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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BELO HORIZONTE - UNI-BH CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO PROJETO VII ENTREVISTA COM GLENN MURCUTT Entrevista dada à Fernando Diez, para a Revista SUMA+, número 98, em Buenos Aires, Argentina, em dezembro de 2008. A conversa aconteceu seis anos após o arquiteto australiano ganhar o prêmio Pritzker, maior honraria mundial dada a um arquiteto. Fernando Diez: O movimento moderno ajudou a criar uma estética de dominação sobre a natureza, em que a transparência oferecia a visão de uma paisagem natural, mas também a transformava em algo alienígena, uma paisagem estritamente visual, alienando seu habitante do meio ambiente que o rodeava. Glenn Murcutt: Em muitos lugares efetivamente aconteceu isso, fazendo da paisagem, em algum sentido, uma pintura, isolando os interiores da paisagem com aquilo que supunha-se que deveria conectar, mas não conectava. Nos primeiros momentos do Movimento Moderno, por exemplo na obra de Frank Lloyd Wright, provavelmente as obras se conectavam muito mais com o meio ambiente do que se conectaram posteriormente as obras modernas em geral. Eu me sinto mais ligado à sensibilidade de Frank Lloyd Wright do que à do Movimento Moderno. Creio que o Movimento Moderno, especialmente a Bauhaus e o Movimento Moderno Europeu, através de arquitetos como Marcel Breuer, Walter Gropius e outros certamente fez tudo menos conectar-se com a paisagem. De fato se distanciaram do meio ambiente, foi o começo do ar condicionado e subitamente estávamos vendo a paisagem como se estivéssemos vendo um animal em um zoológico. FD: A casa de vidro não é a sua predileta... GM: Creio que há muitos princípios como sua ordem e sua estrutura, no que diz respeito à casa de vidro que são muito bonitos. Mas não sou favorável à casa de vidro... Quando viajei para Los Angeles em 1963 me encontrei com Craig Ellwood e passamos bastante tempo juntos. Craig foi muito amável comigo... Nós, nessa época, na Austrália, pensávamos que os Estados Unidos estavam muito mais adiantados do que todo o resto do mundo em arquitetura, especialmente seguindo as Case Study Houses. E Craig Ellwood era parte dessa era, junto com Eames, Kooning e os demais. Nós então pensávamos que eles tinham recursos de isolamento que tinham algum tipo especial de ventilação interna capaz de manter o calor do lado de fora. Mas quando fui nos Estados Unidos perguntei à Ellwood como ele fazia para manter as suas casas frescas nos verões e quentes nos invernos, e ele me olhou como se eu fosse um estúpido e me disse: “Glenn, nós usamos o ar condicionado[e a calefação]!”. Eu fiquei perplexo, completamente perplexo. Esse foi um ponto de inflexão na minha carreira, quando eu disse pra mim mesmo: “Essa arquitetura não é uma direção que considero válida para mim. Estou interessado na ordem, estou interessado na estrutura, na geometria, mas minhas edificações deveriam estar protegidos, deveriam respirar.” Observei como já haviam feito isso os japoneses, relacionando-se com o meio ambiente e com a paisagem. Eu nunca estive no Japão, mas toda essa idéia [sobre os princípios da arquitetura japonesa e sua relação com o meio ambiente] foram muito importantes para mim. FD: O habitante urbano moderno foi de algum modo anestesiado por tantos anos de ar condicionado. Não perdemos nossa capacidade de desfrutar das situações variáveis de clima e temperatura? GM: Já foi demonstrado que a luz constante é muito ruim para nossos olhos, que a temperatura constante é muito ruim para o nosso corpo e que o deslocamento de uma temperatura constante porta adentro para uma outra temperatura diferente porta afora também faz mal ao nosso organismo. É melhor para nós adaptarmos a uma temperatura do ambiente que varia de uma forma suave, sem qualquer mudança brusca. O problema com o ar condicionado é, em primeiro lugar, que ele transfere as bactérias para dentro das habitações de todos, misturando e mantendo em circulação muitas vezes o mesmo ar todo o tempo. O ar condicionado [e a calefação] não nos permite ter nenhuma percepção do clima, não nos permite perceber se faz um dia quente e seco ou quente e úmido, se faz um dia frio e seco ou frio e úmido. Não temos nenhuma percepção do exterior. Quando estou em um hotel como este [que estou agora], não sei como está o clima quando acordo. Tenho que descer até a rua e sair do prédio para saber como está o dia realmente. Para mim não interessa saber essas informações através da tela de uma TV, nem gosto de saber disso através da leitura de um termômetro. Gosto de ir do lado de fora e cheirar, sentir. Experimentar o meio ambiente real é muito importante para mim, nossos corpos