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T15 - Perry ANDERSON. “Modernidade e revolução”. In Idem. Afinidades seletivas.

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T15 - Perry ANDERSON. “Modernidade e revolução”. In Idem. Afinidades seletivas.
Modernidade e Revolução
As ,elações entre as ideias de "modernidade" e de "revolução" estiveram no centro do debate intelectual e da paixão política durante a maior parte {o século )O( A publicação recente de Tudo que é sólido desmancha no ar1,, ee Marshall Berman, reabre este debate com paixão tão renovada e com tão inegável poder, que nenhuma reflexão contemporânea sobre essas questões sera capaz de se furtar a ele. Concentrar-se no argumento principal desse livro é deixar de fazer ,justiça ao seu conjunto, e não será tentado aqui. Qualquer reconstrução comprimida do esquema geral do livro terá de sacrificar a abrangência imaginativa, a amplitude da simpatia cultural e a força da inteligência que dão tanto esplendor a Tudo que é sólido desmancha no ar - qualidades que, com o passar do tempo, farão dele um clássico no seu tempo. Digamos simplesmente, desde o início, que uma análise simplificada do principal tema do livro não é uma medida adequada da importância e da atração do trabalho em tela. É assim que se abre a discussão visionária de Berman:
Existe um modo de experiência vital - experiência de espaço e tempo, do eu e do outro, das possibilidades c perigos da vida - de que participam hoje em dia homens e mulheres em todo o mundo. Darei a esse conjunto de experiências o nome de "modernidade". Ser moderno é estar num ambiente que nos promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de nós próprios e do mundo - e que, ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos.
Notas:
Marshall Berman, All that is Solid Melts into Air, Nova York, I 982, representado neste livro pela abreviação TSDA [Ed. bras.: Tudo que á sólido desmancha no ar. São Paulo, Cia. das Letras,1986].
Pag. 104
Experiências e ambientes modernos atravessam todas as fronteiras de geografia e etnia, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une toda a humanidade. Mas e uma unidade paradoxal, uma unidade de desunião: despeja tudo num vórtice de desintegração e renovação perpetuas, de luta e contradição, de ambiguidade e angustia. Ser moderno e ser parte de um universo em que, como afirmou Marx, tudo que e solido desmancha no ar".2
Qual a origem deste vórtice? Para Berman, e um conjunto de processes sociais - ele relaciona descobertas cientificas, revoluções industriais, transformações demográficas, expansão urbana, Estados nacionais, movimentos de massa - impulsionados todos, em ultima analise, pelo mercado capitalista mundial "sempre em expansão e em drástica flutuação". A esses processes, para facilidade de notação, ele da o nome de modernização socioeconômica. Da experiência da modernização, por sua vez, surgiu o que ele descreve como a
impressionante diversidade de visões e ideias que visam fazer do homem e da mulher os sujeitos, mas também os objetos, da modernização, dar a eles o poder de mudar o mundo que os esta mudando, de abrir caminho através do caos e fazer dele o seu caminho ... visões e valores que passaram a ser informalmente reunidos sob o nome de "modernismo".
A ambição do seu livro i, portanto, revelar a "dialética de modernização e modernismo" 13
Entre esses dois esta, como já vimos, o termo médio principal, a própria modernidade - que não e processo econômico nem visão cultural, mas a experiência histórica que media de um para o outro. O que define a natureza do elo entre os dois? Para Berman, trata-se essencialmente da ideia de desenvolvimento. f- este, na verdade, o conceito central do livro e a fonte da maioria de seus paradoxos - alguns deles explorados lucida e convincentemente em suas paginas, outros com menor detalhe. Em Tudo que e solido desmancha no ar, desenvolvimento significa simultaneamente duas coisas. De um lado, refere-se as gigantescas transformações objetivas da sociedade desencadeadas pelo advento do mercado capitalista mundial: ou seja, trata-se essencialmente, mas não exclusivamente, de desenvolvimento econômico. Por outro lado, refere-se as grandes transformações subjetivas da vida e da personalidade individuais que ocorrem sob o impacto das primeiras: tudo o que esta contido na noção de autodesenvolvimento, visto como o aprofundamento dos poderes humanos e o alargamento da experiência humana. Para Berman,
Notas:
2. TSDA, p. 15. ' 
3.TSDA, p. 16.
Pag. 105
a combinação desses dois sob o ritmo compulsivo do mercado mundial indica necessariamente uma dramática tensão interna nos indivíduos submetidos ao desenvolvimento nessas duas acepções. De um lado, o capitalismo na frase inesquecível de Marx no Manifesto que constitui o leitmotiv do livro de Berman - derruba todas as limitações ancestrais e as restrições feudais, a imobilidade social e a tradição monástica, numa imensa operação de limpeza do entulho cultural e tradicional por todo o mundo. Esse processo tem correspondência numa enorme emancipação da possibilidade e sensibilidade do eu individual, libertado hoje da condição social fixa e da rígida hierarquia do passado pré-capitalista, com sua moralidade estreita e restrito alcance imaginativo. Por outro lado, como o enfatizou Marx, o próprio impulso do desenvolvimento econômico capitalista gera também uma sociedade brutalmente alienada e atomizada, marcada por cruel exploração econômica e fria indiferença social, que destrói todos os valores culturais ou políticos cujo potencial ela própria concretizou. Da mesma forma, no plano psicológico, o autodesenvolvimento sob essas condições só poderia significar uma profunda desorientação e insegurança, frustração e desespero, concomitantes com - na verdade, inseparáveis de - uma sensação de crescimento e euforia, de novas capacidades e sentimentos liberados simultaneamente.
Esta atmosfera de agitação e turbulência, de vertigem e embriaguez psíquica, de expansão das capacidades experimentais e destruição de fronteiras morais e ligações pessoais, de auto crescimento e auto desorganização são fantasmas na rua e na alma - esta é a atmosfera em que nasce a moderna sensibilidade. 4
As manifestações iniciais desta sensibilidade datam do advento do próprio mercado mundial - do início do século XVL Mas em seus estágios iniciais, que para Berman se estendem até mais ou menos 1790, ela ainda carece de um vocabulário comum. Uma segunda fase então se estende por todo o século XIX, e é nesse ponto que a experiência da modernidade se traduz nas várias visões clássicas do modernismo, que Berman define essencialmente pela sua firme capacidade de apreender os dois lados das contradições do desenvolvimento capitalista - celebrando e denunciando, ao mesmo tempo, suas transformações sem precedentes do mundo material e espiritual, sem jamais converter essas atitudes em antíteses estáticas ou imutáveis. Goethe é o protótipo dessa nova visão, em seu Fausto, que merece de Berman um magnífico capítulo de análise como uma tragédia do promotor do desenvolvimento no seu sentido dual - a desestruturação do eu pela
Notas:
4. ldem, p. 18.
Pag. 106
tentativa de estruturação do mar. Marx, no seu Manifesto, e Baudelaire, nos seus poemas em prosa sobre Paris, apresentam-se aparentados na mesma descoberta da modernidade — prolongada, nas condições peculiares da modernização imposta do alto sobre sociedades atrasadas, na longa tradição literária de São Petersburgo, de Pushkin e Gogol ate Dostoievsky e Mandelstram. Segundo Berman, uma condição para a existência da sensibilidade assim criada era um publico mais ou menos unificado, que ainda tivesse a lembrança do que era viver no mundo pré-moderno.
No século XX, aquele publico se expandiu e se fragmentou simultaneamente em inumeráveis segmentos. E, com isso, a tensão dialética da experiência clássica da modernidade sofreu uma transformação critica. Apesar de ter registrado mais triunfos do que em qualquer época anterior — o século XX, de acordo com a afirmação franca de Berman, "terá sido talvez o mais brilhantemente criativoda historia do mundo"5 -, a arte modernista já não tem mais ligações com a vida comum, nem a informa: de acordo com ele, "não sabemos usar o nosso modernismo"6. O resultado foi uma polarização drástica do pensamento moderno relativo a experiência da própria modernidade, esmaecendo o seu caráter ambíguo ou dialético. De um lado, de Weber ate Ortega, de Eliot ate Tate, de Leavis ate Marcuse, a modernidade do século XX foi incansavelmente condenada como sendo uma jaula de conformidade e de mediocridade, um deserto espiritual de populações privadas de toda comunidade orgânica ou autonomia vital. Por outro lado, contra essas visões de desespero cultural, em outra tradição que se estende de Marinetti ate Le Corbusier, de Buckminster Fuller ate Marshall McLuhan, sem falar nos apologistas da própria "teoria da modernização capitalista", a modernidade foi grosseiramente vendida como a ultima palavra em excitação sensorial e em satisfação universal, em que uma civilização criada por maquinas garante para si própria emoções estéticas e felicidades sociais. O que os dois lados tem em comum e a identificação simples de modernidade com a própria tecnologia - com a radical exclusão das pessoas que a produzem e que são por ela produzidas. Como explica Berman:
Nossos pensadores do século XIX foram simultaneamente entusiastas e inimigos da vida moderna, lutando sem descanso contra suas ambiguidades e contradições; suas ironias para consigo mesmos e suas tensões internas constituíram uma fonte primaria de poder criativo. Seus sucessores do século XX se desviaram muito mais na direção de polaridades rígidas e totalizações simplificadoras. Ou se abraça a modernidade com um
Notas:
5. Idem, p. 24
6. Idem, p. 24.
Pag.107
entusiasmo cego e acrítico, ou ela é condenada com um distanciamento e um desprezo neo-olímpicos; nos dois casos, ela é concebida como um monólito, que o homem moderno é incapaz de moldar ou de alterar. Visões abertas da vida foram superadas por visões fechadas, Ambos/E superado por Ou/Ou.7 O objetivo do livro de Berman é ajudar a restaurar nosso senso de modernidade pela reapropriação das visões clássicas dela.
