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DEVER FUNDAMENTAL DE VOTAR Franco Aurélio Brito de Souza1 RESUMO O presente estudo, cujo tema é o exercício do voto na perspectiva dos deveres fundamentais, tem por objetivo refletir sobre a ideia de que, não obstante a Lei Maior de 1988 fazer menção expressa a deveres ao longo do texto constitucional, a sociedade brasileira ainda não compreendeu sua razão de ser, especialmente no que concerne ao voto. Nesse diapasão, busca analisar a natureza de tal instituto sob a perspectiva dos deveres fundamentais. A partir de uma pesquisa predominantemente bibliográfica, com abordagem qualitativa, balizada pelo método dialético, foi possível alcançar que, tanto quanto um direito, o voto traduz um dever fundamental que precisa ser exercitado para além do pensamento egoísta. Palavras-chave: voto, direito, dever. 1. PALAVRAS INICIAIS Sabe-se que os direitos fundamentais, além de tratarem da tutela e promoção da pessoa na sua individualidade, percebida como titular de direitos; denotam valores de toda coletividade, os quais o Estado e a sociedade devem reverenciar, resguardar e promover. Por isso, é imperioso ter em mente que direitos não podem ser concebidos sem consideração recíproca em relação a deveres. Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet: Não é à toa que a máxima de que direitos não podem existir sem deveres segue atual e mais do que nunca exige ser levada a sério, ainda mais quando na atual CF houve menção expressa, juntamente com os direitos, a deveres fundamentais, como dá conta a redação do art. 5º, caput, ao se referir aos direitos e deveres individuais e coletivos, isto sem levar em conta outras referências diretas a deveres ao longo do texto constitucional2. 1 Mestre em Direito do Estado pela Universidade da Amazônia; Professor de Direito Eleitoral na Graduação e no Programa de Pós-Graduação lato sensu da Universidade da Amazônia; Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Belém e da Faculdade Integrada Brasil Amazônia; Advogado. 2 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. e ampl. 2. tir. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 226. Não obstante, o tema dos deveres fundamentais, conforme observado por Cassalta Nabais3, é reconhecidamente um dos mais “esquecidos” pela doutrina constitucional hodierna, não se valendo de um regime constitucional equivalente, ou sequer aproximado, àquele referente aos direitos fundamentais. No que toca ao ordenamento jurídico pátrio, o contexto não é diverso. O desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial sobre este tema não é consubstanciado. Tal estágio evolutivo encontra razão de ser no desenho do próprio Estado de Direito e do que se poderia assinalar de um legado liberal, a partir da postura do indivíduo em face do Estado, como a de titular de prerrogativas de não intervenção na sua esfera pessoal, fomentando a primazia quase absoluta dos direitos subjetivos em detrimento dos deveres. Essa supervalorização dos direitos guarda relação estreita, pois, com a visão de um cidadão descomprometido com a coletividade que o circunda. Constatação que, por sua vez, no que concerne às características do Estado Social, necessitou de certa revisão, haja vista a necessária ponderação a respeito do exacerbado individualismo, mirando, assim, os elementos sociais e os deveres econômicos, sociais e culturais4. O imprescindível reconhecimento de deveres fundamentais é pressuposto da atuação pró-ativa dos cidadãos na vida pública e impõe, nas lições de José Carlos Vieira de Andrade5, “um empenho solidário de todos na transformação das estruturas sociais”, reclamando um grau mínimo de responsabilidade social no exercício da liberdade individual, além da existência de deveres jurídicos (e não apenas morais)6 de deferência aos valores constitucionais. 3 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Livraria Almedina, 1998, p. 15. 4 Para melhor análise ver BONAVIDE, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007; CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estado de direito. Lisboa: Gradiva, 1999; DÍAZ, Elías. Estado de derecho y sociedad democrática. Madri: Editorial Cuadernos para el Diálogo, 1973. 5 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Livraria Almedina, 1987, p. 155. 