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Sumário A L J T M O U P Z D D T P S A A O M O O C C S O O O - S L O D E R E O C O F D E L A C D D C, O T C Q O A D T M L M E A E T R N F H A R, C A C E O D B L L D T F O A- G B O - F “O " O E- E R B V U A M G E Q M L C A F A A C P A O T V A C H , D L A J S G D T H U B M F S C D O D D S L M O E A O U A A H, N R O irracional superior: o que restou do Imbecil, vol. IV Olavo de Carvalho 1ª edição — fevereiro de 2023 — CEDET Copyright © Herdeiros de Olavo de Carvalho Os direitos desta edição pertencem ao CEDET — Centro de Desenvolvimento Pro�ssional e Tecnológico Av. Comendador Aladino Selmi, 4630, Condomínio GR Campinas 2 — módulo 8 CEP: 13069-096 — Vila San Martin, Campinas-SP Telefone: (19) 3249-0580 e-mail: livros@cedet.com.br Direção editorial: Silvio Grimaldo Editor: Felipe Denardi Preparação de texto: Daniel Araújo Vitório Armelin Diagramação: Maurício Amaral Capa: NOZ marca Revisão de provas: Mariana Souto Figueiredo Tomaz Lemos Natalia Ruggiero Conselho editorial: Adelice Godoy César Kyn d’Ávila Silvio Grimaldo de Camargo F C Carvalho, Olavo de. O irracional superior: o que restou do Imbecil, vol. IV / Olavo de Carvalho — Campinas, SP: Vide Editorial, 2023. ISBN: 978-85-9507-155-1 1. Filoso�a moderna — Ensaios. 2. Ensaios e estudos �losó�cos. I. Título II. Autor CDD — 190-2 / 501-01 Í P C S 1. Filoso�a moderna — Ensaios — 190-2 2. Ensaios e estudos �losó�cos — 501-01 VIDE Editorial — www.videeditorial.com.br Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor. A Este volume se compõe de todos os artigos que Olavo de Carvalho publicou no ano de 2001, nos jornais Zero Hora, O Globo, Jornal da Tarde, e na revista Época, e vem para integrar a série O que restou do Imbecil, que, dando seqüência a O Imbecil Coletivo, de 1996 (reeditado por nós agora em 2021), já conta com seus três primeiros volumes A longa marcha da vaca para o brejo (2019), O imbecil juvenil (2020) e O leão e os ossos (2021). O acontecimento mais marcante do ano de 2001 foi, sem dúvida, o ataque às torres gêmeas do World Trade Center, várias vezes mencionado pelo �lósofo, que comentou também o avanço no Brasil, tanto do comunismo — por meio de mudanças escusas promovidas pelo governo e movimentações de entidades como as farc, a cut e o mst — como da Nova Ordem Mundial, pelos tentáculos de seus �nanciadores. Entretanto, o verdadeiro valor desses artigos consiste em que, ao tocar esses vulgares eventos, registrados em jornal, Olavo os aproveitava para traçar paralelos históricos, e mais que isso, demonstrar sua continuidade e sua relação causal com fatos passados por vezes ignorados do público geral. Ele os usava como pretexto para explicitar princípios éticos e cognitivos universais ou princípios básicos da ciência e da análise política, bem como tocar, mais de uma vez, a essência da �loso�a e da religião. E isso era feito tendo como centro a consciência humana, que presencia os fatos e, contemplando-os amorosamente, busca confessá- los tal como os vê — expediente este que, segundo o mesmo �lósofo, estava em extinção no Brasil, completamente ausente nas “classes falantes" — o meio universitário e jornalístico, que, em vez disso, pautando-se pelo so�sma do argumentum ad ignorantiam, prefere zurrar de sua cátedra: “Nunca ouvi falar; logo, você está errado". Esse ilustre personagem coletivo, batizado de “irracional superior", emprestou seu nome também ao livro, no qual o leitor o verá descrito a seguir, no melhor estilo divertido e provocante de Olavo de Carvalho — que nos deixou avisados: “Muitas coisas que eu escrevi vão ser úteis depois da minha morte". — O editor L Se há um princípio moral universal, é aquele que, para abreviar, chamarei “princípio de autoria": cada um é autor de seus atos. Esta obviedade suprema tem conseqüências que, embora sejam igualmente óbvias, muitas vezes são negadas na prática. A ocorrência desse fenômeno assinala, nas pessoas envolvidas, uma consciência moral frouxa e autocomplacente. Quem quer que negue implicitamente o princípio de autoria falseia toda a moralidade. Mas, justamente porque as deduções lógicas no caso são bem fáceis de fazer, e de fato se fazem quase que por instinto, é evidente que o falseamento delas, quando ocorre, raramente se dá por simples erro lógico, mas denota quase sempre, no autor do juízo, algum fundo falso. Não por coincidência, as pessoas moralmente frouxas são as que mais se apressam a emitir juízos morais severos com pouco conhecimento de causa. Invariavelmente, acabam caindo na negação do princípio de autoria, e assim revelam a imoralidade de suas intenções por trás de sua máscara de probidade. São pessoas que carregam por dentro a angústia difusa de culpas mal conscientizadas, das quais buscam aliviar-se mediante acusações a terceiros. A política é o campo preferencial de atuação desses falsos moralistas, porque em política sempre se pode falar de maneira ambígua e irresponsável, procurando por exemplo atingir pessoas determinadas e concretas através de acusações genéricas a entidades abstratas e indeterminadas (classes sociais, modelos econômicos), tentando dar à mera responsabilidade política a conotação de grave culpa moral pessoal, etc. Se cada um só está obrigado, em princípio, a responder porA arte de ler é uma operação simultânea em dois planos, como num retrato onde o pintor tivesse de trabalhar ao mesmo tempo os detalhes da frente e as linhas do fundo. A diferença entre o leitor culto e o inculto é que este toma como plano de fundo a língua corrente da mídia e das conversas vulgares, um quadro de referência unidimensional no qual se perde tudo o que haja de mais sutil e profundo, de mais pessoal e signi�cativo num escritor. O outro tem mais pontos de comparação, porque, conhecendo a tradição da arte da escrita, fala a língua dos escritores, que não é nunca “a língua de todo mundo", por mais que até mesmo alguns bons escritores, equivocados quanto a si próprios, pensem que é. Não há propriamente uma “língua de todo mundo". Há as línguas das regiões, dos grupos, das famílias, e há as codi�cações gerais que as formalizam sinteticamente. Uma dessas codi�cações é a linguagem da mídia. Ela procede mediante redução estatística e estabelecimento de giros padronizados que, pela repetição, adquirem funcionalidade automática. Outra, oposta, é a da arte literária. Esta vai pelo aproveitamento das expressões mais ricas e signi�cativas, capazes de exprimir o que di�cilmente se poderia exprimir sem elas. A linguagem da mídia ou da praça pública repete, da maneira mais rápida e funcional, o que todo mundo já sabe. A língua dos escritores torna dizível algo que, sem eles, mal poderia ser percebido. Aquela delimita um horizonte coletivo de percepção dentro do qual todos, por perceberem simultaneamente as mesmas coisas do mesmo modo e sem o menor esforço de atenção, acreditam que percebem tudo. Esta abre, para os indivíduos atentos, o conhecimento de coisas que foram percebidas, antes deles, só por quem prestou muita atenção. Ela estabelece também uma comunidade de percepção, mas que não é a da praça pública: é a dos homens atentos de todas as épocas e lugares — a comunidade daqueles que Schiller denominava “�lhos de Júpiter". Esta comunidade não se reúne �sicamente como as massas num estádio, nem estatisticamente como a comunidade dos consumidores e dos eleitores. Seus membros não se comunicam senão pelos re�exos enviados, de longe em longe, pelos olhos de almas solitárias que brilham na vastidão escura, como as luzes das fazendas e vilarejos, de noite, vistas da janela de um avião. Uma en�m, é a língua das falsas obviedades, outra a das “percepções pessoais autênticas" de que falava Saul Bellow. Muitos cientistas loucos, entre os quais os nossos professores de literatura, asseguram que não há diferença. Mas o único método cientí�co em que se apóiam para fazer essa a�rmação é o argumentum ad ignorantiam, o mais tolo dos artifícios sofísticos, que consiste em deduzir, de seu próprio desconhecimento de alguma coisa, a inexistência objetiva da coisa. A língua literária existe, sim, pelo simples fato de que os grandes escritores se lêem uns aos outros, aprendem uns com os outros e têm, como qualquer outra comunidade de ofício, suas tradições de aprendizado, suas palavras-de-passe e seus códigos de iniciação. Tentar negar esse fato histórico pela impossibilidade de deduzi-lo das regras de Saussure é negar a existência das partículas atômicas pela impossibilidade de conhecer ao mesmo tempo sua velocidade e sua posição. A seleção das leituras deve nortear-se, antes de tudo, pelo anseio de apreender, na variedade do que se lê, as regras não escritas desse código universal que une Shakespeare a Homero, Dante a Faulkner, Camilo a Sófocles e Eurípides, Elliot a Confúcio e Jalal-Ed-Din Rûmi. Compreendida assim, a leitura tem algo de uma aventura iniciática: é a conquista da palavra perdida que dá acesso às chaves de um reino oculto. Fora disso, é rotina pro�ssional, pedantismo ou divertimento pueril. Mas a aquisição do código supõe, além da leitura, a absorção ativa. É preciso que você, além de ouvir, pratique a língua do escritor que está lendo. Praticar, em português antigo, signi�ca também conversar. Se você está lendo Dante, busque escrever como Dante. Traduza trechos dele, imite o tom, as alusões simbólicas, a maneira, a visão do mundo. A imitação é a única maneira de assimilar profundamente. Se é impossível você aprender inglês ou espanhol só de ouvir, sem nunca tentar falar, por que seria diferente com o estilo dos escritores? O fetichismo atual da “originalidade" e da “criatividade" inibe a prática da imitação. Quer que os aprendizes criem a partir do nada, ou da pura linguagem da mídia. O máximo que eles conseguem é produzir criativamente banalidades padronizadas. Ninguém chega à originalidade sem ter dominado a técnica da imitação. Imitar não vai tornar você um idiota servil, primeiro porque nenhum idiota servil se eleva à altura de poder imitar os grandes, segundo porque, imitando um, depois outro e outro e outro mais, você não �cará parecido com nenhum deles, mas, compondo com o que aprendeu deles o seu arsenal pessoal de modos de dizer, acabará no �m das contas sendo você mesmo, apenas potencializado e enobrecido pelas armas que adquiriu. É nesse e só nesse sentido que, lendo, se aprende a escrever. É um ler que supõe a busca seletiva da unidade por trás da variedade, o aprendizado pela imitação ativa e a constituição do repertório pessoal em permanente acréscimo e desenvolvimento. Muitos que hoje posam de escritores não apenas jamais passaram por esse aprendizado como nem sequer imaginam que ele exista. Mas, fora dele, tudo é barbárie e incultura industrializada. O Globo, 3 de fevereiro de 2001 O Desencontrado, eu mesmo me contesto. — Chico Buarque de Hollanda, em Calabar O que aconteceu no Rock in Rio é a imagem viva da esquizofrenia nacional. O sujeito se veste de americano, pula e dança o dia inteiro ao som da música americana e, quando vê na tela a bandeira dos Estados Unidos, se in�ama de brios patrióticos e brada contra o colonialismo cultural. Depois continua pulando — e joga latas de protesto na cabeça de Carlinhos Brown quando ele quer estragar o festival de americanidade tocando música baiana. Já viram uma coisa dessas? É Olívio Dutra tomando Coca-Cola numa cuia de chimarrão — para disfarçar — e fazendo um discurso contra a “água negra do imperialismo". Mas, no Fórum Social de Porto Alegre, a imagem adquiriu corpo, vida e movimento: entre vaias e apupos à Nova Ordem Mundial, a ilustrada assembléia manifestou seu amor ao direito trabalhista global, ao desarmamento civil, às quotas raciais preferenciais e ao controle da internet — quatro quintos do programa da Nova Ordem Mundial. O quinto restante foi objeto de debates só porque os participantes querem fazer tudo isso com os métodos econômicos de Cuba, do Vietnã e da Coréia do Norte, o que certamente não será motivo de discussão por muito tempo, já que a Nova Ordem Mundial sabe respeitar a independência das nações e largá-las sozinhas, num arrabalde infecto, quando elas fazem uma opção preferencial pelo suicídio. Com a maior tranqüilidade, ela virou as costas aos povos da África, que gritavam de revolta contra o capitalismo internacional que não os largava e hoje espumam de ódio contra o capitalismo internacional que os abandonou. No futuro Brasil socialista, quando estivermos disputando a tapa uma perna de rato, Olívio Dutra, exibindo indignado uma lata de Coca-Cola vazia, dirá que é tudo culpa da maldita Ford que o deixou na mão quando ele mais precisava dela. Quando digo que este país está louco, insano, necessitado de urgentes cuidados psiquiátricos, as pessoas pensam que estou brincando. Mas vejam o número de nossos compatriotas que nos anunciam o socialismo com a seriedade e a compenetração de quem tivesse nas mãos um remédio salvador. O Estado socialista mais rico e poderoso que já existiu foi a . Era a segunda potência industrial do mundo. Se o Brasil implantar o socialismo hoje, levará meio século, na melhor das hipóteses, para alcançar o patamar de desenvolvimento que a havia escalado quando, em 1991, veio ao chão. Qual a altura desse patamar? Segundo dados o�ciais,o cidadão médio soviético, em 1987, recebia metade da ração de carne que o súdito do czar comia em 1913. Os negros sob apartheid na África do Sul tinham mais carros per capita que os soviéticos. Em 1989, sem guerra nem nada, havia racionamento de comida em Moscou. A família média (média, não pobre) de quatro pessoas espremia-se num cômodo de 3 metros quadrados, como nossos favelados. O operário, trabalhando um ano inteiro, ganhava metade do que uma mãe americana desempregada recebia por mês do serviço social. Tudo isso, é claro, nas regiões mais desenvolvidas. Na periferia — Uzbequistão e Tadjiquistão, por exemplo — 93% das casas não tinham esgoto e 50% nem água encanada. A atmosfera era a mais poluída da Europa e os investimentos em saúde os mais baixos do mundo industrializado. Mas o socialismo ao qual os brasileiros estão pedindo receitas de prosperidade não é nem o da . É o de Cuba, da Coréia do Norte, do Vietnã, lugares aonde um russo só ia por aquele espírito de sacrifício patriótico com que um o�cial inglês do século passado, abandonando o conforto de seu clube londrino, se aventurava nas matas do Sudão, entre mosquitos e orangotangos, pela glória da Rainha. E ainda dizem que o doido sou eu. Época, 3 de fevereiro de 2001 M As idéias in�uenciam o curso das coisas na sociedade, decerto, menos pela validade objetiva do seu conteúdo do que por servir de símbolos que condensam sentimentos coletivos — desejos, ódios, temores, esperanças. É possível, até, que toda idéia brote desses sentimentos. Mas a transformação do sentimento em idéia tem vários graus possíveis de elaboração. O simples desejo de expressar o anseio coletivo não é a única motivação que leva um �lósofo a criar uma doutrina. Há também o impulso de coerência e o simples desejo de conhecer a realidade, de abrir-se à variedade dos fatos mesmo quando contrariem os nossos sentimentos e quando não possam facilmente ser reduzidos à unidade de uma explicação. Esses três motivos de �losofar são, por assim dizer, naturais. A diferente dosagem com que entrem na fórmula pessoal de�ne o estilo e o modo de ser de cada �lósofo. O tipo extremo, no qual um desses impulsos se agiganta ao ponto de engolir os outros dois, é tão raro quanto o composto equilibrado dos três. Mas que los hay, los hay. O tipo mesmo do �lósofo “expressivo" é Nietzsche. Ele costumava comparar-se a um perdigueiro, farejando o vento em busca do possível, do latente, que depois ele cristalizava em símbolos literários de um poder sugestivo quase hipnótico. É natural que este estilo de pensamento, por estar ainda muito próximo da imaginação poética, se expresse numa linguagem descontínua, aforística, metafórica. Por isto Nietzsche não tem propriamente uma doutrina, mas uma massa ígnea de doutrinas virtuais, umas em con�ito com as outras e algumas em con�ito aberto com os fatos. O brilho da sua forma literária encobre e revela, ao mesmo tempo, a hesitação informe de um saber que se anuncia e não acaba de nascer. Oscilando entre o futurismo heróico e a corrosão decadentista, o nietzscheanismo é uma aurora vacilante que perde o seu momento e não se levanta jamais. No extremo oposto está Spinoza. Seu apego à coerência lógica era tanto, que ele não apenas exteriorizou sua doutrina sob a forma acabada e plena de uma dedução geométrica, mas ainda proclamou a absoluta soberania cognitiva da pura dedução racional e desprezou como inútil e enganosa a experiência dos fatos. O spinozismo é o espírito de sistema levado às suas últimas conseqüências. Há um encanto estético também aí, mas não do tipo verbal: é a beleza abstrata da unidade lógica, um diamante boiando no in�nito, fora do tempo, longe da “agitação feroz e sem �nalidade" deste nosso mundo. Tentativas de reintroduzi-lo no tempo, na ação, no empírico, só mostram a falta de pudor de exegetas que se apressam a interpretá-lo às avessas para pô-lo a serviço de �ns práticos que não eram nem poderiam ser os dele. Assim como o primeiro tipo tem algo do poeta ou do oráculo, e o segundo do artista plástico, o perfeito respeitador dos fatos, sem deixar de ser �lósofo, aproxima-se antes do modelo do cientista empírico. É Max Weber. Weber meteu na cabeça um problema — o das relações entre economia e moral religiosa — e, na tentativa de resolvê-lo, criou instrumentos intelectuais que perfazem, no �m das contas, toda uma �loso�a das ciências. Se jogarmos a sua obra fora e dela só conservarmos os seus escritos de epistemologia e método, eles já bastarão para fazer dele um astro de primeira grandeza. Mas, acumulando fatos em cima de fatos e indo buscá-los nos registros de todas as civilizações ao alcance das suas fontes, ele ampliou de tal modo a área de sua investigação que, tendo lançado inicialmente uma hipótese, morreu sem ter chegado a saber exatamente se era verdadeira ou falsa. Mas seu legado incompleto é precioso. Ele deixou-nos algo mais que um problema e um método. Deixounos um exemplo de probidade intelectual levada até o extremo do auto-sacrifício. Em geral, os �lósofos têm um pouco de cada uma dessas tendências, arranjadas em padrões mais ou menos felizes. Oswald Spengler, por exemplo, é uma mistura da imaginação simbólica de Nietzsche com a ânsia weberiana de abranger todos os fatos. Faltando-lhe o senso da coerência lógica, não lhe resta outro instrumento de uni�cação dos fatos senão o símbolo mesmo. Por isto sua �loso�a da história é antes uma metáfora, uma poética da história. Uma combinação mais freqüente é a do segundo tipo com o terceiro: aquele misto de investigador factual probo e sistematizador rigoroso, mas seco e sem imaginação, que nas épocas de prestígio universitário impera do alto das cátedras como um árbitro do razoável e do irrazoável. Penso em Victor Cousin, em Léon Brunschvicg ou em tantos, tantos dentre os neo-escolásticos! Fazem um bom trabalho e são importantes durante algum tempo, mas depois são esquecidos. A combinação mais letal é a do primeiro com o segundo tipos, sem nada ou quase nada do terceiro. A mistura do farejador de tendências com o construtor de sistemas, sem a humildade do cientista ante os fatos, produz o arquiteto de desastres. Nele a possibilidade captada no ar se transmuta, pela estruturação lógica, em projeto de ação que alia, à força arregimentadora do símbolo e à certeza racional da ordem, o total desprezo pela realidade quando ela insiste em contrariá-lo. É o homem que não compreende nem quer compreender o mundo, mas transformá-lo à imagem e semelhança de um desejo enrijecido em sistema. Infelizmente, pela própria lógica das coisas, este é, de todos os tipos, puros ou combinados, aquele que tem mais força de ação imediata sobre o contorno social. É Karl Marx. O equilíbrio das três tendências é uma felicidade raras vezes alcançada. O homem que a realiza tem a