É possível que recuar venha a ser um meio de avanço: que a lembrança dos modernismos do século XIX nos ofereça a visão e a coragem de criar os modernismos do século XXI. O ato de lembrar pode nos ajudar a fixar o modernismo novamente nas suas raízes, onde será alimentado e renovado, para enfrentar as aventuras e perigos que o esperam à frente.'
É esta essência de Tudo que é sólido desmancha no ar. Mas o livro contém ainda um subtexto de fundamental importância, que precisa ser considerado. O título escolhido por Berman, o tema organizador do livro, veio do Manifesto Comunista, e o capítulo sobre Marx é um dos mais interessantes da obra. Mas termina por sugerir que a análise marxista da dinâmica da modernidade solapa, em última análise, e perspectiva do futuro comunista a que, segundo Marx, ela deveria conduzir. Pois, se a essência da libertação da sociedade burguesa fosse, pela primeira vez, um desenvolvimento realmente ilimitado do indivíduo - os limites do capital, com todas as suas deformidades, agora destruídos -, o que poderia garantir a harmonia dos indivíduos assim emancipados ou a estabilidade de qualquer sociedade composta por ele? Segundo Berman,
Mesmo que consigam construir um movimento comunista vitorioso, e mesmo que esse movimento gere uma revolução vitoriosa, como, em meio às marés da vida moderna, os trabalhadores construirão uma sociedade comunista forte? O que poderá evitar que as forças sociais que desmancham o capitalismo também desmanchem o comunismo? Se todas as novas relações se tornarem obsoletas antes de se ossificarem, como poderão continuar vivas a solidariedade, a fraternidade e a ajuda mútua? Um governo comunista poderia tentar controlar a alta da maré pela imposto de restrições radicais, não somente sobre a atividade e a empresa econômicas (como o fizeram até hoje todas as sociedades socialistas, bem como todos os estados capitalistas de bem estar), mas também sobre qualquer expressão pessoal cultural e politica. Mas o sucesso de tal política não seria uma traição do ideal marxista de livre desenvolvimento para todos e para cada um?
Notas:
7. ldem, p.24. 
8. ldem, p. 36. 
9. ldem, p. 104
Pag. 108
For outro lado,
se um comunismo triunfante conseguisse atravessar as comportas abertas pelo comercio livre, quem sabe quais impulses terríveis poderiam fluir junto com ele ou segui-!o por essas comportas, ou gerar impactos internes? E fácil imaginar de quantas formas uma sociedade dedicada ao desenvolvimento livre de todos e de cada um poderia desenvolver suas próprias variedades de niilismo. Um niilismo comunista poderia se provar muito mais explosivo e desintegrador do que seu predecessor burguês - apesar de provavelmente ser também mais ousado e original - porque, assim como o capitalismo corta as infinitas possibilidades da vida moderna com as limitações impostas pela exigência do lucro, o comunismo marxista poderia lançar o individuo liberado em imensos espaços desconhecidos, onde não existem quaisquer limites.
E Berman conclui desta forma: "Portanto, ironicamente, podemos ver que a dialética marxiana da modernidade repete o destine da sociedade que descreve, gerando energias e ideias que a dissolvem em seu próprio ar"'10
O argumento de Berman e original e atraente, além de ser apresentado com grande habilidade e verve. Reúne uma postura política generosa e um entusiasmo intelectual pelo assunto: as noções, tanto a de modernidade quanto a do que e revolucionário, emergem moralmente redimidas dessas paginas. De fato, para Berman o modernismo e profundamente revolucionário por definição. Como proclama a capa do livro: "Ao contrario do que supõe a crença convencional, a revolução modernista não esta terminada". A consideração da logica por trás desta alegação tem de se iniciar pelo exame dos termos principais de Berman, "modernização" e "modernismo", e da ligação entre eles através da dupla noção de "desenvolvimento". Se o fizermos, a primeira coisa a nos chamar a atenção e o fato de que, apesar de ter entendido com inigualável força de imaginação uma dimensão critica da visão marxista da historia no Manifesto Comunista, ele omite ou despreza outra dimensão não menos critica para Marx, e complementar a primeira. Para Marx, a acumulação de capital e a expansão incessante da forma da mercadoria pelo mercado são de fato um solvente universal do velho mundo social, e podem ser legitimamente apresentadas como um processo de "revolucionamento constante da produção, perturbação ininterrupta, agitação e incerteza eternas", nas palavras de Marx. Observemos os três adjetivos: constante, ininterrupta e eternas. Eles indicam um tempo histórico homogêneo, em que cada momento e perpetuamente diferente de todos os outros por ser o seguinte, mas que, pela mesma razão, e também o mesmo, como unidade intercambiável num processo de recorrência sem fim. Extrapolada
10. Idem, p. 114.
Pag. 109
do conjunto da teoria do desenvolvimento capitalista de Marx, esta ênfase gera fácil e rapidamente o paradigma da própria modernização - uma teoria politicamente antimarxista, evidentemente. Para nossos fins, entretanto, a questão relevante é que a ideia de modernização envolve uma concepção de desenvolvimento essencialmente plano - um Processo contínuo em que não existe diferença real entre uma conjuntura ou uma época e outra, a não ser em termos da simples sucessão cronológica de velho e novo, anterior e posterior, alegorias sujeitas, elas próprias, a incessante Permuta de posições em uma direção, passando o posterior a anterior, transformando-se o novo em velho com a passagem do tempo. Esta é uma descrição precisa da temporalidade do mercado e das mercadorias que circulam por ele.
	Mas a concepção do próprio Marx do tempo histórico do capitalismo como modo de produção era muito diferente desta: era uma temporalidade complexa e diferenciada, em que episódios ou eras eram descontínuosuns do, outros, e heterogêneos entre si. O caminho mais óbvio pelo qual esse tempo diferencial entre na construção do modelo capitalista de Marx passa, logicamente, pela ordem social gerada por ele. Pode-se geralmente afirmar que as classes raramente aparecem como tais no texto de Berman. A única exceção significativa é uma excelente discussão o do grau em que a burguesia jamais conseguiu se ajustar ao absolutismo do livre mercado postulado por Marx no Manifesto: mas isto tem Poucas repercussões na arquitetura do conjunto deste livro, em que existe muito pouco entre economia, de um lado, e psicologia, do outro, a não ser pela cultura do modernismo que liga as duas. A sociedade está efetivamente ausente como tal. Mas se observarmos a descrição de Marx daquela sociedade, o que encontraremos é algo muito diferente de qualquer processo de desenvolvimento plano. Ao contrário, a trajetória da ordem burguesa tal como ele a concebeu foi curvilínea. Não era uma linha reta que avançava continuamente para frente, nem um círculo a se expandir infinitamente pera fora; era claramente uma Parábola. A sociedade burguesa deveria passar por um processo de ascensão, estabilização e queda. É exatamente nas passagens dos Grundrisse que estão as afirmações mais líricas e incondicionais da unidade do desenvolvimento econômico e do individual que formam o pivô da argumentação de Berman, quando Marx descreve "o ponto de florescência' da base do modo capitalista de produção, como “o ponto em que ele se une com o desenvolvimento máximo das forças produtivas e, desta forma, com o desenvolvimento mais rico do indivíduo", que ele estipula expressamente: "Entretanto, ele ainda é esta base, esta planta .- flor, portanto, ela fenece depois de florescer e por ter florescido". “Tão logo se atinja este ponto, todo desenvolvimento posterior assume a forma de
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um declínio"11. Em termos contemporâneos, poderíamos dizer que a história do capitalismo deve ser periodizada, e que seus caminhos particulares devem ser reconstruídos se quisermos ter uma compreensão séria do significado real de "desenvolvimento" capitalista. O conceito de modernização, se usado acriticamente, cornará inviável tal possibilidade.
	Voltemos agora ao termo complementar "modernismo" usado por Berman. Embora seja posterior à modernização, no sentido de que assinala a chegada de um vocabulário coerente para uma experiência de modernidade que o precedeu, uma vez aplicado, o modernismo desconhece qualquer princípio interno de variação. Ele simplesmente se reproduz. É significativo que Berman seja levado a afirmar que no século XX a arte do modernismo floresceu, e continua a florescer, como nunca entes - apesar de protestar contra as tendências de pensamento que não permitem que essa arte se incorpore às nossas vidas. Há muitas dificuldades óbvias associadas a essa posição. A primeira é que o modernismo, como um conjunto específico de formas estéticas, é geralmente considerado como tendo se iniciado no século XX - na verdade, ele é geralmente assim considerado, em contraste com o realismo, ou outras formas clássicas dos séculos XIX, XVIII ou anteriores. Praticamente todos os textos literários tão bem analisados por Berman - os de Goethe ou Baudelaire, Pushkin ou Dostoievsky - precedem o modernismo propriamente dito, considerado no sentido geralmente aceito da palavra: as únicas exceções são os textos de ficção de Bely e Mandelstam, do início do século XX. Em outras palavras, por critérios mais convencionais, também o modernismo precisa ser enquadrado numa concepção mais diferenciada de tempo histórico. Uma segunda questão, associada à primeira, é que, quando é tratado desta forma, é impressionante o quanto foi desigual a sua distribuição geográfica. Mesmo no mundo europeu e ocidental, existem áreas importantes que não geraram praticamente nenhuma atividade modernista. A Inglaterra, a pioneira da industrialização capitalista e senhora do mercado mundial por todo um século, é um dos principais exemplos: ponta de praia para Eliot e Pound, território fechado para Joyce, ela não produziu praticamente nenhum movimento de tipo modernista nas primeiras décadas deste século - ao contrário da Alemanha ou da Itália, da França ou da Rússia, da Holanda ou dos Estados Unidos. Não é surpreendente que seja ela a grande ausente da visão de Berman em Tudo que é sólido desmancha no ar. Também o espaço do modernismo é heterogêneo.
