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capítulo 2 Vias de Apropriação do Trabalho em Teorizações da Psicologia INTRODUÇÃO A psicologia apropriou-se do campo do trabalho, "privatizan- do-o". Entendemos por privatização a apreensão do trabalho de acordo com um recorte teórico e meto do lógico tipicamente psi- cológico. Quer dizer, a psicologia entra no campo do trabalho com seu instrumental analítico e o reinterpreta segundo seus interesses pragmáticos. E quais seriam esses interesses? Para responder à questão, teríamos de dar um passo atrás a fim de compreender alguns dos pressupostos que sustentam o pensamento psicológico. Como, porém, esse empreendimento nos desviaria de nosso propósito neste livro, que é o de analisar as formas de apropriação da psicologia do campo do trabalho, não faremos senão uma rápida e esquemática introdução ao tópico. Um dos pressupostos que gostaríamos de comentar é a valori- zação do indivíduo e de sua "subjetividade" (ou vida interior). A psicologia emerge no pensamento moderno à medida que se reco- nhece um espaço legítimo ao indivíduo e à sua individualidade. Como diria Durkheim, a noção de um "eu" isolado, autônomo e separado depende de uma construção social em que este mesmo "eu" seja assim coletivamente considerado. Daí/ a célebre tese desse sociólogo de que a psicologia depende, antes de mais nada, PSICOLOGIA E TRABALHO de categorias sociológicas. Como ele, outros pensaram de modo semelhante. O antropológico Marcel Mauss (Mauss, 1974), por exemplo, defende que a noção de "pessoa" (e de identidade) está relac~onad~ a uma institucionalização social. Assim, o espaço para a psicologia dependeu da construção social, coletiva, de uma "á~ea interior", pri.v~da'.rara onde o indivíduo recuaria e à qual tena um ~cesso privilegiado. De fato, é uma característica tipica- mente OCIdental nos concebermos como pessoas independentes das demais, com nossos próprios desejos, sonhos e necessidades. Esse pressuposto geral da individualidade como fundo para a construção das teorias psicológicas associou-se, ao longo da his- t~ria dessa ciência, a distintas matrizes epistemológicas, gerando diferentes concepções teóricas e metodológicas. Associado ao positivismo, por exemplo, deu origem a teorias que admitiam a soberania da razão e do cálculo instrumental. Nessa perspectiva, o ~ndivíduo é entendido como alguém com vontade própria, onentado por propósitos conscientemente estipulados e assumi- dos. A ~etáfora ~o "homem econômico", da qual nos ocupamos no capítulo antenor, talvez retrate bem essa mescla entre indivi- dualismo e positivismo. Trata-se de uma concepção que enfatiza o valor dos interesses racionais na determinação do comporta- mento. Reflexo do Iluminismo, a ênfase é sobre a autonomia, a engenhosidade e a capacidade industriosa e empreendedora. No campo ~o trabalho, ess~ associação influenciou uma abordagem predommantemente onentada para a maximização da eficiência e do poder econômico da empresa. Trabalho é fonte de geração de valor e o indivíduo é sua força motriz (considerando uma pro- dução humano ou trabalho-intensiva). . Associado a uma matriz romântica, o individualismo gerou concepções nas quais o ser humano deve desenvolver-se em todas suas potencialidades e capacidades. O romantismo, nessa perspectiva, é uma espécie de contraforça ao positivismo; em vez de definir o indivíduo como portador de uma mente racio- nal, considera-o também portador de emoções e afetos - os 36 PEDRO F. BENDASSOLLI quais nem sempre (se é que o fazem de todo) respeitam a leis inteligíveis. Transportado para o campo do. trabalho, :ssa asso- ciação ajuda a explicar o surgimento de teonas humamstas, para as quais o trabalhador revela-se um_ser comple~o, .dota~o de capacidades simbólicas e de construçao de seu propn~ un!vers? de significados. Adicionalmente, esse tipo de assocraçao n~o dei- xou de criar contradições e ambiguidades, muitas das quaIs per- duram até hoje. Por exemplo, ao me~mo tempo q~e valor.iza. o ser humano em sua dimensão emancIpadora e autonoma, 111S1S- te na necessidade de ajustá-lo aos imperativos da produção. Até hoje a área de recursos humanos, mais diretamente env?lvi~a com o gerenciamento dos indivíduos no contexto orgamzacIo- nal, sofre com essas contradições. As duas associações, individualismo-positivismo e indivi- dualismo-romantismo, nos ajudam a entender os distintos inte- resses envolvidos na apropriação psicológica do trabalho. Assim, ora esses interesses têm a ver com o ajuste, a disciplina e o controle dos indivíduos a fim de garantir a produtividade da empresa, ora têm a ver com o enriqueciment? da experiência desses mesmos indivíduos com o trabalho, seja ou nao com o propósito de melhorar a produtividade e a eficiência. De .U~1 lado, o objetivo de controlar e de disciplinar; de outro, o objeti- vo de emancipar, de "ernpoderar" os indivíduos para que estes atualizem e realizem seus próprios potenciais (dentro ou fora da empresa e até do trabalho). Naturalmente, esse quadro é simplificado. Ele nã<?esgota a complexidade e as sutilezas do campo em ques~ão. E .verdade que essas duas associações marcaram a área da pSlcol~gla do tr~- balho, mas também é verdade que outras formulaçoes evolUl- ram esse quadro. Para citar não mais do que alguns poucos exemplos, a perspectiva hoje conhecida como psicologia .C?~S- trucionista coloca-se em oposição ao individualismo-poslhvlS- mo em psicologia, insistindo na dimensão social do conhecimen- 37 PSICOLOGIA E TRABALHO to, em seu caráter relativista, cultural e interacional. Na psicolo- gia social de inspiração europeia, igualmente encontramos uma força de oposição às tendências individualizantes da área, espe- cialmente norte-americanas. Podemos dizer que a denominada psicologia social sociológica é bem mais eclética do que a sua congênere norte-americana, uma vez que nela encontramos ten- dências críticas e sócio-históricas, ou seja, orientações interpreta- tivistas e coletivistas para as quais o indivíduo não é uma enti- dade isolada de um contexto discursivo-linguístico, nem de grupos sociais de pertencimento, nos quais esse mesmo indiví- duo partilha uma identidade social comum. Essas perspectivas recentes têm diversificado o leque de constructos e abordagens psicológicos ao trabalho que predominou desde quando ocorreu "formalmente" a entrada da psicologia nesse campo, há um pou- co mais de um século. Nosso propósito neste capítulo é fazer um inventário das vias de entrada da psicologia no campo do trabalho. Aqui também não será possível ser exaustivo; assim, daremos atenção a quatro des- sas vias, analisando qual o conceito de trabalho pressuposto, explícita ou implicitamente, em cada uma delas. Elas também podem ser diferencialmente posicionadas no que diz respeito ao binômio integração/ controle (individualismo-positivismo) e emancipação / desen volvimento (individualismo-romantismo), como em relação à proposição de outras abordagens que avan- cem esse mesmo binômio. Esquematicamente, as quatro vias são as seguintes: 1. a via da apropriação pelos constructos da psico- logia organizacional, 2. a via da apropriação pelas teorizações da psicologia "social" do trabalho, 3. a via de apropriação pelas perspectivas "clínicas" sobre o trabalho e 4. a via da apropriação pelos constructos sobre significado e função psicológica do tra- balho. A uma quinta via de apropriação será reservado o próxi- mo capítulo, a saber, a via da carreira profissional. 38 PEORO F. BENDASSOLU APROPRIAÇÃO PELOS CONSTRUCTOS DA PSICOLOGIA ORGANIZACIONAL A história da incursão da psicologia no trabalho co~tc:ll:aser ~iv.~- dida em três momentos. No primeiro, por volta d.oIruCIOdo sec~- 10XX, ela é conhecida como psicologia industnal e ~eu foc~ e, sobretudo, no desenvolvimento de técnicas para. seleçao e trema- mento de pessoal. Na segunda, que .al~a v~o, Simultaneamente, quando a área ganha força como disciplina md~pendente e quan- do na administração, há o surgimento das teonas so~re o de~en- voÍvimento organizacional (com a influê~cia d~ teona ~os ~Iste- nas) seu rótuloé rebatizado como de psicologia organizacional ~nos 'Estados Unidos, há também a expressão c~mp~r~amento . . 1) e seus temas se ampliam e se diversificam naorgaruzaclOna , .. direção do universo da organização como um orgarus.mo reparti- do em diversos subsistemas interdependentes. MaIS perto de nossa época, por volta dos anos 1980, ~res~e a ê~fase ,da área no~ estudos de nível micro e meso-organizacional, ISto e, nas ques tões envolvendo a relação do indivíduo e dos grup?S com o tra- balho e sua organização (condições de trabalho, saude e doença no trabalho assédio moral, por exemplo). Seu nome muda, então, para ~sicologia do trabal~o (para ~m~ análise detalhada da história da psicologia industnal, organizacional e do t.rabalho, Z 11' t 1 (2004) Katzell e Austin (1992) e Malvezzi (2006».ver ane 1e ·a . , Nesta seção, selecionamos três grandes temas ~spec~ficos da psicologia organizacional para análise. Como em sltuaçoe~ ante- riores, essa escolha é limitada, mas, para. nossos propo~Itos, parece suficiente, pois esse subcampo da pS.lcologla conqUl~tou \ grande força e seu discurso parece estar arraigado na me~tahd~- de gerencial de nossa época. Se, como vere~os, a ps~cologIa social do trabalho faz fronteira (em sua versao europe~a) co~ a sociologia, a psicologia organizacional o faz em relaç~o a a~m?- nistração e à sua rationale. Por consequência, recebe a influência 39 PSICOLOGIA E TRABALHO do individua~smo metodológico positivista e é orientada ao controle ~ ao aJust~mento (na perspectiva disciplinar foucaultia- na, ou seJ~,de ~onJunto de técnicas persuasivamente internaliza- das que VIsam a adaptação e ao ajuste do sujeito). Nesse subcam- po, parec~ ser de elevada importância a resposta à questão: "E para que ISSOserve?". Em particular, as três vias de entrada da psicologia no campo do t:a~alho a serem aqui investigadas são: 1. desenvolvimento profissional, 2. desempenho profissional e 3. satisfação no traba- lho. Ap!esentaremos, e~quematicamente, alguns pontos sobre esses tres amplos conceitos e então especularemos sobre alguns pressupostos acerca do significado de trabalho nele subjacentes. Desenvolvimento profissional o ~er humano nasce tão bem preparado para ter um casamento feliz quanto na~ce preparado para ser um engenheiro especializa- do na ~o:,stru.