registram o clima. O ar condicionado nos leva a perceber nosso meio ambiente como alienígenas. E uma vez que nos sentimos assim em relação à ele, não podemos mesmo respeitá-lo, já que ele não nos importa. Porque pensamos que podemos ficar sem ele. Temos nosso próprio “meio ambiente” artificial, como este hotel. Mas é isso que queremos, ter o mesmo ambiente o tempo todo? Acho que não. Para mim esta é uma experiência ruim. Acho que o ser humano tem que ter contato como o seu meio ambiente. FD: Os sistemas de ar condicionado e calefação por um lado nos anestesiaram e perdemos a capacidade de experimentar as variações climáticas. Por outro, eles criaram uma sensibilidade excessiva, porque não toleramos as mínimas variações, até mesmo dentro de ambientes climatizados. GM: Eu crio minhas edificações da mesma forma que me visto. Quando alguém se veste apropriadamente, em um dia muito quente, veste uma roupa mais leve e em um dia mais frio, uma roupa mais protegida. Eu abro minhas construções nos dias quentes, para deixar passar o vento fresco, controlo a luz com as persianas. Magney House, New South Wales, 1984. FD: E no caso das persianas exteriores de metal, o Senhor não tem problemas com o ruído e o vento? GM: Não porque as crio com trilhos que trilhos que as suportam e as projetamos de forma que não vibrem com o vento... FD: E o Senhor prefere fazê-las de madeira ou de metal? GM: Uso os dois. A mim interessa ter uma edificação que responda rapidamente à uma mudança de condições, da mesma forma como um barco à vela muda de direção de acordo com o vento. Interessa-me poder mudar a direção do vento dentro das minhas construções. FD: Isso explica todas as opções que você cria em uma de suas casas, quais janelas abrir ou fechar segundo determinadas circunstâncias, permitindo experimentar as mudanças e variações ao longo do dia e ao longo do ano. GM: O ar condicionado nos impede de ter uma relação interativa com nosso meio ambiente. Em climas como aqui [Buenos Aires, Argentina], ou como os que tenho em Sydney, se um edifício é bem projetado, ele não necessita de ar condicionado. No máximo pode ser necessário em alguns poucos dias ao longo do ano. De fato, incluindo-se os climas tropicais, é muito agradável viver em um edifício que está bem feito e que os movimentos do ar em seu interior podem ser regulados. Croquis de Glenn Murcutt para ventilação e proteção solar FD: O Senhor usa tetos duplos? GM: Em geral, raras vezes tive que usar um teto duplo. Para isso, os tetos normalmente são pintados de um branco bastante refletivo. FD: Nos últimos quarenta anos a ecologia se converteu em um assunto de interesse público, mas ao mesmo tempo foi se convertendo cada vez mais em um produto de mercado. Como o Senhor vê este problema? GM: Desde 1969 tenho estado interessado nestes assuntos. Desde meus primeiros trabalhos estive comprometido com os problemas ambientais, mas devemos nos lembrar que antes de qualquer coisa devemos fazer boa arquitetura. Um dos problemas é que há arquitetos que se apresentam como especialistas em meio ambiente ou no “projeto sustentável”, e então se percebe que se trata de um argumento de marketing... E que não têm idéia do queestão falando e muitos deles produzem a arquitetura mais horrível que se pode imaginar. FD: Então o Senhor não crê no arquiteto especialista em meio ambiente? GM: Não como uma especialidade. Primeiro e antes de tudo tem que ser boa arquitetura. Quando se dirige um carro, você não fica pensando sobre as mudanças de marcha que vai fazer. Da mesma forma, quando você vai projetar uma casa não vai ficar pensando sobre a forma de esgotar a água... Os assuntos ligados á sustentabilidade ambiental tem que estar todo o tempo na sua cabeça, não como algo a parte que se vai agregar depois. Assim deve ser ensinado nas escolas e dentro de casa, como um comportamento de respeito ao planeta. Porque ele está em risco, e porque nós, como meros hóspedes, não podemos nos comportar de maneira irresponsável... Se não respondermos de um modo apropriado a estes temas, então será inevitável um agravamento da situação ambiental e aí estaremos em graves problemas... Se se tem uma fachada voltada para oeste, deve se pensar o que fazer com o Sol. Mesmo no caso em que se tenha uma vista fantástica. Porque os brises horizontais não resolvem a orientação oeste e leste, simplesmente não funciona. Isto é fundamental: deve-se estudar a solução em planta e em corte, sobre como será filtrada a luz, [barrando-se a incidência direta de sol]. Assim poderá se observar como o sol se move em relação ao edifício. Por exemplo, quando se considera o lado voltado para norte, sabe-se que o sol tem inclinações diferentes ao longo do ano, no inverno e no verão, e que eles são