6 “Como apontam Gregorio Peces-Barba (1987, p. 329) e Gianluigi Palombella (2007, pp. 117-118), o conceito de dever tem, historicamente, influência da moral, de modo a se dizer, inclusive, que não há direitos morais, e sim deveres (LAWS, 2003, p. 267). A influência da moral religiosa, notadamente a cristã, sobre o conceito atualmente adotado de deveres é bastante clara. Para se ter uma breve ideia disso, deveres muito comuns na Antiguidade Greco-Romana eram os de culto aos mortos e de manter aceso o fogo sagrado da família, além disso, na tradição cristã encontram-se deveres insertos nos mandamentos do Antigo Testamento (ALCÂNTARA, 2006, p. 3). Há, também, influência da ética sobre o conceito de deveres, do que se pode citar a obra de Marco Túlio Cícero, De officiis, que trata sobre os deveres, e que se constitui como uma das influências mais nítidas para a recepção jurídica moderna do conceito de dever (PECES-BARBA MARTÍNEZ, 1987, p. 329). Ainda no campo ético- moral é possível referir ao bastante citado dever de não fazer a outrem o que não se quer que faça a Vale ressaltar que no universo jurídico, bem como no moral, sanções corresponderam aos deveres. Isto é, a disposição jurídica de um dever e o seu não atendimento pelos indivíduos traz, normalmente, como consequência uma espécie de “castigo”. Portanto, fica claro que, mesmo no campo do direito constitucional não se prescinde de uma busca no campo da moral, especialmente da moral cristã, em se tratando da cultura ocidental, tanto do conceito quanto da tipologia dos deveres fundamentais. Isso, de um ponto de vista jurídico excessivamente puro provoca a sensação de que os deveres não são uma categoria jurídica. Fosse assim, não haveria institutos jurídicos, já que todos eles, salvo raríssimas exceções, derivam de uma situação social ou de um costume que lhes são pré- existentes. Assim, a relação entre direito e moral, no campo dos deveres fundamentais, não é senão bastante forte7. Dessa forma, nota-se nítida através da história uma estreita relação entre o antijurídico e o pecado, a qual com o transcorrer do tempo sofreu abalos a partir do distanciamento entre Estado e religião; entre direito e moral. 2. ENSAIO SOBRE CLASSIFICAÇÃO DOS DEVERES FUNDAMENTAIS Considerando o caminhar histórico e as singularidade do Estado de direito, de pronto, tem-se que o respeito ao ordenamento jurídico legitimamente estabelecido emerge no seio da sociedade como uma espécie de “dever dentre os deveres”. O que tem o condão de sugerir a percepção de deveres em sentido amplo e em sentido estrito. A primeira forma abraçando a necessidade de prestação estatal com o escopo de materialização, por meio de políticas públicas, de direitos fundamentais; e a segunda, alcançando propriamente os deveres fundamentais dos cidadãos na busca pela harmonização das relações intrassociais. Nesse aspecto, faz-se mister observar, conforme ensinamentos de José Cassalta Nabais8, que se por um lado os direito fundamentais denotam a perspectiva ativa dos indivíduos ante o Estado e a sociedade, por outro os deveres refletem o prisma passivo da mesma relação. Em outrosdizeres, os direitos exprimem o que o si próprio, visto pelos contratualistas clássicos como uma lei natural e por Immanuel Kant como imperativo categórico”. (SIQUEIRA, Julio Pinheiro faro Homem de. Deveres fundamentais e a constituição brasileira.FIDES, Natal, v.1, n. 2, ago/dez, 2010, p. 215). 7 Ibidem, p. 216-7. 8 NABAIS, José Casalta. op. cit.,, p. 65. Estado tem que propiciar às pessoas, ao passo que os deveres referem-se àquilo que estas devem àquele. Surge dessa reflexão a ideia de deveres autônomos e deveres correlatos aos direitos, distinguindo-se, pois, em razão de estarem ou não ligados direta e materialmente à concretização de direitos fundamentais9. A título de exemplificação, o dever de solidariedade enquadra-se como dever correlato, o qual tem total relação com direitos, tais como sociais, promoção da saúde e da educação. O dever de proteção do meio ambiente igualmente é exemplo de dever correlato, in casu, ao direito ao ambiente equilibrado, saudável e democrático. Incluídos na categoria de deveres autônomos verificam-se, v.g., o de alistamento eleitoral, o de prestar serviço militar e o de votar. Semelhante ao que ocorre com os direitos fundamentais, os deveres