fertilidade do primeiro tipo, a coerência do segundo, a honestidade cientí�ca do terceiro. Sua �loso�a, mesmo temporariamente ignorada pelos seus contemporâneos, é sempre uma força bené�ca que atravessa os séculos, inspirando, ensinando, civilizando. Os �lósofos deste tipo são uma bênção para a humanidade. Exemplos? Bem, não me resta muito espaço para dizer por que, mas, prometendo me explicar melhor algum dia, voto, para o momento, em Aristóteles e Leibniz. P.S.: No meu site da internet, um de meus artigos vem antecedido do aviso de que foi rejeitado por todos os periódicos a que o ofereci. Embora a frase obviamente não implique que eu o tenha oferecido a todos os periódicos do país, alguns engraçadinhos parece que daí deduziram, e passaram a insinuar, que fui censurado no Globo. Não leram ou �zeram que não leram a data do artigo, muito anterior ao início de minha colaboração neste jornal. Proclamar os méritos de uma publicação que sabe respeitar a liberdade de seus colaboradores não é só um dever: é um prazer. Alegremente, pois, informo que aqui jamais sofri censura ou restrições de espécie alguma, por mais que isto doa a pessoas que, não gostando nem de mim nem do Globo, muito apreciariamque eu as sofresse. O Globo, 10 de fevereiro de 2001 O Tal personagem já está entre nós. Converse dois minutos com ele e emburre para sempre Outro dia perguntei a um festejado jornalista brasileiro o que ele achava de algo que eu tinha lido num determinado livro e obtive a seguinte resposta: “Nunca ouvi falar e acho que não tem o menor fundamento". Desde que entrei mais ativamente na arena dos combates jornalísticos, em 1995, quase 100% das objeções que tenho encontrado assumem a forma desse argumento: “Eu não sei do que você está falando, logo você está errado". Em lógica, isso se chama argumentum ad ignorantiam: deduzir, do próprio desconhecimento de uma coisa, a inexistência da coisa. É uma das formas elementares de so�sma, e o que me espanta é que ela tenha adquirido, para a mentalidade dos brasileiros falantes, tanta autoridade e tanta credibilidade. A premissa dessa atitude mental é, evidentemente, a mais insustentável que se pode imaginar: “Eu sei tudo (logo, o que eu desconheço não existe)". O sujeito que raciocina nessa base tem um dogmatismo pueril e autocon�ante que chega a ser comovente em sua total candura. É verdade que, no uso diário, o so�sma aparece disfarçado sob a forma de um “entimema", isto é, de um silogismo com premissa oculta: o sujeito faz uma elipse mental, saltando direto do sentimento de surpresa para a negação peremptória da novidade repulsiva, sem se dar conta do pressuposto lógico que embasa sua conclusão. Ele não é, pois, conscientemente dogmático. Mas, em vez de atenuar a gravidade do erro, isso só põe em relevo uma prodigiosa inconsciência. Como um homem pode proclamar uma conclusão com tanta segurança sem nem perceber a premissa imediata que a fundamenta? Também é verdade que meus objetores pertencem em geral a um mesmo grupo social, pelo qual não se poderia avaliar a inteligência dos demais brasileiros: o grupo dos intelectuais esquerdistas e das pessoas afetadas, de algum modo, pela linguagem deles. Não me surpreende que esse grupo reúna o grosso do contingente de cretinos e incapazes, pois as formas direitistas de cretinice saíram da moda e re�uíram para o circuito fechado dos grupelhos pseudo-esotéricos que vivem de uma inofensiva auto- adoração. Após estudar o assunto por três décadas e meia, já cheguei à conclusão de que o esquerdismo não é nem sequer uma ideologia: é apenas uma forma de inconsciência patológica, um escotoma intelectual (e moral) adquirido por vício e covardia. A experiência já me mostrou que, em circunstâncias normais, é utópico esperar de um militante esquerdista qualquer exercício da inteligência além do estritamente necessário para manter aquecidos os sentimentos grupais que o unem a seus pares numa espécie de fusão mística. Na verdade, isso é mais que uma observação pessoal: é uma conclusão cientí�ca do psiquiatra Joseph Gabel em Ideologies and the corruption of thought (London, Transaction Publishers, 1997), em que ele completa as investigações que começou em 1962 (que creio já ter mencionado nesses artigos) sobre a identidade de estrutura lógica entre o discurso socialista (e nacional-socialista) e o delírio esquizofrênico. Mas o que é espantoso, sim, é a velocidade com que as pessoas adquirem essa patologia mediante nada mais que uma exposição breve e super�cial ao linguajar esquerdista. Aos 14, aos 13 anos, um estudante brasileiro já está preso, paralisado, petri�cado na crença de que qualquer fato novo que pareça contrariar seu sentimento de estar do lado dos bons contra os maus deve ser negado no ato, sem a mínima averiguação. Ou na melhor das hipóteses neutralizado mediante alguma combinação verbal de improviso que lhe dê uma interpretação totalmente diversa. Essa gente está espiritualmente morta, intelectualmente castrada já no ingresso da adolescência. São meninos tacanhos, prematuramente endurecidos, lacrados no fundo de um poço seco, em cuja escuridão crêem enxergar, por projeção inversa, a imagem de um futuro radiante. Época, 10 de fevereiro de 2001 O C A revelação de pretensas descobertas históricas, que envolveriam dois ex-presidentes da república numa trama sinistra para o assassinato de inimigos políticos, sugere, uma vez mais, que a usp não é propriamente uma universidade e sim uma gigantesca central de adestramento de propagandistas revolucionários, adornada, aqui e ali, de algumas escolas técnicas e cientí�cas regularmente e�cientes, destinadas a dar ao conjunto o mínimo indispensável de respeitabilidade acadêmica que justi�que o consumo voraz de verbas estatais. Segundo foi noticiado na , pesquisadores da teriam localizado, entre os papéis do antigo Dops, uma mensagem na qual o General João Batista de Figueiredo, então chefe do , transmitia ao nosso embaixador em Portugal a ordem, emanada do presidente da república, General Ernesto Geisel, de aplicar um tal “Código 12" em cima de dois exilados, um deles o Almirante Cândido Aragão. Código 12, segundo os criptógrafos uspianos, signi�ca matar o sujeito e �ngir causa acidental. Não examinei os papéis, mas, qualquer que seja o seu teor, as conclusões factuais que se pretende tirar deles não resistem, por si, ao mínimo exame crítico. Em primeiro lugar, o próprio nome cifrado da operação já é duvidoso. O que aparece nos documentos não é “Código 12": é “Oyykl". Para acompanhar o raciocínio uspiano, temos de aceitar que Oyykl, com o perdão da palavra, signi�ca Código 12, e que Código 12 signi�ca a porcaria acima mencionada. A sutileza criptográ�ca da mensagem já brada aos céus que nenhuma conclusão a respeito pode ser aceita prima facie, sem veri�cação por técnicos de fora de uma instituição que assumiu, como seu dever pedagógico primordial, sujar a reputação do regime militar e de tudo quanto a ele esteja associado mesmo remotamente. Uma corporação acadêmica que não se inibe de discriminar seu próprio reitor, vetando o estudo de livros dele como fez com Miguel Reale, e que chega ao cúmulo de di�cultar, durante décadas, o acesso de seus alunos de ciências sociais às idéias do único dos nossos sociólogos que tem envergadura universal — Gilberto Freyre —, não deve ser chamada de preconceituosa, porque o termo é doce demais. Ela é simplesmente sectária. Que os arquivos do Dops, em vez de ser colocados sob a guarda de uma comissão mista supra-ideológica, sejam entregues a essa suspeitíssima instituição, para que os utilize como matéria-prima de shows publicitários a pretexto de ciência histórica, já é algo, para o meu gosto, demasiado chocante. Mas ainda há, nas conclusões uspianas, muitas aberrações a ser explicadas, se explicação tiverem. Por exemplo: nada, no mundo, pode justi�car que o chefe de um serviço secreto, ao efetivar a secreta execução de uma secretíssima operação ilegal, o faça... por vias diplomáticas! Por que raios um o�cial militar, que tem sob suas ordens diretas pro�ssionais habilitados para missões de guerrilha, sabotagem e quantas mais truculências o adestramento de combate inclua, no momento de passar à ação transmite a ordem, não a eles, mas a um funcionário civil? Seria o embaixador um agente mais quali�cado do que os militares para convocar e acionar os executores da ordem homicida? A coisa é tão estúpida que raia o impensável. Menos ainda haverá explicação razoável para o fato de que, ao enviar à embaixada de Lisboa o memorando assassino em vez de remetê-lo a destinatário mais apropriado, o chefe da conspiração urdida em altos círculos federais ainda �zesse tirar cópias do sigiloso documento para uma repartição estadual paulista... Porém o mais inverossímil da trama é a vítima. Por que, em pleno processo de abertura democrática, o governo se comprometeria numa arriscada operação para mandar matar, no exterior, um inimigo esquecido, aposentado, política e militarmente inócuo? Já em 1964 a agressividade do Almirante Aragão contra o novo regime revelara ser apenas um blefe, quando sua ameaça de invadir o Palácio das Laranjeiras com um batalhão de fuzileiros navais se desfezcomo por mágica ante a simples reação verbal enérgica do governador Carlos Lacerda. Se, à frente de tropas armadas, tudo o que ele conseguiu fazer foi sair da história para entrar no esquecimento, que milagre poderia tornar tão temível, onze anos depois, esse velho balão furado? Não, um plano governamental para transmutar um almirante de opereta em mártir da causa esquerdista seria insensato demais, contraproducente demais, suicida demais para que pudéssemos acreditar nele à primeira vista, con�ados na pura autoridade de meninos uspianos, ansiosos para acrescentar a contribuição da sua criatividade pessoal ao �lme de Bela Lugosi em que a máquina esquerdista de desinformação vem transformando a história — digamos que o seja — do período militar. Por �m, resta o fato de que as vítimas, após a data fatídica, continuaram passando bem e ignorando por completo a sua morte anunciada... Tudo isso prova, no mínimo, que a acusação é duvidosa e sua divulgação afoita. Se nem mesmo uma simples denúncia jornalística se exime do dever de ser inspecionada “pelos dois lados" antes de estampar-se em manchete, por que uma revelação histórica que se arroga foros de seriedade acadêmica deveria ser alardeada pela antes de submeter-se à inspeção de historiadores pro�ssionais alheios ou antagônicos à fé ideológica de seus autores? Jornal da Tarde, 15 de fevereiro de 2001 C Se é certo que romances, contos e peças de teatro registram algo da psicologia dos povos, nós, brasileiros, deveríamos atentar seriamente para o seguinte fato: nenhuma literatura no mundo é tão abundante de tipos insinceros e �ngidos como a nossa. Praticamente a galeria inteira dos personagens de Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Arthur Azevedo, Marques Rebelo, Nelson Rodrigues e tantos outros é constituída de pequenos farsantes, fracos e sem caráter, nos quais a mentira existencial se tornou como que uma segunda natureza. Não se trata de mentirosos conscientes, maquiavélicos, demoníacos. Não temos um Iago nem um Verkhovenski Jr. (o maligno revolucionário de Os Demônios de Dostoiévski). São antes personalidades de pés de barro, erigidas em cima de uma falsa consciência, de um desvio do foco de atenção. Deslizam instintivamente para fora da realidade, como que por medo de se conhecer, de topar de repente com a imagem da sua própria miséria interior. Tímidas e esquivas, revestem-se incessantemente de máscaras verbais cujo comércio preenche nove décimos da sua vida de vigília. O décimo restante — quando chega à consciência — é angústia secreta, reprimida, que não ousa dizer seu nome. Na tipologia de Lukács, que distingue entre os personagens que sofrem porque sua consciência é mais ampla que a do meio em que vivem e os que não conseguem abarcar a complexidade do meio, a literatura brasileira criou um terceiro tipo: aquele cuja consciência não está nem acima nem abaixo da realidade, mas ao lado dela, num mundo à parte todo feito de �cções retóricas e afetação histriônica. Em qualquer outra sociedade conhecida, um tipo assim estaria condenado ao isolamento. Seria um excêntrico. No Brasil, ao contrário, ele é o tipo dominante: o �ngimento é geral, a fuga da realidade tornou-se instrumento de adaptação social. Mas adaptação, no caso, não signi�ca e�ciência, e sim acomodação e cumplicidade com o engano geral, produtor da geral ine�ciência e do fracasso crônico, do qual em seguida se busca alívio em novas encenações, seja de revolta, seja de otimismo. Na medida em que se amolda à sociedade brasileira, a alma se afasta da realidade — e vice-versa. Ter a cabeça no mundo da lua, dar às coisas sistematicamente nomes falsos, viver num estado de permanente desconexão entre as percepções e o pensamento é o estado normal do brasileiro. O homem realista, sincero consigo próprio, direto e e�caz nas palavras e ações, é que se torna um tipo isolado, esquisito, alguém que se deve evitar a todo preço e a propósito do qual circulam cochichos à distância. Meu amigo Andrei Pleshu, �lósofo romeno, resumia: “No Brasil, ninguém tem a obrigação de ser normal". Se fosse só isso, estaria bem. Esse é o Brasil tolerante, bonachão, que prefere o desleixo moral ao risco da severidade injusta. Mas há no fundo dele um Brasil temível, o Brasil do caos obrigatório, que rejeita a ordem, a clareza e a verdade como se fossem pecados capitais. O Brasil onde ser normal não é só desnecessário: é proibido. O Brasil onde você pode dizer que dois mais dois são cinco, sete ou nove e meio, mas, se diz que são quatro, sente nos olhares em torno o fogo do rancor ou o gelo do desprezo. Sobretudo se insiste que pode provar. Sem ter em conta esses dados, ninguém entende uma só discussão pública no Brasil. Porque, quando um brasileiro reclama de alguma coisa, não é que ela o incomode de fato. Não é nem mesmo que ela exista. É apenas que ele gostaria de que ela existisse e fosse má, para pôr em evidência a bondade daquele que a condena. Tudo o que ele quer é dar uma impressão que, no fundo, tem pouco a ver com a coisa da qual fala. Tem a ver apenas com ele próprio, com sua necessidade de afeto, de aplauso, de aprovação. O assunto é mero pretexto para ele lançar, de maneira sutil e elegante, um apelo que em linguagem direta e franca o exporia ao ridículo. Esse ardil psicológico funda-se em convenções provisórias, criadas de improviso pela mídia e pelo diz-que-diz, que apontam à execração do público umas tantas coisas das quais é bom falar mal. Pouco importa o que sejam. O que importa é que sua condenação forma um topos, um lugar-comum: um lugar no qual as pessoas se reúnem para sentir-se bem mediante discursos contra o mal. O sujeito não sabe, por exemplo, o que são transgênicos. Mas ele viu de relance, num jornal, que é coisa ruim. Melhor que coisa ruim: é coisa de má reputação. Falando contra ela, o cidadão sente-se igual a todo mundo, rompe por instantes o isolamento que o humilha. Essa solidariedade no �ngimento é a base do convívio brasileiro, o pilar de geléia sobre o qual se constroem uma cultura e milhões de vidas. Em outros lugares as pessoas em geral discutem coisas que existem, e só as discutem porque perceberam que existem. Aqui as discussões partem de simples nomes e sinais, imediatamente associados a valores, ao ruim e ao bom, a despeito da completa ausência das coisas consideradas. Não se lê, por exemplo, um só livro de história que não condene a “história o�cial" — a história que celebra as grandezas da pátria e omite as misérias da luta de classes, do racismo, da opressão dos índios e da vil exploração machista. Em vão buscamos um exemplar da dita cuja. Não há cursos, nem livros, nem institutos de história o�cial. Por toda parte, nas obras escritas, nas escolas de crianças e nas academias de gente velha, só se fala da miséria da luta de classes, do racismo, de índios oprimidos e da vil exploração machista. Há quatro décadas a história militante que se opunha à história o�cial já se tornou hegemônica e ocupou o espaço todo. Se há alguma história o�cial, é ela própria. Mas, sem uma história o�cial para combater, ela perderia todo o encanto da rebeldia convencional, pondo à mostra os cabelos brancos que assinalam sua identidade de neo-o�cialismo consagrado — balofo, repetitivo e caquético como qualquer academismo. Direi então que ela açoita um cavalo morto? Não é bem isso. Ela própria é um cavalo morto. Um cavalo morto que, para não admitir que está morto, escoiceia outro cavalo morto. Todo o “debate brasileiro" é uma troca de coices num cemitério de cavalos. O Globo, 17 de fevereiro de 2001 S Por que ninguém entrevista Ladislav Bittman, o ex-espião tcheco que sabe tudo sobre 1964? Milhões de crianças brasileiras, nas escolas o�ciais, são adestradas para repetir que o golpe militar de 1964 foi obra dos Estados Unidos, como parte de um projeto de endurecimento geral da política exterior ianque na América Latina. Sabem quem inventou essa história e a disseminou na imprensa deste país? Foi o serviço secreto da Tchecoslováquia,que naquele tempo subsidiava numerosos jornalistas e jornais brasileiros. O próprio chefe do serviço tcheco de desinformação, Ladislav Bittman, veio inspecionar as fases �nais do engenhoso empreendimento que se chamou “Operação omas Mann". O nome não aludia ao romancista, mas ao então secretário-adjunto de Estado, omas A. Mann, que deveria constar como responsável por uma “nova política exterior" de incentivo aos golpes de Estado. A safadeza foi realizada através da distribuição anônima de documentos falsi�cados, que a imprensa e os políticos brasileiros, sem o menor exame, engoliram como “provas" do intervencionismo americano. O primeiro lance foi dado em fevereiro de 1964: um documento com timbre e envelope copiados da Agência de Informação dos no Rio de Janeiro, que resumia os princípios gerais da “nova política". A coisa chegou aos jornais junto com uma carta de um anônimo funcionário americano, investido, como nos �lmes, do papel do herói obscuro que, por julgar que “o povo tem o direito de saber", divulgava o segredo que seus chefes o haviam mandado esconder. O escândalo explodiu nas manchetes e os planos sinistros do Senhor Mann foram denunciados no Congresso. O embaixador americano desmentiu que os planos existissem, mas era tarde: toda a imprensa e a intelectualidade esquerdistas das Américas já tinham sido mobilizadas para con�rmar a balela tcheca. A mentira penetrou tão fundo que, três décadas e meia depois, o nome de omas A. Mann ainda é citado como símbolo vivo do imperialismo intervencionista. A essa primeira falsi�cação seguiram-se várias outras, para dar-lhe credibilidade, entre as quais uma lista de “agentes da " in�ltrados nos meios diplomáticos, empresariais e políticos brasileiros, que circulou pelos jornais sob a responsabilidade de um “Comitê de Luta Contra o Imperialismo Americano", o qual nunca existiu fora da cabeça dos agentes tchecos. Na verdade, confessou Bittman, “não conhecíamos nem um único agente da em ação no Brasil". Mas a mais linda forjicação foi uma carta de 15 de abril de 1964, com assinatura decalcada de J. Edgar Hoover, na qual o chefe do cumprimentava seu funcionário omas Brady pelo sucesso de uma determinada “operação", que, pelo contexto, qualquer leitor identi�cava imediatamente como o golpe que derrubara João Goulart. Toda uma bibliogra�a com pretensões historiográ�cas, toda uma visão de nosso passado e algumas boas dúzias de glórias acadêmicas construíram-se em cima desses documentos forjados. Bem, a fraude já foi desmascarada por um de seus próprios autores, e não foi ontem ou anteontem. Bittman contou tudo em 1985, após ter desertado do serviço secreto tcheco. Só que até agora essa con�ssão permaneceu desconhecida do público brasileiro, bloqueada pelo amálgama de preguiça, ignorância, interesse e cumplicidade que transformou muitos de nossos jornalistas e intelectuais em agentes ainda mais