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Pneumologia 218 Prática Hospitalar • Ano IX • Nº 53 • Set-Out/2007 Fibrose cística (FC) é a doença genética recessiva mais comum em caucasianos, com uma incidência de 1 para 2.500 nascimentos, porém variável de acordo com a região demográfica. No Brasil, pelos resultados da triagem neonatal que vem ocorrendo nos Estados de Santa Catarina, Paraná e Minas Gerais, tem-se encontrado incidência de 1 recém-nascido em 9.500 nascimentos. É possí- vel que a incidência seja maior nos Estados com maior população de origem européia e menor nos com maior população de origem africana e miscigenada, mas pelos dados disponíveis até o momento não foi observada diferença na incidência. É essencial que a doença seja prontamente reconhecida para evitar exames desnecessários, proporcionar intervenção terapêutica adequada, aconselhamento genético, assegurar acesso aos serviços especializados, programa de medica- mentos e melhor prognóstico. O diagnóstico clássico de FC é sugerido por características fenotípicas e confirmado pela demonstração de concentrações elevadas de eletrólitos no suor (tabela 1). As características clássicas: doença sinuso- pulmonar, insuficiência pancreática, infertilidade masculina e níveis elevados de eletrólitos no suor são conhecidas pela maioria dos pedia- tras e clínicos. Quase todos os indivíduos do sexo masculino pós–púberes têm azoospermia obstrutiva, 85% a 90% de todos os pacien- tes diagnosticados apresentam insuficiência pancreática exócrina e aproximadamente 98% apresentam valores de cloro elevados no suor. Em geral, os critérios para o diagnóstico de FC são claros, sintomas clínicos consistentes com FC em pelo menos um sistema de órgãos (tabelas 2 e 3) e a demonstração da disfunção da proteína CFTR (Cystic Fibrosis Transmembrane Conductance Regulator). A disfunção da CFTR pode ser demons- trada por um dos quatro métodos: cloro no suor elevado (> 60 mmol/L), presença de duas mutações CFTR conhecidas associadas à disfunção da proteína CFTR ou evidência de Manifestações Clínicas de Fibrose Cística entre Pacientes Diagnosticados na Vida Adulta Profa. Dra. Neiva Damasceno* * Professora Assistente de Pneumologia Pediátrica da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Coordenadora do Serviço de Referência de Fibrose Cística da mesma instituição e Vice- Presidente do Grupo Brasileiro de Estudos da Fibrose Cística. Tabela 1. Critérios para o diagnóstico de FC • Uma ou mais características fenotípicas • História de FC em irmão ou screening neonatal e • Evidência laboratorial de disfunção CFTR documentada por teste do suor com eletrólitos elevados ou • Identificação das mutações em cada gene ou • Demonstração das anormalidades características no transporte iônico através do epitélio nasal FC atípica – comumente possuem mutações ainda não identificadas ou incomuns na população 219Prática Hospitalar • Ano IX • Nº 53 • Set-Out/2007 anormalidade no transporte iônico por quantificação direta com a medida da diferença de potencial nasal e demons- tração da atividade da proteína CFTR em biópsia de epitélio retal. Entretanto, o reconhecimento cres- cente de casos atípicos de FC em adoles- centes e adultos com acometi- mento de um ou dois sistemas de órgãos e confirmados não apenas por valores elevados de cloro, mas pelos outros métodos citados, tem pos- sibilitado que muitos clínicos estabeleçam o diagnóstico nesta faixa etária. O uso do termo FC não clássica ou atípica para descrever qualquer indivíduo com suficiência pancreática é incorreto. A FC exibe extensa variabilidade feno- típica e pode ter apresentações diferentes e iniciadas em idades precoce ou tardia, dependentes da mutação genética e seu grau de disfunção na proteína CFTR, assim como da