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Navegante luzda Realização Este projeto foi contemplado pelo Ministério da Cultura e pela Fundação Nacional de Artes – FUNARTE no Edital Bolsa Funarte de Estímulo à Produção em Artes Visuais. Distribuição Gratuita - Proibida a Venda Marisa Mokarzel Navegante Miguel Chikaoka e o navegar de uma produção experimental 2014 Kamara Kó Fotografi as Belém - PA 1a Edição luzda Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M716n Mokarzel, Marisa. Navegante da luz: Miguel Chikaoka e o navegar de uma produção experimental / Marisa Mokarzel. - 1. ed. - Belém : Kamara Kó Fotografi as, 2014. 120 p. : il. ; 24 cm Projeto contemplado pelo Edital Bolsa Funarte de Estímulo à Produção em Artes Visuais, 2013. ISBN 978-85-62035-03-6 1. Chikaoka, Miguel, 1950 - . 2. Arte e Fotografi a. 3. Fotografi a Brasil. I. Kamara Kó Fotografi as. II. Título. CDD: 779.81 SUMÁRIO Apresentação Mariano Klautau Filho ............................................................ 07 Breve Abertura ............................................................................. 11 1. Entre o Rio e o Sol Nascente ................................................. 13 2. Processos Ressonantes ...................................................... 25 O Tecer de Galerias e Salões ....................................................... 26 Funarte: trajetos visuais e travessias fotográfi cas .................... 36 3. Livres Tessituras: Imagens, Ações e Experimentos ....... 47 Arte, Liberdade e Política: uma convivência possível ............. 48 Névoa de Luz: fotografi as e ações em processo ....................... 68 Remates ................................................................................ 103 Sobre o artista ...................................................................112 Referências ............................................................................ 114 7 “Um oriental na vastidão”1 Mariano Klautau Filho Miguel Chikaoka chegou a Belém no início da década de 1980, vindo de uma temporada na França, lugar em que descobriu a fotografi a. Com forte intuição, associada às leituras na área da fi losofi a e da educação, Chikaoka iniciava um inte- resse profundo pela fotografi a como linguagem e compreensão do mundo. Havia o desejo de aproximação com a cidade, com as pessoas do lugar – e a fotografi a passou a ser o componente principal do acercamento a um território cultural in- teiramente novo. A partir daí, imprimiu uma atitude de educador experimental e propositor de vivências com a imagem fotográfi ca, que marcou de modo defi nitivo a cidade de Belém. O início dessa experimentação em Belém se dá pelo nome de Fotofi cina, ofi - cinas em que Chikaoka tomava a fotografi a como elemento perceptivo importan- te, propondo exercícios de conhecimento sobre a origem da câmera e a construção da imagem. O envolvimento com as práticas sensoriais conduzia os participantes à consciência de que a vasta era pré-fotográfi ca tinha uma importância fundamental para a compreensão sobre o uso da fotografi a no século XX. Além disso, Chikaoka envolveu-se completamente com a cidade: trabalhou com grupos de teatro de rua, participou de entidades comunitárias, documentou mani- festações políticas e culturais, levou as exposições de fotografi a para o espaço pú- blico, registrando um período extremamente rico no que se refere ao contexto de abertura política que o Brasil então vivenciava. A Fotofi cina gerou a Fotoativa, em 1984, e criou uma agenda regular de ofi cinas, atividades e projetos diversos, com uma potência coletiva, que aos poucos foi for- mando gerações de fotógrafos interessados especialmente na expressão pessoal, que os conduziu inevitavelmente para o campo mais alargado da arte. As ofi cinas de Chikaoka não foram construídas como projeto artístico, e muito menos como um aprendizado técnico. Eram práticas artesanais, experimentações perceptivas e relações corporais, nas quais a fotografi a era o meio, o condutor, uma espécie de bússola para compreender visualmente o mundo. A diferença é que 1 Um oriental na vastidão é o título de um conto de Milton Hatoum, do livro A cidade ilhada (Companhia das Letras). Foi tomado por empréstimo pelo caráter enigmático e sensorial observado na narrativa fi ccional de Hatoum sobre o encontro do personagem japonês com o ambiente infi nito de um rio amazônico. 8 Chikaoka mostrava, em meio a essas experiências, uma disposição para promover coletivamente a discussão sobre imagem, além de apresentar um trabalho pessoal sofi sticado, embora esse aspecto jamais tenha sido, para ele, o mais importante na sua trajetória. Chikaoka não é uma voz única nessa história da fotografi a recente em Belém. Somaram-se a ele pessoas importantes no desenvolvimento de grupos no mesmo período, como por exemplo, Patrick Pardini e Luiz Braga, entre outros. No entanto, devemos considerar que Chikaoka ampliou e desenvolveu o alcance da fotografi a no cotidiano cultural da cidade, de forma ímpar, que fi ndou por aproximar gerações às questões da arte, o que veio a se transformar em um aspecto precioso na identifi ca- ção de Belém como cena de intensa produção artística no campo da fotografi a. As relações entre arte e fotografi a foram se dando nos processos de troca ocor- ridos nas ofi cinas, na intensa discussão e leitura dos trabalhos dos participantes em projetos que tomavam a cidade como matéria primeira. Começava a surgir uma diversidade signifi cativa de linguagens e experiências entre os fotógrafos, alunos, aprendizes e, principalmente, uma disposição para o reconhecimento das diferen- ças. Isso provavelmente já era um desprendimento na atitude dos participantes, que Chikaoka soube perceber e captar como força produtiva entre a sua vontade pelo trabalho em grupo e o desejo de expressão do outro. Não havia modo de fazer, e sim meios de experimentação com os materiais. Tampouco havia o interesse no aspecto ilustrativo da fotografi a, e sim em exercícios para além da materialidade do suporte (fotográfi co), em que a percepção e a consciência buscavam noções ampliadas so- bre a imagem. É mérito de Chikaoka desenvolver esses aspectos em uma dimensão coletiva, em que não se perdesse o interesse por uma linguagem singular como fala artística. Essa dimensão possibilitou o surgimento de gerações de artistas cuja fotografi a não reivindicava uma territorialidade regional, de identidade homogênea, nem pre- tensamente interessada em forjar uma representação amazônica. Os alunos que fo- ram se tornando artistas buscaram uma identidade poética e não territorial. O único lugar de identifi cação, desde a década de 1980 até os dias atuais, tem sido a cidade de Belém, quando muito do Estado do Pará. A liberdade de experimentação, o interesse coletivo e o debate acerca da linguagem propostos por Chikaoka contribuíram forte- mente para que os artistas exercessem seus trabalhos sem as limitações do discurso latifundiário de uma estética e de um imaginário amazônicos. A atuação se dava no ambiente de uma cidade de quase dois milhões de habi- tantes, com aspectos nítidos de uma capital cultural, um pequeno pedaço da região Norte brasileira, que em sua história civilizatória já dialogava com outras partes do mundo, nos séculos anteriores. 9 É necessário lembrar que esses diálogos têm se construído de formas variadas e em tempos distintos. A conformação de sua monumentalidade urbana está na arquitetura do bolonhês Giuseppe Antonio Landi, desde o século XVIII. O comércio global está no cotidiano da cidade desde a produção e exportação da borracha, que imprimiu à cidade um cosmopolitismo e uma imagem de modernidade na virada do XIX para o XX. Somada às raízes musicais mais interiorizadas, como lundu e ca- rimbó, havia ogosto popular pelo merengue e os sons do Caribe, que comumente se ouvia nas rádios até os anos 1970. As rodas literárias dos anos 1950 e 1960, no Café Central, eram formadas por fi guras como Benedito Nunes, Mário Faustino e Max Martins, que fl ertavam com a poesia norte-americana. Essas passagens históricas marcaram a cultura intelectual e artística de Belém com certo refi namento e indepen- dência, e promoveram na arte da cidade uma linguagem contaminada pelo mundo. A Belém dos anos 1980, que recebeu Chikaoka, vivia um processo de abertura política, como qualquer outra capital brasileira, e, de algum modo, mantinha essas heranças que desafi avam a necessidade do território como mecanismo de autopro- teção. O campo da fotografi a, por meio das experiências com a imagem propostas por Chikaoka, transformou-se em um lugar possível, não para projetar uma cerca regional, e sim para desejar a invenção de poéticas. Ao lidar com a materialidade fotográfi ca, Chikaoka estimulava em suas ofi cinas um movimento para dentro, numa dimensão perceptiva. Ao passo que essa prática se ampliava, gerações de artistas foram constituindo uma produção desatrelada das contingências de uma ilusória identidade local. Os aspectos dessa liberdade podem ser observados na trajetória de muitos artistas que avançaram pelos anos 1990 e 2000 ocupando espaços e circuitos brasileiros. O próprio Chikaoka, quando investe em seu trabalho particular, realiza experiências originadas de diversos pontos refe- renciais. Seu trabalho intitulado Hagakure (2008) é motivado pelas reminiscências culturais japonesas no interior de São Paulo, onde nasceu; sendo possível também pela fi losofi a dos samurais e pelos fi lmes de artes marciais vistos na infância. Portan- to, trata-se de um trabalho mais próximo a um encontro entre um desenho de mangá e certa objetualidade pop, do que vinculado a uma cultura localizada na Amazônia. Primavera (1983), cuja imagem da ponta da canoa sobre fundo negro desenha rigo- rosamente um triângulo no quadro, foi realizada no interior do Pará, porém, está mais afi nada com um interesse pictórico formal, misturado ao sotaque da fotografi a alemã do fi nal dos anos 1920. Outras imagens da mesma época, como Ilha de Mayandeua (1986) ou Outeiro, Belém (1987) são uma reordenação da paisagem. Acontecem fotografi camen- te em uma mesma geografi a do norte brasileiro, e posteriormente ganham sentido na fi guração econômica dos elementos, no apuro artifi cial do equilíbrio, numa espécie de contra-discurso à vegetação densa e exuberante, característica do “imaginário amazônico”. 