çao ,d~ pontes. Esse disparate bem poderia ilustrar uma visao psicológica sobre o desenvolvimento. Como espécie depen~e.mos da aprendizagem para adquirir o instrumentaÍ necessano para nossa reprodução. A linguagem é um desses ins- tru,men:?s. Por meio dela, entramos em uma "comunidade lin- guística onde determinadas "formas de vida" nos dizem quem somos, o que fazemos e por quê (Wittgenstein, 1996). ~essa perspectiva, o trabalho é algo a ser aprendido e, na medida em que aprendemos a realizá-lo, podemos dizer ue S?~OS ad~lt~s. ?e fato, o trabalho "ainda" é uma forma de tr~n- siçao da infância para a vida adulta. Quando dominamos um ~onJu.nto de tarefas, esse domínio contribui para nosso senso de l~entIdade, como quando somos reconhecidos por alguma perí- cI.a (Sennett, 1999, 2008). O ponto mais relevante a destacar em vista de nossos propósitos neste livro, é a associação entre traba- lho e desenvolvimento pessoal. Se considerarmos que, ao nascer- 40 PEORO F. BENDASSOLLI mos, podemos encontrar distintas linhas de subjetivaçã~ à nossa disposição ou em potencial (em outras palavras, cammhos de . ocialização ou formas de ser-no-mundo), é de especial importân- da observar que o trabalho é a linha "ainda" mais dominante ea P icologia do trabalho contribui muito nessa direção ao realizar .iquele tipo de associação entre atividade e consciência. A força dessa associação pode ser ilustrada pelo ensaio de l3axter (1983). Esse autor, pouco conhecido dos leitores brasilei- r s, propõe-se a investigar as formas de "desestranhamento" e lranscendência do trabalho a ponto deste revelar todo seu poten- 'ial no desenvolvimento dos indivíduos. Intérprete de Maslow, 13axtertambém faz eco às principais linhas modernas da história do trabalho, notada mente o reconhecimento da relação entre tra- balho e a "origem do ser" - isto é, ele defende em seu livro urna c pécie de "ontologia do trabalho". Acompanhar a visão de Baxter sobre o trabalho pode ser ins- trutiva para noSSOSobjetivos. Para o autor, o trabalho deve ser interpretado como urna categoria especialmente humana: Como em Marx, há uma distinção entre trabalho como uma atIVIdade do espírito humano, moldada pela intencionalidade, e o trabalho corno puro reflexo de instintos. Comparemos duas situações: a de um pássaro como o joão- -de-barro e um oleiro. O primeiro "trabalha" em um sentido radicalmente diferente do nosso. Esse pássaro obedece a forças pré-programadas: ele constrói sua casa da mesma forma e sem necessidade de aprendizagem (socialização prévia). O joão-de- -barro nasce "sabendo" fazer sua casa, não tendo a mediação, como em nosso caso, de fatores sociais. Seu comportamento é rígido e imutável, limitando-se a manipular a matéria (barro) de uma forma estereotipada. Em contra partida, o ser humano consegue transcender a maté- ria por meio de seu trabalho, e em um sentido muito particular, o 41 PSICOLOGIA E TRABALHO barro, na mão de um oleiro não "é" ser qualquer coisa dentro dos Iir ' a1?en~s um vaso, mas pode (barro), Assim o oleiro pode f rutes mtnnsecos dessa matéria " azer um vaso gra dcores diferentes e para propó it '1 n e, pequeno, COm celebração, para colocar 1íqUi~O~S:~~a :e~te ~iferente~ (adorno, barro é de incerteza entra ' (bar re, açao do oleiro com o d meIos arro) e fm E t '1'epender da comunidade s 'I s, s es u tnnos vão do e também da "idéia" ocia leiro a qual o vaso será endereça- que o o eiro tem d faráantes de manipulá-Io E' , o que ara com o barro , nesse sentIdo que H I (196 ) ao trabalho como urna ativ'd d de " ,~ge 6 se referia pelos objetos produzidos ~ h a e e exter~onzação" do sujeito _ truir seu próprio senso d~ ide~1~~~~,odena manifestar-se e cons- Para Baxter (1983) o trabalh A ciais de desenvolvim:nt ' o preencl:e tres funções essen- indivíduo (sua reproduç~~ uma que permIte a sobrevivência do trial, o senso de indepe11dA e, ~m nosso contexto moderno-indus- enCla e autonom' f ' uma das marcas do está io adult ), Ia manceua,s que são mesmo indivíduo criar se g , o , outra que perrrnro a esse , - e errar a socied d ( I'que VIve, "humanizando" d f a e a rea Idade) em , 1 ,essa orma a nature 'rrute- he, enfim a interaça-o o' Io za, e a que per-, , Vlncu o e o co t t seres humanos (colaboração) D ,n a o com outros portanto, o trabalho é meio d' dOponto ~e vista do indivíduo, , , e esenvolvImento 'pSIqlllca; do ponto de vista social " e organIZação dor (Elias, 1993), r e um tipo de processo civiliza- No próximo capítulo quando di , contemporâneas de carrei~a IscutIrmos as abordagens lho é igualmente apropriad~ :~~:~s qU,e esse conceit.o de traba- por exemplo, as teorias vocacionai o a~Iante, Se conSIderarmos, (Super, 1957; Gunz e Pei erl s, de ~nfase de~envo1vimental Niles, 2002; Brown et al I002' ~~07, OSIpOW e FItzgerald, 1996; um papel social que pe:nu'te' ,owd~: Len,t, 2005), o trabalho é , , ao m ivíduo mte sua propna personalidade (por exern I grar asp~ctos de as demandas provenientes das estru p o, seu ,autoconceIto) com rizados de profissão ou O t t ~ras SOCIaIS(padrões valo- s a us aSSOCIado a cada Ocupação), 42 PEDRO F. BENDASSOLlI Na perspectiva organizacional, podemos dizer que o desen- volvimento se desdobra em duas dimensões: na organizacional, (\ tritamente, e na dos profissionais, Na primeira, entende-se que tI própria organização pode se desenvolver e evoluir, A aborda- ~ m do desenvolvimento organizacional ilustra esse ponto, Influenciada pela teoria dos sistemas, o desenvolvimento orga- nizacional implica um processo planejado de modificações cul- lurais e estruturais como respostas às mudanças ambientais, tanto internas quanto externas à organização, Na prática, as mudanças ocorrem nos arranjos organizacionais, nasformas de I mada de decisões, na cultura organizacional, nos sistemas humanos e nos processos de comunicação de grupo, Já na perspectiva do indivíduo na organização, o foco é no li senvolvimento profissional. Na história das organizações, a r sponsabilidade pelo fomento desse tipo de desenvolvimento I' caiu sobre a área de recursos humanos, cujos paradigmas oram se alterando ao longo do tempo, desde uma visão estri- ta de desenvolvimento como aquisição de habilidades para a I' alização de uma tarefa (ênfase no treinamento) até uma pers- p ctiva ampla do desenvolvimento da carreira (Baruch, 2004), Os próprios trabalhadores parecem hoje tomar por garanti- o que "um bom lugar para se trabalhar" é onde existam pos- ibilidades de crescimento pessoal e profissional. Avaliam a mpresa em que trabalham pelo quanto ela pode lhes oferecer de recursos de crescimento, como treinamentos, experiências diversificadas e desafiadoras, contato enriquecedor e construti- vo com as lideranças, Em uma época em que os princípios do romantismo se infundiram na mentalidade de consumo, desen- volver-se, realizar-se, tornar-se melhor no trabalho é certamen- te uma das crenças mais fortes quando alguém avalia o próprio desenvolvimento, Mais uma vez, o trabalho é apreendido pela psicologia como um recurso de individuação e crescimento, 43 PSICOLOGIA E TRABALHO Desempenho profissional o estudo sobre o desempenho profissional é outra importante área da psicologia do trabalho. Alguns pesquisadores chegam inclusive a admitir que esta é uma das questões-chave da área ao longo de toda sua história (por exemplo, Malvezzi, 1995, 2006). Nesta seção, especulamos sobre a contribuição desse constructo para a apropriação de trabalho pela psicologia. Podemos dizer, de modo geral, que existem duas orientações em relação ao desempenho no trabalho: uma descritiva e outra normativa. O propósito da primeira orientação é descrever as característica do comportamento (ou conjunto de comporta- mentos) que gera algum resultado no ambiente. Nessa perspec- tiva, desempenho' é a ação colocada no ambiente. Para que essa ação ocorra, porém, são necessários processos psicológicos fun- damentais, como a percepção, por exemplo. Se tomarmos como ilustração a abordagem conhecida da aprendizagem social (DeI Prette e DeI Prette, 2005), veremos que o desempenho depende conjuntamente de categorias afetivas (vontade de, disposição para) e cognitivas (possuir conhecimentos, competências ou habilidades necessários). Na orientação normativa, o foco recai sobre o desempenho como ação geradora de resultados no ambiente. Trata-se de uma perspectiva normativa sobre o comportamento que leva a deter- minadas transformações no mundo. Nesse caso, é imprescindí- vel a utilização de critérios de valor. A partir deles, torna-se, então, possível avaliar se um desempenho atinge ou não deter- minados padrões previamente estipulados ou aceitos pelo grupo (por exemplo, pela organização de trabalho). Desempenho e resultados são duas dimensões distintas a serem consideradas. Em um valioso estudo sobre a psicologia do desempenho, Sonnentag e Frese (2002) identificam três grandes questões do campo, e a primeira é a seguinte: "Por que há variações de desem- 44 PEDRa F. BENDASSOLLI penha?". Nessa linha, as pesquisas visam co~preender as dife- renças individuais de desempenho, tendo em vista, por exemplo, a realização de tarefas semelhantes. Ênfase é colocada sobre per- sonalidade valores e fatores cognitivos individuais. Segunda ques- tão: "Em 'quais situações os indivíduos se desempenhariam melhor?". Nesse caso, o foco é nos fatores do ambiente (por exem- plo, condições de trabalho e recursos disponíveis ~os ~raba:hado- res) que agem como forças intervenientes. E ~ tercel:a linha e dada pela questão: "O que ocorre quando al~em e~ta se ~esempe- nhando?". Aqui a intenção dos estudos e investigar o processo de desempenhar-se" no momento mesmo em que ele ocorre. Podemos dizer que, nas abordagens sobre desempenho