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conjunto teórico ou então a metodologia e seus procedimentos.
Mas pode afetar também o "núcleo duro" de uma ciência, aque
la base de conceitos fundamentais que designam as entidades
(onta) ou o campo de objetos de investigação. Exemplos disso
são conceitos como "extensão", "matéria", "movimento", "força",
"massa", "espaço", "tempo", "número", "quantidade", "grandeza",
"átomo", "genes", "instintos" e "pulsões". Questionar tais concei
tos é algo que afeta o substrato ontológico e desestabiliza a com
preensão de ser vigente em determinada disciplina científica.
Esse tipo de probl~ma chama-se crise de paradigmas {modelo
ou campo conceituai que dete~mina o ser dos entes de que uma
54 •
ciência se ocupa), ou revolução cientifica, enquanto as problema
tizações periféricas são aquelas que surgem em períodos de
vigência normal de certo paradigma.
Não se pode negar que, desde o início do século passado,
vivemos uma prolongada crise de paradigmas nas ciências for
mais, naturais e humanas. Tanto nas ciências quanto na filosofia
o horizonte de compreensão para o sentido do Ser encontra
-se nublado. Para esse ofuscamento, não encontraremos saída
enquanto não respondermos às questões ontológicas fundamen
tais, incidentes sobre o estrato teórico dos conceitos básicos das
ciências e da filosofia modernas. Esse é um dos legados mais
importantes recebidos por Heidegger de seu mestre Husserl.
Ninguém discute a importância das ciências em nosso mun
do, mas não há dúvida, também, que nenhuma ciência particular
- empírica ou formal - pode dar uma resposta para a pergunta
pelo ser dos entes com os quais se ocupa porque toda normali
dade científica assume como dado um determinado domínio de
entidades que constitui seu objeto de investigação. As ciências
ocupam-se dos entes que correspondem a seus conceitos - e
mais nada. Elas diferem do senso comum ou de um mero saber
do provável porque suas teorias são formadas por juízos com
pretensão de universalidade e de necessidade objetiva.
A ciência se ocupa com os entes; não se pergunta pelo
estatuto de ser das entidades com as quais opera, mas assume
tacitamente um sentido para: seus conceitos, objetos e rela
ções - um sentido que pressupõe um entendimento irrefletido
de Ser como presença (Vorhandenheit, ou presentidade, no léxico
heideggeriano).
O fenômeno mais importante na crise das ciências con
temporâneas é que ela afeta a infraestrutura ontológica destas,
o que evidencia a necessidade e a urgência de uma retomada
da pergunta pelo sentido do Ser. Essa pergunta foi silenciada
pela ontologia metafísica, na medida em que esta sempre se
dedicou às condições do ser dos entes, em sua totalidade, e não
aos sentidos do Ser como tal: razão pela qual sempre se man
teve em um patamar meramente ôntico, ignorando a diferença
ontológica, mais originária, entre ente e Ser.
A essência dos entes não pode ser percebida pelos senti
dos, tampouco ser identificada com nenhum fenômeno físico.
Essências são entidades ideais, apreensíveis por intuição ou
conceito e, em contraste com o universo físico, são de natureza
metafísica (meta ta physika: além da física). Embora não presen
tes no âmbito natural, intramundano, as essências ainda são
entes. Alguns exemplos são as ideias de Platão, as causas de
Aristóteles, Deus como ens supremum na filosofia medieval, a
substância pensante na metafísica de Descartes ou as môna
das em Leibniz. A metafísica constitui, portanto, um tipo de
ontologia que se pergunta pelo sei dos entes, por sua essência,
e responde a essa pergunta com a identificação de um ente ou
um gênero supremo de entes metafísicos, cujo estatuto cabe
à filosofia explicitar.
Sem dúvida, temos aqui uma diferença entre o plano das
entidades naturais ou físicas e o âmbito próprio - também ele
ôntico - de entes cujo modo de existência difere dos naturais.
Essa diferença circunscreve a região da metafísica - também
as entidades intelectuais (metafísicas) existem como entes
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representáveis, só que inacessíveis ao olhar, sendo apreensíveis
apenas pela especulação ou a contemplação teórica.
Com Platão, por exemplo, podemos dizer que a essência
(o conceito) de cão nada tem a ver com qualquer cão deter
minado, nem com nenhuma raça canina existente no mundo
ou na imaginação. Ela consiste no elemento ideal (eidos, em
grego; idea, em latim), presente em todo cão empírico e que
o caracteriza como tal - e não como um gato - , mas que não
é perceptível aos sentidos, apenas discernido pelo intelecto.
Platão deu a isso o nome de ideia - entidade de um mundo
(metafísico) puramente inteligível.
A essa diferença entre os entes e o ser dos entes em sua
totalidade, Heidegger acrescenta outra, cuja função é axial no
contexto de Ser e tempo: a distinção entre ôntico e ontológico, na
qual o termo ontológico remete à pergunta pelo sentido do Ser
enquanto Ser, e não ao ser dos entes em geral. A essa diferença
ontológica corresponde, no léxico de Ser e tempo, a diferencia
ção conceituai entre Existenziel (existencial-ôntico) e Existenzial
(existencial-ontológico).
Existencial-ôntico é um predicado dos entes como tais.
O gênero mais elevado desse tipo de atribuição são os conceitos
gerais, que podem ser predicados de todos os entes que figuram
em um discurso e para os quais Aristóteles cunhou o nome
de categorias. A substância e os atributos essenciais podem ser
considerados, com outros conceitos do mesmo grau de gene
ralidade, gêneros supremos do Ser.
Diferentemente do existencial ôntico, limitado ao plano
dos entes, o existencial-ontológico remete ao plano do Ser, em
~7
sua diferença para com os entes. O termo ontológico não diz
respeito às características particulares dos entes existentes ou
possíveis, mas designa o fundamento originário que os torna
o que eles essencialmente são, ou seja, que os constitui em seu
ser próprio.
É a partir dessas noções que se explicita a temática da diferen
ça ontológica tal como a pensa Heidegger. Os diferentes campos
de objetos investigados pelas ciências particulares, com suas
metodologias próprias e seus específicos regimes de verdade,
são domínios ônticos (de entidades). São formados, por exem
plo, pelo número e pelas figuras, pela matéria e o movimento,
pelos astros, a natureza e a composição dos elementos quími
cos, as forças e energias, a vida em suas diferentes formas, a
sociedade, a política, a psique, as pulsões, para nos limitarmos
a algumas indicações gerais.
Essas regiões de entes formam o conjunto que denomi
namos efetividade (Wirklichkeit), ou seja, o mundo dos objetos
realmente existentes ou possíveis. Eles seriam, no sentido de
Heidegger, entes intramundanos. As questões que os tomam por
objeto são, portanto, perguntas ônticàs, as quais se limitam ao
domínio dos entes em sua efetividade. Nesse sentido, o homem
é um ente intramundano, como os outros animais, as plantas,
os minerais, os números, as figuras e os seres fictícios.
A pergunta sobre o sentido do Ser transcende esse plano
ôntico (relativo aos entes), pois é da resposta a ela que depende a
resolução das dificuldades epistemológicas que afetam as ciências.
A crise contemporânea das ciências torna urgente uma
recolocação da pergunta o~tológica, com uma sensibilidade
58
renovada para a relevância desse questionamento. Como em
toda crise, há uma pressão difusa por julgamento e decisão.
Ela se apresenta, então, como urgência de decisão quanto ao
sentido da própria crise, já que não temos a menor dúvida a
respeito da necessidade constringente com que as ciências se
impõem em nosso mundo. Uma problematização dessa crise,
porém, não pode ser levada a cabo em outra parte e de outra
maneira senão como recolocação da pergunta pelo sentido do Ser,
na medida em que a desestabilização da base ontológica das
ciências contemporâneas atesta o esgotamentodas virtualida
des teóricas da metafísica tradicional.
Trata-se de carência que afeta os fundamentos e que, por
isso, exige uma ontologia fundamental, não ligada apenas aos cam
pos especiais de entidades assumidas como objetos das ciên
cias particulares (posto que elas se tornaram insubsistentes em
razão da crise e seu estatuto se encontra permanentemente
em questão), mas ao âmbito geral das próprias modalidades
de Ser dessas entidades.
Em resposta a essa urgência, a ontologia de Ser e tempo está
voltada para a meditação filosófica a respeito do sentido do Ser,
visando não apenas ao ser dos entes, tais como se apresentam
enquanto fenômenos, mas ao Ser enquanto tal. Ora, essa tarefa
exige um ponto de partida absolutamente novo, uma vez que, na
história da filosofia ocidental, o Ser sempre foi pensado apenas
em relação aos entes, sempre a partir da presença das coisas que
são, nunca sendo levadas em conta as diversas modalidades em
que os entes se dão e se mostram, nunca sendo considerados a
instância ou o limiar originário desse dar-se e mostrar-se.
59
A pergunta pelo sentido do Ser não pode partir aleatoria
mente de qualquer ente, uma vez que neles o dar-se e o mostrar
-se, como tais, não são problematizados. Ela deve partir de um
ente especial, no qual e a partir do qual seja possível um acesso
ao Ser e ao seu sentido, ao limiar e à clareira de onde provêm
o dar-se e o mostrar-se.
Essa ontologia tem de ser orientada por um vetor, em uma
determinada direção, a saber: por um entendimento prévio
do Ser como tal (para designá-lo, Heidegger recorre à for
ma arcaica de sein, ser, em alemão: seyn), do qual procedem
os entes. Ela tem de abrir-se às suas diferentes modalidades,
descerradas pela pergunta por seu sentido. A partir de onde,
ou de que, seria possível obter esse acesso privilegiado aos
modos de Ser (Seyn)?
Para o resgate das intuições e experiências originárias
nas quais o logos (em grego: "verbo", "pensamento", "razão";
ratio, em latim), pela primeira vez no Ocidente, enunciou-se
como linguagem, é necessário destruir as bases em que
se consolidou a ontologia metafísica tradicional. Esta, ao tra
tar do Ser e de seu sentido, privilegiou â categoria de essência
à de existência, orientou o pensamento para a revelação do
que são os entes, em seus atributos e predicamentos essen
ciais, mas esqueceu-se da diferença entre o ser dos entes e
o próprio Ser.
-Invertendo o sentido vetorial, Heidegger mostra que
a reflexão filosófica sobre Ó ser dos entes deve necessaria
mente partir do ser-o-aí, na medida em que, entre todos
os entes, este é o único para o qual a compreensão de ser é
60
originária e faz sentido. É também o único que tem interesse
na pergunta pelo Ser (e primeiramente pelo sentido de seu
próprio ser).
Daí resulta que o ser-o-aí é um ente de natureza essencial
mente ontológica, aberta e voltada para o Ser. É dessa instância
que deve nascer o impulso para uma retomada da preocupação
filosófica com o Ser - e não apenas sobre o ser dos entes -,
capaz de liberar novamente o acesso às intuições fundamentais
que inspiraram a compreensão originária de logos e, com isso,
constituíram nossa identidade cultural.
É esse o sentido mais próprio da expressão destruição
da metafísica. A ontologia fundamental heideggeriana não
perfaz um salto para fora da filosofia, tal como a conhece
mos e a praticamos, nem constitui uma recusa da tradição
filosófica ocidental. Ao contrário, trata-se de prosseguir no
caminho dessa tradição, que também determina o futuro,
já que se trata ainda e sempre de perguntar-se pelo sentido
do Ser:
Este caminho para a resposta à nossa questão não representa
uma ruptura com a história, nem uma negação da história, mas
uma apropriação e transformação do que foi transmitido. Tal
apropriação da história é designada com a expressão "destrui
ção". O sentido dessa palavra é claramente determinado em Ser
e tempo. Destruição não significa ruína, mas desmontar, demo
lir e pôr de lado - a saber, as afirmações puramente históricas
sobre a história da filosofia . Destruição significa: abrir nosso
ouvido, torná-lo livre para aquilo que na tradição do ser do ente
61
nos inspira. Mantendo nossos ouvidos dóceis a essa inspiração,
conseguimos situar-nos na correspondência.6
Ser-o-aí
Para Heidegger, ser-o-aí (Dasein) deve ser descrito em suas
estruturas ontológicas, e essa descrição constitui a tarefa de
uma fenomenologia que parte do atributo essencial desse ente:
sua essência consiste em ex-sistere: existir, subsistir, suster-se,
colocar-se de pé, manter-se na exterioridade, na abertura.
Escreve Heidegger, em Ser e tempo:
A palavra grega phainomenon, à qual remete o termo "fenômeno",
deriva do verbo phainestai, que significa: aquilo que se mostra,
o manifesto. Phainestai é o infinitivo de phaino: trazer ao dia, colocar
à luz. Phaino pertence à raiz pha-como phos, a luz, a claridade, isto é,
aquilo em que algo pode tornar-se manifesto, visível em si mesmo.
Devemos reter a significação da palavra "fenômeno": aquilo que se
mostra em si mesmo, o manifesto. Os phainomena, "fenômenos",
são, portanto, o conjunto daquilo que está ou pode ser trazido à luz
e que os gregos, por vezes, identificavam simplesmente com ta anta
(os entes, o ente). O ente, portanto, pode mostrar-se, a partir de si
mesmo, de diversas maneiras, conforme o modo de acesso a ele.7
A fenomenologia do ser-o-aí descreve a essencial remissão
ao Ser constitutiva desse ente singular, o homem. Este é um
6 Heidegger, M. "Que é isto - a filosofia?", p. 218.
7 Idem, Sein und Zeit, p. 28, § 7 (tradução do aut?r) .
62
ente que, em seu modo de existir (em sua constituição ôntica),
mantém uma relação essencial com o Ser. De nós mesmos parte
a ontologia fundamental, na medida em que existimos tanto
como Da quanto como sein.
Dasein é uma palavra composta pelo verbo "ser" (sein) e pelo
advérbio "aí" (da). Em acepção existencial-ontológica, o Dasein é
ente a cuja essência pertence o ser; que existe (é) enquanto aí- no
aberto, em abertura para o Ser. Essa é a condição ontológica do
homem como Dasein, como ser-o-aí. Nesse sintagma, "da" não
deve ser tomado em acepção espacial, como se indicasse uma
localização, um "aqui" contraposto a "lá" ou "acolá". Em Ser e
tempo, o "aí" significa uma dimensão de exterioridade, como a
expressa pelo prefixo latino ex- em "expelir" ou "extirpar".
O Ser é a contrapartida ontológica do "da" na fórmula Dasein.
Como Dasein, o homem é essa abertura (o homem é, essencial
mente, também esse aij, uma ex-stase: um estar fora de si, junto ao
Ser. Se a ontologia geral concede privilégio teórico à essência em
relação à existência, Heidegger, ao contrário, pensa o Dasein como
ente cuja ex-sistência é ontologicamente fundamental, ou seja, é
constitutiva da essência: uma existência contingente, temporal,
mundana, finita, cujo sentido é ser-para-a-morte.
O ponto de partida da ontologia fundamental é um ente a
cuja existência o Ser pertence como elemento, o que explica o
interesse coetâneo do Dasein pelo Ser, já a partir de seu próprio
ex-sistere: subsistir, persistir na abertura para o Ser, estar fora
de si. Como Dasein, o homem é ontológica e originariamente
ex-sistência ex-tática. Êxtase é a essência da existência humana:
t:.~
O homem desdobra-se assim em seu ser de tal maneira que ele é
o "aí", isto é, a clareira do Ser. Este "ser" do aí, e somente ele, possui o
traço fundamental da ec-sistência, isto significa o traço fundamental
da in-sistência ec-stática na verdade do Ser. A essência ec-stática do
homem reside em sua ec-sistência, que permanece distinta da exis
tentia pensada metafisicarnente.8
Por isso Heidegger sugeriu que, em francês, se traduzisse
Dasein não por être-là (ser-aí), como usualmente era feito, mas
por être-le-là (ser-o-aí):
A palavra"Dasein" significa, segundo a tradição, ser/ estar presente,
diante da mão (Vorhandensein), existência. Nesse sentido, fala-se,
por exemplo, das provas para a existência de Deus. Em Ser e tempo,
todavia, Dasein é entendido de outro modo. Os franceses também
não observaram isso inicialmente, razão pela qual eles traduzem
Dasein em Ser e tempo como être-là, o que significa: ser/ estar aí e não
lá. Em Ser e tempo, o da não significa urna indicação de localização
para um ente, mas deve nomear a abertura na qual o ente pode ser/
estar presente para o homem, também t;le mesmo, para si mesmo.
O aí (da) para o ser distingue o ser-homem. A adequada tradução
francesa para Dasein teria de soar: être-le-là.9
8 Idem, "Sobre o 'humanismo"', p. 353. Sem dúvida, trata-se de um texto
"taroio", datado de 1947, mas que, para nossos propósitos, é de importância
capital, pois retoma, do ponto de vista da autorreflexão e da autocrítica, todo
o programa filosófico de Ser e tempo.
9 Idem, Zollikoner Seminare, pp. 156 s. (-tradução do autor).
64
,...
A primazia ontológica do ser-o-aí como existência está
fundada no seu interesse na pergunta pelo sentido do Ser.
A elaboração sistemática dessa pergunta tem a forma de uma
análise fenomenológica do Dasein - e não do homem, tal como este
é geralmente considerado, como sujeito de conhecimento
e, ao mesmo tempo, objeto de disciplinas científicas, como
a antropologia, a psicologia, a sociologia ou a biologia. Essa
análise fenomenológica considera o ente que compreende sua
relação com o Ser, para quem o Ser importa e dá a pensar, pois
o homem é o único ente que pode liberar um acesso para o
entendimento do próprio Ser, na diversidade de seus sentidos: 10
O título fenomenologia, considerado em seu sentido, é distinto de
designações corno teologia e outras desse tipo. Estas nomeiam os
objetos de urna ciência que lhes corresponde, em seu respectivo
teor de coisa (Sachhaltigkeit). "Fenomenologia" nem nomeia o obje
to de suas investigações, nem é um título que dá nome ao teor da
coisa sob investigação. A palavra apenas dá abertura para o corno
da apresentação e tratamento daquilo que deve ser tratado nessa
ciência. Ciência dos fenômenos diz: urna apreensão de seus objetos
de tal modo que tudo aquilo que sobre eles está em discussão tem de
ser tratado em demonstração e exibição patente direta. Fenome
nologia é o modo de acesso e determinação exibitório-atestatória
10 É importante lembrar que Heidegger diferencia conceitualmente Existenzial,
que designa o constituinte ontológico essencial do ser-o-aí, e Existenziel, que de
nota o significado usual do existir, seja como predicado distinto da essência, seja
no sentido dos existencialismos ateus ou cristãos contemporâneos de Heidegger.
65
do que deve tornar-se tema da ontologia. A ontologia só é possível
como fenomenologia. O conceito fenomenológico de fenômeno
pensa aquilo que se mostra do ser do ente, seu sentido, suas modi
ficações e derivados. 11
A fenomenologia é uma analítica do ser-o-aí, tal como
este se manifesta em sua estrutura ontológica. Por isso é indis
pensável descrevê-lo em seus modos próprios de existência,
sobretudo como se apresenta no cotidiano de seu mundo,
para revelar aquelas determinações que não são mostradas
pela definição tradicional de sua essência - esta é uma deter
minação metafísica, que deve ser destruída, removida, para
que a análise fenomenológica de sua existência possa trazer à
luz os elementos ontológicos determinantes de sua estrutura
como ser-o-aí.
Essa fenomenologia é também hermenêutica, em um sentido
muito preciso, que difere do método interpretativo das ciências
da compreensão: em Heidegger, a hermenêutica é uma analí
tica da condição Existenzial de um ente que compreende ser, que,
em sentido rigoroso, é compreensão; a fenomenologia deve
tornar manifesta a dimensão compreensiva como constituinte
ontológica do ser-o-aí:
Na explicitação dada das tarefas da ontologia, surge a necessi
dade de uma ontologia fundamental, que tem por tema o ente
especialmente distinguido, o ser-o-aí, a saber, de tal maneira
11 Heidegger, M. Sein und Zeit, p. 35, § 7.
66
que ela se coloca diante do problema cardinal: a pergunta pelo
sentido do Ser em geral. Da própria investigação resultará que
o sentido metódico da descrição fenomenológica é interpre
tação. O logos da fenomenologia do ser-o-aí tem o caráter do
ermeneúein, por meio do qual são anunciados (kundgegeben) para
a compreensão de ser pertencente ao próprio ser-o-aí o autên
tico sentido de Ser e as estruturas fundamentais de seu próprio
ser. A fenomenologia do ser-o-aí é hermenêutica, na acepção
originária da palavra, segundo a qual ela designa aquilo de que
se ocupa a interpretação. 12
Ser-o-aí é o que nos é mais próximo, já que somos nós
mesmos que existimos como tal. Porém, do ponto de vista
ontológico é também o que há de mais estranho e distante
para nós, quanto ao conhecimento de nossa essência. Para nos
aproximarmos reflexivamente desse conhecimento, temos de
perguntar pelo modo de ser da existência que somos. Esta é,
fundamentalmente, contingência, temporalidade, facticidade
(Faktizitiit), finitude.
