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Psicopatologia - Unidade V - Sistemas diagnósticos

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· 1J~.s~;l/V/. ~~ ~~ e4~ ~~ ~v•j~~- ~~owk :~} .A-B'!J} v ft 
e~ JS - Neuroses x psicoses: 
Uma primeira abordagem quanto 
ao diagnóstico diferencial 
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O diagnóstico: razões do interesse 
Na estruturação da rede de atenção à saúde mental de um municí-
pio, deve situar-se de forma clara a seguinte proposição: a questão 
que nos deve levar a acofüer com urgência um paciente em nossos 
serviços não se deili;a definir jamais por um diagnóstico.determinado, 
seja ele do CID-9, ou 10, seja ele do âmbito conhecido (e muílas vezes 
vulgarizado) como "diagnóstico cstmturnl". O que nos motiva a ~ma 
apreensão rápida do problema e nos conduz a tomar as medidas ne-
cessárias não se funda cm princípio num diagnóstico, mas sobretudo 
numa avaliação da gravidade do problema:~~~~~ urgência subjetiva 
em causa7 quais os riscos envolvidos na situação? 
Seria então a interrogação diagnóstica relegada em segundo 
plano em nossa prática clínica? De forma alguma. Pois as ques- ·) 
lõ~s relativas ao diagnóstico, se não nos servem como critério de ' 
admissão, inleressam~nos grandemente para avaliar o modo, o li· 
mile e o alcance dll nossa operação clínic11 cm cada caso. 
. ~ 
Assim, lidamos com este a.~arente paradoxo: por um lado, há 
uma dimensão da questão diagnóstica que não tem maior relevân-
cia para a compos'ição da clientela dos serviços de saúde men~al. 
54 
Por outro lado, esta abertura não se confunde com um ecletismo; 
não se confunde nem mesmo com a posição, tão difundida há 
algum tempo atrás, de que o diagnóstico não passaria de um mero 
rótulo ou etiqueta, enfim de uma leitura objetivante que nenhum 
benefício traria aos usuários (podemos resumir assim, embora de 
maneira muito sumária, a querela que opôs Lacan a Maud 
Mannoni). Pelo contrário: a escuta ofe~~c~~?. ª !ll!CfllJJP.S.chegª, 
seus giros. s~ manej9.! ~ ~st~atégj~; i:!!'. ~-~:11_~ ~~-~~-~~~~~e 
__....--·-· 
'ã quest;io de sab:~~!!! gue ppsição. se !!.n.~mra_ ~~te JuJ~H.~ [~~~ 
•• -·-~- ....... _"'.'_ • ' ' t ' • 
linguagem. " { · -.. t.:--- '· ..... · P'' ·' · · . · -
. ·--- •· .... ,, .. ( .;. ..... \, ' .. ~ ...... , ~ .. • t • • '~~~.; •• ~ ' 
Colocada nestes termos, tal questão não dei.xa dúvida quanlo 
ao lugar de onde se enuncia: pr(!vém f:IQ trabalho freudiano, tal . 
como retomado por Lacan. Assim,· entendemos a questão 
diagnóstica, pensada como diagnóstico da· estrutura, como funclà.-
mental para a direção da cura; e tal questão, pará tal fim, coloca 
uma interrogação decisiva: neurose ou psicose? O estabelecimento 
- às vezes imediato, às vezes demorado - desta posição subjetiva 
é sempre essencial para o tratamento. No mais. as discussões quanto 
a saber se estamos diante de uma paranóia ou csquiz.ofrenla •. de 
uma histeria ou obsessão, 'são excrdcíos sempre interessantes, que 
costumam trazer sua contribuição para o trabalho clfnico; mas nilo 
nos devem afastar da avaliação primeira relativa à estrutura, esta 
sim, verdadeiramente detenninanle para a condução do caso. 
Este trabalho de dignóstico diferencial que propomos aqui, to-
mando a psicanálise como maior referência, recorre ao 1iaber psi-
\ 
q~1iátrico, articula-se a ele em muitos de seus pontos, utiliz.a-se de 
algumas de suas contribuições. Este empreendimento não nos pa-
rece simples; corre sempre o risco de resultar naquilo que chama-
l mos de "fenomenologização da psicanálise". Nós o conduzimos, 
lodavia, a partir de uma concepção de interlocução que se afasta 
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da slntese: não concebemos estas duns disciplinas como discursos 
· que se complementam num todo, nem as compreendemos como 
fonnas diferentes de dizer a mesma coisa. 
Fommlamos pois nossa questão principal - o diagnóstico dife-
rencial entre neurose e psicose: e o no~so instrumental para abordá-
la - a interlocução entre a psicanálise e a psiquiatria. l~!o posto, 
podemos dar início ao nosso trabalho de hoje. 
Diagnóstico em psiquiatria x diagnóstico em psic~nálise: 
difereflças de peri~11rso 
Comecemo:; com 11lr-urn1 breve:-; comentários sobre ns di~cipli­
nas que hoje nos cfü:em respeito: a psi<1uia1rin e a psicamtlisc. 
9mmto à psi9!!!atri~: apesar t:le certos esboços de descrições 
médicas dos distúrbios psíquicos, que podemos remontar à medi-
cina grega, e ainda outros subseqilentes. diríamos que o estabele- 1 
cimento dn psiquiatria como disciplin~ propriamente dita tem como r~ ~ 
condição o naschnl.'nto do asilo, no final do século XVIII. Assegu- '"'"tOVvvr.,~,..,........g­
rou-se assim não só o poder, como também o dever familiar. polí-
tico e social, de enclausurar os loucos em instituições que prome-
tiam sua cura. 
A promessa da cura não se cumpriu - e pennanece não cum-
prida nté hoje, apesar de todos os avatares do antigo asilo. que vão 
do eletrochoque à psicocirurgia, para não citarmos outros mais 
sulis. Entretanto, nas prisões como nos asilos. criavam-se as con-
dições mais propícias para um certo tipo de saber sobre o compor-
tamento humano tornado possível justamente por uma modalida-
de específica de enclausurnmento - este enclausuramento caracte-
rizado certamente pelo imperativo da ordem, mas enquanto asse-
gurado pela incessante vigilàncin do olhar. 
56 
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Enfim, fundado o asilo, no longo do século XIX os psiquiatras 
realizam todo um 1rabalho de obserVação, descrição e classifica-
ção, estabelecendo sislemas mais ou menos regionais de classifi-
cação, onde n escola alemã se opõe à escola francesa. Podemos 
dizer que Krnepelin. na virada do século, é o autor de um primeiro 
·sistema n~ transnacional. que vai poÚco a pouco servindo 
de linguagem comum aos psiquiatras dos diversos países. Não por 
acaso, seu sistema classi ficatório engloba três entidades nosológicas 
cntfio isoladas, que até hoje comparecem cotidianame1He à nossa 
clínica: n paranóia, n demência precoce (futura esquizofrenia) e n 
psicose maníaco-depressiva. 
No início do i;éculo X X, de fonna mais ou menos conlemporft· 
m:a a cslc esforço de sÍlllese 1111~ohigica, assistimos a nrna i111pnr-
tante sistemalização da psicopatologia po~ ~~~p~~ da qunl toma-
. remo3 importantes elementos para o nosso trabalho de hoje. 
Esta história tem como um marco importante o nascimento da 
psfoofarmacologia, nos anos 50. Sua importância é inegável; os 
psicornrmac<!s_c:'?n~!ltu~m.um.i:.eç.u~q- in~1.1tmi!Jl[~~.l..12m:liçy_l.ar:rrien- . 
_Je. p~a .a.i~~~~~~c}_a_2sico~!!_· O avanço da psicofarmacologin, 
contudo, lem coexistido com um prejuízo da investigação clínica, 
cuja linguagem empobreceu-se notavelmente, sob o pretexto de mo-
dernizar-se. O trabalho intelectual da psicopatologia e da nosologia 
trou;te úteis e belas páginas à psiquiatria, tal como podemos lê-la em 
Kraepelin, Bleuler ou Clérambaull; lamentamos que trabalhos Ião 
apurados não lenham deixado marca na cultura psiquiátrica dos nos-
sos dias. dando lugar no linguajar de catálogo que enconlramos nas 
atuais classificações dos transtornos psíquicos. Mas não nos detere-
mos nisso. Concluímos esta nossa breve descrição do percurso da 
disciplina psiquiátrica, com a seguinte avaliação:~~~~~ 
sef!tÍ~C!.d~ simelificnção, com o~ peri~?s do empobrecimento . 
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Tomemos agora 0 corte freudiano ...;. corte que não há de dei- desenvolvimento e curso iguais, êxito igual, e achados cerebrais 
xar-nos ilesos, pela ruptura que causa .e pela fenda que introduz. ~ ,v •·· iguais."' 
Lembremo-nosque a psicanálise, nascendo no final do século XIX, " r( ,trr' e/·- A rGr, entidade neuropsiquiátrica que preenche tais quesitos. 
há de tomar corpo no século XX, através dos textos de Freud e · .,' \i
1
,J•1 ··: •• ·.:' fez. esperar que algum dia a própria psiquiatria viesse a constituir-
seus seguidores. Muitos dos discípulos mais próximos de Freud .., '( ,r1 .,C"í se deste modo; assim, Kraepelin, no descrever formas psicológi-~ ~ "{"' 
tiveram problemas quase insuperáveis com a herança de toda .uma /". 'p"' 
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matéria conceituai extremamente complexa, e muitas veres . e1xa- ,J · ~ .• 
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da em estado bruto - além dos eternos 1mpusscs quanto a orgam- f 1 
zação da psicanálise e sua transmissão. 
Este embaraço levou n um drculo vicioso interno à obra 
frcudimm, a um afroux:imcnlo dos eixos elementares da constru-
ção. Lncnn v~io de lllguma for11111 reexaminar ~cui1 alicerces, . 
problematizando-os através de nlavimcas cu11cci1uais cxtcliorcs à 
própria psicanálise: a lingllfstica, a lógica, a topologia, a matemáti-
ca. Deixou-nos por sua vez uma herança, e das mais complexas: 
contudo, por difícil que seja sua leitura, ele indubitavelmente aju-
dou-nos na elucidação da descoberta freudiana. Concluímos com 
1\ nossa impressão relativa. a este percurso: uma bus:a necessá~a de · 
sofisticação intelectual, com os perigos do hemlehsmo. 
O diag11óstico em psiquiatria: avauços e impasses 
No fio de nossa exposição,. devemo~ agora examinar'alguns · 
dos pr6btemas e inipastes enco1ltrados pela disciplina psiquiátrica. 
Para a psiquiatri~ foi sempre problemática a questão de sua 
inserção na medicíflll. Desde o isolamento da paralisia geral pro-
gressiva (PGP). por Baylc, em 1822, corno entidade nosológica 
mais ou menos nos moldes médicos, autorizou-se o sonho da enti-
dade 11osol6gica natural, psiquiátrica, tal como será chamada por 
Kraepelin: "Con_stituirão uma unidade nosológica natural aqueles 
quadros mórbidos que têm causas iguais, fonna psicológica igual, 
58 
cas, desenvolvimentos e cursos iguais para suas demências preco-
' ces, esperava seguramente que, no futuro, fossem estabelecidas 
'; ; para estas mesmas doenças causas e achados cerebrais iguais. Como 
· sabemos, nosso presente não viu cumprir tais expectativas. 
