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Narrativa na Clínica Comum

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A NARRATIVA NA CLÍNICA COMUM�
Sidnei José Cazetto 
O vínculo terapêutico
		O trabalho clínico em saúde se dá como uma relação entre sujeitos. Isto supõe: a demanda de um sujeito, família ou outros; um (ou mais) sujeito(s) com conhecimento teórico/técnico/prático para responder (de um certo modo) a esta demanda; uma disponibilidade de ambas as partes para encontrarem-se e constituírem uma relação terapêutica.
		Mesmo no caso de um serviço profissional, para existir uma relação terapêutica não bastam a necessidade de um sujeito e o saber de quem se dispõe a tratar. Outros aspectos precisam também estar presentes, como o reconhecimento do profissional, por parte do sujeito que demanda, como alguém capaz de ajudá-lo. Para isso contará a confiança que puder sentir em relação a ele, a atenção que dele recebe, as informações que teve a seu respeito, o grau de urgência de seu estado e sua preocupação em relação a ele, sua história passada com terapeutas diversos, etc. De todo modo, o profissional de saúde, para realizar seu trabalho, depende de ser investido como tal pelo sujeito a quem pretende oferecer seus serviços.
		Um outro aspecto importante para o estabelecimento de um vínculo terapêutico é a adoção de uma ética, por parte do profissional, que considere o trabalho em saúde não a mera aplicação de uma tecnologia (qualquer que seja ela) no combate de uma patologia, mas a disposição a projetar e realizar um trabalho clínico com um sujeito de necessidades complexas, cujo sofrimento faz procurar por ajuda profissional. Isto pressupõe uma aproximação maior àquele que demanda, o que indica a importância de conhecer, em algum grau, sua história de vida, suas condições familiares e de trabalho, suas tentativas anteriores de tratamento, sua relação com os equipamentos e profissionais de saúde, além dos significados que atribui a seu estado e condição atual.
		Fazer esta aproximação é uma tarefa exigente para ambas as partes, pois pode implicar no contato com áreas dolorosas e angustiantes. O profissional também pode sentir-se mobilizado em suas próprias angústias, e reagir a isto de várias maneiras, entre as quais forçando o sujeito a aceitar um certo projeto terapêutico (furor curandis), afastando-se do caso, etc. Mas se as identificações não forem tão maciças, ou se puderem ser percebidas e trabalhadas, a relação terapêutica constituirá a base necessária para o trabalho clínico desenvolver-se, buscando criar – tarefa de todos os envolvidos – condições mais favoráveis que aquelas das quais emergiram os problemas anteriores.
		Daí a importância do profissional desenvolver recursos para estabelecer contato e vínculo com sujeitos que buscam por sua ajuda, bem como a capacidade de escuta, observação e presença com tais sujeitos. Foi baseado nestes princípios que se projetou a prática de TS neste ano como visitas domiciliares a sujeitos que estão em seguimento nas unidades de saúde das regiões Centro, Marapé/Base do Morro e Noroeste da cidade de Santos.
		