Ser-o-aí existe no tempo, e a temporalidade (Zeitlichkeit) é
um componente fundamental de sua estrutura. Isso implica
que toda compreensão possível de Ser, a partir do Dasein, é uma
compreensão temporal. Por outro lado, se a temporalidade
constitui um predicado ontológico originário da sua essência,
então o ser-o-aí deve ser mostrado pela análise fenomenoló
gica como sendo finito e mortal.
12 Idem, ibidem, p. 37.
67
1
1
~
Na terminologia de Ser e tempo, o ser-o-aí é aberto a pos
sibilidades indeterminadas de ser, como projeto (Entwwj) lançado
(gewoifen) no mundo, e tem de assumir-se, inclusive em sua possibi
lidade mais radical, como ser-para-a-morte. O tempo é o horizonte de
compreensão do Ser pelo ser-o-aí. Correlativamente, todos os elementos
constitutivos deste dão-se como modi da temporalidade originária.
O que Heidegger quer dizer com "análise fenomenológica'?
A palavra "análise" se refere à decomposição do ser-o-aí em suas
estruturas ontológicas, que ele denomina existenciais-ontológicas,
para diferenciar de todo predicado ôntico, referido unicamente
aos entes. Análise fenomenológica, no sentido originário tanto
de phainomenon quanto de logos, que, como o traduz Heidegger,
é fundamentalmente verbo, discurso. Para ele, todas as outras
significações do termo, como lógica, juízo, verdade, razão, fun
damento, relação, são derivadas da acepção originária de fala
(em alemão, Rede). Ligado ao verbo legein, logos é a palavra ou a
enunciação que reúne e mostra, no sentido de fazer ver, aquilo de
que fala o discurso. O próprio Heiddegger, em Ser e tempo, explora
filologicamente essa exegese e autoriza a derivação etimológica
de "mostrar" e "fazer aparecer" com apoio em logos e legein:
68
Logos, no sentido de discurso, significa deloun, tornar manifesto
aquilo sobre o que se discorre no discurso. Aristóteles explicitou
mais precisamente essa função como apophainestai. [ ... ] O logos
faz ver (phainestaí) alguma coisa, a saber, aquilo sobre o que se dis
correu; ele o faz ver àquele que discorre (forma média) ou àqueles
que discorrem entre si. O discurso "faz ver" (apo) a partir daquilo
sobre o que se discorre. No discurso (apophansis), enquanto ele é
r
autêntico, o que é dito se deve haurir daquilo sobre o que se fala, de
tal modo que a comunicação discursiva torne manifesto, e assim
acessível aos outros, aquilo de que se fala naquilo que é dito. Tal é
a estrutura do logos como apophansis. 13
Fenômeno significa, em Ser e tempo, "aquilo que em si mesmo
se mostra", tal como aparece. Phdnomen, em sentido heideggeria
no, não é sinônimo de "aparência" (Erscheinung), porque esta se
diz em relação aoque nela justamente não se mostra, não aparece.
Essa diferença é compreensível para nós, em diversas formula
ções habituais em língua portuguesa, como, por exemplo: parece,
mas não é; o que verdadeiramente é, não aparece; as aparências enga
nam ... A ontologia fenomenológica rompe com essa dualidade
metafísica para descrever os modos de ser dos fenômenos que
se apresentam como objetos, com suas respectivas estruturas.
No léxico metafísico, aparência é a contrapartida de rea
lidade, efetividade. Uma dor de dente é aparência, existe ao
modo de sintoma de uma inflamação nervosa: esta, sim, é a reali
dade ou a efetividade, que apenas aparece como dor de dente.
Inflamação é a realidade da dor de dente, que, relativamente
a ela, é mera aparência (Schein). Verdadeiro é o discurso que
manifesta, desvela aquilo de que fala, ou seja, traz à luz, retira
de seu ocultamento aquilo de que se fala.
Como legein, o logos é ajuntar, coligar. Nele se colhe e colige
um ente que o discurso manifesta em sua verdade. Desvelar-se
do ente em seu ser pelo discurso é o significado originário de
13 Idem, ibidem, p. 32.
"-~
J
verdade como alétheia, o que exibe a ligação essencial entre o
ser-o-aí e a verdade do Ser:
O pôr que recolhe, enquanto logos, pôs tudo, isto é, as coisas pre
sentes, em seu desvelamento. Pôr é um abrigar. Todas as coisas
presentes são, assim, abrigadas na sua própria presença, lá onde é
possível ao legein humano ir sempre procurar, especialmente, para
as produzir como coisas presentes. O logos coloca na presença e
dispõe, isto é, repõe a coisa presente na presença. Presentar-se, entre
tanto, significa: uma vez manifestado, durar no desvelamento. Ora,
o desvelamento é a alétheia. Esta e o logos são a mesma coisa. O legein
deixa a alétheia, o desvelado enquanto tal, ficar disposta-diante-de. 14
Desse modo, Ser e tempo pode s~r compreendido a partir da
tarefa a que se destina: uma fenomenologia das estruturas ontoló
gicas do ser-o-aí. Para Heidegger, nem a ontologia é uma parte da
filosofia, nem a fenomenologia é apenas um método. Ontologia
e fenomenologia são a mesma coisa - são a própria filosofia:
Os dois títulos caracterizam a própria filosofia, segundo o objeto
e seu modo de tratamento. Filosofia é ontologia fenomenológica
universal, partindo da hermenêutica do Dasein, que, como analítica
da Existenz, fixou a extremidade do fio condutor de todo questiona
mento filosófico no ponto a partir de onde este questionar irrompe
(entspringt) e em direção ao qual ele reverbera (zurückschliigt). 15
14 Stein, E. Compreensão e jinitude, p. 112; citação ligeiramente modificada .
15 Heidegger, M. Sein und Zeit, p. 38, §' 7.
70
Ser-o-aí é esse ponto extremo de onde surge o fio de pru
mo do questionamento filosófico e para o qual este regressa.
Retornar às coisas mesmas é, para Heidegger, a diretriz para
uma descrição do Dasein em seu modo de ser, tal como este se
mostra em sua facticidade, partindo de suas predeterminações
ontológicas.
Predeterminações ontológicas do ser-o-aí
Predeterminação denota um elemento mais originário do que
um princípio lógico. É um limiar aquém do qual nenhuma
análise pode remontar, pois é uma instância ontológica do
ser-o-aí no qual radica a própria lógica. Predeterminação é a
anterioridade da existência em relação à essência. A metafísica
sempre priorizou a essência e a substância em relação aos atri
butos acidentais, que são modalidades das primeiras. Ser-o-aí
é ex-sistência contingente, fática.
Porque o ser-o-aí existe lançado no Ser, ele carece de defi
nição essencial que conferiria finalidade ou necessidade à sua
existência. Porque essa condição consiste em existir no mundo
como um fato irremissível, ela não pode ser explicada ou repor
tada a nenhuma razão ou fundamento, pois o ser-o-aí é o grau
zero (infundado) de toda compreensão e explicação possível.
Essa contingência é também originária, é a facticidade do ser
-o-aí, decorrente de sua condição de projeto lançado (geworfener
Enwurf) no ser como ec-sistência. Sua essência consiste em inde
finidas possibilidades de ser. Como poder-ser, ele é essas mes
mas possibilidades (Heidegger dá a isso o nome de Zu-Sein: para
ser), inclusive a mais extrema de todas elas: a possibilidade da
71
~
,i
1 impossibilidade, de não atender seu poder-ser, também de deixar
de ser, ser-para-a-morte, outra determinação originária do ser-o-aí.
O mundo não é a totalidade dos objetos de representação,
atuais ou possíveis; o mundo constitui o ser-o-aí, como
a ambiência no interior do qual transcorre sua existência
irremissível, em diferentes planos de relação. É no mundo que
o ser-o-aí pode ser como um si próprio ou não ser como um si
próprio, permanecendo na inautenticidade.
Ser-no-mundo e ser-com
Intramundano, o ser-o-aí existe desde sempre em comércio
com os outros entes, em um relacionamento que pode ser:
a , Objetivo: é o plano da relação entre sujeito e objeto,
no qual o mundo é disposto ou coloca-se diante de nós como
universo re-presentado. Nesse sentido·, o mundo é a totalidade dos
objetos presentes (Vorhanden) para um sujeito do conhecimento.
Representar é reapresentar: dispor objetivamente os entes para a
apreensão teórica, de modo a extrair deles um saber científico,
que enseja controle e disponibilização para operações técnicas.
b , Trato ou lida (Umgang): difere~temente dos objetos do
conhecimento, lidamos com coisas que nos defrontam - como
os utensílios - e suscitam perguntas como: "Para quê?", "Com
que finalidade?".
Seu modo de existir não é o da presentidade (Vorhandenheit).
Essas coisas se dão a nós no vetor de sentido da Zuhandenheit
- 'termo que designa aquilo que está à mão, não simples
mente como objeto presente, mas como entidade que tem
a condição de utensílio. No modo de desvelamento próprio
72
........
da condição ôntica de Zuhandenheit, os entes vêm ao nosso
encontro como entes geradores, coisas das quais nos servimos
para criar outras coisas e, por causa disso, estas são denomina
das Zeug: trata-se do dispor de um instrumento útil para fazer
coisas , ferramenta com que fazemos, produzimos, geramos
outras coisas. Portanto, nessa acepção, o termo Zeug significa
tanto "coisa" como "gerar" (nesse caso, na forma verbal: zeugen).
Assim, em Werkzeug (ferramenta) temos uma coisa, que, ao lidar
com ela, geramos ou produzimos outras coisas. Já no caso de
Spielzeug, defrontamo-nos com uma coisa com a qual brincamos.
Não se trata aqui de relação teórica, objetivante, mas de
lida pragmática. Produzir é, etimologicamente, producere: con
duzir diante de, trazer à frente- como téchne (técnica) , em sua
significação originária, está ligada à poiésis (produzir, criar),
pois é também uma modalidade de desocultar, trazer à luz,
revelar. Nosso comportamento com os utensílios é trato, não
cognição. Eles exigem um saber próprio do lidar, são de trato
relativamente mais fácil ou mais difícil. Tocar um violão, por
exemplo, não exige um conhecimento do processo de cons
tituição do instrumento, nem de sua história, nem necessa
riamente de teoria musical; brincamos com brinquedos, ou
voamos em aeronaves, sem manter com essas coisas nenhum
relacionamento cognitivo aprofundado.
c , Relação ética: engajamo-nos com certos entes em um
relacionamento que não é nem o de cognição nem o de lida
prático-instrumental, mas uma relação pessoal, ética. Essa
relação não se limita à que estabelecemos com os outros, mas
está também ontologicamente vinculada à relação que criamos
73
conosco, a um tipo originário de cuidado de si, de préstimo e
cura das possibilidades sempre abertas que constituem nossa existên
cia. Existir significa, em sentido radical, cuidar de poder ser
no mundo, que é também (e não menos essencialmente) ser
-com-os-outros.
Ser-no-mundo é, antes de tudo, abertura (Erschlossenheit),estar aberto para a mundanidade (Weltlichkeit), nos planos da
relação cognitiva, tecnocientífica, é lidar com as coisas, manter
um relacionamento com elas enquanto utensílios (Zuhandenheit)
ou, enfim, relacionar-se com os outros como pessoas, em um
modo de ser-com, de compartilhar (mit-sein).
Cabe à fenomenologia a tarefa de descrever a mundani
dade como elemento constitutivo do ser-lançado no mun
do. O poder-ser é indefinido, mas ~ão infinito. _Temporal, ele
implica finitude e possibilidade da impossibilidade, de não
ser. Por isso, o ser-o-aí é pré-ocupação, cuidado com os entes
intramundanos, cura do mundo. Não há ser-o-aí sem mundo,
nem mundo sem ser-o-aí. É nesse sentido que a fenomeno
logia existencial de Ser e tempo é também uma ética originária
do cuidado de si e do cuidado do mundo. É nessa condição
que se ancoram as duas possibilidades de ser que mais profun
damente penetram na raiz da facticidade: o existir autêntico,
como ser si-próprio (das Selbst), e a existência inautêntica: o
impessoal (das Man, "a gente").
Aberturas existenciais do ser-o-aí
À analítica existencial compete tornar manifesta a parte
correlativa de ser-no-mundo (Iti-der-Welt-Sein). Este denota as
74
modalidades intramundanas do ser-o-aí - ou seja, o plano do
trato com os outros entes. Sua contrapartida fenomenológica
destaca o ser-em (Sein-in), com o acento deslocado do polo "no
mundo" para o modo do "ser-no" - para analisar de forma feno
menológica como esse ente se instala originariamente em sua
condição de ser-no-mundo.
Ser-o-aí é essencialmente temporalidade (Zeitlichkeit). Mas
também é ser ao modo da abertura - abertura para seu próprio
ser e para os demais entes que, como ele, habitam o mundo.
Ser-em se mostra como transparência a si, como aí (da).
Três são as modalidades originárias dessa abertura - ou
os existenciais, que denotam as estruturas fundamentais do
ser-o-aí como ser-em:
a, Estar disposto, afinação (Be.findlichkeit): O ser-o-aí se encon
tra no mundo em determinadas disposições e estados: ins
talado em um lugar (em São Paulo, por exemplo); afinado
nessa ou naquela modulação do afeto (alegre ou triste, por
exemplo). A abertura para o mundo implica sempre um esta
do de ânimo, não um tipo particular de sentimento, como
estado psicológico determinado, mas um tônus afetivo geral,
um modo de viver o relacionamento com o mundo em suas
diferentes modalidades.
Angústia (Angst) é a mais fundamental dessas disposições
basais do afeto, na medida em que concerne não aos entes
intramundanos, mas ao ser do ser-o-aí no mundo. Não se tra
ta de temor ou ansiedade pela perda de um objeto presente ou
virtual, pela cessação de um estado de coisas, mas um ânimo
que abrange todas as possibilidades de ser do ser-o-aí em sua
7c;
1
raiz: a tensão entre ser-si-próprio e perder-se, desgarrar-se, a
possibilidade sempre presente de faltar a si.
b , Compreensão, compreender (Verstehen): o ser-o-aí sempre
toma pé em uma compreensão prévia e tácita, inarticulada, da
condição existencial em que sempre- e a cada vez- se encon
tra; compreensão e abertura para as possibilidades de ser nela
existentes. Esse compreender, como dimensão ontológica do
ser-o-aí, funda a hermenêutica de Ser e tempo, e com isso nota-se
como Heidegger reelabora e dá nova fundamentação à cate
goria de compreensão, presente na filosofia dos valores, nas
filosofias da vida e na ciência hermenêutica, transformando-a
em elemento existencial-ontológico estruturante do ser-o-aí.
Compreensão é um limiar aquém do qual não é possível
recuar em termos explicativos. Toda compreensão particular
- de alguma coisa, por exemplo, um texto ou um signo -
tem como pressuposto o próprio ato de compreender, que
é dado como um âmbito prévio e irrefletido no interior do
qual está inserido, desde sempre, quem compreende algo.
Não se pode compreender a própria compreensão, pois
para tanto já seria necessário poder compreender, e assim ao
infinito. Trata-se de uma circularidade inevitável, porém não
viciosa, e sim virtuosa: quem compreende algo dispõe tam
bém previamente de um senso de compreensão. Esse círcu
lo é essencialmente hermenêutico, pois a hermenêutica é a
ciência da interpretação e da compreensão. Assim, a abertura
existencial-ontológica do ser-o-aí como compreensão torna a
hermenêutica parte constitutiva da ontologia fundamental e
da analítica existencial de Ser e tempo.
76
~
A compreensão heideggeriana tem um lado cognitivo:
entender, apreender o sentido de, inteirar-se de, tomar cons
ciência de. No entanto, a acepção fundamental de Verstehen
em Ser e tempo é outra: compreender como "entender de" (sich
verstehen auf etwas). Nessa fórmula, compreender evoca, sobre
tudo, um poder, um dom ou uma capacitação. "Entender de"
equivale, em português coloquial, a expressões como: "fula
no entende do negócio, entende das coisas". Compreender é
entender de ser, prima facie, saber de si, cuidar de seu próprio
ser, cuidar de existir, de si como existência. Ser-o-aí, nesse
sentido, é poder-ser, ser-possível, entender de ser.
c , Fala, discurso, palavra, linguagem (Rede): entender de ser,
poder ser, compreender em sentido ontológico é encontrar-se
em uma disposição básica de abertura compreensiva, prévia e
tácita, de preocupação com o ser. Nesse sentido, compreende
mos o que significa ser, sabemos mais ou menos o que queremos
dizer quando empregamos a palavra "ser".
A articulação desse sentido, ou dos diferentes sentidos de ser,
dá-se sempre no logos - na palavra, na linguagem, no verbo, no
discurso. Essa articulação é o modo como o ser-o-aí enuncia seu
entendimento de Ser - como manifesta, pelo verbo, o que vem
-a-ser, dando com isso as condições para o desvelamento do Ser
em sua verdade. Por isso, a linguagem é a articulação que coliga e
manifesta, é o âmbito de desvelamento ou verdade do Ser. É assim
que se pode entender o que Hei_degger pensa quando afirma que
a linguagem é a clareira, ou a morada, do Ser.
Na condição de ser-o-aí, o homem habita a morada do Ser,
a linguagem. Ao falar, ele traz à luz, manifesta o que os entes
77
1
são em suas respectivas essências; assim, ele exibe, desvela os
entes em seu ser. Todavia, essa dimensão do habitar humano
no cotidiano de sua existência natural é marcada pela dimensão
pública do falar, pelo linguajar característico do existir coletivo,
genérico, impessoal.
Heidegger denomina ôffentlichkeit (esfera pública) essa con
dição do ser-no-mundo. Trata-se aqui de uma existência decaí
da em relação às suas possibilidades mais próprias e autênticas.
Essa é a situação ontológica da queda (Veifallenheit), que não é
o pecado original teológico, mas um perder-se no anonimato
que afasta de ser-si-próprio - condição para a qual o ser-o
-aí sempre pode ascender ao voltar-se para uma modalidade
autêntica de existência.
Modos de ser-no-mundo
O ser-o-aí é também singular, existência irremissível, respectiva
mente adstrita a cada pessoa. A isso Heidegger denomina Jemeinig
keit (ser-a-cada-vez-meu, respectividade, ser singularmente
adstrito a mim). Cada um de nós é a própria e respectiva exis
tência singularíssima, na vida como na .morte, na autenticidade
como na inautenticidade. Os possíveis mais abrangentes do ser
-o-aí são: ser si-próprio, ou perder-se, extraviar-se, desgarrar-se,
dissipar-se no elemento genérico e impessoal (das Man, a gente):
78
Aquilo que se diz em Ser e tempo sobre "a gente" não quer fornecer,
de maneira alguma, apenas uma contribuição incidental para a
sociologia. Tampouco "a gente" significa apenas a figura oposta,
compreendida de modo ético--existencialista, ao ser-si-mesmo dà
~
pessoa. O que foi dito contém, ao contrário, a indicação, pensada
a partir da questão da verdade do Ser, para o pertencer originário
da palavra ao Ser. Essa relação permanece ocultasob o domínio
da subjetividade que se apresenta como a opinião pública. 16
Existir no modo da autenticidade é um tornar-se, porque o
ser-o-aí, desde sempre, advém na linha temporal de um passado
histórico que o precede, como membro de uma dada família e
sociedade, em um ponto do espaço prévio a toda deliberação ou
escolha. Isso condiciona, em grande medida, seu presente, a par
tir do qual se abrem as possibilidades futuras, às quais ele pode
também permanecer alheio, alienado nas malhas do impessoal.
Cura e preocupação
Com isso, a analítica existencial do ser-o-aí atinge um de seus
resultados mais importantes: a sua descrição fenomenológica
como Sorge (cura ou preocupação). Ex-sistência é ser-no-mundo
temporalmente como cura ou preocupação. Esse cuidado, por sua
vez, desdobra-se em Besorgen (o cuidado com alguma coisa,
com providenciar alguma coisa) e Fürsorgen (a cura como tomar
cuidado de algo, ou de alguém; e como preocupação, ocupar-se
de algo ou alguém, tratar dele e com ele).
Ser-no-mundo é existir como cura: seja ao modo do pro
videnciar utilitário, no trato com objetos e utensílios, seja ao
modo da pré-ocupação como encargo, que se pré-ocupa e toma
sob seus préstimos. Como ec-sistência, o ser-o-aí é no mundo
16 Idem, "Sobre o 'humanismo"', p. 349.
79
J
como cura, preocupação e cuidado com o mundo, que é tam
bém uma dimensão essencial dele.
A cada uma das modalidades de abertura do ser-o-aí como
ser-no-mundo corresponde um modo de existir como projeto
lançado na esfera pública da inautenticidade: à afinação/ estar
disposto (Be.findlichkeit) correspondem possibilidades ou moda
lidades diversas de estados afetivos gerais, humores (Stimmung)
do ser-o-aí em sua existência cotidiana: alegre, triste, calmo,
irritado, simpático, indiferente etc. À compreensão (Verstehen)
corresponde a curiosidade (Neugier), e à fala (Rede) corresponde
o falatório (Gerede).
Afinação/ estar disposto, compreensão e fala são cons
tituintes ontológicos do ser-o-aí. Disposição, curiosidade e
falatório são o correspondente ô~tico dessas estruturas na
cotidianidade intramundana do ser-o-aí - em sua condição
de decaimento (Verfallenheit). As modalidades diversas de dis
posição afetiva são formas de obliteração da afinação/ disposi
ção originária da angústia, como preocupar-se com o próprio
poder-ser.