Mais ou menos na mesma época cm que Kraepelin reedita 
seus úhimos tratados, um filósofo e psiquiatra chamado Jaspers 
1111c~tim111 cs1n vismln dns 1mi1:i:id·~~· 11~s~16glc.iís mmirais· ê1i1 j)i;iqu~­
. ª!!!~:Ele l) rui ri jlíiriir de ti1iin ~rfiic;111<1 pn;alclism~ p~i~~)fj~i~o ~Íc 
seu tempo, de onde surgiam especulações como a seguinte: sc(o 
indivíduo ouve vozes, é porque ele tem uma afecção nos centros 
auditivos de seu córtex cerebral. Ora, Jaspers se preocupava seria-
mente com isto - não com a hipótese enquanto tal, mas com seu 
caráter abertamente especulativo - seja pela total inexistência de 
provas, seja pela despreocupação mesma face à necessidade de 
provar. 
Daí, a proposta fundamental de Jaspers consiste num convite à 
cautela, no movimento pelo qual a psiquiatria vinha buscando seu 
lugar na medicina. Ele nos diz: estamos aproximando muito acele-
radamente o físico e o psíquico, estamos abusando de conexões 
psicofísicas não autorizadas nem pela clínica nem pela anatomo-
, patologia. Façamos outra tentativa. Vamos supor o físico e o psí-
quico como as margens de Úm continente ainda inexplorado, cujas 
comunicações podemos pressupor, mas não mapear. Se este tra-
balho de mapeamento encontra-se ainda fora do alcance da nossa 
tecnologia, nem por isso deixemos de trabalhar: na impossibilidade 
59 
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de estabelecer stms líg;1çíks. lqmemos isoladamente çada uma das 
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margens do c:ontim:nte; a psicopatologia consistirá, então. mi ex-
.. ' ...... - . _ ___::__....;:..,_~~~---=-----:-::-
ploração do lado psíquico, por um viés descritivo e sistemático 
in~:i:.e'..'...d_::~!c de concepções etiológ!cas. 
Veremos que Jaspers mesmo não foi tão isento as~im. Todavia, 
recortaremos agora de seu trabalho alguns pares de oposições 
semiológicas que guardam ainda grande validade para a nossa clf-
nk;i de hoje. 
Citemos algumas destas oposições: os fenômenos subjetivos 
J. -i1sicopatológicos (como os delírios. por exemplo) ver.nu os disltirbi-
os dos rendimentos objetivos (tais como os prejuízos da memória e 
da inteligência): as doenças org;1nicm; cerebrais (como m; demências 
senis, a própria PGP) versus as psicoses endógenas (como a para· 
nóia, a PMD, a esquizofrenia); enfim, os processos versus os desen-
. volvimentos, que pretendemos explorar mais adiante. 
Os dois primeiros pares de oposição relacionam-se com uma 
distinção muilo importante.já presente na prática psiquiátrica, mns 
sistcmalh.ada por fasp1=rs: certos distúrbios psíquicos estão clara e i 
nitidam~n!c relacionados com certasnlterações orgiinicas, como é { 
o caso da dcmé-ncia senil. Em outros casos - e reside aí uma 
diferença essencial-pode-se até acreditar na existência desta rela-
., .... ,~ ... ....,.-----·- ..... -------·--
ção, mas nüo dcmonstni-la: e o caso ~a~ ... nsic.oscs. chamadas 
endógenas. Podemos dizer que, a grosso modo, Jaspers íar. 
corre$pondcr as doenças cerebrais aos processos orgânicos, e as 
psicoses emJógenas aos processos psíquicos. 
Então, uma primeira questão diagnóstica que nos interessa: di· 
-- . --ante de um porl<!dor de distúrbios psíquicos, quando podemus 
consla!ar a relação destes distúrbios com µma de1ermim1ção orgâ-
nica? O subsídio da psicopatologia psiqui:ítrica é in<lispensiivd para 
n abordagem desías questões. 
60 
' . .r(/-/' t"""I ~r-Pu~~:_r~~ ~~ 
r<. IP'- ·,. 
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Jaspers introduz uma outra questão que nos interessa direta-
mente: il úistinçifo t'!nlrl! pmc.:.uo e de.1·1•11vah•Íl/re11to. 
. . . 
O process,\, orgânico ou psíquico, se define por ser incompre-
ensível, ou seja, introduz uma ruptura tanto na seqüência dos pro-
dutos r~íquicos (Jaspers), quanto na conlinuidude histórico-bio-
grâl1ca do sujeito (Schneider); quando sé tratn de processo. é im-
possível eslabelecer con~x.ões de sentido, ou acompanhar um 
fio ijué a~ produza. O fio está ~ompido, tnnto no nível da 
lempor~lidade hisíórica quanto no da continuidade ou encadea-
mento dos produtos psíquicos do sujeito. 
Observemos a importância que é dada aí ao ordenamento do 
sentido, a compreensibilidade; é este o critério diferencial entre 
um processo e um desenvolvimento anonnal dn pen;onnlidadc. ' 
que Jaspers em outros momentos chmm1 de neurose. Um desen-
volvimento, nnonnal ou não, é algo que o terapeuta sempre pode 
compreender, colocando·se no lugar do paciente (é curioso como 
· Jaspers invoca, sem sabê-lo, a operação freudiana da identificação 
como método terapêutico ... ). 
Ora, se o processo é por definição, algo que não se pode com-
pree1ufer, resta-lhe ser algo que se possa explicar. Esta oposição 
entre compreensão e explicação diz respeito a uma distinção 
introduzida na época por Dilthey, que pretendia assim soludonar 
alguns problemas epistemológicos surg,idos quanto no estatuto da~ 
chamadas ciências humanas. Ele resolveu a querela da época pro· 
pondo uma nova modalidade de conexões entre os elementos de 
uma disciplina. que receberia o nome de compreensüo; a explicação 
ficaria reservada às ciências naturais, onde a causa sempre se po<lc:: 
situar. Daí, o desenvolvimento da personalidade, anomia! ou não, 
insere-se no camp9 psicológico da comprccnsibifülade; quílnto uo~ 
processos, são justamente intem1pções desta continuidade compre-
61 
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ensívcl; são doenças, portanto, pertinentes ao campo dasdoenças 
naturais, e exigem uma explicação. 
O quadro abaixo resume as principais distinções estabelecidas 
por Jaspers: 
desenvolvimento 11. processo 
" 
PSÍQUICO 
: (alterações orgânicas postuladas) 
-compreender 
• "causalidade" psíquica 
-continuidade no sentido 
-explicar 
-causalidade orgânica 
-roptura no sent.ido 
cos, sublinhou certos fenômenos subje!ivos - o delírio primário, 
as alterações da consciência do eu, por exemplo - que jamais são 
encontrados nos processos orgânicos . 
. Outro aspecto importante: nas doenç·as cerebrais ou processos 
orgânicos são afetados os recursos néuropsíquicos necessários à 
vida de relação, no que diz respeito à interação enlrc o organismo 
e o meio; n~:iicoscs ou prócessos psíquico:; temos um· outro 
modo de subversão na relação com a dila realidade, que llpcn:is 
secundariamente pode manifestar-se na relação homeostáticu en-
tre o corpo biológico e o. habitat natural. Em outras palavras. 
estamos dizendo algo. muito simples: .uma demên. eia é algo ess.· en-1 
cialmente diferente de uma psicose, como qualquer cl(nico 
• .-: .. !', 
despreconceituoso pode perceber. · . 
Dar o primeiro problema que nos intriga: sabendo disso, e.o mo 
pôde Jaspers - este estudioso dos sintomas elementares das 
psicoses - unir sob o mesmo termo, processo, as psicoses e os 
Os processos orgânicos, que não nos interessam particular· quadros demenciais? Não nos basta que lenha adjetivado os 
mente aqui, s~rão brevemente abordados em contraposição aos primeiros como psíquicos e os segundos corno orgânicos; esta 
processos psíquicos, permitindo-nos demonstrar um primeiro pro- denominação oposta, pelo contrário, aponta justamente a uni-
blema da concepção jaspersiana. dade que se procura assegurar, incluindo ambos 110 grupo dos 
Fino observador das nuances de um tipo clínico, Jaspers se processos. 
dava conta muito bem da dessemelhança semiológicn entre 0 pro- Podemos colocar-nos esta pergunta: não teria Jaspers se deixa-
! cesso orgânico - os quadros demenciais - e o processo psíquico - do aprisionar por um suposto domínio do sentido? Não teria pen-as psicoses proefui.mrmti:: .. ditai. Ele comparava o primeiro 8 um sado o senlido de Cal forma inereme ao psiquismo humano, que re. 16gio qu~.i~esse sido ~uebrado ~ m .. achadadas, e~quan~o 0 si:,- toda e qualquer falha de sua tessitura implicaria numa mesma de-gundo lefi~ u~o. ~~~-sut!l .. ~~!~ra~~~. e~.~e~ ~~c!ln!smo ml~n_1º· sordem - numa doença, como se o sentido desarranjado deves.se 
Enfatizava que o processo orgânico se caractenzava pelo pre1uizo corresponder ao desarranjo cerebral - justificando o uso de um 
dos chamados rendimentos objetivos. como por exemplo a inteli- mesmo temfo para nomeá-ta? Este apego ao sentido não o tciia 
gência e a memória, e assinalava sua preservação nos processos levado a postular um mesmo tipo de causalidade-:- uma causalida-
psfquicos; por outro lado, em sua descrição dos processos psíqui- . de orgânica - para os processos? a reunir sob a égide da incom-
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preensibilidade quadros que se incompreendem ue forma muito 
diferente? Os produtos psíquicos das demências não se podem , . """ 
cesso psíquico não teria um parentesco digno de investigação com 
aquilo que um analista chamaria de psicose? e o seu desenvolvi-
-...:_ .. J 1 '~·?'°"' 
compreender, em virtude da perda das faculdades cerçbrais que '""~'··'./>L ,_.,t......._, mento anonnal não teria as características de estrutura de uma 
possibilitam ao animal human~ os jogos d.a lógica; ~iferent~me~~::j '·. ~· neurose? 
os chamados processos psfqmcos, ou psicoses, nao se de1x.anam ', 1.r-:' ~ Da( nossa interrogaç· ão, que esquematizamos como se segue: 
- fl<.-'-'!A.». ~"'--~ 
compreender porque os jogos da lógica não estão necessariamente . 
iirelados ao senlido. " l'.A..- i.. ~ ""-''> ., neurose x pstcosc 
Es.ta disjunção de princípio entre lógica e sentido é uma ques- ,.< < l;.-v-~ ........ e~ IY:i .. ,.-:.- =? 
tão difícil, que não lemos a pretensão de desenvolver aqui. Para vvv•c.o" ...._~lrJ-• · desenvolvimento x processo psíquico 
pensá-la, sugerimos Lewis Carrol!: o que irrita Alice no País das c/.,;;:>..-ef. ' · ~..o-. . • • 
· · d ,. ,, ' YJ "'-~ • Nossa hipótese necessita ser justificada, tendo em vista as Ira· Maravilhas é que ela tem objeções impecavelmente corretas o r 1 
. . 'l'd d d d" 1:.::, __ . -~ ... V>....-a jetórias teóricas inteiramente discordantes de Jaspers e Freud. ponto de vista da compreens1b1 1 a e, qunn o 1scute com seus 
d 1 li •"-. ,,...., ~ Jaspers, em sua deferência para com o sentido, foi condm.ido a habitantes; mas esconcerta-se sempre, porque e es ie respon- . . . . . . . . . 
