento com o mundo em suas 
diferentes modalidades. 
Angústia (Angst) é a mais fundamental dessas disposições 
basais do afeto, na medida em que concerne não aos entes 
intramundanos, mas ao ser do ser-o-aí no mundo. Não se tra­
ta de temor ou ansiedade pela perda de um objeto presente ou 
virtual, pela cessação de um estado de coisas, mas um ânimo 
que abrange todas as possibilidades de ser do ser-o-aí em sua 
7c; 
1 
raiz: a tensão entre ser-si-próprio e perder-se, desgarrar-se, a 
possibilidade sempre presente de faltar a si. 
b , Compreensão, compreender (Verstehen): o ser-o-aí sempre 
toma pé em uma compreensão prévia e tácita, inarticulada, da 
condição existencial em que sempre- e a cada vez- se encon­
tra; compreensão e abertura para as possibilidades de ser nela 
existentes. Esse compreender, como dimensão ontológica do 
ser-o-aí, funda a hermenêutica de Ser e tempo, e com isso nota-se 
como Heidegger reelabora e dá nova fundamentação à cate­
goria de compreensão, presente na filosofia dos valores, nas 
filosofias da vida e na ciência hermenêutica, transformando-a 
em elemento existencial-ontológico estruturante do ser-o-aí. 
Compreensão é um limiar aquém do qual não é possível 
recuar em termos explicativos. Toda compreensão particular 
- de alguma coisa, por exemplo, um texto ou um signo -
tem como pressuposto o próprio ato de compreender, que 
é dado como um âmbito prévio e irrefletido no interior do 
qual está inserido, desde sempre, quem compreende algo. 
Não se pode compreender a própria compreensão, pois 
para tanto já seria necessário poder compreender, e assim ao 
infinito. Trata-se de uma circularidade inevitável, porém não 
viciosa, e sim virtuosa: quem compreende algo dispõe tam­
bém previamente de um senso de compreensão. Esse círcu­
lo é essencialmente hermenêutico, pois a hermenêutica é a 
ciência da interpretação e da compreensão. Assim, a abertura 
existencial-ontológica do ser-o-aí como compreensão torna a 
hermenêutica parte constitutiva da ontologia fundamental e 
da analítica existencial de Ser e tempo. 
76 
~ 
A compreensão heideggeriana tem um lado cognitivo: 
entender, apreender o sentido de, inteirar-se de, tomar cons­
ciência de. No entanto, a acepção fundamental de Verstehen 
em Ser e tempo é outra: compreender como "entender de" (sich 
verstehen auf etwas). Nessa fórmula, compreender evoca, sobre­
tudo, um poder, um dom ou uma capacitação. "Entender de" 
equivale, em português coloquial, a expressões como: "fula­
no entende do negócio, entende das coisas". Compreender é 
entender de ser, prima facie, saber de si, cuidar de seu próprio 
ser, cuidar de existir, de si como existência. Ser-o-aí, nesse 
sentido, é poder-ser, ser-possível, entender de ser. 
c , Fala, discurso, palavra, linguagem (Rede): entender de ser, 
poder ser, compreender em sentido ontológico é encontrar-se 
em uma disposição básica de abertura compreensiva, prévia e 
tácita, de preocupação com o ser. Nesse sentido, compreende­
mos o que significa ser, sabemos mais ou menos o que queremos 
dizer quando empregamos a palavra "ser". 
A articulação desse sentido, ou dos diferentes sentidos de ser, 
dá-se sempre no logos - na palavra, na linguagem, no verbo, no 
discurso. Essa articulação é o modo como o ser-o-aí enuncia seu 
entendimento de Ser - como manifesta, pelo verbo, o que vem­
-a-ser, dando com isso as condições para o desvelamento do Ser 
em sua verdade. Por isso, a linguagem é a articulação que coliga e 
manifesta, é o âmbito de desvelamento ou verdade do Ser. É assim 
que se pode entender o que Hei_degger pensa quando afirma que 
a linguagem é a clareira, ou a morada, do Ser. 
Na condição de ser-o-aí, o homem habita a morada do Ser, 
a linguagem. Ao falar, ele traz à luz, manifesta o que os entes 
77 
1 
são em suas respectivas essências; assim, ele exibe, desvela os 
entes em seu ser. Todavia, essa dimensão do habitar humano 
no cotidiano de sua existência natural é marcada pela dimensão 
pública do falar, pelo linguajar característico do existir coletivo, 
genérico, impessoal. 
Heidegger denomina ôffentlichkeit (esfera pública) essa con­
dição do ser-no-mundo. Trata-se aqui de uma existência decaí­
da em relação às suas possibilidades mais próprias e autênticas. 
Essa é a situação ontológica da queda (Veifallenheit), que não é 
o pecado original teológico, mas um perder-se no anonimato 
que afasta de ser-si-próprio - condição para a qual o ser-o­
-aí sempre pode ascender ao voltar-se para uma modalidade 
autêntica de existência. 
Modos de ser-no-mundo 
O ser-o-aí é também singular, existência irremissível, respectiva­
mente adstrita a cada pessoa. A isso Heidegger denomina Jemeinig­
keit (ser-a-cada-vez-meu, respectividade, ser singularmente 
adstrito a mim). Cada um de nós é a própria e respectiva exis­
tência singularíssima, na vida como na .morte, na autenticidade 
como na inautenticidade. Os possíveis mais abrangentes do ser­
-o-aí são: ser si-próprio, ou perder-se, extraviar-se, desgarrar-se, 
dissipar-se no elemento genérico e impessoal (das Man, a gente): 
78 
Aquilo que se diz em Ser e tempo sobre "a gente" não quer fornecer, 
de maneira alguma, apenas uma contribuição incidental para a 
sociologia. Tampouco "a gente" significa apenas a figura oposta, 
compreendida de modo ético--existencialista, ao ser-si-mesmo dà 
~ 
pessoa. O que foi dito contém, ao contrário, a indicação, pensada 
a partir da questão da verdade do Ser, para o pertencer originário 
da palavra ao Ser. Essa relação permanece ocultasob o domínio 
da subjetividade que se apresenta como a opinião pública. 16 
Existir no modo da autenticidade é um tornar-se, porque o 
ser-o-aí, desde sempre, advém na linha temporal de um passado 
histórico que o precede, como membro de uma dada família e 
sociedade, em um ponto do espaço prévio a toda deliberação ou 
escolha. Isso condiciona, em grande medida, seu presente, a par­
tir do qual se abrem as possibilidades futuras, às quais ele pode 
também permanecer alheio, alienado nas malhas do impessoal. 
Cura e preocupação 
Com isso, a analítica existencial do ser-o-aí atinge um de seus 
resultados mais importantes: a sua descrição fenomenológica 
como Sorge (cura ou preocupação). Ex-sistência é ser-no-mundo 
temporalmente como cura ou preocupação. Esse cuidado, por sua 
vez, desdobra-se em Besorgen (o cuidado com alguma coisa, 
com providenciar alguma coisa) e Fürsorgen (a cura como tomar 
cuidado de algo, ou de alguém; e como preocupação, ocupar-se 
de algo ou alguém, tratar dele e com ele). 
Ser-no-mundo é existir como cura: seja ao modo do pro­
videnciar utilitário, no trato com objetos e utensílios, seja ao 
modo da pré-ocupação como encargo, que se pré-ocupa e toma 
sob seus préstimos. Como ec-sistência, o ser-o-aí é no mundo 
16 Idem, "Sobre o 'humanismo"', p. 349. 
79 
J 
como cura, preocupação e cuidado com o mundo, que é tam­
bém uma dimensão essencial dele. 
A cada uma das modalidades de abertura do ser-o-aí como 
ser-no-mundo corresponde um modo de existir como projeto 
lançado na esfera pública da inautenticidade: à afinação/ estar 
disposto (Be.findlichkeit) correspondem possibilidades ou moda­
lidades diversas de estados afetivos gerais, humores (Stimmung) 
do ser-o-aí em sua existência cotidiana: alegre, triste, calmo, 
irritado, simpático, indiferente etc. À compreensão (Verstehen) 
corresponde a curiosidade (Neugier), e à fala (Rede) corresponde 
o falatório (Gerede). 
Afinação/ estar disposto, compreensão e fala são cons­
tituintes ontológicos do ser-o-aí. Disposição, curiosidade e 
falatório são o correspondente ô~tico dessas estruturas na 
cotidianidade intramundana do ser-o-aí - em sua condição 
de decaimento (Verfallenheit). As modalidades diversas de dis­
posição afetiva são formas de obliteração da afinação/ disposi­
ção originária da angústia, como preocupar-se com o próprio 
poder-ser. 
A curiosidade é um desgarramento que consiste em alienar­
-se na bisbilhotice do que interessa a todo mundo, no que distrai, 
ao cativar a atenção de todo mundo. É estar à cata de novida­
de - o que, por definição, significa estar condenado à infinita 
reposição, sob pena de deixar de ser o que é. O falatório domina 
a e?Cístência mundana do ser-o-aí no cotidiano, com o tagarelar 
e o opinar sobre tudo sem nada dizer, o discurso que não com­
promete, nada afirma nem nega quanto ao essencial. A retórica 
da opinião pública e o politicamente correto são exemplos de 
80 
falatório impessoal, da fala inautêntica. Trata-se, então, de uma 
curiosidade dispersiva, alienada na distração do falatório. 
O ser-para-a-morte 
Decaimento (Verfallenheit) não deve ser tomado em chave 
moralista. Ainda que evoque representações religiosas e morais 
(como o pecado original), designa a condição originária de 
ser lançado no mundo impessoal da esfera pública. É por essa 
razão - e unicamente em virtude dela - que o ser-o-aí pode 
também abrir-se para sua possibilidade mais autêntica: voltar­
-a-si, ou ser-si-próprio. 
Ser-o-aí, desde sempre, é projeto, poder ser, possibilidade 
de ser. Por isso mesmo, é também possibilidade de não ser, 
em dois sentidos. Primeiro, o de não ser si-próprio, de existir 
anonimamente sob a capa e o manto da publicidade, de fugir 
de si, aderindo ao modo inautêntico e impróprio (uneigentlich) 
de ser ou existir - ao que corresponde o faltar a si mesmo. 
Segundo, em uma acepção ainda mais radical de não ser, como 
realização da possibilidade da impossibilidade de ser, ou seja, 
da morte. Como ser-no-mundo temporal e finito, o ser-o-aí é 
constitutivamente (isto é, ontologicamente) ser-para-a-morte: 
abertura existencial para a possibilidade de não ser, ente que 
se compreende como tal. 
Do decaimento, o ser-o-aí é resgatado para a autenticidade 
pela culpa (Schuld) e a consciência moral (Gewissen). A culpa é 
um faltar a si, é ser-em-falta; estar em dívida com as possibili­
dades de ser si-próprio. Uma falta ontológica forma o conteúdo 
da consciência moral, não como tribunal interior, como voz da 
81 
consciência moral que acusa o sujeito de estar em débito com 
a lei por desobedecer a Deus. Ser culpado é sentir-se em falta 
para consigo mesmo, como poder-ser originário. 
Ninguém existe no lugar de outra pessoa, ninguém morre 
a não ser a própria morte. A condição de ser-para-a-morte é o 
chamado do Dasein para a sua mais radical autenticidade. Por isso, a 
culpa e a morte são os chamamentos inapeláveis da consciência 
moral, que é a voz de nossa culpa originária, de nossa condição 
de estar sempre em falta com relação ao nosso poder-ser, a cada 
momento de nossa existência. 
A consciência de culpa não é má consciência, mas o cor­
respondente ontológico da disposição angustiada. Trata-se 
também de uma ética fundamental, como cuidado de si e do 
mundo, na temporalidade própria~ finitude humana. Ser e tem­
po não tem necessidade de um capítulo dedicado à ética como 
disciplina filosófica. A fenomenologia analítica da ex-sistência 
desdobra-se em um ethos originário. 
82 
'r 
1 
A viravolta e a 
história da 
verdade do Ser 
-....... 
DE SER E TEMPO A TEMPO E SER 
O programa filosófico completo de Ser e tempo incluía uma parte 
em que a perspectiva de análise seria deslocada da temporali­
dade própria à existência do ser-o-aí (sua Zeitlichkeit), para um 
vetor tomado a partir da temporalidade do próprio Ser, para a 
qual Heidegger reservara o termo Tempora!itiit (temporaneidade). 
No entanto, sua reflexão a partir de meados de 1930 começa 
a demonstrar, de maneira crescentemente clara, que a inflexão 
pensada no horizonte de Ser e tempo, com as categorias feno­
menológicas específicas dessa obra, não seria suficiente para 
dar conta de toda envergadura e magnitude do novo empre­
endimento, a saber: pensar uma história da verdade do Ser, o 
que só seria possível no horizonte de Tempo e Ser. 1 
Em relação ao programa de Ser e tempo, a principal modifi­
cação consiste em que o ser-o-aí passa a ser tematizado não no 
horizonte transcendental de sua própria finitude, mas tendo 
como referência a temporalidade própria do Ser. 
1 Heidegger, M. "Protocolo do seminário sobre a conferência Tempo e Ser". 
85 
Essa mudança é a marca filosófica da viravolta, que atua 
como a transição do primeiro para o segundo Heidegger. Essa 
metáfora designa, para alguns, uma ruptura com a ontologia 
fundamental de Ser e tempo. Para outros, porém, não seria uma 
descontinuidade, mas uma complementação e um aprofun­
damento, uma mudança de sentido no mesmo caminho da 
reflexão inicial. 
Com a viravolta, o pensamento de Heidegger deixa o apoio 
do ser-o-aí (sem, no entanto, abandoná-lo completamente) para 
remeter ao Ser, invertendo seu sentido: parte do próprio Ser, 
em sua verdade ou desvelamento na história, para incluir uma 
reflexão sobre a essência do ser-o-aí humano, pensada como cor­
respondência ao apelo do Ser e abertura para essa convocação. 
A temporalidade do Ser é ain~a mais originária do que a do 
ser-o-aí; ela é temporaneidade. Em seu curso, a história (Geschichte) 
é pensada como o âmbito do acontecer do Ser (Geschichte des 
Seins), que se desoculta nos entes. As épocas que escandem a 
história do mundo são desvelamentos do Ser, em sua verdade, 
que o ser-o-aí recebe e medita, à qual corresponde no elemento 
da linguagem. De todo modo, mais importante do que a deci­
são sobre essa questão, é determinar as motivações "internas 
e externas"para a viravolta. 
Sobre esse ponto, Heidegger se manifesta em um texto de 
1936, em que reflete sobre a tarefa de Ser e tempo: 
86 
A conferência "Sobre ·a essência da verdade", pensada e levada 
a público em 1930, mas apenas impressa em 1943 , oferece cena 
perspectiva sobre o pensamento da viravolta de Ser e tempo para 
Tempo e Ser. Essa viravolta não é uma mudança do ponto de vista 
de Ser e tempo; mas, nessa viravolta, o pensar ousado alcança o 
lugar do âmbito a partir do qual Ser e tempo foi compreendido e, 
na verdade, compreendido a partir da experiência fundamental 
do esquecimento do Ser.2 
Nesse sentido, importa caracterizar a viravolta em conso­
nância com o modo como procedemos em relação a Ser e tempo, 
a saber, acompanhando algumas linhas de força que são fun­
damentais para a compreensão do pensamento do segundo 
Heidegger e da necessidade teórica que engendrou a mudança 
de perspectiva filosófica. Para fazê-lo, vamos tematizar a essên­
cia da técnica e a tarefa do pensamento no fim da metafísica. 
O fio vermelho que entretece as reflexões de Heidegger sobre 
os temas indicados é o conceito de história da verdade do Ser, 
que atualiza a destruição interna da metafísica, para retomar 
a pergunta originária pelo sentido do Ser. 
A reflexão sobre a técnica moderna oferece um caminho 
adequado, uma vez que esta é incompreensível em sua essência 
se não for considerada no horizonte da história da metafísica. 
Pois a moderna tecnociência foi gestada e nutrida pela meta­
física (sinônimo de filosofia para Heidegger), já que sempre 
se voltou para os entes em sua presentidade, obliterada para a 
diferença ontológica entre os planos do ente e do Ser. Pode-se, 
com base nessa indicação, interpretar a passagem do primeiro 
para o segundo Heidegger em correspondência com a maneira 
2 Idem, "Sobre o 'humanismo"', p. 354. 
87 
de compreender a anunciada viravolta: como ruptura ou pro­
longamento, ambos devidos a razões filosóficas internas. 
Pode-se, no entanto, considerar também um relevante fator 
"externo": o enfrentamento entre Heidegger e Ernst Jünger, que 
teve por fundamento interpretações divergentes do fenômeno 
do niilismo, hauridas em uma intensa ocupação reflexiva, tanto 
no caso de Jünger quanto no de Heidegger, com a filosofia de 
Nietzsche. 
Dessa ótica, a viravolta estaria ligada à reflexão sobre o 
niilismo, que exige pensar a essência da técnica com as cate­
gorias e os conceitos diferentes da analítica existencial de Ser e 
tempo. Seria, portanto, no bojo de sua confrontação filosófica 
(Auseinandersetzung) com a "metafísica de Nietzsche" - vonta­
de de poder, eterno retorno do i:nesmo e perspectivismo -, 
ligada à confrontação com as posições de Jünger a respeito 
do ultrapassamento do niilismo no mundo contemporâneo, 
que Heidegger teria se posto a caminho de uma compreensão 
apropriada da essência da técnica. 
ABERTURA DO SER-O-AÍ E ABERTURA DO SER 
A partir da análise fenomenológica das estruturas fundamen­
tais do ser-o-aí, toda compreensão do Ser só pode se dar no 
~orizonte temporal da finitude humana. Não pode haver, a 
partir do ser-o-aí, nenhuma possibilidade de entendimento e 
abertura para o Ser que não seja o tempo, tematizado com base 
na ex-sistência do ser-o-aí. 