A curiosidade é um desgarramento que consiste em alienar
-se na bisbilhotice do que interessa a todo mundo, no que distrai,
ao cativar a atenção de todo mundo. É estar à cata de novida
de - o que, por definição, significa estar condenado à infinita
reposição, sob pena de deixar de ser o que é. O falatório domina
a e?Cístência mundana do ser-o-aí no cotidiano, com o tagarelar
e o opinar sobre tudo sem nada dizer, o discurso que não com
promete, nada afirma nem nega quanto ao essencial. A retórica
da opinião pública e o politicamente correto são exemplos de
80
falatório impessoal, da fala inautêntica. Trata-se, então, de uma
curiosidade dispersiva, alienada na distração do falatório.
O ser-para-a-morte
Decaimento (Verfallenheit) não deve ser tomado em chave
moralista. Ainda que evoque representações religiosas e morais
(como o pecado original), designa a condição originária de
ser lançado no mundo impessoal da esfera pública. É por essa
razão - e unicamente em virtude dela - que o ser-o-aí pode
também abrir-se para sua possibilidade mais autêntica: voltar
-a-si, ou ser-si-próprio.
Ser-o-aí, desde sempre, é projeto, poder ser, possibilidade
de ser. Por isso mesmo, é também possibilidade de não ser,
em dois sentidos. Primeiro, o de não ser si-próprio, de existir
anonimamente sob a capa e o manto da publicidade, de fugir
de si, aderindo ao modo inautêntico e impróprio (uneigentlich)
de ser ou existir - ao que corresponde o faltar a si mesmo.
Segundo, em uma acepção ainda mais radical de não ser, como
realização da possibilidade da impossibilidade de ser, ou seja,
da morte. Como ser-no-mundo temporal e finito, o ser-o-aí é
constitutivamente (isto é, ontologicamente) ser-para-a-morte:
abertura existencial para a possibilidade de não ser, ente que
se compreende como tal.
Do decaimento, o ser-o-aí é resgatado para a autenticidade
pela culpa (Schuld) e a consciência moral (Gewissen). A culpa é
um faltar a si, é ser-em-falta; estar em dívida com as possibili
dades de ser si-próprio. Uma falta ontológica forma o conteúdo
da consciência moral, não como tribunal interior, como voz da
81
consciência moral que acusa o sujeito de estar em débito com
a lei por desobedecer a Deus. Ser culpado é sentir-se em falta
para consigo mesmo, como poder-ser originário.
Ninguém existe no lugar de outra pessoa, ninguém morre
a não ser a própria morte. A condição de ser-para-a-morte é o
chamado do Dasein para a sua mais radical autenticidade. Por isso, a
culpa e a morte são os chamamentos inapeláveis da consciência
moral, que é a voz de nossa culpa originária, de nossa condição
de estar sempre em falta com relação ao nosso poder-ser, a cada
momento de nossa existência.
A consciência de culpa não é má consciência, mas o cor
respondente ontológico da disposição angustiada. Trata-se
também de uma ética fundamental, como cuidado de si e do
mundo, na temporalidade própria~ finitude humana. Ser e tem
po não tem necessidade de um capítulo dedicado à ética como
disciplina filosófica. A fenomenologia analítica da ex-sistência
desdobra-se em um ethos originário.
82
'r
1
A viravolta e a
história da
verdade do Ser
-.......
DE SER E TEMPO A TEMPO E SER
O programa filosófico completo de Ser e tempo incluía uma parte
em que a perspectiva de análise seria deslocada da temporali
dade própria à existência do ser-o-aí (sua Zeitlichkeit), para um
vetor tomado a partir da temporalidade do próprio Ser, para a
qual Heidegger reservara o termo Tempora!itiit (temporaneidade).
No entanto, sua reflexão a partir de meados de 1930 começa
a demonstrar, de maneira crescentemente clara, que a inflexão
pensada no horizonte de Ser e tempo, com as categorias feno
menológicas específicas dessa obra, não seria suficiente para
dar conta de toda envergadura e magnitude do novo empre
endimento, a saber: pensar uma história da verdade do Ser, o
que só seria possível no horizonte de Tempo e Ser. 1
Em relação ao programa de Ser e tempo, a principal modifi
cação consiste em que o ser-o-aí passa a ser tematizado não no
horizonte transcendental de sua própria finitude, mas tendo
como referência a temporalidade própria do Ser.
1 Heidegger, M. "Protocolo do seminário sobre a conferência Tempo e Ser".
85
Essa mudança é a marca filosófica da viravolta, que atua
como a transição do primeiro para o segundo Heidegger. Essa
metáfora designa, para alguns, uma ruptura com a ontologia
fundamental de Ser e tempo. Para outros, porém, não seria uma
descontinuidade, mas uma complementação e um aprofun
damento, uma mudança de sentido no mesmo caminho da
reflexão inicial.
Com a viravolta, o pensamento de Heidegger deixa o apoio
do ser-o-aí (sem, no entanto, abandoná-lo completamente) para
remeter ao Ser, invertendo seu sentido: parte do próprio Ser,
em sua verdade ou desvelamento na história, para incluir uma
reflexão sobre a essência do ser-o-aí humano, pensada como cor
respondência ao apelo do Ser e abertura para essa convocação.
A temporalidade do Ser é ain~a mais originária do que a do
ser-o-aí; ela é temporaneidade. Em seu curso, a história (Geschichte)
é pensada como o âmbito do acontecer do Ser (Geschichte des
Seins), que se desoculta nos entes. As épocas que escandem a
história do mundo são desvelamentos do Ser, em sua verdade,
que o ser-o-aí recebe e medita, à qual corresponde no elemento
da linguagem. De todo modo, mais importante do que a deci
são sobre essa questão, é determinar as motivações "internas
e externas"para a viravolta.
Sobre esse ponto, Heidegger se manifesta em um texto de
1936, em que reflete sobre a tarefa de Ser e tempo:
86
A conferência "Sobre ·a essência da verdade", pensada e levada
a público em 1930, mas apenas impressa em 1943 , oferece cena
perspectiva sobre o pensamento da viravolta de Ser e tempo para
Tempo e Ser. Essa viravolta não é uma mudança do ponto de vista
de Ser e tempo; mas, nessa viravolta, o pensar ousado alcança o
lugar do âmbito a partir do qual Ser e tempo foi compreendido e,
na verdade, compreendido a partir da experiência fundamental
do esquecimento do Ser.2
Nesse sentido, importa caracterizar a viravolta em conso
nância com o modo como procedemos em relação a Ser e tempo,
a saber, acompanhando algumas linhas de força que são fun
damentais para a compreensão do pensamento do segundo
Heidegger e da necessidade teórica que engendrou a mudança
de perspectiva filosófica. Para fazê-lo, vamos tematizar a essên
cia da técnica e a tarefa do pensamento no fim da metafísica.
O fio vermelho que entretece as reflexões de Heidegger sobre
os temas indicados é o conceito de história da verdade do Ser,
que atualiza a destruição interna da metafísica, para retomar
a pergunta originária pelo sentido do Ser.
A reflexão sobre a técnica moderna oferece um caminho
adequado, uma vez que esta é incompreensível em sua essência
se não for considerada no horizonte da história da metafísica.
Pois a moderna tecnociência foi gestada e nutrida pela meta
física (sinônimo de filosofia para Heidegger), já que sempre
se voltou para os entes em sua presentidade, obliterada para a
diferença ontológica entre os planos do ente e do Ser. Pode-se,
com base nessa indicação, interpretar a passagem do primeiro
para o segundo Heidegger em correspondência com a maneira
2 Idem, "Sobre o 'humanismo"', p. 354.
87
de compreender a anunciada viravolta: como ruptura ou pro
longamento, ambos devidos a razões filosóficas internas.
Pode-se, no entanto, considerar também um relevante fator
"externo": o enfrentamento entre Heidegger e Ernst Jünger, que
teve por fundamento interpretações divergentes do fenômeno
do niilismo, hauridas em uma intensa ocupação reflexiva, tanto
no caso de Jünger quanto no de Heidegger, com a filosofia de
Nietzsche.
Dessa ótica, a viravolta estaria ligada à reflexão sobre o
niilismo, que exige pensar a essência da técnica com as cate
gorias e os conceitos diferentes da analítica existencial de Ser e
tempo. Seria, portanto, no bojo de sua confrontação filosófica
(Auseinandersetzung) com a "metafísica de Nietzsche" - vonta
de de poder, eterno retorno do i:nesmo e perspectivismo -,
ligada à confrontação com as posições de Jünger a respeito
do ultrapassamento do niilismo no mundo contemporâneo,
que Heidegger teria se posto a caminho de uma compreensão
apropriada da essência da técnica.
ABERTURA DO SER-O-AÍ E ABERTURA DO SER
A partir da análise fenomenológica das estruturas fundamen
tais do ser-o-aí, toda compreensão do Ser só pode se dar no
~orizonte temporal da finitude humana. Não pode haver, a
partir do ser-o-aí, nenhuma possibilidade de entendimento e
abertura para o Ser que não seja o tempo, tematizado com base
na ex-sistência do ser-o-aí.
88
Nos Seminários de Zollikon, ao sugerir uma tradução fran
cesa adequada para o termo Dasein como être-le-là, Heidegger
acrescenta um complemento de enorme importância:
O aí (da) para o ser distingue o ser-homem. A expressão ser-aí
humano é, de acordo com isso, um pleonasmo. A adequada tra
dução francesa para Dasein teria de soar être-le-là (ser-o-aí), e o
destaque em alemão, adequado ao sentido, ser-o-aí (da-sein), em
vez de ser-o-aí (da-sein). 3
Ao esclarecer que a ênfase deveria ser colocada no verbo
sein, em vez de no advérbio da, Heidegger explicita, com cirúrgi
ca precisão, a viravolta de Ser e tempo para a história da verdade
do Ser. A indicação põe em destaque que a abertura deixa de
ser considerada (embora não deixe de sê-lo também) como um
atributo existencial-ontológico do ser-o-aí humano e passa a
ser referida ao Ser, entendida como clareira do Ser, abertura, um
âmbito no qual os entes são desvelados para e pelo homem, para
trato e cuidado, inclusive o próprio homem, para si mesmo.
O próprio Ser é simbolizado pela clareira que desvela ao ho
mem os entes em sua essência, de modo que a essência do
homem (como Dasein) não se define pelo gênero próximo e
a diferença específica - como animal racional -, mas como o
estar-aí que corresponde à abertura do Ser.
É nesse sentido que a essência do homem é apreendida na
correspondência com a verdade (desvelamento) do Ser. Desse
3 Idem, Zollikoner Seminare, pp. 156 s. (tradução do autor).
89
modo, o Ser, os homens e os entes intramundanos formam um
circuito hermenêutico, no qual abertura e fechamento, doação
e subtração são as marcas dessa mútua recorrência. "O pensar
consuma a relação do Ser com a essência do homem. O pen
sar não produz nem efetua essa relação. Ele apenas a oferece
ao ser, como aquilo que a ele próprio foi confiado pelo Ser.
Essa oferta consiste no fato de, no pensar, o ser ter acesso à
linguagem."4 É assim que Heidegger concebe a dignidade da
condição humana.
Afirmar que a substância do homem é sua existência sig
nifica que "o modo como o homem se presenta em sua própria
essência ao Ser é a ec-stática in-sistência na verdade do Ser":
Através dessa determinação essencial do homem, as interpretações
humanísticas do homem como animal rationale, como "pessoa",
como ser espiritual-anímico-corporal, não são declaradas falsas ,
nem rejeitadas. Ao contrário, o único pensamento que se quer
impor é que as mais altas determinações humanísticas da essência
do homem ainda não experimentaram a dignidade propriamente
dita do homem. Nesta medida, o pensar em Ser e tempo é contra
o humanismo. 5
Essa oposição não significa tomar partido pelo irracio
nal, pelo inumano ou pela desumanidade. O humanismo é
confrontado porque não situa a humanitas em uma posição
4 Idem, "Sobre o 'humanismo'", p. 347; citação ligeiramente modificada.
5 Idem, ibidem, pp. 355 s.
90
suficientemente elevada. A dignidade humana não se deve à
sua condição de "sujeito", deres cogitans (substância pensante)
ou consciência transcendental. Ao contrário, essa dignidade
consiste em ser "jogado" na clareira do Ser, para que, ec-sistindo,
vele pela verdade do Ser, de forma que, no logos humano, o ente
se manifeste como o ente em sua essência. Heidegger se refere,
com esses termos, à acepção latina de ex-sistere: manter-se, pos
tar-se, persistir em uma dimensão de abertura, exterioridade.
A temporalidade que transcende a ex-sistência do ser-o-aí,
no sentido de que não se limita a ela, é a temporaneidade origi
nária do Ser. Esse tempo do Ser assume a forma do acontecer
(geschehen, Geschehnis); do acontecimento apropriador (Ereignis)
que é também destinação. A palavra adequada para essa tem
poralidade destinamental é história (Geschichte).
PENSAR A HISTÓRIA DA VERDADE DO SER
"História da verdade do Ser" é uma expressão que se aplica
com tanto acerto ao Heidegger de Tempo e Ser corno analítica
existencial ou ontologia fundamental aplicam-se a Ser e tempo.
Convém atentar, porém, que a palavra "história" traduz tanto
Historie, derivação germanizada do latim, quanto Geschichte- do
verbo geschehen, acontecer, que remete aos aparentados Schicht
(camada, extrato) e Schickung (envio, destinamento).
Historie é a história como disciplina científica, como his
toriografia - registro cronológico objetivo de séries de acon
tecimentos, ordenados pelas suas circunstâncias, condições
91
determinantes , causas e consequências de ordens variadas
(econômicas, políticas, sociais e culturais, por exemplo).
Geschchite designa o acontecer adventício, os acontecimen
tos singulares que impregnama configuração e determinam o
sentido de uma era do mundo. Com apoio no termo Geschick
(o que é enviado, destinado, concluído com êxito e propriedade),
Heidegger denomina tais eventos destinação ou acontecimento des
tinamental, que os franceses traduzem com o termo événementiel:
o que ocorre e tem importância para os homens.
Ele tem em mente aqui as acepções de destinamento como
envio, remessa, nelas incluindo o destino (Schicksal) como algo
que nos é remetido, enviado. Assim, história, como Geschichte,
remete tanto _a acontecimento, destinação, quanto ao conceito
de Ereignis, que traduzimos como acon_tecimento apropriador, que
confere um sentido próprio a uma era do mundo, imprime
a ela a marca de sua figura. O signo desse acontecer não é o
tempo cronológico dos relógios e calendários, nem é a fini
tude própria à existência do ser-o-aí, mas um tempo ao qual
Heidegger denomina temporaneidade do Ser. É nela que o Ser se
dá e se mostra no horizonte da história, sua verdade (alétheia)
vige como acontecimento apropriador.
A palavra Ereignis remete a um extrato profundo da língua
alemã. Deriva do gótico áugan e do médio alto alemão 6 ougen
(auge, Auge), de onde provêm ereugen, er-iiugen, er-blicken, im Blicken
zu sic~ rufen, an-eignen (trazer à vista, apropriar-se). Para manter
6 Mittelhochdeutsch: médio alto alemão, ou seja, o idioma alemão não diale
tal (Hochdeutsch) entre o período antigo e
0
contemporâneo de sua história.
92
essa ressonância, traduz-se Ereignis por acontecimento apropria
dor, designando um advento que vinca uma época da história,
confere a ela uma propriedade essencial (Eigenschaft) e um sen
tido para o modo como os entes, em sua totalidade, existem no
mundo. O acontecimento apropriador confere sentido a uma era
do mundo (Weltgeschick) pensada como um destinamento, um
desocultamento da essência dos entes em sua verdade. É nessa
acepção que Heidegger interpreta a metafísica como história do
Ser ou, antes, como história do esquecimento da verdade do Ser.7
Desde Platão, por exemplo, a precedência da ideia (essência
inteligível) sobre os entes sensíveis traz consigo, na forma do
eidos, o ti estin (o que é) em lugar do Ser. De modo que, antes de
tudo, Ser é Ser-algo (Was-sein). Ser como Ser-algo (a idea como
ontós ón) proporciona aos entes mais espaço que ao próprio
Ser. "O privilégio do Ser-algo traz consigo a precedência do
próprio ente a cada vez naquilo que ele é. A precedência
do ente fixa o Ser como o koinón (liga, coligação, comunhão) a
partir do én (em). Está decidido o caráter distintivo da metafísica.
O Uno como a unidade unificadora torna-se determinante para
a destinação posterior do ser."8
Na filosofia moderna, a verdade do Ser dos entes passa se
identificar como a certeza da representação, de modo que o
hypokeimenon (substrato) se transforma em subjectum (sujeito),
7 Heidegger, M. "Die Metaphysik ais Geschichte des Seins". ln : Nietzsche,
pp. 399-457.
8 Idem, "Entwürfe zur Geschichte des Seins ais Metaphysik". ln: Nietzsche,
pp. 458-80 (tradução do autor).
Q,
-1
e a verdade, de correspondência entre o intelecto e as coisas,
torna-se a clareza e a distinção das percepções. A representação
é a unidade unificadora dos entes em sua verdade. Descartes é o
pensador que preconiza a transformação metafísica na essência
da verdade, cabendo a Kant a reconstrução da ontologia em
seu programa de filosofia transcendental.
Leibniz, no caminho entre Descartes e Kant, ao conceber
o Ser dos entes e.orno mônada, pensada como perceptio (pensa
mento) e apetitus (vontade), prepara a transição para o conceito
de absoluto em Schelling, Hegel e, finalmente, a identificação
da vontade de poder em Nietzsche como essência do mundo.
A metafísica, como história do esquecimento da pergunta
pelo sentido do Ser, ingressa com Nietzsche na era de seu
acabamento: a vontade de poder t9rna-se essência metafísica
do mundo, e o eterno retorno é o modo de existência que lhe
é próprio.
A relevância atribuída por Heidegger à expressão colo
quial "esgibt" ("existe", "há"; literalmente: "isso dá", "isso doa")
explicita-se nesse contexto. Na linguagem cotidiana, é corrente
a associação entre existir/ acontecer e dar/ doar. O pronome
impessoal "es" remete ao Ser como sujeito da ação verbal: isso
(es) dá (gibt); isso é o Ser; aquilo que ele doa é ele mesmo, na
medida em que ele dá existência. Esse dar é, portanto, um dar
-se do Ser, um abrir-se possibilitador do desvelamento dos
e11tes em sua verdade, no vigor da essência que lhes é própria.
O Ser é abertura e vazio. Os entes são, existem (es gibt Seiendes) ,
são ao modo de envios do Ser, sempre no horizonte tempora_l
de um acontecimento apropriador, como a essência metafísica
94
~ .......
da técnica moderna, por exemplo. Um aberto, uma clareira, na
qual os entes vêm à luz em sua verdade. A técnica é, essencial
mente, um modo de trazer à luz , de produzir; e sua origem,
essência e destinação estão ligadas a producere, hervorbringen,
poiésis, que são camadas ou extratos na temporalidade em que
se inscreve a história da verdade do Ser.
O que diz Heidegger, finalmente, "sobre" o Ser? Na medida em que
Ereignis (acontecimento apropriador) é, desde 1936, sua "palavra
-chave", essa pergunta tem de ser precisada: como compreende
ele o acontecimento apropriador? Heidegger destaca, com toda
clareza, que, como palavra-chave de seu pensamento, Ereignis não
compreende mais aquilo que se costuma denominar acontecer
(acontecimento, diz Heidegger), evento e termos que tais. Ele apon
ta para o que essa palavra originalmente significa: er-iiugen significa
mirar, trazer a si diante da vista, apropriar-se. Depreende-se de
seus ulteriores esclarecimentos que ele interpreta acontecimento
apropriador apenas a partir da palavra eigen (próprio). Mais adiante,
ele compreende acontecimento apropriador unicamente como
singulare tantum (singular como tal).9
Esse é o sentido das imagens poéticas às quais Heidegger
liga tais noções: linguagem (logos), em sua determinação (Be
stimmung), é desvelamento. Metaforicamente, ela pode figurar
como a clareira em que se mostra a essência dos entes, que se
tornam fenômenos para o ser-o-aí, seu curador. A linguagem é,
9 Puntel, L. Sein und Gott, p. 85 (tradução do autor).
95
l
_.
portanto, a "morada do Ser", e o homem é o ente que habita
po(i)eticamente essa casa.
Ex-sistir é corresponder linguageiramente a esse chamamento
do Ser, ao descerrar-se do Ser aos entes em seu desocultar. O Ser
acontece em seus adventos, mas não se confunde com eles. Para
que haja um desvelar- uma alétheia - é primeiro necessário um
estar oculto, não há desvelo sem velamento anterior. Nada é
doado que antes não se tenha subtraído. Nesse sentido, há que se
pensar uma interpenetração entre Ser e Nada - Ser é nada de ente,
nenhuma entidade da qual se possa predicar uma propriedade
qualquer; é antes um vazio, o imponderável a partir do qual se dá
mesmo o gesto mais fugaz. O Ser desvela os entes no modo de
ser que é próprio deles, ao mesmo tempo que se subtrai, furta-se
tanto ao desvelamento quanto ao q9e neste é desvelado.