, . . . 'd . . ii 0.- r>•..< o·;,<.. . equ(vocos muito senos, alguns dos quais abordamos aqm. 1oúa-dem com uma log1ca que 1romza ou descons1 era a preocupaç o . . ~ . 
• ·. • >".1..-nc ~ via, ele estava absolutamente correto num,,J!_OOIO de relevancta 
com o senl!do. • . . . . -: . . •-: .. -- .... - ·V· 
A cnntribuiçãofenome11ológica e seus limites 
~ 1r--r.ç f-o - crucial para o diagnóstico d!G ;(!Slcose: a rncomp~en~1b1l!.Q!!;!t;i. a [r 
lf--';. C..:- - .M~.:~resença..do...pnnla...inco1.11pi:eensívi:I, .for.~.c!~ c~~eia; a oc~~!~~ 
• .., i • · • ,_,(,..... · Ê!tP-~lo n:i~.l:!ºS..º-.m elem~.i.i!Q.,QUt;:..n.iiQ.e.nlL~J:rntr~J~x~!.C..?~P!:.t:!:: 
Voltemos a hspcrs, agora não para fazer-lhe objeções, nrns I •: · 1-·-' "·"'-.t.··· .~f~~~ .. ~~~}~.~.l?lQQJ.,1.!9~.P.~(qy.i.ç,oi.de.iimilp.~ef~0.~ .. !'9.~!)~,~!!l .. ~~!r~ .. 5.~.~"'·-
pnra colher o que nos oferece ele interessante. Aproveitandó ª P"""'·-- ., e... .. Tomemos alguns exe~plos da clínica dos psicóticos. Assim, pen- · 
finura de suas observações sobre o processo psíq11ico, vamos ex- -u-- ~"" samos em determinada pessoa que procurou nosso serviço para 
piorar a oposição entre processo psíquico e desenvolvimento. Ela visitarmos uma família que estaria com problemas. Embora este 
não tem uma certa analogia com uma outra distinção que nos rapa:t se apresentasse muito composto, e pudesse sustentar uma 
impona muito - aquela à qual nos referimos inicialmente, entre conversa coerentemente durante algum 1empo. sua fota tinha pon-
neurose e psicojc? 
Num primeiro momento, a resposta pareceria evidente, posto 
que o próprio Jaspers por vezes. se referia ao processo psíquico 
como psicose. e ao desenvolvimento anonnal como neurose, ou 
seja, ele próprio fazia esta equivalência. A nossa pergunta, porém, 
é diversa: Jaspc~s não fazia também uma outra equivalência, sem 
sabê-lo? Dito de oulra fonna, aquilo que Jaspers chama de pro~ 
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tos enigmáticos, eslranhos, que rompiam completamente n corrcn!c 
do sentido. Esta impressão é confirmada, quando lhe perguntamos 
clarnmenle se ele próprio não estará necessitando da ajuda da Sílúde 
mental; antes de responder sim ou não, ele emite abruptamente a 
seguinte frase: "O antigo Egito já não se encontra no seu apogeu." 
Este nos parece ser .um exemplo muito ilustrativo da ruQtura de 
sentido a que se refere Jaspers. Podemos dizer que certas vozes de 
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..P?.!fóticos também são exemplos disso: elas penetram no psiquismo 
do sujeito sem fazer cadeia com nenhum elemento que esteja lá. Da 
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mesma fonna, as interpretaçoe:fêleI1rantes; num exemplo clássico 
de Henri Ey: "O gorrobranco do chefe da estação significa que o 
mundo vai acabar." Bem, a menos que este paciente seja membro 
de um grupo terrorista que optou por esta senha, não vemos que 
relação compreensível possa existir entre o fim do mundo e a cor, 
qualquer que ela seja, do gorro do chefe da eslação. 
Assim, podemos confiar em Jaspers sob este aspecto: procure 
correiamente o incom reeiisrvel, o sentido cortado; se cnco~ 
a psicose e~!!,,_Clérambault _' fom1ulava de ümã~outraii;-nci-;: 
também de grande utilidade-Clínica: aquilç que ele chamava de 
automatismo mental, tendo também uma relação com o corte do 
sentido .. Os fenômenos do automatismo mental - aliás muito varia-
dos, indo do riso imotivado ao pensamento imposto, das estereotipias 
verbais ao bloqueio de pensamento - têm todos eles este caráter de 
alguma coisa que irrompe, que se impõe desde fora, que impede o 
prosseguimento do fio da vida psíquica do sujeito. :_:: __ ) 
· Evidentemente !l. neurótico tambfan..tem.que...seJ1ay.er. cPJI! fl~ .. 
problemas inevitá~~!_s_~Q. ~ÇJJtlP.Q.:-:.!!.1~ são outros problemas. Achar 
qÜe.âprópriâvida carece de sentido é-~~7ci~~fXi~'Cú~6·iic~ ~~i-to 
éomum. Se ousamos pe~ não é nada fácil - para atémdõ ) 
sentido, nós nos damos conta de q.ue ar e.xiste um furo, constitutivo, 
que incómoda a todos e a cada um. Trata-se de dar conta da 
<.diferença do incômodo para o neurótico e o psicótico. 
Assim, por exenfplo, o _e~'ntualmeme rec<;ins-
truir um sentido - pensamos num paciente nosso, que se diz víti-
~ 
ma de uma perseguição feroz e absolutamente injusta, ~ 
~_:la deve confirmá-lo na posição que é a sua, a de "meni- . ~ 
no dos olhos de'Deus". Esta recriação de sentido nos parece ao .,,, .... 
66 
,•. 
mesmo tempo um belo e>..cmplo de lógica, e uma clara ilustração (9 
da p~ção subjetiva do psic6Lico: diferentemente do neurótico, ~ (''!: 
ele não se acusa por se~~~ilégi~:..~~~~~E~~:~. se incarno~~.~~ () 
~m preço muito alto porisLo~ . . - · -·- ··· · 
.e ···:-~o semelhante se passa com um outro psicótico, cujo problc- / ,: 
ma crucial é o de que um espírito pensa e age por ele; embora os l_ , 
. (\. 
pensamentos e ações deste espírito tenham se tomado muito mais . ,.- i 
sensatos ao longo do tratamento, ersiste a questão insolúvel d t~· · 
~~Q!..SÍ ~s.runn,.luLc:etnpr.~.um...Q r.!...,~nsand_o 1 ~\j 
em seu luj!~- Como pensanamos aí a questao doE-ie .!1? senti; (. -~-. 
iO§lEste;ujeito teve,.ªº longo das primeiras décadas da sua v.ida, \ Ív ~ _; : ; 
um pensamento que considerava como seu; só a partir de determi- -~ l-· .. ' 
· na~s acontecimet,!!.os. desencadeador~'.cose1.. é que o ~ato ~~t.»~: 
de pensar toma-se para ele uma operação ex tenor. Ele tenta afgu- ·1 (': · 
mas teorias para dar conta desta mudança.radical em sua vida, (':M 
mas seus argumentos, a partir de um certo ponto, deixam de fazer ('~ · 
sentido para quem o· escuta; tomam-se neológicos, acabam por 
cair "fora-do-discurso" ........ ·'·-·· " ,i' : · • · • 1 · · / 
~.J;,.,.\,\,1..J.n,,., f I .. :i . .. ),.. 1 
Recapitulemos os traços por assim dizer típicos que àutorcs 
í. 
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'· como Clérambault e Jaspers constatam no! fenômenos psicóticos: 
seu caráter de exterioridade à vida psíquica do sujeito, de irrupção, 
imposição, corte. ~mo poderíamos levá-los em conta no pensa: 
r mento psicanatrtico, demonstrando que a distinção entre neurose e 
psicose, hoje inteiramente diluída na psiquiatria, aí se encontra 
presente de forma essencial7 
"Jc 
Questões da psicauáliSe 
Freud sempre procurou opor as neuros e transferência às 
~oses nardsicas, ou psicoses. E_!ta delimitaç,iio é difícil e pro-
blemática em sua obra, de tal modo que muitos de seus leitores · 
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não a enéonlrnrão aí; Ioda via, a leitura feita por Lac:m nos permite 
verificá-la. 
Lncan r~~ion'!_e~l.!JlifereJlÇ_!!_9!!!1 o reconhecimento ou não 
da casrr:iÇio pelo sujeito. Este ponto tem vários desdobramento;~- -
~ ~·-·--· ··- -· ·--......... ---
implicações em seu pensamento; trata-se de escolher um viés para 
a demoostrnção que nos pennita ser ao mesmo lempo claros e 
precisos. 
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~gniíicaçã!!.:_ Uma boca, uma voz, um olhar, um ânus. um pênis, 
não são apenas in!.trumenros de sobrevivência: para que poss~ 
runcionar Pª!:ª o ser que fala, um outro registro requer sua inscri-
ção. Ell:igem uma certa hierarquização, que se dá pela ordenação 
r.ilica. Mm;. se o fulo tem algum privilégio, não é aquele que lhe 
concede sua soberania imaginária, e sim o da dialética simbólica 
de poder ou não estar ali. 