reconhecíveis se a latitude for conhecida. No inverno o sol levanta-se apenas 30º na latitude onde trabalho, então um beiral em uma casa pode barra o sol no verão, mas deixá-lo entrar no inverno. (…) FD: Seu trabalho não gera imagens de alto impacto, fotografias do tipo das que ajudam a ganhar um prêmio Pritzker. De alguma maneira o prêmio foi algo inesperado para o Senhor? GM: Sim, totalmente inesperado... Na realidade a única pista que eu tive foi uma conversa com Frank Ghery na UCLA [Universidade da Califórnia], quando nos encontramos para fazer uma avaliação de alguns trabalhos. Na ocasião ele me disse que eu havia sido considerado para o Pritzker e que eu estava muito famoso... e então eu discordei e disse que não era famoso. Então ele me disse: “Vou dizer a todo mundo que você é muito famoso...” Ele é muito gentil. E essa foi a única pista que eu tive, porque apesar dele não estar participando da comissão que me deu o prêmio, ele já havia recebido o prêmio anteriormente. FD: O prêmio mudou as coisas para você? GM: Sim, mudou, principalmente entre 2002 e 2005, porque é algo extraordinário que acontece quando se ganha o Pritzker. Estava dando aula na Washington University em Saint Louis, quando alguém me chamou e minha esposa me disse que eu tinha que entrar em contato com uma pessoa que eu não conhecia. E quando liguei e me disseram que eu era o premiado com o Pritzker de 2002, naturalmente eu não podia acreditar. Logo perguntei como eu poderia me assegurar que não se tratava de um trote, porque fazem muitos trotes desse tipo na Austrália. Então fiz algumas ligações telefônicas para Los Angeles para me assegurar que era verdade. No meu caso foi muito complicado porque atuo profissionalmente sozinho. Pouco tempo depois o telefone em Sydney começou a tocar e não parou mais por vários dias. E depois ainda tive que viajar para Los Angeles para uma série de entrevistas com a imprensa. Foi uma coisa incrível, porque não consegui trabalhar por três meses e meus projetos ficaram muito atrasados. Apesar da óbvia alegria de receber o prêmio, o ano seguinte foi um inferno, visto do ponto de vista do meu escritório. Duas ou três ligações telefônicas todos os dias com entrevistas, revistas, jornais, faculdades... Eu trabalho sozinho, não tenho sócios e nem uma estrutura administrativa, faço meu trabalho de forma totalmente pessoal. De toda a forma, não quero parecer mal-agradecido, o Pritzker me facilitou muitas coisas e me abriu muitas portas, também me deu acesso a novas áreas do mundo para mim, como aqui e gosto muito de conhecer pessoas e viajar... FD: O Senhor só está interessado nas pequenas edificações? GM: O que você chama de pequenas edificações? FD: Perguntei porque gostaria de saber se não lhe interessam os grandes projetos de arquitetura como edifícios corporativos, aeroportos... GM: Não tenho o menor interesse em [projetar] grandes edifícios como aeroportos ou grandes prédios de escritórios. FD: E os arranha-céus? GM: Pode esquecer, não tenho nenhum interesse... Não estou em nada interessado no tamanho dos edifícios. De todo o modo isso não quer dizer que eu não possa apreciar os bons edifícios desse tipo, de boa qualidade que os outros projetam. Mas não tenho interesse nesses grandes edifícios porque creio que eles privam as pessoas do seu meio ambiente. Por exemplo, quanto mais alto se está, a pressão do vento aumenta e isso traz um monte de problemas... FD: Há pouco tempo atrás estive em uma exposição de projetos habitacionais em Viena e havia um projeto da Kazuyo Sejima que era uma lâmina de habitações com muitos andares, com alguns buracos que deixavam espaços para expansões externas. Eu argumentei que nos andares mais altos o ar ganha velocidade pelo efeito de placa, é como um furo numa vela de barco, a velocidade do vento nesses pontos de torna insuportável... GM: Certamente, produz um efeito Venturi. Pode ser que estes espaços funcionem nos andares mais baixos, mas nos níveis mais altos de forma alguma... Os edifícios altos alienam o homem de seu ambiente natural... FD: Talvez o senhor tenha vista esse prédio em alguma revista... GM: Devo confessar que não assino nenhuma revista... E tem sido assim desde que comecei minha prática profissional. Porque na Austrália, todos os escritórios de arquitetura tem as melhores coleções de revistas de arquitetura do mundo, mas quando eu visito um destes escritórios, a revista mais nova nunca está lá... só aparece quatro meses depois. A razão? É porque o dono do escritório levou a revista para casa para estudar os detalhes mais novos. Meses depois quando a revista aparece no escritório, os desenhistas descobrem que o projeto que eles estão desenvolvendo se parece bastante com o da revista. Decidi enão que o