PENSAR A ESSÊNCIA DA TÉCNICA
A técnica moderna é desvelamento e produção. Trata-se de um
trazer à luz, um pôr e dispor, um tornar manifesto, que tem a
"forma do desafio (Herausforderung), que estabelece para a natu
reza a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída
e armazenada como tal".10
Como modo da poiesis, a técnica moderna dispõe os entes
corno objetos em um processo reiterativo formado por extra
ção, transformação, preparáção, armazenamento, distribuição,
10 Heidegger, M. A questão da técnica, p. 57.
96
=V"
comutação, consumo, desgaste, em uma circularidade sem
começo nem fim:
O ar é posto para o fornecimento de nitrogênio, o solo para o for
necimento de minérios, ominério, por exemplo, para a produção
de energia atômica, que pode ser associada ao emprego pacífico
ou à destruição ... A central hidrelétrica está posta no rio Reno. Ela
põe o Reno em função da pressão de suas águas, fazendo com que,
desse modo, girem as turbinas, cujo girar faz com que funcionem as
máquinas que geram energia elétrica para a qual estão preparadas as
centrais interurbanas e sua rede de energia demandada para a trans
missão de energia. No âmbito das consequências interconectadas da
demanda de energia elétrica, o rio Reno também aparece como algo
demandado. A central elétrica não está construída no rio Reno, como
a antiga ponte de madeira, que há séculos une uma margem à outra.
Antes e pelo contrário, é o rio que está construído na hidrelétrica.
O desocultar que domina a técnica moderna tem o caráter de requi
sitar o ente no sentido do desafio. Este acontece pelo fato de a energia
oculta na natureza ser explorada, do explorado ser transformado,
do transformado ser armazenado, do armazenado ser novamente
distribuído e do distribuído ser renovadamente comutado. Explorar,
transformar, armazenar e distribuir são modos do desocultar_ I I
A essência da técnica mostra-se na instalação dos entes
como variáveis de cálculo no processo circular acima descrito.
A esse conjunto Heidegger denomina de Gestell - armação ou
11 Idem, ibidem, pp. 57-9; citação ligeiramente modificada.
Q7
1
1
1
--"
dispositivo. A essência da técnica moderna consiste na subsis
tência assegurada das condições de reiteração permanente do
dispositivo de produção, armazenamento, distribuição e desgas
te. "A palavra 'subsistente-estoque' (Bestand) ingressa agora na
posição de um título. Designa nada menos do que o modo como
vige tudo aquilo que é tocado pelo desocultar desafiador."12
A novidade da técnica moderna consiste em um desafiar
que instala a natureza na condição de manancial de energia
suscetível de ser extraída, armazenada e distribuída, de modo
que o essencial não é o resultado objetivo determinado desse
processo, mas antes a dinâmica e a lógica imanentes do próprio
processo de conversão da natureza em estoque armazenável e
permanentemente comutável. A configuração atual de nossas
sociedades depende essencialmente da atualização do potencial
tecnológico. Este constitui a mais determinante força produtiva
na sociedade. A verdade da metafísica moderna é o domínio
planetário da cibernética, a exploração tecnológica das galáxias.
DESTINAMENTO E PERIGO
Em sua acepção originária, a técnica é uma modalidade de pro
ducere, de hervorbringen - de trazer à luz, desvelar, desocultar-,
acepções que não correspondem às noções correntes da técnica
como meio para um fim (concepção instrumental) ou como
incremento do poder-fazer humano (concepção antropológica):
12 Idem, Die Frage nach der Technik, p. 16 (tradução do autor).
98
iV
Se, portanto, o homem, pesquisando e observando, persegue a
natureza como uma região de seu representar, então ele mesmo
já é convocado por um modo de desocultação que o desafia a ir
ao encontro da natureza como um objeto de pesquisa, até que
também o objeto desapareça na condição de estoque subsisten
te, desprovido de objeto. Assim, a técnica moderna, enquanto
desabrigar que requer, não é um mero fazer humano. Por isso,
devemos tomar também, tal como este se mostra, aquele desa
fiar que dispõe o homem para requerer o real enquanto estoque
subsistente. Aquele desafiar reúne o homem no requerer. Esse
reunir concentra o homem para requerer o real enquanto esto
que subsistente[ ... ]. Denominamos, agora, armação (Ge-stell)
aquela convocação desafiadora, que reúne também o homem
no requerer como estoque subsistente, aquilo que se descobre. 13
Para Heidegger, a técnica não é meio, nem instrumento
que o homem coloca a seu serviço. Pelo contrário, o próprio
homem moderno é determinado e requisitado pela técnica,
pelo modo de desabrigar que constitui a essência desta. Ele
é convocado para o desafiar que é característico da técni
ca - desafiar no sentido de explorar a natureza, utilizando
-a e transformando-a como reserva de energia estocável
e permutável.
A respeito da essência da técnica, observa Heidegger,
"muito se escreve, mas pouco se pensa":
13 Idem, ibidem, pp. 18 s. (tradução do autor).
00
1
A técnica é, em sua essência, um destino ontológico-historial da ver
dade do Ser, que resta no esquecimento. A técnica não remonta, na
verdade, apenas com seu nome, até a tékne dos gregos, mas ela se origina
ontológico-historialmente da tékne como um modo do aletheúein, isto é,
do tornar manifesto o ente. Como uma forma da verdade, a técnica se
funda na história da metafísica. Esta é uma fase privilegiada da história
do Ser e a única da qual, até agora, podemos ter uma visão de conjunto.14
Ora, se história da metafísica é também a do esquecimento
do Ser e de sua substituição pelo ente, só um pensamento que
ultrapassou a metafísica pode abrir-se para a rememoração do
sentido do Ser e, portanto, pensar originariamente a essência
da técnica como uma destinação (Geschick) na história da verda
de do Ser. O humanismo, em qualquer de suas modalidades, é
justamente incapaz disso, pois ele é essencialmente metafísico
e, portanto, só compreende a técnica em chave antropológica
e instrumental, ou, dito de forma moderna, como vontade de
poder, como potencialização da capacidade humana de produzir.
Consuma-se com Nietzsche o acabamento da metafísica;
esta se realiza historicamente como instalação de todos os entes
nos circuitos tecnológicos de produção, consumo e desgaste:
"Agricultura é agora indústria alimentar motorizada; em essên
cia, o mesmo que a fabricação de cadáveres em câmaras de gás
[ ... ] o mesmo que a fabricação de bombas de hidrogênio". 15
14 Idem, "Sobre o 'humanismo"', p. 361; citação ligeiramente modificada.
15 Apud Maurer, R. O que existe de propriamente escandaloso na .filosofia da técnica
de Heidegger, p. 406 .
100
Em condições tais, o humanismo não seria uma alternativa
para a metafísica, na medida em que concebe a natureza huma
na a partir das categorias metafísicas de substância e acidente,
gênero próximo (animal) e diferença específica (racional). Daí
decorre que, para Heidegger, "todo humanismo ou funda-se em
uma metafísica, ou ele mesmo se postula como fundamento
de uma metafísica":
Toda determinação da essência do homem que já pressupõe a inter
pretação do ente, sem a questão da verdade do Ser, e o faz sabendo
ou não sabendo, é metafísica. Por isso, mostra-se, e isto no tocante
ao modo como é determinada a essência do homem, o elemento
mais próprio de toda metafísica, no fato de ser "humanística". De
acordo com isso, qualquer humanismo permanece metafísico. 16
Ora, contando com seus próprios recursos categoriais,
nenhuma metafísica, seja ela idealista, cristã, ateísta ou mate
rialista, pode "atingir e reunir, através do pensar, o que agora
é do Ser, em um sentido pleno".17 E assim, a despeito de suas
"boas intenções", o humanismo contemporâneo dá seguimento
à completa objetivação da natureza, transmudando a essência e a
destinação do homem que, de "pastor do Ser", preocupado com
o cuidado dos entes, tornou-se a "mais importante matéria-pri
ma" a ser consumida no desgaste (Vernutzung) universal do ente:
16 Heidegger, M. "Sobre o 'humanismo"', p. 351; citação ligeiramente mo
dificada.
17 Idem, ibidem.
101
Quando tiver êxito o domínio da energia atômica, e este êxi
to ocorrerá, então se iniciará um desenvolvimento totalmente
novo do mundo técnico. O que conhecemos hoje como técnica
cinematográfica e televisiva, como técnica de transportes, das
comunicações, como técnica médica e de nutrição, representa,
supostamente, apenas um estágio inicial e grosseiro. Ninguém
pode saber as reviravoltas que estão por vir. Enquanto isso, odesenvolvimento da técnica se dará em um curso cada vez mais
rápido e não poderá ser detido em parte alguma.18
O credo antropocêntrico e humanista é uma ilusão ingê
nua e perigosa, pois concebe a tecnologia como instrumento
à disposição e controle da racionalidade humana. Porém:
Nenhum indivíduo, nenhum grupo humano, nenhuma comissão
de relevantes estadistas, pesquisadores ou técnicos, nenhuma con
ferência de dirigentes da economia e da indústria consegue frear
ou direcionar o curso histórico da época atômica. Tudo se passa
como se o homem de hoje, em face do pensamento meramente
calculatório, renunciasse a inserir o pensamento meditativo em um
papel determinante. 19
Heidegger confia na potência silenciosa da meditação.
Embora não tenha a mesma eficácia instrumental do pen
sar calculatório, a meditação preocupada não deixa de ser
18 Idem, Gelassenheit, p. 19 (tradução do autor).
19 Idem, ibidem, pp. 20 s.
102
determinante, nem se esgota em reverência ao fato; a palavra
serenidade não é sinônimo de resignação. Com ela, o filósofo
pensa um agir amadurecido, liberado da insânia compulsiva
do ativismo, do falatório vazio e pomposo vigente na esfera
pública contemporânea:
Não é por ele irradiar um efeito ou por ser aplicado que o pensar se
transforma em ação. O pensar age enquanto se exerce como pen
sar. Este agir é provavelmente o mais singelo e, ao mesmo tempo,
o mais elevado, porque interessa à relação do Ser com o homem.
Toda eficácia, porém, funda-se no Ser e se espraia sobre o ente.
O pensar, pelo contrário, deixa-se requisitar pelo Ser para dizer a
verdade do Ser. O pensar consuma este deixar. 20
Com a hegemonia do sentido instrumental e antropocên
trico da técnica, o progresso tecnológico compulsivo subverte
a lógica da ética humanista. As pesquisas biogenéticas instru
mentalizam a base somática da personalidade, tornando-a
disponível para fins incompatíveis com o ethos que, até aqui,
constituiria o espaço de habitação do homem no mundo, o
horizonte de sua autocompreensão.
Fantasias estéticas narcisistas sobre o consumo mercantil
do homem seriam uma réplica cínica do desgaste (Vernutzung)
do "material humano". Como afirma Heidegger, em um tempo
em que a tecnologia, cuja essência é arm~ão (Ge-stell), exerce um
domínio planetário, aí também espreita um perigo (Ge-fahr). Mas
20 Idem, "Sobre o 'humanismo"', p. 347; citação ligeiramente modificada.
101
•
é justamente à sombra do perigo que urge retomar as palavras
dos poetas e pensadores, da arte e da filosofia. Nesse caso espe
cífico, a poesia de Holderlin: "Lá onde há perigo, cresce também
aquilo que salva" ("Wo aber Gefahr ist, wiichst das Rettende auch"). 21
À dicção do poeta, Heidegger acrescenta uma palavra de
filósofo: serenidade. Não um lamento, uma demonização da
tecnologia. Ao contrário, ele prenuncia uma relação pensante
com o segredo até hoje velado na essência da técnica. A palavra
de Heidegger diz: serenidade para com as coisas, cuidado preo
cupado com o mundo, deixar ser, abertura para o segredo -
ethos de meditação sobre os destinamentos do Ser, nascidos de
um pensamento que é, em si mesmo, ação:
Se crescem em nós a serenidade para com as coisas e a abertura
para o segredo, então nos é lícito chegar a um caminho que conduz
a um novo fundamento (Grund) e solo. Nesse solo, o criar de obras
que permanecem pode fincar novas raízes. 22
21 Idem, Die Frage nach derTechnik, p. 28 (tradução do autor).
22 Idem, Gelassenheit, p. 26 (tradução do· autor).
104
1
_I.
~
Como ler Heidegger
Este capítulo tem o propósito de apresentar um conjunto de
sugestões a respeito de como ler Heidegger e, para tanto, ofere
cer algumas indicações tanto práticas como teóricas. De início,
é imprescindível o contato direto com os próprios livros do
autor, se possível em seu idioma original, ou então em traduções
histórico-crítico-filológicas credenciadas, que existem em diver
sos idiomas, inclusive em português (vide a bibliografia ao final).
A despeito de todos os esforços que se possa fazer p~ra
facilitar o acesso à obra de Heidegger, fornecendo ao leitor iwli
cações e comentários, mesmo a tentativa mais bem-sucedida
a esse respeito não o dispensa do empenho pessoal na leitura
dos textos principais, com a dedicação própria de cada pessoa
singular que se dispõe a frequentá-los.
A trajetória pode ser feita tanto do segundo para o pri
meiro Heidegger, como vice-versa, sem contar que cada passo
adiante, quando verdadeiramente realizado, conduzirá o cami
nhante a uma série de retomar
é ele próprio ético, no sentido não prescritivo de modo de ser
ou de uma correspondência originária entre a essência lingua
geira do homem e a verdade do Ser.
Os desenvolvimentos mais recentes das tecnociências,
que subvertem nossa autocompreensão como seres no mun
do, ainda não foram conduzidos à consciência de sua própria
historicidade. Uma ética efetivamente concernida por eles tem
de assumir como tarefa trazer ao plano do pensamento uma
apreensão adequada da essência da tecnologia. Nem a conde
nação reacionária e maniqueísta da tecnologia, nem o ingênuo
deslumbramento com as virtualidades do trans-humanismo,
do pós-humanismo ou do sobre-humanismo permitem um
discernimento essencial da técnica, pois não brotam de uma
meditação sobre o homem como ser pensante, menos ainda
de um compromisso com seu destino.
O horizonte desse compromisso só pode ser o pensamento
- e só pode ser divisado a partir de uma relação pensante entre
o ser do homem e a essência da técnica. É um pensamento
irredutível à divisão compartimentada da racionalidade, um
pensar refratário ao ativismo político, ao falatório estéril dos
saberes insulares, e que resgata as ligações entre o conhecer, o
sentir, o imaginar, o lembrar, o cuidar e o esperar.
Trata-se de um exercício permanente de reflexão, de uma
postura de recolhimento meditativo, a ser carac~ada pelos
seguintes elementos, que marcam a distância da filosofia de Hei
degger dos ativismos t~órico e prático dominantes nas ciências
e na filosofia atuais:
12
1 > A sobriedade, como resgate prudencial da lucidez, alcan
çada a partir de um exercício permanente de autorreflexão
e autocrítica, zelosa das circunstâncias e condições nas
quais se desenrola a vida dos seres intramundanos - com
os quais o homem, como ser no mundo, mantém-se per
manentemente em relação.
2 , A liberdade em relação às ilusões de onipotência em
que estamos enredados, a qual só pode ser alcançada com
a retomada da modéstia em relação à nossa capacidade de
prever as consequências de ações possibilitadas por nosso
saber-poder - o que implica refletir sobre nossa posição
subjetiva nesse processo: se seremos agentes ou "agidos"
na dinâmica da configuração técnica do mundo.
3 , A capacidade de renunciar à tentação do uso compul
sivo do poder tecnológico e a abertura para dimensões de
responsabilidade que ultrapassam o âmbito das relações
inter-humanas - o que só pode ser entrevisto a partir de uma
retomada do pensar como correspondência à verdade do Ser.
Enfrentar esses desafios, projetados para além dos humanis
mos tradicionais, pode ser de grande utilidade para a colocação
do problema filosófico que, mais do que nunca, nos concerne:
afinal, o que estamos fazendo de nós mesmos, em um tempo
em que só as mutações são permanentes?
Por causa dessas tarefas, Heidegger é para nós um compa
nheiro indispensável de viagem no atravessamento do século XXI.
13
T
O pensador do fim
da metafísica
,__
O TRAJETO BIOGRÁFICO
Martin Heidegger nasceu em Messkirch, na Alemanha, em
26 de setembro de 1889. Iniciou o noviciado na Companhia
de Jesus, da qual se desligou em 1909, em virtude de proble
mas de saúde. Estudou teologia e filosofia na Universidade de
Freiburg, em preparação para o sacerdócio católico. Em 1913,
abandonou a teologia e passou a se dedicar apenas à filosofia.
No mesmo ano, doutorou-se com a tese A doutrina do juízo no
psicologismo e, dois anos mais tarde, fez também em Freiburg
sua livre-docência, com o trabalho A doutrina das categorias e da
significação em Duns Scoto.
Em 1916, com a chegada de Edmund Husserl (1859-1938) à
universidade, desenvolveu-se um fértil diálogo entre o catedrá
tico e o promissor Heidegger. Este logo assumiria o cargo de
assistente de Husserl. A convivência despertou o jovem profes
sor para a fenomenologia, que será determinante aos rumos ini
ciais e futuros do seu pensamento. Com ela, Heidegger também
aguçou a consciência da originalidade de seu próprio filosofar,
como reconheceu em Meu caminho para a fenomenologia.
15
Heidegger trabalhou ao lado de Husserl entre 1918 e 1923,
quando se tornou catedrático de filosofia da Universidade de
Marburg. Em 1927, publicou Ser e tempo.
Nessa obra, desenvolve sua própria concepção de fenome
nologia, que deixa de consistir em um método de investigação
filosófico e se torna um modo de chegar às estruturas elementares
originárias que suportam a existência humana, com todas as
suas disposições, faculdades e funções.
Ser e tempo foi um acontecimento ambíguo no relacionamento
entre Heidegger e Husserl. O livro, de um lado, demonstra a dívida
do jovem filósofo para com o seu mestre, quanto à abertura para
a fenomenologia; de outro, institui um limiar de separação radi
cal entre o entendimento de fenomenologia dos dois pensadores.
Como resultado de seu crescente prestígio acadêmico, Hei
degger foi convidado, em 1928,"a suceder Husserl na cátedra de
filosofia em Freiburg. Ali, entre 1929 e 1930, ministrou preleções
sobre "os conceitos fundamentais da metafísica", que seriam
posteriormente publicadas no livro do mesmo nome. 1
Em 1933, ligou-se oficialmente ao Partido Nacional Socialista
dos Trabalhadores Alemães (NSDA~), de Adolf Hitler. Nos basti
dores da política cultural nazista, teve que enfrentar a hostilidade
de personalidades duvidosas tanto do ponto de vista intelectual
quanto ético, como a do pedagogo E. Krieck (1882-1947), seu ini
migo declarado, além da concorrência de filósofos, ~orno Alfred
Baumler (1887-1968)-cuja interpretação da obra de Nietzsche foi
sempre apreciada por Heidegger- e Alfred Rosenberg (1893-1946),
1 Cf. Heidegger, M. Os conceitos fondamentais da metafisica.
16
autor de O mito do século XX e conselheiro de Hitler, condenado
à morte pelo Tribunal de Nuremberg, em 1946. Ainda em 1933,
Heidegger foi eleito reitor da Universidade de Freiburg, engajan
do-se no projeto de reforma da universidade alemã, mediante a
introdução ali do princípio do líder (Führerprinzip). Esse princípio
filosófico, cuja origem remonta a Hermann Alexander Keyser
ling (1880-1946), institui a autoridade do líder (Führer) sobre a lei
e a ordem constitucional, uma vez que na pessoa do dirigente
supremo se unificaria, totalizaria e organizaria a vontade geral,
soberana e identitária de um povo. Associado à doutrina nazista
da autoridade, tal princípio passou a orientar as diretrizes da
política nazista para todos os setores da sociedade.
O envolvimento político de Heidegger se reflete no Discurso
da reitoria,2 proferido na solenidade de sua posse. Nele, o filósofo
coloca em estreita relação a missão da universidade, da ciência e da
cultura e o destino político e histórico do povo alemão. Em abril
de 1934, Heidegger demitiu-se do cargo de reitor, em virtude de
desentendimentos com colegas acadêmicos e divergências com
as autoridades governamentais. Já nessa época, nota-se em seus
escritos o afastamento crítico do nazismo, como em Superação da
metafisica, coletânea de textos redigidos entre 1934 e 1946.
Entre 1936 e 1940, fez preleções sobre Nietzsche, nas quais
amadureceu sua crítica da metafísica e, em particular, aprofun
dou sua reflexão sobre o niilismo europeu. Nesse período, a ati
vidade acadêmica de Heidegger tornou-se objeto de vigilância
por parte da polícia secreta nazista.
2 Idem, Discurso da reitoria.
17
Os estudos intensivos sobre Nietzsche e o enfrentamento
(Auseinandersetzung 3) com o escritor, filósofo e entomologista
alemão Ernst Jünger (1895-1998) a respeito do niilismo, suas
causas, evolução, consequências e a possibilidade de superá
-lo, constituíram um fator decisivo para a viravolta (Kehre) - o
momento de viragem na obra de Heidegger, em que seu pensa
mento experimenta uma mudança de perspectiva, abandonan
do a analítica da existência de Ser e tempo para assumirde tal modo que medi-
"t
1 O texto foi publicado como Was ist das? Die Philosophie. Em português, com
tradução de Ernildo Stein, "Que é isto - a filosofia?" saiu pela coleção Os
Pensadores.