88 
Nos Seminários de Zollikon, ao sugerir uma tradução fran­
cesa adequada para o termo Dasein como être-le-là, Heidegger 
acrescenta um complemento de enorme importância: 
O aí (da) para o ser distingue o ser-homem. A expressão ser-aí 
humano é, de acordo com isso, um pleonasmo. A adequada tra­
dução francesa para Dasein teria de soar être-le-là (ser-o-aí), e o 
destaque em alemão, adequado ao sentido, ser-o-aí (da-sein), em 
vez de ser-o-aí (da-sein). 3 
Ao esclarecer que a ênfase deveria ser colocada no verbo 
sein, em vez de no advérbio da, Heidegger explicita, com cirúrgi­
ca precisão, a viravolta de Ser e tempo para a história da verdade 
do Ser. A indicação põe em destaque que a abertura deixa de 
ser considerada (embora não deixe de sê-lo também) como um 
atributo existencial-ontológico do ser-o-aí humano e passa a 
ser referida ao Ser, entendida como clareira do Ser, abertura, um 
âmbito no qual os entes são desvelados para e pelo homem, para 
trato e cuidado, inclusive o próprio homem, para si mesmo. 
O próprio Ser é simbolizado pela clareira que desvela ao ho­
mem os entes em sua essência, de modo que a essência do 
homem (como Dasein) não se define pelo gênero próximo e 
a diferença específica - como animal racional -, mas como o 
estar-aí que corresponde à abertura do Ser. 
É nesse sentido que a essência do homem é apreendida na 
correspondência com a verdade (desvelamento) do Ser. Desse 
3 Idem, Zollikoner Seminare, pp. 156 s. (tradução do autor). 
89 
modo, o Ser, os homens e os entes intramundanos formam um 
circuito hermenêutico, no qual abertura e fechamento, doação 
e subtração são as marcas dessa mútua recorrência. "O pensar 
consuma a relação do Ser com a essência do homem. O pen­
sar não produz nem efetua essa relação. Ele apenas a oferece 
ao ser, como aquilo que a ele próprio foi confiado pelo Ser. 
Essa oferta consiste no fato de, no pensar, o ser ter acesso à 
linguagem."4 É assim que Heidegger concebe a dignidade da 
condição humana. 
Afirmar que a substância do homem é sua existência sig­
nifica que "o modo como o homem se presenta em sua própria 
essência ao Ser é a ec-stática in-sistência na verdade do Ser": 
Através dessa determinação essencial do homem, as interpretações 
humanísticas do homem como animal rationale, como "pessoa", 
como ser espiritual-anímico-corporal, não são declaradas falsas , 
nem rejeitadas. Ao contrário, o único pensamento que se quer 
impor é que as mais altas determinações humanísticas da essência 
do homem ainda não experimentaram a dignidade propriamente 
dita do homem. Nesta medida, o pensar em Ser e tempo é contra 
o humanismo. 5 
Essa oposição não significa tomar partido pelo irracio­
nal, pelo inumano ou pela desumanidade. O humanismo é 
confrontado porque não situa a humanitas em uma posição 
4 Idem, "Sobre o 'humanismo'", p. 347; citação ligeiramente modificada. 
5 Idem, ibidem, pp. 355 s. 
90 
suficientemente elevada. A dignidade humana não se deve à 
sua condição de "sujeito", deres cogitans (substância pensante) 
ou consciência transcendental. Ao contrário, essa dignidade 
consiste em ser "jogado" na clareira do Ser, para que, ec-sistindo, 
vele pela verdade do Ser, de forma que, no logos humano, o ente 
se manifeste como o ente em sua essência. Heidegger se refere, 
com esses termos, à acepção latina de ex-sistere: manter-se, pos­
tar-se, persistir em uma dimensão de abertura, exterioridade. 
A temporalidade que transcende a ex-sistência do ser-o-aí, 
no sentido de que não se limita a ela, é a temporaneidade origi­
nária do Ser. Esse tempo do Ser assume a forma do acontecer 
(geschehen, Geschehnis); do acontecimento apropriador (Ereignis) 
que é também destinação. A palavra adequada para essa tem­
poralidade destinamental é história (Geschichte). 
PENSAR A HISTÓRIA DA VERDADE DO SER 
"História da verdade do Ser" é uma expressão que se aplica 
com tanto acerto ao Heidegger de Tempo e Ser corno analítica 
existencial ou ontologia fundamental aplicam-se a Ser e tempo. 
Convém atentar, porém, que a palavra "história" traduz tanto 
Historie, derivação germanizada do latim, quanto Geschichte- do 
verbo geschehen, acontecer, que remete aos aparentados Schicht 
(camada, extrato) e Schickung (envio, destinamento). 
Historie é a história como disciplina científica, como his­
toriografia - registro cronológico objetivo de séries de acon­
tecimentos, ordenados pelas suas circunstâncias, condições 
91 
determinantes , causas e consequências de ordens variadas 
(econômicas, políticas, sociais e culturais, por exemplo). 
Geschchite designa o acontecer adventício, os acontecimen­
tos singulares que impregnama configuração e determinam o 
sentido de uma era do mundo. Com apoio no termo Geschick 
(o que é enviado, destinado, concluído com êxito e propriedade), 
Heidegger denomina tais eventos destinação ou acontecimento des­
tinamental, que os franceses traduzem com o termo événementiel: 
o que ocorre e tem importância para os homens. 
Ele tem em mente aqui as acepções de destinamento como 
envio, remessa, nelas incluindo o destino (Schicksal) como algo 
que nos é remetido, enviado. Assim, história, como Geschichte, 
remete tanto _a acontecimento, destinação, quanto ao conceito 
de Ereignis, que traduzimos como acon_tecimento apropriador, que 
confere um sentido próprio a uma era do mundo, imprime 
a ela a marca de sua figura. O signo desse acontecer não é o 
tempo cronológico dos relógios e calendários, nem é a fini­
tude própria à existência do ser-o-aí, mas um tempo ao qual 
Heidegger denomina temporaneidade do Ser. É nela que o Ser se 
dá e se mostra no horizonte da história, sua verdade (alétheia) 
vige como acontecimento apropriador. 
A palavra Ereignis remete a um extrato profundo da língua 
alemã. Deriva do gótico áugan e do médio alto alemão 6 ougen 
(auge, Auge), de onde provêm ereugen, er-iiugen, er-blicken, im Blicken 
zu sic~ rufen, an-eignen (trazer à vista, apropriar-se). Para manter 
6 Mittelhochdeutsch: médio alto alemão, ou seja, o idioma alemão não diale­
tal (Hochdeutsch) entre o período antigo e
0
contemporâneo de sua história. 
92 
essa ressonância, traduz-se Ereignis por acontecimento apropria­
dor, designando um advento que vinca uma época da história, 
confere a ela uma propriedade essencial (Eigenschaft) e um sen­
tido para o modo como os entes, em sua totalidade, existem no 
mundo. O acontecimento apropriador confere sentido a uma era 
do mundo (Weltgeschick) pensada como um destinamento, um 
desocultamento da essência dos entes em sua verdade. É nessa 
acepção que Heidegger interpreta a metafísica como história do 
Ser ou, antes, como história do esquecimento da verdade do Ser.7 
Desde Platão, por exemplo, a precedência da ideia (essência 
inteligível) sobre os entes sensíveis traz consigo, na forma do 
eidos, o ti estin (o que é) em lugar do Ser. De modo que, antes de 
tudo, Ser é Ser-algo (Was-sein). Ser como Ser-algo (a idea como 
ontós ón) proporciona aos entes mais espaço que ao próprio 
Ser. "O privilégio do Ser-algo traz consigo a precedência do 
próprio ente a cada vez naquilo que ele é. A precedência 
do ente fixa o Ser como o koinón (liga, coligação, comunhão) a 
partir do én (em). Está decidido o caráter distintivo da metafísica. 
O Uno como a unidade unificadora torna-se determinante para 
a destinação posterior do ser."8 
Na filosofia moderna, a verdade do Ser dos entes passa se 
identificar como a certeza da representação, de modo que o 
hypokeimenon (substrato) se transforma em subjectum (sujeito), 
7 Heidegger, M. "Die Metaphysik ais Geschichte des Seins". ln : Nietzsche, 
pp. 399-457. 
8 Idem, "Entwürfe zur Geschichte des Seins ais Metaphysik". ln: Nietzsche, 
pp. 458-80 (tradução do autor). 
Q, 
-1 
e a verdade, de correspondência entre o intelecto e as coisas, 
torna-se a clareza e a distinção das percepções. A representação 
é a unidade unificadora dos entes em sua verdade. Descartes é o 
pensador que preconiza a transformação metafísica na essência 
da verdade, cabendo a Kant a reconstrução da ontologia em 
seu programa de filosofia transcendental. 
Leibniz, no caminho entre Descartes e Kant, ao conceber 
o Ser dos entes e.orno mônada, pensada como perceptio (pensa­
mento) e apetitus (vontade), prepara a transição para o conceito 
de absoluto em Schelling, Hegel e, finalmente, a identificação 
da vontade de poder em Nietzsche como essência do mundo. 
A metafísica, como história do esquecimento da pergunta 
pelo sentido do Ser, ingressa com Nietzsche na era de seu 
acabamento: a vontade de poder t9rna-se essência metafísica 
do mundo, e o eterno retorno é o modo de existência que lhe 
é próprio. 
A relevância atribuída por Heidegger à expressão colo­
quial "esgibt" ("existe", "há"; literalmente: "isso dá", "isso doa") 
explicita-se nesse contexto. Na linguagem cotidiana, é corrente 
a associação entre existir/ acontecer e dar/ doar. O pronome 
impessoal "es" remete ao Ser como sujeito da ação verbal: isso 
(es) dá (gibt); isso é o Ser; aquilo que ele doa é ele mesmo, na 
medida em que ele dá existência. Esse dar é, portanto, um dar­
-se do Ser, um abrir-se possibilitador do desvelamento dos 
e11tes em sua verdade, no vigor da essência que lhes é própria. 
O Ser é abertura e vazio. Os entes são, existem (es gibt Seiendes) , 
são ao modo de envios do Ser, sempre no horizonte tempora_l 
de um acontecimento apropriador, como a essência metafísica 
94 
~ ....... 
da técnica moderna, por exemplo. Um aberto, uma clareira, na 
qual os entes vêm à luz em sua verdade. A técnica é, essencial­
mente, um modo de trazer à luz , de produzir; e sua origem, 
essência e destinação estão ligadas a producere, hervorbringen, 
poiésis, que são camadas ou extratos na temporalidade em que 
se inscreve a história da verdade do Ser. 
O que diz Heidegger, finalmente, "sobre" o Ser? Na medida em que 
Ereignis (acontecimento apropriador) é, desde 1936, sua "palavra­
-chave", essa pergunta tem de ser precisada: como compreende 
ele o acontecimento apropriador? Heidegger destaca, com toda 
clareza, que, como palavra-chave de seu pensamento, Ereignis não 
compreende mais aquilo que se costuma denominar acontecer 
(acontecimento, diz Heidegger), evento e termos que tais. Ele apon­
ta para o que essa palavra originalmente significa: er-iiugen significa 
mirar, trazer a si diante da vista, apropriar-se. Depreende-se de 
seus ulteriores esclarecimentos que ele interpreta acontecimento 
apropriador apenas a partir da palavra eigen (próprio). Mais adiante, 
ele compreende acontecimento apropriador unicamente como 
singulare tantum (singular como tal).9 
Esse é o sentido das imagens poéticas às quais Heidegger 
liga tais noções: linguagem (logos), em sua determinação (Be­
stimmung), é desvelamento. Metaforicamente, ela pode figurar 
como a clareira em que se mostra a essência dos entes, que se 
tornam fenômenos para o ser-o-aí, seu curador. A linguagem é, 
9 Puntel, L. Sein und Gott, p. 85 (tradução do autor). 
95 
l 
_. 
portanto, a "morada do Ser", e o homem é o ente que habita 
po(i)eticamente essa casa. 
Ex-sistir é corresponder linguageiramente a esse chamamento 
do Ser, ao descerrar-se do Ser aos entes em seu desocultar. O Ser 
acontece em seus adventos, mas não se confunde com eles. Para 
que haja um desvelar- uma alétheia - é primeiro necessário um 
estar oculto, não há desvelo sem velamento anterior. Nada é 
doado que antes não se tenha subtraído. Nesse sentido, há que se 
pensar uma interpenetração entre Ser e Nada - Ser é nada de ente, 
nenhuma entidade da qual se possa predicar uma propriedade 
qualquer; é antes um vazio, o imponderável a partir do qual se dá 
mesmo o gesto mais fugaz. O Ser desvela os entes no modo de 
ser que é próprio deles, ao mesmo tempo que se subtrai, furta-se 
tanto ao desvelamento quanto ao q9e neste é desvelado. 
PENSAR A ESSÊNCIA DA TÉCNICA 
A técnica moderna é desvelamento e produção. Trata-se de um 
trazer à luz, um pôr e dispor, um tornar manifesto, que tem a 
"forma do desafio (Herausforderung), que estabelece para a natu­
reza a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída 
e armazenada como tal".10 
Como modo da poiesis, a técnica moderna dispõe os entes 
corno objetos em um processo reiterativo formado por extra­
ção, transformação, preparáção, armazenamento, distribuição, 
10 Heidegger, M. A questão da técnica, p. 57. 
96 
=V" 
comutação, consumo, desgaste, em uma circularidade sem 
começo nem fim: 
O ar é posto para o fornecimento de nitrogênio, o solo para o for­
necimento de minérios, ominério, por exemplo, para a produção 
de energia atômica, que pode ser associada ao emprego pacífico 
ou à destruição ... A central hidrelétrica está posta no rio Reno. Ela 
põe o Reno em função da pressão de suas águas, fazendo com que, 
desse modo, girem as turbinas, cujo girar faz com que funcionem as 
máquinas que geram energia elétrica para a qual estão preparadas as 
centrais interurbanas e sua rede de energia demandada para a trans­
missão de energia. No âmbito das consequências interconectadas da 
demanda de energia elétrica, o rio Reno também aparece como algo 
demandado. A central elétrica não está construída no rio Reno, como 
a antiga ponte de madeira, que há séculos une uma margem à outra. 
Antes e pelo contrário, é o rio que está construído na hidrelétrica. 
O desocultar que domina a técnica moderna tem o caráter de requi­
sitar o ente no sentido do desafio. Este acontece pelo fato de a energia 
oculta na natureza ser explorada, do explorado ser transformado, 
do transformado ser armazenado, do armazenado ser novamente 
distribuído e do distribuído ser renovadamente comutado. Explorar, 
transformar, armazenar e distribuir são modos do desocultar_ I I 
A essência da técnica mostra-se na instalação dos entes 
como variáveis de cálculo no processo circular acima descrito. 
A esse conjunto Heidegger denomina de Gestell - armação ou 
11 Idem, ibidem, pp. 57-9; citação ligeiramente modificada. 
Q7 
1 
1 
1 
--" 
dispositivo. A essência da técnica moderna consiste na subsis­
tência assegurada das condições de reiteração permanente do 
dispositivo de produção, armazenamento, distribuição e desgas­
te. "A palavra 'subsistente-estoque' (Bestand) ingressa agora na 
posição de um título. Designa nada menos do que o modo como 
vige tudo aquilo que é tocado pelo desocultar desafiador."12 
A novidade da técnica moderna consiste em um desafiar 
que instala a natureza na condição de manancial de energia 
suscetível de ser extraída, armazenada e distribuída, de modo 
que o essencial não é o resultado objetivo determinado desse 
processo, mas antes a dinâmica e a lógica imanentes do próprio 
processo de conversão da natureza em estoque armazenável e 
permanentemente comutável. A configuração atual de nossas 
sociedades depende essencialmente da atualização do potencial 
tecnológico. Este constitui a mais determinante força produtiva 
na sociedade. A verdade da metafísica moderna é o domínio 
planetário da cibernética, a exploração tecnológica das galáxias. 
DESTINAMENTO E PERIGO 
Em sua acepção originária, a técnica é uma modalidade de pro­
ducere, de hervorbringen - de trazer à luz, desvelar, desocultar-, 
acepções que não correspondem às noções correntes da técnica 
como meio para um fim (concepção instrumental) ou como 
incremento do poder-fazer humano (concepção antropológica): 
12 Idem, Die Frage nach der Technik, p. 16 (tradução do autor). 
98 
iV 
Se, portanto, o homem, pesquisando e observando, persegue a 
natureza como uma região de seu representar, então ele mesmo 
já é convocado por um modo de desocultação que o desafia a ir 
ao encontro da natureza como um objeto de pesquisa, até que 
também o objeto desapareça na condição de estoque subsisten­
te, desprovido de objeto. Assim, a técnica moderna, enquanto 
desabrigar que requer, não é um mero fazer humano. Por isso, 
devemos tomar também, tal como este se mostra, aquele desa­
fiar que dispõe o homem para requerer o real enquanto estoque 
subsistente. Aquele desafiar reúne o homem no requerer. Esse 
reunir concentra o homem para requerer o real enquanto esto­
que subsistente[ ... ]. Denominamos, agora, armação (Ge-stell) 
aquela convocação desafiadora, que reúne também o homem 
no requerer como estoque subsistente, aquilo que se descobre. 13 
Para Heidegger, a técnica não é meio, nem instrumento 
que o homem coloca a seu serviço. Pelo contrário, o próprio 
homem moderno é determinado e requisitado pela técnica, 
pelo modo de desabrigar que constitui a essência desta. Ele 
é convocado para o desafiar que é característico da técni­
ca - desafiar no sentido de explorar a natureza, utilizando­
-a e transformando-a como reserva de energia estocável 
e permutável. 