na psicologia, o trabalho é considerado uma atividade ger~dora de valor (econômico, social ou qualquer outro). Na perspectiva do valor econômico, trata-se do emprego. Nesse caso, pesa sobre os pesquisadores a tarefa de identificar, normat~va.mente, fa~o~es que possam predizer o desempenho profissional. Adicio- nalmente aos fatores destacados por Sonnentag e Frese (2002), podemos citar: aprendizagem (consequent~me~te, treina~1ento); processos de socialização e cultura organizacíonal Znacíonal: a natureza da tarefa a ser executada; discrepâncias entre "tarefa prescrita" e "tarefa real" (o que o indiv~duo teria de fazer, desempenho esperado, e aquilo que ele efetivamente rea~za, .de- sempenho real); motivação e satisfação (trabalhadores satisfeitos teriam, hipoteticamente, um desempenho superior): fatores hga- dos ao controle e à organização do trabalho (por exemplo, lide- rança) e normas e expectativas sociais. O desempenho no trabalho, entretanto, não se li~nita à gera- ção de valor econômico (como emprego). E~etambem pode ser concebido como meio de ajustamento SOCIal.De fato, se nos atentarmos para a, dimensão social do desempenho, verem~s que há instruções normativas e valore.s que ~ondu:em a aça? com base em determinados padrões. TaISpadroes estao envolvi- 45 PSiCOLOGIA E TRABALHO dos co:n fatores socioculturais mais amplos e também variam em razao de diferentes habitus, para usar um conhecido conceito proposto pelo sociólogo Pierre Bordieu. ,!'Ja pe:~pectiva do indivíduo, o desempenho tem ainda corre- ~açaopositiva com autoestima e satisfação. Isso é demonstrado na mfluente teoria da autoeficácia de Bandura (1986).Quanto mais o ~divíduo percebe ter um bom desempenho (que atenda a crité- nos .de va,lor.próprios ou que o ajustem aos padrões culturalmen- te disponíveis), mais essa percepção age como um fator de natu- reza motivacional, impulsionando novos ciclos de desempenho. . Em suma,.n~ perspectiva do desempenho o trabalho é apreen- dI~O como atlvIda,de, como tarefa, pelas quais se alcançam deter- mmados resultados para o indivíduo ej ou para a organização em que trabalha. Em sentido mais latente, podemos deduzir des- sas abordagens que o trabalho é uma forma de construir a reali- da~e material e social (e também psicológica). Mas é preciso cuidado: desempenho no t~abaAlho.é algo distinto do desempe- nho que ocorre em outras mstàncias da vida. Paradoxalmente P?rém,. a mentalidade do desempenho profissional parece ter se disseminado para fora do campo estrito da produção - "ter um b.~m .d~sempenho" é, por toda parte, quase sinônimo de "efi- CI~n~Ia .N~, amor, com os amigos, na família, no trato das coisas públicas, o bom desempenho" é medido à altura do desempe- nho administrativo. Satisfação no trabalho As 'pesq~isas sobre satisfação no trabalho são, provavelmente, mais antigas do que aquelas sobre o constructo significado do trab~lho. No en.tanto, partilham com este último uma relação estreita, n~ medida em que se pode imaginar uma relação entre o valor, a Importâr:cia e o significado do trabalho para uma pes- soa e suas expectativas de obtenção de satisfação nessa área espe- 46 PEDRO F. BENDASSOLLI ífica da vida. Talvez por essa mesma proximidade haja motivos de confusão entre constructos. Assim, pode-se confundir centra- lidade do trabalho em geral com o relacionamento do indivíduo om um emprego em particular (Buchholz, 1977, 1978a), comp também pode-se confundir satisfação com implicação afetiva no trabalho ou comprometimento (Kanungo, 1982).Quer dizer, con- fusão semântica (discriminante) e confusão entre causa e efeito. É possível ainda confundir satisfação no trabalho com as teo- rias de motivação. Na verdade, talvez ambas partilhem mais semelhanças do que ostentem diferenças. E a ideia-chave parece ser o conceito de necessidade. De acordo com este, todo ser humano possui certas carências cuja satisfação impulsiona a ação. No caso de não satisfação, o estado resultante é de tensão, ansiedade ou simplesmente de mal-estar. A chamada Escola das RelaçõesHumanas talvez tenha sido a maior defensora desse ponto de vista, com Maslow à frente (e, depois dele, Herzberg e McGregor). A teoria das necessidades de Maslow apresenta uma hierarquia de necessidades e as atrela a uma teoria do desenvol- vimento e da realização pessoais. Nessa perspectiva, o trabalho é apreendido como uma fonte importante para o crescimento e maturidade humanos. Outro ponto provavelmente comum entre teorias de satisfa- ção e de motivação é a preocupação de ambas com os motivos que levam as pessoas a trabalhar (motivos internos) e com as condições externas de facilitação (motivos externos, ambientais). Da perspectiva organizacional, essa preocupação se justifica pela premissa, até hoje tomada por garantida, de que satisfação no trabalho relaciona-se positivamente com desempenho e este com produtividade. A ideia de qualidade de vida no trabalho ilustra esse ponto, tendo sido desenvolvida no seio das teorias sobre "organização do trabalho" ou, na versão inglesa, job designo O objetivo dessas teorias era tornar as atividades e as condições de trabalho as mais favoráveis possíveis ao bem-estar e à saúde 47 PSICOLOGIA E TRABALHO (mental e física) dos trabalhadores, de sorte que não seria o tra- balho, em si, uma fonte de sofrimento ou de problemas, mas o modo como ele é organizado e controlado. Hackman e Oldham (1976) ficaram conhecidos nesse domí- nio ao proporem uma explicação sobre como as interações entre as características de um emprego e as diferenças individuais infl.uenciavam na motivação dos trabalhadores. Entre os pontos mais relevantes para nosso propósito nesta seção, é a conclusão desses autores de que quanto maior for a necessidade de cresci- mento pessoal, mais o indivíduo será sensível (ou demandará) a um emprego "enriquecido" que lhe permita e facilite esse cresci- men:o. Quer dizer, o trabalho é aqui apreendido como na dupla funçao de emprego (características de cargo e posicionamento em uma estrutura organizacional determinada) como de catego- ria ontológica de importância (como uma categoria humana pela qual o ser humano melhor se conhece). Tomando o emprego como a versão predominante do trabalho, Hackman e Oldham (1976) esperavam encontrar soluções para a apatia, o empobreci- mento e a "alienação" resultantes de uma divisão de trabalho psíquica e fisicamente exigente. _ Isso pode ser mais bem observado em outras duas proposi- çoes do modelo de Hackman e Oldham (1976). Primeira, no que eles chamam de identidade do trabalho, o grau em que este últi- mo permite ao indivíduo fazer qualquer coisa do começo ao fim, c~m um resultado tangível e identificável. Segunda, na significa- çao do trabalho: o grau em que o trabalho tem um impacto subs- tancial sobre o bem-estar ou o trabalho de outras pessoas (função cooperativa), seja ou não no terreno organizacional. Recente- mente, Morin (1997, 2001, 2003, 2007) e Morin e Cherré (1999) revisaram esse modelo do enriquecimento do trabalho, utilizan- do-o como recurso para deduzir as condições para um trabalho ter significado (propósito e coerência) para as pessoas. 48 db PEDRO F. BENDASSOLU A teoria conhecida como "sistema sociotécnico", proposta por Trist (1978, 1981), do Instituto Tavistock de Londres, vai em entido semelhante ao enfatizar a responsabilidade da organiza- ção do trabalho na insatisfação dos trabalhadores. Seu modelo visa então organizar o trabalho de maneira a estimular a adesão dos trabalhadores e de fazê-lo corresponder aos "fatores intrín- ecos" da motivação (ou seja, propondo tratar o trabalho como algo mais que uma, relação salarial - como uma atividade em que se podem exercer a autonomia, a flexibilidade, a aprendiza- gem, a colaboração). Na psicologia organizacional, as premissas de ambas as abor- dagens foram tomadas como inquestionáveis, a ponto de hoje haver pouca dúvida sobre a importância de um trabalho "signi- ficativo" sobre parâmetros de saúde e produtividade (Isaksen. 2000; Schwartz, 1982). Na sua interface com a ergonomia, a psi- cologia avançou para os domínios da organização "real" do tra- balho, vendo ali parte dos fatores responsáveis pelos quadros de sofrimento, apatia, alienação e desinteresse do trabalhador (além de perda de produtividade e outras más funcionalidades). Na França, há inclusive uma psicologia ergonômica (Leplat, 1980, 1997,2(00) voltada à análise e solução dos problemas de nature- za ergonômica (por oposição, digamos, a abordagens da psicolo- gia que "mentalizam" em demasia suas análises do trabalho, desconsiderando ou mesmo subvalorizando a análise empírica das condições de trabalho). APROPRIAÇÃO ~ELA PSICOLOGIA SOCIAL DO TRABALHO Outra entrada da psicologia no campo do trabalho ocorre pela psicologia social. Como sabemos desde Farr (1998), há "duas" grandes psicologias sociais: a norte-americana e a europeia. Enquanto a primeira comunga do princípio do individualismo- positivista (com sua ênfase no indivíduo em situação de grupo), a 49 PSICOLOGIA E TRABALHO segunda orienta-se mais próxima à fronteira da sociologia, tendo, portanto, outra concepção sobre seu objeto e seu sujeito de estudo. Nesta concepção, estes dois últimos termos são reconhe- cidos em sua multi~e.terminação social, histórica e psicológica _ de sorte que, em vanas de suas versões, essa psicologia do tra- b~lho_se expr~ssa como psicossociologia do trabalho e das orga- ruzaçoes (Ennquez et aI., 1994; Gaulejac, 1997; Chanlat, 1990, ?9.00), como psicologia social crítica das organizações (Ibafiez e Im~uez, 1997) ou ainda como construcionismo social das organi- z.açoes (Chia, 1996) - este último, sobretudo, no campo frontei- nço com os estudos organizacionais. A~ui, portento, val.e? mesmo princípio de que há "várias" psi- cologias SOCIaISe fugma de nosso escopo tentar identificá-Ias e diferenciá-Ias, porém elas podem possuir premissas gerais comuns em relação ao trabalho. Por exemplo: 1. o trabalho é uma constru- ção,social, sendo seu significado relativo a determinados grupos, períodos ou culturas; 2. como parte importante da identidade soc~al~o tr_abalh?