,no
J
_._
temos sobre a essência da filosofia. Procedendo daquela maneira
nos enriquecemos com conhecimentos muito mais variados e
sólidos e até mais úteis sobre as formas como a filosofia foi repre
sentada no curso de sua história. Mas por essa via nunca chega
remos a uma resposta autêntica, isto é, legítima, para a questão:
que é isto - a filosofia? 2
Só podemos chegar a uma resposta legítima se e quan
do nós mesmos filosofamos; e só o fazemos em conversa
(im Gespriich) com os filósofos fundamentais, pela retomada
e rememoração das palavras essenciais que exprimem seu
pensamento. Esse é o sentido da conversa, do diálogo sem
pre tenso de Heidegger com a tradição da filosofia ocidental,
com Platão e Aristóteles, com os .medievais e os moder
nos, com os contemporâneos e, entre eles, especialmente
Leibniz, Kant, Hegel e Nietzsche.
Não faz nenhum sentido insistir na discussão sobre se a
interpretação heideggeriana é fiel à letra de Nietzsche, se ela
é filologicamente ou histórico-filosoficamente correta, ou
se produz uma violentação hermenêutica, omissão, distor
ção ou ainda equívocos em relação aos textos de Nietzsche.
Importante, para Heidegger, é pensar com Nietzsche, entrar em
conversa com ele e, nesse espaço de diálogo, buscar uma posi
ção hermenêutica na qual a explicação e a exposição seriam
reciprocamente elaboradas, de modo a não mais se distinguir
inequivocamente, ao mesmo tempo, e em toda parte, aquilo
2 Heidegger, M. "Que é isto - a filosofia?", p. 217.
110
que foi extraído das palavras de Nietzsche e aquilo que foi a elas
acrescentado: "Com efeito, toda interpretação tem de poder
não apenas retirar a coisa do texto; ela tem também - sem se
prevalecer disso - de poder doar a ele, inadvertidamente, algo
próprio de sua própria coisa".3
Essa estratégia hermenêutica pertence, pois, essencialmen
te à maneira heideggeriana de fazer filosofia, dialogando com
o logos explícito de todo pensador essencial.
Heidegger, respondendo a certas acusações de infidelidade
ao texto de Nietzsche, esclarece o horizonte de interesse em
que se situa para uma fecunda interlocução com a filosofia
nietzschiana:
A crítica pode considerar incorretas e "violentas" muitas coisas em
minhas interpretações; entretanto, enquanto não houver nenhuma
confrontação (Auseinandersetzung) positiva e de princípios com
meus escritos a respeito da determinação da metafísica, que é de
onde parte minha exposição de Nietzsche, a crítica vai se movi
mentar em um plano insuficiente. Para o historiador, presume-se,
as asserções de Aristóteles sobre Platão e os pensadores pré-socrá
ticos são, em geral, falsas e violentas. 4
Tendo isso e~ vista, Heidegger desenvolve este insight em
Caminhos de floresta:
3 Idem, Nietzsche, pp. 262 s. (tradução do autor).
4 Apud Müller-Lauter, W. "Das Willesesen und der Übermensch", p. 74, nota
35 (tradução do autor).
111
Todo comentário precisa não só captar o assunto do texto
comentado; tem também de, sem chamar atenção, e a partir do
seu assunto, acrescentar-lhe imperceptivelmente, a partir do seu
tema, algo de próprio. Esse acréscimo é aquilo que o leigo sem
pre sente, de acordo com aquilo que tem como conteúdo do
texto, como uma interpretação excessiva, que ele, no uso de
seu direito, censura como arbítrio. Contudo, um comentador
genuíno nunca compreende o texto melhor do que o seu autor
o compreendeu, mas sim de outro modo. Só que esse outro
modo tem de ser de tal maneira que encontre o mesmo que o
texto comentado reflete. 5
É, portanto, em vista desse "mesmo" que se pode depre
ender uma diretriz essencial sobre o modo de ler Heidegger.
Como poderíamos responder, por exemplo, à pergunta "que
é isto - a filosofia?", em uma conversa filosófica com Heideg
ger? Como devemos ler o seu texto, em sua própria lingua
gem, em seu próprio logos? Relembremos que ele responde
àquela pergunta sobre a essência da filosofia indicando que
esta só será legítima quando for uma "resposta filosofante",
que seja ela própria um exercício de filosofia. Para Heideg
ger, isso só acontece quando nos defrontamos com uma
res-posta (Ant-wort - literalmente: palavra diante de, perante
algo ou alguém):
5 Heidegger, M. "A palavra de Nietzsche, 'Deus morreu"'. ln: Caminhos de flo
resta, p. 248.
112
Quando é que a resposta à questão "que é isto - a filosofia?" é uma
resposta filosofante? Quando é que nós filosofamos? É manifesto
que o fazemos apenas quando entramos em diálogo com os filóso
fos. Disso faz parte discutir com eles sobre aquilo e por intermédio
daquilo que eles próprios falam. Essa discussão uns com os outros
sobre aquilo que, sempre de novo, enquanto o mesmo, interessa
propriamente aos filósofos é o falar, o légein, no sentido do dialé
gesthai, o falar como diálogo. Uma coisa é estabelecer as opiniões
dos filósofos e descrevê-Ias. Outra coisa bem diferente é discutir
com eles aquilo que eles falam, e isto quer dizer aquilo de que eles
falam. Supondo, portanto, que os filósofos são interpelados pelo
ser dos entes para que digam o que o ente é, enquanto é um ente,
então também nosso diálogo com os filósofos deve ser interpelado
pelo ser do ente. Com nosso pensamento, devemos nós mesmos
caminhar ao encontro daquilo que a filosofia busca. Nosso falar
deve co-responder àquilo por que os filósofos são interpelados. Se
formos bem-sucedidos neste co-responder, então res-pondemos
em sentido autêntico à pergunta: que é isto - a filosofia?6
Ou seja, assim como só podemos responder legitimamente
a essa pergunta filosofando-portanto, entrando no diálogo com
os grandes pensadores da tradição histórica da filosofia-, tam
bém não podemos 1~ produtivamente Heidegger permanecendo
passivos, sem uma confrontação com suas palavras essenciais
a respeito da metafísica e de sua superação. Com nossa leitura e
nosso diálogo, devemos não apenas dar conta do assunto tratado,
6 Idem, Was ist das?- die Philosophie, p. 20 (tradução do autor).
IH
mas também, inadvertidamente e a partir do tema da conversa,
acrescentar-lhe algo de próprio, alguma coisa que provém de
nossa própria indagação e inquietação.
Se lemos Heidegger assim, então abandonamos toda pos
tura servil, para pensar com ele, a partir dele, mesmo contra
ele - o que significa corresponder à sua interpelação e, assim,
à interpelação da filosofia e de seus pensadores, cujo legado
nos foi historicamente transmitido:
A palavra alemã Antworten (responder) significa propriamente a
mesma coisa que ent-sprechen (co-responder). A resposta à nossa
questão não se esgota numa afirmação queres-ponde à questão
com uma verificação sobre o que se. deve representar quando se
ouve o conceito "filosofia". A resposta não é uma afirmação que
replica (n'est pas une réponse), a resposta é muito mais a co-respon
dência (la correspondance), que corresponde ao ser do ente. Ime
diatamente, porém, quiséramos saber o que constitui o elemento
característico da resposta, no sentido da correspondência.7
Ler Heidegger adequadamente é pensar com Heidegger,
o que também significa perguntar com Heidegger - o que
implica, ao mesmo tempo, veneração e rebeldia, pois, para
ele, "o questionar é a devoção do pensamento".8
7 Idem, ibidem, pp. 21 7 s.
8 Idem, A questão da técnica, p. 93.
114
~ 1
1
r
Conclusão Em busca de um pensamento porvir
Na história do Ocidente, o Esclarecimento constituiu um marco
filosófico, social e político. Nele ganharam expressão as espe
ranças mais fortes de emancipação humana, cultivadas desde os
primórdios da racionalidade lógica. Anseios foram depositados
no lumen natura/is (na luz natural da razão) e nos recursos da
ciênciae da tecnologia, vistos como capazes de solucionar os
enigmas do Universo, de garantir o domínio humano sobre as
forças da natureza e de realizar a justiça e a transparência nas
relações políticas nas sociedades modernas.
Para Immanuel Kant, por exemplo, o progresso do conheci
mento teórico, acompanhado pela apropriação técnico-pragmáti
ca da natureza, bem como sua utilização em benefício da dimensão
ético-política de uma humanidade concebida em referência a valo
res como autonomia, dignidade e justiça, fornecem a chancela para
uma interpretação da hi.5tória universal como plano de realização
de um milenarismo filosófico. A história seria a execução de um
plano oculto da natureza que conduz a um progressivo aperfei
çoamento moral e político da humanidade: "Vê-se que a filosofia
também pode ter o seu quiliasmo; mas será um quiliasmo tal que,
para a sua emergência, a sua ideia pode, embora apenas de longe,
ser igualmente estimulante, portanto, nada fantasiosa". 1
1 Kant, I. "Oitava proposição". ln: Ideia de uma história universal com um propósito
cosmopolita (1784), p. 15.
117
A respeito desse milenarismo filosófico, a lição de Karl
Lõwith, aluno de Heidegger, é ilustrativa:
O futuro é o verdadeiro ponto nuclear da história, pressuposto que
a verdade assente no fundamento religioso do Ocidente cristão,
cuja consciência histórica é determinada pelo motivo escatológico:
de Isaías até Marx, de Santo Agostinho até Hegel, e de Joaquim até
Schelling. A significação dessa direção do olhar voltada para um
fim último, como finis e como télos consiste em que ela proporciona
um esquema de ordem progressiva e de dotação de sentido que
pôde superar o antigo temor diante do fatum e da fortuna. 2
Humanizar a natureza e naturalizar as relações humanas
em sociedade: o progresso da ciência está atrelado aos supre
mos interesses da razão, que são de ordem ético-política.
Se a física nuclear e a química transformaram o homem no
"senhor dos elementos" - para empregar um termo de Heidegger
que faz alusão aos progressos da química no início do século
XX-, os avanços atuais da tecnociência na área da bioquímica
e da biologia molecular permitem falar _em superação da era
atômica e na decifração dos mapas genéticos responsáveis pela
estruturação dos organismos, mesmo superiores. Realizando
-se a sonhada supremacia humana sobre as demais criaturas
do Universo, o homem poderia doravante tomar nas próprias
mãos a planificação e o controle das condições de existência no
planeta, tornando-se como que um parceiro da criação.
2 Lowith, K. Weltgeschihte und Heilgeschehen, pp. 125 s. (tradução do autor).
118
Contudo, esses sonhos da razão esclarecida também pro
duziram monstros e nutriram fantasias perigosas, e Heidegger
foi um dos primeiros a detectá-los em seus perigos. Nesse sen
tido, mesmo seus ferrenhos opositores político-filosóficos
Theodor Adorno e Max Horkheimer, na Dialética do esclareci
mento, expuseram os compromissos espúrios entre a razão
completamente esclarecida e a barbárie mítica, a dominação
integral da natureza levada a efeito pela razão instrumental.
A promessa de livrar o homem do medo e instalá-lo na Terra
como senhor e possuidor desandou em administração global
e totalitária da vida.
O problema pode ser assim enunciado: teríamos alcan
çado, com o progresso, também o perigoso limiar em que a
~
autodeterminação da razão converte-se em seu contrário, se
considerada sob o ponto de vista ético? Ao assimilarmos os
processos naturais a artefatos construídos, não teríamos per
dido o sentido tradicional de natureza, já que o natural sempre
foi compreendido como o que cresce por si mesmo (physis),
diferindo dos produtos do fazer humano (téchne)? Seria esse o
limiar de uma era pós-humanista, que rompe a aliança entre o
progresso da ciência e a elevação ético-moral do gênero huma
no, aliança que foi um dos apanágios do Esclarecimento, de
Bacon e Descartes, de Diderot e Kant?
Heidegger não é apenas um interlocutor obrigatório nesse
debate. É o eixo e o pivô em torno do qual esse debate se sus
tenta e se move. Isso pode ser medido, por exemplo, em um
acontecimento impregnado de inquietante sentido filosófico.
Em julho de 1999, o filósofo alemão Peter Sloterdijk publicou
119
um panfleto que deveria ser uma resposta à carta de Martin
Heidegger "Sobre o 'humanismo"', colocando a discussão a
respeito do futuro da natureza humana em patamares intei
ramente novos. Nesse pequeno texto, Sloterdijk esforçou-se
por mostrar os limites da destruição heideggeriana das éticas
humanistas herdeiras espirituais da Aujkliirung.
Para Sloterdijk, o fundamental consiste nas insuficiências
práticas e teóricas da crítica heideggeriana, seu bucolismo quie
tista não permitindo ir além da meditação, do silêncio reve
rencial em face das urgências de um tempo que se apresenta
como pós-humanista e pós-moderno. Ele questiona como os
proferimentos iniciáticos de Heidegger poderiam contribuir para
a formação de uma "sociedade de vizinhos do Ser", de uma comu
nidade eclesial invisível de indivíduos i~olados e bem-dispostos.
Sloterdijk conduz a reflexão não para a pastoral ontológi
ca de Heidegger como alternativa ética contra o humanismo,
mas para o domínio concreto da história e da política, reinter
pretando em chave antropológica a clareira heideggeriana.
Para fazê-lo, recorre ao léxico suspeito do famigerado binômio
domesticação e seleção - essa bifurcação decisiva no processo
de autoconfiguração antropotécnica da humanidade.
Para Sloterdijk, a história cultural do Ocidente foi marcada
pela tensão entre as técnicas de cultura seletiva (Züchtung) e as
forças civilizatórias de amansamento e domesticação (Ziihmung)
do "picho homem". Na sua reflexão, o humanismo - insufi
cientemente fulminado pela.desconstrução heideggeriana da
metafísica - constitui, na verdade, um longo e importante capí
tulo dessa história; com ele se empreende a tarefa de amansar
120
as forças selvagens e domesticar o homem pela via da escola e
da leitura; para ele, a antropologia se complementa à clareira
heideggeriana, entendida como abertura para a transformação
do homem em animal doméstico (Haustier).
A clareira é mobilizada aqui como metáfora da criação e
regulação da vida humana em casas e cidades:
A clareira é, ao mesmo tempo, uma praça de combate e um lugar de
decisão e seleção. Em relação a isso nada mais se pode reparar com
formulações de uma pastoral filosófica. Onde se erguem casas, aí
tem que ser decidido o que deve ser dos homens que as habitam;
decide-se, de fato e pelo fato, que espécies de construtores de casas
vêm a prevalecer.3
Como o apóstolo São Paulo e Charles Darwin já o teriam
feito, Nietzsche teria pressentido, por detrás do pacífico hori
zonte escolar de formação, um cenário mais sombrio:
Ele fareja um espaço no qual terão início combates inevitáveis sobre
as vias da seleção humana -e esse espaço é aquele no qual se mostra
a outra face da clareira, a face oculta. Quando Zaratustra caminha
pela cidade na qual tudo se tornou menor, ele observa o resultado
de uma política de seleção até então exitosa e indisputada.4
3 Sloterdijk, P. Regeln für den Menschenpark. Ein Antwortschreiben zum Brief über
de Humanismus, pp. 11 s. (tradução do autor).
4 Idem, ibidem, p. 13.
121
Percebe-se a importância estratégica que a crítica nietz
schiana do humanismo adquire no ataque de Sloterdijk tanto a
Heidegger quanto à tradição humanista. Segundo ele, Nietzsche
denunciou a falsa inocência dissimulada na pedagogia huma
nitária, a autoedulcoração de uma vontade coletiva de poder,
responsável pela seleção de determinada figura do humano
como normativa no Ocidente: a do homem bom, como animal
doméstico e virtuoso. Com isso, dissimula-se, sob a capa de
ensino e disciplina, uma "antropotécnica", a cultura seletivade um tipo humano.
É com essa forma de (auto)mistificação que somos con
citados a romper. O desenvolvimento técnico-científico nos
habilita a planificar a tarefa cultural da seleção e, dessa manei
ra - assim o pretende Sloterdijk -, a i:eescrever as regras do
parque humano:
É a marca da era tecnológica e antropológica que os homens sejam
mais e mais colocados no lado ativo e subjetivo da seleção, mesmo
sem terem voluntariamente ingressado no papel do selecionador.
Devemos constatar: existe um mal-estar no poder da seleção, e
em breve será uma opção pela inocência, se os homens explici
tamente se recusarem a exercer o poder de seleção que eles de
fato alcançaram. 5
C9m a possibilidade técnica de decifrar e recombinar códi
gos e cadeias de genes, estaria aberta também uma nova clareira
5 Idem, ibidem, p. 14.
122
epocal, limiar em que se diferenciam os novos selecionadores e
os selecionados - os programadores e os programados:
Esse é o conflito fundamental de todo futuro, postulado por
Nietzsche: o combate entre os cultivadores seletivos do homem
para o pequeno e para o grande - poder-se-ia também dizer entre
humanistas e trans-humanistas, filantropos e transfilantropos.6
É nesse contexto que gostaria de recuperar uma importan
te passagem da entrevista-testamento de Heidegger à revista Der
Spiegel, na qual ele se refere a seu equívoco filosófico-político
a respeito do nazismo. Ao fazê-lo, mostra, porém, o contexto
em que o erro pode e deve ser adequadamente tematizado, e
esse contexto tem importância fundamental para uma reflexão
' sobre a resposta de Sloterdijk à carta "Sobre o 'humanismo"'.
O contexto especialmente tematizado por Heidegger é o de
sua reflexão filosófica sobre a essência da técnica; é aqui que
se torna útil o tratamento de questões de antropologia, antro
potécnica e política:
DER SPIEGEL: Talvez possamos resumir: em 1933, o senhor, como
uma pessoa apolítica, em sentido estrito, não em sentido lato, vai se
deixar levar pela política dessa suposta insurreição [ o nazismo] ...
HEIDEGGER: Pelo caminho da universidade ...
os: Pelo caminho da universidade vai se deixar levar pela política
dessa suposta insurreição. Aproximadamente um ano depois,
6 Idem, ibidem, p. 13.
121
renuncia à função que então aceitara. Todavia, em 1935, em uma
preleção, que foi publicada em 1953, como "Introdução à meta
física", o senhor disse: "Aquilo que hoje" - ou seja, em 1935 - "se
oferece por aí como filosofia do nacional-socialismo, mas que não
tem a ver nem um pouco com a verdade interna e a grandeza desse
movimento (a saber: com o encontro da técnica planetariamente
determinada e o homem moderno), faz sua pesca nas águas turvas
dos 'valores' e das 'totalidades'". O senhor acrescentou as pala
vras entre parênteses só em 1953, portanto durante os trabalhos
de impressão - como que para explicitar ao leitor de 1953 onde o
senhor vira a "verdade íntima e a grandeza desse movimento", ou
seja, do nacional-socialismo - ou esse parêntese esclarecedor já
fora inserido em 1935?
H: Isso estava no manuscrito e correspqnde exatamente à compre
ensão que eu então tinha da técnica, e não ainda à minha inter
pretação posterior da técnica como Ge-Stell (armação). Se não
o pronunciei, foi porque estava convicto da correta compreen
são de meus ouvintes; os estúpidos, os provocadores e os espias
compreenderam-no de outra maneira - também puderam fazê-lo
como queriam.
os: Seguramente, o senhor incluiria nessa mesma ordem também
o movimento comunista?
H: Sim, incondicionalmente, como determinado pela técnica pla
netária.
os:.E o americanismo também?
H: Diria também isso. Entreme;,tes, de trinta anos para cá, ter-se-ia
tornado mais claro que o movimento planetário da técnica moder
na constitui um poder cuja grandeza historicamente determinada
124
não tem necessidade de ser ainda supervalorizada. Hoje, é para
mim uma questão decisiva saber como um sistema político - e
qual - pode ser adido à era técnica em geral. Não sei de nenhu
ma resposta para tal pergunta. Não estou convencido que seja
a democracia.
A vertiginosa escalada do progresso tecnológico tornou
o debate hoje ainda mais radical e mais acirrado, de modo
que falar de uma filosofia que sobreviva ao fim da metafísi
ca exige uma retomada crítica desses pressupostos em jogo.
A crítica e a sugestão presentes na resposta de Sloterdijk à
carta "Sobre o 'humanismo"' deixam na sombra que o erro
de Heidegger, por certo monstruoso, nos ensina, a partir de
tais pressupostos, uma lição de prudência e moderação, ter
rivelmente awarga e tragicamente dolorosa, mas de extrema
importância e atualidade.
O nazismo com certeza não encerrava nenhuma "verda
de interna e grandeza", muito menos consistiu em tentativa
de promover "o encontro da técnica planetariamente deter
minada e do homem moderno". O que a imensa tecnologia
nazista produziu foi a destruição violenta e planificada do
humano - e isso constitui um fenômeno genuinamente bio
político sem precedentes na história ocidental. Aquilo com
que temos que nos medir é com um esforço metódico e bem
-sucedido de destruir tecnologirnmente o humano. É nesse sentido
que os campos de concentração constituíram o modelo de
implementação de um programa sistemático, levado a efeito
por meio de todos os recursos e requintes da racionalidade
125
lógico-instrumental, para a produção industrial da vida des
cartável, indigna de ser vivida .