10 Primavera, 1983 Mayandeua, 1986 Outeiro, Belém, 1987 A liberdade poética e desterritorializada de Miguel Chikaoka tem sido uma das maiores contribuições à produção da imagem em Belém. As gerações de artistas que atuam intensamente nos últimos anos, mesmo desligadas do campo específi co da fotografi a, sabem absorver a experiência fotográfi ca de Chikaoka, como atravessa- mento de seus processos. Muitos trabalhos das gerações atuais, cujos interesses estão dirigidos a outras áreas como a performance, o vídeo ou o desenho, encontram ecos conceituais em campos de discussão sobre a fotografi a. Essa experimentação segue o seu curso, hoje, como um desprendimento do campo fotográfi co, e como vontade para que as fronteiras continuem abertas. Chikaoka permanece atento. 11 Breve abertura A ideia para se desenvolver uma pesquisa surge a partir de outras tantas; e se dá em um universo de incertezas, longe de previsões precisas, defi nidoras. Havia alguns percursos realizados, um processo e um pensamento em construção, sustentados por alguns dados levantados, orientações de trabalhos universitários, textos lidos e escritos, convivência com o fotógrafo e com a cena cultural e artística da cidade. Além da tese de doutorado, na qual pesquisei o circuito de arte em Belém, no perío- do de 1980 a 1990. Os caminhos, no entanto, exigiam maturação, um tempo para a pesquisa criar forma, dar corpo a este ensaio. Mas, um fator que muito contribuiu para o ponto de vista adotado foi a curadoria de Mariano Klautau Filho, para a sala que homenageava Miguel Chikaoka, durante o III Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografi a. A sensibilidade do curador no processo de seleção de imagens eviden- ciou-se no resultado expositivo, que possibilitou ao visitante um novo olhar sobre as fotografi as de Chikaoka. O primeiro capítulo, Entre o Rio e o Sol Nascente, faz referência à poesia de Max Martins, que originou o título dado à sala expositiva que homenageava o fotógrafo. Trata-se, também, de um texto elaborado durante o pro- cesso de pesquisa e destinado à publicação na revista Asas da Palavra, editada pelo curso de Letras da Universidade da Amazônia (UNAMA). No começo dos anos 2000, quando participei de um curso de curadoria no Insti- tuto de Artes do Pará (IAP), ministrado por Rosely Nakagawa, pensei em pesquisar a produção de Chikaoka para realizar uma exposição que criasse um canal entre o seu processo fotográfi co e a ação educativa por ele desenvolvida. A ideia não se concretizou, mas o fi o que a teceu se manteve latente, à espera de um novo desvelar. Mesmo não enfatizando o fator educativo na pesquisa que aqui apresento, talvez, naquele momento, já estivesse o embrião deste texto, que prioriza a produção poéti- ca e experimental de Miguel Chikaoka. A prioridade dada ao experimental, todavia, não omite o segmento proveniente da educação, pois sei que o trabalho em processo, que caracteriza parte da sua produção, engloba as ações educativas, que são parte integrante do seu trabalho. Dentre os autores que contribuíram para eu pensar e analisar essa produção na qual me detive, destaco Nicolas Bourriaud, Maurice Merlau-Ponty e Cecília Almeida Salles. Entrevistas e anotações realizadas pelo artista, matérias de jornais, folders e, principalmente, o acesso ao acervo fotográfi co de Chikaoka e Kamara Kó, foram 12 1 decisivos para a construção do pensamento e as refl exões geradas. De todos esses procedimentos, um se deu por acaso, e acabou se revelando como um grande auxiliar da pesquisa: o processo de seleção de imagens atreladas às perguntas. A “entrevista- visual” proporcionou a clareza contextual e a compreensão do processo criativo. Transitei por uma rede de informações visuais e verbais, que se deu na interconexão com o centro da pesquisa, pela qual procurei entender como se constrói o universo fotográfi co de cunho poético e as propostas experimentais de Miguel Chikaoka. Sem apoio, a pesquisa não ganha corpo, e nem seus resultados podem ser difun- didos. Agradeço, portanto, à Fundação Nacional de Artes (Funarte), que através da Bolsa Estímulo à Produção Crítica viabilizou a pesquisa e a publicação deste livro; ao Mariano Klautau Filho, que contribuiu com o tema abordado e com o texto de apresentação; à Makiko Akao, que desde os anos 1980 vem auxiliando no processo de documentação da fotografi a contemporânea do Pará, e que facilitou o acesso a essa documentação; ao Miguel Chikaoka, por ser quem é, pela disponibilidade e disposição em dar entrevistas, e por permitir o acesso ao seu acervo de imagens e da Kamara Kó. 13 Entre o rio e o sol nascente 14 Nunca fui a Beirute, no entanto, parte de mim encontra-se lá, ou melhor, atra- vessou continentes, rompeu com a dicotomia Oriente-Ocidente e foi se formando sem pressa, no ritmo sinuoso das canções que ouvia na infância, sem entender uma palavra sequer. Ainda permanece na memória o som do long-play, a tábua corrida que me conduzia à sala dos retratos, dos rostos desconhecidos, das roupas agora em desuso. São imagens em preto e branco, que se fi xaram em um álbum cujas páginas se movimentam, ignorando o tempo, a matéria, perdendo-se no turvo esquecimen- to, na incapacidade de reconstituiras cenas com fi delidade. A casa dos meus avós era o refúgio dos domingos, o conto de fadas em tempo real, que incluía doces armazenados no pote, guardados na cristaleira. O cardápio do almoço era escolhido com antecedência por um dos netos. Um de cada vez, um por semana. O meu prato preferido: o shisbarak – escolhia-o não somente pelo sa- bor, mas pelo branco leitoso, pelos chapéus de massa recheados de carne moída, que fl utuavam na caudulenta coalhada. O quase azedo e o hortelã eram os ingredientes retirados da cartola, o truque mágico defi nitivo, responsável pela repetida escolha. Não cansava de retornar com o pedido, assim que chegava minha vez. Neste momento não há uma ponte, nem concreta nem aparente, interligando hábitos, costumes ou culturas. Há sensações, cheiros e imagens que percorrem o córtex cerebral e se fazem presentes. Todavia, a duração da lembrança é efêmera, e não se sustenta com o decorrer da narrativa real/fi ccional que se constitui com as reminiscências, com os vestígios impalpáveis que rondam o pensamento, sem con- seguir se fi xar ou se encaixar em uma das camadas que emergem e submergem, sem que se tenha controle ou se possa fotografar. “Para ter de onde se ir” é a frase que evoca associações inimagináveis, desprovi- das de lógica, e que se alojam em meu pensamento sem pedir licença. O tempo con- fuso funde personagens e, para minha alegria, traz o poeta de volta, as experiências vividas na Casa da Linguagem, quando o cercávamos, na companhia de Maria Lúcia Medeiros e Marton Maués, para folhearmos juntos os cadernos repletos de imagens e frases soltas, poemas por existir; sendo. Esses momentos compartilhados fi zeram surgir um texto que dediquei a Max Martins, publicado em 1998, na revista Asas da Palavra2. A epígrafe, constituída com as palavras do próprio poeta, reafi rmava um conselho chinês: Ir Ter onde Isto é aconselhável diz o Velho Rei e ri 2 Revista publicada pelo curso de Letras da Universidade da Amazônia (UNAMA). 15 Seguidora do Velho Rei, adoto o conselho, caminho, repouso os olhos sobre a paisagem e parto, nem que seja para depois retornar ou seguir indefi nidamente à procura de algum lugar para cumprir a orientação do I Ching, e ter sempre aonde ir. Hexagramas, poesias, imagens e vida acompanham a tecelagem dos viajantes, re- compondo imaginários, propondo novas narrativas para que a realidade se faça pre- sente. De diferentes naturezas, fi cção e realidade pertencem ao mesmo fi o, abrigam- se no mesmo bordado e seguem os movimentos das mãos que controlam o tracejar da linha, preenchem desenhos, permitem vazios e, em algum instante, podem cortar os fi letes, interrompendo o contorno da cena que se confi gura sobre o frágil tecido. A ameaça do corte não interrompe o fl uido caminhar, e as andanças, que in- cluem distintos personagens, prosseguem. O poeta, o fotógrafo e o narrador encon- tram-se mais adiante, na Cabana3 – um abrigo seguro que possui “força interior nas vigas do telhado”. Apesar de segura, a casa “não é lugar de fi car, mas de ter de onde se ir”. Estar em constante movimento, ter a possibilidade de sempre partir encontra eco nos inúmeros deslocamentos experimentados por Miguel Chikaoka que, em 1980, chega a Belém do Pará. Aproveito a orientação “de ter de onde se ir” e dou início ao encontro com o fotógrafo, provocado por um evento: III Prêmio Diário Contemporâneo de Fotogra- fi a, com curadoria de outro fotógrafo: Mariano Klautau Filho. Realizado em 2012, o evento tem Chikaoka como artista convidado, e as fotografi as selecionadas para compor a exposição revelam o encontro sensível entre o curador e o fotógrafo ou entre os dois fotógrafos. O título “Para ter de onde se ir”, escolhido para a sala que recebe as imagens, interliga o curador, o fotógrafo e o poeta. As imagens expostas permitem ver Miguel Chikaoka de um ângulo diferente, evidenciando-se uma face que se encontrava guardada, comprometida com o si- lêncio, com a experiência na qual se destaca a poética da fotografi a. Ao apresentar o fotógrafo, Klautau Filho conta-nos que ele se insere no mundo a partir de um diálogo sensorial com o outro; em que o processo, mais do que a materialização do ato fotográfi co, adquire importância fundamental. Mas, chama atenção que “imbri- cado a isso, há um artista, um fotógrafo errante, meio como o personagem do fi lme O Passageiro, de Antonioni, a experimentar identidades, ou como a voz do poema A Cabana de Max Martins” (KLAUTAU FILHO, 2012, p.122). O contato com essas imagens errantes, articuladas a um universo ao mesmo tempo delicado e comple- xo, acionou um pensamento entrecruzado, movido por sensações e lembranças, que provocou o desejo da escrita, da pesquisa sobre Miguel Chikaoka. 