A respeito da essência da técnica, observa Heidegger, 
"muito se escreve, mas pouco se pensa": 
13 Idem, ibidem, pp. 18 s. (tradução do autor). 
00 
1 
A técnica é, em sua essência, um destino ontológico-historial da ver­
dade do Ser, que resta no esquecimento. A técnica não remonta, na 
verdade, apenas com seu nome, até a tékne dos gregos, mas ela se origina 
ontológico-historialmente da tékne como um modo do aletheúein, isto é, 
do tornar manifesto o ente. Como uma forma da verdade, a técnica se 
funda na história da metafísica. Esta é uma fase privilegiada da história 
do Ser e a única da qual, até agora, podemos ter uma visão de conjunto.14 
Ora, se história da metafísica é também a do esquecimento 
do Ser e de sua substituição pelo ente, só um pensamento que 
ultrapassou a metafísica pode abrir-se para a rememoração do 
sentido do Ser e, portanto, pensar originariamente a essência 
da técnica como uma destinação (Geschick) na história da verda­
de do Ser. O humanismo, em qualquer de suas modalidades, é 
justamente incapaz disso, pois ele é essencialmente metafísico 
e, portanto, só compreende a técnica em chave antropológica 
e instrumental, ou, dito de forma moderna, como vontade de 
poder, como potencialização da capacidade humana de produzir. 
Consuma-se com Nietzsche o acabamento da metafísica; 
esta se realiza historicamente como instalação de todos os entes 
nos circuitos tecnológicos de produção, consumo e desgaste: 
"Agricultura é agora indústria alimentar motorizada; em essên­
cia, o mesmo que a fabricação de cadáveres em câmaras de gás 
[ ... ] o mesmo que a fabricação de bombas de hidrogênio". 15 
14 Idem, "Sobre o 'humanismo"', p. 361; citação ligeiramente modificada. 
15 Apud Maurer, R. O que existe de propriamente escandaloso na .filosofia da técnica 
de Heidegger, p. 406 . 
100 
Em condições tais, o humanismo não seria uma alternativa 
para a metafísica, na medida em que concebe a natureza huma­
na a partir das categorias metafísicas de substância e acidente, 
gênero próximo (animal) e diferença específica (racional). Daí 
decorre que, para Heidegger, "todo humanismo ou funda-se em 
uma metafísica, ou ele mesmo se postula como fundamento 
de uma metafísica": 
Toda determinação da essência do homem que já pressupõe a inter­
pretação do ente, sem a questão da verdade do Ser, e o faz sabendo 
ou não sabendo, é metafísica. Por isso, mostra-se, e isto no tocante 
ao modo como é determinada a essência do homem, o elemento 
mais próprio de toda metafísica, no fato de ser "humanística". De 
acordo com isso, qualquer humanismo permanece metafísico. 16 
Ora, contando com seus próprios recursos categoriais, 
nenhuma metafísica, seja ela idealista, cristã, ateísta ou mate­
rialista, pode "atingir e reunir, através do pensar, o que agora 
é do Ser, em um sentido pleno".17 E assim, a despeito de suas 
"boas intenções", o humanismo contemporâneo dá seguimento 
à completa objetivação da natureza, transmudando a essência e a 
destinação do homem que, de "pastor do Ser", preocupado com 
o cuidado dos entes, tornou-se a "mais importante matéria-pri­
ma" a ser consumida no desgaste (Vernutzung) universal do ente: 
16 Heidegger, M. "Sobre o 'humanismo"', p. 351; citação ligeiramente mo­
dificada. 
17 Idem, ibidem. 
101 
Quando tiver êxito o domínio da energia atômica, e este êxi­
to ocorrerá, então se iniciará um desenvolvimento totalmente 
novo do mundo técnico. O que conhecemos hoje como técnica 
cinematográfica e televisiva, como técnica de transportes, das 
comunicações, como técnica médica e de nutrição, representa, 
supostamente, apenas um estágio inicial e grosseiro. Ninguém 
pode saber as reviravoltas que estão por vir. Enquanto isso, odesenvolvimento da técnica se dará em um curso cada vez mais 
rápido e não poderá ser detido em parte alguma.18 
O credo antropocêntrico e humanista é uma ilusão ingê­
nua e perigosa, pois concebe a tecnologia como instrumento 
à disposição e controle da racionalidade humana. Porém: 
Nenhum indivíduo, nenhum grupo humano, nenhuma comissão 
de relevantes estadistas, pesquisadores ou técnicos, nenhuma con­
ferência de dirigentes da economia e da indústria consegue frear 
ou direcionar o curso histórico da época atômica. Tudo se passa 
como se o homem de hoje, em face do pensamento meramente 
calculatório, renunciasse a inserir o pensamento meditativo em um 
papel determinante. 19 
Heidegger confia na potência silenciosa da meditação. 
Embora não tenha a mesma eficácia instrumental do pen­
sar calculatório, a meditação preocupada não deixa de ser 
18 Idem, Gelassenheit, p. 19 (tradução do autor). 
19 Idem, ibidem, pp. 20 s. 
102 
determinante, nem se esgota em reverência ao fato; a palavra 
serenidade não é sinônimo de resignação. Com ela, o filósofo 
pensa um agir amadurecido, liberado da insânia compulsiva 
do ativismo, do falatório vazio e pomposo vigente na esfera 
pública contemporânea: 
Não é por ele irradiar um efeito ou por ser aplicado que o pensar se 
transforma em ação. O pensar age enquanto se exerce como pen­
sar. Este agir é provavelmente o mais singelo e, ao mesmo tempo, 
o mais elevado, porque interessa à relação do Ser com o homem. 
Toda eficácia, porém, funda-se no Ser e se espraia sobre o ente. 
O pensar, pelo contrário, deixa-se requisitar pelo Ser para dizer a 
verdade do Ser. O pensar consuma este deixar. 20 
Com a hegemonia do sentido instrumental e antropocên­
trico da técnica, o progresso tecnológico compulsivo subverte 
a lógica da ética humanista. As pesquisas biogenéticas instru­
mentalizam a base somática da personalidade, tornando-a 
disponível para fins incompatíveis com o ethos que, até aqui, 
constituiria o espaço de habitação do homem no mundo, o 
horizonte de sua autocompreensão. 
Fantasias estéticas narcisistas sobre o consumo mercantil 
do homem seriam uma réplica cínica do desgaste (Vernutzung) 
do "material humano". Como afirma Heidegger, em um tempo 
em que a tecnologia, cuja essência é arm~ão (Ge-stell), exerce um 
domínio planetário, aí também espreita um perigo (Ge-fahr). Mas 
20 Idem, "Sobre o 'humanismo"', p. 347; citação ligeiramente modificada. 
101 
• 
é justamente à sombra do perigo que urge retomar as palavras 
dos poetas e pensadores, da arte e da filosofia. Nesse caso espe­
cífico, a poesia de Holderlin: "Lá onde há perigo, cresce também 
aquilo que salva" ("Wo aber Gefahr ist, wiichst das Rettende auch"). 21 
À dicção do poeta, Heidegger acrescenta uma palavra de 
filósofo: serenidade. Não um lamento, uma demonização da 
tecnologia. Ao contrário, ele prenuncia uma relação pensante 
com o segredo até hoje velado na essência da técnica. A palavra 
de Heidegger diz: serenidade para com as coisas, cuidado preo­
cupado com o mundo, deixar ser, abertura para o segredo -
ethos de meditação sobre os destinamentos do Ser, nascidos de 
um pensamento que é, em si mesmo, ação: 
Se crescem em nós a serenidade para com as coisas e a abertura 
para o segredo, então nos é lícito chegar a um caminho que conduz 
a um novo fundamento (Grund) e solo. Nesse solo, o criar de obras 
que permanecem pode fincar novas raízes. 22 
21 Idem, Die Frage nach derTechnik, p. 28 (tradução do autor). 
22 Idem, Gelassenheit, p. 26 (tradução do· autor). 
104 
1 
_I. 
~ 
Como ler Heidegger 
Este capítulo tem o propósito de apresentar um conjunto de 
sugestões a respeito de como ler Heidegger e, para tanto, ofere­
cer algumas indicações tanto práticas como teóricas. De início, 
é imprescindível o contato direto com os próprios livros do 
autor, se possível em seu idioma original, ou então em traduções 
histórico-crítico-filológicas credenciadas, que existem em diver­
sos idiomas, inclusive em português (vide a bibliografia ao final). 
A despeito de todos os esforços que se possa fazer p~ra 
facilitar o acesso à obra de Heidegger, fornecendo ao leitor iwli­
cações e comentários, mesmo a tentativa mais bem-sucedida 
a esse respeito não o dispensa do empenho pessoal na leitura 
dos textos principais, com a dedicação própria de cada pessoa 
singular que se dispõe a frequentá-los. 
A trajetória pode ser feita tanto do segundo para o pri­
meiro Heidegger, como vice-versa, sem contar que cada passo 
adiante, quando verdadeiramente realizado, conduzirá o cami­
nhante a uma série de retomar 
é ele próprio ético, no sentido não prescritivo de modo de ser 
ou de uma correspondência originária entre a essência lingua­
geira do homem e a verdade do Ser. 
Os desenvolvimentos mais recentes das tecnociências, 
que subvertem nossa autocompreensão como seres no mun­
do, ainda não foram conduzidos à consciência de sua própria 
historicidade. Uma ética efetivamente concernida por eles tem 
de assumir como tarefa trazer ao plano do pensamento uma 
apreensão adequada da essência da tecnologia. Nem a conde­
nação reacionária e maniqueísta da tecnologia, nem o ingênuo 
deslumbramento com as virtualidades do trans-humanismo, 
do pós-humanismo ou do sobre-humanismo permitem um 
discernimento essencial da técnica, pois não brotam de uma 
meditação sobre o homem como ser pensante, menos ainda 
de um compromisso com seu destino. 
O horizonte desse compromisso só pode ser o pensamento 
- e só pode ser divisado a partir de uma relação pensante entre 
o ser do homem e a essência da técnica. É um pensamento 
irredutível à divisão compartimentada da racionalidade, um 
pensar refratário ao ativismo político, ao falatório estéril dos 
saberes insulares, e que resgata as ligações entre o conhecer, o 
sentir, o imaginar, o lembrar, o cuidar e o esperar. 
Trata-se de um exercício permanente de reflexão, de uma 
postura de recolhimento meditativo, a ser carac~ada pelos 
seguintes elementos, que marcam a distância da filosofia de Hei­
degger dos ativismos t~órico e prático dominantes nas ciências 
e na filosofia atuais: 
12 
1 > A sobriedade, como resgate prudencial da lucidez, alcan­
çada a partir de um exercício permanente de autorreflexão 
e autocrítica, zelosa das circunstâncias e condições nas 
quais se desenrola a vida dos seres intramundanos - com 
os quais o homem, como ser no mundo, mantém-se per­
manentemente em relação. 
2 , A liberdade em relação às ilusões de onipotência em 
que estamos enredados, a qual só pode ser alcançada com 
a retomada da modéstia em relação à nossa capacidade de 
prever as consequências de ações possibilitadas por nosso 
saber-poder - o que implica refletir sobre nossa posição 
subjetiva nesse processo: se seremos agentes ou "agidos" 
na dinâmica da configuração técnica do mundo. 
3 , A capacidade de renunciar à tentação do uso compul­
sivo do poder tecnológico e a abertura para dimensões de 
responsabilidade que ultrapassam o âmbito das relações 
inter-humanas - o que só pode ser entrevisto a partir de uma 
retomada do pensar como correspondência à verdade do Ser. 
Enfrentar esses desafios, projetados para além dos humanis­
mos tradicionais, pode ser de grande utilidade para a colocação 
do problema filosófico que, mais do que nunca, nos concerne: 
afinal, o que estamos fazendo de nós mesmos, em um tempo 
em que só as mutações são permanentes? 
Por causa dessas tarefas, Heidegger é para nós um compa­
nheiro indispensável de viagem no atravessamento do século XXI. 
13 
T 
O pensador do fim 
da metafísica 
,__ 
O TRAJETO BIOGRÁFICO 
Martin Heidegger nasceu em Messkirch, na Alemanha, em 
26 de setembro de 1889. Iniciou o noviciado na Companhia 
de Jesus, da qual se desligou em 1909, em virtude de proble­
mas de saúde. Estudou teologia e filosofia na Universidade de 
Freiburg, em preparação para o sacerdócio católico. Em 1913, 
abandonou a teologia e passou a se dedicar apenas à filosofia. 
No mesmo ano, doutorou-se com a tese A doutrina do juízo no 
psicologismo e, dois anos mais tarde, fez também em Freiburg 
sua livre-docência, com o trabalho A doutrina das categorias e da 
significação em Duns Scoto. 
Em 1916, com a chegada de Edmund Husserl (1859-1938) à 
universidade, desenvolveu-se um fértil diálogo entre o catedrá­
tico e o promissor Heidegger. Este logo assumiria o cargo de 
assistente de Husserl. A convivência despertou o jovem profes­
sor para a fenomenologia, que será determinante aos rumos ini­
ciais e futuros do seu pensamento. Com ela, Heidegger também 
aguçou a consciência da originalidade de seu próprio filosofar, 
como reconheceu em Meu caminho para a fenomenologia. 
15 
Heidegger trabalhou ao lado de Husserl entre 1918 e 1923, 
quando se tornou catedrático de filosofia da Universidade de 
Marburg. Em 1927, publicou Ser e tempo. 
Nessa obra, desenvolve sua própria concepção de fenome­
nologia, que deixa de consistir em um método de investigação 
filosófico e se torna um modo de chegar às estruturas elementares 
originárias que suportam a existência humana, com todas as 
suas disposições, faculdades e funções. 
Ser e tempo foi um acontecimento ambíguo no relacionamento 
entre Heidegger e Husserl. O livro, de um lado, demonstra a dívida 
do jovem filósofo para com o seu mestre, quanto à abertura para 
a fenomenologia; de outro, institui um limiar de separação radi­
cal entre o entendimento de fenomenologia dos dois pensadores. 
Como resultado de seu crescente prestígio acadêmico, Hei­
degger foi convidado, em 1928,"a suceder Husserl na cátedra de 
filosofia em Freiburg. Ali, entre 1929 e 1930, ministrou preleções 
sobre "os conceitos fundamentais da metafísica", que seriam 
posteriormente publicadas no livro do mesmo nome. 1 
Em 1933, ligou-se oficialmente ao Partido Nacional Socialista 
dos Trabalhadores Alemães (NSDA~), de Adolf Hitler. Nos basti­
dores da política cultural nazista, teve que enfrentar a hostilidade 
de personalidades duvidosas tanto do ponto de vista intelectual 
quanto ético, como a do pedagogo E. Krieck (1882-1947), seu ini­
migo declarado, além da concorrência de filósofos, ~orno Alfred 
Baumler (1887-1968)-cuja interpretação da obra de Nietzsche foi 
sempre apreciada por Heidegger- e Alfred Rosenberg (1893-1946), 
1 Cf. Heidegger, M. Os conceitos fondamentais da metafisica. 
16 
autor de O mito do século XX e conselheiro de Hitler, condenado 
à morte pelo Tribunal de Nuremberg, em 1946. Ainda em 1933, 
Heidegger foi eleito reitor da Universidade de Freiburg, engajan­
do-se no projeto de reforma da universidade alemã, mediante a 
introdução ali do princípio do líder (Führerprinzip). Esse princípio 
filosófico, cuja origem remonta a Hermann Alexander Keyser­
ling (1880-1946), institui a autoridade do líder (Führer) sobre a lei 
e a ordem constitucional, uma vez que na pessoa do dirigente 
supremo se unificaria, totalizaria e organizaria a vontade geral, 
soberana e identitária de um povo. Associado à doutrina nazista 
da autoridade, tal princípio passou a orientar as diretrizes da 
política nazista para todos os setores da sociedade. 
O envolvimento político de Heidegger se reflete no Discurso 
da reitoria,2 proferido na solenidade de sua posse. Nele, o filósofo 
coloca em estreita relação a missão da universidade, da ciência e da 
cultura e o destino político e histórico do povo alemão. Em abril 
de 1934, Heidegger demitiu-se do cargo de reitor, em virtude de 
desentendimentos com colegas acadêmicos e divergências com 
as autoridades governamentais. Já nessa época, nota-se em seus 
escritos o afastamento crítico do nazismo, como em Superação da 
metafisica, coletânea de textos redigidos entre 1934 e 1946. 
Entre 1936 e 1940, fez preleções sobre Nietzsche, nas quais 
amadureceu sua crítica da metafísica e, em particular, aprofun­
dou sua reflexão sobre o niilismo europeu. Nesse período, a ati­
vidade acadêmica de Heidegger tornou-se objeto de vigilância 
por parte da polícia secreta nazista. 
2 Idem, Discurso da reitoria. 
17 
Os estudos intensivos sobre Nietzsche e o enfrentamento 
(Auseinandersetzung 3) com o escritor, filósofo e entomologista 
alemão Ernst Jünger (1895-1998) a respeito do niilismo, suas 
causas, evolução, consequências e a possibilidade de superá­
-lo, constituíram um fator decisivo para a viravolta (Kehre) - o 
momento de viragem na obra de Heidegger, em que seu pensa­
mento experimenta uma mudança de perspectiva, abandonan­
do a analítica da existência de Ser e tempo para assumirde tal modo que medi-
"t 
1 O texto foi publicado como Was ist das? Die Philosophie. Em português, com 
tradução de Ernildo Stein, "Que é isto - a filosofia?" saiu pela coleção Os 
Pensadores. 