Em seu texto A perda da realidade na neurose e "ªpsicose, Assim, esla construção do corpo exige uma perda - não de um ..,._ ~l..(,,c.., 
Freud dirá que neurose e psicose diferem uma da outra, ednço do organismo, não do pênis, e sim a perda simbólica do 1"':' "'-- ".'!v,_,..1 
.lNl.l>.i: . J . d ' . - d 1:: I' k l~~-' dernostrnndo os dois passos envolvidos na construção de cada 1 ' fal<;t Um organismo po _e ser inteiro, um corpo nuo; eve in~-~J\.L<tJ 
uma delas. l!_a neurose, como primeiro passo, um impulso pulsional ~-~ ~r líe algo para que se sustente. Neste sentido, a castração é nquilo J_., ~~·~ 
s~-~?-~C~S!l.~~ tal modo que se perde jusl~aquele frng- pleno. o sentido e a sun foltu. Assim, seu acontecimento no regis-é recalcado em obediênCia à (ealida e; no segun o, , um r , _ qiie nos permite dialetizar a presençn e n ausência, o vazio e o ) 
me.nto.dn rea_U_da~~a psicose •. Q pri~_effõ ... tro simbólico é decisivo nu estruturação d~ I 
passo consisle na rejeição da realidade: e é este o que é proprya- Por conseguinte, podemos retomar a diferença estabelecida por 
~1~~~~ pat~l?gico; o seg~ndo.# .. uma tenta1i.v~. de repu:~ção, ~el.a ;::··;; 
10 
~,,. -, u.L Freud: a realidade que o neurótico acehn, .através do re.c alque, é a ( c~nçao de uma nova reahdade no lugar daquela que íoi perdfdn: A..('ff c.,1 ~~u'JCl.. realidade da cnstraçlio - ele a inscreve em si mesmo, e não tem. 
diferença fundamental.consiste, então, no primeiro pàsso: 1i"iiêu~ e f '' e·• e ·-' ''"""~como escnpnr a eh1, ainda que tente desmenti-la depois. Para o 1 
rose admite a re;iJidade; ainda que a contragosto; e a psic~se ..r. .,,.__,, &-i ~ · psicótico, pelo contrário, esta realidade fica de fora. É .o que Lacan · 
. . ta.. ~""' -· 
tejeita. ~ denomina de forclusão. · . ...-
-. - Ora, como·peosar esta realidade? Não é a realidade tal como se Dizer que a realidade da castração não se inscreve 
apresenta para o animal, ou seja. enquanto um meio ambiente onde J psicó_!!c~-º~O.. n9i.P1?~~.i~~~~~cluJ.~.~UE'ÇJí\_n~~ ~e--'···-·"-'-' 
ele vai buscar certos objetos prefixados, a pitrtir de certos compor- í/. ~jjâr"ã:ele; esim que se tmtn de um modo de presença peculiar, uma 
t;m1entos idem. Trnta-se dn re~Ji~ncli<.hUnu:ma,em.sun infinita di ver- - .. . presença exterior. E é curioso V~~ ~orno esta'_j!ré~~;;_;ç~--<l~ f~n~;;" -
sidade; da realidade simbólicn, como diz Lacan, enq~~ntÕorden~<la eri.Uãniõ.i'aio-dê.es'irutura se rcíletc mi iefi;1it1111(i;a variedade pcl~si~nre::<\s'Srrn;nãsce,moscom um organismo pronto, como dos fenômenos. Vo tan o, por exemplo, à incomprecnsibilidmle de 
qualquer animal; mas o nosso corpo tem qu11.ser .construído, lem Jasper$: se h•í dcmenJos inc;_ompreensív~h! n<> psiquis.!!!p . .do.sujc.i· · 
que ser ton~ndo rias malhas do corpo dãÍing~agem. -· lo psicóÍi~~. ép~~~e cle; ~iiõ~. ~o fozem parte; sãódt: 
O 1rnb;ll!º que.o.o; é .i.1~~f?st~ p~,:~ ~~ns;~çií~·do r:rosso éorpo fom>As_;iu~iiÇõjs-vééh.~i;;; á-~·~zes-sfio~fruiílífeS!ãçii;) 
não é só o-~~ da~·~h~.!=omida e sono, mas também 0 de J~;=Íhe 'm~issÕ:Ós 1 ensnmentos i111poslos s . lambé um exce-
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,J~~~.e~_!R: lodos os fenômenos d'! sériedo automatismo men-
tal podem ser pensados neste sentido. · 
Isto nos pennile ainda reílcxões muito curios!1-~ sobre a posição 
subjetiva do psicótico - com relação à culpn, por exemplo. A culpa 
incomoda o psicótiw.J.:om.o...a lodos nós s2..q!:le, mais uma vez, ela 
- , ---
c s tá de fora. A culpa é do Outro: por conseguinte, a lei sur.s!:. sempre 
·-.. -····· ...... ~ .... ---.. ····---- ...... ___ ... ,_____ -.:.___ 
como pcrscculóri.a. Um paciente nos dizia textualmente: "Quem faz a 
p~rneguiÇão é a lei." !::'! não q~er diz~r que um psieótico não possa 
~e~!! a.lei ç <'.~ bo~s 'co~tumes;. quer dizer simplesmente que para ele 
a lei e a culpa eslâo presentes, às vezes atônnentadÓramcntc presi:n--
tes ·::.. mas numa posição constante de. exterioridade. · 
Já nos estendemos o bastante. Esperamos que o importante 
trabalho clínico e teórico da distinção entre neurose e psicose pos-
sa prosseguir. mantendo-se fiel à orientação que se expressa em 
proposições como esta, de Joel Birman: "Seria preciso reconhecer 
a diferença do universo da loucura frente ao universo da não lou-
cura sem que isto implique na retirada da loucura do campo da 
verdade e na destituição da função sujeilo."2 // 
Cil•do por lur<n. ln: Jupcrs. Korl. l'siwpatttl"Fl" t•rul • •oi. L Uvroria l\1hcncu. 
Rio dt hnclto·Slo P•ulo. 1919. 
11irman. JucJ, ··~ ddad-'1nia lfc1fuucuda"\ in: Dcurro. Dtnihon e Amnrantc. f':.ulo (bfJ:l ), 
l'.•1v11iu1riu .'lt'm lt1uphio • Cu111rihui11leJ 1w ~JJUÚH J41 ttJ111nid p1iqwi4!1rica. Rio dr 
Janeíru. Relum.-Du.m•r.A. 1992. pg. 71·90. 
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Abuso de drogas: 
Um impasse social 
Breve introdução 
Ao tratar o abuso de drogas como um impasse social, o texto 
que se segue trabalha. com uma concepção de inserção social qui:i 
é aquela de movimentos como o da luta anti manicomial: a inser-
ção, tal como a entendemos, não consiste em adaptar as pessoas à 
sociedade tal como ela é, e sim na participação efetiva e possível 
de cada um na construção social. 
Inserção social, a nosso ver. é uma questão de cidadania. As-
sim, rejeitamos o discurso do assistencialismo e da tutela; rejeita. 
mos, igualmente, o do cinismo e da indiferc.oça. Entendemos que 
é preciso oferecer ajuda, inventando maneiras de fazer caber a 
diferença, de tomar suportável a dor. Partindo destes princípios, é 
que abordaremos aqui alguns dos impasses da inserção social re-
velados pela ocorrência da drogadição em nossa cultura 
Uma proposta de abordagem 
Esres problemas, como abordá-los aqui? São de ordem diver-
sa, convocando não só, nem principal mente, a Saúde Mental. como 
tantas outras :íreas, entidades e instituições que se ii.lleressam pe-
las políticas públicas e questões sociais. 
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A sensopercepção e suas
alterações (incluindo
também a representação
e a imaginação)
DEFINIÇÕES BÁSICAS
Todas as informações do ambiente, neces-
sárias à sobrevivência do indivíduo, chegam até
o organismo por meio das sensações. Os dife-
rentes estímulos físicos (luz, som, calor, pres-
são, etc.) ou químicos (substâncias com sabor
ou odor, estímulos sobre as mucosas, pele. etc.)
agem sobre os órgãos dos sentidos, estimulan-
do os diversos receptores e, assim, produzindo
as sensações. O ambiente fornece constantemen-
te informações sensoriais ao organismo, que, por
intermédio delas, auto-regula-se e organiza suas
ações voltadas à sobrevivência ou à interação
social.
Define-se sensação como o fenómeno ele-
mentar gerado por estímulos físicos, químicos
ou biológicos variados, originados fora ou den-
tro do organismo, que produzem alterações nos
órgãos receptores, estimulando-os. Os estímu-
los sensoriais fornecem a "alimentação senso-
rial" aos sistemas de informação do organismo.
As diferentes formas de sensação são geradas
por estímulos sensoriais específicos, como os
visuais, táteis, auditivos, olfativos, gustativos,
proprioceptivos e cenestésicos.
Vov percepção entende-se a tomada de cons-
ciência, pelo indivíduo, do estímulo sensorial.
Arbitrariamente, então, atribui-se a sensação à
dimensão neuronal, ainda não plenamente cons-
ciente, no processo de sensopercepção. Já a per-
cepção diz respeito à dimensão propriamente
neuropsicológica e psicológica do processo, à
transformação de estímulos puramente senso-
riais, em fenômenos perceptivos conscientes.
Piéron (1996) define percepção como a tomada
de conhecimento sensorial de objetos ou de fa-
tos exteriores mais ou menos complexos. Toda
percepção fornece ao indivíduo um percepto,
mais ou menos definido.
A diferenciação entre percepção e apercep-
ção é mais sutil e polémica. O termo apercep-
ção foi introduzido pelo filósofo Leibniz (1646-
1716), querendo significar a plena entrada de
uma percepção na consciência e sua articula-
ção com o resto dos elementos psíquicos. Para
ele, aperceber é perceber algo integralmente,
com clareza e plenitude, por meio de um reco-
nhecimento ou identificação do material per-
cebido com o preexistente. Jung define a aper-
cepção como "um processo psíquico em virtu-
de do qual um novo conteúdo é articulado de
tal modo a conteúdos semelhantes já dados que
se pode considerar imediatamente claro e com-
preendido". Nesse caso, a apercepção seria pro-
priamente uma gnosia, ou seja, o pleno reco-
nhecimento de um objeto percebido (Cabral e
Nick, 1996).
Deve-se ressaltar que a maioria dos autores não
faz diferença entre percepção e apercepção. Da
mesma forma, vários psicopatólogos preferem não
separar a sensação da percepção e denominam o
fenómeno simplesmente de "sensopercepção".
DELIMITAÇÃO DOS CONCEITOS DE
IMAGEM E DE REPRESENTAÇÃO
O elemento básico do processo de sensoper-
cepção é a imagem perceptiva real, ou simples-
82 PAULO DALGALARRONOO
mente imagem. A imagem se caracteriza pelas
seguintes qualidades:
• nitidez, (a imagem é nítida, seus contornos
são precisos).
• corporeidade (a imagem é viva, corpórea,
tem luz, brilho e cores vivas).
• estabilidade (a imagem percebida é estável,
não muda de um momento para outro).
• extrojeção (a imagem, provinda do espaço
externo, é também percebida nesse espaço
externo).
• ininfluenciabilidade voluntária (o indivíduo
não consegue alterar voluntariamente a ima-
gem percebida).
• completitude (a imagem tem um desenho
completo e determinado, com todos os deta-
lhes diante do observador).
Devemos distinguir o fenómeno imagem do
fenómeno representação. Ao contrário da ima-
gem perceptiva real, a imagem representativa
ou mnêmica (representação) caracteriza-se por
ser apenas uma revivescência de uma imagem
sensorial determinada, sem que esteja presente
o objeto original que a produziu.