Como lucidamente entreviu o filósofo italiano Giorgio
Agamben, ex-aluno de Heidegger, os campos de concentra
ção são laboratórios biopolíticos, equipados com todos os
dispositivos tecnológicos de poder - disciplinar, gerencial
e previdenciário. Seu funcionamento tem em vista a ilus
tração paradigmática do exercício integral do poder, cuja
decisão soberana incide sobre uma matéria viva que habita
um limiar de indiferenciação entre o humano e o inumano.
Eles são o não lugar no qual vigoram as regras de um parque
in-humano.
A figura do muçulmano [judeu], tal como descrita por Primo
Levi, é a reprodução contemporânea do Homo sacer, a outra face
da soberania biopolítica, própria da modernidade tecnológica:
126
A história - ou melhor, a não história -de todos os muçulmanos
que vão para o gás é sempre a mesma: simplesmente, acompanha
ram a descida até o fim, como os arroios que vão até o mar. A sua
vida é curta, mas seu número é imenso; sãoºeles, os "muçulmanos",
os submersos, são eles a força do campo: a multidão anônima,
continuamente renovada e sempre igual, dos não homens que
marcham e se esforçam em silêncio; já se apagou neles a cente
lha divina, já estão tão vazios, que nem podem realmente sofrer.
liesita-se em chamá-los de vivos; hesita-se em chamar "morte" à
sua morte, que eles já nem temem, porque estão esgotados demais
para poder compreendê-la. Eles povoam minha memória com sua
presença sem rosto, e se eu pudesse concentrar em uma imagem
todo o mal do nosso tempo, escolheria essa imagem que me é fami
liar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em
cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento.7
É esse significado radicalmente antropológico-político da
tecnologia do biopoder que é necessário destacar, para aprender
com o erro heideggeriano. Na era da escalada planetária
da técnica, o pensamento ainda não se colocou à altura de
meditar em profundidade com sua essência, mas a história
já multiplicou e acumulou os escombros deixados pelos
resultados monstruosos dos experimentos antropotécnicos.
Como observa Primo Levi, destruir o homem é uma tarefa tão
difícil quanto criá-lo; a experiência do muçulmano é a demons
tração dessa possibilidade, na medida em que nele não se dis
tinguem mais o humano e o não humano.8
Com todcf peso de sua inequívoca autoridade, escreve
Wolfgang Sofsky:
O muçulmano é o homem destruído,jazendo entre a vida e a
morte. Ele é a vítima de uma aniquilação passo a passo do homem.
Antes de matar com violência corporal imediata, o poder total
promove uma propositada política de miserabilização, de trans
formação da conditio humana. Já a figura aparente do muçulmano
fala de uma desumanização que atinge as profundezas.9
7 Levi, P. É isto um homem?, p. 91.
8 Idem, ibidem, p. 152.
9 Sofsky, W. Die Ordnung des Terrors, p. 229 {tradução do autor).
127
Perscrutar essa profundidade implica abismar-se nos labi
rintos da moderna biopolítica, como aquilo que, com assusta
dora urgência, dá a pensar. Agamben, por sua vez, considera
"um fato singular que o muçulmano, embora todos os testemu
nhos falem a respeito dele como de uma experiência central,
mal seja nomeado nos estudos históricos sobre a destruição
dos judeus da Europa":
Somente agora, quase cinquenta anos depois, ele [o muçulma
no] começa a tornar-se plenamente visível, e apenas agora talvez
possamos extrair as consequências dessa visibilidade. Já que esta
implica que o paradigma do extermínio que até este momento
orientou de modo exclusivo a interpretação dos campos tenha
sido não substituído, mas seja agora ladeado por outro paradigma,
o qual lança uma luz nova sobre o mesmo extermínio, tornando
-o, de algum modo, ainda mais atroz. Antes de ser o campo da
morte, Auschwitz é o lugar de um experimento ainda impensa
do, no qual, além da vida e da morte, o judeu transforma-se em
muçulmano, e o homem em não homem. E não compreendere
mos que coisa foi Auschwitz, se não tivermos compreendido pri
meiramente que coisa é o muçulmano, se não tivermos aprendido
a olhar, com ele, a Górgona. 10
Essa impossibilidade constitui, propriamente, a nova maté
ria ética que nos foi legada pelos campos de concentração e
extermínio: a macabra realidade de acordo com a qual uma
10 Agamben, G. Que/ che resta di Auschwitz, p. 47 (tradução do autor).
128
"testemunha integral" - como a que chegou ao mais fundo
do poço - suprimiu com isso a própria possibilidade de dis
tinguir entre o homem e o não homem. O limiar entre ambos
é a figura do morto-vivo que os campos produziram; não é
possível testemunhar a respeito dessa fronteira do indizível e
do incomunicável: quem viu a Górgona não pode mais falar
sobre sua própria visão, nada mais pode declarar ou comunicar.
Em face dessa descoberta e dessas experiências, seria
necessário e urgente repensar com muito cuidado os progra
mas biopolíticos de antropotécnica que se apresentam emba
lados pelo delírio tecnológico de onipotência - bem como a
compulsão à repetição que dela se nutre. E, se assim for, então
os rumos da filosofia do futuro podem ser divisados no espaço
aberto entre as opções de superação tecnológica do humano,
por um lado, e o apelo preservacionista à responsabilidade, por
outro, mesmo 11º esgotamento dos humanismos tradicionais.
Enquanto, em uma de suas vertentes, o fim da história se
realiza na forma da superação do humano no trans-humanis
mo e no pós-humano, na outra, a aposta em jogo é a respon
sabilidade pela iminente catástrofe ecológica e por um novo
empreendimento sistemático de destruição do humano.
A vertente da superação do humano pode ser ilustrada
pelo pós-modernismo de Jean-François Lyotard; Hans Jonas
ilustra a recuperação da phronesis aristotélica como autarqueia
por meio de uma heurística do medo, ou a crítica da utopia
irresponsável. Em ambos os casos, a importância da contribui
ção de Heidegger, de sua filosofia da técnica e de sua reflexão
sobre o humanismo mal pode ser exagerada.
129
Tanto em A condição pós-moderna quanto em Le dif.férend ,
Lyotard, profundamente influenciado pelo diagnóstico hei
deggeriano da técnica, alveja o poder de legitimação das meta
narrativas históricas, comprometidas com a emancipação
humana. A esse tipo de crítica acrescentou depois um com
plemento: se a pós-modernidade é, para ele, o fim das repre
sentações românticas do homem como soberano da história,
é também o princípio de uma superação da condição humana
nelas representada:
A tecnociência atual realiza o projeto moderno: o homem se con
verte em amo e senhor da natureza. Mas, ao mesmo tempo, a
desestabiliza profundamente, já que sob o nome de "a natureza" é
preciso contar também todos os constituintes do sujeito humano:
seu sistema nervoso, seu código genético, seu computer cortical,
seus captadores visuais, auditivos, seus sistemas de comunicação,
especialmente os linguísticos, suas organizações de vida em grupo
etc. Finalmente, sua ciência, sua tecnociência também fazem parte
da natureza. Podemos fazer, fazemos ciência da ciência, como
fazemos ciência da natureza. O homem talvez seja tão somen
te um nó muito sofisticado na interação geral das radiações que
constitui o Universo. 11
É nesse horizonte que se inscrevem as perspectivas pós
e transumanas, a troca de carbono por silício, que tornaria
11 Lyotard, Jean-Fran çois. La posmodernidad (explicada a los ninas), pp. 29-32 .
(tradução do autor).
130
potencialmente imortal o corpo orgânico. A isso poderia se
aliar uma reconfiguração da consciência, descentrada de sua
identificação com a unidade subjetiva, ultrapassando o atrela
mento aos cinco sentidos, e conectada em redes neurais, simul
taneamente com a miríade de centros virtuais de registro e
processamento de informações. Para os membros do Extropy
Institut, fundado pelo filósofo e cientista Max More no Vale
do Silício, nos Estados Unidos, a atual base somática da per
sonalidade pode ser considerada um hardware em processo de
obsolescência, que deve ser substituído por um equipamento
de tipo Homo roboticus, imune a panes e disfunções orgânicas,
capaz de desenvolver autoconsciência e ultrapassar e substituir
o Homo sapiens, como este fez com o Homo australopitecus na
trajetória ascendente da escala evolutiva.
No plano da filosofia da história, no final do século XX,
passou-se a cogitar outra vez uma coerência no desenvolvi
mento, que conduziria a maior parte da humanidade para a
meta da democracia liberal. Para Francis Fukuyama, a história
tem um sentido, como tivera para Santo Agostinho, Voltaire,
Hegel ou Marx. Nela, a humanidade é, metaforicamente, como
uma longa caravana de carroças que avançam por um cami
nho: algumas entrarão na Meca prometida, enquanto outras
permanecerão no deserto. 12
Hans Jonas, por sua vez, ousa dar um passo fundamental
em um caminho que leva de Heidegger à filosofia prática e
à ética. Nas sociedades contemporâneas investidas de um
12 Cf. Fukuyama, F. The End of the History and the Last Man.
131
potencial tecnológico em permanente desenvolvimento, a
razão mais forte pela qual a autoafirmação da vida deve ter
caráter normativo para o ser humano é o poder alcançado
pelo homem por meio da moderna tecnociência. Essa potên
cia prometeica desencadeada é o fundamento do dever de
reconhecer à natureza aquele direito que lhe é próprio. Trata-se
de uma ética da responsabilidade com vistas a preservar um
ser portador de valor intrínseco, que pode ser efetivamente
destruído pelo poder tecnológico adquirido e desenvolvido
pelo homem:
O potencial apocalíptico da técnica - sua capacidade de pôr em
perigo a sobrevivência do gênero humano ou corromper sua inte
gridade genética, ou alterá-la discriciçmariamente, ou até mesmo
destruir as condições de uma vida mais elevada sobre a Terra -
coloca a questão metafísica, com a qual a ética nunca fora antes
confrontada, qual seja: se e por que deve haver uma humanidade;
por que, portanto, o homem deve ser mantido tal como a evolução
o produziu; por que deve ser respeitada sua herança genética; sim,
por que, em geral , deve haver vida.13
Futuristas exaltados e preservacionistas, transumanos
e neo-humanistas não podem, porém, responsavelmente,
elidir e deixar de levar em contauma séria confrontação com
o pensamento de Heidegger, de seu apelo à escuta da voz do
Ser, de retomada da essência do homem em correspondência
13 Jonas, H. "Por que a técnica moderna~ um objeto para a ética", p. 414.
132
com a verdade do Ser. Sob pena de, ao tentarmos fazer uma
filosofia do futuro, permanecermos aquém de nossas próprias
exigências, aquém daquilo que a destruição heideggeriana da
metafísica já operou, e, desse modo, continuarmos ofuscados
e embotados para as possibilidades catastróficas de uma má
realização do eterno retorno do mesmo.
A sobrevivência e o futuro das sociedades ocidentais pare
cem depender da atualização de seu potencial tecnológico. Por
outro lado, a dialética entre a aquisição de novos poderes e capa
cidades (vantagem técnica) e a possibilidade de sua utilização
assumem a forma do aproveitamento coercitivo, em escala indus
trial, dos avanços tecnológicos.
Como em toda coerção, a dinâmica do progresso técnico
subtrai-se ao controle ético e subverte em dependência a promes
sa originária de emancipação. Compreender a essência da técnica
em um horizonte pós-metafísico poderia talvez ensejar tanto
uma reapropriaçãt> dessa potência quanto uma desalienação do
homem moderno. Permitiria apreender a imbricação entre a téc
nica e a metafísica, inscritas como destino na história da verdade
do Ser, a que o homem deve corresponder pelo pensamento.
Essa meditação ilumina os perigos ínsitos à dinâmica
autônoma da tecnologia, em marcha para colonizar e tornar
dependentes de si as diversas formas de organização da socie
dade, colocando em risco a possibilidade futura de existência
autenticamente humana na Terra.
Toda compulsão é sintoma de morbidez, de perda de
controle - um diagnóstico a que deve ser submetida a crença
incondicional na resolução de todos os macroproblemas humanos pela
intensificação coercitiva do progresso tecnológico. Talvez ela seja signo
de um delírio de onipotência, que pode converter-se em seu
contrário, isto é, em impotência e extravio, como perda, difi
cilmente reversível de autarcheia (autodomínio) .
Heidegger nos confronta, pois, com a necessidade de des
pertar de uma hybris e alcançar uma potência de segundo grau:
subtrair-se à compulsão que nos impele a percorrer sempre os
mesmos caminhos, que, em vez de salvação, potencializam
o perigo, enredando-nos mais profundamente na alienação.
O pensamento de Heidegger pode ser visto como um
humanismo distinto do tradicional. Se este sempre considerou
a humanidade do Homo humanus a partir da animalidade, Hei
degger pensa a essência do homem como abertura para o Ser,
como obediência (gehorchen) ao apelo qo Ser: uma dignidade que
os sistemas éticos tradicionais não foram capazes de conceber.
Se a tradição limitava a esfera do ethos às relações do homem
consigo mesmo e com os outros homens, a ética heideggeriana
da finitude confere significação própria ao mundo e aos entes
intramundanos, cuja cura compete ao homem - não como
mestre dos entes, mas como pastor do Ser.
134
•
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Sobre o autor
Oswaldo Giacoia Jr. é professor titular do departamento de
filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Doutorou-se em filosofia pela Universidade Livre de Berlim
(Alemanha), onde fez também pós-doutorado. É pós-doutor
ainda pela Universidade de Viena (Áustria) e pela Universidade
de Lecce (Itália). É autor de, entre outros, Nietzsche x Kant: uma
disputa permanente a respeito de liberdade, autonomia e dever (Casa da
Palavra, 2012), Pequeno dicionário de filosofia contemporânea (Publi
folha, 2006), Sonhos e pesadelos da razão esclarecida: Nietzsche e a
modernidade (UPF editora, 2005); Nietzsche como psicólogo (Editora
Unisinos, 2004) e Nietzsche (Publifolha, 2000). Organizou, junto
com Antonio Florentino Neto, Heidegger e o pensamento oriental
(Edufu, 2012.J,.-
143
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Oia forma
de uma meditação sobre a história da verdade (alétheia) do Ser.
Encerrada a Segunda Guerra, Heidegger foi convocado,
em meados de 1945, para depor perante o comitê de desnazi
ficação organizado pelos exércitos aliados. O processo movido
contra o filósofo deveu-se, além do seu envolvimento com o
Partido Nazista, a denúncias d~ que teria tido comportamento
antissemita durante o período do reitorado, discriminando e
perseguindo colegas judeus.
Sua saúde sofreu, então, grande abalo, cujo resultado foi
um esgotamento nervoso e uma profunda depressão. Toda
via, data dessa época tanto a correspondência com o filósofo
Jean-Paul Sartre quanto sua ami~ade com Jean Beaufret, que
traduzirá para o francês a célebre carta "Sobre o 'humanismo"',
escrita em 1946.
~
3 Aus (preposição que indica movimento para fora); -einander (um e outro);
-setzung (do verbo setzen: pôr, colocar, assentar, pôr em pé); Auseinandersetzung
tem o sentido literal de colocar algo ou alguma coisa fora e diante de outra
e é habitualmente traduzido em português por "discussão". Uma tradução
mais próxima de sua literalidade e sentido original é "confrontação" 9u "en-
frentamento". ·
18
Em 1946, com base em um parecer subscrito pelo filósofo
Karl Jaspers (de quem Heidegger se tornara amigo em 1920 e
se afastara depois da adesão ao nazismo), o comitê de desnazi
ficação recomendou a cassação de sua venia docendi, proibindo-o
de lecionar. A interdição perdurou até 1949, quando o conselho
universitário de Freiburg enviou ao Ministério da Educação um
pedido de reintegração de Heidegger. Porém, o efetivo reinício
de suas atividades só ocorreria em 1951. Convém salientar que,
a despeito de ser instado a fazê-lo por vários de seus colegas
de profissão e amigos, Heidegger nunca se justificou ou pediu
desculpas publicamente por seu envolvimento com o nazismo.
Entre 1949 e 1950, proferiu importantes conferências em
diversas cidades alemãs, como Bremen e Munique, nas quais
divulgou os resultados de sua meditação sobre a história da
verdade do Ser: "A coisa" (Das Ding), "A armação" (Das Gestell),
"O perigo" (Die Gefahr), "A viravolta" (Die Kehre). Publicadas
mais tarde, as conferências constituem peças fundamentais
no programa de superação da metafísica do assim chamado
"segundo Heidegger".
Em 1953, publicou A pergunta pela técnica, em que apresenta
as linhas fundamentais de sua filosofia da técnica moderna,
interpretando-a a partir da tradição metafísica ocidental. Dois
anos mais tarde, pronunciou a conferência "Serenidade", na
qual aprofunda sua reflexão sobre a cibernética como a metafí
sica do nosso tempo e descreve a postura existencial de silêncio
meditativo sobre os perigos da tecnologia moderna.
Em 1966, Heidegger concordou em conceder à revista Der
Spiegel um importante depoimento, que ficou conhecido como
19
entrevista-testamento, pois ele só aceitou o convite com a con
dição de que fosse publicada postumamente. Na entrevista, o
filósofo discorre sobre fatos importantes relacionados a sua
vida e sua obra, em particular as circunstâncias e o sentido de
sua aproximação e seu posterior afastamento crítico do nazis
mo, como ilustra a seguinte passagem:
DER SPIEGEL: Senhor professor Heidegger, temos constatado repeti
das vezes que a sua obra filosófica é um pouco ensombrecida por
acontecimentos não muito duradouros da sua vida, que nunca
foram esclarecidos.
HEIDEGGER: O senhor pensa em 1933?
os: Sim, antes e depois. Gostaríamos de colocar isso em um contexto
maior e, daí, chegar a alguma~ perguntas que parecem importan
tes, como: que possibilidades há, a partir da filosofia, de agir sobre
a realidade - inclusive, sobre a realidade política?
20
H: Essas já são questões importantes e quem sabe eu possa responder
a todas elas. Mas tenho que dizer, em primeiro lugar, que não tinha
atuado politicamente, de modo algum, antes de meu reitorado. No
semestre de inverno de 1932-33, e\i estava de férias e passei a maior
parte do tempo em minha cabana.
os: Como ocorreu que o senhor tenha se tornado reitof'êla Univer
sidade de Freiburg?
H: Em dezembro de 1932, meu vizinho Von Mollendorf, catedrático
de anatomia, foi eleito reitor. Na universidade local, a tomada de
posse do novo reitór realiza-se a 15 de abril. Durante o semestre
do inverno de 1932-33, conversávamos frequentemente acerca da
situação, não apenas política, mas, em particular, da universidade,
e sobre a situação, em parte sem perspectivas, dos estudantes. Meu
julgamento, na ocasião, era o seguinte: tanto quanto posso avaliar
as coisas, resta apenas a possibilidade de tentar realizar [a tarefa de
autoafirmação da universidade alemã] e dar início a ela, com as
forças construtivas que efetivamente ainda estavam vivas.
os: O senhor via, portanto, uma conexão entre a situação da univer
sidade alemã e a situação política da Alemanha, em geral?
H: Com efeito, eu acompanhava os acontecimentos políticos entre
janeiro e março de 1933, e ocasionalmente conversava sobre isso
com colegas mais jovens. Mas o meu trabalho era dedicado a uma
interpretação mais abrangente do pensamento pré-socrático. No
começo do semestre de verão, retornei a Freiburg. Entrementes,
em 16 de abril, o professor Von Mollendorf tinha tomado posse
do cargo de reitor. Menos de duas semanas depois, foi destituído
pelo então ministro da Cultura de Baden. O supostamente dese
jado ensejo para essa decisão do ministro foi dado pelo fato de
que o reitor tinha proibido fixar na universidade o assim chamado
cartaz dos judeus.4
os: O senhor Von Mollendorf era social-democrata. O que ele fez
depois da deposição?
H: No mesmo dia de sua deposição, veio ter comigo e disse-me: "Hei
degger, agora o senhor tem de assumir o reitorado". Dei a enten
der que a mim faltava experiência em atividades administrativas.
O então vice-reitor Sauer (de teologia) também pressionou para
4 Heidegger refere-se ao cartaz antissemita "Contra o espírito alemão", que
estudantes nazistas haviam tentado afixar na Universidade de Freiburg. A ação
foi obstada por ele, então reitor daquela instituição.
21
22
que eu me candidatasse às novas eleições para o reitorado, pois
haveria o risco, se isso não ocorresse, de que um funcionário fosse
nomeado reitor. Colegas mais jovens com quem havia vários anos
vinha comentando problemas da configuração da universidade
também acorreram a mim para que aceitasse o reitorado. Durante
muito tempo, hesitei. Por fim, declarei-me disposto a assumir o
cargo unicamente no interesse da universidade, caso pudesse estar
seguro acerca do assentimento unânime do plenário. Enquanto
isso, contudo, permaneciam as dúvidas quanto à minha aptidão
para o reitorado, de modo que, ainda na manhã do dia estabele
cido para a eleição, apresentei-me na reitoria e declarei ao colega
destituído Von Mõllendorf, ali presente, e ao professor Sauer que
não podia aceitar o cargo. Ao que ambos me responderam que eu
já não poderia retirar a candidatura.
os: Em face disso, o senhor declarou-se definitivamente disposto [ a
aceitar o cargo]. Como se configurava na época a sua relação com
os nacional-socialistas?