,no 
J 
_._ 
temos sobre a essência da filosofia. Procedendo daquela maneira 
nos enriquecemos com conhecimentos muito mais variados e 
sólidos e até mais úteis sobre as formas como a filosofia foi repre­
sentada no curso de sua história. Mas por essa via nunca chega­
remos a uma resposta autêntica, isto é, legítima, para a questão: 
que é isto - a filosofia? 2 
Só podemos chegar a uma resposta legítima se e quan­
do nós mesmos filosofamos; e só o fazemos em conversa 
(im Gespriich) com os filósofos fundamentais, pela retomada 
e rememoração das palavras essenciais que exprimem seu 
pensamento. Esse é o sentido da conversa, do diálogo sem­
pre tenso de Heidegger com a tradição da filosofia ocidental, 
com Platão e Aristóteles, com os .medievais e os moder­
nos, com os contemporâneos e, entre eles, especialmente 
Leibniz, Kant, Hegel e Nietzsche. 
Não faz nenhum sentido insistir na discussão sobre se a 
interpretação heideggeriana é fiel à letra de Nietzsche, se ela 
é filologicamente ou histórico-filosoficamente correta, ou 
se produz uma violentação hermenêutica, omissão, distor­
ção ou ainda equívocos em relação aos textos de Nietzsche. 
Importante, para Heidegger, é pensar com Nietzsche, entrar em 
conversa com ele e, nesse espaço de diálogo, buscar uma posi­
ção hermenêutica na qual a explicação e a exposição seriam 
reciprocamente elaboradas, de modo a não mais se distinguir 
inequivocamente, ao mesmo tempo, e em toda parte, aquilo 
2 Heidegger, M. "Que é isto - a filosofia?", p. 217. 
110 
que foi extraído das palavras de Nietzsche e aquilo que foi a elas 
acrescentado: "Com efeito, toda interpretação tem de poder 
não apenas retirar a coisa do texto; ela tem também - sem se 
prevalecer disso - de poder doar a ele, inadvertidamente, algo 
próprio de sua própria coisa".3 
Essa estratégia hermenêutica pertence, pois, essencialmen­
te à maneira heideggeriana de fazer filosofia, dialogando com 
o logos explícito de todo pensador essencial. 
Heidegger, respondendo a certas acusações de infidelidade 
ao texto de Nietzsche, esclarece o horizonte de interesse em 
que se situa para uma fecunda interlocução com a filosofia 
nietzschiana: 
A crítica pode considerar incorretas e "violentas" muitas coisas em 
minhas interpretações; entretanto, enquanto não houver nenhuma 
confrontação (Auseinandersetzung) positiva e de princípios com 
meus escritos a respeito da determinação da metafísica, que é de 
onde parte minha exposição de Nietzsche, a crítica vai se movi­
mentar em um plano insuficiente. Para o historiador, presume-se, 
as asserções de Aristóteles sobre Platão e os pensadores pré-socrá­
ticos são, em geral, falsas e violentas. 4 
Tendo isso e~ vista, Heidegger desenvolve este insight em 
Caminhos de floresta: 
3 Idem, Nietzsche, pp. 262 s. (tradução do autor). 
4 Apud Müller-Lauter, W. "Das Willesesen und der Übermensch", p. 74, nota 
35 (tradução do autor). 
111 
Todo comentário precisa não só captar o assunto do texto 
comentado; tem também de, sem chamar atenção, e a partir do 
seu assunto, acrescentar-lhe imperceptivelmente, a partir do seu 
tema, algo de próprio. Esse acréscimo é aquilo que o leigo sem­
pre sente, de acordo com aquilo que tem como conteúdo do 
texto, como uma interpretação excessiva, que ele, no uso de 
seu direito, censura como arbítrio. Contudo, um comentador 
genuíno nunca compreende o texto melhor do que o seu autor 
o compreendeu, mas sim de outro modo. Só que esse outro 
modo tem de ser de tal maneira que encontre o mesmo que o 
texto comentado reflete. 5 
É, portanto, em vista desse "mesmo" que se pode depre­
ender uma diretriz essencial sobre o modo de ler Heidegger. 
Como poderíamos responder, por exemplo, à pergunta "que 
é isto - a filosofia?", em uma conversa filosófica com Heideg­
ger? Como devemos ler o seu texto, em sua própria lingua­
gem, em seu próprio logos? Relembremos que ele responde 
àquela pergunta sobre a essência da filosofia indicando que 
esta só será legítima quando for uma "resposta filosofante", 
que seja ela própria um exercício de filosofia. Para Heideg­
ger, isso só acontece quando nos defrontamos com uma 
res-posta (Ant-wort - literalmente: palavra diante de, perante 
algo ou alguém): 
5 Heidegger, M. "A palavra de Nietzsche, 'Deus morreu"'. ln: Caminhos de flo­
resta, p. 248. 
112 
Quando é que a resposta à questão "que é isto - a filosofia?" é uma 
resposta filosofante? Quando é que nós filosofamos? É manifesto 
que o fazemos apenas quando entramos em diálogo com os filóso­
fos. Disso faz parte discutir com eles sobre aquilo e por intermédio 
daquilo que eles próprios falam. Essa discussão uns com os outros 
sobre aquilo que, sempre de novo, enquanto o mesmo, interessa 
propriamente aos filósofos é o falar, o légein, no sentido do dialé­
gesthai, o falar como diálogo. Uma coisa é estabelecer as opiniões 
dos filósofos e descrevê-Ias. Outra coisa bem diferente é discutir 
com eles aquilo que eles falam, e isto quer dizer aquilo de que eles 
falam. Supondo, portanto, que os filósofos são interpelados pelo 
ser dos entes para que digam o que o ente é, enquanto é um ente, 
então também nosso diálogo com os filósofos deve ser interpelado 
pelo ser do ente. Com nosso pensamento, devemos nós mesmos 
caminhar ao encontro daquilo que a filosofia busca. Nosso falar 
deve co-responder àquilo por que os filósofos são interpelados. Se 
formos bem-sucedidos neste co-responder, então res-pondemos 
em sentido autêntico à pergunta: que é isto - a filosofia?6 
Ou seja, assim como só podemos responder legitimamente 
a essa pergunta filosofando-portanto, entrando no diálogo com 
os grandes pensadores da tradição histórica da filosofia-, tam­
bém não podemos 1~ produtivamente Heidegger permanecendo 
passivos, sem uma confrontação com suas palavras essenciais 
a respeito da metafísica e de sua superação. Com nossa leitura e 
nosso diálogo, devemos não apenas dar conta do assunto tratado, 
6 Idem, Was ist das?- die Philosophie, p. 20 (tradução do autor). 
IH 
mas também, inadvertidamente e a partir do tema da conversa, 
acrescentar-lhe algo de próprio, alguma coisa que provém de 
nossa própria indagação e inquietação. 
Se lemos Heidegger assim, então abandonamos toda pos­
tura servil, para pensar com ele, a partir dele, mesmo contra 
ele - o que significa corresponder à sua interpelação e, assim, 
à interpelação da filosofia e de seus pensadores, cujo legado 
nos foi historicamente transmitido: 
A palavra alemã Antworten (responder) significa propriamente a 
mesma coisa que ent-sprechen (co-responder). A resposta à nossa 
questão não se esgota numa afirmação queres-ponde à questão 
com uma verificação sobre o que se. deve representar quando se 
ouve o conceito "filosofia". A resposta não é uma afirmação que 
replica (n'est pas une réponse), a resposta é muito mais a co-respon­
dência (la correspondance), que corresponde ao ser do ente. Ime­
diatamente, porém, quiséramos saber o que constitui o elemento 
característico da resposta, no sentido da correspondência.7 
Ler Heidegger adequadamente é pensar com Heidegger, 
o que também significa perguntar com Heidegger - o que 
implica, ao mesmo tempo, veneração e rebeldia, pois, para 
ele, "o questionar é a devoção do pensamento".8 
7 Idem, ibidem, pp. 21 7 s. 
8 Idem, A questão da técnica, p. 93. 
114 
~ 1 
1 
r 
Conclusão Em busca de um pensamento porvir 
Na história do Ocidente, o Esclarecimento constituiu um marco 
filosófico, social e político. Nele ganharam expressão as espe­
ranças mais fortes de emancipação humana, cultivadas desde os 
primórdios da racionalidade lógica. Anseios foram depositados 
no lumen natura/is (na luz natural da razão) e nos recursos da 
ciênciae da tecnologia, vistos como capazes de solucionar os 
enigmas do Universo, de garantir o domínio humano sobre as 
forças da natureza e de realizar a justiça e a transparência nas 
relações políticas nas sociedades modernas. 
Para Immanuel Kant, por exemplo, o progresso do conheci­
mento teórico, acompanhado pela apropriação técnico-pragmáti­
ca da natureza, bem como sua utilização em benefício da dimensão 
ético-política de uma humanidade concebida em referência a valo­
res como autonomia, dignidade e justiça, fornecem a chancela para 
uma interpretação da hi.5tória universal como plano de realização 
de um milenarismo filosófico. A história seria a execução de um 
plano oculto da natureza que conduz a um progressivo aperfei­
çoamento moral e político da humanidade: "Vê-se que a filosofia 
também pode ter o seu quiliasmo; mas será um quiliasmo tal que, 
para a sua emergência, a sua ideia pode, embora apenas de longe, 
ser igualmente estimulante, portanto, nada fantasiosa". 1 
1 Kant, I. "Oitava proposição". ln: Ideia de uma história universal com um propósito 
cosmopolita (1784), p. 15. 
117 
A respeito desse milenarismo filosófico, a lição de Karl 
Lõwith, aluno de Heidegger, é ilustrativa: 
O futuro é o verdadeiro ponto nuclear da história, pressuposto que 
a verdade assente no fundamento religioso do Ocidente cristão, 
cuja consciência histórica é determinada pelo motivo escatológico: 
de Isaías até Marx, de Santo Agostinho até Hegel, e de Joaquim até 
Schelling. A significação dessa direção do olhar voltada para um 
fim último, como finis e como télos consiste em que ela proporciona 
um esquema de ordem progressiva e de dotação de sentido que 
pôde superar o antigo temor diante do fatum e da fortuna. 2 
Humanizar a natureza e naturalizar as relações humanas 
em sociedade: o progresso da ciência está atrelado aos supre­
mos interesses da razão, que são de ordem ético-política. 
Se a física nuclear e a química transformaram o homem no 
"senhor dos elementos" - para empregar um termo de Heidegger 
que faz alusão aos progressos da química no início do século 
XX-, os avanços atuais da tecnociência na área da bioquímica 
e da biologia molecular permitem falar _em superação da era 
atômica e na decifração dos mapas genéticos responsáveis pela 
estruturação dos organismos, mesmo superiores. Realizando­
-se a sonhada supremacia humana sobre as demais criaturas 
do Universo, o homem poderia doravante tomar nas próprias 
mãos a planificação e o controle das condições de existência no 
planeta, tornando-se como que um parceiro da criação. 
2 Lowith, K. Weltgeschihte und Heilgeschehen, pp. 125 s. (tradução do autor). 
118 
Contudo, esses sonhos da razão esclarecida também pro­
duziram monstros e nutriram fantasias perigosas, e Heidegger 
foi um dos primeiros a detectá-los em seus perigos. Nesse sen­
tido, mesmo seus ferrenhos opositores político-filosóficos 
Theodor Adorno e Max Horkheimer, na Dialética do esclareci­
mento, expuseram os compromissos espúrios entre a razão 
completamente esclarecida e a barbárie mítica, a dominação 
integral da natureza levada a efeito pela razão instrumental. 
A promessa de livrar o homem do medo e instalá-lo na Terra 
como senhor e possuidor desandou em administração global 
e totalitária da vida. 
O problema pode ser assim enunciado: teríamos alcan­
çado, com o progresso, também o perigoso limiar em que a 
~ 
autodeterminação da razão converte-se em seu contrário, se 
considerada sob o ponto de vista ético? Ao assimilarmos os 
processos naturais a artefatos construídos, não teríamos per­
dido o sentido tradicional de natureza, já que o natural sempre 
foi compreendido como o que cresce por si mesmo (physis), 
diferindo dos produtos do fazer humano (téchne)? Seria esse o 
limiar de uma era pós-humanista, que rompe a aliança entre o 
progresso da ciência e a elevação ético-moral do gênero huma­
no, aliança que foi um dos apanágios do Esclarecimento, de 
Bacon e Descartes, de Diderot e Kant? 
Heidegger não é apenas um interlocutor obrigatório nesse 
debate. É o eixo e o pivô em torno do qual esse debate se sus­
tenta e se move. Isso pode ser medido, por exemplo, em um 
acontecimento impregnado de inquietante sentido filosófico. 
Em julho de 1999, o filósofo alemão Peter Sloterdijk publicou 
119 
um panfleto que deveria ser uma resposta à carta de Martin 
Heidegger "Sobre o 'humanismo"', colocando a discussão a 
respeito do futuro da natureza humana em patamares intei­
ramente novos. Nesse pequeno texto, Sloterdijk esforçou-se 
por mostrar os limites da destruição heideggeriana das éticas 
humanistas herdeiras espirituais da Aujkliirung. 
Para Sloterdijk, o fundamental consiste nas insuficiências 
práticas e teóricas da crítica heideggeriana, seu bucolismo quie­
tista não permitindo ir além da meditação, do silêncio reve­
rencial em face das urgências de um tempo que se apresenta 
como pós-humanista e pós-moderno. Ele questiona como os 
proferimentos iniciáticos de Heidegger poderiam contribuir para 
a formação de uma "sociedade de vizinhos do Ser", de uma comu­
nidade eclesial invisível de indivíduos i~olados e bem-dispostos. 
Sloterdijk conduz a reflexão não para a pastoral ontológi­
ca de Heidegger como alternativa ética contra o humanismo, 
mas para o domínio concreto da história e da política, reinter­
pretando em chave antropológica a clareira heideggeriana. 
Para fazê-lo, recorre ao léxico suspeito do famigerado binômio 
domesticação e seleção - essa bifurcação decisiva no processo 
de autoconfiguração antropotécnica da humanidade. 
Para Sloterdijk, a história cultural do Ocidente foi marcada 
pela tensão entre as técnicas de cultura seletiva (Züchtung) e as 
forças civilizatórias de amansamento e domesticação (Ziihmung) 
do "picho homem". Na sua reflexão, o humanismo - insufi­
cientemente fulminado pela.desconstrução heideggeriana da 
metafísica - constitui, na verdade, um longo e importante capí­
tulo dessa história; com ele se empreende a tarefa de amansar 
120 
as forças selvagens e domesticar o homem pela via da escola e 
da leitura; para ele, a antropologia se complementa à clareira 
heideggeriana, entendida como abertura para a transformação 
do homem em animal doméstico (Haustier). 
A clareira é mobilizada aqui como metáfora da criação e 
regulação da vida humana em casas e cidades: 
A clareira é, ao mesmo tempo, uma praça de combate e um lugar de 
decisão e seleção. Em relação a isso nada mais se pode reparar com 
formulações de uma pastoral filosófica. Onde se erguem casas, aí 
tem que ser decidido o que deve ser dos homens que as habitam; 
decide-se, de fato e pelo fato, que espécies de construtores de casas 
vêm a prevalecer.3 
Como o apóstolo São Paulo e Charles Darwin já o teriam 
feito, Nietzsche teria pressentido, por detrás do pacífico hori­
zonte escolar de formação, um cenário mais sombrio: 
Ele fareja um espaço no qual terão início combates inevitáveis sobre 
as vias da seleção humana -e esse espaço é aquele no qual se mostra 
a outra face da clareira, a face oculta. Quando Zaratustra caminha 
pela cidade na qual tudo se tornou menor, ele observa o resultado 
de uma política de seleção até então exitosa e indisputada.4 
3 Sloterdijk, P. Regeln für den Menschenpark. Ein Antwortschreiben zum Brief über 
de Humanismus, pp. 11 s. (tradução do autor). 
4 Idem, ibidem, p. 13. 
121 
Percebe-se a importância estratégica que a crítica nietz­
schiana do humanismo adquire no ataque de Sloterdijk tanto a 
Heidegger quanto à tradição humanista. Segundo ele, Nietzsche 
denunciou a falsa inocência dissimulada na pedagogia huma­
nitária, a autoedulcoração de uma vontade coletiva de poder, 
responsável pela seleção de determinada figura do humano 
como normativa no Ocidente: a do homem bom, como animal 
doméstico e virtuoso. Com isso, dissimula-se, sob a capa de 
ensino e disciplina, uma "antropotécnica", a cultura seletivade um tipo humano. 
É com essa forma de (auto)mistificação que somos con­
citados a romper. O desenvolvimento técnico-científico nos 
habilita a planificar a tarefa cultural da seleção e, dessa manei­
ra - assim o pretende Sloterdijk -, a i:eescrever as regras do 
parque humano: 
É a marca da era tecnológica e antropológica que os homens sejam 
mais e mais colocados no lado ativo e subjetivo da seleção, mesmo 
sem terem voluntariamente ingressado no papel do selecionador. 
Devemos constatar: existe um mal-estar no poder da seleção, e 
em breve será uma opção pela inocência, se os homens explici­
tamente se recusarem a exercer o poder de seleção que eles de 
fato alcançaram. 5 
C9m a possibilidade técnica de decifrar e recombinar códi­
gos e cadeias de genes, estaria aberta também uma nova clareira 
5 Idem, ibidem, p. 14. 
122 
epocal, limiar em que se diferenciam os novos selecionadores e 
os selecionados - os programadores e os programados: 
Esse é o conflito fundamental de todo futuro, postulado por 
Nietzsche: o combate entre os cultivadores seletivos do homem 
para o pequeno e para o grande - poder-se-ia também dizer entre 
humanistas e trans-humanistas, filantropos e transfilantropos.6 
É nesse contexto que gostaria de recuperar uma importan­
te passagem da entrevista-testamento de Heidegger à revista Der 
Spiegel, na qual ele se refere a seu equívoco filosófico-político 
a respeito do nazismo. Ao fazê-lo, mostra, porém, o contexto 
em que o erro pode e deve ser adequadamente tematizado, e 
esse contexto tem importância fundamental para uma reflexão 
' sobre a resposta de Sloterdijk à carta "Sobre o 'humanismo"'. 