3 Poema contido no livro Para ter onde ir, de Max Martins, publicado em 1992. Os textos citados entre aspas, que se encontram no mesmo parágrafo, também pertencem ao poema A Cabana. 16 Por trás do desejo havia fragmentos de textos – escritos muito antes; uma von- tade nascida há tempos... Talvez houvesse ainda a procedência oriental, a errância pelas cidades, a busca do pertencimento e as palavras do poeta a unir narrador e fo- tógrafo. Desde criança convivi com hábitos, costumes e a sonoridade da língua vinda do Líbano, mas nunca coloquei os pés no Oriente Médio. Na esperança de achar meu lado perdido, a lacuna eterna que, sem poder ser preenchida, locomove-se com os vazios, busquei a leitura de Edward W. Said, certa de que a lacuna seria amenizada, compreendida por outro viés, nas trocas acumuladas dos errantes, nos percursos e permanências permeados por permutas culturais. Ao ter contato com o pensamento de Said, referente ao Orientalismo, ao Oriente como invenção do Ocidente, tive conhecimento sobre um processo de dominação que não conhecia; encontrava-me distante. Sempre estive envolta com autores eu- ropeus e, portanto, possuía um conhecimento parcial da hegemonia ocidental, no que concerne ao Oriente. No processo de leitura, todavia, percebi os procedimentos que promoveram um “conhecimento do Oriente”, que estavam sob a égide das forças hegemônicas do Ocidente. Soube, então, que no fi nal do século XVIII surgiram es- tudos na academia, exposições em museus, assim como teses antropológicas, bioló- gicas, linguísticas e históricas que forneceram uma espécie de invenção do Oriente. Para Said (1990, p. 19), “[...] o exame imaginativo das coisas orientais estava baseado mais ou menos exclusivamente em uma consciência europeia soberana, de cuja inconteste centralidade surgiu um mundo oriental, primeiro de acordo com ideias gerais sobre quem e o que era oriental [...]”. Segundo o autor, houve também uma lógica proveniente “de desejos, repressões, investimentos e projeções”. A trama de invenções, que atribui/cria valores e signifi cados a determinada cul- tura, momentaneamente ou sempre em desvantagem, pode afetar processos identi- tários e criar uma cadeia nebulosa de identifi cações. O tempo e os deslocamentos tendem a diluir os fi os de pertencimento, e em seu lugar surge uma fl utuação de si mesmo e do coletivo com o qual se une por diferentes traços, sejam étnicos, cultu- rais ou ideológicos. Os traços biológicos e culturais de procedência paterna aproxi- maram-me do cedro do Líbano, dos rostos que conheci na sala de meus avós. No entanto, em meus inúmeros percursos fui atravessada por tantos outros traços, que estes esgarçaram e se perderam nos detalhes – frágeis em seu nascedouro –, trans- formando-se em uma fl utuante imagem desfocada e instável. Mesmo pertencendo a Orientes distintos, histórias de vidas traçadas com outros fi os, narrador e fotógrafo são atravessados pela arte, por deslocamentos e incertezas que os tornam quase nômades, em busca de outros rostos, com os quais compar- tilham algo em comum. Após ter concluído a graduação em EngenhariaElétrica na UNICAMP, Chikaoka segue para Nancy, na França, com o objetivo de cursar o 17 doutorado. Retorna para a sua cidade, Registro, São Paulo, em 1979. Em território francês, havia se aproximado da fotografi a. Identifi cado muito mais com a imagem do que com as disciplinas acadêmicas, participou de fotoclube, saiu às ruas para re- gistrar as manifestações políticas e culturais, envolveu-se defi nitivamente com a luz, com o processo fotográfi co – percurso decisivo na sua trajetória. À fotografi a aliou a decisão de conhecer o Brasil. Foi na França que percebeu que pouco conhecia do seu país e da condição de ser brasileiro. Com a experiência da Europa, concluiu que ao voltar para o Brasil deveria seguir em outra direção. Não tinha a clareza exata para onde iria. Havia somente a certeza de que não fi caria em São Paulo. O contexto constituído por múltiplos fatos, o entrelaçar do invisível acaso o conduziram a Belém: “Então eu vim pra cá mais por uma questão de oportunida- de, de ir na direção em que o vento estava soprando.”4 Zéfi ro, que sopra em direção do Ocidente, deixou-o mais distante de Registro, da comunidade rural e japonesa onde foi criado. Diante do que lhe estava reservado, o fotógrafo sentencia: “Eu vim de algum lugar, cheguei e tenho de fazer desse lugar onde cheguei, um lugar de onde partir”.5 A família de Miguel Chikaoka chegou do Japão no início do século passado. Trou- xe junto com ela o rigor, a disciplina e o sentimento religioso, qualidades que adqui- riram novo sentido, mas foram assimiladas, herdadas e transformadas no decorrer da vida do fotógrafo. Das lembranças de infância e adolescência, Miguel traz consigo as sessões de cinema vividas no cotidiano da comunidade, no barracão, onde toda a família se reunia, e junto aos compatriotas assistiam o drama e a saga dos samurais. Foram esses os seus primeiros heróis, apresentados em um projetor de 16mm. Mas, quando estava saindo de Registro para São Paulo, teve contato com uma narrativa mais complexa, que colocava em xeque o modelo de comportamento ba- seado em regras e disciplina. Tratava-se do fi lme Dodeskaden (O Caminho da Vida), de Akira Kurosawa, lançado no Brasil em 1970. O cineasta mostrava que a sociedade japonesa não produzia somente heróis, mas havia personagens que se constituíam à margem da sociedade. Chikaoka relata que esse foi o seu primeiro momento de questionamento em relação ao ponto de vista heróico, que não dava lugar a outras representações do povo do outro lado do continente6. Talvez, a partir daquele instante, as interrogações passaram a ser ininterruptas, dando início às perguntas sobre qual papel desempenhar, como buscar o seu próprio 4 Depoimento de Miguel Chikaoka, retirado de uma entrevista gravada no Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA), em 30 de março de 2012 (ver KLAUTAU FILHO, 2012. p. 126). 5 Idem,p.125. 6 Os dados biográfi cos sobre Miguel Chikaoka, contidos neste texto, advêm do depoimento concedido em 30 de março de 2012 no MUFPA, intitulado A luz da casa: uma entrevista com Miguel Chikaoka, publicada em Klautau Filho (2012). 18 personagem? Ao deixar a sua cidade para cursar Engenharia na UNICAMP, não foram os livros técnicos que o acompanharam, mas aqueles que o conduziram à re- fl exão sobre a vida e o tempo, sobre o autoconhecimento. Sobressaía-se, agora, o ser crítico e questionador do mundo. Na França, aproximou-se de leituras relacionadas às questões sociais, como a psicologia social, quando teve contato com David Coo- per e Ronald Laing, autores que propunham uma nova sociedade. O trançado Oriente-Ocidente não cessou. Os fi os do autoconhecimento entrela- çaram-se ao discurso de autores ocidentais, tecendo o seu inquieto percurso. Cercado de inquietudes, ao chegar a Belém encontra um terreno fértil para continuar as suas buscas e satisfazer, em parte, o seu desejo de conhecer o país ao qual pertencia. Como a identidade social não diz respeito somente aos indivíduos, mas a todo o grupo, pro- curou os seus pares. Percebeu que “a identidade social é ao mesmo tempo inclusão e exclusão: ela identifi ca o grupo [...] e o distingue de outros grupos [...]” (CUCHE, 2002, p. 177). Identifi cado com o grupo Ajir e com o grupo que levava em frente o jornal Resistência, desde a sua chegada aliou o experimentalismo à postura política. A arte e as questões sociais formaram um tecido em que o individual imbricava-se ao coletivo. Jovem, deixou-se invadir pelo mundo. Participativo, integrou-se à cidade que acabara de conhecer – estava ali o seu universo não limitado por fronteiras, o rio no qual poderia navegar, mesmo que as águas nem sempre fossem tranquilas. O conta- to com o grupo Ajir foi o abrigo que não fornecia segurança, mas possibilidades de vislumbrar percursos por onde fl utuar ou pousar os pés, e caminhar. O Ajir mistu- rava processos educativos com ações artísticas, pois muitos atuavam com fotografi a, faziam performances, assumiam papéis imaginários contracenando com o Teatro da Paz e interpretando personagens da noite, como os “Fantasmas”, que caminhavam entre o Bar do Parque e o prédio de arquitetura neoclássica, construído no período da borracha pelo engenheiro militar José Tiburcio de Magalhães, em projeto inspi- rado no Teatro Scalla de Milão. Os sonhos megalômanos de um período de grandes riquezas já não tinham vez nos anos 1980. Todavia, predominavam, naquele momento, naquele lugar, as heran- ças das ações irreverentes provenientes das décadas de 1960-1970. O Ajir trazia uma poética não acomodada, que tangenciava o lirismo. Antecipando as intervenções urbanas7 em Belém, o grupo grafi tava nas paredes da cidade frases de um nonsense poético, como “na lata de sardinha penso em pássaros”8. O pensamento solto e cria- tivo era o eixo que determinava as ações, direcionava as propostas críticas e poéticas que identifi cavam o grupo. 