prestimosos da desinformação tcheca do que o fora o chefe mesmo do serviço tcheco de desinformação. Quantos, nesses meios, não continuam agindo como se fosse superiormente ético repassar às futuras gerações, a título de ciência histórica, a mentira que o próprio mentiroso renegou 15 anos atrás? Neurose, dizia um grande psicólogo que conheci, é uma mentira esquecida na qual você ainda acredita. Redescobrir a verdade sobre 1964 é curar o Brasil. Entrevistar Ladislav Bittman já seria um bom começo.2 É Época, 17 de fevereiro de 2001 O Intelectuais iluminados não são curiosidades inofensivas. São maníacos perigosos. — Eric Voegelin Toda a ciência social do mundo, a marxista inclusa, ensina que nunca as condições materiais e econômicas determinam diretamente a conduta dos homens, mas que o fazem sempre e somente através da interpretação que estes lhes dão, isto é, através dos fatores ideológicos, culturais, morais e psicológicos envolvidos no processo. Um exemplo tornará isso mais claro. Toda hora aparecem na e nos jornais pessoas cultíssimas, sabedoras, iluminadas, as quais nos asseguram, com ar de certeza infalível, que a miséria produz a criminalidade. O sujeito tra�ca, assalta, mata e estupra porque é um excluído, um miserável, um favelado. É o que dizem. Mas — digo eu e dizem os fatos — se o excluído, o miserável, o favelado é também evangélico, ele não tra�ca, nem assalta, nem mata, nem estupra. Se fazia essas coisas antes da conversão, cessa de fazê-las imediatamente ao converter-se. Qual a diferença? Não é econômica, decerto. É cultural, é moral, é psicológica e espiritual. O sujeito, ao converter-se, sofre ainda o impacto cruel da miséria, da exclusão, do compressivo estreitamento de suas possibilidades de ação na sociedade. Apenas, deixou de acrescentar a esses males o mal ainda maior da prática do crime. Ele ainda está na mesma situação, materialmente falando. Apenas, passou a interpretá-la segundo outros valores, outros símbolos, outros critérios. Isso faz, no pobre como no rico, toda a diferença entre o criminoso e o homem de bem. A experiência de milhares de evangelizadores e evangelizados, inclusive dentro dos presídios, comprova que, na produção como na supressão da criminalidade, o peso dos fatores morais e culturais é in�nitamente mais decisivo do que a situação material em si. Eis o motivo pelo qual, nas cadeias, a gerência do crime odeia aqueles a quem pejorativamente chama “os bíblias". Eis o motivo pelo qual, na Colômbia, as já mataram 70 pastores evangélicos e, pelo seu porta-voz Mono Jojoy, anunciaram que vão matar todos os outros. Bastam essas observações para nos fazer perceber que a parte mais audível e vistosa da discussão do problema da criminalidade no Brasil é pura fraude. Essa discussão caracteriza-se, da maneira mais geral e patente, pelo esforço de explicar tudo diretamente pelas condições materiais, omitindo os demais fatores mencionados. E é assim por um motivo muito simples: esses fatores não são produzidos pela situação material mesma, como emanação natural e espontânea, mas são introduzidos nela desde fora e desde cima, pela ação dos criadores de cultura, dos “intelectuais" (no sentido gramsciano e elástico do termo). Ora, quem são os cérebros iluminados que, nas horas de crise e agonia, aparecem na e nos jornais para receitar soluções? São os próprios intelectuais militantes. Quando esses homens, ao analisar uma situação catastró�ca, omitem o elemento cultural, estão ocultando a contribuição que eles próprios deram à produção da catástrofe. Se fossem honestos, jamais fariam isso. A primeira obrigação do intérprete da sociedade é discernir sua própria posição, sua própria atuação na cena descrita, para neutralizar o quanto possível a distorção subjetiva ou interesseira. Ora, no Brasil o cuidado primordial dos opinadores é �ngir que estão fora do quadro, é lançar tudo à conta de causas externas justamente para que ninguém perceba que eles próprios são o item número um do rol de causas. O debate em torno da criminalidade tem sido uma gigantesca máquina de auto-ocultação dos culpados. Há cinqüenta anos a cultura que produzem, interpretando postiçamente o banditismo como expressão direta e legítima de uma justa revolta contra a sociedade injusta, atua como poderoso mecanismo de chantagem emocional que desarma moralmente o aparelho repressivo, ao mesmo tempo que infunde nos delinqüentes uma ilimitada autocon�ança e lhes fornece o discurso de autolegitimação ideológica para a abdicação dos últimos escrúpulos, para a passagem da violência caótica e imediatista à violência organizada, politizada, que se viu na rebelião simultânea de 29 presídios paulistas. Alguns desses gurus do crime vão até além disso, ensinando aos delinqüentes as formas de organização revolucionária que aprenderam em seus partidos ou em Cuba. Depois aparecem ante as câmeras, �ngindo desinteresse generoso e superior isenção cientí�ca. Todos esses fatos são empiricamente veri�cáveis, e a conclusão a que levam não tem nenhum meio racional de ser impugnada: os acontecimentos sangrentos da semanapassada foram — como o serão os próximos do mesmo teor — o efeito lógico e inevitável de uma ação coerente, contínua, pertinaz, empreendida pela intelectualidade ativista na intenção de fomentar a revolta e transformar o Brasil primeiro numa Colômbia, depois numa Cuba. As péssimas condições do sistema carcerário, as prodigiosas di�culdades econômicas da população, as frustrações de milhões de excluídos, as injustiças e as maldades do sistema não produziram a rebelião organizada e politizada dos detentos: o que a produziu foi a crença, arti�cialmente inculcada nos delinqüentes pelos intelectuais, de que essas circunstâncias deprimentes justi�cam que detentos se organizem politicamente para a ação violenta. O que a produziu não foi nenhum desejo sincero de suprimir ou remediar aqueles males, todos eles remediáveis, todos eles suprimíveis, mas sim o de lhes acrescentar o mal irremediável e irreversível por excelência: a organização revolucionária da brutalidade coletiva. São culpados da rebelião carcerária todos os que, há cinco décadas, a desejam e a fomentam com seus discursos ideológicos, seja por decisão voluntária ou por cumplicidade sonsa. São culpados todos os que, rejeitando nominalmente esses discursos, se abstêm de combatê- los sob a desculpa infame de que se tornaram inofensivos após a queda do Muro de Berlim. São culpados todos os que, sabendo que doses letais de ódio revolucionário são diariamente injetadas nas cabeças de milhões de crianças brasileiras, nada fazem para desmascarar essa pedagogia do abismo. São culpados todos os que, por comodismo, por paternalismo, por medo de levar na testa rótulos pejorativos, por desejo abjeto de fazer bonito ante o esquerdismo chique, não movem um dedo para impedir que a cultura e a psique da nossa gente seja infectada com os germes dos mais baixos instintos de vingança política, adornados com rótulos edi�cantes como se fossem a expressão mais alta da moralidade humana. O Globo, 24 de fevereiro de 2001 O O problema é que são duas cabeças ocas Não há criatura mais tipicamente dúbia e bicéfala que o revolucionário que, perdida por decurso de prazo sua oportunidade de fazer a revolução, sobe ao poder por vias legais e anuncia governar segundo as mesmas normas que professava destruir. Que temível situação a do ator que muda de personagem sem poder mudar de script! Otelo com as idéias de Iago, Júlio César com as intenções de Brutus, por mais que tente ser coerente, não escapará da dupla lealdade que o induz a apagar com uma das mãos o que escreveu com a outra, a fazer do Estado o instrumento da destruição do Estado e a desempenhar por �m, no patíbulo da História, o duplo papel da corda e do pescoço. O leitor há de ter percebido que acabo de enunciar a de�nição mesma da tucanidade. O sucesso político dessa entidade equívoca não se deve senão ao fato de que ela encarna, em escala nacional, a autocontradição da própria Nova Ordem Mundial, empenhada em realizar com os meios do liberalismo a sociedade mais coletivista e dirigista que já se imaginou e em preservar a propriedade privada mediante a regulamentação socialista de tudo o mais. Por onde quer que ande semelhante criatura, não cessará de fazer o mal às outras por meio do dano que traz a si mesma, nem de sugar o próprio sangue mediante o derramamento do alheio. Ai de quem caminhe a seu lado! Ai de quem �que contra ela! Ai de quem não ligue! Ai de todos nós, pela simples existência de tal monstruosidade sobre a face da Terra! Um exemplo de seu modo de ser é a peculiar articulação lógica que montou entre economia e educação, apostando os destinos da nação no futuro do capitalismo ao mesmo tempo que adestra as crianças para viver no socialismo. Será de espantar que os jovens absorvam essa lição como um convite a espojar-se nas deleitações do hedonismo permissivista ao mesmo tempo que se arrogam a autoridade moral de juízes austeros e reformadores do mundo? Será de espantar que cada um deles creia poder ser ao mesmo tempo o Marquês de Sade a emergir lívido de sua alcova de prazeres e Moisés a descer do Sinai com as tábuas da lei nas mãos e a ira divina estampada na face? Tomemos outro exemplo, os “direitos humanos". A hipótese de que devotos servidores locais do regime de Cuba pudessem estar seriamente empenhados na defesa dos direitos humanos pode ser afastada in limine por absurdidade intrínseca. A bandeira dos direitos humanos teve para eles função simplesmente tática, de usar os bons sentimentos da população para fomentar nos governantes uma escrupulosidade paralisante, inibindo toda ação policial. Ao mesmo tempo, infundiam em tra�cantes, ladrões, assassinos e estupradores a estimulante ilusão de não serem a escória, mas a elite da espécie humana, provisoriamente tranca�ada nos porões da História pela injusta ordem burguesa. Porém hoje são eles próprios o governo. Condenados a reprimir a desordem pelos mesmos meios com que solapam a ordem, a fomentar rebeliões pelos mesmos meios com que as reprimem, oscilam entre a brutalidade sádica e a rendição masoquista, ora deixando fuzilar a esmo presidiários amotinados, ora convidando a assembléia dos meliantes a governar em seu lugar, não sabendo se mandam matá-los a pau como cachorros loucos ou se se prosternam diante deles em rapapés abjetos, derramando-se em juras de obediência como escravos ante seu senhor. A tucanidade, en�m, resume e simboliza o próprio desencontro nacional, a condensação emblemática de todas as inépcias de um povo. Emergida de um grupo de cérebros confusos que julgavam poder abrir caminho para suas ambições por entre as páginas de O capital, terminou mergulhando numa dialética abissal em que a síntese, em vez de absorver tese e antítese, desaparece no entrechoque delas. Como um Mercúrio mentecapto que, em vez de dominar com mão de ferro as duas cobras do caduceu, fosse mordido por ambas. Época, 24 de fevereiro de 2001 O - A geração que hoje domina o cenário mental brasileiro não recebeu, na juventude, senão uma única in�uência formadora: a das ideologias de esquerda. Digo “ideologias", no plural, porque nela con�uíam o marxismo-Leninismo tradicional, o social-nacionalismo e a New Le (mitologia cubana inclusa). Mas no fundo diferiam muito pouco: cada uma oferecia pretextos diferentes para convalidar a busca obsessiva da mesma �nalidade, elevada ao estatuto de sentido último da existência: a destruição do capitalismo. Duas subcorrentes que poderiam ter aberto vias alternativas — o pensamento católico e a New Age — foram facilmente neutralizadas, castradas, absorvidas na corrente geral, perdendo toda substância própria e reduzindo-se a excipientes da fórmula socialista: o catolicismo forneceu o arremedo de Evangelho que inspira as comunidades de base, a New Age perverteu-se em protesto cocainó�lo, pansexual, gay e feminista contra a “moral burguesa" (entre nós identi�cada, por um prodigioso rodopio semântico, com o pensamento católico conservador). Documentos históricos dessas absorções redutivas são, respectivamente, os escritos da dupla Betto & Boff e os do hoje quase esquecido Luís Carlos Maciel. A cabeça da minha geração foi moldada na supressão e na mutilação. Autores, livros, idéias, fatos eram selecionados segundo um recorte prévio destinado a con�rmar o discurso pronto. Isso não quer dizer que fosse proibido ler livros “de direita". Podíamos lê-los, sim — mas só aqueles que con�rmassem a imagem estereotipada que fazíamos da direita e contra os quais a esquerda tivesse um contraveneno retórico na ponta da língua. Os autores para os quais não se tinha resposta dividiam-se em duas classes: aqueles cujo nome, jamais mencionado, ia sendo esquecido até desaparecer por completo, e aqueles que eram guardados fora do alcance dos nossos olhos pela precaução asséptica de um rótulo infamante, quase sempre o inverso simétrico do que eram na verdade. Não era só pregação ideológica. Era todo um sistema de reações e percepções que se automatizavam como re�exos e acabavam por engolirtotalmente a nossa personalidade. E a ênfase do sistema estava menos em nos passar determinadas crenças do que em infundir-nos a repulsa prévia e temerosa a idéias, coisas e pessoas que desconhecíamos por completo e que assim perdíamos todo desejo de conhecer. Dos 25 anos de idade até hoje, não �z senão abrir minha alma a todas as in�uências, a todos os interesses, a todas as riquezas culturais e espirituais que a coerção mental esquerdista, até então, me havia tornado inacessíveis. Quanto mais vivo e aprendo, mais me espanto de como era acanhado, mesquinho, somítico, regressivo o anti-horizonte no qual os mestres da minha geração quiseram me prender. Anti- horizonte no qual estão presos, ainda, quase todos os meus coetâneos, mesmo aqueles que imaginam ter “passado para o outro lado", como se uma tão profunda mutilação espiritual pudesse ser curada por uma simples troca de carteirinha e como se aliás a própria de�nição estereotípica dos dois lados não fosse ainda a mesma de sempre, apenas com os valores nominalmente invertidos (digo nominalmente porque a efetiva renúncia ao socialismo é tão dolorosa quanto a recuperação de um drogado, e a pressa indecente com que uns quantos anunciam sua mutação prova que ela não ocorreu senão in verbis). Mas, quanto mais me espanto com isso, mais me horrorizo com a mutilação ainda mais funda, com o estreitamento duplamente compressivo que, num repasse infernal, essa geração está impondo aos jovens de hoje. Os cinqüentões criados num quarto escuro não se contentam com transmitir a seus �lhos sua ojeriza à luz, ao sol, ao espaço aberto. Não. Furam-lhes os olhos e os tapam no fundo de uma caverna, para privá-los da possibilidade mesma de conceber que exista luz, sol, espaço aberto no mundo real. Jornal da Tarde, 1º de março de 2001 S Graças a elas, a luta pela soberania torna-se guerra contra um inexistente liberalismo No Brasil, os nomes de doutrinas e regimes políticos não designam as coisas que lhes correspondem na ordem das idéias e dos fatos. Designam pessoas e os sentimentos que a gente tem por elas. Os termos “liberalismo", “neoliberalismo" e “globalização", por exemplo, são sinônimos. Empregam-se, indiferentemente, para dizer: “Maldito c". Mas, como os sentimentos que os usuários dessas expressões têm pelo maldito c são substancialmente os mesmos que têm pela direita em geral, as três palavras passam a signi�car também fascismo, nazismo e ditaduras militares latino-americanas, sem prejuízo de que possam ser usadas ainda para designar as tradições dos Founding Fathers americanos, a ideologia do Concílio de Trento e, last but not least, o Lalau e o Luiz Estevão. Não pretendo absolutamente modi�car essa norma lingüística solidamente estabelecida, pois cada um tem a liberdade de usar o divino dom da fala como bem entenda e, se uma nação inteira decidiu utilizá-lo como instrumento de auto-intoxicação, quem sou eu para aconselhá-la a não fazer isso? Não obstante, é bom informar que, no resto do mundo, liberalismo é um regime de liberdade econômica e política, neoliberalismo é a sutil adaptação desse regime ao paladar dos nostálgicos do socialismo e globalização ou é a abertura das fronteiras comerciais ou a consolidação de um onipotente Estado mundial por cima da dissolução dos poderes regionais. Esses fenômenos não apenas não são o mesmo, mas têm entre si algumas incompatibilidades essenciais. Por exemplo, um Estado mundial, com regulamentos padronizados em escala planetária, é absolutamente contraditório com o princípio liberal da livre iniciativa local, não podendo, pois, um liberal ser um globalista em sentido pleno. No uso brasileiro dos termos, porém, essa incompatibilidade escapa por completo à percepção humana, de modo que todo mundo acredita que fomentando a intervenção do Estado na sociedade estará fazendo algo contra a nova ordem global, quando esta, precisamente, necessita que os Estados nacionais sejam “agentes de transformação" fortes o bastante para implantar em seus respectivos países as novas leis uniformizantes que vêm prontas de Nova York e de Genebra, como por exemplo o desarmamento civil e as quotas raciais. Mas a mixórdia semântica brasileira transpõe resolutamente as fronteiras da psicose quando uma alma de nacionalista contempla com horror a subserviência de nosso governo aos poderes internacionais e chama isso de “liberalismo", identi�cando independência nacional com “Estado forte", como se o governante de um Estado forte não estivesse muito mais habilitado que o “maldito " a impor a seus governados as regulamentações globalistas que bem desejasse. Não é de estranhar que, nesse contexto, os males econômicos do Brasil acabem sendo atribuídos à economia liberal, a qual, no entanto, praticamente inexiste neste país. O e Wall Street Journal e a Heritage Foundation mantêm há anos uma meticulosa pesquisa de índices de liberdade econômica, de�nida pela ausência de fatores como intervenção estatal, impostos altos, regulamentações restritivas etc. Nessa escala, que vai idealmente de 1 a 200, os regimes mais liberais do mundo são Hong Kong (1), Cingapura (2), Irlanda (3), Nova Zelândia (4), Estados Unidos e Luxemburgo (5), Reino Unido (7), Holanda (8) e Suíça (9). O Brasil está em 93º lugar, bem pertinho da China (114). A prevalecer a atual semântica, devemos nos libertar da exploração globalista adotando os métodos de desenvolvimento da Índia (133), do Haiti (137), de Cuba (152) e da Coréia do Norte (155). Teremos de viver de esmolas do Banco Mundial, mas isso então se chamará “soberania" — e quem serei eu para dizer que não? Época, 3 de março de 2001 L Políticos, escritores, professores advertem-nos diariamente contra a invasão dos “deletes", dos “mouses", dos “enters" e “starts" que povoam nosso espaço lingüístico. Até universitários incapazes de conjugar um verbo ou colocar pronomes arvoram-se em guardiões da pureza vernácula, distribuindo nas ruas pan�etos contra o imperialismo cultural nas horas de estudo em que deveriam estar aprendendo português. E dizem até que servem ao idioma com mais devoção do que a Academia Brasileira. Todos esses melindres patrióticos são demasiado posados para que cheguem a me comover. Não vejo neles senão o oportunismo de demagogos que, em vez de cultivar o idioma, querem usá-lo como pretexto para gerar um estado de alarmismo xenófobo útil a seus propósitos políticos. A desculpa a que se apegam, de que a importação vocabular predispõe à subserviência ante o imperialismo, é a mais falsa e estúpida que se pode imaginar. Se existe idioma que importa mais do que exporta, é precisamente o inglês, o qual, de acordo com esse raciocínio, deveria ser língua dos dominados e não dos dominadores. Segundo a Cambridge History of English and American Literature (vol. , parte , cap. 15, § 7), o empréstimo, sobretudo do francês e do italiano, é prática tão extensiva no inglês moderno, que só um quinto das suas palavras dicionarizadas é de origem nativa. Estariam os ianques sob o domínio do