podem ter conteúdo de natureza defensiva ou prestacional, dependendo da imposição que realizam em relação ao seu destinatário, a saber: comportamento positivo ou negativo. Assim, há deveres fundamentais prestacionais ou positivos e deveres fundamentais defensivos ou negativos10. Há ainda a noção de deveres expressos e deveres implícitos, situando-se a diferença no fato de estarem ou não expressamente estabelecidos no texto constitucional11. De acordo com quem possui o dever, Gregorio Peces-Barba Martinez aponta deveres individuais, deveres coletivos e deveres estatais, os quais se diferenciam, respectivamente, por dizerem respeito àquilo que pode ser cobrado das 9 SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit.,p. 228. 10 A complexidade de alguns deveres fundamentais não permite seu ajuste exclusivo em uma das categorias mencionadas, por causa da presença dos dois elementos. Isso acontece no caso dos deveres de defesa e promoção da saúde, de defesa do ambiente e de defesa do patrimônio (NABAIS, José Casalta. op. cit., p. 112) 11 Sobre o assunto Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira observa que: “Embora não haja a formulação, por exemplo, de que pagar tributos seja um dever, ou seja, não haja no texto constitucional enunciado que explicite como dever das pessoas em pagar determinados tributos, dos enunciados de direito tributário previstos na CF é claramente possível extrair a obrigação dos sujeitos de pagar tributos, assim como, por exemplo, no art. 14, §1º, da CF, é clara a obrigatoriedade de alistamento eleitoral para os brasileiros alfabetizados maiores de 18 e menores de 70 anos. De outro modo, não há no texto fundamental brasileiro qualquer referência em suas normas que permita a extração dos deveres de respeitar a situação jurídica de terceiros e de respeitar a ordem jurídica brasileira. Esses deveres são formulações tanto doutrinárias quanto jurisprudenciais pacíficas, mas que não têm qualquer pista de sua existência no texto magno. Dentro desse esquema, pode-se trazer quarta classificação: deveres legais ou constitucionais e deveres judiciais ou doutrinários, de acordo com sua previsão no ordenamento jurídico – que é o primeiro caso – ou com sua criação pela doutrina ou pela jurisprudência – que é o segundo caso”. (SIQUEIRA, Julio Pinheiro faro Homem de. op. cit., p. 219). pessoas; que pode ser exigido dos grupos de pessoas (família, sindicato, partido político); ou do Estado, quer no âmbito interno quer no externo12. 3. DEVERES FUNDAMENTAIS NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA A Carta Constitucional pátria dispõe expressamente no Capítulo I de seu Título II sobre deveres fundamentais. Não obstante, pela existência de deveres também implícitos, nota-se certa dificuldade didática em delimitar uma listagem a respeito do tema. De qualquer forma, sem a pretensão de indicar um rol exaustivo, percebem-se no âmbito constitucional brasileiro os seguintes deveres: de respeito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (art. 5º, caput, da CF); de fazer ou deixar de fazer algo em virtude da existência de lei (art.5º, II, da CF); de não torturar ou submeter outrem a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III, da CF); de indenização por dano material, moral ou à imagem (art. 5º, V e X, da CF); de respeito à liberdade de consciência e crença (art. 5º, VI, VIII, da CF); de respeitar a intimidade, a vida privada, a honra, a imagem e a casa do indivíduo, assim como sua correspondência, comunicações telegráficas, de dados e telefônicas (art. 5º, X, XI, XII, da CF); de respeitar a propriedade (art. 5º, XXII, da CF); dever de atender à função social da propriedade (art. 5º, XXIII, da CF); de prestar ajuda ao Estado e/ou à sociedade em caso de iminente perigo público (art. 5º, XXV, da CF); de respeitar as criações alheias, bem como seu valor (art. 5º, XXVII, XXVIII, XXIX, da CF); de alistamento eleitoral, de votar e de filiação partidária para se candidatar (art. 14, da CF); de alistamento militar (art. 143, da CF); de pagar tributos (art. 145 e seguintes, da CF); de contribuir para a seguridade social (arts. 194 e 195, da CF); de promover a educação (art. 205, da CF); de promover e proteger o patrimônio cultural (arts. 215 e 216, da CF); dever de preservar o ambiente (art. 225, da CF); conjugais (art. 226, §5º, da CF); de dar suporte à criança e ao adolescente (art. 227, da CF); de amparar as pessoas idosas (art. 230, da CF). Nessa direção, Ingo Wolfgang Sarlet, ao comentar sobre o regime jurídico-constitucional dos deveres fundamentais, traz as seguintes lições: 12 MARTÍNEZ, Gregorio Paces-Barba. Los deberes fundamentales. Doxa, Alicante, n. 4, 1987, p. 336. [...] já ficou suficientemente demonstrado que a categoria dos deveres fundamentais não se limita a deveres em relação a direitos individuais (no sentido de direitos de liberdade) mas alcança também deveres de natureza política, bem como deveres sociais, econômicos, culturais e ambientais. Em termos gerais, no que diz com o seu conteúdo, o regime jurídico dos deveres fundamentais guarda sintonia com o regime jurídico dos direitos fundamentais, guardadas, é claro, as distinções entre as diferentes dimensões de direitos fundamentais, bem como a sua natureza defensiva ou prestacional. Nesse sentido, é possível afirmar que os deveres fundamentais podem – a depender do caráter da norma jurídico- constitucional que os fundamenta – ter eficácia e aplicabilidade imediatas, mas que tais características, no plano dos deveres, devem, a depender da hipótese, ser compreendidas de modo distinto do que ocorre com os direitos fundamentais. Com efeito, especialmente quando se cuidar da imposição, diretamente deduzida de deveres fundamentais (sem mediação legislativa) de sanções de natureza penal, administrativa e mesmo econômica, há que ter a máxima cautela e render sempre a devida homenagem ao princípio da legalidade e seus diversos desdobramentos, entre outros13. Além disso, é imperioso reforçar que os deveres fundamentais compõem categoria constitucional autônoma, notadamente por não poderem ser confundidos com as restrições e limitações de direitos fundamentais, mesmo que possam servir de justificativa constitucionalpara eventuais limitações e restrições14. Sendo assim, tal categoria jurídica determina a cada indivíduo, à sociedade e ao Estado a necessidade de respeito à ordem jurídica legitimamente estruturada e contribui para a formação e a manutenção de um alicerce material vinculado a um sentimento comunitário de bem-estar, o qual viabiliza a fruição de um padrão coletivo de vida digno e civilizado condizente com os níveis satisfatórios socioeconômicos que vigoram na sociedade. 4. CONJECTURAS SOBRE O VOTO NO CONTEXTO DOS DEVERES FUNDAMENTAIS Antes de se comentar a respeito do instituto do voto propriamente dito, faz-se mister abordar, ainda que sucintamente, a noção de sufrágio. 13 SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., p. 229-30. 14 Ibidem, p. 230. Para José Jairo Gomes, “o vocábulo sufrágio significa aprovação, opinião favorável, apoio, concordância, aclamação. Denota, pois, a manifestação de vontade de um conjunto de pessoas para a escolha de representantes políticos”15. Em outras palavras, o sufrágio é o poder que se confere a certo número de pessoas de atuar diretamente ou indiretamente na gerência da vida pública. Com a participação direta, o povo politicamente organizado decide, através do sufrágio, determinado assunto de governo; com a participação indireta, o povo elege representantes. Quando o povo se serve do sufrágio para decidir, como nos institutos da democracia semidireta, diz-se que houve votação; quando o povo porém emprega o sufrágio para designar representantes, como na democracia indireta, diz-se que houve eleição. No primeiro caso, o povo pode votar sem eleger; no segundo o povo vota para eleger16. Diante dessas premissas, o próximo passo é saber se o sufrágio é função ou direito. Assim, duas correntes principais debruçam-se sobre o tema, quais sejam: a que perfilha o entendimento da doutrina da soberania nacional, a qual apreende o sufrágio como função; e a que compartilha a teoria da soberania popular, a qual percebe esse instituto como direito. A primeira, teoria jurídica do sufrágio-função, ganhou eco a partir de Barnave, em 1791, por ocasião da Revolução Francesa17. Sustenta que o eleitor é instrumento ou órgão de que vale a nação com fins de criar o órgão maior (corpo representativo) a que delega o poder soberano, do qual todavia nunca perde a condição de titular. Com efeito, nessa diretriz, a partir do sufrágio não se tem a vontade autônoma do eleitor intervindo na eleição, mas sim a vontade soberana da nação. No que tange à teoria do sufrágio-direito, a história aponta Rousseau como o seu “mais celebrado corifeu”18. Considerando o povo soberano, cada indivíduo, como membro da coletividade política, assume a titularidade de parcela da soberania. O sufrágio, aqui, é visto como a expressão sui generis, autônoma, de cada pessoa integrante do corpo eleitoral. Sem embargo, na contemporaneidade, com base nos ensinamentos constitucionais de origem italiana19, procurou-se uma solução eclética para a 15 GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 37. 