7 Ações artísticas que acontecem na cidade, e que no Brasil tiveram início nos anos 1970. O grafi te é uma dessas ações. 8 Informação proveniente da entrevista de Miguel Chikaoka, concedida à autora em 12 de setembro de 2013. 19 O encontro de Miguel Chikaoka com o Ajir se deu de forma espontânea, por acaso, quando foi fotografar a cena cultural da cidade e deparou-se com um dos eventos do grupo, fruto do projeto Arte na Praça. As conversas e trocas de afetos geraram o convite de Jeanne Marie, uma das integrantes do grupo, para ministrar uma ofi cina. Lá se foi o fotógrafo cumprir os desígnios do poeta. Mais uma vez, en- contrara um lugar para onde ir, por isso seguiu rumo à Rua Rui Barbosa, ao prédio que abrigava ideias e sonhos. O vôo foi alçado: tal qual uma fi gura de Marc Chagall, pairou sobre a cidade, plainou até sentir o chão e ali colocou os seus pés, entre tantos outros desconhecidos. Assim nasceu o Fotovaral – as imagens penduradas serpen- teavam a praça, mostrando o olhar anônimo sobre coisas, pessoas e lugares que ha- bitavam imaginários e estavam ao redor. A proposta do Fotovaral prescindia de galerias; permitia um compartilhar aberto, sem intermediações de portas ou paredes. Nicolas Borriaud considera que a arte é lu- gar de sociabilidade, representa um interstício social, espaço de relações humanas que viabilizam as trocas além das vigentes no sistema em que nos situamos. Para Bourriaud: A possibilidade de uma arte relacional (uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que afi rmação de um espaço simbólico autônomo e privado) atesta uma inversão radical dos objetivos estéticos, culturais e políticos postulados pela arte moderna (BOURRIAUD, 2009, p.19-20). Os objetivos estéticos, culturais e políticos assumidos por Chikaoka não incluem a originalidade, a assinatura que estabelece a propriedade da obra. O artista parte, desde então, para um trabalhoem que se evidenciam as interações humanas, o con- texto em que o processo criativo ocorre, colocando em xeque a autoria. “Processo” é a palavra-chave. Mais do que a obra pronta, acabada, o que lhe interessa é o processo, a inserção de ideias, que promove as trocas de afetos, de conhecimento e de percep- ção. Esta atitude plural implica adotar a interseção de culturas. O autoconhecimento oriental e o vagar perceptivo que apreende, sem pressa, as coisas do mundo, conju- gam-se à objetividade, à prática conceitual que exige defi nições e auxílios matemáti- cos e físicos para compreender os fenômenos. O Fotovaral e a máquina artesanal9 são duas práticas provenientes do início dos anos 1980, que se tornaram inseparáveis da trajetória de Miguel Chikaoka. Tratam-se, 9 Este tipo de equipamento tem custo baixíssimo e costuma receber o nome de pinhole. Pode ser confeccionado com caixas de papelão, latas ou qualquer recipiente que possa servir de câmera escura. A entrada de luz é conseguida com um pequeno furo que, quanto menor, proporciona melhor nitidez à imagem. 20 na verdade, não apenas de ações que desembocam em eventos, mas de uma atitude perante o mundo, que envolve o autoconhecimento, o uso da física e postura política. De acordo com Chikaoka, “temos que fazer coisas que tenham sentido para além daquilo que é o objetivo primeiro. É uma busca de transcendência, [...]”10. A dedicação ao pinhole é a dedicação ao princípio da luz; é entendê-la como elemento primordial para a formação da imagem, para a realização da fotografi a. Desta forma, considera que no pinhole: [...] existe um território, um manancial incrível de possibilida- de de abordagem de qualquer termo, de qualquer disciplina, de qualquer área do conhecimento, exatamente porque é a luz. A luz que está aí é poderosa, representa também um campo sim- bólico. Tem gente comprando e pagando pela luz, para ter mais luz. O meu desafi o agora é não pensar a fotografi a como termo prático ou aplicado. Estou propondo o antes disso e o pós isso.11 A preocupação do fotógrafo não se concentra na máquina, no artefato, mas na luz, elemento essencial que possibilita a visão, permite ver, em seus diferentes sen- tidos, podendo remeter à claridade, à clareza dos caminhos. Andar e ter aonde ir pode conduzir ao cruzamento de tempos, levar ao preceito dos samurais, que alerta: “certa vez, disseram a um dos jovens senhores que ‘agora’ signifi ca ‘aquele momento’ e ‘aquele momento’ signifi ca ‘agora’”. Avisa, ainda, que “é prejudicial pensar nesses dois conceitos como coisas distintas” (YAMAMOTO, 2004, p. 95-96). O narrador controla, em parte, a sucessão dos fatos, o fl uxo que antecede ou atualiza a história, priorizando o que surge, fazendo desaparecer o que não mais deseja em cena. Tudo depende da sua vontade. O retroceder ou avançar segue a lógica de Ariadne, que dispõe do novelo, reservando aos labirintos a condução dos fi os. Aquele momento e o agora traspassam as margens do rio, chegam do outro lado sem o esforço natural da travessia. Guiado pela luz, o fotógrafo retoma de rio em rio a embarcação imaginária, construída antes de nascer. No longínquo sol nascente, ganhou do Velho Rei a cartografi a por onde navegar. A bússola que o guiou desde 1950 e o fez navegante, levou-o até as folhas que encobriam a terra, tornando ainda mais forte os laços com o Oriente, a história fa- miliar vinda do interior de São Paulo, e alcançou novos episódios no Norte do país. 10 Entrevista de Miguel Chikaoka já mencionada, que ocorreu no MUFPA – A Luz Da Casa: uma entrevista com Miguel Chikaoka. (KAUTAU FILHO, 2012, p.128). 11 Idem, p.135 21 Hagakure, 2003. Objeto de Miguel Chikaoka. Este vaivém narrativo que a vida faz e desfaz, reaviva a imagem perdida, o sentimen- to que nunca deixou de existir. Não é por acaso que em 2003 Miguel Chikaoka cria Hagakure, um trabalho ímpar, que sintetiza a fi losofi a da luz, adotada na prática da fotografi a e tecida com elementos identitários. 22 Oculto entre folhas é o signifi cado de Hagakure12, o livro do Samurai, escrito por Yamamoto Tsunetomo, no século XVIII. Lido e relido, na busca do autoconhecimen- to e da postura de equilíbrio diante do mundo, Chikaoka toma o título emprestado para a sua obra, e propõe o amálgama de arte e vida, criando um objeto que contém os negativos fotográfi cos dos seus próprios olhos perfurados pelos espinhos do tucu- mã. Um jogo de experiências se faz presente, e uma identidade se sobressai entre as outras. Dela emergem os vestígios da história do homem e da máquina, que coadu- nam a passagem do tempo. O recurso analógico persiste na câmara artesanal, na foto tirada pelo outro: Alberto Bitar13, o fotógrafo, o amigo, o ex-aluno, que não impede que o mestre, simbolicamente, cegue os próprios olhos para que possa ver melhor. Atento ao que está diante de si, Chikaoka percebe o que está além. Viajante da luz, ele reconhece não as dicotomias entre Ocidente e Oriente, mas o compartilhar de culturas. Há anos mergulha nos rios barrentos, segue as trilhas das matas, nas quais é capaz de recolher os espinhos e perfurar a câmara artesanal para que a ima- gem surja e se faça presente nos infi nitos varais armados nas ruas impregnadas de histórias. Paulista, cidadão de Belém. Quem é o fotógrafo que aqui chegou na incer- teza, e sem saber para onde ir? Em qual lado da rua colocou os pés? Em qual margem do rio aportou, deixando-se fi car? O corpo do fotógrafo caminha, levando consigo o novelo. Prevalece o silêncio, o tempo expandido que se assemelha ao do caboclo, cujo olhar se perde no horizonte. Chikaoka conhece a Amazônia mais que muitos amazônidas, encontra-se atra- vessado pelo rio e permanece próximo ao sol nascente. Nada é defi nitivo, nem exa- tamente defi nido para que se possa fi ncar a bandeira e ter a clareza da cor. Enquanto o sol paira sobre o tecido branco, a estrela azul repousa entre triângulos, apenas o vermelho une o distante. Ir Ter onde Isto é aconselhável diz o Velho Rei e ri O Velho Rei novamente se faz ouvir. Para compreender a palavra do poeta é necessário seguir, ir, ter um lugar de onde partir, chegar ou retornar. Entre o rio e o sol nascente, Miguel Chikaoka preferiu a luz, que permite ver além do que está ao alcance dos olhos. 12 Em relação ao signifi cado de Hagakure, Miguel Chikaoka esclarece, na estrutura da palavra: ha = folhas; e kure = escondido. Pode-se ler também: “oculto nas folhas”, “oculto pelas folhas” ou “na sombra das folhas”. 