é investido afetivamente e compõe o histórico de s?cIah~açao do mdivíduo; 3. o trabalho é um fenômeno psicosso- ~Ial, nao po~endo ser separado. das matrizes civilizacionais que carregaram seu valor na atualidade (no aqui-e-agora investiga- d?), t~mpouco de processos de interação interpessoal; e 4. as orga- mzaçoes de trabalho também são fenômenos dessa natureza con~truídas mediante processos de interação (quer dizer, não são realIdades em si mesmas) (d. Blanch, 2007; Zanelli e Silva 2008' Pieró e Pietro, 1996; Luque, 2006; Munduate, 2004; Ibáfiez; 1994; Hera & Rodríguez, 2003; Spink, 1996). Qual é a contribuição da psicologia em sua ênfase social-socio- lógica (e até crítica) para nossa compreensão do trabalho e seus fenômenos? Para responder à questão, selecionamos três teoriza- ções desse subcampo para análise: 1. teorizações sobre os efeitos do desemprego (como forma de entender o valor dado por esse subcampo ao trabalho na subjetivação pessoal), 2. teorizações 50 PEORO F. BENDASSOLLI 'obre as relações entre identidade e trabalho (novamente, como 111 io de entendermos os pressupostos sobre o valor e a centralida- li do trabalho) e 3. teorizações sobre a representação social do tra- I alho (representações sociais são tipicamente um constructo da psicologia social de orientação europeia, portanto, sociológica). Efeitos do desemprego uais são os efeitos psicológicos do desemprego sobre os indiví- duos? Essa questão representa outra forma de apropriação do ampo do trabalho pela psicologia. De acordo com Feather (1990), há uma "formidável" literatura científica sobre as seque- Ias afetivas e comportamentais do emprego e do desemprego. Estudos clássicos sobre essa temática remontam à década de 1930 (Jahoda et aI. 1933; Bakke, 1933; Eisenberg e Lazarsfeld, 1938). Importantes revisões da literatura incluem os trabalhos de O'Brien (1986), Warr (1987) e o próprio Feather (1990). Murphy e Athanasou (1999) destacam que uma das questões maisencontradas e, ao mesmo tempo, controvertidas nos estu- dos sobre desemprego refere-se à relação deste último com parâmetros de saúde mental. Contudo, esses autores, em sua revisão recente da literatura facada na matéria, concluem que há bons suportes empíricos a favor dos que defendem o impac- to do desemprego sobre o bem-estar psicológico. Mesmo admi- tindo as possíveis fragilidades metodológicas dos 16 estudos que revisaram, Murphy e Athanasou constataram que em 14 deles há evidências de estados mentais depressivos entre pes- soas desempregadas. Vejamos alguns estudos pontuais que apon- tam em direção semelhante. Nos estudos de [ahoda (1981, 1982), somos conduzidos a ana- lisar os efeitos do desemprego tendo em vista a própria finalida- de do trabalho. Segundo essa autora, o desemprego age sobre quatro dimensões: primeira, ele fratura a experiência do tempo, 51 PSICOLOGIA E TRABALHO na medida em que o trabalho organiza a experiência temporal, estabelecendo rotinas e sequências de ações (o mesmo é dito por Enriquez (1999». Segunda dimensão, o desemprego quebra a regularidade de experiências sociais compartilhadas no trabalho, especialmente os relacionamentos e os contatos com pessoas não restritas ao núcleo da família (portanto, o trabalho está ligado à "socialização secundária"). Terceira, o desemprego desconecta os indivíduos de objetivos e propósitos que possam transcender os seus próprios objetivos, quer dizer, o trabalho permite a conexão com objetivos sociais valorizados. Quarta, o desemprego afeta os aspectos do status e da identidade sociais do indivíduo. O desemprego prolongado atinge a identidade social, uma vez que é retirada- do indivíduo sua localização ou seu posicio- namento em uma estrutura interdependente de papéis, com suas respectivas parcelas de poder. Por último, [ahoda (1981, 1982) também mostra que o desemprego afeta a própria noção de ati- vidade: como animais laborans, dependemos do exercício de uma ação sobre o mundo, pela qual transformamos a natureza e somos também criados. Assim, os estudos de [ahoda mostram, às avessas (ao estudar o desemprego), as finalidades mesmas do próprio trabalho (sua centralidade social, psicológica e também econômica). O mesmo fazem Brief et al. (1995). Welnowski-Michelet (2008) utiliza o conceito de exclusão socioprofissional para referir-se ao impacto do desemprego de longa duração. Segundo essa autora, em tal situação há urna perda dos processos identitários - a identidade profissional desestrutura-se (identidade social) e, com o passar do tempo, há também urna influência sobre a identidade global do indivíduo (identidade pessoal, o significado mesmo de quem o indivíduo julga ser). Por fim, a "síndrorne do excluído profissional" termi- na por provocar quadros de depressão nas pessoas atingidas pelo desemprego. 52 PEDRO F. BENDASSOLLI O desemprego também afeta o auto conceito, ou seja, a repr~- l'ntação que um indivíduo dá de si mesmo e Q valor a ela atn- uuído. Feather e O'Brien (1986), por exemplo, observaram que p soas que dispõem de um em~r:go de qualid.a~e e que pode~ .iplicar seus conhecimentos e utilizar s,:as, ha.()lhdades demon~_ Iram uma satisfação geral alta em relaçao a vida, ~m ~on:s~ent: mente de competência e autoeficácia p~ssoal',e ~aIxa ul.CldenCla ti estados depressivos. Em contrapartlda, O Bne,n et al. (1994) c nstatam que, em situação de desemprego, há :u-r:a men~r satisfação com a vida, a presença de estados de ~ru~o mais deprimidos e um menor nível percebido de competenCla. ~ . Estramiana (1992) arrola uma série de outras consequ:nc~as psicológicas envolvidas na situação de desempreg? A pr.ImeIra mais óbvia é a redução ou extinção de ganhos Iínanceíros. ': segunda é uma restrição da riqueza de ativid~des pertencentes a vida pessoal. Esta é seguida de uma redução das metas e dos bjetivos de vida; da diminuição da capaCIdade de t?mada de decisões; de um menor desenvolvimento de co~heclIr:entos e habilidades pessoais; da exposição a atividades pSIc?loglcam:~- te desestabilizadoras (incluindo o consumo de bebIdas. a~cooh- cas): do aumento da insegurança sobre o futuro; da.r:,stnçao dos contatos interpessoais; e, por fim, d.a perda ~a poslçao e do sta- tus pessoal (deteriorização da identIdade SOCial). , Pages et aI. (1987), por sua vez, acre~cent~m a perda do vm- culo com a organização implicado na sítuaçao de desemprego. Quando o indivíduo, em um processo de .identi.ficaç~o, coloca seu ideal na organização e passa a nela conflar, a situaçao de rup- tura do vínculo (desemprego) pode ser entendida como abandono, como um "desprezo" da organização e levar a estados de desor- ganização identitária. O que chama a atenção nesses e em boa parte de outros es~- dos semelhantes sobre o desemprego (que demonstram a re~açao entre desemprego e estados afetivos/psíquicos comprometldos) 53 PSICOLOGIA E TRABALHO é que eles, implícita ou explicitamente, reconhecem o peso do trabalho como categoria psíquica fundamental. Do contrário, sua perda talvez não fosse sentida de modo tão catastrófico. Blanch (1989, 1990) aponta nessa direção. Segundo o autor, quan- to maior for a importância concedida ao trabalho, e ao emprego, e quanto maior for o acordo em relação a imagens estereotipadas e negativas sobre o desemprego, mais alto tende a ser o nível de depressão do desempregado. Algo semelhante pode também ser observado nas conclusões do estudo de Allende et aI. (2003). Para encerrar, acreditamos que a expressiva quantidade de estudos sobre desemprego na psicologia mostre o lado obscuro da ideologia moderna do trabalho. A psicologia aportou e tem aportado contribuição importante nesse campo - ela atua "reparando" as experiências dolorosas da falta de emprego, mas sobretudo ela pode aproveitar esse momento para fazer o indi- víduo pensar sobre o próprio significado do trabalho em sua vida. Como outras formas de transição, a perda do emprego constitui momento valioso para confrontar o sujeito com suas próprias escolhas, valores, possibilidades e desejos. Portanto, em vez de ater-se a apenas reconhecer, às avessas, a central idade do trabalho, a psicologia focada nos efeitos do desemprego poderia investir mais no "uso" dessa situação para estimular a reflexão sobre as outras "identidades" do indivíduo (eventualmente "acionando" outras identidades que ficaram esquecidas). .Trabalho e identidade Na psicologia, especificamente na social, questões relacionadas à identidade tornaram-se alvo de muita investigação teórica e empírica nas últimas décadas do século XX (Blustein, 1994). No entanto, há grande fragmentação no estudo dessa temática. Entre as abordagens mais influentes, encontramos as ligadas à Escola de Chicago, influenciadas pelo interacionismo simbólico: a teoria 54 PEDRO F. BENDASSOLLI do papel de Theodore Sarbin (1986), e a teoria da identidade pro- posta por Sheldon Stryker (1987; Stryker e Statham, 1985). Citamos também as teorias vinculadas à Escola de Bristol: a da identidade social de Henri Tajfel (1972, 1981) e a da autopro- lotipicalidade (categorização social) de [ohn C. Turner (1985; 'Iurner et al., 1987). Estas últimas foram recentemente aplicadas 1 contexto organizacional por Hogg e Terry (2000). E há ainda uma ampla gama de pesquisas conduzidas sobre o self: na pers- p ctiva psicanalítica (Erikson, 1968; Kohut, 1977), construcio- nista (Gergen, 2000) ou pós-moderna - por exemplo: "selie possíveis" (Markus e Nurius, 1986) e "eel] vazio" (Cushman, '1990).Uma excelente síntese dessas teorias pode ser encontra- da em Paiva (2007). Uma distinção geral desse campo é entre identidade pessoal identidade social (Ellemers et al., 2002; [ones e McEwen, 2000). A primeira concerne à imagem que o indivíduo tem de si mesmo, valorizando a singularidade e distinguindo uma biografia pró- pria. Fala-se aqui de memória, eu ideal e eu real, história de vida, individualidade. Já a segunda, bem mais próxima do conceito de papel, diz respeito à representação que o indivíduo dá a si mesmo por pertencer a um grupo. Este