16 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 245. 17 Ibidem, p. 246. 18 Ibidem, p. 247. 19 Ver RUFFIA, Biscaretti di. Diritto constituzionale. 5. ed. Napol, 1958. natureza jurídica do sufrágio. Ao mesmo tempo em que sufrágio agrega a noção de direito, não prescinde do seu correto exercício (dever). Como ‘função eleitoral’, o sufrágio é direito público subjetivo, contendo certos poderes reconhecidos ao seu titular, entre os quais, consoante Ruffia, o de exigir a própria inscrição nos registros eleitorais, o de reclamar a inscrição de outros eleitores em tais registros, o de exigir o eventual cancelamento daqueles eleitores que hajam sido indevidamente inscritos, o de propor eventualmente candidatos, o de ser admitido às votações. Como ‘correto exercício da função eleitoral’, entende-se por aí a face do sufrágio que se apresenta em forma de dever, de obrigação do eleitor ou cidadão. Este não poderá ser molestado no livre e independente exercício daquele direito. Descumprido porém o caráter público da função, abstendo-se de votar ou valendo-se do voto para auferir vantagens pessoais indevidas, ficará então o eleitor sujeito às sanções da ordem jurídica [...] Enfim [...] direito de sufrágio ou direito de função entra na categoria dos direitos públicos subjetivos, da velha teoria de Jellinek. Como função o sufrágio é de natureza eminentemente pública e não propriamente estatal. O eleitor ou cidadão exerce referida função de modo coletivo e não individual, como direito corporativo e não como ‘direito subjetivo individual’ em nome próprio, com vistas aos elevados fins e superiores interesses sociais e não em nome do Estado20. Nessa linha, partindo do pressuposto que o voto é a concretização do sufrágio21, nota-se que esse instituto também pode ser considerado direito público subjetivo, além de função no âmbito da soberania popular, o que legitima sua imposição como dever, na medida em que o cidadão deve manifestar a sua vontade na democracia. Nos termos da Constituição brasileira de 1988, a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal22 e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos (art. 14, caput, da CF). 20 BONAVIDES, Paulo. op. cit., p. 248. 21 GOMES, José Jairo, op. cit., p. 40. 22 “A característica do sufrágio quanto ao critério de seu alcance é disposta pela universalidade, quando há o reconhecimento da legitimidade do direito de votar para todos os nacionais, indistintamente; e configurada também pela restrição, quando se pulveriza o direito de votar, contemplando-o a grupos determinados, para tanto, tornando-se lícita a exigência de condições para o voto” (SILVA, Amaury. Reforma eleitoral. Leme: J. H. Mizuno, 2010, p. 47). Para um maior esclarecimento sobre o tema, Paulo Bonavides assim comenta: “a rigor todo sufrágio é restrito. Não há sufrágio completamente universal. Relativa pois é a distinção que se estabelece entre o sufrágio universal e o sufrágio restrito. Ambos comportam restrições: o sufrágio restrito em grau maior; o sufrágio universal em grau menor [...] Define-se o sufrágio universal como aquele em que a faculdade de participação não fica adstrita às condições de riqueza, instrução, nascimento, raça e sexo” (BONAVIDES, Paulo. op. cit., p. 250). Muito embora não esteja explícito no texto constitucional, o voto ainda é dotado de outra qualificação, a saber: livre. Isto porque sem o caráter de liberdade não há explicação razoável para o destaque feito à feição secreta do voto. O voto direto impõe seja conferido pelo eleitor “a determinado candidato ou a determinado partido, sem que haja mediação por instância intermediária ou por um colégio eleitoral. Tem-se aqui o princípio da imediaticidade