13 Alberto Bitar fotografou os olhos de Miguel Chikaoka para a obra Hagakure. Ele participa ativamente do FotoAtiva; estudou com Chikaoka e alcançou reconhecimento nacional. Integrou a Bienal de São Paulo de 2012, como convidado, 23 2 25 Processos ressonantes O Tecer de galerias e salões 27 Para Miguel Chikaoka, a década de 1980 foi o começo de algo que já se mani- festara na década anterior, como as proposições libertárias, o afl orar dos sentidos e o comprometimento com as questões sociais, que constituíram o princípio ético e estético, de natureza conceitual e comportamental, que torna mais claro o fi o condu- tor da sua trajetória. Experimentar e seguir em frente, abraçar as palavras do poeta e adotar o conselho do Velho Rei reforçou a decisão de colocar-se diante do mundo, em uma entrega atravessada pelo aguçar da percepção, pelo desdobrar de desco- bertas e compartilhamentos. Havia o frescor de uma juventude e, mais que isso, confi gurava-se a confi ança e a crença em atuar no mundo, mesmo que fosse inserido em um campo de incertezas. Pensamentos, ações e comprometimentos, com ou sem consciência, reverberavam em atitudes de cunho coletivo e demostravam ousadia. Nos ambientes pelos quais transitava ou dentro de si mesmo, existia algo propício ao um entremear de racionalismo eirracionalismo, que reconhecia em cada situação vivida “[...] a ambivalência que a compõe: a sombra e a luz entremeadas, assim como o corpo e o espírito, interpenetram-se numa organicidade fecunda” (MAFFESOLI,1998, p. 19). A sombra e a luz estariam presentes em uma forma de vida intensa, constituída por entradas e saídas, conectadas umas às outras, movimentando-se em fl uxos contínuos. No princípio da fotografi a e dos processos educacionais que iria adotar, também estavam presentes a luz e o seu quase contrário: a sombra. Chikaoka encontra em Belém um contexto efervescente, que se interligava ao contexto do país, no qual prevalecia o comprometimento com os acontecimentos políticos, com o caminho rumo às “Diretas Já”, com a possibilidade de construção de uma sociedade mais livre dos atos ditatoriais e da repressão. Paralelo à cena política, encontrava-se um processo cultural que emergia a partir de uma rede de aconte- cimentos e procedimentos que se entrelaçavam e forneciam diferentes segmentos para a arte e para a fotografi a, entre outras manifestações culturais. No que concer- ne às atitudes provocadoras e de atravessamento de linguagens, pode-se perceber que Chikaoka, ainda na França, experimentava a constituição de um trabalho in- terceptado pela postura política, pela ação performática, pela fotomontagem, como é o caso do autorretrato produzido em 1978, para integrar a sua primeira mostra individual, “Temoignage en vrac”, realizada em 1979, na sede da Union Nationale des Étudiants de France (UNEF), em Nancy. Um ano depois, em 1980, esta mesma exposição foi montada em Belém, com o título “Subterrâneos do Paraíso”, no Salão Esmeralda do Novotel. 28 O anúncio da exposição Temoignage en Vrac, realizada em 1979, sobre as fotos produzidas na França. A ação performática na qual o artista sobrepõe o seu corpo nu, em pequena pro- porção, sobre a mesma imagem em escala maior, é de uma solução estética simples, mas de sentido ambíguo, pois, ao mesmo tempo em que o corpo despido apresenta- se em uma postura frontal, com os braços e pernas abertas, remetendo-nos a uma atitude livre, pode-se também pensar que o corpo foi ou vai ser submetido a uma sessão de tortura. O contexto expositivo e a articulação com as outras fotografi as po- dem traduzir melhor o sentido, mas pode-se considerar que se trata de uma imagem experimental, associada a um processo perpassado pela política, pela arte, e pelo espírito libertário e questionador de Chikaoka. As experimentações de caráter performático também estavam aliadas à criação de uma espécie de personagem que o acompanhava em alguns momentos comparti- lhados com a fotografi a. Na França, em 1978, Miguel Chikaoka pintou o rosto, ves- tiu-se de clown e saiu fotografando pelas ruas durante o Festival Mundial de Teatro de Nancy. O ato se repetiria com o grupo Ajir, no início dos anos 1980, mas, como se pôde perceber, as suas inserções performáticas antecedem as ações realizadas em Belém. O que fi ca evidente é o clima favorável ao encontro entre pessoas que 29 Autorretrato de Miguel Chikaoka, produzido em 1978. Performance/ fotomontagem. Miguel Chikaoka, em 1978. Personagem criado para sair às ruas fotografando o Festival Mundial de Teatro de Nancy, na França. Personagem e rosto pintado em função do Projeto Arte na Praça, em 1981. Como afi rma Miguel Chikaoka, “no embalo das performances do Grupo Ajir”1, ao qual se integrava e entregava como fotógrafo. 30 comungavam atitudes, pensamentos e estavam imbuídas de um processo coletivo orientado para ações experimentais. Ao vir para Belém, na década de 1980, como já mencionado, Chikaoka encon- trou uma cena cultural propícia ao encontro dos seus sonhos e anseios. Era um pe- ríodo em que começava a se confi gurar um espaço favorável ao surgimento de uma arte mais sintonizada com as questões contemporâneas, apesar de que na década anterior já ser perceptível alguns indícios de um cenário artístico que ensaiava uma postura mais afi nada com a contemporaneidade, desejosa de se libertar de um mo- dernismo tardio. Mas foi nos anos 1980 que os valores e princípios artísticos fi caram mais próximos do que acontecia no mundo, colocando-se em um campo paralelo ao que vigorava na trajetória da arte, em termos nacionais e internacionais. Todavia, naquele cenário, em Belém, a fotografi a e as artes plásticas ainda eram vistas de forma dicotômica, como áreas bem separadas, que funcionavam como ter- ritórios apartados, mesmo que algumas vezes houvesse uma convivência e parti- cipassem de eventos comuns. Por esta razão, em geral, as narrativas sobre o que ocorreu nos anos 1980 apresentam também uma dicotomia, pois são contadas se- paradamente, o que pode causar a sensação de que se trata de duas histórias que se constituíram independentes, em tempos desiguais, sem se entrecruzarem. Porém, muitos ambientes foram os mesmos e alguns incentivos que auxiliaram em seus des- dobramentos tiveram a mesma fonte: a FUNARTE. Vale ressaltar, no entanto, que em um aspecto os dois segmentos tiveram ca- minhos distintos. Enquanto os artistas plásticos encontraram mais difi culdades de se manter coesos, no que concerne às propostas culturais conjuntas, os fotógrafos se pautaram por ações e decisões coletivas, e estiveram aglutinados em torno de eventos fotográfi cos nos quais sobressaíam os posicionamentos em grupo. Apesar das suas diferenças internas, os fotógrafos foram capazes de organizar ações com aderência de um número signifi cativo de participantes, assim como de formular pensamentos que os fortaleceram enquanto categoria e os auxiliaram tanto nas questões estéticas quanto nas discussões específi cas sobre a imagem. Eles conse- guiram traçar uma trajetória contínua, na qual prevaleceram os posicionamentos coletivos. No caso dos artistas plásticos, as tentativas coletivas existiram, mas foram par- cialmente bem sucedidas. No fi nal dos anos 1970 e começo dos 1980, um grupo de jovens artistas tentou se agrupar criando A Casa dos Artistas, e, em seguida, a Cooperativa dos Artistas Plásticos Paraenses (COART). Entre eles encontrava-se Geraldo Teixeira, que mais tarde viria a ser o primeiro presidente da Associação dos Artistas Plásticos do Pará (APPA), criada em 1990. Ainda naquela época, existia a Galeria Um, que inicialmente teve como proprietários Osmar Pinheiro Júnior e José 31 Augusto Toscano Simões14. Para Osmar Pinheiro, a Galeria UM foi criada com a intenção de “ser um ponto de referência da produção de arte no Pará e, é claro, um experimento no meio da arte capaz de produzir pauta na vida da cidade”15. Essas tentativas de união dos artistas, de defi nir pautas, trabalhar em conjunto e fortale- cer um circuito que pudesse difundir a arte e criar um possível mercado, mostrou- se frágil. O gerenciamento ou a organização de ações conjuntas não conseguiu se manter por muito tempo, nem formar um fl uxo contínuo gerenciado pelos próprios artistas. Neste sentido, os fotógrafos mostraram-se mais coesos, estruturaram-se coletivamente e souberam aproveitar as oportunidades para formar uma rede de ideias e práticas compartilhadas por outros fotógrafos e críticos; foram parceiros de importantes instituições que os ajudaram a difundir e discutir os seus trabalhos; e se inseriram no cenário político e cultural, tanto individual quanto coletivamente. Nos dois primeiros anos da década de 1980, outros acontecimentos apontaram para mudanças no cenário das artes: em 1981 surgiu a Galeria Elf, de propriedade de Gileno Müller Chaves, criada em uma casa residencial adaptada às condições específi cas para exercer essa função. Este galerista foi um dos primeiros agentes cul- turais que procuraram incluir os artistas no circuito nacional de arte e investir em jovens que ainda não tinham os seus trabalhos reconhecidos.Müller procurou ainda promover uma aproximação com a arte que era realizada fora da cidade, e trouxe para Belém obras de artistas já legitimados pelo circuito nacional da arte. A primeira exposição da Galeria Elf foi composta exclusivamente por gravuras, e contava com artistas já consagrados, como: Alfredo Volpi, Maria Bonomi, Aldemir Martins, Re- nina Katz e o paraense Valdir Sarubbi. Apesar da predominância de pintura e gravu- ra, os fotógrafos também expuseram em sua galeria. No mesmo ano em que surgiu a galeria de Müller Chaves, foi criada a Galeria Debret, que pertencia ao artista plás- tico Mário Pinto Guimarães, e funcionava como um local de encontro entre artistas, mas não possuía a mobilidade da Elf, nem a articulação artística impulsionada por Gileno Chaves. Ambas as galerias funcionam até hoje. Contudo, como os referidos galeristas já faleceram, quem coordena as galerias são os seus familiares. No caso da Debret, a irmã de Pinto Guimarães; e no caso da Elf, a esposa e os dois fi lhos de Gileno Müller Chaves. Entre as iniciativas locais para o fomento e divulgação das artes visuais, em suas múltiplas expressões, destaca-se o Salão Arte Pará, criado em 1982, integrando a cena artística que se iniciava em Belém. Em 2013, mais de 30 anos após a sua criação, 14 Osmar Pinheiro Júnior coordenou a pesquisa da Funarte. Ainda nos anos 1980, mudou-se para São Paulo. José Augusto Simões foi premiado no Arte Pará e no Salão de Pequenos Formatos. 15 Este depoimento integra a entrevista que Osmar Pinheiro Junior concedeu via e-mail à autora, em 8 de agosto de 2004. 