A diferença entre a experiência vívida da
sensopercepção e as experiências da imagina-
ção e da representação são bem descritas pelo
criador da psicologia empírica, o filósofo inglês
David Hume (1973): "Todos admitirão sem
hesitar que existe uma considerável diferença
entre as percepções da mente quando o homem
sente a dor de um calor excessivo ou o prazer
de um ar moderadamente tépido e quando re-
lembra mais tarde essa sensação ou a antecipa
pela imaginação. Essas faculdade podem re-
medar ou copiar as percepções dos sentidos,
mas jamais atingirão a força e a vivacidade do
sentimento original. O máximo que podemos
dizer delas, mesmo quando operam com todo o
seu vigor, é que representam o seu objeto de
maneira tão viva que quase se poderia dizer
que os vemos ou sentimos. [...] O mais vivo
pensamento é ainda inferior à mais embotada
das sensações".
Representação é a "re-apresentação" de
uma imagem na consciência, sem a presença
real, externa, do objeto que num primeiro mo-
mento gerou uma imagem sensorial.
A imagem representativa ou mnêmica (re-
presentação) caracteriza-se por:
• Pouca nitidez (os contornossão, geralmen-
te, esfumado).
• Pouca corporeidade (a representação não
tem a vida de uma imagem real).
• É instável (a representação aparece e desa-
parece facilmente do campo de consciência).
• Introjeção (a representação é percebida no
espaço interno).
• Incompletude (a representação tem um "de-
senho" indeterminado, apresentando-se a
nós geralmente incompleta e apenas com al-
guns detalhes).
Tem-se alguns subtipos de imagem represen-
tativa:
• Imagem eidética (eidetismo): É a evoca-
ção de uma imagem guardada na memó-
ria, ou seja, de uma representação, de for-
ma muito precisa, com características se-
melhantes a uma percepção. A imagem
eidética é experimentadas por alguns in-
divíduos que, por uma capacidade excep-
cional, conseguem "ver" com muita niti-
dez e clareza um objeto (uma cadeira, a
face de uma pessoa, etc). A evocação de
uma imagem eidética é voluntária e não
representa necessariamente sintoma de
transtorno mental.
• Pareidolias: São as imagens visualizadas
voluntariamente a partir de estímulos impre-
cisos do ambiente. A criança ao olhar uma
nuvem e poder ver nela um gato ou elefante
está experimentando o que se denomina pa-
reidolia. Da mesma forma, ocorre pareido-
lia ao se olhar uma folha com manchas im-
precisas e, pelo esforço voluntário, visuali-
zar nessas manchas determinados objetos.
Ambas formas de percepção "artificialmen-
te" modificadas devem ser classificadas
como pareidolias.
A imaginação é uma atividade psíquica, ge-
ralmente voluntária, que consiste na evocação
de imagens percebidas no passado (imagem
mnêmica) ou na criação de novas imagens (ima-
gem criada). A imaginação, ou processo de pro-
PSICOPATOLOGIA E SEMIOLOGIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS 83
dução de imagens, ocorre via de regra na au-
sência de estímulos sensoriais.
A fantasia ou fantasmaé uma produção ima-
ginativa, um produto minimamente organizado
da imaginação. No sentido psicanalítico, a fan-
tasia pode ser consciente ou inconsciente. Ela
se origina de desejos, temores e conflitos, igual-
mente conscientes ou inconscientes. A produ-
ção de fantasias é muito frequente e intensa em
crianças. Ela é às vezes dominante em determi-
nados tipos de personalidades, como nas perso-
nalidades histéricas. A produção de fantasias
tem uma importante função psicológica, no sen-
tido de ajudar o indivíduo a lidar com frustra-
ções, com o desconhecido e, de modo geral, com
seus conflitos. Muitas pessoas encontram gran-
de prazer em suas atividades fantasmáticas, e
os profissionais da criatividade (artistas, inven-
tores, poetas, etc.) dependem basicamente de
sua capacidade de produzir, desenvolver e ela-
borar suas fantasias.
ALTERAÇÕES DA SENSOPERCEPÇÃO
As alterações da sensopercepção, como as
alucinações, as ilusões visuais e outros fenôme-
nos desse tipo têm intrigado os estudiosos des-
de há séculos. Lucrécio (96-55 a.C), o filósofo
epicurista da Roma antiga, manifesta seu assom-
bro com tais fenômenos da seguinte maneira:
"...donde provém a alma e qual é a sua nature-
za e quais são essas coisas que, vindo ao en-
contro da gente acordada, mas abalada pela
doença ou mergulhada no sono, aterrorizam os
espíritos, dando-nos a ilusão de que estão diante
de nós, e os podemos ouvir, aqueles cujos ossos
tocados pela morte se encontram recobertos de
terra."
ALTERAÇÕES QUANTITATIVAS
DA SENSOPERCEPÇÃO
Neste caso, as imagens perceptivas têm uma
intensidade anormal, para mais ou para menos.
A hiperestesia é a condição na qual as per-
cepções estão anormalmente aumentadas. Os
sons são ouvidos de forma muito amplificada,
um ruído parece um estrondo, as imagens vi-
suais, as cores, tornam-se mais vivas e inten-
sas. A hiperestesia ocorre nas intoxicações por
alucinógenos (eventualmente também após in-
gestão de cocaína ou maconha), em algumas
formas de epilepsia, na enxaqueca, no hiperti-
reoidismo, na esquizofrenia aguda e em alguns
quadros maníacos.
A hipoestesia é observada em alguns pacien-
tes depressivos, nos quais o mundo circundante
é percebido como mais escuro, as cores tornam-
se mais pálidas, sem brilho, os alimentos não
têm mais sabor, os odores perdem sua intensi-
dade. A analgesia de partes do corpo, assim
como diferentes disestesias corporais, quando
não de origem neurológica, podem ocorrer em
pacientes histéricos, em hipocondríacos, soma-
tizadores e, ocasionalmente, em indivíduos sub-
metidos a estados emocionais intensos.
ALTERAÇÕES QUALITATIVAS DA
SENSOPERCEPÇÃO
São as alterações da sensopercepção mais
importantes em psicopatologia. Compreendem
as ilusões, as alucinações, a alucinose e a pseu-
do-alucinação.
O fenómeno descrito como ilusão caracteri-
za-se por uma percepção deformada, alterada,
de um objeto real e presente. Na ilusão há sem-
pre um objeto externo real, gerador do proces-
so de sensopercepção, mas tal percepção é de-
formada, adulterada, por fatores patológicos
diversos.
Ilusão é a percepção deformada
de um objeto real e presente
As ilusões ocorrem, basicamente, em três
condições:
1. Nos estados de rebaixamento do nível de
consciência, quando por turvação da consciên-
cia a percepção torna-se imprecisa, tendendo os
estímulos a serem percebidos de forma defor-
mada.
2. Nos estados de fadiga grave ou de ina-
tenção marcante podem ocorrer ilusões transi-
tórias e sem muita importância clínica.
3. Em determinados estados afetivos, por sua
acentuada intensidade, o afeto deforma o pro-
84 PAULO DALGALARRONDO
cesso de sensopercepção, gerando as chamadas
ilusões catatímicas.
Tipos de ilusão: As ilusões mais comuns são
as visuais, nas quais o paciente em geral vê pes-
soas, monstros, animais, etc, a partir de estí-
mulos visuais como móveis, roupas, objetos ou
figuras penduradas nas paredes. Também não
são raras as ilusões auditivas, nas quais, a partir
de estímulos sonoros inespecíficos, o paciente
ouve seu nome, palavras significativas ou cha-
mamentos.
AS ALUCINAÇÕES
Define-se alucinação como a vivência de
percepção de um objeto, sem que este objeto
esteja presente, sem o estímulo sensorial res-
pectivo. Há aqui uma certa dificuldade concei-
tuai. Se a percepção é um fenómeno sensorial
que obrigatoriamente inclui um objeto estimu-
lante (as formas de uma bola, o ruído de uma
voz, o odor de uma substância química) e um
sujeito receptor, como poder falar em percep-
ção sem objeto? Entretanto, a clínica registra
indivíduos que percebem perfeitamente uma voz
ou uma imagem, com todas as características
de uma percepção normal, corriqueira, sem a
presença real do objeto. Eis um desafio concei-
tuai que a patologia mental coloca à psicologia
do normal (Ey, 1973).
Alucinação é a percepção clara e
definida de um objeto (voz, ruído,
imagem) sem a presença do objeto
estimulante real
Alguns autores denominam alucinações ver-
dadeira àquelas alucinações que têm todas as
características de uma imagem perceptiva real
(nitidez, corporeidade, projeção no espaço ex-
terno, constância).
Os tipos de alucinações mais frequentes na
clínica são:
ALUCINAÇÕES AUDITIVAS
E o tipo de alucinação mais frequente. Alu-
cinações simples, nas quais se ouve apenas ruí-
dos primários, são menos encontradiças. A for-
ma de alucinação auditiva mais frequente e sig-
nificativa é a alucinação audioverbal, na qual
o paciente escuta vozes sem qualquer estímulo
real. São vozes que geralmente o ameaçam, o
insultam. Quase sempre a alucinação audiover-
bal é de conteúdo depreciativo e/ou de perse-
guição. Em alguns casos, as vozes ordenam que
o paciente faça isto ou aquilo (são as chamadas
"vozes de comando"), podendo inclusive orde-
nar-lhe que se mate. Outras vezes, as vozes co-
mentam as atividades corriqueiras do paciente:
"Olha, agora o João está indo beber água, ago-
ra ele vai lavar a mão..." (são as chamadas "vo-
zes que comentam a ação").
Embora não sejam exclusivasda esquizofre-
nia, as alucinações audioverbais são muito típi-
cas e frequentes nas psicoses esquizofrênicas.
Ocorrem alucinações audioverbais em pacien-
tes com depressões muito graves, sendo geral-
mente vozes com conteúdo negativo, de ruína,
de culpa, de doença, etc. Nos quadros manía-
cos, ocasionalmente, há alucinações auditivas
de conteúdo de grandeza, de poder, místico, etc.
Uma categoria de fenômenos muito próxi-
mos das alucinações auditivas, característicos
da esquizofrenia, são aqueles referidos como
"sonorização do pensamento", "eco do pensa-
mento" e, em certo sentido, a "publicação do
pensamento".
A sonorização do pensamento (do alemão
Gedankenlautwerden), muito próxima do eco
do pensamento é experimentada como a vivên-
cia sensorial de ouvir o pensamento, no momen-
to mesmo em que ele está sendo pensado (so-
norização) ou de forma repetida, logo após ter
sido pensado (como "eco do pensamento").
Existem dois tipos básicos de sonorização ou
eco do pensamento:
1. A sonorização do próprio pensamento,
fenómeno do tipo alucinatório no qual a vivên-
cia é semelhante a uma alucinação auditiva audi-
overbal, em que o paciente reconhece claramente
que está ouvindo os próprios pensamentos, ouve-
os no momento mesmo em que os pensa.
2. A sonorização de pensamentos como vi-
vência alucinatório-deliranteé a experiência na
qual o indivíduo ouve pensamentos que foram
"introduzidos em sua cabeça por alguém estra-
nho" e que são agora ouvidos por ele.