Notas:
11. Karl Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Okonomie, Berlim, 1953, p. 439.
Pag. 111
Uma terceira objeção a leitura que Berman faz do modernismo como um todo e que ela não estabelece distinções entre tendências estéticas muito contrastantes, nem entre praticas estéticas contidas no espaço que contem as próprias artes. Mas, de fato, o que mais impressiona e a enorme variedade de relações com a modernidade capitalista na classificação ampla dos movimentos normalmente reunidos sob a rubrica comum de modernismo. Simbolismo, expressionismo, cubismo, futurismo ou construtivismo, surrealismo - existem talvez cinco ou seis correntes decisivas de "modernismo" nas primeiras décadas do século XX, das quais tudo mais que surgiu e uma mutação ou derivação. A natureza antitética das doutrinas e praticas características de cada uma seria por si só suficiente para tornar impossível a existência de um Stimmung característico definidor da tendência modernista clássica para a modernidade. Grande parte da arte produzida no interior deste espaço de posições já continha a estrutura das polaridades denunciadas por Berman nas teorizações contemporâneas ou subsequentes do conjunto da cultura moderna. O expressionismo alemão e o futurismo italiano, nas suas tonalidades respectivamente contrastadas, formam um exemplo marcante. Uma ultima dificuldade associada a posição de Berman e ser ela incapaz de oferecer, a partir de sua própria estrutura de referencia, uma explicação qualquer para a divergência, que considera inaceitável, entre arte e pensamento, pratica e teoria, na modernidade do século XX. Efetivamente, o tempo aqui se divide na sua argumentação: intelectualmente, ocorreu algo semelhante a um declínio que seu livro tenta reverter com uma volta ao espirito clássico do conjunto do modernismo, que informa igualmente a arte e o pensamento. Mas o declínio continua ininteligível no seu esquema, pois a própria modernização e percebida como um processo linear de prolongamento e expansão, que traz necessariamente consigo uma renovação constante da arte modernista.
Uma forma alternativa de compreender as origens e as aventuras do modernismo e observar com mais atenção a temporalidade histórica diferenciada em que ele se insere. Ha um meio famoso de faze-lo na tradição marxista. Foi o caminho tornado por Lukacs, que viu uma equação direta entre a mudança da postura política do capital depois das revoluções de 1848 e o destino das formas culturais produzidas pela burguesia, ou no âmbito dela, como classe social. De acordo com Lukacs, depois da metade do século XIX a burguesia se tornou puramente reacionária - abandonando, em escala continental, o conflito com a nobreza, e passando a dar combate sem tréguas ao proletariado. A partir de então, ela entra numa fase de decadência ideológica, cuja primeira expressão estética e predominantemente naturalista, mas que termina por entrar no modernismo inicial do século XX. Este esquema e amplamente condenado
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pela esquerda hoje em dia. De fato, no trabalho de Lukacs, ele propiciou analises locais muito agudas no campo da filosofia: por mais que tenha sido prejudicado por seu pós-escrito, The Destruction of Reason (A destruição da razão) não e um livro desprezível. Por outro lado, no campo da literatura, a aplicação deste esquema por Lukacs mostrou-se relativamente estéril. Nenhuma exploração lukacsiana de qualquer obra de arte modernista teve o detalhe e a profundidade de seu tratamento da estrutura das ideias em Schelling ou Schopenhauer, Kierkegaard ou Nietzsche; em contraste, Joyce e Kafka, duas de suasovelhas negras, são pouco mais que mencionados: nunca foram estudados por seus próprios méritos. O erro básico da ótica de Lukacs foi o evolucionismo: o tempo varia de uma época para outra, mas em cada época todos os setores da realidade social se movem em sincronia uns com os outros, de tal forma que o declínio em um nível tem necessariamente de se refletir em declínio em todos os outros. O resultado e a noção supergeneralizada de "decadência" - noção grandemente afetada, pode-se dizer a exaustão, pelo espetáculo do colapso da sociedade alemã e de grande parte de sua cultura estabelecida, na qual ele próprio se formou, com o advento do nazismo.
Mas, se nem o perenialismo de Berman nem o evolucionismo de Lukacs oferecem uma explicação satisfatória para o modernismo, qual seria a alternativa? A hipótese que vou esboçar rapidamente aqui e que deveríamos procurar uma explicação conjuntural para o conjunto de praticas e doutrinas estéticas classificadas como "modernistas". Esta explicação envolveria a intersecção de temporalidades diferentes, para compor uma configuração tipicamente sobre determinada. Quais teriam sido os vários tempos? Minha sugestão e que tal "modernismo" ha de ser melhor entendido como um campo de for9a cultural triangulado por três coordenadas principais. A primeira delas e uma coisa talvez sugerida por Berman numa passagem, mas que ele situa muito longe no passado, deixando de captura-la com suficiente precisão. Trata-se da codifica5ao do academicismo altamente formalizado nas artes visuais e em outras artes, que foi institucionalizado em regimes oficiais de estado e de sociedade ainda fortemente permeados, e geralmente dominados, pelas classes aristocráticas ou proprietárias de terras: classes certamente ja superadas economicamente, mas que ainda tinham o poder de estabelecer o tom politico e cultural em muitos países da Europa anterior a Primeira Guerra Mundial. As ligações entre estes dois fenômenos foram demonstradas graficamente no trabalho recente e fundamental de Arno Mayer, The Persistence of the Old Regime, cujo tema central e a extensão do domínio ainda exercido sobre a sociedade europeia ate 1914 pelas classes dominantes agraria e aristocrática (as duas nem sempre eram coincidentes, como o demonstra claramente o caso da Franca), em economias onde a indústria pesada moderna ainda re-
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presentava um setor surpreendentemente pequeno da força de trabalho ou do sistema de produçãor2. A segunda coordenada é então um complemento lógico da primeira: ou seja, o surgimento ainda incipiente, Portanto essencialmente uma novidade, nessas sociedades das principais tecnologias e invenções da segunda revolução industrial: telefone, rádio, automóvel, avião e outras. As indústrias de consumo de massa baseadas nessas novas tecnologias não tinham ainda sido implantadas na Europa, onde roupas, alimentos e mobiliário ainda eram a esmagadora maioria dos setores de bens de consumo final, em emprego e produção, até 1914.
	 A terceira coordenada da conjuntura modernista foi a proximidade imaginativa da revolução social. A extensão da esperança ou da apreensão desencadeada pela perspectiva de tal revolução foi extremamente variada; mas na maior parte da Europa, ela estava "no ar" durante a própria Belle Époque . Mais uma vez, a razão é direta: formas dinásticas do ancien regime, para usar o termo adotado por Mayer, ainda persistiam: monarquias imperiais na Rússia, Alemanha e Áustria, uma precária ordem real na Itália; até mesmo na Grã-Bretanha, o Reino Unido estava sob a ameaça de desintegração regional e de guerra civil durante os anos que precederam a Primeira Guerra Mundial. Nenhum Estado europeu tinha ainda completado a implantação da democracia burguesa como forma, nem integrado ou cooptado o movimento trabalhista como força. Os resultados revolucionários possíveis da queda da velha ordem eram assim profundamente ambíguos. A nova ordem seria ainda mais pura e radicalmente capitalista, ou seria socialista? A Revolução Russa de 1905-1907 - que concentrou a atenção de toda a Europa foi emblemática desta ambiguidade, uma revolução a um só tempo e inseparavelmente burguesa e proletária. 
	Qual a contribuição de cada uma dessas coordenadas para o surgimento do campo de força que definiu o modernismo? Pode-se sugerir, em poucas palavras, o seguinte: a persistência dos anciens régimes e do academicismo concomitante a eles ofereceu uma faixa crítica de valores culturais contra os quais as formas insurgentes de arte poderiam se medir, mas também era termos dos quais elas poderiam se articular parcialmente. Sem o adversário comum representado pelo academicismo oficial, a grande gama de novas práticas estéticas teria pouca ou nenhuma unidade: a tensão com os cânones estabelecidos e consagrados à sua frente é parte de sua definição como tais. Entretanto, ao mesmo tempo, a velha ordem, precisamente na sua coloração
Notas:
12. Arno Mayer,The Persistence of the Old Regima. Nova York,1981,p. 189-273[Ed. bras. Força da tradição - persistência do antigo regime. São Paulo, Cia. das Letras, 1987.1.
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ainda parcialmente aristocrática, oferecia um conjunto de códigos e recursos por meio dos quais era possível resistir à devastação pelo mercado - detestado uniformemente por rodas as formas de modernismo - como princípio organizador da cultura e da sociedade. Os estoques da alta cultura clássica preservados - ainda que amortecidos e deforma{os - pelo academicismo do final do século XIX poderiam ser resgatados e liberados contra ele e contra o espírito comercial daquela época, como era visto por tantos dentre aqueles movimentos. A relação entre imagistas como Pound às convenções eduardianas ou à poesia romana, do Eliot tardio a Dante ou os metafísicos, é típica de um dos lados desta situação: a iónica proximidade de Proust ou Musil das aristocracias francesa ou austríaca.