contribuipara reduzir a incerteza subjetiva do indivíduo, assegurando-lhe um lugar de pertenci- mento e urna representação valorizada. A identidade social depende de uma comparação intra e intergrupos: o indivíduo sente-se igual a outros significativos do grupo e diferente dos membros de outros grupos sociais . Essas duas grandes orientações podem culminar no que Dubar (2000) denominou perspectivas essencialista e relativista. Enquanto a primeira compreende as inclinações de natureza mais psicológica, considerando a primazia de um sei! interior, autônomo e relativamente estável, a segunda é de natureza sociológica, para a qual a identidade depende das normas e obje- tivações sociais (valorizando noções como de papel, posição 55 PSICOLOGIA E TRABALHO social ou classe): Dubar sugere que essa dicotomia pode ser superada ~e cons:de.rar?,~s a identidade como resultante de pro- cessos de mteraçao índívrduo-socredade. Identidade e pós-modemidade Mais .radicais são as abordagens pós-modernas, as quais serão mencionadas aqui de maneira bem sucinta, pois em diversas delas a essência da ideia de identidade é questionada (Gay, 1996; C.asey,199~).O ponto dessas abordagens é de que na pós-moder- rudade as ldenti~ades entram em colapso com os grandes pila- res que lhe serviam de sustentação, como as classes sociais a nacionalidade; a sexualidade, os valores tradicionais e, especial- mente para nossos propósitos, o trabalho. Assim, nos discursos pós-modernos, as categorias-chave da ~10~errudade começam a ruir diante de movimentos "desterrito- r~ahzantes" que privilegiam o "fluxo", a "liquidez", a transito- nedade, a fugacidade e a "reflexividade". Nesse contexto o tra- balho perderia sua força como fator estruturante da identidads não só porque a própria noção moderna de identidade está na berlind~, como tan.:bém pelo fato de ele mesmo passar por trans- formaçoes expressrvas. Vejamos dois exemplos nessa direção. Sve~~sen (2008) relaciona a transformação da ética protestan- te tradicional, com seu conceito de vocação, às mitologias modernas e individualistas da busca pelo "verdadeiro eu". Esse a~tor destaca que a emergência do individualismo deu ao indi- víduo Ul:nanova responsabilidade: a obrigação de ser ele mesmo. C.omo ~Issemos. n.o início deste capítulo, a associação dessa dimensão do individualismo ao romantismo culminou na noção de aueoconsnucão, e nesse processo o trabalho aparece como uma r:npo~tante ferramenta. Svendsen conclui que a noção de vocaçao foi t~ansformada romanticamente, de maneira que hoje busc~mos ~vldamente por significado no trabalho, isto é, o traba- lho e pressionado a nos dar satisfação, autorrealização, cresci- 56 PEDRO F. BENDASSOLLI mente pessoal, em suma, ele é pressionado a nos dar uma iden- tidade toda especial. Para Svendsen, portanto, o trabalho "entra m colapso" diante do consumo (embora não perca ainda total- mente sua importância). Gay (1996), de forma similar, mostra como o significado de trabalho foi alterado graças à mentalidade do consumo e ao que denomina "discurso da excelência" (divulgado pela mídia de negócios, por exemplo). O autor destaca que o trabalho já não é mais caracterizado como uma obrigação imposta aos indiví- duos, nem como algo feito para ganhar dinheiro (ou garantir a obrevivência): o trabalho é um meio para a autorrealização, para o desenvolvimento do indivíduo. Para Gay, a identidade é construída à medida que o indiví- duo é posicionado no discurso da excelência, com sua ênfase em ideias como responsabilidade por si mesmo e autogerenciamen- to. Nessa linha, Gay se aproxima de autores como Rose (1998), para quem o discurso desempenha um importante papel na modelagem de "posições de sujeito" (uma influência claramente foucaultiana). O discurso do trabalho moderno assemelha-se muito ao do consumo, na medida em que valoriza a satisfação, a individualidade, a busca de significados e de si mesmo - em suma: o trabalho não é visto como um fim em si mesmo, mas como um meio para "outra coisa". Abordagens psicológicas O que a psicologia tem a dizer sobre a relação entre trabalho e identidade? Em primeiro lugar, entendemos que a psicologia, por estar talvez mais envolvida com a relação concreta, não ape- nas teórica, do indivíduo com seu trabalho, não pode abrir mão inteiramente da noção de identidade como forma de superação individual das contradições sociais. Como veremos no próximo capítulo, a ideia de carreira indi- vidual pode ser entendida como um dispositivo para esse tipo 57 PSICOLOGIA E TRABAlHO de superação, na medida em que, a despeito das grandes ten- dências "desinstitucionalizantes" do trabalho, o indivíduo preci- sa continuar a elaborar uma narrativa coerente para si mesmo, enfrentando, dessa forma, o sofrimento provocado por qualquer quebra nos processos de construção de sentido. Em uma cultura individualista, não possuir um projeto pessoal e uma narrativa de si pode ser um perigoso sinal de deriva (Sennett, 1999,2008; Cochran, 1997; Enriquez, 1999). Isso quer dizer que os indivíduos ainda são demandados a se posicionar como detentores de biografias singulares. Nesse con- texto, não possuir uma "teoria de verdade sobre si", da qual cer- tamente o trabalho faz parte, implica perda de "empregabilidade" e, sobretudo, desestruturação de si mesmo. E é aqui que entra a psicologia. Como uma ciência voltada às diversas "reparações" da "subjetividade", ela não pode deixar de pronunciar-se. Como mostramos neste capítulo, os estudos sobre os efeitos psicológi- cos do desemprego são um exemplo disso. E também o são, embora de forma bastante diferente, as abordagens à questão do desempenho, do desenvolvimento e da satisfação no trabalho (diferente pois seu foco é menos nas formas de "reparação" do que nas formas de produtividade e de adaptação individual à filosofia - e às contradições - da empresa). A psicologia, portanto, pode tanto atuar na linha da identi- dade. pessoal, contribuindo para que os indivíduos consigam refletir sobre suas experiências com o trabalho, sobre o papel deste em sua biografia, no sentido que dão de sua própria exis- tência pessoal ou então seu papel em modalidades de sofrimen- to ou saúde e nos processos de identificação, como também na linha da identidade social, entendendo o papel do trabalho como um dispositivo de inserção do indivíduo em diversos gru- pos, bem como nas organizações em que trabalham (para mui- tos, a vinculação com a empresa é uma importante fonte de iden- tidade) ou ainda fazendo uma espécie de psicologia social das 58 PEDRO F. BENDASSOLLI 1'"rT iras e ocupações, investigando os aspectos psicológicos r-nvolvidos na escolha, no desenvolvimento e no pertencimento II determinadas ocupações, com seus valores, normas e ideais cumpartilhados. Encerramos esta seção com alguns exemplos não exaustivos d pesquisas nessa temática. Gini (2001) realiza um excelente -studo em que descreve, de um lado, o processo moderno que lr uxe o trabalho ao primeiro plano como elemento de constitui- ção identitária e, de outro, as contradições, os problemas e as arnbiguidades incidentes nas relações de trabalho hoje. Dentre tes, quatro são mais críticos: a falta de visão do trabalhador sobre o conjunto total de seu trabalho; a elevação do índice de uiorkaholismo em todas as classes de trabalhadores; o círculo vicioso entre desejo incontido por consumo e consequente neces- idade de trabalhar para pagar e manter o padrão de vida dese- jado; e a influência do ethos do trabalho sobre os valores éticos dos trabalhadores. Neste último caso, Gini mostra como a con- trapartida da centralidade do trabalho pode ser a potência da empresa e a imposição de seus valores aos trabalhadores. Muirhead (2004) também segue na linha de reconstruir as relações históricas entre trabalho e identidade, mostrando algo próximo' a Svendsen (2008) quanto ao papel do trabalho e da carreira no oferecimento de "bens internos" valiosos aos indiví- duos comoautorrealização, sensação de completude e de pro- pósito. No campo da psicologia vocacional,também encontramos estudos que abordam o valor do trabalho na vida das pessoas (Richardson, 1993; DeBel1,2006; Juntunen, 2006). Godoy et aI. (2007) estudam as continuidades e rupturas da identidade no atual contexto de flexibilização laboral e autores sinalizam, ainda, para uma correlação entre rupturas laborais e a intensifi- cação dos processos de individualização na atualidade. Uma boa apreciação dos estudos contemporâneos (especialmente de língua francesa) sobre identidade e trabalho pode ainda ser 59 PSICOLOGIA E TRABALHO encontrada em Kaddouri, Lespessailles, Maillebouis e Vascon- cellos (2008). Entre os clássicos, destacamos Dubar (2000), já mencionado ~nterior~ente: Adicionamos de sua teoria a distinção de quatro tipos de I~enhdade com base na divisão do trabalho. A primeira ele denomina cultural, sendo a identidade um fenômeno sócio-his- tórico amplo; a segunda ele chama de identidade de categoria e, neste caso, estamos claramente diante de um tipo social de identi- dade, quando o indivíduo se identifica com seu grupo profissio- nal; a terceira é a identidade instrumental, por causa de uma relação dessa natureza com o trabalho; e a última é uma identidade de sta- tus, representando a identificação do indivíduo com a empresa. Outro clássico nb estudo das relações entre trabalho e identi- dade é Sainsanlieu (995), que destaca a socialização dos indiví- duos no ambiente de trabalho como fruto das relações de poder. Es.sas relações geram normas coletivas de comportamento e per- rrutem a construção de uma identidade, entendida como a forma de ~l.abor~r. um sentido para si mesmo na multiplicidade de papéis SOCIaIS,fazendo-a reconhecida pelos colegas de trabalho. Para Sainsanlieu, os indivíduos podem se identificar com o tra- b.alho q~e realizam, com a empresa e com uma trajetória profis- sional ~mgular (como uma trajetória desejada, um objetivo pes- soal visado na carreira). Além disso, as representações da autoridade vigentes no ambiente de trabalho e as finalidades sociais do trabalho e da empresa também contribuem para os processos de construção da identidade no trabalho. Nessa teoria o "e~" é construído por processos de socialização vigentes no ambienta de trabalho e que põem em marcha interações com ati- vidades e outras pessoas (grupos profissionais). Representação social do trabalho o ~onceito :t~representação social emergiu com o trabalho pio- neiro do psicólogo francês H. Moscovici (1976) no final dos anos 60 PEDRO F. BENDASSOLLI 1970. Partindo do conceito de "representações coletivas" de 1 )urkheim, Moscovici estava interessado em entender os proces- o sociais pelos quais o conhecimento era produzido, comparti- Ihado e disseminado pelos indivíduos. Ou seja, manteve .