PSICOPATOLOGIA E SEMIOLOGIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS 85
Na publicação do pensamento, o paciente
tem a nítida sensação de que as pessoas ouvem
o que pensa, no momento mesmo em que está
pensando.
ALUCINAÇÕES MUSICAIS
Fenómeno curioso e intrigante, a alucinação
musical é descrita como a audição de tons mu-
sicais e melodias sem o correspondente estímu-
lo auditivo externo. Esse tipo de alucinação é
relativamente raro, sendo menos observado que
outros tipos de alucinação ou de tintius. Tais
alucinações podem ser contínuas ou intermiten-
tes e, em geral, são acompanhadas de consciên-
cia clara e de crítica por parte do paciente. Elas
estão comumente associadas a déficits auditi-
vos, doenças neurológicas e transtornos psiquiá-
tricos, principalmente depressivos, ocorrendo
com maior frequência em idosos (Berrios,
1991).
ALUCINAÇÕES VISUAIS
São visões nítidas que o paciente experi-
menta, sem a presença de estímulos visuais.
As alucinações visuais podem ser simples, de-
nominadas fotopsias, nas quais o indivíduo
vê cores, bolas, pontos brilhantes, escotomas
cintilantes, etc. As alucinações visuais com-
plexas incluem figuras, imagens de pessoas
(vivas ou mortas), de partes do corpo (órgãos
genitais, caveiras, olhos assustadores, cabe-
ças disformes, etc.) de entidades (o demónio,
uma santa, um fantasma), de objetos, etc.
Podem ser visões de cenas completas (um
paciente via o seu quarto pegando fogo), sen-
do então denominadas alucinações cenográ-
ficas. Um tipo curioso de alucinação visual é
a chamada alucinação liliputiana, na qual o
indivíduo vê inúmeros personagens diminu-
tos, minúsculos, entre os objetos e pessoas
reais de sua casa. As fotopsias são relatadas
principalmente por pacientes com epilepsia.
As alucinações cenográficas e liliputianas,
mais raras, podem ser observadas nas diver-
sas psicoses e em pacientes com epilepsia.
De modo geral, embora as alucinações vi-
suais possam ocorrer em qualquer psicose, elas
são mais frequentes nas síndromes psicorgâni-
cas agudas {delirium) e nas psicoses desenca-
deadas por drogas, principalmente por substân-
cias psicodislépticas (LSD, mescalina, harmina
e harmalina, etc).
ALUCINAÇÕES TÁTEIS
O paciente sente espetadas, choques, inse-
tos ou pequenos animais correndo sobre sua
pele. Tal tipo de alucinação tátil é frequente no
delirium tremens e nas psicoses tóxicas, princi-
palmente naquelas produzidas pela cocaína. As
alucinações táteis com pequenos animais ou in-
setos via de regra ocorrem associadas ao delí-
rio de infestação (síndrome de Ekbom). Tam-
bém são relativamente frequentes as alucinações
táteis sentidas nos genitais, sobretudo em pa-
cientes esquizofrênicos, que sentem de forma
passiva que forças estranhas tocam, cutucam ou
penetram seus genitais.
ALUCINAÇÕES OLFATIVAS
E GUSTATIVAS
São relativamente raras. As olfativas mani-
festam-se em geral como o "sentir" o cheiro de
coisas podres, de cadáver, de fezes, de pano
queimado, etc. Lembranças ou sensações olfa-
tivas via de regra vêm acompanhadas de forte
impacto emocional. Ocorrem na esquizofrenia
e em crises epilépticas, geralmente parciais-
complexas ("crises uncinadas"). Um paciente
esquizofrênico nosso sentia um forte cheiro de
pus que. segundo ele, provinha de seu próprio
abdome. As alucinações olfativas em geral têm
um impacto pessoal especial, podendo estar
relacionadas à interpretações delirantes (sin-
to o cheiro de veneno de rato na comida, pois
estão tentando me envenenar). Nas alucina-
ções gustativas, os pacientes sentem na boca
o sabor de ácido, de sangue, de urina, etc,
sem qualquer estímulo gustativo presente.
Ocorrem, muitas vezes, em conjunção com as
alucinações olfativas.
86 PAULO DALGALARRONDO
ALUCINAÇÕES CENESTESIGAS
E CINESTÉSICAS
Alguns pacientes apresentam sensações in-
comuns e claramente anormais em diferentes
partes do corpo como sentir o cérebro encolhen-
do, o fígado se despedaçando ou perceber uma
víbora dentro do abdome. Tais sensações são
denominadas alucinações cenestésicas e ao fe-
nómeno geral de experimentar sensações alte-
radas nas vísceras e no corpo de modo geral,
denomina-se cenestopatia. As alucinações ci-
nestésicas são vivenciadas pelo paciente como
sensações alteradas de movimentos do corpo,
como sentir o corpo afundando, as pernas en-
colhendo ou um braço se elevando.
ALUCINAÇÕES FUNCIONAIS
Denominam-se alucinações funcionais aque-
las verdadeiras desencadeadas por estímulos
sensoriais. Note-se que a alucinação funcional
difere da ilusão, pois, enquanto a ilusão é a
deformação de uma percepção de um objeto
real e presente, a alucinação funcional é uma
alucinação (ausência do objeto) apenas desen-
cadeada por um estímulo real. Alguns pacien-
tes relatam, por exemplo, que quando abrem
o chuveiro ou a torneira da pia começam a
ouvir as vozes.
Alucinações combinadas (ou sinestesias):
São experiências alucinatórias nas quais ocor-
rem alucinações de várias modalidades senso-
riais (auditivas, visuais, táteis, etc.) ao mesmo
tempo. O indivíduo vê uma pessoa que fala com
ele, toca em seu corpo, e assim por diante. As
alucinações combinadas ocorrem com maior fre-
quência em síndromes com alteração do nível
de consciência, mas podem ocorrer também na
esquizofrenia, nas formas graves de histeria e
nas psicoses em geral.
As alucinações extracampinas são alucina-
ções experimentadas fora do campo sensoper-
ceptivo usual, como quando o indivíduo vê uma
imagem "nas suas costas" ou "atrás de uma pa-
rede". É um fenómeno raro, associados usual-
mente às psicoses.
Alucinação autoscópica: É geralmente uma
alucinação visual (mas também pode ter com-
ponentes táteis e cenestésicos), na qual o indi-
víduo enxerga a si mesmo, vê o seu corpo, como
se estivesse fora dele, contemplando-o. É um
fenómeno relativamente raro, associado à epi-
lepsia, lesões do lobo parietal e esquizofrenia.
A sensação de que há um eu dentro do próprio
corpo e um eu fora dele é denominada Doppel-
gaenger ou fenómeno do duplo. É um fenóme-
no que pode ser apenas ideativo, mas com certa
frequência é também perceptivo. No norte da
Europa, em muitos grupos culturais, há a cren-
ça de que o indivíduo é visitado por seu duplo
pouco tempo antes de sua morte (Sims, 1995).
O fenómeno do duplo ocorre em pacientes com
lesões cerebrais, no delirium, na esquizofrenia,
em intoxicações por alucinógenos e em indiví-
duos normais.Um fenómeno próximo ao Do-
ppelgaenger é & sensação de uma presença (fe-
eling ofapresence). Nesse caso o indivíduo tem
a nítida sensação de que um ser invisível o acom-
panha. Embora o paciente tenha crítica em re-
lação à natureza ilusória da experiência, a sen-
sação é tão forte que os pacientes sentem um
impulso para oferecer comida ou uma cadeira
para esse ser "acompanhante". A sensação de
uma presença ocorre em síndromes psicorgâni-
cas, na epilepsia, na esquizofrenia, em alguns
pacientes com enxaqueca e em intoxicações por
drogas (Brugger e col., 1996).
Alucinações hipnagógicas e hipnopômpicas:
São alucinações auditivas, visuais, ou táteis, re-
lacionadas à transição sono-vigília. Assim, não
são incomuns alucinações visuais (com pessoas,
objetos, animais, monstros, etc.) que surgem na
fase de transição entre a vigília e o sono. As
alucinações hipnopômpicas ocorrem na fase em
que o indivíduo está despertando. As alucina-
ções hipnagógicas surgem no momento em que
se está adormecendo. Não são sempre fenôme-
nos patológicos, podendo ocorrer em indivíduos
sem transtornos mentais. Ocorrem caracteristi-
camente na síndrome de narcolepsia.
Nas fases iniciais de muitos quadros psicó-
ticos observa-se a estranheza do mundo perce-
bido, na qual o mundo, como um todo, é perce-
bido alterado, bizarro, difícil de definir pelo
doente. O mundo parece que se transformou,
ou parece morto, sem vida, vazio, ou ainda si-
nistramente outro, estranho. Não se trata, res-
salta Ubinha (1974), de um erro de julgamento,
PSICOPATOLOGIA E S K M I O L O G I A DOS TRANSTORNOS MENTAIS 87
mas, de fato, "o próprio mundo é percebido de
outra forma, a visão de mundo é que está alte-
rada, e não o julgamento sobre ele". É um fe-
nómeno muito próximo da desrealização.
ALUCINOSE
A alucinação denominada alucinose é o fe-
nómeno pelo qual o paciente percebe tal aluci-
nação como estranha à sua pessoa. Na alucino-
se, embora o doente veja a imagem ou ouça a
voz ou o ruído, falta a crença de que comumen-
te o alucinado tem em sua alucinação. O indiví-
duo permanece consciente de que aquilo é um
fenómeno estranho, patológico, "não tem nada
a ver com a sua pessoa", estabelecendo-se dis-
tanciamento entre o indivíduo acometido e o
sintoma. Diz-se que a alucinose é um fenóme-
no "periférico ao eu", enquanto a alucinação é
"central ao eu". A alucinose é um fenómeno que
ocorre com maior frequência em quadros psi-
corgânicos.
Uma forma comum de alucinose auditiva, é
a denominada alucinose alcoólica. Ela ocorre
geralmente em alcoolistas crónicos e consiste
em vozes que falam do paciente na terceira pes-
soa ("Olha como o João está sujo hoje " ou "O
Pedro é mesmo um covarde71). Ocorre com ní-
vel de consciência preservada e, no mais das
vezes, o paciente tem uma boa crítica em rela-
ção à vivência alucinatória, reconhecendo seu
aspecto patológico.
A alucinose visual ocorre com maior fre-
quência em pacientes com déficits visuais gra-
ves (síndrome de Charles Bonnet), em pacien-
tes com tumores do pedúnculo cerebral (aluci-
nose peduncular de Lhermite) ou do tronco ce-
rebral e em intoxicações por substâncias aluci-
nógenas do tipo LSD, psilocibina, mescalina,
anticolinérgicos, ayuasca, etc.
ETIOLOGIA DAS ALUCINAÇÕES
Curiosamente, apesar de as alucinações se-
rem estudadas há quase 200 anos pelos médi-
cos e cientistas, ainda são controversas as suas
possíveis causas e mecanismos fisiológicos,
neuropsicológicos e psicológicos.