O contexto especialmente tematizado por Heidegger é o de 
sua reflexão filosófica sobre a essência da técnica; é aqui que 
se torna útil o tratamento de questões de antropologia, antro­
potécnica e política: 
DER SPIEGEL: Talvez possamos resumir: em 1933, o senhor, como 
uma pessoa apolítica, em sentido estrito, não em sentido lato, vai se 
deixar levar pela política dessa suposta insurreição [ o nazismo] ... 
HEIDEGGER: Pelo caminho da universidade ... 
os: Pelo caminho da universidade vai se deixar levar pela política 
dessa suposta insurreição. Aproximadamente um ano depois, 
6 Idem, ibidem, p. 13. 
121 
renuncia à função que então aceitara. Todavia, em 1935, em uma 
preleção, que foi publicada em 1953, como "Introdução à meta­
física", o senhor disse: "Aquilo que hoje" - ou seja, em 1935 - "se 
oferece por aí como filosofia do nacional-socialismo, mas que não 
tem a ver nem um pouco com a verdade interna e a grandeza desse 
movimento (a saber: com o encontro da técnica planetariamente 
determinada e o homem moderno), faz sua pesca nas águas turvas 
dos 'valores' e das 'totalidades'". O senhor acrescentou as pala­
vras entre parênteses só em 1953, portanto durante os trabalhos 
de impressão - como que para explicitar ao leitor de 1953 onde o 
senhor vira a "verdade íntima e a grandeza desse movimento", ou 
seja, do nacional-socialismo - ou esse parêntese esclarecedor já 
fora inserido em 1935? 
H: Isso estava no manuscrito e correspqnde exatamente à compre­
ensão que eu então tinha da técnica, e não ainda à minha inter­
pretação posterior da técnica como Ge-Stell (armação). Se não 
o pronunciei, foi porque estava convicto da correta compreen­
são de meus ouvintes; os estúpidos, os provocadores e os espias 
compreenderam-no de outra maneira - também puderam fazê-lo 
como queriam. 
os: Seguramente, o senhor incluiria nessa mesma ordem também 
o movimento comunista? 
H: Sim, incondicionalmente, como determinado pela técnica pla­
netária. 
os:.E o americanismo também? 
H: Diria também isso. Entreme;,tes, de trinta anos para cá, ter-se-ia 
tornado mais claro que o movimento planetário da técnica moder­
na constitui um poder cuja grandeza historicamente determinada 
124 
não tem necessidade de ser ainda supervalorizada. Hoje, é para 
mim uma questão decisiva saber como um sistema político - e 
qual - pode ser adido à era técnica em geral. Não sei de nenhu­
ma resposta para tal pergunta. Não estou convencido que seja 
a democracia. 
A vertiginosa escalada do progresso tecnológico tornou 
o debate hoje ainda mais radical e mais acirrado, de modo 
que falar de uma filosofia que sobreviva ao fim da metafísi­
ca exige uma retomada crítica desses pressupostos em jogo. 
A crítica e a sugestão presentes na resposta de Sloterdijk à 
carta "Sobre o 'humanismo"' deixam na sombra que o erro 
de Heidegger, por certo monstruoso, nos ensina, a partir de 
tais pressupostos, uma lição de prudência e moderação, ter­
rivelmente awarga e tragicamente dolorosa, mas de extrema 
importância e atualidade. 
O nazismo com certeza não encerrava nenhuma "verda­
de interna e grandeza", muito menos consistiu em tentativa 
de promover "o encontro da técnica planetariamente deter­
minada e do homem moderno". O que a imensa tecnologia 
nazista produziu foi a destruição violenta e planificada do 
humano - e isso constitui um fenômeno genuinamente bio­
político sem precedentes na história ocidental. Aquilo com 
que temos que nos medir é com um esforço metódico e bem­
-sucedido de destruir tecnologirnmente o humano. É nesse sentido 
que os campos de concentração constituíram o modelo de 
implementação de um programa sistemático, levado a efeito 
por meio de todos os recursos e requintes da racionalidade 
125 
lógico-instrumental, para a produção industrial da vida des­
cartável, indigna de ser vivida . 
Como lucidamente entreviu o filósofo italiano Giorgio 
Agamben, ex-aluno de Heidegger, os campos de concentra­
ção são laboratórios biopolíticos, equipados com todos os 
dispositivos tecnológicos de poder - disciplinar, gerencial 
e previdenciário. Seu funcionamento tem em vista a ilus­
tração paradigmática do exercício integral do poder, cuja 
decisão soberana incide sobre uma matéria viva que habita 
um limiar de indiferenciação entre o humano e o inumano. 
Eles são o não lugar no qual vigoram as regras de um parque 
in-humano. 
A figura do muçulmano [judeu], tal como descrita por Primo 
Levi, é a reprodução contemporânea do Homo sacer, a outra face 
da soberania biopolítica, própria da modernidade tecnológica: 
126 
A história - ou melhor, a não história -de todos os muçulmanos 
que vão para o gás é sempre a mesma: simplesmente, acompanha­
ram a descida até o fim, como os arroios que vão até o mar. A sua 
vida é curta, mas seu número é imenso; sãoºeles, os "muçulmanos", 
os submersos, são eles a força do campo: a multidão anônima, 
continuamente renovada e sempre igual, dos não homens que 
marcham e se esforçam em silêncio; já se apagou neles a cente­
lha divina, já estão tão vazios, que nem podem realmente sofrer. 
liesita-se em chamá-los de vivos; hesita-se em chamar "morte" à 
sua morte, que eles já nem temem, porque estão esgotados demais 
para poder compreendê-la. Eles povoam minha memória com sua 
presença sem rosto, e se eu pudesse concentrar em uma imagem 
todo o mal do nosso tempo, escolheria essa imagem que me é fami­
liar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em 
cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento.7 
É esse significado radicalmente antropológico-político da 
tecnologia do biopoder que é necessário destacar, para aprender 
com o erro heideggeriano. Na era da escalada planetária 
da técnica, o pensamento ainda não se colocou à altura de 
meditar em profundidade com sua essência, mas a história 
já multiplicou e acumulou os escombros deixados pelos 
resultados monstruosos dos experimentos antropotécnicos. 
Como observa Primo Levi, destruir o homem é uma tarefa tão 
difícil quanto criá-lo; a experiência do muçulmano é a demons­
tração dessa possibilidade, na medida em que nele não se dis­
tinguem mais o humano e o não humano.8 
Com todcf peso de sua inequívoca autoridade, escreve 
Wolfgang Sofsky: 
O muçulmano é o homem destruído,jazendo entre a vida e a 
morte. Ele é a vítima de uma aniquilação passo a passo do homem. 
Antes de matar com violência corporal imediata, o poder total 
promove uma propositada política de miserabilização, de trans­
formação da conditio humana. Já a figura aparente do muçulmano 
fala de uma desumanização que atinge as profundezas.9 
7 Levi, P. É isto um homem?, p. 91. 
8 Idem, ibidem, p. 152. 
9 Sofsky, W. Die Ordnung des Terrors, p. 229 {tradução do autor). 
127 
Perscrutar essa profundidade implica abismar-se nos labi­
rintos da moderna biopolítica, como aquilo que, com assusta­
dora urgência, dá a pensar. Agamben, por sua vez, considera 
"um fato singular que o muçulmano, embora todos os testemu­
nhos falem a respeito dele como de uma experiência central, 
mal seja nomeado nos estudos históricos sobre a destruição 
dos judeus da Europa": 
Somente agora, quase cinquenta anos depois, ele [o muçulma­
no] começa a tornar-se plenamente visível, e apenas agora talvez 
possamos extrair as consequências dessa visibilidade. Já que esta 
implica que o paradigma do extermínio que até este momento 
orientou de modo exclusivo a interpretação dos campos tenha 
sido não substituído, mas seja agora ladeado por outro paradigma, 
o qual lança uma luz nova sobre o mesmo extermínio, tornando­
-o, de algum modo, ainda mais atroz. Antes de ser o campo da 
morte, Auschwitz é o lugar de um experimento ainda impensa­
do, no qual, além da vida e da morte, o judeu transforma-se em 
muçulmano, e o homem em não homem. E não compreendere­
mos que coisa foi Auschwitz, se não tivermos compreendido pri­
meiramente que coisa é o muçulmano, se não tivermos aprendido 
a olhar, com ele, a Górgona. 10 
Essa impossibilidade constitui, propriamente, a nova maté­
ria ética que nos foi legada pelos campos de concentração e 
extermínio: a macabra realidade de acordo com a qual uma 
10 Agamben, G. Que/ che resta di Auschwitz, p. 47 (tradução do autor). 
128 
"testemunha integral" - como a que chegou ao mais fundo 
do poço - suprimiu com isso a própria possibilidade de dis­
tinguir entre o homem e o não homem. O limiar entre ambos 
é a figura do morto-vivo que os campos produziram; não é 
possível testemunhar a respeito dessa fronteira do indizível e 
do incomunicável: quem viu a Górgona não pode mais falar 
sobre sua própria visão, nada mais pode declarar ou comunicar. 
Em face dessa descoberta e dessas experiências, seria 
necessário e urgente repensar com muito cuidado os progra­
mas biopolíticos de antropotécnica que se apresentam emba­
lados pelo delírio tecnológico de onipotência - bem como a 
compulsão à repetição que dela se nutre. E, se assim for, então 
os rumos da filosofia do futuro podem ser divisados no espaço 
aberto entre as opções de superação tecnológica do humano, 
por um lado, e o apelo preservacionista à responsabilidade, por 
outro, mesmo 11º esgotamento dos humanismos tradicionais. 
Enquanto, em uma de suas vertentes, o fim da história se 
realiza na forma da superação do humano no trans-humanis­
mo e no pós-humano, na outra, a aposta em jogo é a respon­
sabilidade pela iminente catástrofe ecológica e por um novo 
empreendimento sistemático de destruição do humano. 
A vertente da superação do humano pode ser ilustrada 
pelo pós-modernismo de Jean-François Lyotard; Hans Jonas 
ilustra a recuperação da phronesis aristotélica como autarqueia 
por meio de uma heurística do medo, ou a crítica da utopia 
irresponsável. Em ambos os casos, a importância da contribui­
ção de Heidegger, de sua filosofia da técnica e de sua reflexão 
sobre o humanismo mal pode ser exagerada. 
129 
Tanto em A condição pós-moderna quanto em Le dif.férend , 
Lyotard, profundamente influenciado pelo diagnóstico hei­
deggeriano da técnica, alveja o poder de legitimação das meta­
narrativas históricas, comprometidas com a emancipação 
humana. A esse tipo de crítica acrescentou depois um com­
plemento: se a pós-modernidade é, para ele, o fim das repre­
sentações românticas do homem como soberano da história, 
é também o princípio de uma superação da condição humana 
nelas representada: 
A tecnociência atual realiza o projeto moderno: o homem se con­
verte em amo e senhor da natureza. Mas, ao mesmo tempo, a 
desestabiliza profundamente, já que sob o nome de "a natureza" é 
preciso contar também todos os constituintes do sujeito humano: 
seu sistema nervoso, seu código genético, seu computer cortical, 
seus captadores visuais, auditivos, seus sistemas de comunicação, 
especialmente os linguísticos, suas organizações de vida em grupo 
etc. Finalmente, sua ciência, sua tecnociência também fazem parte 
da natureza. Podemos fazer, fazemos ciência da ciência, como 
fazemos ciência da natureza. O homem talvez seja tão somen­
te um nó muito sofisticado na interação geral das radiações que 
constitui o Universo. 11 
É nesse horizonte que se inscrevem as perspectivas pós 
e transumanas, a troca de carbono por silício, que tornaria 
11 Lyotard, Jean-Fran çois. La posmodernidad (explicada a los ninas), pp. 29-32 . 
(tradução do autor). 
130 
potencialmente imortal o corpo orgânico. A isso poderia se 
aliar uma reconfiguração da consciência, descentrada de sua 
identificação com a unidade subjetiva, ultrapassando o atrela­
mento aos cinco sentidos, e conectada em redes neurais, simul­
taneamente com a miríade de centros virtuais de registro e 
processamento de informações. Para os membros do Extropy 
Institut, fundado pelo filósofo e cientista Max More no Vale 
do Silício, nos Estados Unidos, a atual base somática da per­
sonalidade pode ser considerada um hardware em processo de 
obsolescência, que deve ser substituído por um equipamento 
de tipo Homo roboticus, imune a panes e disfunções orgânicas, 
capaz de desenvolver autoconsciência e ultrapassar e substituir 
o Homo sapiens, como este fez com o Homo australopitecus na 
trajetória ascendente da escala evolutiva. 
No plano da filosofia da história, no final do século XX, 
passou-se a cogitar outra vez uma coerência no desenvolvi­
mento, que conduziria a maior parte da humanidade para a 
meta da democracia liberal. Para Francis Fukuyama, a história 
tem um sentido, como tivera para Santo Agostinho, Voltaire, 
Hegel ou Marx. Nela, a humanidade é, metaforicamente, como 
uma longa caravana de carroças que avançam por um cami­
nho: algumas entrarão na Meca prometida, enquanto outras 
permanecerão no deserto. 12 
Hans Jonas, por sua vez, ousa dar um passo fundamental 
em um caminho que leva de Heidegger à filosofia prática e 
à ética. Nas sociedades contemporâneas investidas de um 
12 Cf. Fukuyama, F. The End of the History and the Last Man. 
131 
potencial tecnológico em permanente desenvolvimento, a 
razão mais forte pela qual a autoafirmação da vida deve ter 
caráter normativo para o ser humano é o poder alcançado 
pelo homem por meio da moderna tecnociência. Essa potên­
cia prometeica desencadeada é o fundamento do dever de 
reconhecer à natureza aquele direito que lhe é próprio. Trata-se 
de uma ética da responsabilidade com vistas a preservar um 
ser portador de valor intrínseco, que pode ser efetivamente 
destruído pelo poder tecnológico adquirido e desenvolvido 
pelo homem: 
O potencial apocalíptico da técnica - sua capacidade de pôr em 
perigo a sobrevivência do gênero humano ou corromper sua inte­
gridade genética, ou alterá-la discriciçmariamente, ou até mesmo 
destruir as condições de uma vida mais elevada sobre a Terra -
coloca a questão metafísica, com a qual a ética nunca fora antes 
confrontada, qual seja: se e por que deve haver uma humanidade; 
por que, portanto, o homem deve ser mantido tal como a evolução 
o produziu; por que deve ser respeitada sua herança genética; sim, 
por que, em geral , deve haver vida.13 
Futuristas exaltados e preservacionistas, transumanos 
e neo-humanistas não podem, porém, responsavelmente, 
elidir e deixar de levar em contauma séria confrontação com 
o pensamento de Heidegger, de seu apelo à escuta da voz do 
Ser, de retomada da essência do homem em correspondência 
13 Jonas, H. "Por que a técnica moderna~ um objeto para a ética", p. 414. 
132 
com a verdade do Ser. Sob pena de, ao tentarmos fazer uma 
filosofia do futuro, permanecermos aquém de nossas próprias 
exigências, aquém daquilo que a destruição heideggeriana da 
metafísica já operou, e, desse modo, continuarmos ofuscados 
e embotados para as possibilidades catastróficas de uma má 
realização do eterno retorno do mesmo. 
A sobrevivência e o futuro das sociedades ocidentais pare­
cem depender da atualização de seu potencial tecnológico. Por 
outro lado, a dialética entre a aquisição de novos poderes e capa­
cidades (vantagem técnica) e a possibilidade de sua utilização 
assumem a forma do aproveitamento coercitivo, em escala indus­
trial, dos avanços tecnológicos. 
Como em toda coerção, a dinâmica do progresso técnico 
subtrai-se ao controle ético e subverte em dependência a promes­
sa originária de emancipação. Compreender a essência da técnica 
em um horizonte pós-metafísico poderia talvez ensejar tanto 
uma reapropriaçãt> dessa potência quanto uma desalienação do 
homem moderno. Permitiria apreender a imbricação entre a téc­
nica e a metafísica, inscritas como destino na história da verdade 
do Ser, a que o homem deve corresponder pelo pensamento. 
Essa meditação ilumina os perigos ínsitos à dinâmica 
autônoma da tecnologia, em marcha para colonizar e tornar 
dependentes de si as diversas formas de organização da socie­
dade, colocando em risco a possibilidade futura de existência 
autenticamente humana na Terra. 
Toda compulsão é sintoma de morbidez, de perda de 
controle - um diagnóstico a que deve ser submetida a crença 
incondicional na resolução de todos os macroproblemas humanos pela 
intensificação coercitiva do progresso tecnológico. Talvez ela seja signo 
de um delírio de onipotência, que pode converter-se em seu 
contrário, isto é, em impotência e extravio, como perda, difi­
cilmente reversível de autarcheia (autodomínio) . 
Heidegger nos confronta, pois, com a necessidade de des­
pertar de uma hybris e alcançar uma potência de segundo grau: 
subtrair-se à compulsão que nos impele a percorrer sempre os 
mesmos caminhos, que, em vez de salvação, potencializam 
o perigo, enredando-nos mais profundamente na alienação. 
O pensamento de Heidegger pode ser visto como um 
humanismo distinto do tradicional. Se este sempre considerou 
a humanidade do Homo humanus a partir da animalidade, Hei­
degger pensa a essência do homem como abertura para o Ser, 
como obediência (gehorchen) ao apelo qo Ser: uma dignidade que 
os sistemas éticos tradicionais não foram capazes de conceber. 