~a 11 ção de Durkheim o fato de o conhecimento possuir uma dimen- . ão social (por oposição ao individualismo da psicologia social n rte-americana), mas remodelou-a de dentro da psicologia, afi- nal, a representação social de um objeto social só pode ser cria- Ia e sustentada por indivíduos. A partir de então, os trabalhos com essa temática, genui~1a- mente proveniente da psicologia social "sociológica" (européia). .resceram expressivamente (Moliner et al., 2002; Moliner, 1996; Roussiau e Bonardi, 2001; Flament e Rouquette, 2003; [odelet, 1989;Doise, 1985; Rouquette e Rateau, 1998). Em termos formais, Lima representação social pode ser definida como o conjunto organizado de condições relativas a um objeto, partilhadas pelos membros de uma população homogênea com relação a esse objeto (Flament, 1994). Desse modo, em um determinad.o grupo social, a representação de um objeto corresponde ao conjunto de informações, opiniões e de crenças a ele relacionadas. Essas infor- mações são fruto de experiências individuais e de trocas inter- pessoais, sendo depois cristalizadas e normativamente utilizadas para explicar a realidade, suas complexidades e contradições, e também para lidar com elas (Moliner, 1996). Estruturalmente, as representações sociais são formadas por um núcleo central (onde encontramos as características discrimi- nantes de um determinado objeto social) e por uma zona perifé- rica (Flament e Rouquette, 2003). Cognitivamente, elas envol- vem dois processos: um de objetivação (atribuição figurativa ou de imagem) e outro conhecido como ancoragem (inserção de um objeto novo em categorias de conhecimento já conhecidas). Um.a representação social pode ser estudada em termos de sua OrI- gem, evolução, transformação e estabilidade. 61 PSICOLOGIA E TRABALHO Alguns estudos sobre o trabalho que utilizam o referencial das representações sociais merecem destaque. O primeiro é apre- sentado por Moliner et al. (2002). O objetivo da pesquisa realiza- da por esses autores era investigar a evolução da representação social do trabalho junto a uma população de desempregados. Moliner et al. (2002, p. 216) definem trabalho como "um objeto social incontornável que, a despeito das mudanças, ainda estru- tura fortemente nossa sociedade, não havendo a necessidade de nenhuma análise detalhada para mostrar que ele é um objeto maior das representações sociais". A hipótese desses autores é de que o trabalho possuiu uma representação em evolução, de modo que estudá-lo equivale a captar uma realidade em movi- mento. Para eles, as·mudanças práticas são o principal motor das transformações de uma representação social. A amostra de participantes da pesquisa descrita por Moliner et al. (2002) foi composta por pessoas em busca de emprego que receberam a ajuda de aconselhamento profissional. Comparando as representações do trabalho antes e após tal aconselhamento, os autores chegam à seguinte constatação sobre os itens ou as carac- terísticas centrais da representação social em questão: para mais de 70% dos respondentes, e por ordem de importância, o traba- lho é definido pela remuneração recebida, depois como um meio para ser socialmente útil, seguido de fonte de integração pessoal, obrigação e necessidade de adaptação. Entre os itens menos cita- dos, em ordem decrescente, foram encontrados os seguintes: o trabalho é uma necessidade; ele permite a confiança em si; signi- fica ausência de tempo livre; é um meio de financiar o próprio lazer; permite aperfeiçoar competências; fonte de relações sociais; fonte de crescimento pessoal; trata-se de uma necessidade; tem a ver com aspectos de valorização; é algo que dá prazer; e, por últi- mo, permite a obtenção de independência. Como conclusões, os autores destacam que, do ponto de vista qualitativo (teoria do núcleo central das representações sociais), 62 PEDRO F. BENDASSOLLI há uma grande mutação na representação social do trabalho ntre os participantes da pesquisa antes e após o aconselhamen- to: antes o trabalho era definido pelas características remunera- ão e necessidade; após, ele passa a ser descrito como obrigação, orno necessidade de adaptação, integração e utilidade social. Quer dizer, há uma mudança na representação social: de uma identificação exclusiva com benefícios materiais para uma iden- tificação do trabalho com bens de natureza psicossocial. Outra pesquisa sobre representação social do trabalho foi con- duzida por Salmaso e Pombeni (1986). Esses autores partem do princípio que o trabalho é um conceito abstrato polimorfo, desta- ando cinco pontos sobre esse tipo de conceito: 1. ele possui uma strutura interna centrada sobre um protótipo; 2. o protótipo é um conjunto de características normalmente associadas a exem- plos desse conceito, cada uma delas tendo um peso diferente em razão de seu grau de associação ao conceito; 3. um exemplo par- ticular de trabalho é atribuído ao conceito se possuir um número uficiente de características; 4. diferentes exemplos de trabalho variam em termos de seu pertencimento (prototipicalidade) ao conceito, indo do mais central ao mais periférico; e 5. os melhores exemplos são considerados "pontos de referência cognitivos". Tratando o trabalho como um conceito polimorfo, Salmaso e Pombeni (1986) desenvolvem quatro experimentos. Destacamosaqui apenas' o primeiro, a partir do qual os autores identificam as características centrais a ele associadas. São elas (em ordem decrescente): permite ganhar a vida; realizado por um indiví- duo; ocupa muito tempo; necessita de muita atenção; necessita de esforço e de um labor duro; busca de satisfação; tornar o tra- balhador útil à sociedade; obter dinheiro; tornar-se independen- te; implica uma atividade mental; subentende uma atividade física; permite a autoexpressão; permite a obtenção de sucesso; consome grande quantidade de tempo; qualquer coisa de agra- dável; qualquer coisa de desagradável. 63 PSICOLOGIA E TRABALHO Sintetizando todos seus experimentos, Salmaso e Pombeni (1986)chegam a duas :onclusões: 1. o tipo de atividade que uma pesso~ exerce determina sua representação do trabalho e 2. há ~ma mdepcndêncía dos traços prototípicos entre profissionais liberais (que tendem a definir trabalho usando mais característi- cas) do que entre operários (que tendem a definir trabalho de forma muito próxima ao que fazem). Por fim, uma última pesquisa que gostaríamos de destacar nes_sedo~ínio é a de Flament (1994),que conclui que a represen- taçao s?clal do trabalho envolve duas significações centrais: o exercício de uma atividade e a percepção de uma remuneração correspondente. _ Com? ~onclusãõ, entendemos que, no campo das representa- çoes SOCIaIS,o trabalho é apreendido como um objeto social ou um fato ~o.cial (Flament e Rouquette, 2003) que faz parte do ~undo ~IVI~?pelas pessoas, as quais têm de construir repertó- nos de. significados sobre ele. Assim, "trabalho" é um objeto de conhecimento cotidiano passível de ser representado por indiví- duos, ~pos e sociedades. Mais interessante, o conjunto de conhecimentos e crenças sobre o trabalho influencia nas atitudes e no posicionamento que têm os membros de um determinado grupo/sociedade em relação a ele. Há, portanto, uma mescla entre fatores sociais e fatores pessoais no significado do trabalho em um determinado momento sócio-histórico. APROPRIAÇÃO PELA PSICOLOGIA CLíNICA DO TRABALHO ~ssim como a psicologia do trabalho faz fronteira com a socíolo- g~ae outras ciênci~s sociais para melhor compreender a comple- xidade de seu objeto de estudo, ela também se aproximou de alguns element?s t~ó~icose metodológicos da psicologia clínica, como os da p~Icana~Isefreudiana, por exemplo. Ao agir dessa forma, essa psicologia mais uma vez redefiniu o significado de 64 PEORO F. BENDASSOLLI trabalho e também suas relações com a subjetividade humana (rum a identidade, com o sofrimento psíquico, com a felicidade ti 11 saúde, entre outros). De modo geral, a abordagem clínica do trabalho enfatiza ~ r-ndossa o peso deste na estruturação psíquica dos indivíduos. E I' onhecida uma centralidade psicológica do trabalho, de maneira que ele, o trabalho, pode ser causa de intenso sofrimen- to psíquico, como também oportunidade para sublimação de p ilsões ou para a superação de angústias existenciais (Dejours, 1993,1999;Dejours et al., 1994;Mendes, 2008; Clot, 1995, 1997, 1999;Clot e Falta, 2000; Lhuilier, 2006; Lancman e Sznelwar, 2004).O foco desloca-se da ocupação e do papel (típico da psico- logia industrial e até da organizacional) para os conflitos intrapsí- quicos, para a economia psíquica do trabalho na história de vida d cada indivíduo, valorizando-se as situações em seu caráter singular e biográfico. Adicionalmente, na versão clínica o trabalho não é visto abso- lutamente como emprego, mas redefinido como atividade (Clot, 1995,1997, 1999;Clot e Falta, 2000; Leplat, 1980, 1997, 2000) ou omo ato (na abordagem sociopsicanalítica de Gérard Mendel, por exemplo (cf. Rueff-Escoubes. 