melhor caminho para mim era tentar não fazer parte disso, tentar pesar por mim mesmo, pensar quais são os pontos mais importantes e os princípios para fazer um projeto adequado para um “lugar”. FD: É como não se deixar contaminar? GM: O modo como eu vejo é tentar entender os princípios do desenho... Quando um compositor compõe uma música tem em sua mente que ela será executada por um quarteto ou por uma orquestra, o maestro fará uma interpretação sua e a platéia ouvirá o som. Par mim os projetos que está contido nos desenhos que fazemos não são diferentes, no sentido de que, uma vez que o edifício foi planejado, os seus usuários serão como a platéia. Eles podem abrir ou fechar as janelas, recomendarei a eles esquemas particulares para deixar entrar a brisa na primavera ou no verão, trazendo diferentes aromas dos jardins, limão, laranja, lírios. Deixando entrar o ar de modo que o edifício possa ajustar-se. Ajustar-se de acordo com a direção e a intensidade da brisa, a intensidade da luz, podendo abrir e fechar as janelas em diferentes cômodos de forma que o usuário possa ser o maestro e a platéia ao mesmo tempo... e é isso que ofereço em minhas edificações, a possibilidade de uma calibragem fina do ambiente para sensibilizar nossos olhos, nossa visão, nosso olfato, ajustando também os níveis de umidade ambiente, os sons que deixamos entrar, das árvores balançando com o vento... Casa Simpson Lee, New South Wales, 1994. FD: Seguindo com a pergunta anterior, então o Senhor não compartilha o entusiasmo de Rem Koolhaaspelos edifícios enormes? GM: Não! Não são para mim... Aliás, acredito que as pessoas na verdade não gostam de edifícios grandes assim. Quem gosta deles são as grandes corporações, porque eles serão capazes de abriga-las. Estou interessado em pequenos museus, quando digo pequeno digo talvez cem metros de comprimento por cinqüenta metros, algo que poderia ser um museu regional, mas não algo tão grande como os museus de Londres ou da França... FD: O senhor tem algum material de preferência? GM: Busco o mais apropriado para cada edifício, por exemplo, se estou em um lugar como South Wales [sul da Austrália] que está numa latitude entre 33º e 34º sul, onde temos madeiras duras muito boas, essa é uma boa opção. Além da sua integridade própria, a árvore em seus primeiros vinte anos de vida absorve dióxido de carbono e expele oxigênio, mas depois desse período, esse equilíbrio começa a mudar até que finalmente deixa de ser vantajoso. Na Austrália uma árvore de madeira dura de uns sessenta ou setenta centímetros com oitenta anos de vida pode ser derrubada. FD: São árvores plantadas? GM: São árvores de reflorestamento. Temos na Austrália um programa nacional que regulamenta essa atividade e promove plantio e reflorestamento, as duas coisas. Temos boas madeiras resistentes à água. Então a vantagem é que com todo o dióxido de carbono que estas árvores fixaram ao longo dos anos, utilizar essas madeiras requer apenas quatro megajoules por kilograma... FD: Como o senhor conhece esses dados? GM: Bem... trabalho com eles o tempo todo. A madeira requer um megajoule por kilograma para ser processada na floresta e quatro megajoules por kilograma para ser transformada em tábuas e para ser transportada até a obra. Ou seja, em média uma madeira requer cinco megajoules por kilograma da floresta até a obra. Um kilograma de aço, por outro lado, requer quarenta e dois megajoules por kilograma e um kilograma de alumínio requer cento e quarenta e três megajoules por kilograma. Estes são os materiais que uso mais freqüentemente. Uso quantidades mínimas de alumínio, que é muito bom para as esquadrias das janelas e pequenos perfis, mas que não tem sentido algum para ser usado em peças estruturais. FD: Então uma pergunta sobre o “high-tech”: Ele é uma forma de expressionismo? GM: High-tech é uma estética. Não têm nada há ver com estrutura. Tenta aparecer como estrutura. Há edifícios que se apresentam como high-tech mas não são nada inteligentes. Mas não vou dizer quais... FD: E se desligarmos o gravador? E então o gravador foi desligado e a conversa continuou por algum tempo. Essa mudança de procedimentos da entrevista serviu para sublinhar a distância que separa Glenn Murcutt dos que cultuam uma tecnologia desumanizada, disposta a sacrificar a racionalidade de meios e fins para um exibicionismo que está a serviço da aparência. Murcutt é a brisa dos ares da mudança, uma brisa que começa a soprar e que talvez seja o anúncio do novo humanismo que o século XXI deverá dar a luz para sonhar com um mundo sustentável, não somente para alguns, mas para todos, e não somente para os que vivem hoje, mas também para os que virão no futuro.
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