imperialismo franco-italiano? Uma língua não é uma simples coleção de palavras. É um sistema. A natureza, o espírito, o valor do idioma estão na sua estrutura dinâmica, no conjunto de regras que dão a sua forma total, a qual está para as palavras isoladas como as proporções e o desenho de um edifício estão para os tijolos que o compõem. Por isso, palavras importadas não têm, por si, a força de corrompê-lo. A corrupção começa no momento em que os falantes dão de usar termos nativos enxertados em construções frasais copiadas do exterior, que sejam incompatíveis com o espírito do idioma. Aí já não se trata de inserir tijolos, mas de alterar a planta do edifício. Mais dano traz à língua nacional quem escreve palavras portuguesas com sintaxe estrangeira do que quem usa palavras estrangeiras numa construção castiçamente vernácula. Este enriquece o idioma: aquele o contamina e infecciona. Um traz alimento; o outro, um vírus. Por isso, adverte a mesma Cambridge History:“Quaisquer que sejam os elementos que compõem o nosso vocabulário, o modo com que se empregam é puramente inglês". E aí é que está o mal: não podemos dizer o mesmo dos termos que absorvemos. Com freqüência alarmante, esquemas e maneirismos frasais ingleses, inúteis e estritamente pedantes, têm entrado no nosso uso corrente. Nos jornais já não se diz, por exemplo, “na semana passada" e sim “semana passada", sem preposição, para corresponder ao inglês last week. Nem se escreve mais: “Não tenho dinheiro, disse ele", sugestiva inversão da ordem de verbo e pronome com que o narrador marcava sua distância psicológica do personagem. Escreve-se “Não tenho dinheiro, ele disse", perdendo a nuance, só para rimar com I have no money, he said. Porém, se você protesta contra esses abusos, quem se levanta para defendê-los, chamando você de “purista", de “reacionário", de “lusó�lo"? Aqueles mesmos que cinco minutos antes queriam fechar a alfândega às importações de palavras. Sim, porque em geral essas criaturas não são verdadeiros nacionalistas e sim marxistas, que só defendem o interesse nacional na medida em que, ecoando uma teoria absurda inventada por Stalin, enxergam as relações internacionais como luta de classes. Por extensão, são também adeptos do progressismo lingüístico, segundo o qual toda construção nova é melhor que a velha, bem como da ideologia da transgressão obrigatória, segundo a qual toda regra lingüística é imposição tirânica das classes dominantes, odioso mecanismo de exclusão social contra o qual é preciso lutar com todas as armas, mesmo as da mentira e do achincalhe. Assim, as forças de dissolução lingüística entram no mercado sob a proteção daqueles mesmos que posam como defensores do idioma. Mas isso não vem de hoje. Se algum fator dissolvente vem corrompendo e debilitando a língua portuguesa do Brasil, é precisamente o transgressivismo obrigatório que, desde o modernismo, se a�rma cada vez mais como ideologia dogmática desses corruptores de menores que hoje dominam a educação nacional. Tal é o maior inimigo da língua pátria, tal é o agente destrutivo que há um século vem solapando e embrutecendo o nosso idioma, despojando-o de toda precisão e sutileza, de toda destreza e �exibilidade, reduzindo-o a um sistema de cacoetes que limita severamente o círculo do dizível, portanto do pensável. No começo do século , ele forçou a brasilianização estereotipada que, rompendo nossos laços culturais com Portugal, foi tornando cada vez mais inacessível às novas gerações a leitura dos clássicos lusos, favorecendo a fragmentação do português num esfarelado de dialetos provincianos mutuamente incompreensíveis. Graças a ele, qualquer brasileiro culto tem hoje mais di�culdade para ler Camilo Castelo Branco ou Aquilino Ribeiro do que um menino americano para ler Dickens ou ackeray. Também por conta dessa ideologia adquirimos um conjunto de preconceitos e inibições antigramaticais, estendendo a pecha de “pedantismo" ao que quer que vá além do tatibitate cotidiano de jovens mongolóides e privando-nos masoquisticamente de instrumentos poderosos e originais como a mesóclise pronominal. Na sua ânsia de vetar, de inibir, de paralisar a mente das camadas letradas para reduzi- la à inermidade psicológica e lingüística das classes pobres, o nacional- populismo conseguiu fazer da língua portuguesa falada no Brasil o único idioma ocidental que, no século , perdeu dois pronomes e duas pessoas verbais, estando agora obrigado a usar de circunlóquios ou a apelar para a ajuda dos possessivos ingleses his e yours para que o ouvinte saiba de quem se está falando. Isto já é mais que simples enfraquecimento do idioma: é a completa destruição de seus fundamentos, por obra de dinamitadores que entram no edifício disfarçados em funcionários da limpeza. O nacional-populismo-transgressivismo não é um nacionalismo verdadeiro. É uma doença, um complexo. Rebaixando os valores nacionais à condição de instrumentos de uma estratégia política interesseira, ele destrói o que �nge defender. Se queremos preservar o idioma nacional, a cultura nacional, a honra nacional, a primeira coisa que temos de fazer é tirá-las da guarda e tutela de usurpadores, farsantes e aproveitadores. O Globo, 3 de março de 2001 O Ele não liga para matanças de cristãos, mas quando leva um pito é pranteado como mártir De tempos em tempos, retorna às páginas da imprensa a lamúria de praxe em torno das perseguições inquisitoriais de que teria sido vítima o Doutor Genézio Darci, mais conhecido pelo nom de plume de Leonardo Boff. Esse escritor, que cinco anos após a queda do Muro de Berlim proclamava ser a rejeição do marxismo “um atraso teórico" para a Igreja, até hoje é apresentado como herói solitário em luta contra o establishment, embora desde suas primeiras escaramuças com o Santo Ofício ele tivesse o respaldo de um lobby internacional mais poderoso que mil Santos Ofícios. O Doutor Genézio nunca foi proibido de falar. Pediu-se apenas que não falasse em nome da Igreja, �cando livre para fazê-lo na condição de locutor leigo através de uma rede mundial de megafones. O então franciscano, a�rma-se, era apenas uma alma bondosa que queria o diálogo entre marxistas e cristãos. As regras do diálogo eram bem nítidas: a Igreja deveria acolher e proteger quem �zesse propaganda comunista entre seus �éis, enquanto nos países comunistas os pregadores cristãos continuavam a ser presos, torturados e enviados para o céu sob os cuidados pastorais de pelotões de fuzilamento. Ninguém pediu que o Doutor Genézio, aliás Boff, se abstivesse de falar em favor dessas vítimas. Seu mutismo, no caso, é voluntário e, comparado a suas prolí�cas efusões de retórica lacrimal em causa própria, sugere que ele mesmo é o maior dos mártires. Por mais psicótico que seja esse critério de avaliação da gravidade comparativa das perseguições, ele é endossado pelo noticiário nacional, que considera o silêncio parcial e temporário solicitado ao ex-frade coisa mais revoltante e digna de denúncia que o silêncio total e de�nitivo imposto a alguns milhares de cristãos, no mesmo período, mediante irrespondíveis tiros na nuca. Se qualquer pretexto, por mais remoto e arti�cioso, serve para justi�car o eterno retorno das carpideiras bófficas ao palco da mídia, o recente livro do historiador Robert Royal, e catholic martyrs of the twentieth century (New York, Crossroad, 2000), descrição da matança sistemática de católicos nos países totalitários, não foi sequer noticiado no Brasil. É o critério vigente: em compensação do martírio que os protetores do Doutor Genézio impuseram à Igreja, ela não deve ter nem mesmo o direito de lhe puxar maternalmente as orelhas quando ele insinua que os mentores desse genocídio, Marx, Lenin, Mao e Fidel, eram tão cristãos quanto Santa Teresinha do Menino Jesus. Ainda mais elucidativa é a comparação entre o destino do Doutor Genézio, tanto mais pranteado como vítima de censura quanto mais espaço ocupa na mídia, e o dos sacerdotes conservadores que em vez de levar uma inócua reprimenda foram logo excomungados, e os quais, apesar disso, nunca, nunca são mencionados na imprensa brasileira como vítimas de qualquer perseguição. Um pito cardinalício no intocável Doutor Genézio torna-se mais escandaloso que a ameaça pública de expulsão que autoridades eclesiásticas �zeram pesar não só sobre Gustavo Corção, mas sobre todos os leitores que concordassem com o que ele escrevia, por exemplo que era indecente um Papa intervir em favor de terroristas e fazer vista grossa ao fuzilamento de dissidentes em Moscou. A duplicidade da escala de valores, aí, chega às alturas de um cinismo quase impensável. Quando o senso moral de pessoas cultas é afetado ao ponto de perder a noção das proporções, algo de muito grave aconteceu na intimidade de sua constituição espiritual. A própria “teologia da libertação" do Doutor Genézio-Boff preparou o terreno para isso. Mas a doutrinação política não basta para gerar tamanho efeito. É preciso uma ação mais funda, uma corrupçãodas capacidades básicas de percepção e julgamento. Foi constatando esse assombroso poder de deformação das consciências que David Horowitz, um observador judeu dos con�itos católicos, tirou a seguinte conclusão: “A teologia da libertação é um credo satânico". Época, 10 de março de 2001 D E Para compreender a mentalidade de qualquer pessoa, família, comunidade ou tradição, é preciso conhecer, mais que as condições externas que moldaram o cenário da sua existência, os atos e decisões livres que a distinguiram de todas as outras e �xaram o per�l da sua identidade, o padrão das suas reações mais típicas e duradouras. Mesmo esquecidas, mesmo recalcadas para o fundo do inconsciente, essas marcas auto-adquiridas da individualidade acompanharão a criatura — ou a entidade — até o �m dos seus dias. Positivas ou negativas, não poderão jamais ser removidas, apenas — se negativas — compensadas, a duras penas, por novas decisões livres que neutralizem até certo ponto os seus efeitos indesejados. “A escolha faz o destino", dizia o grande Leopold Szondi. Uma sucessão de escolhas individualizantes marca uma história, uma biogra�a, uma comunidade, um povo, muito mais do que qualquer acontecimento exterior que lhe sobrevenha por acaso ou por iniciativa de outros. Os portugueses, por exemplo, sofreram o terremoto de Lisboa e a invasão napoleônica. Foram marcados por esses acontecimentos, mas não tão profundamente quanto se haviam marcado a si mesmos pelo livre empreendimento das navegações que os tornou, para sempre, descobridores do mundo. O terremoto e a invasão sobrevivem apenas como marcas do passado. Mas a epopéia das navegações é o sinal permanente da identidade portuguesa. Outro exemplo: os judeus sofreram o Holocausto, mas não o sofreram porque quiseram. Ele lhes veio de fora, como um �agelo. Marcou-os profundamente, mas não ao ponto de apagar sua identidade. Esta nasce daquilo que �zeram, por escolha própria, ao longo do tempo. E o principal que �zeram foi aceitar, livremente, a Lei de Moisés. Sem o Holocausto, seriam tão judeus quanto sempre foram. Não o seriam sem a Lei que escolheram, que o próprio Deus não lhes impôs mas apenas lhes ofereceu: “Se me aceitas, Israel, Eu sou o teu Deus". A decisão mesma de chamar Holocausto aos sofrimentos que lhes foram impostos na Guerra assinala a vitória da identidade antiga, livremente assumida, sobre o impacto dissolvente de uma força externa hostil. Interpretando o malefício novo à luz do simbolismo bíblico, os judeus reataram as duas pontas do �o do seu destino, que o imprevisto brutal quisera separar. Sim, a escolha, e não o acontecimento, faz o destino. Os dois exemplos que dei são de escolhas digni�cantes. Mas as escolhas perversas, criminosas, hediondas, marcam o destino de maneira igualmente profunda. Tal é a marca das correntes e ideologias que prometem fazer do Estado o reformador da sociedade. Desde o berço, todas, sem exceção, escolheram como seu principal e inconfundível meio de ação aquele que é próprio do Estado e que, na verdade, o de�ne e o distingue de todas as demais instituições: o monopólio da violência física. O Estado só é Estado porque tem a legitimidade — extorquida ou consentida — do uso da força. Quem quer que proponha modi�car a sociedade por meio do Estado — em vez de fazê-lo por meio da religião, da cultura, da in�uência pessoal, da livre associação dos indivíduos ou dos poderes intermediários — sabe, desde o princípio, que seu meio de ação essencial é a força. O Estado pode, é claro, usar também de outros meios. Mas nenhum deles — nem a cultura, nem a educação, nem a propaganda, nem a riqueza — é próprio e exclusivo dele. São empréstimos casuais. O domínio mesmo que o Estado tenha sobre eles repousa no controle que ele exerça sobre o seu meio próprio, que é a força. Por isso, quaisquer meios brandos e incruentos que utilize não são, a rigor, senão substitutos provisórios da força. Tão logo falhem em dar os resultados esperados, o Estado entra em crise ou emprega a força. Tertium non datur: não há terceira alternativa. Apostar no Estado é, pois, apostar na violência. Esta aposta marca de maneira indelével e inconfundível a vocação de todas as ideologias modernas, de índole reformista ou revolucionária, que vêem no Estado o motor e promotor do bem-estar social. Mas não me re�ro só ao nazismo e ao socialismo. Mesmo formas in�nitamente mais brandas de estatismo não podem escapar à lógica das coisas. Mesmo homens de convicções tão acentuadamente democráticas como Abraham Lincoln e Franklin D. Roosevelt — ou, entre nós, os militares que se sucederam no poder após o Marechal Castelo Branco — acabaram promovendo o autoritarismo e cometendo violências contra seu próprio povo a partir do momento em que, por convicção ou por falta de imaginação para conceber alternativas, �zeram do Estado o pólo ativo da vida social e o escolheram como meio essencial para a realização de seus ideais. Não é signi�cativo que o governo do grande libertador Lincoln fosse também o inventor dos campos de concentração, que o do sincero democrata Roosevelt instituísse contra os descendentes de japoneses a prisão por suspeita racial? Não é signi�cativo que o governo militar, criado para restaurar a democracia ameaçada pelos comunistas, acabasse se cristalizando num aparato repressivo que ele próprio não sabia desmontar, ao mesmo tempo que, jurando defender a liberdade de mercado, expandia a máquina estatal mais que qualquer de seus antecessores? Mais eloqüente ainda é o exemplo dos whigs, progressistas ingleses, precursores do Welfare State, que inventaram, antes de Stalin, a “arma da fome", com as famigeradas Leis do Milho, de 1828, as quais, aplicadas contra a Irlanda, reduziram sua população de oito milhões para quatro em um século. Mas se autênticos democratas foram levados a fazer essas coisas pelo simples fato de apostarem no Estado como instrumento para melhorar a sociedade, quanto mais malefício não farão homens imbuídos da idéia de que o Estado deve não apenas melhorar e sim recriar ou revolucionar a sociedade? E quanto mais vasto e duradouro não será o mal que hão de produzir se, em vez de revolucionar apenas a estrutura de uma sociedade determinada, pretenderem usar da força estatal para criar uma nova civilização mundial, modi�car de alto abaixo a herança cultural e os princípios morais, os valores religiosos, os quadros elementares da percepção e, em suma, a natureza humana? Por isso, quando intelectuais iluminados nos anunciam, como no Fórum Social de Porto Alegre, que “um outro mundo é possível", o que se deve concluir é que os cem milhões de mortos da experiência socialista, mais quarenta do nazifascismo, ainda não foram o bastante para saciar a ambição prometéica dos inventores estatais de mundos. O Globo, 10 de março de 2001 R Quando os megacapitalistas, a burocracia planetária e a mídia internacional, após apoiar com verbas e publicidade a organização do Fórum Social Mundial, aceitam alegremente algumas das conclusões do encontro e passam a declarar que, de fato, como já dizia o doutíssimo Olívio Dutra, a globalização não foi igualmente boa para todos, a conclusão que se deve tirar disso é, para mim, a mais óbvia possível. O circo esquerdista de Porto Alegre foi apenas um útil contraponto dialético de detalhe, programado pelos próprios engenheiros do mundialismo para se encaixar na sua estratégia geral, a qual não exclui nem mesmo, no vasto painel de um mundo cada vez mais capitalista, a possibilidade de umas experiências socialistas, aqui e ali, em países que sejam idiotas o bastante para desejá-las e irrelevantes o su�ciente para que seu suicídio não prejudique em grande coisa o universo em torno: tal parece ser o caso, precisamente, do Brasil. Mas o Brasil não seria tão bom para o desempenho dessa parte vexaminosa do script maior se, precisamente, a nossa intelectualidade não fosse cretina o bastante para não perceber o funcionamento da máquina mundial de desinformação da qual ela própria é,no local, a peça decisiva. Assim, as declarações espantosamente sincrônicas do , do Banco Mundial, da e de George Soros em discreto apoio às conclusões do Fórum gaúcho não despertarão a menor suspeita e, em vez de ser interpretadas à luz dos preceitos mais elementares da ciência das informações estratégicas, serão unanimemente aceitas e repassadas em seu puro valor retórico nominal, como homenagens casuais do globalismo à argumentação de seus adversários. Sancta simplicitas! Ninguém, aqui, parece capaz de fazer o seguinte raciocínio: premissa maior — o poder global expande-se igualmente por meio da livre iniciativa capitalista ou da burocracia mundial socializante. Premissa menor — em virtude das próprias dimensões totalizantes do empreendimento, esses meios têm de ser alternados para a coisa dar certo. Conclusão: frear o liberalismo e pisar no acelerador do estatismo não diminui em nada a velocidade de ascensão da Nova Ordem Mundial nem a da liquidação das autonomias nacionais. Mas, no Brasil, só as palavras contam. Como o nome “liberalismo" está associado a “globalismo", e o nome “estatismo" a “independência nacional", embora as quatro coisas aí signi�cadas não tenham nada a ver com isso, só o que importa é reforçar os mesmos discursos de sempre, porque, a�nal, o show tem de continuar. Assim, comentando um relatório da (a única organização internacional que, por descuido da produção talvez, não fez coro às unanimidades antiliberais da quinzena passada), segundo o qual o mundo está hoje menos miserável do que 15 anos atrás, o editorialista de um grande jornal de São Paulo diz que isso não pode ser, porque, como informam outras tantas e ainda mais abalizadas autoridades globais, o número de pessoas que vivem com menos de um dólar por dia subiu de 1,2 bilhão de meados da década de 80 para 1,5 bilhão hoje. São portanto 300 milhões de miseráveis a mais, quod erat demonstrandum. Acontece que, no mesmo período, a população mundial passou de 4,5 bilhões para 6 bilhões. Aumentou, portanto, de um terço, enquanto o exército de miseráveis teve seu contingente acrescido de apenas um quarto. A prosperidade está obviamente ganhando a corrida. Não importa: na atmosfera geral de histrionismo antiliberal, qualquer indício de que a miséria diminuiu vale como prova de que a miséria cresceu. E como o que conta é mesmo o teatro, o articulista completa sua “performance" proclamando que, apesar do que diz a , “de�nir a linha de indigência é um problema complexo de estatística social" porque “os métodos são variados e a acurácia dos dados é precária". Diante de tanta sabença, já ninguém mais ousa perguntar: que pode entender da “acurácia" dos métodos estatísticos um sujeito que não consegue sequer aplicar uma regra de três? Jornal da Tarde, 15 de março de 2001 E Candidato preferencial a chefe de segurança: a raposa Primeiro o meu estômago, depois a vossa moral. — Bertolt Brecht O falecido Carlos Lacerda era louco, mas não rasgava dinheiro. Quando fugia dos seguranças para entrar sozinho no meio de grevistas enfurecidos ou de presidiários em rebelião, sabia que sua