2008». Como atividade, é a strutura e a dinâmica da ação no trabalho que vêm para o pri- meiro plano. Analisa-se essa ação em termos de um direciona- mento para 'o próprio indivíduo, para o objeto de trabalho e tam- bém para os outros. A atividade é desdobrada em sua dimensão interpessoal e intrapessoal, e, do ponto de vista ético, visa-se à transformação das condições de trabalho. Especificamente, vamos analisar nesta seção três "clínicas do trabalho" (Lhuilier, 2006).A primeira é a psicodinâmica do tra- balho, um campo que emergiu a partir da "redescrição" da psi- copatologia do trabalho de origem francesa por uma leitura muito particular da psicanálise feita por Dejours (1993, 1999) e Dejours et al. (1994).A segunda é a clínica da atividade, uma 65 PSICOLOGIA E TRABALHO abordagem que preconiza a análise psicológica do trabalho va- ler:do-se. dos inst:u~entais da psicologia russa de Vygotski e da psicologia ergonorruca francesa, tendo como principal expoente Yves.Clot (1995, 1997, 1999; Clot e Falta, 2000). E, por último, consideraremos uma terceira abordagem, a qual é conhecida como ':soci~logia clínica", que é uma tentativa de aproximação da soc~ologIa das ciências clínicas (da psicanálise, sobretudo) (Gaule)ac, 1997,2001,.2007; Enriquez, 1997a, 2005; Levy, 1997). Como nos casos anteriores, nosso recorte nessa análise será bas- tante específico: qual é a contribuição dessas abordagens para a apropriação da psicologia do campo do trabalho? Psicodinâmica do-trabalho A psi~odinâmica do trabalho é um desenvolvimento da psicopa- tologia do trabalho e tem como um de seus objetivos centrais o estudo d.o sofnmento no trabalho (Lhuilier, 2006; Dejours, 1993, 1999; De)o~rs et al.., 1?94) ou ainda a análise psicodinâmica dos processo.s ~ntersub)etlvos mobilizados pelas situações de traba- lho (~ohn~er, 2008:. No primeiro caso, mais próxima da psicopa- tología, a enfase e no trabalho como fonte de sofrimento' na seg~nda: ~ais próxima de abordagens compreensivas (c~mo a psicanálise, a antropologia e a sociologia), o foco recai sobre a compreensão dos estados de saúde no trabalho - ou, mais exa- tamente, de como as ~es~oas não. a~oecem no trabalho a despei- to de fat~res desfavoravels. Na história da psicodinâmica, há um rec.on~eclmento dess: deslocamento de perspectivas: da psi- quiatria ~ da p~tologIa (baseada em relações de causa e efeito) para a psícanálíse (baseada em um modelo compreensivo inter- pretativo) (Billiard, 2001). r O rótulo de "dinâmica" foi mantido por Dejours em seus e~t~dos para marcar os conflitos entre um sujeito com uma his- tor~a 'preexl~te~te ao trabalho (ou à sua organização) e as carac- terísticas objetivas do trabalho (divisão de tarefas e organização 66 PEDRO F. BENDASSOLLI de pessoas). De acordo com esse autor, o trabalho é fonte de sofrimento, mas não é seu exclusivo produtor: o sofrimento faz p rte da própria vida e da "normalidade". Por conta dessa "anterioridade" do sofrimento, o trabalho pode também .ser fonte de prazer e felicidade, notadamente quando ele se trans- forma em prática criativa - ou quando transforma o sofrimen- to patogênico (que emerge quando as defesas psíquicas não são mais suficientes) em sofrimento criativo. Qual é o conceito de-trabalho pressuposto pela psicodinâmica? Uma passagem de Dejours pode nos ser especialmente válida I ara responder a essa questão. Diz Dejours: "O trabalho aparece lm definitivo como um operador fundamental na construção do sujeito. O trabalho revela-se como um mediador privilegiado, se não único, entre inconsciente e campo social, de uma parte, e entre ordem singular e ordem coletiva, de outra" (Dejours et al., I 94, p. 46). Segundo Davezies (1991, apud Lhuilier, 2006), para I jours o trabalho é uma "atividade realizada por homens e mulheres para fazer face ao que não é dado pela organização prescrita do trabalho". Na psicodinârnica, o trabalho é apreendido como um fator- have de subjetivação. Ao mesmo tempo que pode ser fonte de s frimento, especificamente devido às exigências do "trabalho I rescrito" e a sua forma de organização (controle gerencial e divi- são de tarefas), ele pode ser meio de sublimação ou então funcio- n r como instrumento de reorganização mental. Na passagem de I ejours destacada anteriormente, ficam claras tanto a dimensão material do trabalho quanto sua dimensão simbólica,como doa- d r de significados e elemento constitutivo dos laços sociais. A psicodinâmica, como dito, radica-se na tradição da psico- patologia do trabalho. Nesta, especialmente nas formulações de E. Veil e L. le Cuillant, o trabalho já era descrito a partir do binô- mio sofrimento-prazer. Como em Marx, o trabalho é vislumbra- d como fonte de libertação desde que suas condições objetivas 67 PSICOLOGIA E TRABALHO : mate~iais ~he.permitam: Tam?ém como em Marx, o psiquismo e assoClad.o I~tlmamente a realidade. Os autores clássicos da psi- copatología inauguram uma clínica do sujeito na sua relação com o trabalho, mostrando-lhe os efeitos mais nocivos e destru- tivo~ t:'siquicamente (em paralelo aos estudos e às pesquisas na medicina do trabalho que denunciavam os efeitos físicos destru- tivos que o trabalho poderia ocasionar). Em qualquer um dos casos, seja nos autores clássicos da psi- copatología, seja na psicodinâmica, o trabalho é indiscutivel- mente apreendido como uma dimensão-chave da existência _ ele é constitutivo do psiquismo; é meio de vinculação social; meio para o equacionamento de conteúdos psíquicos que já tra- zemos conosco, mesmo antes de nossa entrada para o mundo do trabalho. Não se trata de colocar o acento sobre produtividade e eficiência, mas antes sobre o trabalhador como agente de sua própria história. Clínica da atividade O conceito de clínica da atividade foi proposto originalmente por Clot (1995, 1997, 1999) e Clot e Falta (2000). Seu principal propósito era elucidar as relações entre atividade e subjetivida- de no contexto do trabalho. Para Clot, o mundo do trabalho equivale a um conjunto de restrições e contradições impostas aos indivíduos, os quais têm a tarefa de superá-Ias em seu processà de desenvolvimento. Para o autor, o processo de "subjetivação" envolve atividade de tornar essas contradições compatíveis e coerentes. Para isso, o sujeito deve tomar consciência das defesas que utiliza para lidar com as angústias despertadas por essas contradições e por suas próprias divisões internas. Clot define atividade como algo direcionado para a própria conduta do indivíduo, para o objeto da tarefa e para a atividade dos outros. Assim, o trabalho é entendido como a possibilidade 68 PEDRO F. BENDASSOLLI dt' mcontro com outros. É o que permite ao indivíduo "sair de si uu-smo", pois é requerido a tornar sua obra útil, a engajar-se jllllt a outros para a construção de algo. Em uma palavra, per- mil ao indivíduo reconhecer-se numa obra coletiva. Também por isso Clot utiliza o conceito de "gênero profissional" - o ('quivalente à identidade profissional. Na sua teoria, o gênero é Iundamental para o trabalhador lidar (e superar) com as exigên- vi. do trabalho prescrito. O sofrimento no trabalho, nessa abordagem, emerge de uma .nividade bloqueada ou impedida, isto é, de uma amputação do ti ir to de agir. O impedimento de agir inclui não só o real imedia- 10, como também a ação desejada que não se realiza, mas que per- manece como projeto ou então se apresenta como falha ou erro. a .ibordagern da clínica da atividade, o trabalho é apreendido como r,1torde externalização do sujeito, forma de vinculação social e ato riativo. Apesar de ser uma "clínica", defende a consideração da ,1 tivida de real (influência da ergonomia), a organização efetiva do lrabalho e seus efeitos sobre a construção da subjetividade. Sociologia clínica A sociologia clínica é um desdobramento (ou talvez uma diferen- ciação) da tradição psicossociológica, a qual inclui designações como socioanálise, socioterapia organizacional, socioanálise ins- titucional, e que surgiu nos anos 1950-1960. Sua particularidade é a questão do significado que os sujeitos dão à própria vida e da qual são os protagonistas (teoria da agência). De acordo com Gaulejac (1997), a sociologia clínica é mais bem definida se iden- tificada como uma abordagem, e não como um domínio de objeto (a sociedade, o indivíduo, a instituição etc.). Outra forma de apresentar essa abordagem é situando-a no seio da própria sociologia. Segundo Gaulejac (1997), que diz pre- ferir este termo à psícossociologia, a sociologia nutre uma suspei- 69 PSICOLOGIA E TRABALHO ta em relação às abordagens psicológicas desde quando Durkheim P?stul~u. que toda psicologia é um tipo de apêndice da sociolo- gIa. AdIcIOnalmente, prossegue, a sociologia tende a subvalorizar as questões individuais, tratando-as como "psicologismo". Como consequência, o sujeito desaparece nas objetivações sociais, nas ~~rn:as~ n~s. padrões e nos comportamentos coletivos. A expe- nencia individual cede às experiências coletivas. Daí que Gaulejac (1997) entende como sendo as grandes questõ.es d~ sociolo~i~ clínica (diríamos também da própria psi- cossociología) as análises sobre as articulações entre os determi- nantes sociais e psíquicos (e não apenas a preferência por um ou o~t~o deles) e a qu~stão (ou o retorno) do sujeito e a abordagem clínica ,como condição necessária para uma sociologia crítica. Gosta.namos de apresentar o detalhamento feito por Gaulejac especialmente para essas questões. " ~ s~ciologia cl~nica e~tende, prossegue Gaulejac (1997), que o social possui dimensões emocionais afetivas e inconscientes a~sim c~n::o o "individual" é moldado pela cultura, pelas institui~ çoes SOCIaISe pelas organizações. Não se trata de trabalhar sobre as relações entre esses dois campos disciplinares, mas sim sobre as relações entre o social e o psíquico. A forma de fazer isso, na visão d? au~o~, é introduzindo um questionamento sobre o sujeito, sua hIstonCldad.e .e capacidade de transformação. O pressuposto é de q~e, s~ ~ sujeito conhecer a si mesmo, isso pode funcionar como dISpOSItIvO de transformação individual e social. , Como diz Gaulejac (1997, p. 162): "Se o indivíduo é o produ- ~o de uma história, essa história condensa, de uma parte, o con- Jun~o .dos _fatores sócio-históricos que intervêm no processo de sOClahzaçao. e, de outra, o conjunto dos fatores intrapsíquicos que determinam sua personalidade". Mas também não se trata de assimilar um