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O TRABALHO EM SAÚDE MENTAL: Algumas considerações∗∗∗∗ Este é um texto que, à semelhança de outros relativos às mais diversas problemáticas ligadas ao adoecer e ao estar doente, pretende servir de suporte a uma formação de profissionais de saúde sustentada e acessível às necessidades de saúde da população. Estão em questão diversas sensibilidades e, nunca, quem “está do lado de cá” saberá se, um dia, poderá ficar ou passar, ainda que temporariamente, pelo “outro lado”. Assim, ninguém permanece imune a alguma inibição/ medo do desconhecido e é por isso que não basta formar profissionais de saúde para lidar com o doente mental, mas potencializar essa formação para um melhor desempenho do papel esperado, desejado e desejável. O doente é alguém cuja vida é tão importante como a de cada um de nós, em particular, e a de todos, em geral. Entretanto, no quotidiano de um hospital é verificada apenas a prestação de cuidados técnicos esvaziados ou empobrecidos de interação, de atenção e de afetos. O tempo não consegue ser dispensado para a escuta qualificada dos usuários e, no âmbito de algumas patologias, como é o caso dos que se enquadram no escopo da psiquiatria e da saúde mental, ele é um bem imprescindível que pode fazer a diferença entre o fato de o doente se sentir pessoa ou se sentir mais um, entre tantos, sem valor nem importância para ninguém. É isto que, por vezes, lhe subtrai ou retira a vontade de viver. Por outro lado, as famílias são, em geral, pessoas que, apanhadas desprevenidas pelo adoecimento de um de seus membros, sentiram na pele o medo do desconhecido; imprevisibilidade para o futuro, rejeição social, devido ao fato de os outros verem no seu seio alguém que temem ou que pode incomodar... Constata-se que, o trabalho em psiquiatria e saúde mental não é fácil e os trabalhadores que abraçam esse trabalho, são pessoas que já conseguiram libertar-se do estigma atribuído a estas doenças porque conhecem pessoas com problemas; porque conhecem familiares de doentes com transtorno mental, dentre outros motivos. Como sabemos, falar de estigma é falar de características ou de atributos que desqualificam, aos olhos de quem está à volta, de modo relevante, o indivíduo ou indivíduos a quem ele é atribuído. Este redunda num processo de rejeição que discrimina e exclui, fazendo com que, às pessoas estigmatizadas, pouco ou nada lhes reste em termos de enquadramento/ aceitação social. ∗ Texto adaptado pela Dra. Katia Fernanda Alves Moreira do manual de formador em saúde mental da Dra. Margarida Cordo, 2012. Lisboa-Portugal. 2 Eis aqui um dos caminhos mais dolorosos pelos quais passam as pessoas com doença mental, sobretudo as que são portadoras de doenças graves, como é o caso das mais paradigmáticas e ameaçadoras – as psicoses esquizofrênicas. De fato, há pouca informação consistente devidamente divulgada, porque os mitos, a história e as estórias mal contadas ainda recheiam imaginários feitos de romances e de fitas diabólicas, em que o doente mental é visto como alguém que é perigoso, que mete medo, que faz passar vergonha, que é imprevisível. Assim, um dos maiores obstáculos ao trabalho em psiquiatria e saúde mental é a questão do estigma, para não falar de tantos outros domínios em que esta população é alvo de exclusão. Por outro lado e por contraditório que pareça, serão os trabalhadores em saúde mental que, de forma mais consistente, podem ajudar a combatê-lo. Quando alguém pretende trabalhar em serviço de saúde mental, no início, imagina a gravidade/ diferença para outros tipos de locais/ instituições de saúde. Sabe que todos são doentes mentais e isto já lhe transmite algo acerca do que vai (ou do que pensa que irá) encontrar. Convém, assim, chamar à atenção para o fato de que não podem fazer generalizações. Numa mesma instituição podem estar pessoas com perturbações (graves) de vária ordem – desde as que perderam, total ou parcialmente, o contato consciente com a realidade; às que, mantendo-o, se encontram incapazes de se sustentarem numa comunidade que lhes tornou adversa ou rejeitada; às que, tão somente, não dispõem de condições materiais para sobreviverem numa sociedade ou numa família, que não as entende nem acolhe porque não pode ou não tem condições mínimas para fazê-lo. 6. QUEM SÃO AS PESSOAS COM DOENÇA MENTAL As classificações internacionais das doenças integram-nas, em grupos diagnósticos, pois não seria possível trabalhar/intervir corretamente em termos técnicos (de tratamento e de reabilitação) se não existisse parâmetros comuns que permitissem organizar planos terapêuticos baseados em evidências de consensos. Assim, vejamos algumas das principais características daquelas a que, para este fim, optamos por chamar doenças mentais graves, cujo paradigma são as psicoses esquizofrênicas (embora nem todas estejam sempre presentes em todos os doentes): - O doente pode ouvir/ ver coisas que não acontecem nem são ditas; 3 - O seu pensamento pode estar confuso, tornar-se desorganizado e nem sempre fazer sentido. Por isto, a comunicação com estes doentes fica muito dificultada; - Ele pode perder o contato com o que se passa em torno de si; - As suas emoções e os seus afetos podem ficar perturbados; - Ele não é capaz de explicar o que acontece, porque, comumente, estas experiências lhes parecem completamente reais; - Ao mesmo tempo (ou não), o doente pode apresentar a chamada sintomatologia negativa, que tem implicações ao nível da recusa de preservação de hábitos de higiene, desinteresse pela maioria dos estímulos que tem à sua volta, tendência para o isolamento, vazio, apatia, indiferença emocional, falta de vontade ou de iniciativa, pobreza de pensamento, excesso de horas de sono, etc. ; - Não há outros sinais exteriores (físicos), nem corroboráveis por exames