do voto”23. Igualmente, o voto é secreto e, de maneira indissociável, livre. Ora, ninguém poderá saber em qual candidato votou o eleitor, se isto não for da sua vontade; bem como a ninguém é facultado o direito de interferir na liberdade de escolha deste eleitor. No que concerne à igualdade do voto, tem-se qualquer tratamento discriminatório não merece guarida no ordenamento jurídico pátrio, quer quanto aos eleitores, quer quanto à própria eficácia de sua participação no processo eleitoral. Conforme bem ressalta Gilmar Ferreira Mendes: A igualdade de votos abrange não só a igualdade de valor numérico (Zahlwertgleichheit),mas também a igualdade de valor quanto ao resultado (Erfolgswertgleichheit). A igualdade de valor quanto ao resultado é observada se cada voto é contemplado na distribuição dos mandatos. A igualdade de valor quanto ao resultado associa-se, inevitavelmente, ao sistema eleitoral adotado, se majoritário ou proporcional, à admissão ou não de cláusula de desempenho ou de barreira, para as agremiações partidárias, e à solução que se adote para as sobras ou restos, no caso da eleição proporcional24. Para os fins almejados neste articulado, imperioso é ainda o debate sobre a obrigatoriedade ou não do voto, haja vista a relação estreita com a percepção deste instrumento como dever social. O voto obrigatório é aquele em que a participação eleitoral não é consentida ao arbítrio do eleitor, mas resolvida por lei, que assim prevê sanções na hipótese de não observação. O voto facultativo traduz-se como o oposto ao voto obrigatório, possibilitando ao eleitor decidir pelo seu exercício ou não. A regra da obrigatoriedade do voto é adotada pelo Brasil desde 1934, a qual gera fervoroso debate, especialmente pelo fato de dizer com a própria natureza da participação política num ambiente democrático. As razões a favor ou contra o 23 MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 783. 24 Ibidem, p. 784. voto obrigatório, conforme apontamentos de Cícero Araújo25, podem ser classificadas em dois tipos: “Razões de princípio, que levam em conta o significado e o estatuto mesmo do ato de votar; e razões prudenciais, que consideram os efeitos benéficos ou danosos da obrigatoriedade (ou não) da participação”. Nesse sentido, argumenta-se que, se o voto é um direito, por definição ele não poderia ser obrigatório. Ora, ou se possui um direito, caso em que se pode exercê-lo ou não; ou se é compelido por lei a fazer algo, e então isso é de fato uma obrigação. Com o respeito necessário a quem sustente tais premissas, há melhores caminhos para iluminar o debate: é possível harmonizar num só instituto a ideia de direito, dever, obrigação, função. Ao invés de pensar o voto como um direito individual, interessante seria considerá-lo um ato púbico de confiança, que depositaria nos eleitores significativas responsabilidades26. Com isso, atribuir a determinado indivíduo um título de eleitor, não equivale a dar um título de propriedade a alguém. É antes de tudo, reforçar-lhe a obrigação de fazer jus à confiança nele depositada enquanto agente de transformação social, reconhecidamente capaz de colaborar decisivamente para o bem-estar da comunidade que o cerca. Esse direito de acesso é complementado necessariamente por um dever de exercício que, por conseguinte, transmuta-se em obrigação legal, para evitar que parcela dos cidadãos “empurre” para os demais a carga desse serviço público. Por outro lado, ainda que não seja legalmente obrigatório, o voto continua sendo um dever cívico. O cidadão tem o direito legalmente garantido, porém seu exercício deve ser balizado pelo comprometimento social (dever). Nas lições de Ronald Dworkin “[...] a deliberação cívica com outras pessoas é um ‘dever político’ que caminha lado a lado com o dever do cidadão soberano de votar”27 25 ARAUJO, Cícero. Voto obrigatório. In: AVRITZER, Leonardo; ANASTASIA, Fátima (Org.). Reforma política no brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 86. 26 “O exercício de qualquer função política, seja como um eleitor ou como um representante, é um poder sobre os outros. Aqueles que dizem que o sufrágio não é um ato de confiança, mas um direito, dificilmente aceitarão as conclusões a que sua doutrina conduz. Se é um direito, se pertence ao eleitor em seu próprio benefício, com que base poderíamos culpá-lo por vendê-lo, ou por usá-lo para recomendar a si próprio a quem seja de seu interesse agradar?” (MILL, John Stuart apud ARAUJO, Cicero. op. cit., p. 87). 