coragem suicida era um apelo irresistível ao senso de honra de homens durões. Qualquer um deles que o pegasse sozinho, num beco escuro, não hesitaria em fazê-lo em pedaços. Reunidos em milhares, inibia-os a própria superioridade numérica. Eram leões. Não iriam precipitar-se, como hienas, sobre um adversário só e desarmado. Ante a insensatez sublime do domador, as prevenções das feras se desmanchavam: o ódio trans�gurava-se em respeito. Mas os tempos mudaram. Nem o governador Mário Covas é Carlos Lacerda nem os grevistas com que se defrontou são desordeiros honrados. Ele não tem o controle da situação, eles não têm o senso de lealdade guerreira. Nem ele é um domador, nem eles são leões. Seriam hienas? Compará-los a animais é inexato. Animais não têm a malícia de atrair sobre si a piedade que negam a um homem velho, doente e recém-operado. Entre lobos, aquele que baixa o focinho desarma automaticamente o mais forte. A ética dos nossos professores não chega a tais alturas. “Pai, não bata nela. É a minha professora", choramingava um cartaz, premeditado para dissuadir a Tropa de Choque. Eles sabem, quando lhes interessa, apelar ao sentimento de família — aquele mesmo sentimento que tentam extirpar das almas de nossos �lhos, fomentando em lugar dele a revolta edípica contra a autoridade. No entanto essa multidão infame, que duas dúzias de cassetetes erguidos bastam para pôr a correr, essa multidão que passa do temor abjeto aos rosnados ameaçadores diante da visão tentadora do adversário indefeso, essa multidão é que tem o encargo de ensinar aos nossos �lhos a ética e os bons costumes. Por isso é que, nas últimas décadas, os princípios espontâneos da moral natural — ser digno, prestativo e bom — foram substituídos, na boca senão na alma das crianças brasileiras, pelos chavões da propaganda política. Por isso é que nossos �lhos já não sabem que é feio brigar em cinco contra um, mas sabem soletrar de cor os slogans do perfeito cidadãozinho pré-moldado: “Cadeia para os corruptos", “eliminar as diferenças sociais", “combater a discriminação", etc. Milhares de Pittas não trariam à consciência moral deste país um dano comparável ao que nos chega pelas mãos dessas professorinhas enragées. E é gente desse tipo que mantém a nação em sobressalto com seus clamores de “Ética!" e uma insaciável fome de cabeças. É para agradar a essa ralé que a classe política, há 12 anos, vive num patético ritual de autodestruição que, a pretexto de “puri�car as instituições", as debilita a ponto de transformar em hábito banal — um direito do cidadão — invadir prédios públicos, desrespeitar ordens judiciais e, last not least, bater em quem foi eleito para apanhar. Se o governador ferido prefere contemporizar, dizendo que aqueles que o agrediram “não são professores", é porque lhe falta, ao lado da sobrante coragem física, a coragem moral de declarar a verdade. Eles são professores, sim, são representativos da mentalidade pedagógica — instilada neles pelo próprio — para a qual a suprema função da escola é treinar militantes, é acender nas almas infantis o desprezo à moral familiar, o narcisismo que não aceita limites à demanda de satisfações, o ódio revolucionário que se arroga todos os direitos contra o “Estado burguês". Tanto são representativos, que nenhum comando de greve tomou a iniciativa de repudiar publicamente seus atos. O governador sabe disso, mas é mais cômodo deixar-se bater do que abjurar a mentira sobre a qual se construiu uma vida. Pois quem insu�ou as violências de quinta-feira não foi só o . Foi toda a geração de belas almas que, desde a anistia, ocuparam o cenário político para brilhar como encarnações da luz e do bem. Os Covas, os Serras, os Gregoris, os Paulos Evaristos, os s foram os professores desses professores. Foram eles que, prometendo moralizar a política, politizaram a moral. Foram eles que ensinaram essa gente a cobrar mais ética dos políticos que de si mesma. Foram eles que lhe inocularam aquela mistura de inveja, rancor e auto-indulgência que não pode deixar de explodir, mais cedo ou mais tarde, em convulsões de ódio histérico adornadas de retórica igualitária. Quem produz a causa deve suportar o efeito. Foi talvez por isso que o governador se submeteu a uma humilhação evitável. Igor Caruso, o grande psicanalista, dizia que as neuroses nascem de um instinto reprimido de equilíbrio moral, que se restabelece à margem da consciência mediante estranhos e inúteis gestos de autopunição. Época, 17 de março de 2001 O Se o público brasileiro não adquirir rapidamente os conhecimentos básicos que o habilitem a reconhecer operações de desinformação pelo menos elementares, toda a nossa imprensa, toda a nossa classe política e até o�ciais das Forças Armadas podem se transformar, a curtíssimo prazo, em inermes e tolos agentes desinformadores a serviço da revolução comunista na Américaseus próprios atos, é também um ato assumir livremente a responsabilidade por atos alheios, como os cônjuges se responsabilizam mutuamente por suas obrigações econômicas, ao casar-se. As responsabilidades do indivíduo podem estender-se em círculos concêntricos cada vez mais amplos, indo das obrigações mais diretas, absolutas e incondicionais às mais indiretas, abstratas e relativas, como a do governante que, pela “ética da responsabilidade" weberiana, deve assumir a culpa até mesmo pelos resultados mais indesejados e imprevisíveis de suas decisões, tornando-se então “politicamente" culpado sem verdadeira culpa moral pessoal. Essa escala que vai da responsabilidade pessoal direta até a responsabilidade indireta e quase simbólica é bastante fácil de apreender e, como eu já disse, é de fato apreendida quase instintivamente... exceto quando o desejo de inculpar é mais forte que a razão. Neste caso, muito freqüente na política, uma linguagem de imputação moral direta é usada contra um acusado que não poderia ter responsabilidade pessoal concreta nos fatos em questão, como por exemplo quando o criador de uma política econômica desastrada (supondo-se que ela o seja mesmo) é chamado de “assassino" por conta de uma complexa conjetura estatística que associa “índices de desemprego" a “índices de mortalidade" e, num salto lógico formidável, atribui a esse indivíduo a autoria de não sei quantas mortes. Esse tipo de retórica é um evidente charlatanismo, e seu usuário deve ser considerado, desde logo, desquali�cado para opinar em questões morais. Por exemplo, os autores do Livro negro do capitalismo, paródia grotesca do Livro negro do comunismo, procuram nivelar, como igualmente abomináveis, as execuções de dissidentes decretadas pessoalmente por Stalin e Fidel Castro e as mortes por desnutrição acontecidas na África ou na Ásia e atribuídas, mediante longas cadeias de conjeturações econômicas, a efeitos indiretos de políticas econômicas adotadas nos países ricos. Esse nivelamento nega, na base, o princípio de autoria, e não é desculpável como mero erro de lógica cometido com boas intenções. Os responsáveis por esse tipo de propaganda desmascaram-se, no ato, como pessoas moralmente escorregadias e indignas de con�ança. Similarmente, o homem que, nada tendo cedido de seus bens aos pobres, discursa iradamente contra governantes que não tomaram tais ou quais medidas que no seu entender eliminariam a pobreza está aplicando o princípio de autoria de maneira dúplice e autocontraditória: desobrigando-se de fazer pelos desamparados o pouco que está ao seu alcance, ele cobra o muito que supõe estar ao alcance de outros, autonomeando-se assim um juiz mais habilitado a julgar aquilo que só conhece por conjetura do que aquilo que sabe por experiência direta. Quanto mais esse indivíduo discursar contra os outros, mais estará se desmascarando a si próprio. Jornal da Tarde, 4 de janeiro de 2001 J Origens do espetacular moralismo judiciário europeu, que alguns acham um exemplo para nós Pouco antes da queda da urss, Mikhail Gorbachev reuniu a elite da espionagem soviética e ordenou que a maior parcela possível do patrimônio da kgb fosse privatizada em nome de testas-de-ferro e investida no Ocidente. Isso nada teve a ver com as privatizações legais que se seguiram no governo Ieltsin. Foi uma lavagem de dinheiro — a maior da História. Graças a ela, a kgb, que hoje é ainda o principal esteio do governo Putin, é apenas meia kgb: a outra metade está espalhada no planeta, com nomes em inglês e japonês, com a cara mais capitalista do mundo, subsidiando a guerra cultural, comprando consciências, �nanciando guerrilhas e trá�co, com cifras que seriam impensáveis no tempo em que o “ouro de Moscou", para passar ao Ocidente, tinha de atravessar uma complexa rede de lavanderias secretas como a de Armand Hammer, o patrocinador da família Gore. Agora já vem tudo lavado. Tal é a raiz da expansão aparentemente inexplicável da propaganda esquerdista na década de maior sucesso do capitalismo. Não é nada estranho que essa expansão se desse sobretudo nos meios universitários americanos, hoje tomados pela fúria militante e, como nota René Girard, cada vez mais incapacitados para tarefas intelectuais superiores. Desde a década de 30 o movimento comunista está consciente de que ganhar as classes intelectuais é mais rentável que converter proletários. Apenas isso nunca foi tão fácil quanto hoje: se já na Guerra do Vietnã a e a China gastaram mais dinheiro em propaganda antiamericana dentro dos Estados Unidos que no custeio de material bélico, pode-se calcular o quanto esse gênero de operação se tornou mais maneiro com a trans�gurada numa rede sutil e inabarcável de empresas e s ocidentais. Para fazer uma idéia da quantia envolvida, basta ter em mente que aquele patrimônio, secreto e inacessível mesmo ao poder legislativo da antiga , incluía, como apenas um de seus itens, o tesouro nacional espanhol em peças de ouro, acumulado desde Filipe , levado para Moscou durante a Guerra Civil e, evidentemente, jamais devolvido... Não por coincidência, tão logo certas ações um pouco anteriores à terceirização da começaram a chamar a atenção na Europa, com a revelação de documentos dos recém-abertos arquivos do Comitê Central do que atestavam as quantias formidáveis passadas a partidos comunistas, a jornais e editoras e até às principais lideranças social-democráticas do Ocidente na década de 80, a esquerda reagiu com vigor. Ela mobilizou seus agentes no poder judiciário para que desencadeassem uma universal caça às bruxas, paralisando e desmoralizando mediante fáceis acusações de corrupção menor todas as lideranças liberais e conservadoras que soubessem demais. Mas não se tratava só de ocultar o passado imediato: a sucessão de belos espetáculos judiciários, com juízes transformados em pop stars, que foi uma marca dos anos 90 e na qual os caipiras de todo o planeta viram um exemplo de alta moralidade digno de fazer corar os políticos do Terceiro Mundo, serviu para desviar as atenções do público, dando tempo à terceirizada para que se espalhasse por toda parte, discretamente, sem que ninguém atrapalhasse seu próspero comércio de caixas-pretas. Foi a mais vasta operação diversionista de que se tem notícia, feita para encobrir a mais notável trapaça de todos os tempos. Época, 6 de janeiro de 2001 T When one acquires a perversion, one always despises the normal... All ill people are a club. — Arthur Koestler Quem comete delito mais grave: o sujeito que coloca uma bomba em lugar público, despedaçando transeuntes inocentes, ou aquele que dá uma surra em quem fez isso? A natureza humana, a razão e o instinto respondem resolutamente: o primeiro. Em seu apoio vêm a jurisprudência universal, as leis morais das grandes religiões e até o regulamento da Associação Protetora dos Animais, que não considera tão lesivo ao interesse dessas criaturas dar pancadas em uma delas quanto liquidá-las às dúzias por meio de explosivos. Toda a humanidade compreende intuitivamente que o torturador, por cruel e asqueroso que seja, é apenas um agressor, ao passo que o terrorista, por belo e idealista que se anuncie, é um homicida por atacado, virtualmente um genocida. As diferenças não param aí. Maus-tratos a um prisioneiro podem resultar do súbito impulso de fazer justiça com as próprias mãos, enquanto o ato terrorista supõe premeditação fria, planejamento racional, execução precisa. A tortura admite graus, que vão de um tapa na cara até os requintes de perversidade dos carrascos chineses e norte-coreanos, ao passo que um homicídio não pode ser meio homicídio, um quinto de homicídio, um-dezesseis-avos de homicídio. Condenar o terrorismo como “crime hediondo" é falar de um delito de�nido, claro, inso�smável, ao passo que usar o mesmo termo para quali�car a “tortura" é um expediente lingüístico para meter no mesmo saco o torcionário cientí�co que aplicou choques a um prisioneiro por meses a �o, oLatina. A maior parte das nossas classes letradas não sabe sequer o que é desinformação. Imagina que é apenas informação falsa para �ns gerais de propaganda. Ignora por completo que se trata de ações perfeitamente calculadas em vista de um �m, e que em noventa por cento dos casos esse �m não é in�uenciar as multidões, mas atingir alvos muito determinados — governantes, grandes empresários, comandos militares — para induzi-los a decisões estratégicas prejudiciais a seus próprios interesses e aos de seu país. A desinformação-propaganda lida apenas com dados políticos ao alcance do povo. A desinformação de alto nível falseia informações especializadas e técnicas de relevância incomparavelmente maior. O uso de informações falseadas é conhecido nas artes militares desde que o mundo é mundo. “A arte da guerra consiste substancialmente de engodo", dizia Sun Tzu no século a.C. Exemplos de informação falsa usada fora do campo militar estrito aparecem, aqui e ali, na história mundial. Calúnias contra judeus e protestantes nos países católicos, contra os católicos e judeus nos países protestantes foram muitas vezes premeditadas para justi�car perseguições. Os revolucionários de 1789 montaram uma verdadeira indústria de informações falsas para jogar a opinião pública contra o rei e, depois, para induzi-la a apoiar as medidas tirânicas do governo revolucionário. O exemplo mais célebre foi a Grande Peur, o “Grande Medo": informações alarmistas espalhadas pelo governo, que, anunciando o iminente retorno das tropas reais — impossível, àquela altura — desencadeavam explosões de violência popular contra os suspeitos de monarquismo; explosões que em seguida o próprio governo mandava a polícia controlar, brilhando no �m com a auréola de paci�cador. A história das revoluções é a história da mentira. Mas tudo isso ainda não era desinformação. Invenção pessoal de Lenin, a desinformação (dezinformátsya) consiste em estender sistematicamente o uso da técnica militar de informação falseada para o campo mais geral da estratégia política, cultural, educacional etc., ou seja, em fazer do engodo, que era a base da arte guerreira apenas, o fundamento de toda ação governamental e, portanto, um instrumento de engenharia social e política. Isso transformava a convivência humana inteira numa guerra — numa guerra integral e permanente. Quando Hitler usou pela primeira vez, em 1939, a expressão “guerra total" para designar um tipo moderno de guerra que não envolvia apenas os políticos e militares, mas toda a sociedade, a realidade da coisa já existia desde 1917 na Rússia, mesmo sem combates contra um inimigo externo: o socialismo é a guerra civil total e permanente. No governo de Lenin, a desinformação era também a regra geral da política externa. A famosa abertura econômica, planejada como etapa dialética de uma iminente estatização total, foi anunciada como sinal de um promissor abrandamento do rigor revolucionário, não só para atrair os capitalistas, mas para dissuadir os governos ocidentais de apoiar qualquer esforço contra-revolucionário. Assim, muitos líderes exilados, desamparados pelos países que os abrigavam e iludidos pela falsa promessa de democratização na Rússia, voltaram à pátria conforme calculado e, obviamente, foram fuzilados no ato. Dos que não voltaram, muitos foram mortos no próprio local de exílio por agentes da Tcheka, a futura . O uso da informação traiçoeira nessa escala era uma novidade absoluta na política mundial. Para fazer idéia de quanto as potências ocidentais estavam despreparadas para isso, basta saber que os não tiveram um serviço secreto regular para operar no exterior em tempo de paz senão às vésperas da Guerra Mundial. Outro ponto de comparação: a “ofensiva cultural" soviética — sedução e compra de consciências nas altas esferas intelectuais e no show business — começou já nos anos 20. A não reagiu com iniciativa semelhante senão na década de 50 — e foi logo barrada pela gritaria geral da mídia contra a “histeria anticomunista". Não obstante a abjeta inermidade das potências ocidentais ante a Revolução Russa, o governo Leninista mantinha o povo em sobressalto, alardeando que milhares de agentes secretos estrangeiros estavam em solo russo armando a contra-revolução. Um dos raros agentes que comprovadamente estavam lá era o inglês Sidney Reilly, um informante mitômano que o Foreign Office considerava pouquíssimo con�ável, e do qual a propaganda soviética fez o mentor supremo da iminente invasão estrangeira que, evidentemente, nunca aconteceu. Para avaliar o alcance dos efeitos da desinformação soviética, basta notar que até a década de 70 o livro de Michael Sayers e Albert E. Kahn, A grande conspiração, inspirado no alarmismo Leninista de 1917, ainda circulava em tradução brasileira como obra séria, com a chancela de uma grande editora. Diante de casos como esse, de autodesinformação residual espontânea, não espanta que os soviéticos tivessem em baixíssima conta a inteligência dos brasileiros, principalmente comunistas. Operações de desinformação em larga escala só são possíveis para um regime totalitário, com o controle estatal dos meios de difusão, ou para um partido clandestino com poder de vida e morte sobre seus militantes. Qualquer tentativa similar em ambiente democrático esbarra na �scalização da imprensa e do Legislativo. Não há, pois, equivalente ocidental da desinformação soviética. Um governo pode, é claro, fazer propaganda enganosa, mas não pode fazer desinformação porque lhe faltam os meios para o domínio calculado dos efeitos, que é precisamente o que distingue a técnica Leninista. Inversa e complementarmente, a liberdade de informação nos países democráticos sempre foi de uma utilidade formidável para a desinformação soviética, não só pelo contínuo vazamento de informações secretas do governo para a imprensa, mas também pela facilidade de divulgar informações falsas pela mídia ávida de denúncias e escândalos. O célebre general armênio Ivan I. Agayants, por muitas décadas chefe do departamento de desinformação da , chegava a �car espantado ante a facilidade de plantar mentiras na imprensa norte-americana. Espantado e grato. Ele dizia: “Se os americanos não tivessem a liberdade de imprensa, eu a inventaria para eles". ..: Este assunto continua no artigo da semana que vem. Por enquanto, vão apenas tratando de conjeturar, se quiserem, o seguinte: quantos técnicos em desinformação, que aprenderam em Cuba sob a orientação da , são hoje “formadores de opinião" no Brasil? O Globo, 17 de março de 2001 C Quali�car assim a luta entre capitalismo e socialismo é um vício de linguagem Se você quer avaliar a extensão do domínio hipnótico que os cacoetes marxistas ainda exercem sobre o sistema neuronal de pessoas que se supõem imunes a qualquer contaminação de marxismo, basta ver que estas, quando argumentam em favor do capitalismo, admitem colar na própria testa o rótulo de defensores de uma determinada “ideologia". Uma ideologia é, por de�nição, um simulacro de teoria cientí�ca. É, segundo a correta expressão do próprio Marx, um “vestido de idéias" que encobre interesses ou desejos. Ao aceitar de�nir-se na linguagem de seu adversário, o liberal moderno assume o papel que ele lhe impõe: confessa-se porta-voz dos interesses