TEORIAS PSICODINAMICAS E AFETIVAS
Segundo tais linhas, as necessidades e ten-
dências afetivas, desejos e, sobretudo, os con-
flitos inconscientes estariam na base das aluci-
nações. O indivíduo projetaria no espaço exter-
no os seus desejos, temores e conflitos recalca-
dos. Assim, as alucinações fariam parte de um
processo defensivo baseado em um mecanismo
primitivo de defesa do ego, a saber, aprojeção.
Representariam, de fato, um grande movimen-
to inconsciente que o aparelho psíquico empre-
ende no sentido de expulsar de seu interior con-
teúdos conflituosos insuportáveis, material re-
calcado impossível de ser aceito pelo eu cons-
ciente. Nessa visão, as alucinações seriam um
produto análogo ao sonho. Produções do pró-
prio indivíduo que as vivência, as vozes aluci-
nadas seriam aspectos significativos dos fantas-
mas pessoais inconscientes do alucinado.
TEORIA "IRRITATIVA" CORTICAL
A noção de que as alucinações corresponderi-
am a lesões irritativas em áreas cerebrais corti-
cais, relacionadas a percepção complexa, foi in-
troduzida no final do século passado por autores
como Tamburini (Itália), Meynert (Áustria) e
Wernicke (Alemanha), entre outros, para quem,
"lesões destrutivas" produziriam déficits motores
e sensoriais (paralisias, anestesias, afasias, etc),
da mesma forma que "lesões irritativas" produzi-
riam fenômenos novos, anómalos, como convul-
sões, movimentos anómalos (em áreas motoras),
parestesias e hiperestesias (em áreas sensoriais pri-
márias) e alucinações (em áreas sensoriais secun-
dárias e de associação). As vozes do alucinado,
ou seja, as alucinações auditivas verbais seriam,
por exemplo, o produto de hipotéticas "descargas
irritativas" em áreas associativas da linguagem.
Esta teoria tem sido geralmente criticada pelo seu
aspecto demasiado simplista e mecanicista.
TEORIA NEUROBIOQUÍMICA
DAS ALUCINAÇÕES
Diversas drogas podem produzir alucinações
em indivíduos normais. As substâncias que mais
88 PAULO DALGALARRONDO
frequentemente e de forma inequívoca produ-
zem alucinações são basicamente relacionadas
a três neurotransmissores: serotonina, dopami-
na e acetilcolina. Os mais importantes alucinó-
genos indólicos, agonistas da serotonina, são o
LSD, a psilocibina, a harmina (presente na
ayahuasca ou "Santo Daime"), a dimetiltripta-
mina, a mescalina, etc. As substâncias dopami-
nérgicas, usadas rotineiramente na prática clí-
nica, que produzem alucinações, como efeito
colateral, são a levo-dopa e a bromocriptina (uti-
lizadas na doença de Parkinson). De modo ge-
ral, as substâncias com ação anticolinérgica
(substâncias atropínicas), quando usadas em
doses altas, produzem alucinações. As alucina-
ções induzidas por agentes serotoninérgicos e
dopaminérgicos via de regra ocorrem com pre-
servação do nível de consciência, sendo aluci-
nações claras e bem formadas. Já as alucina-
ções por anti-colinérgicos ocorrem associadas
a um quadro de rebaixamento do nível de cons-
ciência e de confusão mental, sendo mais co-
mumente alucinações pouco precisas e de con-
tornos pouco nítidos (Goetz e cols., 1982; Cum-
mings, 1985). Em função de tais achados, pos-
tula-se que a alucinação em indivíduos com
transtornos mentais esteja relacionada possivel-
mente à hiperativação de circuitos serotoninér-
gicos e/ou dopaminérgicos.
ALUCINAÇÕES COMO FENÓMENO
DEAFERENTAÇÃO/LIBERAÇÃO
NEURONAL
Frequentemente as alucinações musicais e
as visuais em idosos (síndrome de Charles Bon-
net) são um fenómeno de liberação neuronal
("releasing hallucination"). Tais alucinações
ocorrem com maior frequência em indivíduos
com déficits sensoriais (por exemplo, déficit
auditivo ou visual) e se atenuam ou desapare-
cem com estímulos sensoriais externos, como o
som do rádio, da televisão ou luzes fortes. As-
sim, ocorreria um fenómeno de liberação neu-
ronal associado a uma deaferentação (redução
das aferências ao SNC), por privação de estí-
mulos sensoriais. A hipótese seria de que o sis-
tema nervoso, ao ser privado de estímulos ex-
ternos, "produz" ele próprio o fenómeno sen-
sorial, para manter uma homeostase, um certo
nível de ativação básica (Fénelon e cols., 1993).
No quadro 14.1 tem-se resumidamente as di-
ferentes características das alucinações de dea-
ferentação/liberação neuronal, em contraposi-
ção às alucinações ictais (da epilepsia) e das psi-
coses funcionais.
TEORIA DA DESORGANIZAÇÃO
GLOBAL DOFUNCIONAMENTO
CEREBRAL
Nesta concepção, que segue a linha de Ja-
ckson e Ey, alterações globais e amplas do fun-
cionamento cerebral produziriam a perda das
inibições mais desenvolvidas filogeneticamen-
te e complexas funcionalmente, permitindo a
eclosão de circuitos normalmente inibidos. A
perda das inibições superiores favoreceria o
surgimento de fenômenos patológicos como as
alucinações, as ilusões e outros "automatismos
inferiores" do sistema nervoso central. Além
disso, haveria nesse processo global de desor-
ganização do cérebro uma crescente indiferen-
ciação entre mundo e perceptos internos e ex-
ternos.
TEORIA DA ALUCINAÇÃO COMO
DISTÚRBIO DA LINGUAGEM
INTERNA (INNER SPEECH)
No presente modelo, as alucinações audi-
tivas verbais são explicadas como pensamen-
tos verbais do próprio paciente, que falsamen-
te os percebe como sendo de origem externa,
como se fossem vozes de outras pessoas (e
não o que seriam de fato, ou seja "vozes in-
ternas", pensamentos de si mesmo) (Frith e
Done, 1987). O processo patológico básico
nas alucinações estaria, então, na incapaci-
dade do paciente de discriminar e monitori-
zar as suas próprias produções mentais, a sua
linguagem interna (inner speech), em contra-
posição às percepções vindas do meio exter-
no. Esta teoria, apesar de formalmente basea-
da na teoria cognitivista, tem uma interessan-
te semelhança com as concepções psicodinâ-
micas sobre a alucinação.
PSICOPATOLOGIA E SEMIOLOGIA OOS TRANSTORNOS MENTAIS 89
ESTUDOS RECENTES DE
NEUROIMAGEM FUNCIONAL
(PET E SPECT) NAS ALUCINAÇÕES
Nos últimos anos, vários grupos de pes-
quisa têm utilizado métodos de neuroimagem
funcional para identificar possíveis mecanis-
mos neuropsicológicos associados às aluci-
nações, produzindo resultados realmente in-
teressantes.
De modo geral, tem-se verificado que no
momento em que o paciente experimenta a alu-
cinação audioverbal (quando ouve as "vozes"),
são hiperativadas áreas temporais, parietais e
frontais (Friedman e Wiechers, 1996), associa-
das à produção da linguagem (áreas de Werni-
cke e de Broca). Além desses circuitos neuro-
nais associados à linguagem, também áreas lím-
bicas (hipocampo, giros para-hipocampais, do
cíngulo e regiões órbito-frontais) e subcorticais
(tálamo e gânglios da base) parecem estar im-
plicadas nos mecanismos neuronais das aluci-
nações.
É interessante notar que aqueles trabalhos
nos quais aparecem mais ativadas as áreas tem-
porais (de Wernicke). reforçam a noção de que
as alucinações seriam "vozes" "externas" que
o paciente realmente ouve (Silbersweig e cols.,
1995). Por outro lado. os trabalhos que mos-
tram ativação de áreas da linguagem associa-
das a produção verbal (área de Broca, por exem-
plo) (Mcguire e cols., 1993) favorecem a hipó-
tese de que as alucinações audioverbais sejam
de fato um produto da linguagem interna (inner
speech) do paciente, um derivado da linguagem
que ele ativamente produz (e não passivamente
recebe).
Estudos futuros deverão esclarecer melhor
a neurofisiopatologia desse intrigante fenóme-
no psicopatológico que é a alucinação.
90 PAULO DALGALARRONDO
PSICOPATOLOGIA DA IMAGINAÇÃO
E DA REPRESENTAÇÃO
A atividade imaginativa pode de fato ser
muito intensa, tanto em crianças como em al-
guns adultos com ou sem transtorno mental. Al-
gumas vezes o indivíduo normal vive tão inten-
samente a sua atividade imaginativa que chega
a ter dificuldade em diferenciá-la da experiên-
cia real. Graciliano Ramos, em seu conto
"Minsk", relata de forma expressiva algo que é
bastante comum na infância. Ele descreve como
a menina Luciana vivia muito mais imersa no
seu mundo de fantasias do que na realidade:
"Luciana estava no mundo da lua, monologan-
do, imaginando casos romanescos, viagens para
lá da esquina, com figuras misteriosas que às
vezes se uniam, outras vezes se multiplica-
vam... ". Certamente, o refúgio na atividade ima-
ginativa sempre serviu ao homem, ajudando-o
a livrar-se dos sofrimentos e limitações do coti-
diano.
ALTERAÇÕES DA REPRESENTAÇÃO
OU DAS IMAGENS REPRESENTATIVAS
A pseudo-alucinação é um fenómeno que,
embora se pareça com a alucinação, dela se afas-
ta por não apresentar os aspectos vivos e corpó-
reos de uma imagem perceptiva real. A pseu-
do-alucinação tem mais as características de
uma imagem representativa. Assim, na pseu-
do-alucinação, a voz (ou imagem visual) perce-
bida é pouco nítida, de contornos imprecisos,
sem vida e corporeidade. A vivência é projeta-
da no espaço interno, são "vozes que vêm de
dentro da cabeça, do interior do corpo". O pa-
ciente relata que "parece uma voz (ou ima-
gem)..." ou que "...é como se fosse uma voz
(ou imagem)".
Em certos casos, a chamada pseudo-aluci-
nação surge de um pensamento ou representa-
ção que, de tão intenso, ganha, por assim dizer,
sensorialidade. O pensamento é tão forte para o
paciente que "...é como se fosse uma voz inter-
na falando comigo". Embora a pseudo-aluci-
nação possa ocorrer nas psicoses funcionais e
orgânicas, ela é mais inespecífica. Pode ocor-
rer também em estados afetivos intensos, na fa-
diga, em quadros de rebaixamento do nível de
consciência e em intoxicações.
Um fenómeno semelhante à pseudo-aluci-
nação é a imagem pós-óptica. É o caso, por
exemplo, de um indivíduo que permaneceu
muito tempo estudando histologia, observando
atentamente por muitas horas no microscópio
determinadas imagens de tecidos, à noite, no
momento em que vai para a cama a fim de dor-
mir, nota a persistência de tais imagens. Obvia-
mente não é um fenómeno patológico.