27 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 523. Destarte, deve-se enaltecer que a compreensão do voto como dever fundamental, indissociavelmente, impõe o esclarecimento da prática cidadã, por meio do sistema educacional formal, dos partidos políticos, dos veículos de comunicação, com o escopo de descortinar qual poder de fato o povo tem em suas mãos quando do exercício de escolhas públicas. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse momento, surge a possibilidade de sintetizar os singelos resultados das ideias trabalhadas ao longo do texto. Não obstante a linha de raciocínio aqui desenvolvida já estar descortinada, faz-se relevante pontuar os frutos, mesmo que incipientes, que surgiram por ocasião dos enfrentamentos realizados. Considerando que o Brasil tem sua “democracia eleitoral maturada”28 - ou seja, que a realidade brasileira, duas décadas pós-redemocratização, reflete de maneira serena uma conjuntura onde os atores políticos, partidos ou interesses organizados, forças ou instituições de peso encontram no processo democrático a única alternativa para alcançar o poder e, principalmente, onde nenhum grupo ou instituição se julga no direito de vetar a atuação de governantes democraticamente eleitos - emerge o desafio ímpar de se marchar estavelmente rumo à consolidação de um ambiente democrático que garanta cidadania civil e social a toda a sociedade, para além do voto; contudo, necessariamente, por meio da conscientização coletiva sobre o seu papel no Estado Democrático de Direito. Assim, compreendendo os deveres fundamentais como integrantes de uma categoria constitucional autônoma, faz-se imprescindível por parte da sociedade brasileira uma (re)leitura do instituto do voto enquanto dever – ato público de confiança – fomentador de elevado grau de responsabilidade social para quem o exerce. Além disso, igualmente indispensável é a propagação e assimilação de informações no sentido do real poder do voto num ambiente democrático (transformação do status quo), a fim de despertar conjuntamente nos indivíduos um 28 SOUZA, Franco Aurélio Brito de. O acesso à justiça e o paradigma institucional da defensoria pública no estado brasileiro. 2009. 150p. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade da Amazônia, Belém. sentimento comunitário de unidade em prol da melhoria da qualidade de vida sob o prisma coletivo, deixando para segundo plano as ponderações egoístas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALCÂNTARA, Michele Alencar da Cruz. A face oculta dos direitos humanos: os deveres fundamentais. Anais do XIV Congresso Nacional do CONPEDI, Fortaleza, 2006, Disponível em: <http://conpedi.org>. Acesso em: 09 set. 2009. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Livraria Almedina, 1987. ARAUJO, Cícero. Voto obrigatório. In: AVRITZER, Leonardo; ANASTASIA, Fátima (Org.). Reforma política no brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. BONAVIDE, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. __________. Ciência Política. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estado de direito. Lisboa: Gradiva, 1999. DÍAZ, Elías. Estado de derecho y sociedad democrática. Madri: Editorial Cuadernos para el Diálogo, 1973. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,2011. GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. LAWS, Sir John. Beyond rights. Oxford Journal of Legal Studies, vol. 23, n. 2, 2003. MARTÍNEZ, Gregorio Paces-Barba. Los deberes fundamentales. Doxa, Alicante, n. 4, 1987. MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998. PALOMBELLA, Gianluigi. De los derechos y de su relación con los deberes y los fines comunes. Trad. María Engénia Rodríguez Palop. Derechos y Libertades, n. 17, 2007. RUFFIA, Biscaretti di. Diritto constituzionale. 5. ed. Napol, 1958. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual e ampl. 2 tir. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. SILVA, Amaury. Reforma eleitoral. Leme: J. H. Mizuno, 2010. SIQUEIRA, Julio Pinheiro faro Homem de. Deveres fundamentais e a constituição brasileira. 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