dos ricos. Que a con�ssão seja falsa não a torna menos e�caz. Transferida do confronto objetivo das doutrinas para o terreno da concorrência de interesses, a luta parece opor agora o explorado ao explorador. Por elegante que seja a argumentação deste último, ele estará condenado a personi�car sempre o malvado da história. Descrever o confronto entre capitalismo e socialismo como “luta de ideologias" é aceitar um jogo viciado, no qual um dos lados dita as regras, dá as cartas e predetermina o desenlace. O capitalismo não é uma ideologia. É um sistema econômico que existiu e provou suas virtudes desde dois séculos antes que alguém se lembrasse de formulá-lo em palavras. E o primeiro que esboça essa formulação,Adam Smith, não é de maneira alguma um ideólogo, um inventor de símbolos retóricos para construir futuros no ar em favor de tais ou quais ambições de classe. É um homem de ciência em toda a extensão do termo, esboçando hipóteses para descrever e explicar uma realidade existente. O socialismo, em contrapartida, milênios antes de existir sequer como estratégia política concreta já tinha seus ideólogos, seus embelezadores de enganos, seus estilistas de interesses de grupos ressentidos e ambiciosos. Por isso, o confronto de socialistas e liberais não opõe ideologia a ideologia: a defesa do socialismo é sempre a auto-atribuição ideológica dos méritos imaginários de um futuro possível, a do capitalismo é sempre a análise cientí�ca de processos econômicos existentes e dos meios objetivos de aumentar sua e�ciência. Malgrado tudo quanto se possa alegar contra ele sob outros aspectos (e eu mesmo não tenho deixado de alegá-lo), o capitalismo não somente gerou riquezas incalculáveis, mas pôs em ação os meios práticos de distribuí-las ao povo e criou instituições como a democracia parlamentar, a liberdade de imprensa, os direitos humanos, ao passo que o socialismo só o que fez até hoje foi prometer um futuro melhor ao mesmo tempo que reintroduzia o trabalho escravo banido pelo capitalismo, suprimia todos os direitos civis e políticos conhecidos, reduzia mais de 1 bilhão de pessoas a uma angustiante miséria e, para se sustentar no poder, recorria a meios de uma crueldade quase impensável, como por exemplo a empalação e o esfolamento de prisioneiros — um recurso muito usado durante o governo de Lenin. O capitalismo não é uma ideologia — é uma realidade continuamente aperfeiçoada pela ciência. Ideologia é o socialismo — o vestido de idéias que encobre as ambições sociopáticas de semi-intelectuais ávidos de poder. E uma prova a mais de que isso é assim poderá ser dada por eventuais reações socialistas a este artigo, as quais, como todas as contestações a meus artigos anteriores, não conseguirão e aliás nem tentarão impugnar a veracidade de nenhuma de suas a�rmações, mas se limitarão a expressar descontentamento e revolta contra sua publicação. Época, 24 de março de 2001 O Quando os comunistas sobem ao poder na Rússia em 1917, eles trazem várias décadas de experiência da clandestinidade e nenhuma experiência da política “normal", da legalidade democrática vigente nos maiores países europeus e na América. A conseqüência imediata foi que levaram para o governo as técnicas e hábitos da luta clandestina. “Governo revolucionário", no caso, veio a signi�car: governo por meios de ação clandestinos: ocultação, traição, engodo, perfídia. O lutador clandestino é aquele que se permite tudo, que não tem compromisso com nenhuma ordem legal ou moral exterior, que inventa livremente sua regra conforme os interesses e contingências da luta pelo poder. O que distinguiu o poder soviético nascente foi menos o emprego da violência do que o caráter deliberado e calculista da sua brutalidade. Lenin e Dzerzhinzski, o chefe da polícia secreta, estavam persuadidos de que a violência funcionava sobretudo pelo seu impacto psicológico, pelo terror que infundia às multidões. Por isto adotaram métodos de uma crueldade que, para a opinião pública civilizada, era simplesmente inimaginável. O empalamento de prisioneiros foi um deles. Empalamentos são raridade estranha na história ocidental. O Conde Vlad, guerreiro romeno miti�cado como Drácula, empregou-os contra os invasores turcos porque, usuários habituais dessa prática, eles a temiam acima de tudo. Na opinião dele, era empalar ou ser empalado. O requinte soviético foi que os candidatos a empalamento não foram escolhidos entre empaladores em potencial, mas entre padres e monges, para escandalizar os �éis e fazê-los perder a con�ança na religião, segundo a meta Leninista de “extirpar o cristianismo da face da Terra". Também as inovações socialistas em matéria de tortura desa�am a imaginação do homem normal. Esfolar prisioneiros, fechá-los numa tumba junto com cadáveres em decomposição, colocá-los na ponta de uma prancha e escorregá-los lentamente para dentro de uma fornalha, encostar na sua barriga uma gaiola sem fundo, com um rato dentro, e em seguida aquecer com a chama de uma vela o traseiro do rato para que, sem saída, ele roesse o caminho no corpo da vítima — eis alguns dos processos então documentados por uma comissão de investigação dos países aliados. Quem se interessar por esses fatos poderá consultar A People’s Tragedy: e Russian Revolution 1891–1924 (London, Jonathan Cape, 1996), de Orlando Figes, um dos melhores estudos sobre o período, bem como o clássico depoimento de Sergei P. Melgounov, e Red Terror in Russia (London, J. M. Dent, 1925). Naturalmente serei acusado de mau gosto por relembrar essa parte da história, bem conhecida porém propositadamente esquecida. Mas o esquecimento proposital, com todo o bom gosto que se alegue para justi�cá-lo, é parte do crime: é o recalque que consolida a neurose e eterniza a repetição dos sintomas. Para ver como isso funciona, basta notar como, desde então, os próprios socialistas se esmeraram em fazer um tremendo escarcéu publicitário em torno de denúncias de tortura, verdadeiras ou falsas, contra ditaduras que, em matéria de truculência, não têm gabarito para concorrer com a tradição Leninista. Ninguém tem mais força e eloqüência na retórica de acusação do que o criminoso que oculta suas próprias culpas: ele sabe quanto a revelação de seus crimes o tornaria odioso, por isso é tão hábil em desenhar uma imagem odiosa de seus adversários. Ele tem estampado na alma o modelo do seu discurso. É assim que se explica que sejam sobretudo os adeptos e servidores locais do regime cubano que exibem em público as mais patéticas emoções do escândalo ao falar das violências do nosso regime militar. Toda tortura é odiosa, mas não consta que a nossa ditadura tenha recorrido sistematicamente a mutilações de prisioneiros, ao passo que o canal dos exilados cubanos, Martí, exibe semanalmente uma procissão in�ndável de dedos cortados, orelhas arrancadas e olhos vazados que atestam a continuidade do Leninismo nas prisões políticas de Havana. É precisamente a consciência reprimida da sua cumplicidade moral com tais crimes que infunde nessas pessoas, pelo arquiconhecido mecanismo de inculpação projetiva, o fogo da eloqüência com que fazem brilhar ante os olhos da multidão o esplendor macabro de crimes incomparavelmente menores. De modo análogo, a onda mundial de protestos em torno da morte de Orlando Letellier, assassinado no exílio por agentes da ditadura chilena, serviu para acabar de apagar da memória popular o fato de que a prática de mandar matar oposicionistas no exterior foi uma invenção de Lenin — invenção que fez algumas centenas de vítimas em Paris e Londres logo na primeira década da Revolução, e cujo uso se prolongou comprovadamente pelo menos até os anos 50, com o assassinato do General Walter Krivitsky num hotel em Washington. Nenhum desses episódios teve repercussão publicitária nem de longe comparável à do caso Letellier. Como é possível que um único homicídio suscite mais revolta que centenas deles? A explicação é que a indignação do ser humano normal contra o crime e a violência é mista daquela tristeza que inclina antes ao silêncio do que às grandes efusões de lágrimas públicas: ela jamais pode concorrer, em teatralismo midiático, com as emoções �ngidas de sociopatas. Foi precisamente a síntese indissolúvel de crueldade e �ngimento, a mistura de barbárie e cerebralismo, de ação oculta e publicidade histérica que caracterizou o primeiro governo socialista da Rússia, depois imitado �elmente por todos os socialismos revolucionários subseqüentes, da Ásia à América Latina. O que o socialismo trouxe de novidade ao mundo foi um estilo inédito de ação política, radicalmente diferente de tudo quanto a civilização do Ocidente houvesse conhecido até então. O impacto dessa novidade abriu para o homemdo século um abismo de oportunidades de degradação moral e espiritual que ultrapassavam, em horror e crueldade, tudo o que a humanidade anterior pudesse imaginar. A história desse século, o mais sangrento da história humana, seria inexplicável sem esse precedente aberto pelo revolucionário que sobe ao governo e leva consigo, para dentro do aparelho de Estado, o espírito da clandestinidade. O Globo, 24 de março de 2001 F Abraham Lincoln, que de lenhador se fez presidente, teve ainda fôlego para se tornar, mediante o estudo dos clássicos, um dos maiores estilistas da língua inglesa. eodore Roosevelt, no intervalo de lutas políticas e aventuras militares, escreveu ensaios literários que ainda hoje se lêem com proveito. Nada digo de Jefferson, intelectual dentre os mais notáveis do seu tempo, muito menos dos Adams, uma dinastia de eruditos. Saltando de continente, admito que devo a Sir Winston Churchill algumas das horas de leitura mais divertidas e estimulantes que já vivi, e da �loso�a moral de Lorde Balfour só tenho a lamentar que autor tão bom escrevesse tão pouco. Na França ninguém chegou a presidente ou primeiro-ministro sem que uma digna folha de serviços literários lhe abrisse caminho. Não preciso citar gênios como Clemenceau ou de Gaulle: mesmo o humilde Georges Pompidou, em campanha, jamais deixava de fazer uma pausa para proferir eruditas conferências sobre Racine ou Victor Hugo. Já se disse que um político francês não liga para imputações de corrupção, mas chega a bater-se em duelo se acusado de um erro de gramática. Mas essas coisas não acontecem só em países estrangeiros. O Brasil antigo deu belos exemplos de consciência literária em políticos eminentes. A tradição nasce com o fundador mesmo do nosso país, o Andrada. Ele �xou um nível de exigência sob cuja autoridade �oresceram, na política nacional, in�ndáveis personalidades intelectuais de alto calibre, de José de Alencar a Joaquim Nabuco, de Oliveira Lima a Ruy Barbosa. A República, a Revolução de 30 e o regime militar conservaram o padrão, mesmo declinante. Mas esse Brasil morreu, abruptamente, na década de 80. A pretexto de democratização, abriram-se as portas a uma autêntica “invasão vertical dos bárbaros". Na nova onda de políticos que então brotou do nada, o justo orgulho de representar as “classes populares" passou a comprovar-se mediante a apresentação de um novo e inusitado tipo de credencial: o direito à ignorância, fundamentado na origem pobre de Suas Excelências. Malgrado o fato de que ao longo da nossa História o crescimento da corrupção acompanhasse a curva ascendente da participação popular na política, continuou-se a proclamar como um dogma inquestionável o refrão de que “o mau exemplo vem de cima" e a não ver mal algum na presença maciça de semi-analfabetos e mocorongos em postos de responsabilidade. Ao contrário, tornou-se hábito e até obrigação moral admitir que pessoas de origem humilde, ao ascender aos primeiros escalões do poder, continuassem a cultivar, ao menos em público, uma auto- imagem de pobres e oprimidos, como se seus salários de deputados ou governadores não bastassem para custear sua educação e libertá-los de sua miséria cultural originária. Eu, que, neto de lavadeira e �lho de operária, julguei ter o dever de estudar para defender a honra da minha classe humilhada — e que ao assim proceder não �z senão seguir os passos de um Machado, de um Cruz e Souza, de um Lima Barreto e de tantos outros que na minha ingenuidade supus exemplares —, passei a me sentir, no novo ambiente, um anormal. A moda agora era o sujeito vir da ignorância e, subindo, permanecer nela, cultivá-la e atirá-la ao rosto da sociedade, com o orgulho masoquista da vítima que exibe suas chagas para atormentar o culpado. Mas todo exibicionismo forçado tem limites. O orgulho da ignorância é tão hipócrita que, na mesma medida em que se exibe, procura ocultar-se. A prova é que muitas dessas criaturas alternam seu desempenho populista de iletrados orgulhosos com tentativas de fazer-se passar por jornalistas e escritores, publicando artigos e livros escritos por anônimos terceiros. Governantes atarefados, ou sem talento especí�co para determinadas matérias, sempre recorreram a redatores auxiliares. A diferença é que hoje quase todos os políticos, mesmo insigni�cantes e desocupados, têm seu ghost writer, não porque lhes falte tempo ou o domínio de assuntos especializados, mas simplesmente porque lhes falta o conhecimento da língua geral do Brasil. Trombeteiam nos palanques em defesa da “identidade nacional", mas não concedem sequer a homenagem de uns minutos de atenção ao primeiro e essencial componente dela: o idioma. Tornado habitual, esse uso passa por inocente. Poucos se dão conta de que ele revela o caráter de farsa grotesca, e no �m trágica, assumido desde há alguns anos por todo o chamado “debate político nacional". O homem que não domina as palavras é dominado por elas: vive num mundo de ilusões verbais, que toma por realidades. Quando consegue montar uma frase, imagina que provou um fato. A fala, em vez de ser uma janela para o mundo, substitui o mundo. É a auto-hipnose verbal tomando o lugar do conhecimento. É o psitacismo elevado à condição de suprema ciência. Sempre que me vejo na circunstância de discutir com um desses sujeitos, sinto-me tentado a desanimar ante a inutilidade do empreendimento. Na melhor das hipóteses, o infeliz captará a lógica das palavras, sem a mínima intuição das realidades subentendidas, e fará frases, julgando que me refutou. Por isso, em vez de discutir com eles, talvez seja melhor apenas descrevê-los, na esperança de que se reconheçam na descrição e, num relance, tenham uma salvadora visão do imensurável ridículo de suas vidas �ngidas. Zero Hora, 25 de março de 2001 D A falta de santos, de místicos, de �lósofos, num país de dimensões continentais e 500 anos de existência, já basta para fazer dele uma anomalia espiritual assustadora, provavelmente sem similar na História universal. Porém mais anormal ainda é que ninguém se preocupe com isso, que todos creiam dever constituir primeiro a sociedade ideal, com 200 milhões de cidadãos satisfeitos e rechonchudos, para depois, só depois, tratar de adquirir alguma consistência no plano do espírito. Esta pretensão insensata é talvez a maior manifestação de desprezo coletivo à “única coisa necessária" que já se observou na espécie humana. Não há, no repertório das possibilidades históricas conhecidas, exemplo de sociedade que lograsse encher todos os estômagos para só depois alimentar os corações e cérebros. Os povos mais primitivos, as comunidades mais rudimentares já mostravam saber que algum tipo de conhecimento metafísico precedia no tempo e na ordem hierárquica dos fatores a organização material da sociedade — pois a sociedade é feita por homens, e a organização da alma humana precede a possibilidade mesma da ação racional na sociedade. A expressão “mito fundador" anda hoje nas bocas dos nossos acadêmicos, mas é evidente que eles não têm a menor idéia do que seja isso. Imaginam que se trate de uma enorme ilusão coletiva inventada por espertalhões da classe dominante para colocar os homens a seu serviço — uma imensa cenoura de burro a orientar o trajeto da carroça histórica. Santo Deus! Acham que mito fundador é ideologia. O conceito de mito fundador vem de Schelling. Um mito fundador não é uma ideologia. Ideologia é um discurso que não compreende a realidade, mas motiva os homens a substituir uma realidade que compreenderam mal por outra da qual não vão compreender nada. Inspirados pela ideologia do socialismo, os seguidores de Lenin substituíram a sociedade tzarista, da qual tinham uma compreensão falseada, pela monstruosidade incompreensível que foi a sociedade soviética. Inspirados nos falsos diagnósticos sociais de Hitler, os nazistas desmantelaram uma república que não compreendiam e puseram no lugar dela um pesadelo ininteligível. Guiados por pessoas que acham que mito fundador é ideologia,um povo que não compreende a raiz de seus males se prepara, neste país, para produzir males in�nitamente maiores que, se vierem a se consumar, talvez já não possam ser compreendidos por nenhuma inteligência humana. Ideologia é isso: um discurso que, partindo de uma falsa visão do presente, atrai os homens para a construção de um futuro que, depois de pronto, é feio demais para que suportem reconhecer nele a obra de suas mãos. Por isso os desiludidos de ideologias criminosas raramente se apresentam como aquilo que são: cúmplices fracassados de um crime sem recompensa. Apresentam-se como vítimas traídas pelo destino. Falseiam o passado como falsearam o futuro. Um autêntico mito fundador, ao contrário, é uma verdade inicial compactada que, no desenrolar da História, vai desdobrando o seu sentido e �orescendo sob a forma de ciência, de leis, de valores, de civilização. Um mito fundador não é um “produto cultural", pela simples razão de que ele, e só ele, é a semente de toda cultura possível. Um mito fundador constitui-se, em geral, da narrativa simbólica de fatos que efetivamente sucederam, fatos tão essenciais e signi�cativos que acabam por transferir parte do seu padrão de signi�cado para tudo o que venha a acontecer em seguida numa determinada área civilizacional. Assim, por exemplo, Northrop Frye demonstrou que todos os esquemas narrativos conhecidos na grande literatura ocidental são variações de enredos bíblicos. Ora, os esquemas narrativos da literatura superior são os padrões de autocompreensão imaginativa de uma civilização. E os padrões de autocompreensão imaginativa são, por sua vez, os esquemas de ação possíveis. A Bíblia, mito fundador da civilização ocidental, está no fundo de toda a nossa compreensão de nós mesmos e de todas as nossas possibilidades de ação. Fora disso, não há senão ideologia, erro, loucura. A desorientação radical da sociedade brasileira vem da ligação tênue, cada vez mais distante, cada vez mais evanescente, que nossa história tem com as raízes bíblicas da civilização do Ocidente. Tanto perdemos a compreensão do nosso mito fundador que chegamos a querer substituí-lo por mitos tribais, indígenas ou africanos, belos e sugestivos o quanto sejam, mas ineptos a dar forma a uma civilização vasta e complexa. Mas hoje descemos abaixo dos mitos tribais, que, limitados o quanto fossem, tinham a sua verdade. Já não queremos nem mesmo construir o Brasil em cima de verdades parciais. Queremos a mentira total. Queremos uma ideologia. Jornal da Tarde, 29 de março de 2001 E Há um método infalível de tirar conclusões erradas — o método brasileiro de raciocinar Se você quer estragar de�nitivamente um cérebro, acostume-o desde pequeno a tomar os sentidos das palavras, estampados nos dicionários, como se fossem traduções diretas de coisas e fatos. Em seguida, quando ele montar um raciocínio com essas palavras, faça-o acreditar piamente que a conclusão se aplica aos fatos e a coisas correspondentes. Esse é o método infalível de ir parar longe da realidade. Após algumas décadas de experiência na leitura de jornais e livros brasileiros, posso assegurar que ele é praticamente o único método admitido nos debates públicos neste país. Querem um exemplo? A palavra “iluminismo" designa idéias de liberdade e razão, opostas ao dogmatismo, à fé cega e às tiranias. “Inquisição", por sua vez, quer dizer um