	 Ao mesmo tempo, para um tipo diferente de sensibilidade "modernista", as energias e atrações de uma nova idade da máquina eram um estímulo poderoso: estímulo refletido, de forma muito clara, no cubismo parisiense, no futurismo italiano ou no construtivismo russo. Entretanto, a condição deste interesse era a abstração das técnicas e dos artefatos das relações sociais de produção que os geravam. Nunca o capitalismo foi exaltado como tal por qualquer uma das diversas marcas de "modernismo". Mas esta extrapolação tornou-se possível exatamente pelo estado incipiente do padrão socioeconômico imprevisível que mais tarde iria se consolidar de forma tão inexorável em torno delas. Não estava claro para onde levariam os novos instrumentos e invenções. Daí a sua celebração ambidestra por parre da esquerda assim como da direita - de Marinetti a Maiakovski. Finalmente, a neblina da revolução social que cobria o horizonte durante aquela época dava a ela muito do ar apocalíptico das correntes de modernismo mais radicais e irredutíveis na rejeição global da ordem social, dentre as quais a mais significativa foi certamente o expressionismo alemão. O modernismo europeu dos primeiros anos do século XX floresceu no espaço entre um passado clássico ainda utilizável, um presente técnico ainda indeterminado e um futuro político ainda imprevisível. Ou, expresso de outra forma, ele surgiu na intersecção entre uma ordem dominante semi-aristocrática, uma economia capitalista semi-industrializada e um movimento operário semi-emergente ou semi-insurgente.
	Quando estourou, a Primeira Guerra Mundial alterou rodas essas coordenadas, mas não eliminou nenhuma delas. Durante ainda vinte anos, elas continuaram a existir numa espécie de agitada vida após a morre. Politicamente, é claro, desapareceram os Estados dinásticos da Europa Central e Oriental. Mas a classe dos junkers ainda manteve grande poder na Alemanha do pós-guerra; o Partido Radical, de base agrária, continuou a deter o poder na França da Terceira República, sem grande quebra de tom; na Grã-Bretanha,
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o mais aristocrático dos dois partidos tradicionais' o Conservador' praticamentedestruiu seu adversário mais burguês, o Liberal, e Passou a dominar rodo o período entre guerras' Socialmente' persistiu um modo de vida claramente de alta classe até o final dos anos 1930' cuja marca - que o diferente .;amente da vida dos ricos após a Segunda Guerra Mundial - foi anormalidade dos empregos. Foi esta realmente a última classe ociosa da historia das metrópoles. A Grã Bretanha, onde esta continuidade foi mais forte, iria produzir a grande representação ficcional daquele mundo no livro Dance to the Music of time, de Anthony Powell, uma lembrança não modernista da época subsequente. Na economia , as industrias de produção de massa baseadas nas novas invenções tecnológicas do inicio do século XX só conseguiram se firmar em dois países – Na Alemanha d república de Weimar e na Inglaterra durante a década de 1930. Mas em nenhum dos dois casos houve a implantação generalizada do que Gramsci viria a chamar de "fordismo", segundo o modelo já existente- havia duas décadas nos Estados Unidos. As vésperas da Segunda Guerra Mundial a Europa ainda estava mais de uma geração atrasada em relação aos Estados Unidos na estrutura de sua indústria civil e no seu padrão de consumo. Finalmente, a perspectiva de revolução estava agora mais próxima e tangível do que jamais estivera antes uma perspectiva que tinha se materializado triunfantemente na Rússia, cuias asas tinham tocado a Hungria, a Itália e a Alemanha logo no fim da Primeira Guerra Mundial, e que viria assumir uma proximidade dramática na Espanha no final desse período. Foi nesse espaço, prolongação de um terreno anterior que as formas genericamente modernistas de arte continuaram a mostrar grande vitalidade Ao contrário das obras-primas da literatura publicação durante aqueles anos' mas geradas em período anterior o teatro de Brecht foi um produção memorável exclusivo do período entre guerras na Alemanha. Outro exemplo foi a primeira emergência do modernismo arquitetônico como movimento , com a Bauhaus' Uma terceira foi o surgimento do que viria a ser de faro a última das grandes doutrinas de vanguarda na Europa - o surrealismo na França' 
Foi na Segunda Guerra Mundial' e não a Primeira' que destruiu as três coordenadas históricas em discussão, e com ela se destruiu a vitalidade do modernismo. Depois de 1945, a antiga ordem aristocrática ou agrária e seus acessórios desapareceram em todos oi países. A democracia burguesa foi finalmente universalizada. com isso, romperam-se algumas ligações críticas com o passado pré-capitalista' Ao mesmo tempo) o fordismo se instalou com toda a força. A produção e o consumo de massa transformaram as economias da Europa Ocidental segundo as linhas da norte-americana. Já não poderia persistir a menor dúvida com relação ao tipo de sociedade que essa
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tecnologia haveria de consolidar: existia agora uma civilização capitalista, opressivamente estável, monoliticamente industrial. Numa passagem maravilhosa de seu livro Marxism and Form*, Frederic Jameson capturou admiravelmente o que isto significou para as tradições de vanguarda que haviam dado tanto valor as novidades das décadas de l92b ou l93b por seu potencial onírico e desestabilizador: 'A imagem surrealista foi um esforço convulsivo de romper as formas de mercadoria assumidas pelo universo objetivo, atirando umas contra as outras com força imensa” 13. Mas a condição para o sucesso era que 
esses objetos - os lugares de oportunidade objetiva ou de revelação extranatural fossem imediatamente identificáveis como produtos de uma economia ainda não completamente industrializada e sistematizada. ou seja, que as origens humanas dos produtos desse período - sua relação com o trabalho que lhes deu origem - ainda não estivesse completamente oculta; eles ainda mostram traços da organização artesanal do trabalho em sua produção, e sua distribuição ainda é feita por uma rede de pequenos comerciantes ... O que prepara esses produtos para o investimento de energia psíquica característico de sua utilização pelo surrealismo é precisamente a marca do trabalho humano, esboçada e mal apagada; eles ainda são um gesto congelado, ainda não completamente separados da subjetividade, e portanto são ainda potencialmente tão misteriosos quando o próprio corpo humano. 14
Jameson continua:
Basta que substituamos aquele ambiente de pequenas oficinas e balcões de loja pelo marché aux puces e barracas nas ruas, o, postos de gasolina às margens das rodovias americanas, as fotografias brilhantes nas revistas ou o paraíso de celofane da drugstore americana para percebermos que os objetos do surrealismo desapareceram sem dei*ar rastros. A partir de agora, no que podemos denominar de capitalismo pós-industrial, os produtos que nos são oferecidos não têm absolutamente nenhuma profundidade: seu conteúdo plástico é totalmente incapaz de servir como condutor de energia psíquica. Desde o início, torna-se impossível qualquer investimento libidinal nesses objetos, e podemos. nos perguntar se é verdade que nosso universo objetivo é hoje absolutamente incapaz de oferecer qualquer símbolo capaz de agitar a sensibilidade humana',, se não estamos aqui na presença de uma transformação cultural de proporções extraordinárias, um rompimento histórico de um tipo inesperadamente radical.15
Finalmente a imagem ou a esperança de revolução se desfez no Ocidente o início da Guerra Fria e a sovietização da Europa oriental cancelaram
Notas:
*- Princeton, 1971. [Ed. bras,: Marxismo e forma. São Paulo, Hucitec, 1985.]
13. Marxism and Form, Princeton, 1971,1971,p.96. 
14. Ibidem, p. 103-104. 
15. lbidem, p. 105.
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todas as perspectivas realistas de derrubada do capitalismo avançado por todo um período histórico. A ambiguidade da aristocracia, o absurdo do academicismo, a alegria dos primeiros carros e filmes, a realidade palpável do socialismo desapareceram todos. Em seu lugar, reinava agora uma economia rotinizada, burocratizada, de produção universal de mercadorias, em que consumo de massa e cultura de massa tinham se transformado em dois termos absolutamente intercambiáveis. As vanguardas do pós-guerra deveriam ser essencialmente definidas contra este pano de fundo completamente novo. Não é necessário o julgamento de um tribunal lukácsiano para notar o óbvio: apenas uma parte ínfima da literatura, pintura, música ou arquitetura desse período suporta a comparação com a do período anterior. Ao refletir sobre o que chamou de "a extraordinária concentração de obras-primas nos poucos anos antes e depois da Primeira Guerra Mundial", Franco Moretti, no seu recente livro, Signs Tken for Wonders, escreve:
	Extraordinária pela quantidade, como mostra lista mais incompleta (Joyce e Valéry Rilke e Kafka, Svevo e Proust, Hofmannisthl e Musil, Apollinaire, Maiakovski), mas ainda mais que extraordinária pelo fato de aquela abundância de obras (o que já é claro hoje , depois de mais de meio século) ter representado a última estação literária da cultura ocidental. Num período de poucos anos, a literatura deu o máximo de si e parecia no limiar da abertura de novos horizontes sem limites: em vez disso, ela morreu. Alguns icebergs isolados, e muitos imitadores; mas nada que se pudesse comparar ao passado.16 
	Cometeram-se alguns exageros ao generalizar esse julgamento pera outras artes, mas não - que penal - tantos assim. Individualmente, escritores ou pintores, arquitetos ou músicos produziram obras significativas depois da Segunda Guerra Mundial. Mas os picos das primeiras décadas do século raramente, ou nunca mais, foram atingidos novamente. Nem houve movimentos estéticos de importância coletiva, operando em mais de uma forma de arte, surgidos depois do surrealismo. Somente na pintura ou na escultura, escolas e slogans especializados se sucederam uns e os outros, cada vez mais rapidamente: mas depois do momento do expressionismo abstrato - a última vanguarda genuína no ocidente - eles foram, em grande parte, funções de um sistema de galerias que necessitava de uma produção regular de novosestilos como materiais para exposição comercial sazonal, como já acontecia na haute couture: um padrão econômico que corresponde ao caráter não-reprodutível de obras "originais" nesses campos particulares. 