domínio no outro, mas de assegurar sua inde- pendência. O psíquico não é submetido ao social, mas é integra- do como um elemento para se compreender o social. O foco da 70 PEDRO F. BENDASSOLLI Illl iologia clínica/psicossociologia está na construção de proble- mo ticas complexas que permitam pensar em articulações, Influências ou, como parece preferir Gaulejac, em "tensões" entre uma sociologia das estruturas e a sociologia do indivíduo (ou da experiência individual). Aplicada às organizações, a psicossociologia (ou sociologia clínica) analisa as ações e as interações em sua dualidade, ou H ja, na medida em que elas induzem (e são induzidas) as estru- luras e os processos tanto psíquicos, sociais e organizacionais (Hove, 1997). Essa abordagem entende as organizações como f nômenos sociomentais complexos. Seu ponto de partida é o r conhecimento de um sujeito em busca de significados em seu trabalho, em seu vínculo com a organização. Por sua vez, Aubert (1993) prefere a designação de "psícopa- tologia das organizações" para nomear a entrada da psicossocio- logia nas organizações. Nessa linha, ao contrário da psicopatolo- ia (que elege a divisão e a organização do trabalho como ituação a influenciar os mecanismos psíquicos), ela adota a rganização (ou os processos organizativos) como nível de aná- lise. É a relação indivíduo-organização que interessa nessa abor- dagem. Analisa-se nessa relação o confronto entre duas lógicas: a dos sistemas sociológicos (por exemplo, ideologias gerenciais, o sistema de gestão, formas de remuneração, políticas etc.) e a dos sistemas psicológicos sobre os quais o sistema anterior age. Os temas abordados pela sociologia clínica (ou psicossociolo- gia) são amplos. Dentre eles, destacamos: identificação organiza- cional (Pages et al., 198n as "doenças da excelência" (Aubert e Gaulejac 200n as "doenças da urgência" (Aubert e Roux-Dufort, 2004), as "ideologias gerenciais" (Caulejac, 2005) e os efeitos "sedutores"do discurso estratégico (Enriquez, 1997b). Qual seria o conceito de trabalho presente nas abordagens da sociologia clínica? Como em outros casos neste capítulo, seria difícil encontrar uma resposta exaustiva à questão neste espaço, 71 PSICOLOG", E TRABALHO tendo em vista a pluralidade de estudos conduzidos sob essas abord~ger:s, Contudo, podemos ensaiar algumas possibilidades. ~m primeiro lugar, o trabalho é entendido de maneira compara- bvam~nt~ mais "ampliada" que nas abordagens da psicologia orgaruzacíonzj, por exemplo: ele é reconhecido em sua determi- ~a~ã~ ~Óc~?-hist?rica e, ec?nômica e também na perspectiva dinâmica ou mtrapsIqUlca, como formador de identidade (Enriquez, 1999). Em segundo lugar, o trabalho é analisado na sua dimensão discursi~a. Assim, por exemplo, podemos entender que a noção de carreira (que não deixa de ser uma forma de "individualiza- ção" ~~ ex.r::eriênci.acom o trabalho) surge à medida que há a mtensIfIcaçao do discurso gerencial (Chanlat, 2000) e a primazia da "mentalidade empresarial" (Ehrenberg, 1991). Há, como con- sequência, uma mutação no significado de trabalho: de uma ati- v.idade imp~~ta ~es~inada ao ganho financeiro para uma sequên- cia d~ expenenClasmtervaladas ao longo das quais o indivíduo prognde e entende estar se desenvolvendo, se realizando. O enquadre desse tipo de mentalidade foi historicamente moldado quando da emergência da sociedade industrial e de sua ideia de progresso econômico, ascensão/sucesso e individualização. APROPRIAÇÃO PELOS CONSTRUCTOS SOBRE SIGNIFICADO E FUNÇÃO PSICOLÓGICA DO TRABALHO A referência-chave na área de estudos sobre significado do tra- balho na psicologia é uma pesquisa conduzida no fü{al dos anos 1980 em oito países por uma equipe cujo trabalho veio a ser conhecido como Meaning of Work, ou MOW. Em nosso entender, podemos separar a história desse constructo (significado do tra- balho) em dois momentos: antes e depois do MOW. Antes, encont~amos um~ diversidade de trabalhos teóricos e empíricos conduzidos especialmenrs na sociologia e na antropologia, embo- 72 PEDRa F. BENDASSOLLI '" t.imbém pela psicologia. A equipe do MOW, entre outros nu-ritos, conseguiu sintetizar e operacionalizar o volume desses 1",1 lidos de forma que os estudos posteriores ou dedicaram-se a 11'~larpartes de seu modelo ou então a questioná-Io. " Nesse sentido, esta seção será dividida em três partes. Na pri- nu-ira, apresentaremos e analisaremos algumas das pesquisas pioneiras sobre o constructo significado do trabalho; na segun- 11,1, faremos algumas considerações sobre a essência do mo~elo lu-urfstico do MOW; er na terceira, abordaremos esquematíca- 111 nte alguns estudos recentes sobre significado do trabalho. De modo geral, esse constructo revela-se uma importante via li apropriação da psicologia do campo do trabalho, sendo, como dissemos no capítulo anterior, fortemente dependente da r rvolução ou "virada cognitivista" na psicologia, a qual transfor- mou a relação desta última com o trabalho. Antes do MOW I odemos identificar quatro grandes grupos de estudos sobre ignificado do trabalho antes do MOW: 1. centralidade do traba- lho, 2. atitudes e crenças em relação ao trabalho, 3. resultados valorizados do trabalho e 4. valores de trabalho. Em termos metodológicos, como veremos, tendem a predo- minar estudos de natureza empírica e descritiva. Há também ensaios que tendem a voltar-se à captação de representações do trabalho na cultura da época em que foram escritos. Entendemos que diversos desses estudos de natureza ens~í~tica, cada. Ul~ influenciado por diferentes matrizes epistemológicas, contribuí- ram para contextualizar discussões amplas e antigas e~ seus respectivos domínios, como no da psicologia:. C~~taram ~Il~mas que até hoje nos acossam, como o de.tentar:. defInI: e ~ehmrtar a palavra "trabalho", em sua ampla dispersão semantIc~ e prag- mática, ou então de discernir sobre as nuançadas diferenças 73 PSICOLOGIA E TRABALHO entre trabalho e não trabalho, entre trabalho e lazer. Quanto maior a influência de matrizes compreensivas (interpretativas, hermenêuticas, existencialistas), mais esses estudos sobre signi- ficado do trabalho tendem para metodologias qualitativas. Vejamosuma parte desses estudos a seguir, começando pelo pri- meiro grupo. Centralidade do trabalho Qual é a importância do trabalho no conjunto total da vida de uma pessoa? Essa questão é provavelmente uma das primeiras a serem levantadas pelos estudiosos do significado do trabalho. E ela depende de grandes transformações econômicas e cultu- rais, sendo a mais notória a diferenciação do trabalho no con- junto da existência. Como vimos no capítulo anterior, a elevação do trabalho a uma categoria-chave no pensamento e na experiência subjetiva modernos dependeu da autonomização da esfera econômica. No mundo antigo emedieval, o trabalho não possuía um status de ati- vidade independente, fazendo antes parte da vida social dos gru- pos e das comunidades (regulação social do trabalho). Quando ele se torna fonte de valor econômico e a economia vai se consoli- dando socialmente como um campo independente, é a faceta de "mercadoria" que melhor passa a defini-Ia. Do ponto de vista social, essa transformação econômica é acompanhada de mutações nos costumes. O trabalho vai pro-- gressivamente deixando de ser algo realizado em casa, no domí- nio privado e regido pelas leis das necessidades básicas de sub- sistência (não há ainda espaço para a ideia de acumulação), para tornar-se um "emprego", submetido às leis da divisão do traba- lho e do gerencialismo da era industrial. Surgem então as cate- gorias do público e do privado, ficando o trabalho associado à primeira, ao passo que o convívio familiar, o tempo dos relacio- namentos e do lazer tornam-se propriedades privadas. 74 PEDRO F. BENDASSOLLI Com a Revolução Industrial e adiante, o te,m~odo traball:? é o tempo formal do relógio; o espaço é o ~a fa.bnca.A expenen- cia subjetiva se diversifica, a ponto de ate hoje podermos falar, em psicologia social, de "repertó:.ios de identi~ade~" - ou, na sociologia, de repertórios de papeIs. Embora nao seja o mom~n- to de discutir esse ponto, sabemos hoje que, com as tecnologIa.s de informação, o trabalho "volta" a ser realizado .no.espaço pn- vado, gerando confusões e embaralhamento de límítes. ~esmo assim, temos condições de diferenciar nossos espaços de vida ou identidades sociais - sabemos quando estamos trabalh~nd? e quando não estamos, e também conhe~emos as consequenClas, às vezes nocivas, da confusão de fronteIras. Por ora, podemos dizer que a pertinência dos estudos. sob~e centralidade do trabalho depende da emergência e consolidaç,ao deste último como um domínio autônomo. E d.e~en.deta~bem de uma mutação das representações sobre o sujeito mvestlg~do pela psicologia. Ou seja, esse suj~ito.~assa a ser .compreen~I~o orno um ser simbólico, cuja atribuição de sentido e condição para a inteligibilidade do trabalho como um objeto de con~eCl- mento e experiência, e também conside~~do portador de diver- os papéis sociais, condição para a es~abIlIdad~dos processos de interação e para a construção da realidade social. Adicionalmente, os estudos sobre centralidade ~o trabalho admitem implícita ou explicitamente, uma relação direta entre a força de~te constructo e comportamentos ligados ~o trabal~o. Assim, quanto maior a centralidade do tra~alho, malo~ o engaJa- mento com ele. Mais importante, as pesqUIsas conduzIdas nesse domínio não fazem senão confirmar o ideário moderno en: rela- ção ao trabalho, na medida em que admite~ a c.entrahda~e como um constructo a ser operacionalizado e investIgado: Mais uma vez cabe dizer que não faria sentido dedicar-se a um tipo d.e investigação se não houvesse, no horizonte maior da cultura OCI- dental moderna, essa presença "maciça" do trabalho. 75 PSICOLOGIA E TRABALHO Uma vez feita essa introdução, vejamos algumas pesquisas pioneiras sobre esse tema na psicologia. E a primeira aparece no artigo de Dubin (1956),em que ele propõe o conceito
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