H: No segundo dia depois da minha posse, apareceu na reitoria o
"dirigente dos estudantes" (Studentenführer), com dois acompa
nhantes, e exigiu de novo a colocação do "cartaz dos judeus".
Recusei. Os três estudantes afastaram-se com a ob~rvação de
que a proibição seria notificada à Direção de Estudantes do Reich
(Reichsstudentenführung). Alguns dias depois houve uma chamada
telefônica dos Serviços Universitários das SA, que integravam a
Direção Suprema das SA, da parte do doutor Baumann, chefe do
grupo. Ele exigia a·fixação do mencionado cartaz, assim como já se
fizera em outras universidades. Em caso de recusa, deveria contar
com a demissão, senão mesmo com o fechamento da universidade.
Procureiganhar o apoio do ministro da Cultura de Baden para
o meu indeferimento. Ele me esclareceu que nada poderia fazer
contra as SA. Todavia, não recuei de minha proibição.
os: Até hoje isso não era conhecido desse modo.
H: O motivo que, em geral, me levou a assumir o reitorado está já
explicado na minha preleção inaugural, proferida em Freiburg,
em 1929, "O que é a metafísica?": "Os domínios das ciências estão
muito afastados uns dos outros. O modo de tratamento de seus
objetos é fundamentalmente distinto. Hoje, esse desdobramento
confuso de disciplinas só se mantém reunido em uma significação
pela organização técnica das universidades e faculdades e pela
finalidade prática dos campos de especialidade. Em contrapartida,
o enraizamento das ciências no seu solo essencial extinguiu-se".
Aquilo que eu tentei, em relação a esse estado da universidade
- que nesse meio-tempo degenerou-se a um ponto extremo-,
durante o tempo de meu exercício do cargo, está exposto no meu
discurso de reitorado.
os: Tentamos averiguar como e se essa declaração de 1929 coincide
com o que o senhor disse no discurso inaugural como reitor,
em 1933. Desse contexto, extraímos a seguinte frase: "A tão can
tada 'liberdade acadêmica' é expulsa da universidade alemã,
pois essa liberdade era inautêntica, porque apenas negativa".
Acreditamos poder suspeitar que essa sentença exprime pelo
menos uma parte das concepções das quais o senhor ainda hoje
não se distanciou.
H: Sim, ainda sustento isso, pois essa "liberdade acadêmica" era
muito frequentemente apenas negativa: liberdade em relação ao
esforço por ingressar naquilo que o estudo científico exige de
23
meditação e reflexão. Adernais, a sentença extraída pelo senhor não
deveria ser lida de forma isolada, mas no seu contexto, pois então
se torna plenamente claro o que eu queria que fosse compreendido
corno "liberdade negativa". 5
O extrato dessa entrevista torna possível entrever algu
mas dificuldades daquele período em que Heidegger exerceu
a função de reitor da Universidade de Freiburg. Para complicar
ainda mais o quadro, basta recordar que, entre seus alunos e
orientandos mais célebres, contavam-se os filósofos Herbert
Marcuse, Hans Jonas e Karl Lowith, todos de ascendência judai
ca. O relacionamento de Heidegger com sua ex-aluna Hannah
Arendt, interrompido por causa do enredamento político do
filósofo e do exílio de Arendtdo espírito e cuja meto
dologia é essencialmente hermenêutica e inclui valores como
princípios explicativos.
Contudo, uma vez que as ciências humanas não com
portam a matematização de seus objetos, elas não podem
aspirar ao regime de certeza e objetividade que há nas ciên
cias formais e físicas. A cientificidade das ciências humanas
exige a instituição de critérios e metodologia de pesquisa pró
prios, sob pena de tornar inviáveis seus corpos teóricos como
conhecimento objetivo. Uma filosofia em crise profunda não
podia, então, prover esse tipo de reflexão epistemológica, em
substituição à teoria tradicional da ciência, cuja base metafí
sica tornara-se perempta.
É nesse cenário histórico que se explica a consolidação e
o impacto de três vertentes filosóficas que tiveram papel rele
vante para o pensamento de Heidegger: a filosofia dos valores,
as filosofias da vida e a filosofia existencial. Seu traço comum
consiste na valorização de elementos ligados à dimensão do
sentido, à condição paradoxal da existência humana em um
mundo desprovido de finalidad~ e de valores transcendentes
- enfim, na tomada de consciência da contingência e da facti- )
cidade da vida.
Nessa direção, avulta o nome de Nikolai Hartmann (1882-
-1950). Inicialmente próximo ao neokantismo idealista da Escola
de Marburg, ele transitou daí para uma postura teórica realis
ta, promovendo uma revisão crítica da ontologia tradicional.
Baseando-se principalmente em Aristóteles e Christian Wolff
(1679-1754), Hartmann retoma a tradição dos grandes sistemas
28
1
1
l.
I'
M
li
1
metafísicos, como aqueles do idealismo alemão, resgatando a
tentativa de propor uma doutrina ético-filosófica não apenas
baseada em princípios formais, mas também dotada de um
conteúdo material de valores substantivos, em um esforço para
sustentar uma interpretação original da doutrina das categorias
de Aristóteles e Kant.
A influência de Hartmann também se fez sentir no campo
da filosofia da religião. Com apoio na filosofia prática de Kant, o
conceito de Deus torna-se um postulado, afirmado como uma
necessidade interna da moralidade humana, analogamente ao
uso de postulados em matemática, como medida necessária à
resolução de problemas.
Outro nome importante na filosofia dos valores, igual
mente ligado ao neokantismo, é Max Scheler (1874-1928). Para
superar o formalismo ético de Kant, ele pretendia fundamentar
a ética em um sentimento de valor, em uma apreensão vivida de
valores morais e estéticos, alheia à compreensão conceituai,
também não incluída entre as categorias do Ser. Scheler consi
derava a metafísica como ciência, baseando-a na metodologia
da antropologia cultural e da filosofia social. Em obra intitu
lada Cosmovisão .filosófica (Philosophische Weltanschauung), tentou
elucidar os fundamentos da sociedade e da história. Vemos
aparecer aqui uma palavra que constituirá um topos conceituai
da filosofia da época: "cosmovisão" (Weltanschauung), de que
Heidegger se ocupará profusamente.
Em complemento à filosofia dos valores, a rubrica "filoso
fias da vida" denota o questionamento a respeito do sentido,
do valor e do propósito da vida, sublinhando a experiência
29
concreta, vivida em sua plenitude, em detrimento de um tipo
de conhecimento intelectual e puramente teorético. Enfatiza
o aspecto subjetivo do conhecimento em oposição a seu com
ponente objetivo, impessoal, axiologicamente neutro. Nelas, o
conceito vida assume um papel de categoria totalizante e prin
cípio último de explicação. Intuição e sentimentos, as vivências
concretas (Erlebnisse) - não conceitos abstratos - liberam o aces
so à vida, entendida como totalidade abrangente da existência
humana no mundo, que só pode ser compreendida a partir de
uma perspectiva que lhe seja interna.
Outro filósofo importante na época foi Wilhelm Dilthey
(1833-1911), que sistematizou um método de investigação base
ado em vivência (Erlebnis) e intuição (Einfühlung). Seu pensamento
exerceu considerável influência sobre diferentes correntes da
filosofia da vida, do final do ·século XIX até meados do século
passado, assim como sobre a ciência hermenêutica, além de
dar ensejo a um relativismo histórico dos valores.
Uma de suas categorias centrais é a de compreensão, que lhe
permitia apreender e interpretar, da única maneira adequada,
as formações socioculturais, historicamente determinadas,
que adquirem forma e duraçã~ relativa no interior da vida )
entendida como totalidade abrangente. A ênfase na experiên
cia vivida, na diversidade das manifestações da vida social e
cultural, em detrimento das abstrações, resultou na importante
distinção metodológica entre explicação (Erkliirung) e compreensão
(Verstehen), que cindiu a unidade do saber científico entre, de um
lado, as ciências formais e da natureza e, de outro, as ciências
do espírito ou da cultura.
30
A distinção conceituai entre explicar (Erkliiren) e compreen
der (Verstehen), ou explicação e compreensão, coloca em destaque
os procedimentos essenciais da hermenêutica e torna-se um
operador importante da metodologia científica. De modo
geral, explicar consiste em identificar relações constantes entre
fenômenos ou séries de eventos, cuja regra geral tem a forma
lógica da ligação entre causa e efeito. Consiste em enquadrar
fenômenos nesse esquema formal, de modo que, para as ciên
cias naturais, a natureza é concebida como um sistema de rela
ções entre fatos, ligados entre si de acordo com certas regras
invariáveis, fundadas em princípios universais. No caso das
ciências formais, explicar consiste em deduzir propriedades a
partir de definições prévias, de acordo com axiomas ou pro
posições evidentes.
As Geisteswissenchaften (ciências do espírito, da cultura, ou
ciências humanas), por sua vez, têm na compreensão sua cate
goria fundamental e não procedem por explicação nem por
dedução de consequências a partir de princípios ou definições.
A compreensão é um processo hermenêutico visando ao senti
do dos eventos do mundo histórico-cultural, especificamen
te humano. Na interpretação do sentido, o próprio cientista
(sujeito), com seu lastro subjetivo de estimativas de valor, nunca
pode ser separado inteiramente do objeto a ser interpretado, de
modo que um teor de subjetividade não pode ser retirado das
ciências da cultura, ao contrário do que ocorre com as ciências
formais (matemática) e as ciências da natureza, cujas explica
ções se pretendem fundadas apenas na objetividade dos fatos,
sem interferência subjetiva (valorativa) por parte do cientista.
31
A relevância teórica dessa distinção permite entender
o interesse do jovem Heidegger por Max Weber (1864-1920),
fundador da sociologia compreensiva e professor em Frei
burg entre 1894 e 1895. Também Weber estava essencialmente
preocupado com a fundamentação das ciências sociais, sem
desprezar, no entanto, os conteúdos não redutíveis a procedi
mentos matemáticos ou mecânicos. Para ele, os fenômenos
humanos nos quais estão implicadas referências a valores são
constituintes fundamentais das ciências sociais, pois o sentido
pleno de fatos sociais dessa espécie só pode ser reconstituído a
partir da sua relação sob o ponto de vista dos valores.
Weber, no entanto, não excluía inteiramente das ciências
humanas a categoria de causalidade, em especial em sua apli
cação à teoria da deliberação e atribuição de responsabilidades
como recurso explicativo dos processos constitutivos da vida
social. Sendo assim, embora valorizasse a compreensão como
princípio metodológico, propunha também a integração de
compreensão e explicação, em uma visão unitária da ciência, na
qual ele distinguia conceitualmente conhecimento científico
e juízos de valor.
Ele reconhecia, com os d~fensores da teoria compreen-)
siva, que toda ciência contém um elemento subjetivo e axioló
gico.Contudo, não renunciava à objetividade da ciência, que
depende fundamentalmente do controle e direcionamento da
pesquisa por métodos sistemáticos e procedimentos de inves
tigação universalizáveis.
Heidegger incorporou ao seu pensamento elementos teó
ricos e recursos metodológicos da filosofia dos valores e das
32
filosofias da vida, assim como das filosofias existenciais ateias,
como a de Jean-Paul Sartre (1905-1980), e cristãs, como a de Karl
Jaspers (1883-1969), com as quais dialoga a respeito da condição
humana, tal como pensada por eles. Essa integração, essencial
mente crítica, foi inevitável em decorrência de sua inserção no
circuito universitário de Marburg e Freiburg.
A filosofia de Heidegger recebe também o influxo de outra
corrente intelectual, decisiva para o seu pensamento: a fenome
nologia de Edmund Husserl. Este sistematizou a fenomenologia
em uma concepção densa, consistente, original, assimilando
coordenadas desenvolvidas por Bolzano (1781-1848) e Brentano
(1838-1917), com vistas a estabelecer novos fundamentos tanto
para a filosofia quanto para as ciências de seu tempo.
De tal programa faz parte a concepção da filosofia como
ciência rigorosa, desprovida de pressupostos dogmáticos, cuja
meta consiste em determinar a possibilidade do conhecimento.
Embora esta tenha sido a pretensão da filosofia desde seu sur
gimento, ela "nunca teria sido um desvelamento consequente
e coeso dos 'verdadeiros primórdios' do conhecimento; até
então, ela nunca teria encontrado a 'decisiva formulação do
problema, o método correto'. Só a fenomenologia seria ciência
rigorosa", nas palavras do prestigioso intérprete da filosofia
heideggeriana, o professor alemão G. Figal.7
Uma das pretensões de Heidegger consistiu na tentati
va de descrever os fenômenos, tais como estes se mostram,
de acordo com as estruturas fundamentais de seus modos de
7 Figa!, G. Zu Heidegger. Antworten und Fragen, p. 32 (tradução do autor).
33
aparecimento e suas modalidades de exibição. Nesse sentido, a
noção de intencionalidade desempenha um papel fundamen
tal. Heidegger a apreende a partir do pensamento de Husserl,
que considera a intencionalidade uma dimensão constitu
tiva estrutural da consciência, de modo que esta não pode
ser pensada de maneira insular, como se fosse uma mônada
fechada sobre si própria, contraposta ao mundo dos objetos
que ela mesma representa. Consciência (cogito) não existe a
não ser na duplicidade e na abertura para um objeto pensado
(cogitatur), que se mostra como fenômeno, tanto segundo con
dições empíricas e sensíveis quanto em conformidade com
elementos estruturantes formais, de natureza transcendental.
Para Husserl, portanto, a fenomenologia implica uma
ontologia fundamental - esta deve ser compreendida como
uma descrição dos modos de estruturação e apresentação dos
fenômenos, em conformidade com os diferentes contextos de
realidade nos quais desde sempre nos encontramos. A exigên
cia de científicidade, tal como formulada pela corrente cienti
ficista, então dominante, do positivismo lógico do Círculo de
Viena, não seria capaz de sati~fazer as exigências teóricas da,1
fenomenologia husserliana, as mesmas que serão retomadas
e reformuladas por Heidegger.
Com efeito, o ideal de positivistas lógicos como Moritz
Schlick (1882-1936) e Rudolph Carnap (1891-1970), ambos
integrantes do Círculo de Viena, era conjurar definitivamen
te as especulações metafísicas e identificar a racionalidade
científica com os requisitos teóricos e metodológicos das
ciências formais e experimentais. De modo que o·ideal de
34
proposições significativas seriam as sentenças protocolares
ou os registros de enunciados capazes de ser levados à veri
ficação experimental ou à demonstração, em estrita relação
biunívoca com os dados e elementos resultantes de tais pro
cedimentos. À análise epistemológica caberia um exame dos
conteúdos das experiências, ou melhor, do conteúdo teórico
das experiências, para revelar o possível conhecimento desde
sempre nela contido.
Heidegger, por sua vez, retoma nesse contexto o mote
filosófico do programa fenomenológico husserliano: "Retor
nar às próprias coisas" (auf die Sachen selbst zuriickzugehen), o que
significava, já para Husserl, perguntar-se, sem amparo em con
vicções prévias e pressupostos teóricos, pelas condições verda
deiramente iniciais do conhecimento, uma vez que a crise das
ciências é, antes de tudo, uma crise da racionalidade. Em face
dessa crise que afeta as ciências em geral, mas particularmente
as humanas (ciências da compreensão), é elucidativo o diag
nóstico de Merleau-Ponty:
A crise das ciências, das ciências do homem e da filosofia tende
para o irracionalismo. O próprio racionalismo surge como um
contingente produto histórico de certas condições exteriores. Des
de o início de sua carreira, Husserl sentiu profundamente que o
problema consistia em tornar novamente possíveis , ao mesmo
tempo, a filosofia, as ciências e as ciências do homem, repensar
seus fundamentos e os da racionalidade. Compreendeu que essas
diferentes disciplinas haviam penetrado em um estado de crise per
manente, do qual não escapariam se, por uma nova elucidação de
35
suas relações e de seus processos de conhecimento, não se chegasse
a tornar possível cada uma delas, assim como sua coexistência.8
Os conceitos de cada ciência particular remetem a um
domínio de objetos investigados de acordo com princípios e
métodos que dão lugar a um regime próprio de verdade. A tais
domínios corresponde determinada organização ideativa da
consciência, estruturas formais que condicionam a intuição
e os modos de aparecimento de seus conteúdos. A fenome
nologia seria então uma ciência filosófica das estruturas fun
damentais da consciência pura em geral, cuja fundamentação
é exclusivamente lógica e completamente independente da
psicologia e da antropologia.
Seu procedimento, inspirado na epoché (suspensão do juízo)
dos céticos antigos, reduz a experiência vivida a seus elemen
tos constituintes para identificação e descrição dos modos de
apresentação dos objetos na consciência. Essa postura meto
dológica rompe com a "atitude natural" que considera a cons
ciência parte da realidade, de um mundo dado previamente,
representado em conformidade com as regras e os princípios
lógicos do pensamento.
Com a suspensão do juízo, a realidade dos objetos da
consciência deixa de se constituir como pretexto para a dúvi
da metódica ou a negação dogmática, sem ter como implica
ção que os objetos sejam tomados como criações ideais da
consciência. Essa ·suspensão possibilita uma redução eidética
8 Merleau-Ponty, M., op. dt. , p. 16.
36
da consciência pura - ou seja, a análise do vivido concreto,
juntamente com as estruturas formais da consciência, sobretudo a
intencionalidade, pela qual toda consciência é sempre consciência
de alguma coisa, todo cogito (eu penso) é sempre também cogitatur
(conteúdo pensado), e pela qual a experiência pode adquirir
uma dimensão de sentido para a consciência.
A redução eidética parte da simples percepção sensível e,
por meio de sua descrição metódica, desvenda também suas
estruturas formais ou ideais, que não são de natureza psicoló
gica ou subjetiva, mas lógicas e universais. Tais estruturas são
essências ideais, porém diferentes das ideias platônicas, cuja
existência real é admitida em um mundo inteligível. As essências
de Husserl são formas de a consciência visar e exibir seus objetos.
Para entender tal procedimento, deve-se partir da expe
riência cotidiana: por exemplo, a percepção desse prosaico
tinteiro sobre minha mesa. Existem no mundo inumeráveis tin
teiros individualmente semelhantes ou individualmente dife
rentes. Entretanto, todos mantêm a mesma unidade genérica:
são tinteiros, e não cinzeiros.
Essa "tinteiridade" é apreendida com a percepçãosensível
do meu tinteiro, mas é completamente diferente dela. Husserl
denomina intuição categorial o modo de apreensão das essências
pela consciência. Emb_ora as duas formas de intuição possam
ser tomadas separadamente, a categorial é baseada na intuição
de objetos sensíveis ou imaginários. Meu tinteiro, portanto,
apreendido como conteúdo de uma simples percepção sensível,
dá lugar a novos atos de consciência visando a seus elementos
e sua coerência interna, sua categoria essencial: a "tinteiridade",
37
que não existe separada da intuição sensível e que só pode ser
adequadamente compreendida em conexão com outros objetos,
como a pena, o papel, a caneta, a escrivaninha etc. Nem ideias
platônicas, nem nomes ou ficções, mas seres ideais, dados de
maneira similar à dos objetos sensíveis (seres reais).
À "intuição das essências" (Wesensschau) está ligada a "aper
cepção compreensiva" (komprehensive Apperzeption), expressão
que designa os modos como a consciência percebe os obje
tos na vida cotidiana, nos diferentes contextos do Lebenswelt
(mundo da vida). Por meio dela, apreendemos a unidade da per
cepção e do percebido, entre a expressão e o que nela é expresso. Essas
unidades compreensivas são pessoas ou objetos culturais; é
assim que apreendemos os outros homens como pessoas, ao
tomar consciência deles e-orno unidades anímico-corporais,
nas quais o corpo torna-se corpo expressivo, e os objetos culturais
não são meras coisas físicas, mas devem ser compreendidos
como elementos dotados de identidade e sentido no contexto
intersubjetivo de uma cultura.
Esse ideário é fundamental para Heidegger, razão pela
qual foi integrado em Ser e tempo, livro dedicado a Husserl. Mas
essa obra foi também a razão principal do distanciamento de
Heidegger de seu mestre. A decepção de Husserl com o livro
foi imensa, por considerar que seu discípulo reconvertia a
fenomenologia em psicologia e em antropologia, ao transfor
má-la em analítica fenomenológica das estruturas do ser-o-aí
(o Dasein9
). "Em texto publicado em 1930, [Husserl] fala de um
9 Todos esses conceitos e noções s~rão definidos e explicados a seguir.
,8 .
erro corruptor do puro sentido da filosofia, que quer fundar
a filosofia sobre a antropologia ou a psicologia, sobre a ciên
cia positiva do homem, sobre a vida anímica do homem", nas
palavras de G. Figal. 1º
"'
Seja como for, Ser e tempo, ressalta Figal:
É o ponto para o qual convergem as primeiras propostas de
Heidegger, é o ponto de partida para tudo o que ele pensou depois
de sua publicação. O seu pensamento após Ser e tempo é sempre
uma retomada das questões fundamentais deste livro; extensas
anotações do filósofo provarão isso, de maneira impressionante,
tão logo publicadas. 11
10 Figa! , G., op. cit., p. 33.
11 Idem, ibidem , p. 83.
39
O primeiro
Heidegger
AS INTUIÇÕES INICIAIS
A originalidade e a radicalidade da contribuição de Heidegger
à filosofia contemporânea não precisam ser enfatizadas, uma
vez que nela se encontra tanto uma reapropriação sui generis da
tradição quanto uma nova determinação dos rumos futuros
da filosofia, cuja frase-guia é "superação da metafísica".