32 ainda se mantém como um dos eventos mais importantes da Região Norte, desper- tando o interesse de artistas não somente locais, mas de outras cidades brasileiras. Paulo Herkenhoff atua como curador do Arte Pará desde 1987, não de forma contí- nua, mas em intervalos de tempo. No ano da primeira edição do Salão Arte Pará, o júri foi formado pelo próprio Herkenhoff , Luiz Baravelli e Glauco Pinto de Moraes. Na categoria fotografi a foi pre- miado o paraense Octávio Cardoso, e no ano seguinte, quem recebeu a premiação foi Luiz Braga. Em 2003, Miguel Chikaoka obteve o segundo prêmio, com Hagakure; Eduardo Kalif recebeu o primeiro prêmio com Bonequinhas de Cheiro. Dois anos depois, em 2005, não haveria mais a divisão de prêmios entre as duas categorias: artes plásticas e fotografi a. Em 2006, Paulo Herkenhoff buscou imprimir um novo perfi l ao evento, ampliando-o para além dos espaços institucionais, ocupando a ci- dade, principalmente em uma área considerada representativa da cultura paraense: o Ver-o-Peso. Outros salões e galerias foram criados nas décadas seguintes. Em 1992, a Asso- ciação dos Artistas Plásticos do Pará, em parceria com o Governo do Estado, pro- move o Salão Paraense de Arte Contemporânea (SPAC), que teve apenas três edições, apesar da grande repercussão junto ao meio artístico. Na primeira edição deste even- to, Rosangela Rennó foi premiada; e outros artistas paraenses ganharam visibilidade, entre eles Armando Queiroz. Destaca-se, ainda, o coletivo Caixa de Pandora, criado em 1992, e constituído por Cláudia Leão, Flavya Mutran, Mariano Klautau Filho e Orlando Maneschy, que já trabalhavam com a fotografi a classifi cada como expan- dida16 ou construída. Ao referir-se ao SPAC, Jorge Eiró, artista visual, pesquisador e um dos organizadores do evento, afi rma que esse Salão foi um divisor de águas, pois a “fotografi a construída, que na época ganhou um destaque especial, aponta pra isso. Com a Caixa de Pandora, viveram-se momentos singulares que pontuaram aquele Salão”17. Em meio à variedade de manifestações, o grupo Caixa de Pandora trouxe uma poética própria, proveniente de um tipo de experimentação que discute os es- paços limítrofes da arte. Centrados na questão da imagem fotográfi ca, repensam-na no campo das artes visuais, o que signifi ca pensá-la, ao mesmo tempo, enquanto mídia contemporânea, que não estabelece um divisor preciso entre as artes plásticas e a fotografi a. 16 Com relação a esse termo, Rubens Fernandes Júnior afi rma: “Denomino essa produção contemporânea mais arrojada, livre das amarras da fotografi a convencional, de fotografi a expandida, onde a ênfase está na importância do processo de criação e nos procedimentos utilizados pelo artista, [...]”. A afi rmativa encontra-se no artigo Processo de Criação na Fotografi a: apontamentos para o entendimento dos vetores e das variáveis da produção fotográfi ca (FERNANDES JÚNIOR, 2007, p. 45). 17 Jorge Eiró concedeu este depoimento para a autora em 5 de maio de 2004. 33 Os quatro integrantes do grupo sobressaíam-se pelas experimentações, pela ma- neira inquieta e questionadora de se relacionar com a fotografi a. Havia ali um fi o matricial que passava por Miguel Chikaoka, com quem mantiveram contato, discu- tiram suas ideias e puderam formular um pensamento menos técnico e mais con- ceitual sobre o processo fotográfi co. A formação dos quatros artistas perpassou pela FotoAtiva. Rubens Fernandes Júnior (2002, p. 33) considera que “[...] Chikaoka foi o agente detonador de um processo espiralado incontido, que provocou o aparecimen- to de algumas novas gerações de fotógrafos, com gosto tanto pela fotografi a conven- cional quanto pela pesquisa e pela experimentação”. Mais adiante, o autor continua o comentário sobre a ressonância da FotoAtiva quanto à formação dos fotógrafos no Pará, lembrando o surgimento do grupo Caixa de Pandora e do Grupo Aluzinados18. Como pôde ser constatado, o SPAC contribuiu para que naquele momento uma nova geração tivesse visibilidade, como o caso do Caixa de Pandora; tornou possível também que várias mídias fossem apresentadas, como as vídeoinstalações, que até então não eram comuns na cidade, e apontou para outras vertentes, além das usuais que predominaram nos anos 1980. Em pouco tempo, somente por três anos, o SPAC conseguiu promover uma mobilidade que forneceu um novo cenário das artes vi- suais em Belém. Os outros dois salões que nasceram nos anos 1990, e ainda estão em funcionamento, são: Primeiros Passos e Pequenos Formatos, ambos provenientes de instituições educacionais: o primeiro foi lançado em 1992, sob a coordenação de Gileno Müller Chaves, promovido pelo Centro Cultural Brasil Estados Unidos (CBEU), que dispõe de uma galeria e um museu. Em 1995, este Centro promoveu o I Salão de Fotografi as do CCBEU. O segundo foi criado em 1995, promovido pela Universidade da Amazônia (UNAMA), através da sua Galeria de Arte Graça Landei- ra, que surgiu dois anos antes, em 1993. Tanto a galeria quanto o Salão da UNAMA são coordenados pelo artista visual Emanuel Franco. A maioria das galerias ou salas expositivas que constituem o circuito artístico de Belém pertence aos museus do estado e do município. Durante décadas, muitas galerias privadas apareceram e logo desapareceram, principalmente, devido à falta de mercado. Em 2011, no entanto, surge uma galeria especializada em fotografi a, a Kamara Kó Galeria, de propriedade de Makiko Akao. A galerista, que foi casada com Miguel Chikaoka, desde os anos 1980 vem participando das ações culturais na cidade. Talvez essa experiência junto aos artistas e ao circuito artístico tenham lhe permitido perceber que o campo da fotografi a também se insere em um espaço mais aberto a experimentações. A convivência desde cedo com o contexto cultural 18 O grupo também procede da Fotoativa. O fotoclube Aluzinado foi fundado em 1994/1995, após seus integrantes participarem da ofi cina coordenada por Miguel Chikaoka. Entre os participantes estavam: Paulo Almeida, Danilo Bracchi, Fátima Silva, Lila Bermerguy e Sinval Garcia. 34 e artístico, e o contato com a cena instável da arte, criaram as condições propícias para ela enfrentar as difi culdades e procurar inserir os integrantes da galeria em ummercado mais amplo, no circuito nacional. Em 2013, a SP-Arte/Foto contou, pela primeira vez, com a participação de uma galeria do Norte do país, a Kamara Kó. É importante perceber que a Kamara Kó Galeria encontra-se interligada à agên- cia fotográfi ca de mesmo nome, criada em 1991, e da qual Miguel Chikaoka foi um dos fundadores. Entre os seus sócios, estavam: Ana Catarina Brito, Patrick Pardini e Octávio Cardoso. Kamara Kó é uma palavra de origem Tupi, que signifi ca “amigos verdadeiros”. Fazendo jus ao nome, a agência tem como princípio o compartilha- mento de ideias, processos educacionais, projetos e afetos. Trata-se de um coletivo de fotógrafos que trabalha com conteúdos transversais, na intenção de dialogar com diferentes áreas do conhecimento. Há um espaço de convivência no qual predomina o interesse pela imagem, mais do que o processo de comercialização dos trabalhos, pela discussão e refl exão que encontra um lugar fértil entre aqueles que estão fami- liarizados com a luz, propondo a poética fotográfi ca. Funarte: trajetos visuais e travessias fotográfi cas 37 Nas décadas de 1980 e 1990, a Fundação Nacional de Artes (Funarte) fomentou uma política de difusão das artes plásticas e da fotografi a, manifestadas nas diferen- tes regiões brasileiras, visando criar canais de comunicação que não privilegiassem somente o sudeste do país. Nas ações propostas pela Funarte, pode-se perceber a intenção de quebrar o isolamento em que se encontravam os processos culturais constituídos de forma compartimentada. Por isso, buscava-se inserir os intelectuais, artistas e fotógrafos da Amazônia no circuito nacional de arte. No momento em que essas propostas associavam pesquisa, exposição, seminário e publicação, foi possível observar que existia também o desejo de proporcionar ali- cerces para que a arte da região pudesse se fi rmar e se difundir em todo o território nacional. A pesquisa promovida pelo Instituto Nacional de Artes Plásticas (INAP), da Funarte, estava associada ao Projeto Visualidade Brasileira, que visava estudar as “manifestações culturais do Brasil, tradicionalmente não tratadas como arte”, con- forme Herkenhoff (1985, p. 4). No entanto, não se pode perder de vista que a Funarte foi criada em 1975, em ple- no governo do general Ernesto Geisel (1974/1978), quando Ney Braga era Ministro de Educação e Cultura, e havia sido lançada a Política Nacional de Cultura (PNC). O historiador Alexandre Barbalho considera que “a razão do maior investimento na cultura a partir de 1975 está também no desgaste político da ditadura. O regime não pode manter-se no poder apenas com o apoio da força. Torna-se necessário alcançar algum tipo de hegemonia” (BARBALHO, 1998, p. 91). Então, essas iniciativas cultu- rais poderiam signifi car estratégias de aproximação com a sociedade civil. Em 1984, quando foi realizado o 1º Seminário sobre as Artes Visuais na Amazônia, em Manaus (AM) – ou mesmo um pouco antes, quando Osmar Pinheiro elaborou o projeto As Fontes do Olhar, o Brasil passava por um processo de abertura política, marcado pela campanha pelas Diretas Já e pela promulgação da Lei de Anistia. Portanto, o momento histórico era outro, diferente dos anos 1970. Mas, de qualquer forma, ainda havia os resquícios estratégicos de manter o controle da situação nacional, substituindo a coerção militar pela força cultural, ao trabalhar a identidade nacional e valorizar a cultura popular. O projeto do INAP/Funarte pretendia abarcar todas as regiões brasileiras, promovendo um intercâmbio cultural, numa tentativa de interligar as regiões. Devido a esses procedimentos, naquele processo histórico- político, pode-se notar as razões que levaram a Funarte a privilegiar a “arte popular” ou a “arte indígena” realizada por artistas identifi cados com a “arte erudita”. O fato é que o projeto do INAP, assim como outros projetos propostos pelo governo federal, não conseguiu seguir adiante, nem