Um tipo de vivência passível de ser confun-
dida com as pseudo-alucinações são as chama-
das alucinações psíquicas. Paim (1986) as des-
creve como "imagens alucinatórias sem um
verdadeiro caráter sensorial". Assim os pacien-
tes relatam a experiência de ouvirem "palavras
sem som", "vozes sem ruído", relatam que ex-
perimentaram uma comunicação direta de pen-
samento a pensamento, por meio de palavras
secretas e interiores que não soam. Tais expe-
riências não deveriam receber, a nosso ver, a
denominação de alucinação, já que lhes faltam
o caráter de sensorialidade, básico na experiên-
cia alucinatória. São experiências mais bem re-
lacionadas à esfera do pensamento e da intui-
ção.
O termo alucinação negativa para designar
a ausência de visão de objetos reais, presentes
no campo visual do paciente, também gera con-
trovérsias. Tal ausência ou falha perceptiva é,
via de regra, determinada por fatores psicogê-
nicos em pacientes histéricos ou muito sugesti-
onáveis. O indivíduo, por exemplo, sentindo-se
ameaçado, muito embaraçado ou humilhado
pela presença de uma determinada pessoa em
seu ambiente, simplesmente, por meio de um
processo inconsciente, "escotomiza", abole, tal
imagem de seu campo perceptivo. Ubinha
(1974) considera inadequado o termo alucina-
ção para tal fenómeno, preferindo denominá-lo
"cegueira histérica" ou "escotomização parcial".
Os aspectos semiológicos da sensopercep-
ção e, em particular, a questão das alucinações,
são complexos e intrigantes. Para um estudo
mais aprofundado, sugerimos as revisões de
Paim (1972), Ey (1973), Johnson (1978) e de
Lanteri-Laura(1994).
O pensamento e suas
alterações
~T?u sou, eu existo; isso é certo; mas por quan-
1—j to tempo ? A saber, por todo o tempo em que
eu penso; pois poderia ocorrer que, se eu dei-
xasse de pensar, eu deixaria ao mesmo tempo
de ser ou de existir. Agora eu nada admito que
não seja necessariamente verdadeiro: portan-
to, eu não sou, precisamente falando, senão uma
coisa que pensa [...]
Descartes (Segunda meditação, 1641)
DEFINIÇÕES BÁSICAS
Devem-se inicialmente distinguir os elemen-
tos constitutivos do pensamento que, segundo
a tradição aristotélica, são o conceito, o juízo e
o raciocínio, das diferentes dimensões do pro-
cesso de pensar, delimitadas como curso, for-
ma econteúdo do pensamento.
Sem entrar em questões filosóficas mais am-
plas, pode-se, didaticamente, afirmar que o pen-
samento se constitui a partir de elementos sen-
soriais, que, embora não sejam propriamente in-
telectivos, podem fornecer substrato para o pro-
cesso do pensar: são as imagens perceptivas e
as representações (vistos no capítulo referente
à sensopercepção).
Desde Aristóteles, os elementos propriamen-
te intelectivos do pensamento dividem-se em
três operações básicas; os conceitos, os juízos e
o raciocínio.
1. Os conceitos formam-se a partir das re-
presentações. Ao contrário das percepções (e,
em certo sentido, também das representações),
o conceito não tem elementos de sensorialida-
de, não sendo possível contemplá-lo, nem ima-
giná-lo. O conceito é um elemento puramente
cognitivo, intelectivo, não tendo qualquer res-
quício sensorial. Não é possível visualizar um
conceito, ouvi-lo ou senti-lo. Nos conceitos ex-
primem-se apenas os caracteres mais gerais dos
objetos e fenômenos.
Para a formação dos conceitos são necessá-
rios dois passos fundamentais:
• Eliminação dos caracteres de sensorialida-
de que ainda marcam essencialmente as re-
presentações. Por exemplo, quando repre-
sento uma cadeira ainda a visualizo mental-
mente, imagino uma cadeira preta, de ma-
deira, bonita ou feia, etc. Esta representa-
ção de cadeira ainda tem um forte aspecto
sensorial. Quando conceitualizo cadeira,
como um objeto de quatro pés, móvel utiliza-
do para sentar, estou suprimindo a dimensão
sensorial (no caso, aqui, visual) e ficando ape-
nas com a dimensão puramente conceituai.
• Generalização pois quando, por exemplo,
penso em "cadeira" como conceito, tal con-
ceito é válido para qualquer tipo de cadeira,
seja a que uso em minha casa, a cadeira de
trabalho, cadeira de criança, etc. Assim, o
conceito resulta da síntese, por abstração e
generalização, de um número considerável
de fenômenos singulares.
O conceito é o elemento estrutural básico
do pensamento, nele se exprimem os caracteres
essenciais dos objetos e fenômenos da natureza.
PSICOPATOLOGIA E SEMIOLOGIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS 1 2 5
2. Os juízos: formar juízos é o processo que
conduz ao estabelecimento de relações signifi-
cativas entre os conceitos básicos. O juízo con-
siste, a princípio, na afirmação de uma relação
entre dois conceitos. Por exemplo, se tomarmos
os dois conceitos "cadeira" e "utilidade", ou
seja, "qualidade de ser útil", pode-se formular
o seguinte juízo: "a cadeira é útil". Tal juízo
estabelece uma determinada relação entre es-
ses dois conceitos. O juízo tem, portanto, por
função básica formular uma relação unívoca
entre um sujeito e um predicado. Na dimensão
linguística, os conceitos se expressam, geral-
mente, por palavras e os juízos por frases ou
proposições.
3. O raciocínio: a função que relaciona os
juízos recebe a denominação de raciocínio.
O processo do raciocínio representa um modo
especial de ligação entre conceitos, de se-
quência de juízos, de encadeamento de co-
nhecimentos, derivando sempre uns dos ou-
tros. Assim como a ligação entre conceitos
permite a formação de juízos, a ligação entre
juízos conduz à formação de novos juízos, e.
dessa forma, o raciocínio e o próprio pensa-
mento se desenvolvem. No raciocínio dito
lógico, a articulação dos juízos conduz à cha-
mada conclusão.
O PROCESSO DO PENSAR
Uma outra forma de analisar o pensamento,
enquanto processo do pensar, é aquela que dis-
tingue os seguintes aspectos ou momentos do
pensamento: o curso do pensamento, a forma
ou estrutura do pensamento e o conteúdo ou te-
mática do pensamento.
O curso do pensamento é o modo como o
pensamento flui, a sua velocidade e ritmo ao
longo do tempo. A forma do pensamento é a
sua estrutura básica, a sua "arquitetura", preen-
chida pelos mais diversos conteúdos e interes-
ses do indivíduo. O conteúdo do pensamento,
por sua vez, pode ser definido como aquilo que
dá substância ao pensamento, os seus temas pre-
dominantes, o assunto em si. Há tantos conteú-
dos de pensamento quantos são os temas de in-
teresse do ser humano.
ALTERAÇÕES DOS ELEMENTOS
CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO
ALTERAÇÕES DOS CONCEITOS
Desintegração dos conceitos: Ocorre quan-
do os conceitos sofrem um processo de perda
de seu significado original. Segundo Paim
(1983), os conceitos se desfazem e uma mesma
palavra passa a ter significados cada vez mais
diversos. A ideia de determinado objeto e a pa-
lavra que normalmente a designa passam a não
mais coincidir. É comum na desintegração dos
conceitos que o sujeito passe a utilizar as pala-
vras de forma totalmente pessoal e idiossincrá-
sica. Para um paciente de Paim (1983), a pala-
vra "ateu" deixa de significar descrente de Deus
para passar a significar justamente o seu opos-
to, pois subverte o seu sentido interpretando que
ateu significa "a teu comando", ou seja, a co-
mando de Deus, crente. A desintegração dos
conceitos é bastante característica da esquizo-
frenia e pode ocorrer também nas síndromes
demenciais.
Condensação dos conceitos: Ocorre quan-
do dois ou mais conceitos são fundidos, o pa-
ciente involuntariamente condensa duas ou mais
ideias em um único conceito que se expressa
por uma nova palavra. No plano da linguagem
as desintegrações e condensações dos concei-
tos são designadas neologismos, ou seja, pala-
vras inteiramente novas ou palavras conhecidas
recebendo significados novos, completamente
idiossincrásicos.
ALTERAÇÕES DOS JUÍZOS
Juízo deficiente ou prejudicado: É um tipo
de juízo falso devido ao fato de que a elabora-
ção dos juízos é prejudicada pela deficiência in-
telectual, pela pobreza cognitiva do indivíduo;
aqui os conceitos são inconsistentes e o racio-
cínio é pobre e defeituoso. Os juízos são por
demais simplistas, concretos e sujeitos à influên-
cia do meio social. Às vezes é difícil diferen-
ciar um juízo deficiente de um delírio; de modo
geral, os erros de juízo por deficiência não são
persistentes e irredutíveis, mudam com facili-
1 2 6 PAULO DALGALARRONDO
dade e variam a sua temática de um momento
para outro.
As alterações do juízo de realidade ou delí-
rio são, de fato, as alterações do juízo mais im-
portantes em psicopatologia. Pela sua importân-
cia e extensão o tema será tratado em capítulo
específico.
ALTERAÇÕES DO RACIOCÍNIO
E DO ESTILO DE PENSAR
Antes de entrarmos na descrição das diver-
sas formas de pensar alterados, convém descre-
ver as regras básicas e funcionamento normal
do pensamento. O que caracteriza o pensamen-
to normal é ser regido pela lógica formal, bem
como orientar-se segundo a realidade e os prin-
cípios de racionalidade da cultura na qual o in-
divíduo se insere.
Os princípios básicos do pensamento lógi-
co-formal, segundo a lógica aristotélica, que
orientam o pensamento tido como normal são:
1. Princípio da identidade: Também deno-
minado princípio da não-contradição, é um
princípio muito simples e essencial do pensa-
mento lógico, que afirma que: se A é A; e B é
B; logo, A não pode ser B.
2. Princípio da causalidade: Este princípio
afirma que se A é causa de B, portanto A não
pode ser ao mesmo tempo efeito de B, ou, dito
de outra forma, se A é causa de B, então B não
pode ser ao mesmo tempo causa de A. Também
faz parte do princípio de causalidade a regra de
que se as condições forem mantidas, as mes-
mas causas devem produzir os mesmos efeitos.
3. Lei da parte e do todo: Este princípio dis-
crimina rigorosamente a parte do todo. Ele afir-
ma que se A é parte de B, então B não pode ser
parte de A. Assim, se o Brasil é uma parte da
América do Sul, então a América do Sul não
pode ser uma parte do Brasil.
Estes princípios receberam um tratamento
crítico, e, em certa medida, foram "superados"
pelo desenvolvimento da dialética hegeliana. As
principais leis da dialética que se contrapõe aos
princípios

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