Se a tradição limitava a esfera do ethos às relações do homem 
consigo mesmo e com os outros homens, a ética heideggeriana 
da finitude confere significação própria ao mundo e aos entes 
intramundanos, cuja cura compete ao homem - não como 
mestre dos entes, mas como pastor do Ser. 
134 
• 
Bibliografia 
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Sobre o autor 
Oswaldo Giacoia Jr. é professor titular do departamento de 
filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 
Doutorou-se em filosofia pela Universidade Livre de Berlim 
(Alemanha), onde fez também pós-doutorado. É pós-doutor 
ainda pela Universidade de Viena (Áustria) e pela Universidade 
de Lecce (Itália). É autor de, entre outros, Nietzsche x Kant: uma 
disputa permanente a respeito de liberdade, autonomia e dever (Casa da 
Palavra, 2012), Pequeno dicionário de filosofia contemporânea (Publi­
folha, 2006), Sonhos e pesadelos da razão esclarecida: Nietzsche e a 
modernidade (UPF editora, 2005); Nietzsche como psicólogo (Editora 
Unisinos, 2004) e Nietzsche (Publifolha, 2000). Organizou, junto 
com Antonio Florentino Neto, Heidegger e o pensamento oriental 
(Edufu, 2012.J,.-
143 
(l) o ' o ' ·~ V) o o '-- ro ~ '-- o e- e:; V) o ' (l) ro '-- ilJ o (l) e V) V) e 01 e ( Q :i (J) Q. e u o o .8 ...., u ro u u u Cl. V) e: (l) V) (l) 
~ ilJ 01 o ro '-- E 
(l) o ~ E w u o (l) ro ro ~ 
...., o ro .: o (l) :i _J o ci Q ,--... -e:: u o 
~ V) V) ·ro u ~ e_; (l) 
~ u E (l) ~ V) (l) E ·(!) I u I ro o N Q o ~ .__.., 
Oia forma 
de uma meditação sobre a história da verdade (alétheia) do Ser. 
Encerrada a Segunda Guerra, Heidegger foi convocado, 
em meados de 1945, para depor perante o comitê de desnazi­
ficação organizado pelos exércitos aliados. O processo movido 
contra o filósofo deveu-se, além do seu envolvimento com o 
Partido Nazista, a denúncias d~ que teria tido comportamento 
antissemita durante o período do reitorado, discriminando e 
perseguindo colegas judeus. 
Sua saúde sofreu, então, grande abalo, cujo resultado foi 
um esgotamento nervoso e uma profunda depressão. Toda­
via, data dessa época tanto a correspondência com o filósofo 
Jean-Paul Sartre quanto sua ami~ade com Jean Beaufret, que 
traduzirá para o francês a célebre carta "Sobre o 'humanismo"', 
escrita em 1946. 
~ 
3 Aus (preposição que indica movimento para fora); -einander (um e outro); 
-setzung (do verbo setzen: pôr, colocar, assentar, pôr em pé); Auseinandersetzung 
tem o sentido literal de colocar algo ou alguma coisa fora e diante de outra 
e é habitualmente traduzido em português por "discussão". Uma tradução 
mais próxima de sua literalidade e sentido original é "confrontação" 9u "en-
frentamento". · 
18 
Em 1946, com base em um parecer subscrito pelo filósofo 
Karl Jaspers (de quem Heidegger se tornara amigo em 1920 e 
se afastara depois da adesão ao nazismo), o comitê de desnazi­
ficação recomendou a cassação de sua venia docendi, proibindo-o 
de lecionar. A interdição perdurou até 1949, quando o conselho 
universitário de Freiburg enviou ao Ministério da Educação um 
pedido de reintegração de Heidegger. Porém, o efetivo reinício 
de suas atividades só ocorreria em 1951. Convém salientar que, 
a despeito de ser instado a fazê-lo por vários de seus colegas 
de profissão e amigos, Heidegger nunca se justificou ou pediu 
desculpas publicamente por seu envolvimento com o nazismo. 
Entre 1949 e 1950, proferiu importantes conferências em 
diversas cidades alemãs, como Bremen e Munique, nas quais 
divulgou os resultados de sua meditação sobre a história da 
verdade do Ser: "A coisa" (Das Ding), "A armação" (Das Gestell), 
"O perigo" (Die Gefahr), "A viravolta" (Die Kehre). Publicadas 
mais tarde, as conferências constituem peças fundamentais 
no programa de superação da metafísica do assim chamado 
"segundo Heidegger". 
Em 1953, publicou A pergunta pela técnica, em que apresenta 
as linhas fundamentais de sua filosofia da técnica moderna, 
interpretando-a a partir da tradição metafísica ocidental. Dois 
anos mais tarde, pronunciou a conferência "Serenidade", na 
qual aprofunda sua reflexão sobre a cibernética como a metafí­
sica do nosso tempo e descreve a postura existencial de silêncio 
meditativo sobre os perigos da tecnologia moderna. 
Em 1966, Heidegger concordou em conceder à revista Der 
Spiegel um importante depoimento, que ficou conhecido como 
19 
entrevista-testamento, pois ele só aceitou o convite com a con­
dição de que fosse publicada postumamente. Na entrevista, o 
filósofo discorre sobre fatos importantes relacionados a sua 
vida e sua obra, em particular as circunstâncias e o sentido de 
sua aproximação e seu posterior afastamento crítico do nazis­
mo, como ilustra a seguinte passagem: 
DER SPIEGEL: Senhor professor Heidegger, temos constatado repeti­
das vezes que a sua obra filosófica é um pouco ensombrecida por 
acontecimentos não muito duradouros da sua vida, que nunca 
foram esclarecidos. 
HEIDEGGER: O senhor pensa em 1933? 
os: Sim, antes e depois. Gostaríamos de colocar isso em um contexto 
maior e, daí, chegar a alguma~ perguntas que parecem importan­
tes, como: que possibilidades há, a partir da filosofia, de agir sobre 
a realidade - inclusive, sobre a realidade política? 
20 
H: Essas já são questões importantes e quem sabe eu possa responder 
a todas elas. Mas tenho que dizer, em primeiro lugar, que não tinha 
atuado politicamente, de modo algum, antes de meu reitorado. No 
semestre de inverno de 1932-33, e\i estava de férias e passei a maior 
parte do tempo em minha cabana. 
os: Como ocorreu que o senhor tenha se tornado reitof'êla Univer­
sidade de Freiburg? 
H: Em dezembro de 1932, meu vizinho Von Mollendorf, catedrático 
de anatomia, foi eleito reitor. Na universidade local, a tomada de 
posse do novo reitór realiza-se a 15 de abril. Durante o semestre 
do inverno de 1932-33, conversávamos frequentemente acerca da 
situação, não apenas política, mas, em particular, da universidade, 
e sobre a situação, em parte sem perspectivas, dos estudantes. Meu 
julgamento, na ocasião, era o seguinte: tanto quanto posso avaliar 
as coisas, resta apenas a possibilidade de tentar realizar [a tarefa de 
autoafirmação da universidade alemã] e dar início a ela, com as 
forças construtivas que efetivamente ainda estavam vivas. 
os: O senhor via, portanto, uma conexão entre a situação da univer­
sidade alemã e a situação política da Alemanha, em geral? 
H: Com efeito, eu acompanhava os acontecimentos políticos entre 
janeiro e março de 1933, e ocasionalmente conversava sobre isso 
com colegas mais jovens. Mas o meu trabalho era dedicado a uma 
interpretação mais abrangente do pensamento pré-socrático. No 
começo do semestre de verão, retornei a Freiburg. Entrementes, 
em 16 de abril, o professor Von Mollendorf tinha tomado posse 
do cargo de reitor. Menos de duas semanas depois, foi destituído 
pelo então ministro da Cultura de Baden. O supostamente dese­
jado ensejo para essa decisão do ministro foi dado pelo fato de 
que o reitor tinha proibido fixar na universidade o assim chamado 
cartaz dos judeus.4 
os: O senhor Von Mollendorf era social-democrata. O que ele fez 
depois da deposição? 
H: No mesmo dia de sua deposição, veio ter comigo e disse-me: "Hei­
degger, agora o senhor tem de assumir o reitorado". Dei a enten­
der que a mim faltava experiência em atividades administrativas. 
O então vice-reitor Sauer (de teologia) também pressionou para 
4 Heidegger refere-se ao cartaz antissemita "Contra o espírito alemão", que 
estudantes nazistas haviam tentado afixar na Universidade de Freiburg. A ação 
foi obstada por ele, então reitor daquela instituição. 
21 
22 
que eu me candidatasse às novas eleições para o reitorado, pois 
haveria o risco, se isso não ocorresse, de que um funcionário fosse 
nomeado reitor. Colegas mais jovens com quem havia vários anos 
vinha comentando problemas da configuração da universidade 
também acorreram a mim para que aceitasse o reitorado. Durante 
muito tempo, hesitei. Por fim, declarei-me disposto a assumir o 
cargo unicamente no interesse da universidade, caso pudesse estar 
seguro acerca do assentimento unânime do plenário. Enquanto 
isso, contudo, permaneciam as dúvidas quanto à minha aptidão 
para o reitorado, de modo que, ainda na manhã do dia estabele­
cido para a eleição, apresentei-me na reitoria e declarei ao colega 
destituído Von Mõllendorf, ali presente, e ao professor Sauer que 
não podia aceitar o cargo. Ao que ambos me responderam que eu 
já não poderia retirar a candidatura. 
os: Em face disso, o senhor declarou-se definitivamente disposto [ a 
aceitar o cargo]. Como se configurava na época a sua relação com 
os nacional-socialistas? 
H: No segundo dia depois da minha posse, apareceu na reitoria o 
"dirigente dos estudantes" (Studentenführer), com dois acompa­
nhantes, e exigiu de novo a colocação do "cartaz dos judeus". 
Recusei. Os três estudantes afastaram-se com a ob~rvação de 
que a proibição seria notificada à Direção de Estudantes do Reich 
(Reichsstudentenführung). Alguns dias depois houve uma chamada 
telefônica dos Serviços Universitários das SA, que integravam a 
Direção Suprema das SA, da parte do doutor Baumann, chefe do 
grupo. Ele exigia a·fixação do mencionado cartaz, assim como já se 
fizera em outras universidades. Em caso de recusa, deveria contar 
com a demissão, senão mesmo com o fechamento da universidade. 
Procureiganhar o apoio do ministro da Cultura de Baden para 
o meu indeferimento. Ele me esclareceu que nada poderia fazer 
contra as SA. Todavia, não recuei de minha proibição. 
os: Até hoje isso não era conhecido desse modo. 
H: O motivo que, em geral, me levou a assumir o reitorado está já 
explicado na minha preleção inaugural, proferida em Freiburg, 
em 1929, "O que é a metafísica?": "Os domínios das ciências estão 
muito afastados uns dos outros. O modo de tratamento de seus 
objetos é fundamentalmente distinto. Hoje, esse desdobramento 
confuso de disciplinas só se mantém reunido em uma significação 
pela organização técnica das universidades e faculdades e pela 
finalidade prática dos campos de especialidade. Em contrapartida, 
o enraizamento das ciências no seu solo essencial extinguiu-se". 
Aquilo que eu tentei, em relação a esse estado da universidade 
- que nesse meio-tempo degenerou-se a um ponto extremo-, 
durante o tempo de meu exercício do cargo, está exposto no meu 
discurso de reitorado. 
os: Tentamos averiguar como e se essa declaração de 1929 coincide 
com o que o senhor disse no discurso inaugural como reitor, 
em 1933. Desse contexto, extraímos a seguinte frase: "A tão can­
tada 'liberdade acadêmica' é expulsa da universidade alemã, 
pois essa liberdade era inautêntica, porque apenas negativa". 
Acreditamos poder suspeitar que essa sentença exprime pelo 
menos uma parte das concepções das quais o senhor ainda hoje 
não se distanciou. 
H: Sim, ainda sustento isso, pois essa "liberdade acadêmica" era 
muito frequentemente apenas negativa: liberdade em relação ao 
esforço por ingressar naquilo que o estudo científico exige de 
23 
meditação e reflexão. Adernais, a sentença extraída pelo senhor não 
deveria ser lida de forma isolada, mas no seu contexto, pois então 
se torna plenamente claro o que eu queria que fosse compreendido 
corno "liberdade negativa". 5 
O extrato dessa entrevista torna possível entrever algu­
mas dificuldades daquele período em que Heidegger exerceu 
a função de reitor da Universidade de Freiburg. Para complicar 
ainda mais o quadro, basta recordar que, entre seus alunos e 
orientandos mais célebres, contavam-se os filósofos Herbert 
Marcuse, Hans Jonas e Karl Lowith, todos de ascendência judai­
ca. O relacionamento de Heidegger com sua ex-aluna Hannah 
Arendt, interrompido por causa do enredamento político do 
filósofo e do exílio de Arendtdo espírito e cuja meto­
dologia é essencialmente hermenêutica e inclui valores como 
princípios explicativos. 
Contudo, uma vez que as ciências humanas não com­
portam a matematização de seus objetos, elas não podem 
aspirar ao regime de certeza e objetividade que há nas ciên­
cias formais e físicas. A cientificidade das ciências humanas 
exige a instituição de critérios e metodologia de pesquisa pró­
prios, sob pena de tornar inviáveis seus corpos teóricos como 
conhecimento objetivo. Uma filosofia em crise profunda não 
podia, então, prover esse tipo de reflexão epistemológica, em 
substituição à teoria tradicional da ciência, cuja base metafí­
sica tornara-se perempta. 
É nesse cenário histórico que se explica a consolidação e 
o impacto de três vertentes filosóficas que tiveram papel rele­
vante para o pensamento de Heidegger: a filosofia dos valores, 
as filosofias da vida e a filosofia existencial. Seu traço comum 
consiste na valorização de elementos ligados à dimensão do 
sentido, à condição paradoxal da existência humana em um 
mundo desprovido de finalidad~ e de valores transcendentes 
- enfim, na tomada de consciência da contingência e da facti- ) 
cidade da vida. 
Nessa direção, avulta o nome de Nikolai Hartmann (1882-
-1950). Inicialmente próximo ao neokantismo idealista da Escola 
de Marburg, ele transitou daí para uma postura teórica realis­
ta, promovendo uma revisão crítica da ontologia tradicional. 
Baseando-se principalmente em Aristóteles e Christian Wolff 
(1679-1754), Hartmann retoma a tradição dos grandes sistemas 
28 
1 
1 
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li 
1 
metafísicos, como aqueles do idealismo alemão, resgatando a 
tentativa de propor uma doutrina ético-filosófica não apenas 
baseada em princípios formais, mas também dotada de um 
conteúdo material de valores substantivos, em um esforço para 
sustentar uma interpretação original da doutrina das categorias 
de Aristóteles e Kant. 
A influência de Hartmann também se fez sentir no campo 
da filosofia da religião. Com apoio na filosofia prática de Kant, o 
conceito de Deus torna-se um postulado, afirmado como uma 
necessidade interna da moralidade humana, analogamente ao 
uso de postulados em matemática, como medida necessária à 
resolução de problemas. 
Outro nome importante na filosofia dos valores, igual­
mente ligado ao neokantismo, é Max Scheler (1874-1928). Para 
superar o formalismo ético de Kant, ele pretendia fundamentar 
a ética em um sentimento de valor, em uma apreensão vivida de 
valores morais e estéticos, alheia à compreensão conceituai, 
também não incluída entre as categorias do Ser. Scheler consi­
derava a metafísica como ciência, baseando-a na metodologia 
da antropologia cultural e da filosofia social. Em obra intitu­
lada Cosmovisão .filosófica (Philosophische Weltanschauung), tentou 
elucidar os fundamentos da sociedade e da história. Vemos 
aparecer aqui uma palavra que constituirá um topos conceituai 
da filosofia da época: "cosmovisão" (Weltanschauung), de que 
Heidegger se ocupará profusamente. 
Em complemento à filosofia dos valores, a rubrica "filoso­
fias da vida" denota o questionamento a respeito do sentido, 
do valor e do propósito da vida, sublinhando a experiência 
29 
concreta, vivida em sua plenitude, em detrimento de um tipo 
de conhecimento intelectual e puramente teorético. Enfatiza 
o aspecto subjetivo do conhecimento em oposição a seu com­
ponente objetivo, impessoal, axiologicamente neutro. Nelas, o 
conceito vida assume um papel de categoria totalizante e prin­
cípio último de explicação. Intuição e sentimentos, as vivências 
concretas (Erlebnisse) - não conceitos abstratos - liberam o aces­
so à vida, entendida como totalidade abrangente da existência 
humana no mundo, que só pode ser compreendida a partir de 
uma perspectiva que lhe seja interna. 
Outro filósofo importante na época foi Wilhelm Dilthey 
(1833-1911), que sistematizou um método de investigação base­
ado em vivência (Erlebnis) e intuição (Einfühlung). Seu pensamento 
exerceu considerável influência sobre diferentes correntes da 
filosofia da vida, do final do ·século XIX até meados do século 
passado, assim como sobre a ciência hermenêutica, além de 
dar ensejo a um relativismo histórico dos valores. 
Uma de suas categorias centrais é a de compreensão, que lhe 
permitia apreender e interpretar, da única maneira adequada, 
as formações socioculturais, historicamente determinadas, 
que adquirem forma e duraçã~ relativa no interior da vida ) 
entendida como totalidade abrangente. A ênfase na experiên­
cia vivida, na diversidade das manifestações da vida social e 
cultural, em detrimento das abstrações, resultou na importante 
distinção metodológica entre explicação (Erkliirung) e compreensão 
(Verstehen), que cindiu a unidade do saber científico entre, de um 
lado, as ciências formais e da natureza e, de outro, as ciências 
do espírito ou da cultura. 