sensibilidade do órgão a esta disfunção. O comprometimento de órgãos tam- bém é variável, assim como a gravidade da doença pulmonar, freqüência de com- plicações e idade em que ocorre a morte. O fenótipo pulmonar parece ser o mais influenciado por uma combinação do ge- nótipo CFTR, fatores ambientais e genes modificadores (tabela 4). Na maioria dos diagnósticos de FC, 70% ocorrem no 1º ano de vida, 8% após os dez anos e há um número crescente de diagnósticos na idade adulta. Com isto e a melhora na expectativa de vida, em 2000 os dados da Fundação Americana de FC mostraram que 40% dos pacientes tinham idade superior a 18 anos (fig. 1). Entre os adolescentes e adultos, muitos têm história típica (respiratória e gastrintestinal leves) desde a infância e freqüentemente associada a pouco cres- cimento. Em alguns, os sintomas pulmo- nares podem ser a primeira manifestação após os 13 anos. O diagnóstico de FC em adultos ocorre predominantemente em uma minoria de pacientes que são suficientes pancreá- ticos e que não apresentam sintomas respiratórios ou estes são leves durante a infância (fig. 2). FC deve ser considerada em pacientes adultos que apresentam crises freqüentes ou recorrentes de asma ou bronquite com tosse produtiva e de difícil controle. Alguns adultos com FC apresentam sintomas respiratórios das vias aéreas superiores mais proeminentes, como sinusite recorrente e/ou polipose nasal (fig. 3). Freqüentemente os sintomas são leves e respon- dem bem ao tratamento, mas Tabela 4. Correlação genótipo CFTR – Fenótipo na fibrose cística 2 Mutações graves 1 Mutação grave - 1 Mutação leve Idade ao diagnóstico Precoce (< 1 ano) Tardia (> 10 anos) Fenótipo pancreático Insuficiente Suficiente Íleo meconial Comum (20-30%) Ausente Fenótipo pulmonar Variável Variável Níveis de cloro no suor Elevados Limítrofes ou pouco elevados Fertilidade masculina Nenhuma Possível Tabela 3. Características fenotípicas • Anormalidades nutricional e gastrintestinal incluindo: - Síndrome de obstrução intestinal distal (DIOS) e prolapso retal - Insuficiência pancreática e pancreatites recorrentes - Doença hepática crônica manifestada por evidência clínica ou histológica de cirrose biliar focal ou cirrose multilobular - Má nutrição protéico-calórica, hipoproteinemia e edema e complicações secundárias a deficiência de vitaminas lipossolúveis - Síndromes de perda de sal: depleção de sal aguda e crônica e alcalose metabólica - Anormalidades urogenitais levando a azoospermia Tabela 2. Características fenotípicas • Doença sinopulmonar crônica manifestada por: - Infecção/colonização persistente por patógenos típicos da FC: Staphylococcus aureus, Haemophilus influenzae não tipável, Pseudomonas aeruginosa mucóide e não-mucóide e Burkholderia cepacia - Tosse crônica e produção de escarro - Anormalidades persistentes na radiografia de tórax (bronquiectasias, atelectasias, infiltrados e hiperinsuflação) - Obstrução aérea manifestada por sibilos e aprisionamento de ar - Pólipos nasais e RX ou CT com anormalidades dos seios paranasais - Baqueteamento digital Figura 1. Sobrevida da população FC adulta (Fundação Americana) 220 Prática Hospitalar • Ano IX • Nº 53 • Set-Out/2007 recorrem com mais freqüência do que seria esperado. É comumente o grupo de pacientes com FC não clássica que oferece a maior provocação diagnóstica aos médicos pediatras e clínicos. Embora a definição de FC não clássica possa ser revista futuramente, o grupo é descrito como indivíduos que apresentam um fenótipo FC em pelo menos um órgão e têm valores do íon cloro normal ou limítrofe. Baseado nos dados do registro americano de FC, aproximadamente 2% dospacientes preenchem os critérios para o diagnóstico de FC não clássica. Isto pode subestimar a prevalência real, assim como um significante número