tribunal que mandava os heréticos para a fogueira. Logo — segundo o método acima referido —, se estivermos falando de tortura, podemos concluir razoavelmente que a Inquisição fez uso regular desse expediente e que a difusão do iluminismo extirpou essa prática hedionda do rol das atividades humanas decentes. Essa crença é hoje em dia um topos, um lugar-comum, não apenas tido por verdade auto-evidente, mas usado como premissa capaz de transmitir sua veracidade a quaisquer conclusões que se tirem dele. No entanto, se em vez de se contentar com palavras você decidir investigar os fatos em detalhe, indo além do que se pode encontrar em livros de divulgação escritos pelo método brasileiro de raciocinar, descobrirá que os inquisidores foram as primeiras autoridades a enxergar na tortura algo de imoral e, sem poder aboli-la por completo, as primeiras a limitar severamente a sua prática, vetando a efusão de sangue e proibindo que o mesmo prisioneiro fosse torturado mais de uma vez. Isso foi um dos passos mais decisivos na evolução dos direitos humanos. Os iluministas, por seu lado, consagraram a noção do Estado — em vez da religião ou da cultura — como autoridade moral suprema, portanto do governante como “guia dos povos". Com isso, prepararam o terreno não só para o advento do Terror revolucionário na França, mas para a emergência dos totalitarismos modernos que reinstauraram a prática ilimitada da tortura. Essa realidade histórica é totalmente escamoteada quando, com a maior inocência, o sujeito raciocina com base no valor nominal dos termos. Igualmente inepto — só para dar outro exemplo — é o raciocínio que atenua as culpas de terroristas sob a alegação de que são minorias em luta clandestina contra um governo tirânico, ao mesmo tempo que condena com veemência o “terrorismo de Estado". Nominalmente, as duas coisas são inversas, mas de fato o terrorismo de Estado só veio a existir por obra de grupos clandestinos que, subindo ao poder, conservaram, agora como técnicas de governo, suas antigas práticas de luta — havendo portanto entre o terrorismo clandestino e o estatal uma relação análoga à de ovo e galinha, entre os quais não há oposição lógica mas apenas diferenças de fases na evolução temporal de uma só e mesma criatura. O terrorista avulso de hoje é o terrorista estatal de amanhã, como o foram Lenin e Hitler, Mao e Fidel. E há sempre um intervalo misto, como no caso das , que fazem terrorismo avulso nas regiões submetidas ao governo central, terrorismo estatal nas áreas sob seu próprio domínio. Tomar as palavras como coisas é introduzir, em debates sérios, um elemento de magia hipnótica. Feito com inocência, é prova de burrice e incultura. Feito de propósito, é esplêndida vigarice. Época, 31 de março de 2001 L Quando alguém me diz que o comunismo é coisa do passado, que advertir contra ele é açoitar um cavalo morto, tenho às vezes uma certa suspeita de estar conversando com um canalha. Não que o sujeito o seja necessariamente. Mas, a rigor, somente um canalha descontaria 1,2 bilhão de pessoas que ainda vivem sob a tirania comunista como uma quantidade negligenciável, um in�nitesimal no in�nito. Somente um canalha desprezaria como irrelevantes os 40 fuzilamentos mensais de mulheres chinesas (e seus respectivos médicos) que se recusam a praticar aborto. Somente um canalha se persuadiria de que, só porque meia dúzia de �rmas americanas estão ganhando dinheiro em Pequim (como se já não tivessem faturado outro tanto na Rússia de Lenin), o comunismo se tornou inofensivo como um rinoceronte de pano. Somente um canalha �ngiria ignorar que, após a dissolução da urss, nenhum torcionário da kgb foi demitido, muito menos punido, e que a maior máquina de espionagem, polícia política, terror estatal e tortura institucionalizada que já existiu no universo, com um orçamento superior ao de todos os serviços secretos ocidentais somados, continua funcionando como se nada tivesse acontecido. Somente um canalha induziria o povo a ignorar essas coisas, para que, quando a revolução que se prepara no Brasil com dinheiro do narcotrá�co tomar o poder, ninguém perceba estar revivendo a tragédia da Rússia, da China e de Cuba. Pois não é preciso ir para o exterior, basta olhar para o Brasil mesmo para ver a força monstruosa que o movimento comunista, seja lá com que nome for — pois ao longo da história ele mudou de nome muitas vezes, ao sabor de seus interesses do momento — vem adquirindo a cada dia que passa. Só para dar um exemplo, a difusão de idéias comunistas nas escolas, da qual muitos brasileiros ainda nem tomaram consciência, e que outrosinsistem em ignorar propositadamente (entre eles o ministro da educação), já passou da fase de simples “doutrinação" para a do direto e franco estupro das consciências. Em milhares de escolas o�ciais, professores pagos com dinheiro público usam de sua in�uência e de seu poder não apenas para instaurar o culto de líderes genocidas e o mito da democracia socialista, mas para intimidar e punir qualquer criança que não consinta em repetir seu discurso magistral. A mais leve divergência, às vezes a simples dúvida, sujeitam o aluno ao constrangimento diante dos colegas, incutindo nele o temor pelo futuro da sua carreira escolar e pro�ssional. Meus próprios �lhos passaram por isso, e recebo mensalmente dezenas de e- mails com relatos de situações similares. Chamar a isso “propaganda", “doutrinação", é brandura terminológica de quem não quer ver a gravidade do que se passa. E o que se passa é que o terrorismo psicológico já impôs seu domínio sobre os corações infantis, preparando-os para aceitar, como coisa normal, inevitável e até boa, um governo de assassinos e psicopatas como aquele que ainda vigora em Cuba e que já vigora nas regiões sob o domínio das . Em face disso, os brasileiros reagem... encobrindo fatos com palavras, amortecendo a consciência do perigo mediante chavões soporíferos, exibindo aquele ar de calma �ngida que trai o medo, o pavor de encarar a realidade. Direi que isso é ingenuidade? Não. A ingenuidade não tem a astúcia verbal requerida para tamanho auto-engano. Um leitor, todo empombado de falsa ciência, me escreve que o comunismo não foi mais violento do que as guerras de religião, o Santo Ofício, a queima de bruxas ou a Noite de São Bartolomeu. Com aquele ar sabe-tudo de professorzinho de ginásio, cita o horror de Montaigne ante a crueldade das guerras civis de seu tempo e conclui que “a violência sempre esteve presente nas diferentes fases da história". Nada como uma frase-feita para um brasileiro brilhar falando do que não sabe. Nada como um belo chavão para igualar, numa pasta verbal uniforme, as mais prodigiosas diferenças. A Inquisição espanhola, o tribunal mais cruel de que se teve notícia antes do século , matou 20 mil pessoas ao longo de quatro séculos. O governo Leninista completou cifra idêntica em poucas semanas. Ademais, quase todos os exemplos de crueldade em massa observados ao longo da história se deram por ocasião de guerras, seja entre estados, tribos ou grupos religiosos. A repressão soviética foi o primeiro caso de violência estatal permanente contra cidadãos desarmados, em tempo de paz. O exemplo proliferou. Quando os alemães começaram a enviar judeus a Auschwitz, 20 milhões de russos já tinham sido mortos pelo governo soviético. Mesmo ao término da sua obra macabra, em 1945, o nazismo, com toda a máquina genocida montada para esse �m, não tinha conseguido igualar a produtividade da indústria soviética da morte. Sob qualquer aspecto que se examine, o socialismo não é de maneira alguma uma idéia decente, que se possa discutir tranqüilamente como alternativa viável para um país, ou que se possa, sem crime de pedo�lia intelectual, incutir em crianças nas escolas. É uma doutrina hedionda, macabra, nem um pouco melhor que a ideologia nazista, e que, para cúmulo de cinismo, ainda ousa falar grosso, em nome da moral, quando condena os excessos e violências, incomparavelmente menores, que seus adversários cometeram no afã de deter sua marcha homicida de devoradora de povos e continentes. Tão logo aceitamos a lógica infernal da sua propaganda, obscurecemos nossa inteligência, perdemos o senso da verdade e o senso das proporções. Perdemos até o senso do antes e do depois. Incutem-nos, por exemplo, a noção de que a guerrilha brasileira foi a única saída que lhes foi deixada pelo governo repressor que, em 31 de março de 1964, fechou todas as portas à oposição legal. Mas como pode ter sido isso, se a guerrilha começou em 1961, sempre dirigida e �nanciada desde Cuba? Dizem-nos que a Operação Condor foi uma conspiração internacional entre ditaduras, para sufocar movimentos pací�cos e democráticos. Mas como pode ter sido isso, se a tal operação só surgiu tardiamente, em resposta ao movimento armado tricontinental, dirigido desde Havana e �nanciado com dinheiro soviético? Mediante as lições dos mestres socialistas, desaprendemos até o senso instintivo da ordem temporal dos fatos. Acreditar nessa gente, ainda que por breves instantes, é desmantelar o próprio cérebro, é destruir em nossas almas a capacidade para as distinções mais elementares e auto-evidentes. Por isso já não tenho mais paciência com pessoas que consentem que seus �lhos sejam submetidos a esse tipo de estupidi�cação. Por um tempo, imaginei que fossem apenas idiotas, covardes ou preguiçosos. Mas a idiotice, a covardia e a preguiça têm limites: ultrapassado um certo ponto, transformam-se na modalidade mais requintada e sutil de canalhice. O Globo, 31 de março de 2001 A Quando se fala dos cem milhões de vítimas do socialismo, isto se refere a pessoas assassinadas de propósito, por ordem de governantes, em tempo de paz. São “inimigos de classe" liquidados mediante fuzilamentos, enforcamentos, espancamentos, torturas várias e inanição forçada. São vítimas de genocídio deliberado. Seu número não inclui nem soldados mortos em combate, nem vítimas civis da guerra ou de crimes comuns, nem muito menos taxas de mortalidade infantil ou cálculos de diminuição da expectativa de vida média por conta da ine�cácia econômica do socialismo. Se incluísse, o total, na mais modesta das hipóteses, duplicaria. Mas, mesmo sem isso, cem milhões já bastam para tornar o socialismo, desde o simples ponto de vista quantitativo, um �agelo mais mortífero que duas guerras mundiais somadas, mais todas as epidemias e terremotos deste e de vários séculos. Quando, nada tendo a opor à realidade brutal desses dados, o propagandista do socialismo quer aliviar a má impressão desviando os olhos do público para os “horrores do capitalismo", ele não encontra aí nada de parecido. Nem Gulag, nem fuzilamentos em massa, nem expurgos, nem guardas vermelhos a retirar professores de suas cátedras para espancá-los até à morte. Que artifício lhe resta, então, senão apelar à duplicidade de pesos e medidas para ajustar o resultado do cálculo ao efeito publicitário premeditado? Então ele atribuirá às democracias ocidentais a culpa pelas guerras iniciadas por governos totalitários, nivelará moralmente o genocídio premeditado com os efeitos imprevistos de políticas econômicas, fará do governo de Washington o autor intencional das mortes de famintos em países submetidos a regimes estatistas e socializantes da Ásia, da África e da América Latina onde o capitalismo mal chegou a entrar, e por �m debitará na conta dos governos capitalistas todos os feitos de assaltantes, estupradores, serial killers e delinqüentes em geral. Ao perceber que tudo isso ainda não basta para completar a cifra desejada e que a manobra inteira já começa a soar inconvincente, ele apelará ao derradeiro subterfúgio: negar o valor dos números, abolindo, num golpe de caneta, a diferença entre o assassino de uma só vítima e o assassino de milhões, diferença que minutos antes, quando imaginava poder usá-la contra o capitalismo, ele mesmo enfatizava aos berros. Então, matar os 300 assassinos de 200 policiais e soldados, no Brasil, terá se tornado crime tão hediondo quanto fuzilar, em Cuba, dezessete mil dissidentes civis desarmados. Revidar o ataque de tropas armadas, numa guerra civil, será tão abominável quanto retirar de suas casas, na calada da noite, dezenas de milhões de cidadãos inermes, para os fuzilar e jogar na vala comum. Depois de todos esses cortes, enxertos e suturas, não há realidade que resista. A imagem do capitalismo aí �ca, sim, pelo menos tão má quanto a do socialismo. Talvez até um pouco pior. Mas qualquer palavra mais doce do que canalhice, que eu empregasse para quali�car esse gênero de discurso, me tornaria indigno da condição de escritor;indigno, a rigor, da simples identidade funcional de jornalista. Pois, se há uma obrigação elementar do jornalista, é a de dar aos fenômenos que descreve a justa proporção que têm na realidade. E não há um só tratado sobre a arte da argumentação, de Aristóteles e Quintiliano até Schopenhauer e Chaïm Perelman, que não exclua da arte retórica, mãe do jornalismo, o uso daquele tipo de expedientes maliciosos, relegando-os ao lixo da erística, a arte de ludibriar o público, a retórica prostituída dos intrujões e dos canalhas. Chamá-los canalhas não é, nem de longe, a expressão de um sentimento pessoal. É a justa e exata aplicação de um juízo consagrado entre os mestres da arte da argumentação. É o reconhecimento objetivo da intromissão de um linguajar fraudulento que, se não pode ser eliminado das arengas de arruaceiros e demagogos, deve ser banido, sem complacência, de todo debate que se pretenda intelectualmente respeitável. Isso é requisito preliminar, independente, mesmo, do mérito das questões em disputa. Mas, no caso presente, se há algo comparável à vileza dos procedimentos argumentativos usados para igualar o inigualável, é a feiúra moral da causa a que sacri�cam a sua honradez intelectual os que a tanto se prestam. As dimensões do mal que eles pretendem ocultar são tão colossais, ultrapassam de tal modo as medidas do humanamente concebível, que a Igreja, em sentenças papais proferidas ex cathedra, de�niu o fenômeno como intrinsecamente diabólico, condenando à excomunhão automática qualquer católico que, por palavras, atos ou omissões, colaborasse com o monstruoso empreendimento. No entanto não falta quem se escandalize diante dessa sentença papal mais que diante da imensidão do próprio crime que ela condena. Onde já se viu, dirão, diabolizar assim as pessoas? Feio, no sentimento de quem assim fala, não é matar cem milhões de seres humanos. Feio é aliviar, por piedade, as culpas dos criminosos, atribuindo a autoria de seus feitos ao demônio. Feio não é Pol Pot, não é Stalin, não é Mao, não é Fidel. Feio é o Papa que, vendo-os conduzidos pelo demônio como bonecos, joga as culpas deles sobre o tentador e implora a Deus que os perdoe porque não sabem o que fazem. É assim que, na imaginação dos que se dizem bem intencionados, o crime se converte em mérito, e o perdão em crime. Admito que a visão do mal, nas proporções com que ele surge no fenômeno socialista, é em si mesma estupefaciente — o bastante para que a alma vacilante, diante dela, di�cilmente resista à tentação de negar a realidade, como os olhos do poeta, diante da sangre derramada de seu amigo Ignacio Sanchez, gritavam desesperados: No! Yo no quiero verla! Admito que a fraqueza humana, para se defender instintivamente da atração hipnótica do mal, pre�ra negá-lo. Mas a ignorância voluntária é, já, a vitória do mal. ..: Peço encarecidamente a meus antagonistas que, quando me cobrarem as fontes das informações que veiculo, não o façam naquele tom arrogante de quem �nge a certeza de não obter resposta. (a) Os dados sobre a manipulação comunista das consciências infantis foram coletados pelo Prof. Nelson Lehmann da Silva, da n , que pode ser consultado pelo e-mail (b) A prova de que a ação conjunta dos militares resultou da intervenção cubana na guerrilha, e não esta daquela, está em O apoio de Cuba à luta armada no Brasil, de Denise Rollemberg (Rio, Mauad, 2001). .. : Mais um livro importante sobre a situação catastró�ca do Rio Grande do Sul, ignorada no resto do país, acaba de sair em Porto Alegre Crônicas contra o totalitarismo (Fundação Tarso Dutra, f. 051 2214419), de Percival Puggina. .. : Agradeço ao meu colega Leandro Konder sua gentileza de me reconhecer, em público, como homem tolerante e capaz de diálogo. Da minha parte, jamais lhe neguei qualidades similares. O Globo, 7 de abril de 2001 C Quem diz que são a mesma coisa não sabe o que diz Neste país você não pode impugnar uma opinião como ideológica e não-cientí�ca sem que se ergam da platéia vozes histéricas, sublinhadas por olhares de ódio, proclamando que ciência é ideologia. Pior ainda, ideologia burguesa. Que nenhum conhecimento possa estar livre da contaminação das crenças gerais da sociedade é coisa óbvia. Mas pretender que todas essas crenças sejam ideológicas e associadas a uma classe em particular já é loucura, porque uma ideologia de classe não é outra coisa senão a especi�cação ideológica de crenças comuns a todas as classes. A maioria das pessoas está persuadida, por exemplo, de que a vida tem algum sentido. Se não fosse essa crença geral, nenhuma delas poderia tentar realizar esse sentido segundo valores “aristocráticos", “burgueses", “proletários" ou seja lá o que for. Uma teoria cientí�ca que dê por pressuposto que a vida tem sentido está contaminada de uma crença do senso comum, mas isso não a torna ideológica de maneira alguma. A distinção de senso comum e ideologia é tão incontornável que todas as ideologias em con�ito buscam argumentos no depósito do mesmo senso comum. Ele existe sem elas, mas não elas sem ele. Em segundo lugar, ainda que uma teoria cientí�ca repetisse ipsis litteris uma sentença de alguma cartilha ideológica, nem por isso ela se tornaria ideológica. Uma a�rmação não é ideológica ou cientí�ca por seu conteúdo isolado e sim pela forma lógica da estrutura argumentativa que a sustenta. A argumentação ideológica é toda feita de saltos, elipses e duplos sentidos por onde se introduzem de maneira mais ou menos sorrateira os pressupostos mais arriscados e descabidos. Já a estrutura da demonstração cientí�ca exige o controle rigoroso do sentido intencional dos conceitos e a translucidez no encadeamento das provas. Isso é assim justamente para que a presença de qualquer elemento ideológico, fantástico ou subjetivo possa ser advertida e descontada no cômputo da validade �nal das provas. Esse cômputo é o que justamente falta no pensamento ideológico, que a ele se furta sob a alegação insana de que ele próprio é a única forma de pensamento que existe — alegação que, pelo simples fato de ser brandida contra uma outra forma de pensamento, já a�rma a existência desta última e, portanto, sua própria falsidade. Quem proclama que ciência é ideologia só prova, com isso, que é um ideólogo e não um homem de ciência, pois a identidade de ciência e ideologia só vale como preceito ideológico e não como regra do método cientí�co. Essa proclamação não expressa uma identidade real, mas um desejo: ciência e ideologia não são a mesma coisa, mas o ideólogo desejaria que fossem, para que nenhuma prova cientí�ca pudesse valer contra as pretensões de sua ideologia. Que duas coisas costumem aparecer juntas não quer dizer que sejam a mesma coisa. A mistura usual da ciência com elementos ideológicos não apenas não constitui prova de que ciência seja ideologia, mas, bem ao contrário, a possibilidade mesma de assinalar aí a presença desses elementos repousa na distinção entre eles e a ciência genuína. Dito de outro modo: se ciência fosse ideologia, seria impossível provar que há elementos ideológicos numa teoria cientí�ca qualquer. A identidade de ciência e ideologia é, pois, um desses casos de escabrosidade intelectual em que o conteúdo do enunciado é desmentido pelo fato mesmo de que seja possível alguém enunciá-lo, como, por exemplo, quando um sujeito diz que aquilo que está dizendo é indizível. O indivíduo que é adestrado para repetir frases desse tipo sem atentar para a incongruência da situação