30 
A distinção conceituai entre explicar (Erkliiren) e compreen­
der (Verstehen), ou explicação e compreensão, coloca em destaque 
os procedimentos essenciais da hermenêutica e torna-se um 
operador importante da metodologia científica. De modo 
geral, explicar consiste em identificar relações constantes entre 
fenômenos ou séries de eventos, cuja regra geral tem a forma 
lógica da ligação entre causa e efeito. Consiste em enquadrar 
fenômenos nesse esquema formal, de modo que, para as ciên­
cias naturais, a natureza é concebida como um sistema de rela­
ções entre fatos, ligados entre si de acordo com certas regras 
invariáveis, fundadas em princípios universais. No caso das 
ciências formais, explicar consiste em deduzir propriedades a 
partir de definições prévias, de acordo com axiomas ou pro­
posições evidentes. 
As Geisteswissenchaften (ciências do espírito, da cultura, ou 
ciências humanas), por sua vez, têm na compreensão sua cate­
goria fundamental e não procedem por explicação nem por 
dedução de consequências a partir de princípios ou definições. 
A compreensão é um processo hermenêutico visando ao senti­
do dos eventos do mundo histórico-cultural, especificamen­
te humano. Na interpretação do sentido, o próprio cientista 
(sujeito), com seu lastro subjetivo de estimativas de valor, nunca 
pode ser separado inteiramente do objeto a ser interpretado, de 
modo que um teor de subjetividade não pode ser retirado das 
ciências da cultura, ao contrário do que ocorre com as ciências 
formais (matemática) e as ciências da natureza, cujas explica­
ções se pretendem fundadas apenas na objetividade dos fatos, 
sem interferência subjetiva (valorativa) por parte do cientista. 
31 
A relevância teórica dessa distinção permite entender 
o interesse do jovem Heidegger por Max Weber (1864-1920), 
fundador da sociologia compreensiva e professor em Frei­
burg entre 1894 e 1895. Também Weber estava essencialmente 
preocupado com a fundamentação das ciências sociais, sem 
desprezar, no entanto, os conteúdos não redutíveis a procedi­
mentos matemáticos ou mecânicos. Para ele, os fenômenos 
humanos nos quais estão implicadas referências a valores são 
constituintes fundamentais das ciências sociais, pois o sentido 
pleno de fatos sociais dessa espécie só pode ser reconstituído a 
partir da sua relação sob o ponto de vista dos valores. 
Weber, no entanto, não excluía inteiramente das ciências 
humanas a categoria de causalidade, em especial em sua apli­
cação à teoria da deliberação e atribuição de responsabilidades 
como recurso explicativo dos processos constitutivos da vida 
social. Sendo assim, embora valorizasse a compreensão como 
princípio metodológico, propunha também a integração de 
compreensão e explicação, em uma visão unitária da ciência, na 
qual ele distinguia conceitualmente conhecimento científico 
e juízos de valor. 
Ele reconhecia, com os d~fensores da teoria compreen-) 
siva, que toda ciência contém um elemento subjetivo e axioló­
gico.Contudo, não renunciava à objetividade da ciência, que 
depende fundamentalmente do controle e direcionamento da 
pesquisa por métodos sistemáticos e procedimentos de inves­
tigação universalizáveis. 
Heidegger incorporou ao seu pensamento elementos teó­
ricos e recursos metodológicos da filosofia dos valores e das 
32 
filosofias da vida, assim como das filosofias existenciais ateias, 
como a de Jean-Paul Sartre (1905-1980), e cristãs, como a de Karl 
Jaspers (1883-1969), com as quais dialoga a respeito da condição 
humana, tal como pensada por eles. Essa integração, essencial­
mente crítica, foi inevitável em decorrência de sua inserção no 
circuito universitário de Marburg e Freiburg. 
A filosofia de Heidegger recebe também o influxo de outra 
corrente intelectual, decisiva para o seu pensamento: a fenome­
nologia de Edmund Husserl. Este sistematizou a fenomenologia 
em uma concepção densa, consistente, original, assimilando 
coordenadas desenvolvidas por Bolzano (1781-1848) e Brentano 
(1838-1917), com vistas a estabelecer novos fundamentos tanto 
para a filosofia quanto para as ciências de seu tempo. 
De tal programa faz parte a concepção da filosofia como 
ciência rigorosa, desprovida de pressupostos dogmáticos, cuja 
meta consiste em determinar a possibilidade do conhecimento. 
Embora esta tenha sido a pretensão da filosofia desde seu sur­
gimento, ela "nunca teria sido um desvelamento consequente 
e coeso dos 'verdadeiros primórdios' do conhecimento; até 
então, ela nunca teria encontrado a 'decisiva formulação do 
problema, o método correto'. Só a fenomenologia seria ciência 
rigorosa", nas palavras do prestigioso intérprete da filosofia 
heideggeriana, o professor alemão G. Figal.7 
Uma das pretensões de Heidegger consistiu na tentati­
va de descrever os fenômenos, tais como estes se mostram, 
de acordo com as estruturas fundamentais de seus modos de 
7 Figa!, G. Zu Heidegger. Antworten und Fragen, p. 32 (tradução do autor). 
33 
aparecimento e suas modalidades de exibição. Nesse sentido, a 
noção de intencionalidade desempenha um papel fundamen­
tal. Heidegger a apreende a partir do pensamento de Husserl, 
que considera a intencionalidade uma dimensão constitu­
tiva estrutural da consciência, de modo que esta não pode 
ser pensada de maneira insular, como se fosse uma mônada 
fechada sobre si própria, contraposta ao mundo dos objetos 
que ela mesma representa. Consciência (cogito) não existe a 
não ser na duplicidade e na abertura para um objeto pensado 
(cogitatur), que se mostra como fenômeno, tanto segundo con­
dições empíricas e sensíveis quanto em conformidade com 
elementos estruturantes formais, de natureza transcendental. 
Para Husserl, portanto, a fenomenologia implica uma 
ontologia fundamental - esta deve ser compreendida como 
uma descrição dos modos de estruturação e apresentação dos 
fenômenos, em conformidade com os diferentes contextos de 
realidade nos quais desde sempre nos encontramos. A exigên­
cia de científicidade, tal como formulada pela corrente cienti­
ficista, então dominante, do positivismo lógico do Círculo de 
Viena, não seria capaz de sati~fazer as exigências teóricas da,1 
fenomenologia husserliana, as mesmas que serão retomadas 
e reformuladas por Heidegger. 
Com efeito, o ideal de positivistas lógicos como Moritz 
Schlick (1882-1936) e Rudolph Carnap (1891-1970), ambos 
integrantes do Círculo de Viena, era conjurar definitivamen­
te as especulações metafísicas e identificar a racionalidade 
científica com os requisitos teóricos e metodológicos das 
ciências formais e experimentais. De modo que o·ideal de 
34 
proposições significativas seriam as sentenças protocolares 
ou os registros de enunciados capazes de ser levados à veri­
ficação experimental ou à demonstração, em estrita relação 
biunívoca com os dados e elementos resultantes de tais pro­
cedimentos. À análise epistemológica caberia um exame dos 
conteúdos das experiências, ou melhor, do conteúdo teórico 
das experiências, para revelar o possível conhecimento desde 
sempre nela contido. 
Heidegger, por sua vez, retoma nesse contexto o mote 
filosófico do programa fenomenológico husserliano: "Retor­
nar às próprias coisas" (auf die Sachen selbst zuriickzugehen), o que 
significava, já para Husserl, perguntar-se, sem amparo em con­
vicções prévias e pressupostos teóricos, pelas condições verda­
deiramente iniciais do conhecimento, uma vez que a crise das 
ciências é, antes de tudo, uma crise da racionalidade. Em face 
dessa crise que afeta as ciências em geral, mas particularmente 
as humanas (ciências da compreensão), é elucidativo o diag­
nóstico de Merleau-Ponty: 
A crise das ciências, das ciências do homem e da filosofia tende 
para o irracionalismo. O próprio racionalismo surge como um 
contingente produto histórico de certas condições exteriores. Des­
de o início de sua carreira, Husserl sentiu profundamente que o 
problema consistia em tornar novamente possíveis , ao mesmo 
tempo, a filosofia, as ciências e as ciências do homem, repensar 
seus fundamentos e os da racionalidade. Compreendeu que essas 
diferentes disciplinas haviam penetrado em um estado de crise per­
manente, do qual não escapariam se, por uma nova elucidação de 
35 
suas relações e de seus processos de conhecimento, não se chegasse 
a tornar possível cada uma delas, assim como sua coexistência.8 
Os conceitos de cada ciência particular remetem a um 
domínio de objetos investigados de acordo com princípios e 
métodos que dão lugar a um regime próprio de verdade. A tais 
domínios corresponde determinada organização ideativa da 
consciência, estruturas formais que condicionam a intuição 
e os modos de aparecimento de seus conteúdos. A fenome­
nologia seria então uma ciência filosófica das estruturas fun­
damentais da consciência pura em geral, cuja fundamentação 
é exclusivamente lógica e completamente independente da 
psicologia e da antropologia. 
Seu procedimento, inspirado na epoché (suspensão do juízo) 
dos céticos antigos, reduz a experiência vivida a seus elemen­
tos constituintes para identificação e descrição dos modos de 
apresentação dos objetos na consciência. Essa postura meto­
dológica rompe com a "atitude natural" que considera a cons­
ciência parte da realidade, de um mundo dado previamente, 
representado em conformidade com as regras e os princípios 
lógicos do pensamento. 
Com a suspensão do juízo, a realidade dos objetos da 
consciência deixa de se constituir como pretexto para a dúvi­
da metódica ou a negação dogmática, sem ter como implica­
ção que os objetos sejam tomados como criações ideais da 
consciência. Essa ·suspensão possibilita uma redução eidética 
8 Merleau-Ponty, M., op. dt. , p. 16. 
36 
da consciência pura - ou seja, a análise do vivido concreto, 
juntamente com as estruturas formais da consciência, sobretudo a 
intencionalidade, pela qual toda consciência é sempre consciência 
de alguma coisa, todo cogito (eu penso) é sempre também cogitatur 
(conteúdo pensado), e pela qual a experiência pode adquirir 
uma dimensão de sentido para a consciência. 
A redução eidética parte da simples percepção sensível e, 
por meio de sua descrição metódica, desvenda também suas 
estruturas formais ou ideais, que não são de natureza psicoló­
gica ou subjetiva, mas lógicas e universais. Tais estruturas são 
essências ideais, porém diferentes das ideias platônicas, cuja 
existência real é admitida em um mundo inteligível. As essências 
de Husserl são formas de a consciência visar e exibir seus objetos. 
Para entender tal procedimento, deve-se partir da expe­
riência cotidiana: por exemplo, a percepção desse prosaico 
tinteiro sobre minha mesa. Existem no mundo inumeráveis tin­
teiros individualmente semelhantes ou individualmente dife­
rentes. Entretanto, todos mantêm a mesma unidade genérica: 
são tinteiros, e não cinzeiros. 
Essa "tinteiridade" é apreendida com a percepçãosensível 
do meu tinteiro, mas é completamente diferente dela. Husserl 
denomina intuição categorial o modo de apreensão das essências 
pela consciência. Emb_ora as duas formas de intuição possam 
ser tomadas separadamente, a categorial é baseada na intuição 
de objetos sensíveis ou imaginários. Meu tinteiro, portanto, 
apreendido como conteúdo de uma simples percepção sensível, 
dá lugar a novos atos de consciência visando a seus elementos 
e sua coerência interna, sua categoria essencial: a "tinteiridade", 
37 
que não existe separada da intuição sensível e que só pode ser 
adequadamente compreendida em conexão com outros objetos, 
como a pena, o papel, a caneta, a escrivaninha etc. Nem ideias 
platônicas, nem nomes ou ficções, mas seres ideais, dados de 
maneira similar à dos objetos sensíveis (seres reais). 
À "intuição das essências" (Wesensschau) está ligada a "aper­
cepção compreensiva" (komprehensive Apperzeption), expressão 
que designa os modos como a consciência percebe os obje­
tos na vida cotidiana, nos diferentes contextos do Lebenswelt 
(mundo da vida). Por meio dela, apreendemos a unidade da per­
cepção e do percebido, entre a expressão e o que nela é expresso. Essas 
unidades compreensivas são pessoas ou objetos culturais; é 
assim que apreendemos os outros homens como pessoas, ao 
tomar consciência deles e-orno unidades anímico-corporais, 
nas quais o corpo torna-se corpo expressivo, e os objetos culturais 
não são meras coisas físicas, mas devem ser compreendidos 
como elementos dotados de identidade e sentido no contexto 
intersubjetivo de uma cultura. 
Esse ideário é fundamental para Heidegger, razão pela 
qual foi integrado em Ser e tempo, livro dedicado a Husserl. Mas 
essa obra foi também a razão principal do distanciamento de 
Heidegger de seu mestre. A decepção de Husserl com o livro 
foi imensa, por considerar que seu discípulo reconvertia a 
fenomenologia em psicologia e em antropologia, ao transfor­
má-la em analítica fenomenológica das estruturas do ser-o-aí 
(o Dasein9
). "Em texto publicado em 1930, [Husserl] fala de um 
9 Todos esses conceitos e noções s~rão definidos e explicados a seguir. 
,8 . 
erro corruptor do puro sentido da filosofia, que quer fundar 
a filosofia sobre a antropologia ou a psicologia, sobre a ciên­
cia positiva do homem, sobre a vida anímica do homem", nas 
palavras de G. Figal. 1º 
"' 
Seja como for, Ser e tempo, ressalta Figal: 
É o ponto para o qual convergem as primeiras propostas de 
Heidegger, é o ponto de partida para tudo o que ele pensou depois 
de sua publicação. O seu pensamento após Ser e tempo é sempre 
uma retomada das questões fundamentais deste livro; extensas 
anotações do filósofo provarão isso, de maneira impressionante, 
tão logo publicadas. 11 
10 Figa! , G., op. cit., p. 33. 
11 Idem, ibidem , p. 83. 
39 
O primeiro 
Heidegger 
AS INTUIÇÕES INICIAIS 
A originalidade e a radicalidade da contribuição de Heidegger 
à filosofia contemporânea não precisam ser enfatizadas, uma 
vez que nela se encontra tanto uma reapropriação sui generis da 
tradição quanto uma nova determinação dos rumos futuros 
da filosofia, cuja frase-guia é "superação da metafísica". 
Se a filosofia, dos gregos aos nossos dias, pode ser conside­
rada um sinônimo de metafísica, então a pretensão de Heideg­
ger consiste em nada menos do que retornar, pela meditação, 
em diálogo produtivo com os grandes pensadores, aos mais 
recuados primórdios do pensar filosófico. Ou seja, retornar 
a uma experiência de pensamento iniciada com os pré-socrá­
ticos, prosseguida e depois soterrada pela hegemonia da meta­
física desde Sócrates, Platão e Aristóteles. 
Neste capítulo, serão explicitadas as intuições in!ciais que 
estão na base da filosofia do primeiro Heidegger e que lanham 
expressão literária nas obras compostas nesse período. Delas, 
a mais relevante é, por certo, Ser e tempo, mas a produção está 
longe de limitar-se a esse livro, uma vez que vários textos de 
41 
Heidegger, como sua Fenomenologia da vida religiosa, Que é meta­
física , A doutrina das categorias e da significação em Duns Scoto, 
A doutrina do juízo no psicologismo, assim como outros trabalhos 
de fenomenologia e hermenêutica, que só postumamente foram 
publicados, pertencem a esse mesmo período, que se encerra em 
torno de 1935, com a assim chamada viravolta. 
O aporte heideggeriano para a filosofia deve ser indicado 
por dois termos de inesgotável riqueza expressiva: superação 
(Überwindung) e torção (ou distorção, Verwindung) da metafísica. 
Quanto ao primeiro termo, ele não oferece problemas, 
uma vez que Heidegger explicita com frequência que seu pen­
samento empreende um esforço para superar a metafísica, 
assumindo a tarefa de destruição de suas categorias e pressu­
posições fundamentais. Já com respeito ao segundo, as coi­
sas não são tão fáceis. O filósofo italiano Gianni Vattimo faz 
uma elucidação suficiente do sentido dessa palavra alemã. Ao 
verter Verwindung para o italiano, ele recorre ao verbo rimet­
tersi, ou seja, "convalescer", "restabelecer-se", "curar-se", para 
denotar um "ultrapassamento que, na realidade, é reconheci­
mento de vínculo, convalescença de uma doença, assunção de 
responsabilidade". 1 
Trata-se, portanto, de uma superação que só pode ser feita 
de dentro da história da metafísica, pelo diálogo agonístico 
(Gespriich, mas também Streit), na forma de Auseinandersetzung 
(discussão, porém, no sentido de colocar-se um fora do outro, 
1 Vattimo, Gianni. "Dialet~ica, differenza, pensiero debole", p. 28 (tradução 
do autor). 
42 , 
afrontar-se e defrontar-se), com os grandes pensadores, eles 
próprios herdeiros e transmissores do legado espiritual da tra­
dição, considerados por Heidegger como "grandes", na acep­
ção de seminais, pois no pensar deles se articula uma dicção a 
respeito da verdade2 do Ser. 
As distinções empreendidas acima facilitam a compreen­
são das duas grandes configurações que cristalizam a produção 
de Heidegger: 1) como analítica da finitude, característica da 
ontologia fundamental levada a cabo em Ser e tempo como feno­
menologia da Ex-sistência, também conhecida como filosofia do 
primeiro Heidegger; e 2) como história da verdade do Ser, que 
marca o pensamento do assim chamado segundo Heidegger, 
sua filosofia tardia, à qual pertence a reflexão sobre a essência 
da técnica moderna. 
Em ambas encontramos o traçado geral de um mesmo per­
curso: aquele do esforço para retornar às primeiras intuições, 
ao início primevo do filosofar, fazendo-o, porém, de modo 
ainda mais radical e originário do que o fizeram os próprios 
gregos. Trata-se de uma monumental tentativa de retomar, em 
toda sua plenitude e gravidade, a pergunta eterna pelo sentido 
do Ser: por que existem os entes em seu ser, e não antes o Nada? 