de indivíduos com FC não clássica permanece sem diagnóstico. Em geral, nesse grupo os indivíduos tendem a ser suficientes pancreáticos e freqüentemente apresentam doença pulmonar mais leve. Ocasionalmente, os homens podem ser férteis. Alternativamente, FC não clássica pode ter apresentação na qual apenas um sistema de órgão apresenta um fenótipo FC óbvio. Pacientes com FC não clássica pos- suem duas mutações CFTR, pelo menos uma dela é comumente uma mutação leve, resultando em expressão e função parcial da proteína CFTR. Na apresentação denominada de atípica ou não clássica, os indivíduos apre- sentam um fenótipo FC em pelo menos um sistema de órgãos e têm testes do suor normal (< 40 mmol/L) ou “limítrofe” (40-60 mmol/L). Nestes pacientes predo- mina uma única característica clínica, isto é, anormalidades eletrolíticas, pancreatites, doença hepática, sinusite ou azoospermia obstrutiva. Isto comumente dificulta o reconhe- cimento e o diagnóstico. Tais pacientes são freqüentemente diagnosticados em idade tardia. Se eles apresentam alguma combinação de doença pulmonar, infecção por Pseudomonas, doença pancreática ou infertilidade masculina, o diagnóstico será freqüentemente reconhecido apesar do teste do suor com eletrólitos normal ou limítrofe. A confirmação do diagnóstico pode requerer detalhada avaliação laboratorial e análise genética de mutações ou enca- minhamento para serviço especializado em FC para quantificação da função da proteína CFTR através da medida da dife- rença de potencial elétrico nasal ou biópsia retal (tabela 5). Infelizmente, estas análises ainda não são rotineiramente disponíveis em nosso meio. Tabela 5. Avaliação clínica de casos FC não clássicos • Microbiologia do trato respiratório • Avaliação de bronquiectasias (rX, CT). • Avaliação dos seios paranasais (rX, CT). • Avaliação da estrutura e função pancreática • Avaliação do trato genital masculino - Análise do sêmen - Exame urológico - USG - Exploração escrotal • Exclusão de outros diagnósticos - Estrutura ciliar e função - Estado imunológico - Alergia - Infecção * Pesquisa das mutações CFTR * Medida da diferença de potencial elétrico nasal * Biópsia retal Figura. 2. Paciente com sintomas respiratórios diagnosticados como asma na infância e FC aos 26 anos com CT de tórax evidenciando extensas lesões. Figura 3. Sinusopatia em adolescente FC. A confirmação do diagnóstico pode requerer detalhada avaliação laboratorial e análise genética de mutações ou encaminhamento para serviço especializado em FC para quantificação da função da proteína CFTR através da medida da diferença de potencial elétrico nasal ou biópsia retal Pneumologia 221Prática Hospitalar • Ano IX • Nº 53 • Set-Out/2007 Na Santa Casa de São Paulo, dos 120 pacientes em seguimento, 22% têm mais que 18 anos, com idade média de 25,4 anos. O diagnóstico foi estabelecido após os 18 anos em apenas cinco pacientes e em quatro deles a confirmação ocorreu através da concentração elevada do íon cloro no suor, forma clássica, o que su- gere haver subdiagnóstico dos casos não clássicos. Ausência congênita bilateral de vasos deferentes (ABVD) acontece em apro- ximadamente 1% a 2% dos casos de infertilidade masculina. Alguns estudos sugerem que cerca de 50% destes indi- víduos possuem duas mutações CFTR, sendo que uma delas é comumente uma mutação leve. A maioria destes indivíduos pode ter valores de cloro no suor normal ou limítrofe. Existem evidências de que uma proporção significativa destes indivíduos tem doença sinusopulmonar leve, en- quanto outros apresentam ABVD apenas e, talvez, futuramente sejam classificados em outra categoria. Pancreatite recorrente idiopática é outra manifestação clínica que pode con- duzir ao diagnóstico de FC não clássica. Alguns estudos têm determinado que 10% a 