atender a outras regiões brasileiras, tampouco concretizar a integração planejada. Paulo Herkenhoff foi quem promoveu o 1º Seminário sobre as Artes Visuais na 38 Amazônia, antes de ser curador do Arte Pará, quando ainda era diretor do INAP. Esse evento aconteceu paralelamente ao 7º Salão Nacional de Artes Plásticas, que teve o apoio do Governo do Estado do Amazonas, do Governo do Estado do Pará e da Pre- feitura Municipal de Belém. Como produto do seminário, em 1985 foi publicado o livro As artes visuais na Amazônia: refl exões sobre uma visualidade regional, organi- zado por Herkenhoff , em coedição da Funarte e Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Belém (SEMEC). Na verdade, trata-se do primeiro volume de uma coleção denominada Contrastes e Confrontos, que pretendia criar um canal de debate das pro- duções realizadas nas várias regiões brasileiras. Vale registrar que quando teve início o processo relacionado à visualidade amazônica, Herkenhoff ainda não estava à frente do INAP, e quem dirigia a instituição era Paulo Sérgio Duarte. Em 1982, antes da realização do referido Simpósio, Osmar Pinheiro elaborou e coordenou para a Funarte-INAP o já mencionado projeto Fontes do Olhar, que teve a participação do fotógrafo Luiz Braga. O título advém de um artigo de João de Jesus Paes Loureiro, que também foi convidado a participar desse projeto sobre a visuali- dade Amazônica, cujo objetivo era “mapear a produção da cultura material na Ama- zônia e tentar entender o contexto de um ponto de vista que escapasse das chaves da antropologia e do culturalismo” 19. Para isso, Osmar Pinheiro tenta estabelecer um olhar mais abrangente, não se restringindo apenas aos artistas visuais, mas dando voz também a poetas e escritores. Como resultado, constitui “um arquivo de 3000 imagens, fruto de viagens à região, na companhia do olho mais que atento do Luiz Braga” 20. A pesquisa elaborada por Pinheiro não fi cou limitada ao Pará, estendendo- se para Manaus e São Luís, sendo esta última cidade considerada como a fronteira cultural da visualidade Amazônica. O tecer cultural proposto pela Funarte revela uma ação que se dava no bojo de um pensamento que envolvia não apenas o INAP, mas também o Instituto Nacional de Fotografi a (INFoto)21. Os primeiros anos de Miguel Chikaoka em Belém coin- cidem com essa atuação realizada em duas frentes. E Chikaoka compartilhou essas ações num processo coletivo de formação de um cenário pulsante da fotografi a em Belém. Ao fazer uma refl exão sobre os acontecimentos políticos e culturais de cará- ter nacional ocorridos nos anos 1980 e 1990, contrapondo-se ao autoritarismo que marcou os anos 1970, Fernandes Júnior chega à conclusão que: 19 Depoimento de Osmar Pinheiro, em entrevista à autora, em 8 de agosto de 2004. 20 Idem. 21 A atuação da Funarte no campo da fotografi a teve início em 1979, com a criação do Núcleo de Fotografi a, proposto por Zeka Araújo. Ao assumir a coordenação do Núcleo em 1982, Pedro Vasquez iniciou imediatamente o processo para transformá-lo no Instituto Nacional de Fotografi a, o que se concretizou em 1984. 39 Para a fotografi a, o grande farol que nos guiou nesse período foi a criação do Núcleo de Fotografi a [...], embrião do Instituto Nacional de Fotografi a – INFOTO. Essa experiência foi a maior responsável por buscar informações, mapear e catalogar acervos históricos de fotografi a brasileira, agregar profi ssionais, organi- zar encontros regionais, promover a troca efetiva de informa- ções e tecnologias, resgatar fotógrafos e acervos esquecidos e/ou desconhecidos, enfi m criar uma política cultural para a fotogra- fi a brasileira (FERNANDES JÚNIOR, 2002, p. 19). Dando prosseguimento ao seu pensamento, Fernandes Júnior considera que o ápice desses acontecimentos estava representado pelas Semanas Nacionais de Foto- grafi a – e foram justamente essas Semanas que possibilitaramao movimento foto- gráfi co de Belém ultrapassar as fronteiras locais, ganhando o reconhecimento nacio- nal. A ebulição no campo da fotografi a, provocada pela Funarte, teve ressonância no Pará, e isto ocorre porque havia um contexto local que estava em sintonia, e propício às propostas da Funarte. Havia um interesse comum, advindo de uma inquietação latente, de um pensamento questionador que estava presente nas organizações que surgiam em várias frentes: Fotofi cina, FotoPará, Associação de Repórter Fotográfi - cos e FotoAtiva. Para Fernandes Júnior, “[...] essas embrionárias organizações foram responsáveis diretas pela explosão de uma política cultural fotográfi ca, criativa e in- dependente, que serviu de modelo para outros estados brasileiros” (Ibid., p.19). Em 1982, quando a Funarte promovia o projeto Fontes do Olhar, no mesmo período estavam acontecendo reuniões e debates entre os fotógrafos paraenses, que geraram a I Mostra Paraense de Fotografi a – I FotoPará. Nessa mesma época já exis- tia a Fotofi cina, que se manteve até 1983, sob a coordenação de Miguel Chikaoka, e reunia fotógrafos que trocavam experiências, discutiam os processos fotográfi cos, além da realização das próprias ofi cinas. A partir dessas experiências, na passagem de 1983 para 1984, nasce a FotoAtiva. A “Fotoativa – Iniciação para crianças e adultos”, ofi cina ministrada por Chikaoka em 1983, em seu atelier-laboratório, foi o embrião do Projeto do Núcleo de Ofi cinas Permanentes do grupo Fotofi cina. No que concerne a essa ofi cina, que contribuiu para a criação da FotoAtiva, Chikaoka esclarece que, no período em questão, a coexistência dos projetos Fotofi cina, FotoPará e FotoAtiva gerou certa confusão: O projeto FotoPará - Mostra Paraense de Fotografi as foi idealizado e realizado anualmente, de 1982 a 1984, pelo grupo Fotofi cina. Durante o período da exposição, foram realizados 40 Foto realizada em 1983, no atelier-laboratório de Miguel Chikaoka, situado temporariamente à rua Aristides Lobo, nº 1280, onde ministrou a ofi cina “Fotoativa – Iniciação para crianças e adultos”. encontros e debates temáticos entre os participantes e aberto ao público. Fruto desse processo surgiu uma articulação em prol da criação do Grupo FotoPará, fundado em 1985. Os principais atores desse processo eram os que faziam o Fotofi cina, aos quais se juntaram outras pessoas, participantes das Mostras ou não. Nesse mesmo período foi elaborado, ainda pelo Fotofi cina, o Projeto Fotoativa - Núcleo de Ofi cinas. Entretanto, para captar patrocínio, apoio junto à Funarte, era necessária uma representação jurídica. Como o Fotofi cina, apesar de ter realizado ações e projetos, não existia juridicamente e o processo de criação/organização do grupo Fotopará estava na sua fase inicial, o projeto Fotoativa foi encaminhado pela Fadesp. Assim, o projeto Fotoativa - Núcleo de Ofi cinas do Fotoativa, passa a ser executado paralelamente à fundação do Grupo FotoPará. A regularidade e a estratégia mobilizadora desse projeto acabam transformando-o no embrião do que é hoje a Fotoativa. A confusão se produz, a meu ver, porque boa parte das pessoas participava, sem restrições, dos três movimentos.22 22 O esclarecimento de Miguel Chikaoka foi apresentado por e-mail, em 2 de dezembro de 2013. 41 É importante reafi rmar que a complexidade da cena da fotografi a no Pará é fruto da junção de vários fotógrafos que comungavam ideias afi ns, mesmo que individual- mente tivessem as suas diferenças. Em depoimento para o jornal Diário do Pará, referindo-se aos grupos Fotofi cina e FotoPará, Chikaoka revela que eram “[...] todos pautados no mesmo ideal, de atuar juntos, solidariamente, visando a construção e afi rmação da individualidade artística”23. Para que os projetos obtivessem sucesso, prevalecia a proposta coletiva, as decisões em conjunto. De 1982 a 1984 houve três edições da mostra FotoPará, e o Grupo FotoPará, criado a partir dessas mostras, teve como primeiro presidente Luiz Braga. Na elaboração de seu estatuto social contou com a participação de Miguel Chikaoka, Luiz Braga, Patrick Pardini, Ana Catarina e Anastácio Gomes. O grupo realizou projetos signifi cativos, como a jornada 24 Horas Belém e Rio Abaixo Rio Acima, ambos em 1985. No período de 1986 a 1987, com o intuito de discutir o processo da linguagem fotográfi ca e refl etir coletivamente sobre a obra ou trabalhos específi cos de um fotógrafo, o grupo criou a série Autogra- fi as. Em 2013, o 9° Colóquio de Fotografi a e Imagem: Autografi as, promovido pela FotoAtiva, reedita e homenageia as proposições do Grupo FotoPará, em especial a Autografi a, por considerá-la um fator importante na trajetória de artistas e pesqui- sadores que contribuem para a história da fotografi a, não apenas local, mas nacional. Como se pode observar, a Funarte, ao chegar a Belém, com suas propostas para promover um pensamento sobre a fotografi a e provocar uma interação entre os fo- tógrafos brasileiros, encontra um ambiente favorável às suas ações, que iam ao en- contro de uma inquietação e mobilização já existente em torno da fotografi a. As Semanas Nacionais criadas pela Funarte reforçam desejos e fornecem condições de crescimento a uma ação coletiva que aqui se estruturava. Na opinião do fotógrafo e pesquisador Mariano Klautau Filho: O trabalho da Infoto/Funarte sob o comando de Ângela Ma- galhães e Nadja Peregrino na realização das semanas nacionais foi fundamental para a difusão da fotografi a no Brasil e espe- cialmente importante para Belém em sua realização em 1985. A Semana Nacional de Fotografi a em Belém adensou as expe- riências de produção e pensamento coletivo iniciados desde 82 na cidade. A partir daí começamos a construir uma identidade particular na produção brasileira de fotografi a contemporânea. 