A narrativa
		Durante o semestre deveremos construir uma narrativa sobre estas visitas, ou, mais especificamente, sobre o sujeito/família que está sendo acompanhado. A narrativa é uma exposição sobre a história e sobre acontecimentos ocorridos com um ou vários personagens. Nossos personagens são os sujeitos visitados e seus próximos. Falamos em personagens pois, embora sejam de carne-e-osso, estão sendo apresentados na perspectiva do narrador. O narrador nunca é neutro, embora pareça somente apresentar os fatos, sem tomar partido sobre eles. Isto porque, mesmo que procure privilegiar a perspectiva do sujeito tornado personagem, evitando impor-lhe seus próprios julgamentos, não pode deixar de fazer uma série de escolhas sobre o que seria relevante relatar e interpretações sobre os acontecimentos. Para ficar mais claro, basta pensar que, se o interesse fosse por experiências religiosas, e não por questões de saúde, o recorte narrativo seria completamente outro.
		O narrador é uma figura formada pela dupla que fez o acompanhamento, o que implicará em negociações na decisão sobre o que dizer, em que seqüência e com qual destaque. Isto porque se espera que a narrativa não seja uma simples justaposição das informações obtidas, mas um texto que apresente o sujeito-personagem para um leitor, que seria um outro profissional de saúde, com a finalidade de informar-lhe o que haveria de relevante para saber sobre este sujeito, no benefício de seu melhor atendimento. Daí a idéia de entregar esta narrativa para ser anexada ao prontuário do sujeito na UBS.
		Mas como dizer o necessário sem expor demasiadamente o sujeito? Eis uma questão delicada, difícil de responder de forma genérica. Em cada caso devem ser incluídas as informações que ajudam a singularizar o sujeito e sua história, mas de forma a excluir aquilo que poderia prejudicá-lo de algum modo. Assim, por exemplo, eventuais dados revelados sob confiança de não divulgação ficam fora da narrativa, a não ser que possam modificar um diagnóstico e redirecionar o tratamento. Neste caso, deve-se negociar com o sujeito a revelação da informação para outros profissionais envolvidos. Na última das visitas a dupla fará uma leitura da narrativa ao acompanhado, momento no qual ele poderá sugerir correções e decidirá se permite ou não a entrega do documento para o Serviço.
		A narrativa focalizará o sujeito acompanhado, mas isto não impede que alguns trechos se destinem a referir a experiência da dupla neste acompanhamento: expectativas e dificuldades iniciais, como se procurou contorná-las e superá-las, como o processo foi percebido e que repercussões teve. Relacionado a isso seria interessante comentar sobre o vínculo estabelecido, como ele evoluiu, flutuou, e como foi trabalhado o encerramento das visitas. Isto deverá ser feito num item à parte, de modo a podermos decidir pela sua permanência ou não na versão a ser deixada no prontuário.
		Espera-se que a narrativa possa mostrar, com a maior clareza possível, a complexidade de seus personagens. Isto é, seria importante que ficasse perceptível que os caminhos e as escolhas de vida estão atravessados por múltiplos determinantes, o que desaconselha explicações simplificadas de porque, por exemplo, engravidou, ou não tratou de alguma doença, ou abandonou filhos, etc. Portanto, uma descrição muito assertiva, com conclusões fechadas, certezas enfáticas, etc, sugere que o narrador não percebeu a densidade da história que tinha nas mãos.
		Ao invés disso recomenda-se trabalhar sempre com hipóteses e até com a formulação de questões sobre o descrito, mesmo que para elas ainda não existam respostas. Assim como em pesquisa, no trabalho clínico é muito importante conseguir elaborar boas questões a partir dos dados, na medida em que operam como organizadores das informações, orientando o raciocínio do profissional.
		Vale lembrar que, se a um mesmo acontecimento forem atribuídos significados diversos, por sujeitos diferentes ou pelo mesmo sujeito em momentos distintos, seria interessante que a narrativa reproduzisse esta polissemia, ao invés de somente escolher por um dos sentidos. Eis algo que se pode aprender com a literatura: sentidos contraditórios não se excluem necessariamente na vida; ainda que isto cause estranhamento, eles podem muito bem coexistir.
		O conteúdo da narrativa deve incluir os aspectos descritivos arrolados no diário de campo, e também: a história de vida e de saúde que se conseguiu obter; a constelação familiar; os recursos atuais com que o sujeito/família conta para viver/sobreviver; a representação que tem das razões de sua doença ou situação; as estratégias utilizadas para lidar com a doença/manter a saúde; os atendimentos e tratamentos que vêm sendo realizados; o que parecem ser as necessidades de saúde deste acompanhado; e o que não consta desta lista mas parece ser importante neste caso. 
		Por fim, espera-se que a narrativa inclua o estabelecimento de relações entre os dados: entre as condições de vida e de saúde, entre a históriado sujeito e a dos seus adoecimentos, entre suas experiências e os significados que atribui à sua situação, ou outras que forem possíveis. Tais relações podem ser "positivas" ou "negativas", isto é, podem mostrar a sintonia de dois aspectos ou o seu contraste. Por exemplo, podem estabelecer nexo entre a ocorrência de uma pneumonia e a umidade da moradia, mas podem também chamar a atenção para uma extrema resistência sob condições de vida muito adversas. Este provavelmente é o aspecto mais difícil de ser cumprido numa narrativa, mas também o mais interessante e o que pode torná-la um importante instrumento de compreensão de um sujeito acompanhado.
� Clínica comum tem aqui um significado provisório de uma clínica em saúde nos seus aspectos mais elementares, de modo que possam referir-se a diversas áreas profissionais. O termo se inspira na noção de comum, proposta por Antonio Negri e Michael Hardt. Diferente de "comunidade", que designaria uma espécie de unidade moral, na qual o indivíduo se dissolveria, o "comum" seria "baseado na comunicação de singularidades" e se manifestaria "por meio de processos sociais de cooperação e produção" (Lancetti, A. Clínica peripatética. São Paulo: Hucitec, 2006, p.94). As singularidades seriam preservadas no comum, assim como imaginamos que possa ocorrer também no trabalho de uma equipe de saúde.

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