Para tal empreendimento, concorre o conceito fundamen­
tal de diferença ontológica entre ente e Ser, assim como o conceito 
de ser-o-aí, o ente que entende ser. 
.,, 
2 A palavra "verdade" é a tradução do termo grego alétheia, formado pelo pre­
fixo de negação "a" e a palavra lethéin (véu, velar, ocultar). Significa, portanto, 
em sentido literal: desvelado, desocultado, sem véus. 
43 
Esses conceitos são mobilizados com o intuito de resgatar 
do esquecimento a pergunta pela verdade e pelo sentido do 
Ser, relegada na história da metafísica em prol de uma reflexão 
que concerne apenas ao ser do ente em sua totalidade - ou 
seja, da filosofia metafísica interpretada por Heidegger como 
onto-teo-logia, característica do pensamento ocidental desde 
Platão e Aristóteles, que atravessa a Idade Média e mantém 
sua vigência, quanto ao essencial, ainda no mundo moderno 
e contemporâneo. 
Por certo, a filosofia contemporânea seria inteiramente outra 
sem Heidegger, e entendê-la constitui uma tarefa que não pode 
prescindir, em absoluto, de uma leitura cuidadosa de sua obra. Eis 
por que a literaturasecundária sobre Heidegger tem dimensões 
inusitadas. A compreensão.adequada do mundo atual, com suas 
crises e seus dilemas, bem como a reflexão sobre o seu futuro 
problemático, simplesmente não devem abrir mão de um sério 
enfrentamento com Heidegger. 
Nesse sentido, até mesmo o funesto envolvimento do 
filósofo com o nazismo assume uma função importante no 
diagnóstico de nosso presente. Trata-se, por certo, de um erro 
deplorável de avaliação política, mas que só pode ser produ­
tivamente enfrentado em patamar crítico compatível com o 
conjunto do pensamento de Heidegger e só pode ser suficien­
temente compreendido a partir de sua filosofia da técnica. É 
um erro que mostra até onde pode conduzir a tentativa de 
compreender a essência da moderna tecnologia, sem limitar­
-se aos quadros explicativos marcados por uma cqncepção 
instrumental e antropocêntrica. 
44 • 
Se a filosofia do século XX e seus caminhos futuros não 
podem ser compreendidos sem Heidegger, também não podem 
sê-lo outras esferas determinantes da cultura ocidental, pois as 
contribuições do filósofo espraiam seus efeitos em domínios tão 
diversos quanto os da epistemologia, da teoria da ciência, da lógica, 
da filosofia da linguagem, das ciências da natureza, das ciências 
humanas, da psicanálise e da estética, poderosamente estimuladas, 
desafiadas e fecundadas pelos questionamentos de Heidegger. 
Até mesmo a reflexão sobre a extensão e os limites de nos­
so próprio horizonte cultural - assim como a abertura para 
um diálogo possível com o Outro, com culturas diferentes da 
nossa - precisa ser empreendida a partir de Heidegger, com 
Heidegger, ainda que deva sê-lo, em determinados aspectos, 
também contra Heidegger. Esse mesmo "contra" faz parte do 
diálogo conflitivo, Streit (embate) e Gespriich (conversação), que 
animam a atividade autenticamente filosófica. 
A LINGUAGEM E O CAMINHO DO NOVO PENSAR 
Com Heidegger, a linguagem filosófica é explorada nos limites 
extremos de suas possibilidades e de seus recursos expressivos. 
Para ele, a linguagem é tanto a "morada do Ser" quanto o âmbito 
em que o homem habita o mundo. Portanto, levar a linguagem 
aos seus limites últimos cons_titui exigência de um pensamento 
em busca de articulação, uma experiência radical de recupe­
ração pensante das autênticas e originárias precondições do 
logos filosófico. 
45 
Por causa disso, este livro, em várias passagens, terá que 
seguir de perto as pegadas de Heidegger, em um percurso em 
que o filósofo põe o pensar a serviço da linguagem. Nesse 
caminho, deverá retomar, também terminologicamente, as 
considerações de Heidegger sobre a linguagem, suas transições 
entre o grego e o alemão, às quais nosso trabalho aduzirá ainda 
o português. Contudo, tais passagens limitar-se-ão ao impres­
cindível para a compreensão adequada das posições filosóficas 
do pensador da Floresta Negra. 
Assim é que a questão da linguagem tem status privile­
giado nas reflexões de Ser e tempo, tanto naquelas que dizem 
respeito a logos e legein, como também à dimensão Existenzial da 
Rede (palavra). Além disso, grande parte do pensamento da his­
tória do Ser constitui-se como uma retomada da proximidade 
e da distância entre filosofia e poesia, entre o logos poético e o 
logos filosófico, e em seu interior há um papel essencial reser­
vado à tematização da linguagem. Sendo assim, uma introdu­
ção à filosofia de Heidegger não poderia deixar de considerar 
o paradoxo da distância próxima entre o pensar e o poetar, 
essencialmente lastreado na experiência da linguagem, como 
um de seus estágios necessários. 
Uma correspondência entre filosofia e poesia foi experi­
mentada historicamente na era pré-socrática e da tragédia ática, 
experiência com a qual Heidegger pretende reatar, tornando-a 
ainda mais radical e originária do que aquela que foi vivenciada 
na Grécia. Pensar e poetar são duas modalidades de dispor o 
pensamento a serviço da linguagem, duas maneiras de habitar 
po(i)eticamente a linguagem. 
46 
Por isso mesmo, (re)aprender a pensar, tal como Heidegger 
se propõe a fazer, ao responder à pergunta "o que significa pen­
sar?", é um propósito que só se atinge em diálogo com a poesia, 
em uma recuperação da essência da linguagem, ofuscada pela 
hegemonia metafísica na história do pensamento. 
A despeito da obsessão atual pela filosofia da linguagem 
(Sprachphilosophie), Heidegger considera que ainda não estamos 
familiarizados com a atmosfera vital do pensamento autên­
tico, ainda não aprendemos (ou desaprendemos) a pensar, 
porque não habitamos a essência po(i)ética da linguagem, 
como clareira do Ser. 
O logos, essa habitação que a linguagem oferta ao pensa­
mento, constitui o elemento que reúne o filosofar e o poetar. 
Reunir é coligar, vincular, também corresponder: são verbos 
que evocam Eros, mas também lembram a atividade de reco­
lher, a ação de legein (coligir, coligar), própria do logos (verbo, 
palavra, razão). Mesmo a doutrina do pensamento como lógica, 
ou racionalidade lógica, deriva dessa acepção originária de 
legein como ligar, coligir, de modo que a síntese do pensamento 
no juízo é subsidiária da ligação essencial operada pelo logos, 
como elemento linguageiro do pensamento. 
O monopólio do pensar exercido pela racionalidade lógica 
é um confisco; da mesma maneira, a theoria não é o monopó­
lio da filosofia. Pelo contrário, o pensar da lógica é um modo 
derivado do pensamento produzido na história da metafísica, 
a partir do esquecimento da verdade do Ser e da essência do 
pensar como correspondência: 
47 
A caracterização do pensar como theoria e a determinação do 
conhecer como postura "teórica" já ocorrem no seio da interpre­
tação "técnica" do pensar. É uma tentativa reacional, visando salvar 
também o pensar, dando-lhe ainda uma autonomia em face do 
agir e do operar. Desde então a "filosofia" está constantemente na 
contingência de justificar sua existência em face das "ciências". 
Ela crê que isso se realizaria da maneira mais segura, elevando-se 
ela mesma à condição de uma ciência. Esse empenho, porém, é 
o abandono da essência do pensar. A filosofia é perseguida pelo 
temor de perder em prestígio e importância, se não for ciência. 
O não ser ciência é considerado uma deficiência, que é identificada 
com a falta de científicidade. Na interpretação técnica do pen­
sar, abandona-se o Ser como o elemento do pensar. A "lógica" é a 
sanção desta interpretação que começa com a sofística e Platão. 3 
Com isso, também a linguagem retraiu-se de seu elemento, 
desgarrou-se da experiência originária do logos e legein. Nessa 
retração, o pensar quedou-se fora de sua atmosfera vital, aliena­
do dela, desalojado de seu âmbito originário: a linguagem, que 
é a morada do Ser, recusa-nos o ~cesso pensante à sua essência, 
na medida em que não mais correspondemos à verdade do 
Ser como desvelamento (alétheia) , ao qual pertence constitu­
tivamente a linguagem como desocultamento dos entes no e 
pelo discurso. 
Nesse sentido, pensar é corresponder pela palavra à ver­
dade do Ser. Mas a subtração da linguagem em relação à sua 
3 Heidegger, M. "Sobre o 'humanismo'", p. 348. 
48 
essência, a fuga da correspondência ao chamamento do Ser em 
seu desvelar-se pelo discurso humano é o sinal de que, a despei­
to de toda ciência e filosofia , ainda não aprendemos a pensar. 
A obliteração dessa ausência pela agitação no domínio da 
práxis e pelo palavrório no setor da cultura, pela preocupante 
hegemonia anônima da opinião pública e do politicamente cor­
reto constituem, por outro lado, a necessidade constringente, 
a penúria que suscita o thaumatsein (espantar-se, admirar-se), 
no qual germina o autêntico perguntar filosófico: como ocorre 
que, na era da onipotência da tecnociência, ainda não sejamos 
capazes de pensar o que é mais digno de ser pensado, a saber, 
o Ser dos entes em sua verdade? 
Se, todavia, a verdade doSer tornou-se digna de ser pensada para 
o pensar, deve também a reflexão sobre a essência da linguagem 
alcançar um outro nível. Ela não pode continuar sendo apenas 
pura filosofia da linguagem. É somente por isso que Ser e tempo 
contém uma indicação para a dimensão essencial da linguagem e 
toca a simples questão que pergunta em que modo de ser, afinal, 
a linguagem como linguagem é, em cada situação.4 
Se, nessas condições, o pensamento se esquiva à corres­
pondência com a essência da linguagem, ele está fadado a 
corresponder à transformação técnica da natureza em fun­
do de reserva, a reportar-se sempre unicamente à essência 
metafísica do ser dos entes como vontade de poder e à infinita 
4 Idem, ibidem, p. 350. 
49 
reprodutibilidade do cálculo como versão contemporânea do 
"eterno retorno do mesmo", antecipado por Nietzsche. 
Uma vez que a cibernética tornou-se a figura contemporâ­
nea da metafísica, a interpretação técnica do pensar sequestra 
a linguagem no âmbito do querer e do fazer humanos, como 
instrumento dócil para garantir o domínio integral sobre a 
totalidade dos entes. A destruição e a superação da metafí­
sica têm como condição uma retomada da experiência viva da 
essência da linguagem, como o lugar da verdade, bem como 
do misterioso relacionamento entre esses parentes próximos, a 
filosofia e a poesia, que, contudo, habitam as montanhas espi­
rituais mais distantes uma da outra. Daí por que a abertura de 
Heidegger para um novo pensar passa necessariamente pelo 
caminho da linguagem, tal como sugere o título de uma de suas 
obras: Unterwegs zur Sprache (A caminho da linguagem). 
SER E TEMPO: CONCEITOS E TEMAS 
Ser e tempo, publicado em 1927, é a obra capital do período 
conhecido como a filosofia da juventude de Heidegger. O livro, 
todavia, ocupa um papel bem mais central do que esse em sua 
trajetória, uma vez que é retomado por ele em todos os momen­
tos posteriores de seu pensamento. 
Pode-se mesmo considerar que o programa completo de 
Ser e tempo já contemplava, em seu interior, a necessidade 
de determinada infle~ão em seu percurso, de uma viravolta, 
que abriria caminho para o esforço de meditação que constitui 
c;o • 
a filosofia tardia de Heidegger- em que o sentido de sua refle­
xão seria profundamente alterado, invertendo-se de Ser e tempo 
para Tempo e Ser e deslocando o vetor inicialmente dado pela 
análise existencial do ser-o-aí para a temporalidade própria 
do sentido do Ser. 
Por esse motivo, elucidar o significado dos conceitos, 
temas e problemas de Ser e tempo é relevante não apenas para 
uma compreensão interna da analítica existencial, mas tam­
bém do pensamento de Heidegger em seu conjunto. A seguir, 
apresentamos uma explicitação de elementos principais desse 
livro, já com vistas ao desenvolvimento ulterior da filosofia 
heideggeriana. 
Ontologia fundamental 
Ontologia fundamental nomeia a principal característica 
de Ser e tempo: é a tentativa de desconstrução da metafísica 
e de elaboração da analítica da finitude, tendo como ponto 
de partida uma fenomenologia hermenêutica das estruturas 
fundamentais do ser-o-aí. 
O ponto de confluência dessas tarefas é enunciado já na 
epígrafe do livro - tão incisiva quanto o título e que indica, de 
modo conciso, o centro nevrálgico do pensamento de Hei­
degger: a pergunta pelo sentido do Ser. A raiz dessa pergunta 
está plantada no solo do pensamento grego. Heidegger recorre 
a uma citação de O sofista, de.Platão, para enunciá-la de modo 
paradigmático: "Uma vez, pois, que nos encontramos em difi­
culdade, caberá a vós explicar-nos o que entendeis por este 
vocábulo 'ser'. Evidentemente essas coisas vos são, de há muito, 
51 
... 
familiares. Nós mesmos, até aqui, acreditamos compreendê-las, 
e agora nos sentimos perplexos".5 
Ao longo de sua história, a filosofia ocidental preocupou-se 
sempre com o Ser, de modo que seria razoável esperar que, de 
há muito, estivéssemos familiarizados com o significado desse 
termo. Perguntas concernentes aos predicados mais gerais do 
ser (categorias) ou à distinção entre o ser e o devir, a realidade e 
a aparência, sempre constituíram o foco de atenção e meditação 
da filosofia. 
Como se explicaria, então, que Platão, um dos maiores íco­
nes da filosofia , tenha delegado à voz de um sofista a constata­
ção perplexa de que não estamos familiarizados com aquilo que 
pensamos quando empregamos a palavra "ser"? Embaraçoso é 
constatar que até agora acre,:Htávamos sabê-lo, mas, em verdade, 
carecemos de uma explicação que nos livre da dificuldade de não 
compreender o que propriamente pensamos quando dizemos "ser". 
Assim, já estaria em Platão a suspeita de que a filosofia des­
conhece o que é pensado sob o termo "ser" - ainda que seja o 
mais empregado ao longo de sua história. Escândalo e pasmo, 
portanto, uma pedra de tropeço. Ser e tempo é uma das tenta­
tivas mais radicais da filosofia contemporânea para retomar 
essa pergunta em toda sua envergadura. Saberíamos nós o que 
Platão confessava desconhecer? A resposta de Heidegger é: não, 
de modo algum. 
Ora, qualquer resposta pertinente só pode ser dada e, sobre­
tudo, compreendida quando a pergunta a que ela responde é 
5 Platão. "So fi sta", p. 163, 244 a. 
52 
adequadamente formulada. Daí a suspeita de que nem Platão, 
nem a história da filosofia inteira ofereceram uma resposta 
pertinente à pergunta pelo sentido do Ser. E isso ocorre porque 
a pergunta não foi propriamente formulada, o questionamento 
não foi suficientemente pensado. 
Essa perplexidade oferece a Ser e tempo o seu ponto de par­
tida e a sua ocasião: é preciso perguntar novamente pelo sentido 
do Ser, e a elaboração concreta dessa questão é o propósito da 
obra de Heidegger. Para tanto, é imprescindível despertar de 
novo a compreensão prévia para o sentido da pergunta - isto 
é: que sentido tem a pergunta pelo sentido do Ser? 
Ontologia é a disciplina filosófica que estuda o ser dos 
entes. A palavra "ente" traduz o termo grego anta, que designa 
entidades, aquilo que é ou que existe. Ontologia, portanto, é 
ciência ou estudo metódico (logia) daquilo que é - o ente-, 
visando determinar sua essência ou seu ser. A busca pelo sen­
tido da pergunta constitui já uma modalidade de questiona­
mento ontológico, pois o que se tornou problemático não é 
outra coisa senão o sentido do Ser. 
A meta seguinte consiste em interpretar o tempo como 
possível horizonte para toda e qualquer compreensão do Ser. 
Consiste, então, em retomar a pergunta pelo sentido do Ser com 
plena consciência da relevância da própria pergunta, tendo o 
tempo como possível limiar de compreensão e resposta. Como 
o próprio enunciado demonstra, a pergunta faz sentido. 
A próxima questão diz respeito à necessidade da pergun­
ta. Por que suscitá-la, sobretudo por que retomá-la no ápice 
da modernidade? Responder a ela implica, ao mesmo tempo, 
53 
elucidar a razão pela qual a ontologia de Ser e tempo é designada 
como fundamental. A justaposição dos dois termos (ontologia 
fundamental) remete às afinidades eletivas entre o empreendi­
mento filosófico de Heidegger e a crise das ciências europeias. 
Urge retomar essa pergunta pela óbvia razão de que falta 
para ela uma resposta - o que talvez seja um indício de que, 
antes de tudo, a própria pergunta tenha faltado. Formulá-la ade­
quadamente é a tarefa assumida por Heidegger em Ser e tempo. 
A questão se impõe, sobretudo, em função da crise das 
ciências no século XX, tal como fora diagnosticada por Hus­
serl, e que não cessou de se aprofundar ao longo da história. 
Toda ciência tem como base uma "infraestrutura" conceituai, 
referida a um domínio de objetos dos quais extrai um saber 
sistemático, por meio de uma metodologia de investigação que 
inclui pautas de observação, controle e experimentos, discri­
minando assim um regime de verdade. 
Uma crise científica pode afetar, por exemplo, a periferia

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