23 Depoimento de Miguel Chikaoka ao jornal Diário do Pará, caderno Belém, na matéria intitulada “Registros singulares do Mundo”, em 29 de novembro de 2009, p.13. 42 Em 1985, no atelier de Miguel Chikaoka, que também funcionava como sede do projeto Fotoativa, realiza-se o Projeto Autografi as, do Grupo FOTOPARÁ. Patrick Pardini projeta imagens de Cartier-Bresson para discussão. O período que compreende os anos 82 a 85 é o que defi ne o po- tencial criativo e lança Belém no circuito nacional.24 Com a ressonância de pensamentos e objetivos comuns, a Funarte torna-se uma espécie de parceira, cúmplice de uma força coletiva tão presente em Belém. Os fo- tógrafos paraenses participaram das várias edições das Semanas de Fotografi a. Em 1985, a IV Semana Nacional de Fotografi a aconteceu em Belém e, como bem analisou Klautau Filho, foi fundamental para adensar a produção local e demarcar um pro- cesso de inserção na produção da fotografi a contemporânea brasileira. Além das se- manas de fotografi as, a InFoto/Funarte também reforçou o seu propósito de difusão, com a publicação de dois catálogos: I Fotonorte, em 1986; e o II Fotonorte, em 1997. A Funarte, ao se dispor a descentralizar os investimentos culturais e artísticos que se concentravam no Sudeste do país, cumpre o seu papel de fomentadora da difusão 24 Este depoimento de Mariano Klautau Filho encontra-se na dissertação de Mestradode Luciana Loureiro Figueira Magno, orientada por Orlando Maneschy. O texto de Klautau Filho apresenta a publicação concernente ao primeiro Edital Prêmio de Fotografi a/2009. 43 Ofi cina “Vivendo as Imagens”, que foi conduzida por Cláudio Feijó (SP), Miguel Chikaoka (PA) e Rino Marconi (BA) e integrou a IV Semana Nacional de Fotografi a, realizada em Belém, em 1985. da produção de fotógrafos e artistas plásticos da região Norte, em especial de Belém. O INAP e o InFoto colaboraram, sem dúvida, com a cena artística local, mas houve uma diferença fundamental nas relações estabelecidas comos artistas plásticos e com os fotógrafos. Para os primeiros, as ações tiveram uma duração bem menor, e pratica- mente foram interrompidas. Deve-se isso tanto aos problemas da própria Funarte em gerenciar o projeto do INAP, quanto aos artistas, por não se unirem, não se fortalecem enquanto grupo. Um dado importante neste processo, apesar das difi culdades referen- tes ao trabalho coletivo, alguns artistas plásticos destacaram-se individualmente. Com os fotógrafos foi diferente, pois, mesmo que um ou outro tenha se sobressaído mais, muitos conseguiram difundir o seu trabalho e ganhar o reconhecimento nacional. A força do trabalho conjunto fez a diferença. Certamente houve confl itos, enfretamentos de várias ordens, mas o que prevaleceu foi o pensar e o agir coletivo. Por isso, o INfoto conseguiu realizar um trabalho contínuo e fi rmar uma parceria permeada por publi- cações, exposições e ações que atravessaram os anos 1980 e 1990. Em 2013, não há uma diferença tão demarcada entre fotógrafos e artistas plás- ticos. Ambos encontram-se inseridos na categoria de artes visuais, e muitos têm 44 os seus trabalhos desenvolvidos em um entrelaçar de linguagens, num campo mais aberto e híbrido. Nos últimos anos, um número razoável de artistas alcançou visibi- lidade na mídia, nos espaços museais, nas galerias, nas bienais e salões. Hoje, há um reconhecimento que implica a abertura de mercados fora das fronteiras de Belém. O que preocupa, no entanto, é que entre a efervescência da década de 1980 até 2013, já se passaram mais de 30 anos, e o fl uxo das artes continua se processando em movimentos sinuosos, formados por altos e baixos, pela não existência de mercado interno, pela falta de políticas públicas em diferentes níveis. As sustentações talvez procedam das universidades e dos atos coletivos, que ainda se mantêm, porém mais esparsos. A cena se constitui em meio ao malabarismo, ao poético voo dos trapezis- tas, sempre por um triz, no limiar do perigo. 3 47 Livres tessituras Imagens, Ações e Experimentos Arte, liberdade e política: uma convivência possível 49 As cores do circo, a instabilidade dos números poéticos que ocorrem no pica- deiro, arena de sonhos e tensões, servem de metáfora tanto para designar a instável situação do contexto em que se encontra a arte produzida em Belém, como para introduzir o ritmo quase mágico, entremeado de vivências intensas, que norteiam a cultura, a arte e a política nos anos 1980. Esse clima agitado e propenso à liberdade proporciona um trânsito de ideias e atitudes que tem o frescor do jovem que se lança, sem temer, em direção às experimentações. Nesse contexto, é possível identifi car as matrizes que vão motivar e reafi rmar os experimentos de Miguel Chikaoka. Dois segmentos iniciais se entrecruzam, reforçando um núcleo que constitui a espinha dorsal da liberdade e da postura política constantemente atrelada ao coletivo. Nesse começo, apesar da coexistência e de um segmento alimentar o outro, é importante notar que um se abriga na vivência criativa e provém das experiências vividas na França, que se identifi cam com as ações do grupo Ajir; e o outro, marcado pelo com- promisso político, aloja-se na postura cidadã desse paulista recém-chegado a Ama- zônia, que encontra apoio ao compartilhar ideias e na atitude política do grupo do jornal Resistência. Este grupo o acolhe e o convida a integrar o jornal, fornecendo- lhe as condições necessárias para permanecer na cidade. Na junção do político e do experimental encontra-se o eixo que gera não somente os processos educacionais, sempre presentes, mas também a instância autoral voltada para os experimentos fo- tográfi cos. Vida, política e arte entretecem os fi os, acompanham a irreverência e a mobilida- de de uma trama que se forma com ações nas ruas, com reuniões de fotógrafos, com atos políticos e exposições. Como visto, a inquietação de Chikaoka já se manifestava no período em que viveu na França – e um pouco antes, quando ainda estudava em Campinas. Um dos exemplos da tessitura entre a vida, a política e a arte, que sempre o acompanhou, pode ser percebido na manifestação íntima, mas de caráter público, que invade o seu quarto, na casa onde nasceu, em Registro (SP). A pichação25 feita por ele entre 1976 e 1979, no intervalo das férias, toma conta das paredes e traz as palavras de ordem, nas quais podem ser lidos os três atos que o norteiam: o da arte, o do amor e o da política. Em maio de 1968, os muros de Paris foram pichados com frases de ordem política, convocando os operários a se unir aos estudantes de arte. Quase vinte anos depois, em 1985, a 18ª Bienal Internacional de São Paulo, sob a curadoria de Sheila Leirner, convida os pioneiros do grafi te brasileiro a participar da exposição. Entre eles estava Alex Valluari, que mostrou a sua divertida personagem A Rainha do Frango Assado. 25 Arte de rua que algumas vezes pode ser confundida com o grafi te. Neste último usam-se mais imagens ou desenhos do que palavras, e não tem o caráter transgressor da pichação. 50 A parede do quarto de Miguel Chikaoka, pichada por ele no intervalo das férias, quando estudava em Campinas(SP); e depois, na França. Valluari costumava deixar impressa nos muros a instigante bota preta, marca de sua produção, assim como desenhos acompanhados de palavras irônicas, como é ocaso da fi gura de um executivo que tem a sua cabeça substituída pela logomarca da Globo26, ao lado dos dizeres: “Não penso não existo, só assisto”. Tendo como suporte as ruas de São Paulo, desde os anos 1970, o artista disponibilizava ao público o seu humor, a sua alegria e ironia. Chikaoka talvez não tenha visto os grafi tes de Valluari, mas os dois tinham em comum uma produção fértil e, acima de tudo, uma inquietação que impedia qualquer acomodação. As pichações no reservado do quarto podiam representar as quatro paredes ganhando a dimensão do mundo, misturando os sonhos com o real, em um fl uxo contínuo capaz de romper as fronteiras do dentro e do fora, atravessando portas e janelas. Ir e ter onde caminhar parecia alojar-se no íntimo espaço que abrigava o Velho Rei, companheiro de viagem do fotógrafo, muito antes da voz do poeta os aproximar. Sem lenço, mas com documento, quando Chikaoka aporta em Belém, sente que chega “no lugar certo na hora certa”27. Em menos de três meses estava na cena da 26 Logomarca muito difundida, principalmente nos canais da maior rede de televisão do país, fundada pelo jornalista Roberto Marinho, em 1965. 27 Esta afi rmativa e outras informações aqui contidas foram fornecidas por Miguel Chikaoka, em entrevista concedida à autora em 12 de setembro de 2013. 51 cidade, fotografando para o Jornal Resistência, cumprindo pautas de toda ordem, nos bairros do Jurunas e Terra Firme, e também viajando pelo interior do Pará. Havia solidariedade, sobressaíam-se as relações humanas, as relações de afeto. O contato com o grupo do Jornal Resistência se deu no I Ato Público pelo Direito de Morar, por intermédio da Sociedade Paraense de Direitos Humanos (SDDH)28, considerada por Chikaoka como “uma das frentes mais avançadas das organizações políticas, que lutava pelos direitos do cidadão na Amazônia”. O Jornal era o principal veículo de comunicação do SDDH, e surgiu para dar vez aos excluídos da mídia convencional. A atitude política estava associada a processos libertários capazes de realizar a difusão do jornal por meios não convencionais, pela pincelada nos muros, pelo divertido anúncio que convidava o passante a ler o Resistência. Ir em zigue-zague, partir de um ponto e seguir em direção daquilo que perdeu sua materialidade e passou a ocupar a lembrança, é o propósito do narrador. As pontes são infi ndáveis e maleáveis, podendo atingir a terceira margem, os entre-lugares percorridos
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