Se a filosofia, dos gregos aos nossos dias, pode ser conside
rada um sinônimo de metafísica, então a pretensão de Heideg
ger consiste em nada menos do que retornar, pela meditação,
em diálogo produtivo com os grandes pensadores, aos mais
recuados primórdios do pensar filosófico. Ou seja, retornar
a uma experiência de pensamento iniciada com os pré-socrá
ticos, prosseguida e depois soterrada pela hegemonia da meta
física desde Sócrates, Platão e Aristóteles.
Neste capítulo, serão explicitadas as intuições in!ciais que
estão na base da filosofia do primeiro Heidegger e que lanham
expressão literária nas obras compostas nesse período. Delas,
a mais relevante é, por certo, Ser e tempo, mas a produção está
longe de limitar-se a esse livro, uma vez que vários textos de
41
Heidegger, como sua Fenomenologia da vida religiosa, Que é meta
física , A doutrina das categorias e da significação em Duns Scoto,
A doutrina do juízo no psicologismo, assim como outros trabalhos
de fenomenologia e hermenêutica, que só postumamente foram
publicados, pertencem a esse mesmo período, que se encerra em
torno de 1935, com a assim chamada viravolta.
O aporte heideggeriano para a filosofia deve ser indicado
por dois termos de inesgotável riqueza expressiva: superação
(Überwindung) e torção (ou distorção, Verwindung) da metafísica.
Quanto ao primeiro termo, ele não oferece problemas,
uma vez que Heidegger explicita com frequência que seu pen
samento empreende um esforço para superar a metafísica,
assumindo a tarefa de destruição de suas categorias e pressu
posições fundamentais. Já com respeito ao segundo, as coi
sas não são tão fáceis. O filósofo italiano Gianni Vattimo faz
uma elucidação suficiente do sentido dessa palavra alemã. Ao
verter Verwindung para o italiano, ele recorre ao verbo rimet
tersi, ou seja, "convalescer", "restabelecer-se", "curar-se", para
denotar um "ultrapassamento que, na realidade, é reconheci
mento de vínculo, convalescença de uma doença, assunção de
responsabilidade". 1
Trata-se, portanto, de uma superação que só pode ser feita
de dentro da história da metafísica, pelo diálogo agonístico
(Gespriich, mas também Streit), na forma de Auseinandersetzung
(discussão, porém, no sentido de colocar-se um fora do outro,
1 Vattimo, Gianni. "Dialet~ica, differenza, pensiero debole", p. 28 (tradução
do autor).
42 ,
afrontar-se e defrontar-se), com os grandes pensadores, eles
próprios herdeiros e transmissores do legado espiritual da tra
dição, considerados por Heidegger como "grandes", na acep
ção de seminais, pois no pensar deles se articula uma dicção a
respeito da verdade2 do Ser.
As distinções empreendidas acima facilitam a compreen
são das duas grandes configurações que cristalizam a produção
de Heidegger: 1) como analítica da finitude, característica da
ontologia fundamental levada a cabo em Ser e tempo como feno
menologia da Ex-sistência, também conhecida como filosofia do
primeiro Heidegger; e 2) como história da verdade do Ser, que
marca o pensamento do assim chamado segundo Heidegger,
sua filosofia tardia, à qual pertence a reflexão sobre a essência
da técnica moderna.
Em ambas encontramos o traçado geral de um mesmo per
curso: aquele do esforço para retornar às primeiras intuições,
ao início primevo do filosofar, fazendo-o, porém, de modo
ainda mais radical e originário do que o fizeram os próprios
gregos. Trata-se de uma monumental tentativa de retomar, em
toda sua plenitude e gravidade, a pergunta eterna pelo sentido
do Ser: por que existem os entes em seu ser, e não antes o Nada?
Para tal empreendimento, concorre o conceito fundamen
tal de diferença ontológica entre ente e Ser, assim como o conceito
de ser-o-aí, o ente que entende ser.
.,,
2 A palavra "verdade" é a tradução do termo grego alétheia, formado pelo pre
fixo de negação "a" e a palavra lethéin (véu, velar, ocultar). Significa, portanto,
em sentido literal: desvelado, desocultado, sem véus.
43
Esses conceitos são mobilizados com o intuito de resgatar
do esquecimento a pergunta pela verdade e pelo sentido do
Ser, relegada na história da metafísica em prol de uma reflexão
que concerne apenas ao ser do ente em sua totalidade - ou
seja, da filosofia metafísica interpretada por Heidegger como
onto-teo-logia, característica do pensamento ocidental desde
Platão e Aristóteles, que atravessa a Idade Média e mantém
sua vigência, quanto ao essencial, ainda no mundo moderno
e contemporâneo.
Por certo, a filosofia contemporânea seria inteiramente outra
sem Heidegger, e entendê-la constitui uma tarefa que não pode
prescindir, em absoluto, de uma leitura cuidadosa de sua obra. Eis
por que a literaturasecundária sobre Heidegger tem dimensões
inusitadas. A compreensão.adequada do mundo atual, com suas
crises e seus dilemas, bem como a reflexão sobre o seu futuro
problemático, simplesmente não devem abrir mão de um sério
enfrentamento com Heidegger.
Nesse sentido, até mesmo o funesto envolvimento do
filósofo com o nazismo assume uma função importante no
diagnóstico de nosso presente. Trata-se, por certo, de um erro
deplorável de avaliação política, mas que só pode ser produ
tivamente enfrentado em patamar crítico compatível com o
conjunto do pensamento de Heidegger e só pode ser suficien
temente compreendido a partir de sua filosofia da técnica. É
um erro que mostra até onde pode conduzir a tentativa de
compreender a essência da moderna tecnologia, sem limitar
-se aos quadros explicativos marcados por uma cqncepção
instrumental e antropocêntrica.
44 •
Se a filosofia do século XX e seus caminhos futuros não
podem ser compreendidos sem Heidegger, também não podem
sê-lo outras esferas determinantes da cultura ocidental, pois as
contribuições do filósofo espraiam seus efeitos em domínios tão
diversos quanto os da epistemologia, da teoria da ciência, da lógica,
da filosofia da linguagem, das ciências da natureza, das ciências
humanas, da psicanálise e da estética, poderosamente estimuladas,
desafiadas e fecundadas pelos questionamentos de Heidegger.
Até mesmo a reflexão sobre a extensão e os limites de nos
so próprio horizonte cultural - assim como a abertura para
um diálogo possível com o Outro, com culturas diferentes da
nossa - precisa ser empreendida a partir de Heidegger, com
Heidegger, ainda que deva sê-lo, em determinados aspectos,
também contra Heidegger. Esse mesmo "contra" faz parte do
diálogo conflitivo, Streit (embate) e Gespriich (conversação), que
animam a atividade autenticamente filosófica.
A LINGUAGEM E O CAMINHO DO NOVO PENSAR
Com Heidegger, a linguagem filosófica é explorada nos limites
extremos de suas possibilidades e de seus recursos expressivos.
Para ele, a linguagem é tanto a "morada do Ser" quanto o âmbito
em que o homem habita o mundo. Portanto, levar a linguagem
aos seus limites últimos cons_titui exigência de um pensamento
em busca de articulação, uma experiência radical de recupe
ração pensante das autênticas e originárias precondições do
logos filosófico.
45
Por causa disso, este livro, em várias passagens, terá que
seguir de perto as pegadas de Heidegger, em um percurso em
que o filósofo põe o pensar a serviço da linguagem. Nesse
caminho, deverá retomar, também terminologicamente, as
considerações de Heidegger sobre a linguagem, suas transições
entre o grego e o alemão, às quais nosso trabalho aduzirá ainda
o português. Contudo, tais passagens limitar-se-ão ao impres
cindível para a compreensão adequada das posições filosóficas
do pensador da Floresta Negra.
Assim é que a questão da linguagem tem status privile
giado nas reflexões de Ser e tempo, tanto naquelas que dizem
respeito a logos e legein, como também à dimensão Existenzial da
Rede (palavra). Além disso, grande parte do pensamento da his
tória do Ser constitui-se como uma retomada da proximidade
e da distância entre filosofia e poesia, entre o logos poético e o
logos filosófico, e em seu interior há um papel essencial reser
vado à tematização da linguagem. Sendo assim, uma introdu
ção à filosofia de Heidegger não poderia deixar de considerar
o paradoxo da distância próxima entre o pensar e o poetar,
essencialmente lastreado na experiência da linguagem, como
um de seus estágios necessários.
Uma correspondência entre filosofia e poesia foi experi
mentada historicamente na era pré-socrática e da tragédia ática,
experiência com a qual Heidegger pretende reatar, tornando-a
ainda mais radical e originária do que aquela que foi vivenciada
na Grécia. Pensar e poetar são duas modalidades de dispor o
pensamento a serviço da linguagem, duas maneiras de habitar
po(i)eticamente a linguagem.
46
Por isso mesmo, (re)aprender a pensar, tal como Heidegger
se propõe a fazer, ao responder à pergunta "o que significa pen
sar?", é um propósito que só se atinge em diálogo com a poesia,
em uma recuperação da essência da linguagem, ofuscada pela
hegemonia metafísica na história do pensamento.
A despeito da obsessão atual pela filosofia da linguagem
(Sprachphilosophie), Heidegger considera que ainda não estamos
familiarizados com a atmosfera vital do pensamento autên
tico, ainda não aprendemos (ou desaprendemos) a pensar,
porque não habitamos a essência po(i)ética da linguagem,
como clareira do Ser.
O logos, essa habitação que a linguagem oferta ao pensa
mento, constitui o elemento que reúne o filosofar e o poetar.
Reunir é coligar, vincular, também corresponder: são verbos
que evocam Eros, mas também lembram a atividade de reco
lher, a ação de legein (coligir, coligar), própria do logos (verbo,
palavra, razão). Mesmo a doutrina do pensamento como lógica,
ou racionalidade lógica, deriva dessa acepção originária de
legein como ligar, coligir, de modo que a síntese do pensamento
no juízo é subsidiária da ligação essencial operada pelo logos,
como elemento linguageiro do pensamento.
O monopólio do pensar exercido pela racionalidade lógica
é um confisco; da mesma maneira, a theoria não é o monopó
lio da filosofia. Pelo contrário, o pensar da lógica é um modo
derivado do pensamento produzido na história da metafísica,
a partir do esquecimento da verdade do Ser e da essência do
pensar como correspondência:
47
A caracterização do pensar como theoria e a determinação do
conhecer como postura "teórica" já ocorrem no seio da interpre
tação "técnica" do pensar. É uma tentativa reacional, visando salvar
também o pensar, dando-lhe ainda uma autonomia em face do
agir e do operar. Desde então a "filosofia" está constantemente na
contingência de justificar sua existência em face das "ciências".
Ela crê que isso se realizaria da maneira mais segura, elevando-se
ela mesma à condição de uma ciência. Esse empenho, porém, é
o abandono da essência do pensar. A filosofia é perseguida pelo
temor de perder em prestígio e importância, se não for ciência.
O não ser ciência é considerado uma deficiência, que é identificada
com a falta de científicidade. Na interpretação técnica do pen
sar, abandona-se o Ser como o elemento do pensar. A "lógica" é a
sanção desta interpretação que começa com a sofística e Platão. 3
Com isso, também a linguagem retraiu-se de seu elemento,
desgarrou-se da experiência originária do logos e legein. Nessa
retração, o pensar quedou-se fora de sua atmosfera vital, aliena
do dela, desalojado de seu âmbito originário: a linguagem, que
é a morada do Ser, recusa-nos o ~cesso pensante à sua essência,
na medida em que não mais correspondemos à verdade do
Ser como desvelamento (alétheia) , ao qual pertence constitu
tivamente a linguagem como desocultamento dos entes no e
pelo discurso.
Nesse sentido, pensar é corresponder pela palavra à ver
dade do Ser. Mas a subtração da linguagem em relação à sua
3 Heidegger, M. "Sobre o 'humanismo'", p. 348.
48
essência, a fuga da correspondência ao chamamento do Ser em
seu desvelar-se pelo discurso humano é o sinal de que, a despei
to de toda ciência e filosofia , ainda não aprendemos a pensar.
A obliteração dessa ausência pela agitação no domínio da
práxis e pelo palavrório no setor da cultura, pela preocupante
hegemonia anônima da opinião pública e do politicamente cor
reto constituem, por outro lado, a necessidade constringente,
a penúria que suscita o thaumatsein (espantar-se, admirar-se),
no qual germina o autêntico perguntar filosófico: como ocorre
que, na era da onipotência da tecnociência, ainda não sejamos
capazes de pensar o que é mais digno de ser pensado, a saber,
o Ser dos entes em sua verdade?
Se, todavia, a verdade doSer tornou-se digna de ser pensada para
o pensar, deve também a reflexão sobre a essência da linguagem
alcançar um outro nível. Ela não pode continuar sendo apenas
pura filosofia da linguagem. É somente por isso que Ser e tempo
contém uma indicação para a dimensão essencial da linguagem e
toca a simples questão que pergunta em que modo de ser, afinal,
a linguagem como linguagem é, em cada situação.4
Se, nessas condições, o pensamento se esquiva à corres
pondência com a essência da linguagem, ele está fadado a
corresponder à transformação técnica da natureza em fun
do de reserva, a reportar-se sempre unicamente à essência
metafísica do ser dos entes como vontade de poder e à infinita
4 Idem, ibidem, p. 350.
49
reprodutibilidade do cálculo como versão contemporânea do
"eterno retorno do mesmo", antecipado por Nietzsche.
Uma vez que a cibernética tornou-se a figura contemporâ
nea da metafísica, a interpretação técnica do pensar sequestra
a linguagem no âmbito do querer e do fazer humanos, como
instrumento dócil para garantir o domínio integral sobre a
totalidade dos entes. A destruição e a superação da metafí
sica têm como condição uma retomada da experiência viva da
essência da linguagem, como o lugar da verdade, bem como
do misterioso relacionamento entre esses parentes próximos, a
filosofia e a poesia, que, contudo, habitam as montanhas espi
rituais mais distantes uma da outra. Daí por que a abertura de
Heidegger para um novo pensar passa necessariamente pelo
caminho da linguagem, tal como sugere o título de uma de suas
obras: Unterwegs zur Sprache (A caminho da linguagem).
SER E TEMPO: CONCEITOS E TEMAS
Ser e tempo, publicado em 1927, é a obra capital do período
conhecido como a filosofia da juventude de Heidegger. O livro,
todavia, ocupa um papel bem mais central do que esse em sua
trajetória, uma vez que é retomado por ele em todos os momen
tos posteriores de seu pensamento.
Pode-se mesmo considerar que o programa completo de
Ser e tempo já contemplava, em seu interior, a necessidade
de determinada infle~ão em seu percurso, de uma viravolta,
que abriria caminho para o esforço de meditação que constitui
c;o •
a filosofia tardia de Heidegger- em que o sentido de sua refle
xão seria profundamente alterado, invertendo-se de Ser e tempo
para Tempo e Ser e deslocando o vetor inicialmente dado pela
análise existencial do ser-o-aí para a temporalidade própria
do sentido do Ser.
Por esse motivo, elucidar o significado dos conceitos,
temas e problemas de Ser e tempo é relevante não apenas para
uma compreensão interna da analítica existencial, mas tam
bém do pensamento de Heidegger em seu conjunto. A seguir,
apresentamos uma explicitação de elementos principais desse
livro, já com vistas ao desenvolvimento ulterior da filosofia
heideggeriana.
Ontologia fundamental
Ontologia fundamental nomeia a principal característica
de Ser e tempo: é a tentativa de desconstrução da metafísica
e de elaboração da analítica da finitude, tendo como ponto
de partida uma fenomenologia hermenêutica das estruturas
fundamentais do ser-o-aí.
O ponto de confluência dessas tarefas é enunciado já na
epígrafe do livro - tão incisiva quanto o título e que indica, de
modo conciso, o centro nevrálgico do pensamento de Hei
degger: a pergunta pelo sentido do Ser. A raiz dessa pergunta
está plantada no solo do pensamento grego. Heidegger recorre
a uma citação de O sofista, de.Platão, para enunciá-la de modo
paradigmático: "Uma vez, pois, que nos encontramos em difi
culdade, caberá a vós explicar-nos o que entendeis por este
vocábulo 'ser'. Evidentemente essas coisas vos são, de há muito,
51
...
familiares. Nós mesmos, até aqui, acreditamos compreendê-las,
e agora nos sentimos perplexos".5
Ao longo de sua história, a filosofia ocidental preocupou-se
sempre com o Ser, de modo que seria razoável esperar que, de
há muito, estivéssemos familiarizados com o significado desse
termo. Perguntas concernentes aos predicados mais gerais do
ser (categorias) ou à distinção entre o ser e o devir, a realidade e
a aparência, sempre constituíram o foco de atenção e meditação
da filosofia.
Como se explicaria, então, que Platão, um dos maiores íco
nes da filosofia , tenha delegado à voz de um sofista a constata
ção perplexa de que não estamos familiarizados com aquilo que
pensamos quando empregamos a palavra "ser"? Embaraçoso é
constatar que até agora acre,:Htávamos sabê-lo, mas, em verdade,
carecemos de uma explicação que nos livre da dificuldade de não
compreender o que propriamente pensamos quando dizemos "ser".
Assim, já estaria em Platão a suspeita de que a filosofia des
conhece o que é pensado sob o termo "ser" - ainda que seja o
mais empregado ao longo de sua história. Escândalo e pasmo,
portanto, uma pedra de tropeço. Ser e tempo é uma das tenta
tivas mais radicais da filosofia contemporânea para retomar
essa pergunta em toda sua envergadura. Saberíamos nós o que
Platão confessava desconhecer? A resposta de Heidegger é: não,
de modo algum.
Ora, qualquer resposta pertinente só pode ser dada e, sobre
tudo, compreendida quando a pergunta a que ela responde é
5 Platão. "So fi sta", p. 163, 244 a.
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adequadamente formulada. Daí a suspeita de que nem Platão,
nem a história da filosofia inteira ofereceram uma resposta
pertinente à pergunta pelo sentido do Ser. E isso ocorre porque
a pergunta não foi propriamente formulada, o questionamento
não foi suficientemente pensado.
Essa perplexidade oferece a Ser e tempo o seu ponto de par
tida e a sua ocasião: é preciso perguntar novamente pelo sentido
do Ser, e a elaboração concreta dessa questão é o propósito da
obra de Heidegger. Para tanto, é imprescindível despertar de
novo a compreensão prévia para o sentido da pergunta - isto
é: que sentido tem a pergunta pelo sentido do Ser?
Ontologia é a disciplina filosófica que estuda o ser dos
entes. A palavra "ente" traduz o termo grego anta, que designa
entidades, aquilo que é ou que existe. Ontologia, portanto, é
ciência ou estudo metódico (logia) daquilo que é - o ente-,
visando determinar sua essência ou seu ser. A busca pelo sen
tido da pergunta constitui já uma modalidade de questiona
mento ontológico, pois o que se tornou problemático não é
outra coisa senão o sentido do Ser.
A meta seguinte consiste em interpretar o tempo como
possível horizonte para toda e qualquer compreensão do Ser.
Consiste, então, em retomar a pergunta pelo sentido do Ser com
plena consciência da relevância da própria pergunta, tendo o
tempo como possível limiar de compreensão e resposta. Como
o próprio enunciado demonstra, a pergunta faz sentido.
A próxima questão diz respeito à necessidade da pergun
ta. Por que suscitá-la, sobretudo por que retomá-la no ápice
da modernidade? Responder a ela implica, ao mesmo tempo,
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elucidar a razão pela qual a ontologia de Ser e tempo é designada
como fundamental. A justaposição dos dois termos (ontologia
fundamental) remete às afinidades eletivas entre o empreendi
mento filosófico de Heidegger e a crise das ciências europeias.
Urge retomar essa pergunta pela óbvia razão de que falta
para ela uma resposta - o que talvez seja um indício de que,
antes de tudo, a própria pergunta tenha faltado. Formulá-la ade
quadamente é a tarefa assumida por Heidegger em Ser e tempo.
A questão se impõe, sobretudo, em função da crise das
ciências no século XX, tal como fora diagnosticada por Hus
serl, e que não cessou de se aprofundar ao longo da história.
Toda ciência tem como base uma "infraestrutura" conceituai,
referida a um domínio de objetos dos quais extrai um saber
sistemático, por meio de uma metodologia de investigação que
inclui pautas de observação, controle e experimentos, discri
minando assim um regime de verdade.
Uma crise científica pode afetar, por exemplo, a periferia