	Entretanto, foi nesse ponto que, quando tudo o que havia criado a arte clássica do início do século XX já estava morto, nasceu a ideologia e culto do
Notas:
16. Signs Taken for Wonders. Londres, Verso, 1983, p. 209
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modernismo. A própria concepção, como moeda de ampla circulação, é pouco anterior à década de 1950. Ela indicava o colapso generalizado da tensão entre as instituições e os mecanismos do capitalismo avançado e as práticas e os programas da arte avançada, à medida que se anexavam como uma decoração ou diversão ocasional, ou point d'honneur filantrópico. As poucas exceções do período sugerem a força da regra. o cinema de Jean-luc Godard, durante a década de 1960, talvez seja o caso mais saliente. À medida que a Quarta República passava já tardiamente à Quinta, e a França rural e provincial rapidamente se transformava por meio da industrialização gaullista que se apropriava das mais noves tecnologias internacionais, algo semelhante a um reflexo tardio da conjuntura que produziu a arte clássica inovadora do século surgiu mais uma vez para a vida. À sua própria maneira o cinema de Godard foi marcado pelas três coordenadas descritas acima. Impregnado de citações e alusões a um importante passado cultural, no estilo de Eliot; celebrante ambíguo do automóvel e do aeroporto, da câmera e da carabina, no estilo de Léger; esperançoso de tempestades revolucionárias do oriente, no estilo de Nizan. A rebelião de maio de 68, na França foi o final histórico que atribuiu validade a essa forma de arte. Régis Debray iria descrever sarcasticamente e experiência daquele ano, depois de acontecido, como uma viagem à china que - tal como a de Colombo - descobriu apenas a América: mais especialmente, desembarcou na Califórnia17. Ou seja, uma turbulência social e cultural que tomou a si própria como uma versão francesa da Revolução cultural, quando, na verdade, significou apenas a chegada há muito esperada do consumismo permissivo à França. Mas foi exatamente essa ambiguidade - horizontes abertos, em que as formas do futuro podiam assumir alternativamente as formas variáveis, seja de um novo modelo de capitalismo, seja da erupção do socialismo - que constituiu grande parte da sensibilidade original do que ficou conhecido como modernismo. Como se poderia esperar, não sobreviveu à consolidação de Pompidou que veio em seguida, nem no cinema de Godard nem em tudo o mais. O que marca a situação típica do artista contemporâneo no ocidente, pode-se afirmar, é, ao contrário, o fechamento de horizontes: sem um passado passível de apropriação nem um futuro imaginável, num presente interminavelmente recorrente. 
Isto não é manifestamente verdadeiro com relação ao Terceiro Mundo. É significativo que tantos dos exemplos de Berman do que ele reconhece como as grandes conquistas do modernismo no nosso tempo fossem extraídos da
Notas:
17 Régis Debray, “A Modest Contribution to the Rites and Ceremonies of the Tenth Anniversary”, New Left Review, 115, maio-junho 1979, p. 45-65,
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literatura latino-americana. Pois no Terceiro Mundo em geral existe hoje .uma configuração que é uma sombra do que acontecia durante a Primeira Guerra. Abundam vários tipos de oligarquias pré-capitalistas, a maior parte delas caracterizadas pela posse da terra; onde está acontecendo, o desenvolvimento capitalista é geralmente muito mais rápido e dinâmico nessas regiões do que nas áreas metropolitanas, mas é muito menos estável e consolidado; o espectro da revolução social assombra essas sociedades como uma possibilidade permanente, que já se realizou em países próximos: cuba e Nicarágua, Angola e Vietnã. São essas as condições que produziram as obras primas que se enquadram nas categorias de Berman: romances como Cien años de soledad*, de Gabriel García Márquez, ou Midnight’s Children, de Salman Rushdie, saídos da colômbia e da Índia, ou filmes como Yol, de Yilmiz Güney, da Turquia. Obras como essas, entretanto, não são expressões atemporais de um processo de modernização em constante expansão, mas surgem em constelações muito bem delimitadas, em sociedades que ainda estão diante de encruzilhadas históricas definidas. O terceiro Mundo não é a fonte da eterna juventude do modernismo. 
Até aqui, examinamos dois dos conceitos organizadores de Berman - modernização e modernismo. Vamos agora considerar o termo médio que une os dois, a própria modernidade. Esta, é preciso lembrar, é definida como a experiência vivida na modernização e que enseja o modernismo. O que é uma experiência? Para Berman, trata-se essencialmente de um Processo subjetivo dq autodesenvolvimento ilimitado, à medida que se desintegram as barreiras tradicionais do costume ou do papel na sociedade - uma experiência assustadora e hilariante necessariamente vivida de uma só vez como emancipação e provação, euforia ou desespero. É a energia dessa corrida incessante em direção às fronteiras desconhecidas da psique que assegura a continuidade histórico mundial do modernismo: mas é também uma energia que parece solapar a priori toda perspectiva de estabilização moral e institucional sob o comunismo e que, na verdade, talvez torne impossível a coesão cultural necessária Para a existência do comunismo, tornando-o algo parecido com uma contradição em termos. Como devemos entender esse argumento? 
Para entendê-lo, precisamos nos perguntar: onde Berman foi buscar essa visão de uma dinâmica de autodesenvolvimento ilimitado? Seu primeiro livro, The Politics of Authenticity, que inclui dois estudos - um de Montesquieu e outro de Rousseau - oferece a resposta. Essa ideia deriva essencialmente daquilo que o subtítulo com roda razão designa como o "individualismo
Notas:
* Ed. bras.: Cem anos de solidão. Rio de Janeiro, Record, 1967.
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radical" do conceito de humanidade de Rousseau. A análise de Berman da trajetória lógica do pensamento de Rousseau, na sua tentativa de enfrentar as consequências contraditórias desse conceito ao longo de obras sucessivas, é um tour de force. Mas a questão principal para o nosso objetivo é a seguinte. Berman demonstra em Rousseau o mesmo paradoxo que ele atribui a Marx: se o objetivo é o autodesenvolvimento sem limite, como seria possível existir uma comunidade? Para Rousseau a resposta foi expressa nas palavras citadas por Berman: "O amor do homem deriva do amor a si próprio" - "estenda o amor-próprio para os outros homens e ele se transforma em virtude"18. Berman comenta:
Era a estrada da auto crescimento, e não a da auto expressão, que conduzia ao palácio da virtude ... À medida que cada home m aprendia a expressar e ampliar a si próprio, aumentava e sua capacidade de identificação com os outros, aprofundava-se sua simpatia e empatia para com eles. 19
O esquema aqui é bem claro: primeiro o indivíduo desenvolve o eu, depois o eu entra em relação de satisfação mútua com os outros - relação baseada na identificação com o eu. As dificuldades enfrentadas por essa presunção, à medida que Rousseau tenta passar - ne sua língua - do "homem" para o "cidadão" na construção de uma comunidade livre, são então brilhantemente exploradas por Berman. O que impressiona, entretanto, é que Berman nunca nega o ponto de partida dos dilemas que demonstra. Ao contrário, ele conclui com o argumento:
Os programas do socialismo e do anarquismo do século XIX, do Estado de bem-estar do século XX e da Nova Esquerda contemporânea podem ser todos viscos como desenvolvimentos posteriores da estrutura de pensamento cujos fundamentos foram estabelecidos por Montesquieu e Rousseau. O que todos esses movimentos diferentes têm e m comum é uma forma de definir a tarefa política crucial: fazer com que a sociedade liberal moderna cumpra as promessas que fez, reformá-la - ou revolucioná-la - para realizar os ideais do próprio liberalismo moderno. A agenda do liberalismoradical, que Montesquieu e Rousseau criaram há dois séculos, ainda não foi realizada até nossos dias.20
Da mesma forma, em Tudo que é sólido desmancha no ar, ele se refere à "profundidade do individualismo oculto sob o comunismo de Marx"21 -
Notas:
18 The Politics of Authenticiry. Nova york, 1970, p. l81.
19. lbidem, p. 18l . 
20. lbidem, p. 317. 
21 TSDA, p. tz8.
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uma profundidade que, logo em seguida ele observa com grande consistência, rem de incluir formalmente a possibilidade de um niilismo radical. Entretanto, ao examinarmos os textos do próprio Marx, encontramos uma concepção muito diferente da realidade humana em operação. Aqui o eu não é anterior, mas é constituído, desde o início, pelas relações com os outros: mulheres e homens são animais sociais, cuja socialidade não é subsequente, é contemporânea com a sua individualidade. Marx escreveu que "somente em comunidade com outros cada indivíduo tem os meios de cultivar seus dons em todas as direções: somente na comunidade, portanto, a liberdade pessoal é possível" 22. Berman cita a frase, mas aparentemente sem perceber suas consequências. Se o desenvolvimento do eu está intimamente imbricado nas relações com outros, esse desenvolvimento não poderia jamais ser ilimitado e dinâmico no sentido monadológico inventado por Berman: pois a coexistência de outros seria sempre um limite, sem o qual o desenvolvimento em si nunca poderia ocorrer. O postulado de Berman é, portanto, para Marx, uma contradição em termos. 