20% destes indivíduos possuem duas mutações CFTR e pelo menos uma delas é invariavelmente uma mutação leve. Na maioria destes, a pancreatite é o único sintoma FC. Outras características variam entre indivíduos, mas a maioria tem cloro no suor normal ou limítrofe e anormalidades na medida de diferença de potencial elétrico nasal e pouca ou nenhuma evidência de doença pulmonar. Outras doenças não preenchem os cri- térios diagnósticos para FC, mas estão as- sociadas com mutações CFTR e têm sido denominadas de “doenças relacionadas à CFTR”, e incluem aspergilose broncopul- monar alérgica (ABPA), sinusite crônica e bronquiectasia idiopática. Embora estas doenças pareçam ser influenciadas pela função alterada da proteína CFTR, elas são muito influenciadas por fatores ambientais e outros genes não CFTR. Indivíduos com FC são de risco para ABPA, com 5% a 10% desenvolvendo esta complicação durante o curso de sua doença. Uma associação entre ABPA e mutações CFTR tem sido descrita em indivíduos sem FC, sendo relatada a freqüência de 12,5% e 28,5% em dois estudos isolados. Nenhum dos pacientes tinha duas mutações CFTR. Rinossinusite crônica em paciente não FC também tem sido associada a mutações CFTR, embora a prevalência encontrada tenha sido baixa, 7% em um estudo e 12% em outro, sugerindo que o seu desenvolvimento seja multifatorial. Bronquiectasia idiopática é outra entidade de doença em que vários in- vestigadores têm associado à disfunção CFTR, porém os dados disponíveis até o momento são discrepantes. Infecções por micobactérias atípicas em indivíduos adolescentes e adultos como manifestação inicial que conduziu ao diagnóstico FC têm sido relatadas na literatura e em nosso serviço. A importância clínica de rotular-se indi- víduos que apresentam doença limitada e valores de cloro no suor normal ou limítrofe como FC não clássica permite identificar um grupo de pacientes que pode ser de risco para expressão da doença em múltiplos sistemas de órgãos e que se be- neficiarão do monitoramento subseqüente da doença pulmonar. Também auxilia no aconselhamento genético e o “rótulo de FC não clássica” pode ajudar os pacientes no entendimento de que seu curso clínico é diferente da FC clássica e que muito da informação pública disponível não se aplica a eles. t REFERÊNCIAS 1. Boyle MP. Nonclassic cystic fibrosis and CFTR-related diseases. Current Opinion in Pulmonary Medicine. 2003;9:498-503. 2. Rosenstein BJ. What is a cystic fibrosis diagnosis? Clinics in Chest Medicine. 1998;9(3):23-4. 3. Stuhrmann M, Dörk T. CFTR gene mutations and male infertility. Andrologia. 2000;32:71- 83. 4. Rosenstein BJ. Cystic fibrosis diagnosis: new dilemmas for an old disorder. Pediatr Pulmonol. 2003;33:83-4. 5. Cystic Fibrosis Foundation: Patient Registry 2001 Annual Report. Bethesda, Maryland 2002. 6. Gilljam M, Ellis l, Corey M et al. Clinical manifestations of cystic fibrosis among patients with diagnosis in adulthood. Chest. 2004;126:1215-1224. 7. Rosenstein BJ, Cutting GR. Diagnosis of cystic fibrosis: a consensus statement. J Pediatr. 1998;132:589-595. 8. Yankaskas JR, Knowles MR (eds.). Cystic fibrosis in adults. Philadelphia, PA: Lippin- cott-Raven Publishers, 1999. 9. Yankaskas RJ et al. Cystic fibrosis adult care-consensus conference report. Chest. 2004;125:1S-39S. Endereço para correspondência: R. Martinico Prado, 106 - apto 111 - Higienópolis - CEP 01224-010 São Paulo - SP.Pancreatite recorrente idiopática é outra manifestação clínica que pode conduzir ao diagnóstico de FC não clássica. Alguns estudos têm determinado que 10% a 20% destes indivíduos possuem duas mutações CFTR e pelo menos uma delas é invariavelmente uma mutação leve. Na maioria destes, a pancreatite é o único sintoma FC
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