complementares de diagnóstico, de que tudo isto acontece; - Em suma, este quadro modifica se assim se pode dizer o mundo da pessoa com doença mental e, com frequência, ela perde o contato com o que, realmente, se passa à sua volta. Enuncia-se, em síntese, uma lista de 20 sinais indiciadores de possível crise que não é mais do que um período de maior perturbação durante o qual a doença e os seus sintomas se agudizam: - Tensão e nervosismo; - Inquietação e agitação; - Modificação do comportamento habitual; - Dificuldades de atenção e concentração mais evidentes; - Alterações de sono, (com grande probabilidade da dificuldade em dormir); - Modificações no apetite, na relação com a comida e na postura face às refeições (nomeadamente, deixar de comer à mesa); - Pensar que os outros estão a rir ou a falar de dela; - Sentir-se influenciado; - Sentir-se desconfiado; - Interpretar o que lhe é dito de uma forma muito individual, ou seja, “à sua maneira”; - Ter a sensação de ouvir vozes; - Perder o interesse pelas coisas e pessoas que o rodeiam; - Afastar-se das suas amizades e dos seus interesses; - Reduzir significativamente a comunicação; - Manifestar diminuição da vontade; - Isolar-se; - Sentir-se mal sem motivo aparente; - Sentir-se estranho e angustiado (e isso ir-se tornando evidente aos olhos dos que estão à volta); 4 - Sentir-se inútil, desvalorizar-se e considerar que não vale nada; - Manifestar tristeza e depressão. Para além destes sinais convém, ainda, conhecer alguns fatores que favorecem as recaídas, pois, no caso do trabalhador em saúde mental, deve-se identifica-los e sinalizá-los de imediato a quem é responsável por intervir tecnicamente: - Elevados níveis de stress; - Exposição a elevados níveis de emoções expressas, de que são exemplos às discussões ou desentendimentos; - Suspensão ou desorganização substancial nos horários de tomadas da medicação;- Falta de descanso; - Redução no número de horas de sono; - Consumos de álcool ou de outras substâncias psicoativas. Há, ainda, algumas boas práticas que o trabalhador em saúde mental deve conhecer acerca do que deve ser feito para que o risco de recaída (ou de nova crise) possa ser significativamente reduzido: - Ter um horário regular de sono e de vigília (levantar-se e deitar-se diariamente, quanto possível, às mesmas horas); - Fazer exercício físico regular, como por exemplo, uma caminhada diária (no domicílio alguém da família pode ser, por exemplo, um acompanhante desta prática); - Fazer as três principais refeições diárias em horas aproximadas e, se possível, com enquadramento familiar ou de grupo para evitar o isolamento ou o fato de comer em “horas desencontradas”; - Tomar regularmente a medicação de acordo com a prescrição médica; - Ouvir música serena ou usar outra qualquer prática relaxante quando se sente aborrecido; - Não beber bebidas alcoólicas nem consumir outras drogas e afastar-se das companhias que o podem influenciar neste sentido; - Partilhar o problema com alguém que o entenda, nomeadamente, em contexto de autoajuda. Começa, assim, a ser fácil perceber que o domínio da psiquiatria e saúde mental, é um contexto muito sensível e diferente de quase tudo aquilo a que estamos habituados – não se trata de iminência de perda de vida, mas de mudança de consciência desta; não se trata de risco só pessoal, mas de perturbação relacional; não se trata de algo temporário que, em curto prazo, será superado, mas de provável cronicidade (ou persistência da doença), apesar das melhorias que uma intervenção adequada pode permitir alcançar. 5 Claro que, não é demais sublinhar, que nas instituições psiquiátricas há pessoas internadas com outro tipo de problemas - aquelas que se encontram em franca depressão e, não raramente, com ideação suicida, mas que, superada a crise, terão alta clínica e retomarão uma vida dita normal; as que integram as unidades de psicogeriatria e que, para além da doença e do envelhecimento, ainda são produto de muitos anos de institucionalização e, ainda, as pessoas com deficiência mental e outras, quase sempre muito dependentes, em que, não tendo uma doença mental, exigem do profissional de saúde uma atitude pacificadora, benevolente, afetiva, não paternalista e harmonizadora. O que importa é ter consciência que as instituições psiquiátricas são um “mundo diferente” e multifacetado, no qual se exige do trabalhador flexibilidade, coerência, descrição, equilíbrio, adequada emocionalidade expressa, enfim, formação, informação e capacidade de colocá-las em prática. É tão especial o seu papel neste contexto, que o trabalhador precisa saber muito mais do que pode manifestar que sabe. Por exemplo: que o doente tem de tomar a medicação por muito tempo, mesmo que já se sinta melhor; que o doente não pode consumir substâncias psicoativas (álcool ou outras drogas); que os novos antipsicóticos, que surgiram a partir dos anos 90, cobrem mais sintomas da doença, facilitam uma recuperação mais plena para mais doentes e têm menos efeitos secundários; que o doente deve manter a maior autonomia de que for capaz; que não são toleradas discussões, gritarias, stress ou grande quantidade de informação fornecida em pouco tempo e rapidamente… Para haver um entendimento aprofundado destas questões, será necessário conhecer muitos conceitos, que estarão sendo discutidos em outros momentos. Em um texto introdutório, isto não é possível. Entretanto, já nos sinaliza que a intencionalidade do trabalhador de saúde mental é melhorar a qualidade de vida de usuários, famílias e coletividade ao propiciar um cuidado integral. Atividade Em grupo, discuta a compreensão do trabalho em saúde mental, sobre o estigma e a contribuição que o enfermeiro pode dar na reabilitação do usuário com transtorno mental Guarde em seu portfólio
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