Outra forma de dizê-lo é que Berman foi incapaz - ele e muitos outros, evidentemente - de ver que Marx possui uma concepção da natureza humana que exclui completamente o tipo de plasticidade ontológica infinita que ele próprio supõe. Isto pode parecer uma afirmação escandalosa, dado o molde reacionário de tantas ideias-padrão do que seja a natureza humana. Mas é uma simples verdade filológica, como o demonstra um exame superficial da obra de Marx, e um livro recente de Norman Geras, Marx and Human Nature - Refutation of a Legend, torna irrefutável23. Essa natureza, para Marx, inclui um conjunto de necessidades, poderes e disposições primárias - o que ele denomina, na famosa passagem dos Grundrisse acerca da possibilidade humana sob o feudalismo, o capitalismo e o comunismo, Bedürfnüse, Fahìgheiten, Kràfte, Anlagen, todos capazes de crescimento e desenvolvimento, mas não de rasura ou substituição. A visão de um impulso incontido e niilista do eu na direção de um desenvolvimento completamente sem restrições é, assim, uma quimera. Ao contrário, o "desenvolvimento completo de cada um" só será realizável se prosseguir no respeito pelo "desenvolvimento livre de todos", dada a natureza comum do que deva ser um ser humano. Nas páginas dos Grundrisse em que se baseia Berman, Marx fala sem a menor ambiguidade do "desenvolvimento completo do controle do homem sobre as forças da natureza - inclusive as de sua própria natureza',
Notas:
22. The German Ideology, Londres, 1970, p.83; citado em TSDA, p. 97. 
23. Norman Geras, Marx and Human Nature - Refutation of a Legend, Londres, 1983.
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da "elaboração absoluta de suas disposições criativas", em que “a universalidade do indivíduo... é a universalidade de suas relações reais e ideais"24. A coesão e a estabilidade que Berman duvida que o comunismo possa mostrar está, para Marx, na própria natureza humana que ele finalmente iria emancipar, muito distante de uma simples catarata de desejos amorfos. Apesar de toda a sua exuberância, a versão de Bergnan de Marx, na sua ênfase quase exclusiva na libertação do eu, chega - apesar de seus acentos radicais e decentes - desconfortavelmente próximo das premissas da cultura do narcisismo.
Para concluir: onde, então, fica a revolução? Aqui, Berman é totalmente coerente. Para ele, assim como para tantos outros na esquerda hoje, a noção de revolução está distendida em duração. Com efeito, o capitalismo já nos coloca em constante agitação nas condições de nossa vida, e nesse sentido de acordo com ele - é uma "revolução permanente": uma revolução que obriga "homens e mulheres modernos" a
aprender a ansiar pela mudança: não somente estar aberto a mudanças em suas vidas pessoais e sociais, mas exigi-las positivamente, buscá-las ativamente e realiza-las até o fim. Têm de aprender a não mais sonhar nostalgicamente com as "relações fixas e congeladas" do passado real ou fantasioso, mas ter prazer na mobilidade, desenvolver-se na renovação, buscar desenvolvimentos futuros de suas condições de vida e de suas relações com outras pessoas. 25 
O advento do socialismo não há de interromper nem desacelerar esse processo, mas, ao contrário, há de acelerá-lo e generalizá-lo. Os ecos do radicalismo da década de 1960 são inconfundíveis. A atração para essas noções está muito difundida. Mas elas não são, na verdade, compatíveis com a teoria do materialismo histórico, no sentido estrito, nem com o próprio registro da história, não importa como seja teorizado. 
Revolução é um termo com significado preciso: a derrubada política, partida de baixo, de uma ordem estatal que será substituída por outra. Nada se ganha por diluí-la ao longo do tempo, nem por estendê-la sobre rodos os departamentos do espaço social. No primeiro caso, ela se torna indistinguível de uma simples reforma - mudança política, não importa o quanto seja gradual ou descontínua, como, por exemplo: o discurso recente do eurocomunismo, ou versões cognatas da socialdemocracia. No segundo caso, ela se reduz a uma simples metáfora - que pode ser reduzida â não mais que supostas conversões psicológicas ou morais, como na ideologia do maoísmo,
Notas:
24. Grundrisse..., p. 387, 440.
 25. TDSA, p.95-6
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com sua proclamação de uma "Revolução Cultural". Contra essas tentativas de afrouxamento do valor do termo, com todas as consequências políticas, é necessário insistir que revolução é um Processo pontual, e não permanente. ou seja: uma revolução é um episódio de transformação política convulsiva, comprimido no tempo e concentrado num objetivo, que tem início determinado -.quando o antigo aparelho estatal ainda está intacto - e um término finito, quando aquele aparelho é destruído e outro é erigido para substituí-lo. A característica de uma revolução socialista que vier a criar uma genuína democracia pós-capitalista é que o novo estado há de ser verdadeiramente uma transição para os limites praticáveis de sua própria autodissolução numa vida associada da sociedade como um todo.
No mundo capitalista avançado de hoje, é a aparente ausência de tal perspectiva num horizonte próximo ou mesmo distante - a falta de qualquer alternativa imaginável ao statut quo imperial de um capitalismo de consumo - que bloqueia a possibilidade de alguma renovação cultural comparável à grande Era de Descobertas Estéticas do primeiro terço do século XX. As palavras de Gramsci' são ainda validas: 'A crise consiste precisamente do fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer; neste interregno aparece uma grande variedade de sintomas mórbidos"26. Entretanto, a pergunta é legítima: o que se poderia dizer a priori a respeito do que deva ser o novo? Pode-se talvez prever uma coisa. O modernismo como noção é a mais vazia dentre todas as categorias culturais. Ao contrário de termos como gótico, renascença, barroco, maneirismo, romântico ou neoclássico, ele não designa nenhum objeto que lhe seja próprio: falta-lhe completamente um conteúdo positivo. De fato, como já vimos, o que se esconde sob esse rótulo é uma grande variedade de práticas estéticas muito diferentes' até mesmo incompatíveis: simbolismo, construtivismo, expressionismo, surrealismo. Esses, que na verdade têm programas específicos, foram unificados post hoc num conceito abrangente cujo único referencial é a passagem em branco do tempo. Literalmente, não existe outro marcador estético tão vazio e viciado. Pois o que já foi moderno logo se torna obsoleto. A futilidade do termo, e da ideologia a ele associada, pode ser vista com toda clarezanas tentativas atuais de se agarrar aos seus destroços enquanto se tenta nadar para além deles, descritas no termo "pós-modernismo": um vazio que persegue o outro' numa regressão serial de cronologia autocongratulatória. Se nos perguntarmos qual a relação entre revolução (entendida como um rompimento pontual com a
Notas:
26. Antonio Grarnsci,seletions fom the Prison Notebooks, eds.Quintin Hoare e Geoffrey Nowell Smith, Londres, 1972, p.276.
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ordem do capital) e modernismo (entendido como o fluxo de vaidades temporais), a resposta será: ela acabaria com ele. pois uma Cultura socialista genuína não seria dedicada à procura insaciável do novo, definido apenas como o que vem depois, a ser rapidamente joga{o no entulho do velho, mas, ao contrário, seria uma cultura que multiplicasse ãs diferenças, numa variedade muito maior de estilos e práticas simultâneos do que jamais existiu antes: uma diversidade fundada numa pluralidade e complexidade muito maiores das formas possíveis de vida a serem criadas por uma comunidade de iguais, não mais divididos por classe, raça ou gênero. Em outras palavras os eixos da vida estética se estenderiam horizontalmente, não verticalmente, quando o calendário tivesse deixado de tiranizar, ou organização consciência da arte. .A vocação da revolução, nesse sentido, não seria nem o prolongamento nem a realização da modernidade, mas a abolição dela.
1983
Post-scriptum
os dois termos, "modernidade" e "revolução" parecem ter uma afinidade natural. o que é moderno é mais novo que aquilo que o precedeu: o que é revolucionário é mais avançado que aquilo que derruba - tradição", no primeiro caso, "reação", no segundo. A ligação entre os dois conceitos está na sugestão comum de um movimento de progresso, corporificado por cada um deles de forma diferente. O mais famoso emblema dessa relação é a proximidade das ideias de estética e política de "vanguarda'. Desenvolvidas independentemente, no mundo da arte parisiense e no movimento revolucionário russo do início do século XX, as duas noções se fundiram durante algum tempo na auto definição do surrealismo, que buscava estar simultaneamente à frente da mudança política e da cultural, em parte precisamente pela abolição da distinção entre as duas. “A revolução do modernizadoras” e as "revoluções modernizadoras" tornaram-se então parre do vocabulário-padrão do Ocidente depois da Segunda Guerra Mundial, quando o próprio surrealismo já estava decadente.
Entretanto, existe também uma separação entre as ideias de modernidade', e "revolução" que demanda a mesma ênfase. As duas não entraram na história no mesmo momento. O termo "revolução" - cujo sentido original foi o movimento orbital das estrelas ou a roda da fortuna - foi usado pela primeira vez no século XVII para indicar a deposição política das estruturas fundamentais do Estado e sua substituição por uma nova ordem. A primeira, e formalmente fracassada, quebra do ancien régime absolutista na Inglaterra guerra civil que estalou em 1640 - foi chamada simplesmente de a “Grande de Rebelião”.
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de Rebelião". Foi a sequencia bem-sucedida de 1688 que recebeu o titulo permanente, para os proprietários de terras e os comerciantes ingleses que a realizaram, de "Revolução Gloriosa". Já no século XVIII, todo mundo sabia -e afinal ate o próprio Luis XVI - que nome dar aos acontecimentos de 1789: não uma revolta, majestade, mas uma revolução. "Modernidade" e "modernização", por sua vez - com um uso diferente de "moderno" por oposição a antigo, significando apenas "contemporâneo" ou "recente" —, são criações do século XIX. São produtos não dos projetos de emancipação politica burguesa - os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade -, mas do impacto da transformação socioeconômica capitalista que se seguiu a eles: a incansável marcha a frente, acima de tudo, da indústria e da mecânica.
A filologia desses dois usos indica uma divergência significativa entre as con-cep9oes posteriores de "modernidade" e "revolução" do século XX. Cada noção envolve uma concepção diferente de temporalidade. O tempo característico da "modernidade" e continuo e abrangente, tal como o próprio processo de industrialização: no seu ponto máximo de extensão, nada menos do que a totalidade da própria época. Por sua vez, o tempo de uma "revolução" e descontinuo e delimitado: um ruptura finita da reprodu9ao da ordem estabelecida que, por definição, se inicia numa conjuntura e termina em outra. A "Gloria" da burguesia inglesa, da "Revolução" de 1688, estava principalmente na rapidez e na decisão da revolta e do fechamento do acordo que a concluiu. Essa distinção tem também eco numa convenção linguística. Por causa dela, não houve tensão no uso da palavra "modernismo" - como expressão artística genérica de uma experiência perpetuamente continuada de modernidade - no século XX; ao passo que a experiência da revolução não gerou equivalente semântico — o termo "revolucionismo" tem precisamente um significado depreciativo no vocabulário dos grandes revolucionários, e denota uma retorica vazia ou frases de efeito. Cada uma dessas ideias, "modernidade" e "revolução", foi sempre ameaçada como conceito critico a partir de direções opostas. A noção de modernidade e extensiva. Em consequência, foi sempre ameaçada pelo risco de diluição e banalização. Se o moderno e apenas o novo, e a passagem do tempo assegura seu progresso, qualquer coisa na experiência recente ou corrente adquire validade e significado iguais. Uma passividade e um conformismo profundos esperam atrás da próxima esquina, uma aderência inerte ao que poderíamos chamar de motus quo. Em comparação, a noção de revolução e intensiva. O perigo que a ameaça nunca foi uma dissipação, mas uma sobrecarga de significado. Ou seja, o ato deliberado de derrubar um aparelho estatal estabelecido, visto como a principal barreira politica a mudança social, fica sobrecarregado com um significado apocalíptico de uma total transvaloração de valores, em que o próprio telos de toda a historia vem a se concentrar. Nessa concepção, ativismo se transforma em voluntarismo,
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e voluntarismo em messianismo. A inflação das ideias de "modernidade" e "revolução" conduz assim a direções opostas. Mas e significativo que elas poderiam ter se cruzado num hibrido estranho, na obra do pensador europeu que, mais que qualquer outro, tentou unir os motifs das duas - Walter Benjamin. Seu conceito de Jetztzeit combina precisamente o fluxo continue do novo, que e a característica do moderno, com a súbita explosão transfiguradora do messiânico nele contido, ou seja, o sinal da revolução, nas versões estridentemente trombeteadas dos dois. O alerta modernista e a esperança milenária se entrelaçam nas Theses on the Philosophy of History (Teses sobre a filosofia da Historia), sem esgotar a riqueza dos dois no final dos anos 1930.
A situação intelectual de hoje i muito diferente da do tempo de Benjamin. As noções de modernidade e de revolu9ao estão sob ataque generalizado, mas não de forma igual. A rejeição da ideia de revolução politica ou social no Ocidente e anterior ao questionamento mais recente de modernidade, e mais absoluto que ele. Mas os dois Fenômenos sempre estiveram ligados. Um sintoma foi a carreira do principal profeta contemporâneo do "pós-modernismo", o Frances Jean-Franfois Lyotard. Inicialmente um militante do grupo de extrema esquerda Socialisme ou Barbarie, dedicado ao objetivo de uma revolução socialista libertaria, posteriormente arauto e entusiasta da Revolta de Maio na Franca, já no final dos anos 1970 ele saudava o governo conservador de Giscard d'Estaing como uma barreira contra os perigos do comunismo, e é hoje uma voz do establishment cultural sob o regime de Mitterand. O repudio a revolu9ao abriu o caminho para a nega9§o de um modernismo por demais contaminado por ela, na visão de Lyotard. Essencialmente, o que define a modernidade para esse teórico da pós-modernidade?
Primeira e principalmente, estruturas narrativas que buscam tornar a historia inteligívelcomo processo de desenvolvimento: acima de todas, naturalmente, o marxismo. Para Lyotard, essas narrativas trazem consigo a pre-sun9ao de um sujeito universal e de um objetivo predeterminado - a humanidade e sua emancipa9ao Final. Filosoficamente, sua contrapartida e a premissa de uma identidade individual persistente e recuperável através ate mesmo da mais extrema turbulência e Fragmenta9ao psíquica. Os correlatos dessa identidade na estética modernista são as ilusões de significado e os resíduos de representa9ao. Da mesma Forma, a ciência moderna imaginou a existência de uma logica geral de pesquisa cientifica envolvendo regras gerais de pesquisa e metas comuns de acordo final. Todas essas figura9oes esmaecestes da modernidade estão condenadas pelo veredicto da condi9ao espetacular
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que se seguiu a ela - histona sem narrativa, indivíduos sem identidade, discurso sem significado, arte sem representação, ciência sem verdade. No lugar de tudo isso, Lyotard propõe a disputa de uma infinidade de jogos de linguagem, o paralogismo de pianos conceituais incompatíveis, a insinuação do inapresentável, a miniaturização do passado e - acima de tudo - o culto das intensidades indizíveis do instante libidinal: no fim, o único arbitro e valor da existência pós-moderna. Politicamente, as consequências desse extasiamento degradado são bastante obvias. Todo o resto pode desaparecer volatilizado no misturador do pós-modernismo, mas o capitalismo, como motor de sua energética, continua intacto. "Le capital fait jouir" - a lição de Lyotard27 — e o slogan de Dioniso na Disneylândia. Intelectualmente, essa critica da modernidade e trivial. Nenhuma meta-narrativa e tao abrangente ou especulativa quanto a da própria "condi9ao pós-moderna". A linica identidade que certamente não e questionada e a do seu autor, sempre pronto a protestar que o significado por ele proposto foi mal interpretado e só admite representa9ao em fotografia ou na televisão. A fraqueza ultima dessas alegações particulares da crise do modernidade e do advento da pós-modernidade pode ser observada na tentativa de se apresentarem - apesar de tudo - envoltos no prestigio do modernismo, do qual o pós-modernismo e apresentado como condição ou complemento, assinando assim seu próprio certificado de redundância.
A exploração da modernidade feita por Marshall Berman em Tudo que e solido desmancha no ar e antitética em espirito e substancia a essa construção parasítica da pós-modernidade. O tema central de Berman e a ligação entre o desenvolvimento socioeconômico capitalista - tudo aquilo que a partir do século XIX passou a receber o rotulo de "moderniza9ao" — e aquele autodesenvolvimento individual que Marx defendeu em Grundrisse como a medida da verdadeira modernidade - "aquele exercício absoluto das potencialidades criativas que transforma o desenvolvimento de todos os poderes humanos num fim em si mesmo", de forma que o homem "lute, nao para continuar a ser o que já se tornou, mas para continuar o movimento absoluto de tornar-se". Na era da produção capitalista, escreveu Marx, "esse exercício complete do conteúdo humano aparece como um esvaziamento complete, como uma alienação total", contra a qual "o mundo infantil da
Notas:
27. Jean-Francois Lyotard, Economif Libidinale, Paris, 1974, p. 117 e seg.
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Antiguidade" poderia parecer - e de fato era - "mais altaneiro em todas as questões onde se buscam formas fechadas ou limites dados". Mas essa pré-modernidade só poderia oferecer "satisfação de um ponto de vista limitado". Em contraste, "o moderno não oferece satisfa9ao; ou onde aparece satisfeito consigo próprio, e mesquinho"28. O livro de Herman e uma defesa sustentada e uma ilustração da grandeza dessa insatisfa9ao peculiarmente moderna que se expressou nas sucessivas formas de arte modernista. Herman define a característica essencial dessa modernidade como a experiência simultânea de libertação e desonenta9ao, euforia e angustia pessoais, causadas pela destrui-930 das formas tradicionais e costumeiras de vida no vórtice da modernização capitalista - o sentido de um eu a uma só vez emancipado e ameaçado, sem as restrições nem as prote9oes da ordem social pré-capitalista. Modernismo e a captura estética dessa ambiguidade construtiva da experiência da modernidade - seus artistas, a partir de Baudelaire, a um só tempo "inimigos e entusiastas", como diz Herman, da vida moderna, em que tudo que e solido - e portanto tranquilizador — evapora-se no ar.
Pode-se ver que a descrição do modernismo de Herman, cujo surgimento se estende de Goethe ate Marx e de Baudelaire ate Dostoievsky e Mandeltam, prosseguindo ate Robert Moses, ignora toda proibi9ao da ideologia pós-modernista, que ele rejeita expressamente na conclusão. Essa descrição gera uma narrativa histórica emocionante, construída sobre uma serie de obras de arte que geralmente se mantem classicamente representacionais, para traçar não uma abolição metafisica da identidade pessoal, mas as profundas transformações sociais dessa identidade nas enormes forças impessoais que a arrancam da fixidez de suas amarrações usuais. O poder da visão de Herman vem da profundidade imaginativa com que ele apreende as mudanças reais nas vidas de milhões de seres humanos a medida que eram - e continuam a ser - atirados no vórtice da industrialização capitalista, ou ate mesmo da desindustrialização atual. E muito mais que um simples construção intelectual, organizado mais ou menos superficialmente de um arrastão do passado. Politicamente também, ela respira uma generosidade e uma confiança inabaláveis nas possibilidades do futuro, sem qualquer tra9o de complacência, para com o presente, do discurso característico da pós-modernidade.
Ainda assim, parece-me haver ainda uma tensão não resolvida no livro de Herman. Ele afirma que a experiência da modernidade que produziu as obras clássicas do modernismo continua hoje ininterrupta. Se isso e verdade, será
Notas:
28. Grundrisse..., p. 387-8.
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que ela continua a reproduzir um modernismo contemporâneo comparável? Aqui, ele parece hesitar. For um lado, ele sugere que sim - que não faltam obras da imaginação absolutamente equivalentes aquelas do século XIX e do inicio do XX. Mas de outro, ele insiste na importância de uma lembrança hoje do modernismo clássico, para a renova9ao de uma vitalidade cultural mais ampla — além dos casos isolados. Assim como o modernismo clássico nunca se desligou unilateralmente das tradi9oes anteriores, também um modernismo contemporâneo não pode dar as costas ao seu antecessor - conforme o discurso do pós-modernismo gostaria que fizéssemos, quando anuncia uma sensibilidade e uma época completamente novas, definidas precisamente pela indiferen9a com rela9ao ao passado. Esta ênfase de Berman não e facilmente conciliável com a primeira. Seria o modernismo uma tradi9ao a ser resgatada - portanto uma tradi9ao de alguma forma desgarrada ou esquecida - ou seria uma fonte que se renova constantemente nas nascentes da vida contemporânea comum?
Minha opinião e mais próxima da primeira dessas posi9oes, mas com a diferen9a de que e difícil acreditar que o modernismo clássico poderia ser restaurado, já que ele parece ter sido claramente o produto de uma conjuntura histórica particular que se estende da Belle e porque ate a Segunda Guerra Mundial, que agora já e passado no mundo metropolitano — mesmo que se possa encontrar alguma coisa parecida com uma versão dele no mundo subdesenvolvido de hoje. Por outro lado, não d possível insistir que a arte característica que sucedeu ao modernismo clássico no Ocidente e geralmente comparável a ele em vitalidade ou estatura - e muito menos que alguma cultura globalmente superior - que inclui formas superiores de historia, filosofia, ciência e politica - tenha surgido depois dela. Muito pelo contrario: julgados pelos mesmos padrões do período 1900-1945, as ultimas décadas podem ser vistas como uma era do latão nos países capitalistas avan9ados —desde que ninguém se esque9a de que tal julgamentonão exclui alguns picos de eminencia aqui e ali. Essa relativa estagna9&o - talvez apenas uma pausa -pode, por sua vez, relacionar-se com o bloqueio das esperan9as ou dos temores de mudan9a social fundamental no Ocidente.
Marshall Berman respondeu eloquentemente e com censuras a essa crfti-ca29. A substancia de sua resposta e dupla. Por que o desapontamento dos sonhos revolucionários deveria condenar os artistas ao silencio? Afinal, não 6 verdade que a derrota da Revolu9ao Francesa propiciou o surgimento do Ro-
Notas:
29. "The Signs in the Street - A Response to Perry Anderson", New Left Review, \ 44, março-abril 1984, p. 114-23.
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mantismo? Ao mesmo tempo, será quê a depreciação da corrente principal da cultura contemporânea em nome de um passado melhor não seria uma forma conhecida de elitismo? Já que a experiência social e existencial básica da modernidade, como descrita por Marx e por Baudelaire, ainda está manifestamente em andamento, não estaria o modernismo como resposta criativa a ela, igualmente destinado a persistir? Berman observa com muita razão que a perda de contato com a substância e comi o fluxo da vida diária é um risco ocupacional dos intelectuais. Mas se nos mantivermos atentos a isso - como ele demonstra estar por meio de uma série de expressivas fotografias das ruas de Nova York - em vez de procurarmos em vão por obras-primas perdidas ou por revoluções perdidas, veremos que não existe razão para escrever obituário prematuro do modernismo. Segundo Berman, "talvez a vida seja dura, mas es pessoas não desistiram: a modernidade está viva e bem"30.
***
A força dessa resposta é inegável - assim como a maior parte dos escritos de Berman, ela é eloqüente e persuasiva. Em particular, ela ressoa com uma atitude absolutamente compreensível e salutar diante de qualquer recuo cultural da época, que é sentido com mais força na esquerda. Temos somente uma vida para viver, com um conjunto possível de experiências diretamente relacionadas com ela. Se não dermos valor a uma, não seríamos obrigados a depreciar o outro? Parece haver algo inerentemente mutilador e autodestrutivo na emissão de um julgamento restritivo da auto expressão coletiva da época em que se vive. Ainda assim, apesar de roda a força da objeção instintiva, os socialistas podem e devem fazer certas distinções quanto a essa questão. Berman está completamente correto quando enfatiza as fontes constantes de criatividade humana como tal, independentemente da conjuntura histórica. É possível que ele tenha a tendência a reduzir a importância dessas fontes em Tudo que é solido desmancha no ar, onde qualquer concepção da humanidade natural em si parece geralmente estar diluída. Mas esse potencial criativo se realiza de formas muito diferentes em diferentes sociedades e épocas. No nível mais simples e corriqueiro, a capacidade de dar forma a uma vida nas relações imediatas de amor e solidariedade não se distribuiu uniformemente ao longo da história. O Terceiro Reich não permitiu tantas oportunidades para tal capacidade quanto o Segundo, para citar apenas dois exemplos de poder opressivo de classe - apesar de, como nos lembra o recente
Notas:
30. Ibidem, p. 121.
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épico do cinema alemão, Heimat até mesmo sob o governo nazista vidas apolíticas decentes e dignas foram vividas' Os Estados Unidos de Reagan, apesar de toda a sua brutalidade e exploração, ofereceram mais espaço Para aquele tipo de realização - que é essencialmente o que Berman quer dizer com suas vinhetas sobre Nova York. A Suécia contemporânea poderia oferecer qualitativamente ainda mais. 
As condições históricas de criação artística não são idênticas às de uma moderada satisfação popular. A primeira é necessariamente pública, enquanto a segunda pode continuar sendo privada. Acima de tudo, em sociedades divididas em classes, a divisão do trabalho geralmente restringe a produção de uma ampla gama de formas de arte - aquelas que exigem qualificações mais especializadas - a uma parcela relativamente Pequena e privilegiada da população. Nesse sentido, não existe necessariamente uma tradução da experiência popular em criação estética. A afirmação de Berman de que, como "as pessoas não desistiram", "a modernidade está viva e bem", não significa que ela esteja em boa forma - como ele parece às vezes Pronto a admitir. As raízes sociais da validade cultural são variáveis, e geralmente enigmáticas apesar de, somos forçados a crer, não indecifráveis' Mas têm de ser exploradas de formas diferentes em cada caso, conjuntura Por conjuntura, país por país. É por isso que parece sensato discutir as origens do modernismo no século XX com mais detalhe. Ao esclarecermos o tipo mais específico de modernidade que o gerou, talvez possamos descobrir Por que ele decaiu desde então. Esse julgamento - de um declínio - não pode ser considerado escandaloso. A ligação à própria época é humanamente compreensível e politicamente indispensável para a vontade de mudança. Não é acidental o fato de ter sido o maior político conservador do pós-guerra, Charles de Gaulle, um homem cuja imaginação era de muitas formas firmemente ancorada no passado, quem tenha afirmado: "Il faut se marier à son temps" - mesmo que a metáfora conjugal, não necessariamente aceitável, tenha expressado sua ambivalência. Mas, culturalmente, é possível um distanciamento maior' Ninguém duvida, nem se surpreende, que a pintura inglesa do século XIX tenha sido esparsa e medíocre comparada à francesa, ou que a filosofia espanhola não se pudesse comparar à alemã. Poucas Pessoas contestariam que as letras romanas do século I d.C. tenham sido superiores às do século III, ou que a escultura grega do século M a.C. era menos desenvolvida do que a do IV. Contrastes como esses - entre países ou entre períodos - são comuns na história da arte: não é apenas natural que eles tenham de ser escritos, é indispensável. Não há qualquer razão por que o século XX tenha de ser protegido. Finalmente, a insurreição política é diferente da expressão artística, ou da experiência da vida privada, como registro da realização do potencial humano.
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Processos revolucionários, num mundo dominado pela contra revolução, não trazem realização automática para os que deles participam, como descobriram as gerações de 1789 e 1917. Nem, de outra parte, produzem eles grande arre - para a qual as circunstâncias da Santa Aliança ou o bloqueio da Entente são pouco propícias. Mais comumente, ela vem precedida de importantes escolas ou descobridores estéticos, que então acompanham sua provação - David ou Boullée na França, Malevich ou Lissirski na Rússia, talvez Machado ou Lorca na Espanha. Mas, fundamentalmente, os tempos dos dois não são os mesmos. Foi Antonio Gramsci quem avisou, que "mudanças nas formas de pensar não acontecem em explosões rápidas simultâneas ou generalizadas", e que a "explosão de paixões políticas" de um movimento revolucionário "não deve ser confundida com transformações culturais, que são lentas e graduais"31. Então, que ligação existe entre modernidade e revolução no século XX, se existe uma separação tão básica entre os ritmos e as naturezas dos dois?
O modernismo, como conjunto complexo de práticas estéticas que surgiu primariamente depois de 1900, apesar de só ter sido batizado como tal cinquenta anos depois, foi o produto de uma forma historicamente instável de sociedade e de uma época de indecisão, na qual viveram, como se imediatamente possíveis, futuros drasticamente variáveis - importante entre eles, mas não exclusivamente, a revolução socialista. Tal incerteza abrangente e vitalizante foi um constituinte fundamental do que veio a ser chamado de modernismo. Desde a Segunda Guerra Mundial, o ocidente passou por uma constelação oposta com exceção da breve turbulência social do final da década de 1960, rodas as coordenadas institucionais básicas dos principais países industriais continuaram imutáveis, à medida que o capitalismo se ancorava naquelas estruturas - por mais parciais e imperfeitas que fossem da democracia

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