se torna progressivamente um alienado verboso e sem consciência de si. Infelizmente, esse é o único treinamento que hoje se pode adquirir na maioria das universidades brasileiras. Por isso todo mundo aí acredita que ciência é ideologia. Época, 8 de abril de 2001 D Se vocês querem “superar o capitalismo", a primeira coisa que têm a fazer é tirar da cabeça a idéia de socialismo. O socialismo não apenas é incapaz de superar o capitalismo, como na verdade é apenas uma sombra dele, sem vida própria.O capitalismo só será superado quando a economia, que ele transformou em centro da existência, já não for mais aceita como princípio causal da História, isto é, quando o último marxista for enforcado nas tripas do último homo oeconomicus. A superação do capitalismo não pode consistir na destruição da economia de mercado, pela simples razão de que o mercado não é uma ideologia, um regime, uma lei que um governante baixou e outro possa revogar, mas é uma dimensão da existência humana. Algum tipo de economia de mercado sempre existiu e, mesmo no mais burocratizado dos socialismos, continuou a existir. Suprimir a economia de mercado é tão inviável quanto proibir as relações sexuais. O que distinguiu o capitalismo moderno, surgido nos Países Baixos na época da Reforma, foi um conjunto de condições culturais, morais e políticas que, na ausência de forças políticas reguladoras da vida social, permitiram que o próprio mercado assumisse o papel de regulador. Mas não de regulador autocrático. Os principais fatores daquele conjunto eram a homogeneidade dos valores morais vigentes (cristãos e judaicos) e a inexistência de um poder central coercitivo: o acordo interior, na ausência de coerção externa. Tais foram as bases éticas que, como bem viu Adam Smith, fundamentavam a economia de mercado sem que esta, por si, pudesse criá-las. Foi a presença dessas condições que favoreceu o desenvolvimento do capitalismo nos países protestantes e o inibiu nos países católicos, de forte autoridade central. Por isso é absurdo considerar o capitalismo uma “ideologia", uma racionalização de anseios políticos. O capitalismo surgiu como realidade operante muito antes de que alguém o formulasse como ideologia. As posteriores “ideologias" capitalistas jamais conseguiram dar conta da rica complexidade do capitalismo e nem mesmo explicar su�cientemente sua e�cácia. Mas nessa origem aparecia já uma contradição fundamental. É que não só a fórmula econômica surgida espontaneamente daquela combinação de fatores culturais subsistiu longamente após a dissolução dela, mas também seu sucesso fez com que fosse exportada para regiões onde combinação similar nunca existiu. Pois bem, onde o capitalismo se instalou sem essa base ética, ele teve de improvisar uma — e, aí, a pura “ideologia" capitalista, racionalização esquemática, fez as vezes do fundamento ético faltante. Isto não podia dar certo. Daí o sentido de coisa imposta, revolucionária e autoritária, que a modernização capitalista adquiriu em tantos países, inclusive o Brasil, onde essa contradição se radicalizou ao máximo no regime militar, tão liberal nos seus pretextos ideológicos quanto estatista, centralizador e prepotente nas suas ações. Ora, o ponto em comum entre “ideologia liberal-capitalista" e marxismo é o viés economicista. O primeiro parte de um recorte fenomênico abstrato — a conduta econômica racional — e o adota, arbitrariamente, como modelo explicativo e norma corretiva de toda a vida social. O segundo não faz senão “colocar de cabeça para baixo" esse modelo, atribuindo a conduta econômica racional já não ao homo oeconomicus individual e sim ao Estado socialista, que é ainda mais abstrato, hipotético e arti�cial do que ele. Daí a simbiose doentia de ideologia liberal e de socialismo onde quer que as autênticas bases culturais do capitalismo falhem. Mas estas bases falham cada vez mais num mundo onde a religião recua e o poder político se expande. Por isto o capitalismo se descaracteriza a olhos vistos, �cando cada vez mais parecido com o socialismo, ao mesmo tempo que o socialismo, fracassado enquanto fórmula econômica, ganha uma sobrevida postiça na forma de mitologia cultural do capitalismo e Ersatz de ética religiosa. Por isso, também, será impossível irmos “além do capitalismo", mesmo em sonhos, enquanto nossa imaginação estiver presa a essa mitologia. “Superar o capitalismo" é retirar a economia do topo da vida social, submetendo-a a valores supra-econômicos. Mas isso é, no mesmo ato, abdicar do socialismo. O pós-capitalismo ainda não existe nem em teoria. Mas, quando existir, será menos parecido com o socialismo do que com o capitalismo originário, onde a lei de Deus era mais importante do que o progresso econômico e por isto mesmo o progresso econômico era uma bênção e não uma maldição. Jornal da Tarde, 13 de abril de 2001 D O Fórum da Liberdade, criação do industrial Jorge Gerdau Johannpeter e do Instituto de Estudos Empresariais, realiza-se todos os anos, em Porto Alegre, desde 1988. É o maior, o mais sério e o mais democrático círculo de discussões sociopolíticas deste país. No ano passado e agora, no dia 10 de abril, reuniu quase duas mil pessoas no auditório da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul para ouvir políticos, empresários, escritores e homens de ciência, brasileiros e estrangeiros, de convicções e tendências diversas, que ali discutiam, num ambiente de liberdade e tolerância, temas essenciais para o desenvolvimento nacional. Como é obra de liberais, a coisa acabou por suscitar meses atrás a inveja dos esquerdistas, que, sentindo-se humilhados em vez de lisonjeados pela liberdade que aí desfrutavam como convidados, decidiram fazer o seu próprio fórum, com cinco diferenças vitais: (1) recorreram ao dinheiro público em vez de ater-se aos recursos privados; (2) somaram a isso o dinheiro estrangeiro, em vez de contentar-se com patrocínio nacional; (3) negaram o direito de voz aos liberais que anualmente lhes franqueavam os microfones do Fórum da Liberdade; (4) incluíram na lista de convidados especiais alguns assassinos, genocidas e tra�cantes, um tipo de gente que não freqüenta o Fórum da Liberdade; (5) disfarçaram a origem caricatural e imitativa de seu empreendimento sob as aparências, desproporcionais e forçadas, de um pendant nacionalista do encontro global de Davos. Essa macaquice perversa chamou-se, como se sabe, “Fórum Social Mundial". Em contraste com o original, que mal chega a ser mencionado na imprensa fora do Rio Grande, recebeu a mais espetaculosa cobertura do lobby esquerdista na mídia nacional e internacional. Não pretendo, ao dizer isso, corrigir a pauta da mídia mundial. Pretendo apenas buscar a lógica por trás do absurdo. E, nesse empenho, ocorre-me lembrar que, entre os documentos da que despertaram curiosidade quando da abertura dos arquivos do Comitê Central do , um, em especial, foi e é sonegado até hoje ao exame dos pesquisadores: a lista dos jornais e jornalistas ocidentais subsidiados pela espionagem soviética. Alguns dados fragmentários foram obtidos pelo escritor russo Vladimir Bukovsky. Comprometiam celebridades social-democratas e as maiores editoras de jornais “progressistas" da Europa. Mas sua divulgação, feita na Itália, não vingou: foi bloqueada pela de�agração da Operação Mãos Limpas, a qual, mediante e�cazes acusações de corrupção menor, logrou instar lideranças liberais e conservadoras para que se abstivessem de investigar aquilo que foi certamente o mais vasto empreendimento de compra de consciências em toda a história humana. Ajudando assim os comunistas a escorregar para fora da linha de investigações, a célebre ofensiva moralista da magistratura italiana talvez contivesse em seu nome uma alusão ao sabonete usado em análogas circunstâncias pelo mais escorregadio dos magistrados, o limpíssimo Pôncio Pilatos. Estes fatos podem parecer muito distantes do assunto inicial deste artigo, mas dão ao leitor uma idéia da origem e das dimensões majestosas do lobby esquerdista na mídia européia, idéia sem a qual seria totalmente incompreensível a repercussão planetária de uma paródia de debate encenada em Porto Alegre. Também não é despropositado notar que, após a queda do bloco soviético, a , com seu nome alterado pela enésima vez, continuou a funcionar normalmente, sem que nenhum de seus espiões, esbirros e torcionários fosse punido ou sequer investigado por seus crimes. Ao contrário, o próprio Boris Yeltsin, o demolidor do bloco, deteve temerosamente sua marretaante os muros da , não só refreando- se de fazer sondagens mas consentindo até mesmo em erguer uma estátua a um agente da instituição, celebrado como o espião soviético que permanecera mais tempo in�ltrado no governo dos . Ainda na mesma linha de juntar dados para uma conclusão à qual seria temeridade atribuir o caráter de coisa certa mas covardia abster- se de admitir como hipótese razoável, é preciso lembrar aquilo que disse um dos principais agentes da espionagem comunista no Brasil, o tcheco Ladislav Bittman, que a repartição para a qual trabalhava mantinha em sua folha de pagamentos uma considerável tropa de jornalistas brasileiros e subsidiava até um jornal inteiro. Embora Bittman publicasse esses dados em 1985 (no seu livro e kgb and Soviet disinformation), até hoje os pesquisadores acadêmicos, sempre tão ansiosos por desventrar “os porões" da era militar, não mostraram o menor interesse em saber quem eram esses felizardos e que serviços prestaram à espionagem soviética. Mas, falando em desinteresse, não é menor aquele que a imprensa nacional demonstra ante o pedido de impeachment do governador gaúcho Olívio Dutra, que será votado terça-feira próxima na Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia Legislativa do Rio Grande. Em contrapartida, as senhoras chiques de Paris são informadas, pela revista Marie Claire de abril, de que, graças ao milagre da administração popular dutrina, Porto Alegre é hoje — literalmente — “um jardim". Um jardim de democracia e igualdade. De fato — acrescento eu — só um igualitarismo profundo pode ter inspirado algumas das iniciativas que levaram o governador Olívio Dutra a tornar-se, em pleno jardim, o alvo de um pedido de impeachment. Vou citar só uma dentre dezenas. O Colégio Tiradentes, da Brigada Militar, ocupa há 12 anos os lugares de honra no ranking das melhores escolas gaúchas, segundo pesquisas dos jornais Zero Hora e Correio do Povo. Enquanto os alunos da rede pública estadual recebem 2.400 horas-aula por ano, os do Tiradentes recebem 3.200. A média de aprovação geral de seus alunos é 7; nas demais escolas, 5. Tudo isso feria doloridamente o espírito igualitário de S. Excia. e de sua secretária da educação, Lúcia Camini. Para dar �m a tão intolerável estado de coisas, determinaram que o colégio seria fundido com outra instituição, também da Brigada Militar, dedicada à reeducação de o�ciais condenados pela prática de crimes graves. Deste modo, os alunos do Tiradentes, em vez de constituir uma odiosa elite a pairar soberbamente sobre este baixo mundo, terão a oportunidade de ser reeducados nos princípios do igualitarismo, recebendo aulas na companhia de estupradores, assassinos e ladrões. Isso é mais que igualdade. É uma imagem do paraíso bíblico: o lobo e o cordeiro estudando juntos no jardim de Marie Claire. O Globo, 14 de abril de 2001 C, Agora ela é cientí�ca e meticulosa Comparar a censura dos tempos do governo militar com o sistema gramsciano de controle das informações que a esquerda instalou no Brasil é comparar a gerência de um armazém de bairro com a administração cientí�ca de uma multinacional. A censura militar, desde logo, se apresentava ostensivamente como tal e não fazia o mínimo esforço para ocultar sua presença. Todo mundo sabia que estrofes de Os Lusíadas e receitas de bolos assinalavam fatos suprimidos. Se um jornal, para não se prejudicar comercialmente, maquiava as lacunas com notícias inócuas, fazia-o porque queria. Ninguém o obrigava a isso. A censura reconhecia-se como fenômeno anormal e provisório, sem a menor ambição de manipular as consciências a longo prazo. Em segundo lugar, seu alcance, ao menos de início, era antes policial- militar do que político. Havia a guerrilha urbana, com seqüestros e atentados por toda parte, e a ordem era impedir que a mídia se tornasse instrumento de propaganda dos guerrilheiros. Hoje sabemos que eles eram poucos e mal armados, mas na época não era essa a impressão que eles próprios disseminavam: se procuravam aterrorizar o governo para induzi-lo a sentir-se acuado por uma guerra civil, era sabendo que a reação de qualquer governo nessas circunstâncias seria implantar um estado de exceção, incluindo o controle das informações. Seu cálculo, como de praxe na estratégia comunista, foi duplo: se o governo não reagisse, arriscava-se a ser derrotado militarmente; se reagisse, poderia depois ser desmoralizado por décadas de gritaria contra a censura. A imensa produção historiográ�co-lacrimal de acadêmicos esquerdistas que até hoje impõe à consciência nacional uma visão falseada daquele período já estava nos planos desde então: ela é o aproveitamento político da derrota militar, a continuação da guerrilha por outros meios. É verdade que mais tarde os cortes se ampliaram, suprimindo notícias políticas sem ligação com a guerrilha. Mas, pelo seu próprio caráter aleatório e despropositado, muitos desses cortes eram o contrário de uma operação planejada: era a loucura geral disseminada entre funcionários ineptos e apavorados que, sem instruções precisas, buscavam desesperadamente mostrar serviço. Em terceiro lugar, a censura agiu exclusivamente sobre a mídia popular, sem interferir na circulação de livros (só uns poucos foram proibidos, porque ensinavam a técnica da guerrilha urbana) e de publicações acadêmicas. Por isso, a época hoje apresentada como a de mais rígido controle estatal do pensamento foi a de maior �orescimento editorial esquerdista em toda a nossa História — muitas vezes com ajuda �nanceira do próprio governo — e a da consolidação da hegemonia esquerdista nos meios culturais e acadêmicos. Objetivo limitado, renúncia à in�uência de longo prazo, execução canhestra por meio de funcionários incultos, abstenção quase completa de interferências profundas na esfera superior das idéias e da cultura. Tais as marcas que caracterizaram a censura militar, à qual seria um exagero demagógico dar as dimensões de uma verdadeira manipulação das consciências. Em contraste, o controle esquerdista das informações, hoje, visa essencialmente ao longo prazo, tem a seu serviço os mais adestrados pro�ssionais acadêmicos, age principalmente por cima, pelo controle das idéias e da visão histórica suscetíveis de moldar o futuro, e, sobretudo, é meticuloso no empenho de apagar suas pistas. O espectro de fatos e idéias cuja circulação ele bloqueia é imensamente maior que o abrangido pela censura militar, chegando a ocultar da população estudantil brasileira praticamente toda a produção dos pensadores liberais e conservadores das últimas décadas e capítulos inteiros da História nacional, como por exemplo a participação de Cuba na direção das nossas guerrilhas, durante 20 anos negada como pér�da mentira direitista e agora comprovada, sob protestos gerais, pelo corajoso estudo de Denise Rollemberg, Apoio de Cuba à luta armada no Brasil (Rio, Mauad, 2001). Época, 14 de abril de 2001 O Desde 1789, praticamente todas as perseguições em massa, todos os genocídios do mundo seguiram o mesmo esquema, obsessivamente repetitivo e invariável: o sacrifício dos crentes pelos ateus militantes. O quadro é aterrador. França, México, Espanha: matança dos católicos. Rússia e países satélites: matança dos cristãos ortodoxos (católicos, na Polônia, na Croácia e na Hungria). Alemanha: matança dos judeus. China, Tibete, Indonésia etc.: matança dos budistas e muçulmanos. Total: mais de cem milhões de mortos. Em todos esses casos, a vítima é religiosa, o assassino é ateu, materialista, progressista, darwinista, portador do projeto de “um mundo melhor" em qualquer de suas inúmeras versões. Esse é o fato mais constante e mais nítido da história moderna, e também o mais ignorado, omitido, disfarçado. O homem religioso é uma espécie em extinção, não porque suas crenças tenham sido substituídas por outras melhores, mas porque está sendo extinto �sicamente. Não obstante, ainda há quem acredite que as religiões, e não as ideologias ateísticas, cienti�cistas e materialistas,são responsáveis pela falta de liberdade no mundo. Daí que a propaganda anti-religiosa, malgrado os efeitos devastadores que produziu, seja aceita não somente como atividade cultural elevada e digna, mas como um dos pilares mesmos do sistema democrático e até como expressão suprema dos mais belos ideais humanos. Quando milhões de jovens imbecilizados pela mídia chegam às lágrimas de comoção idealística ao ouvir em “Imagine’’, de John Lennon, a descrição de uma sociedade paradisíaca, nem de longe percebem que seu apelo à supressão de todas as religiões é, em essência, uma legitimação do maior dos genocídios. Nos países em que não sofrem violência física, os religiosos vêem suas crenças excluídas do debate superior sob a alegação da neutralidade do Estado leigo, e expostas à derrisão em publicações acadêmicas sem direito de resposta. Nos �lmes, raramente aparece um padre ou pastor protestante que não seja virtualmente um psicopata, um pedó�lo ou um serial killer. Mesmo os rabinos, que durante um tempo foram poupados de ataques cinematográ�cos diretos por conta da memória recente do Holocausto nazista, já começam a ser mostrados como repressores insanos. A blasfêmia imposta ao público por um establishment industrial milionário é apresentada como expressão da liberdade criadora de artistas independentes, e qualquer protesto de entidades religiosas isoladas e impotentes é logo sufocado em nome da liberdade e da tolerância. Desse tipo de liberdade dizia Eric Voegelin: “Até os nacional-socialistas defendiam a liberdade. A liberdade para eles, é claro, com exclusão de todos os outros". A rigor, não há qualquer diferença signi�cativa entre uma teoria biológica racista, que sem nenhuma intenção política explícita acabe concorrendo indiretamente para justi�car a discriminação de negros, amarelos, judeus ou árabes, e uma argumentação anti-religiosa que, com a maior inocência e os ares mais democráticos do mundo, ajude a amortecer na opinião pública a consciência do horror das matanças de crentes. Em ambos os casos há cumplicidade ao menos inconsciente com o genocídio. A diferença é que todos os crimes do racismo, somados, não produziram metade do efeito letal da anti-religião. No entanto, os próprios religiosos, com freqüência, se recusam a perceber que o ódio anti-religioso do mundo moderno é geral, que ele se volta contra todas as religiões e não contra alguma delas em particular. A maioria deles parece ainda mais empenhada em polêmicas inter-religiosas do que na defesa comum do direito de crer em Deus. Historicamente, a cegueira para o perigo comum já foi, entre os séculos e , a causa de que a religião (católica, no caso) perdesse sua legitimidade de poder público, cedendo-a aos Estados nacionais nascentes. Um clero intelectualmente frágil, sem medida de comparação possível com a elite esclarecida dos séculos e , revelou-se incapaz de rearticular a civilização ameaçada pela pululação de seitas em guerra, e in extremis a Europa foi salva pela emergência da nova autoridade, nacional e monárquica. Mas o advento desta não apenas acelerou o processo de fragmentação da consciência religiosa como também elevou incalculavelmente o potencial destrutivo das guerras, que, de con�itos locais entre grupos, se tornaram lutas de grande escala entre nação e nação. Hoje, a ascensão de um poder global ateu e materialista apela, novamente, à urgência de apaziguar con�itos inter-religiosos, em muitos casos fomentados por “agentes provocadores". E de novo os intelectuais religiosos — só que, agora, de todas as religiões — se mostram incapazes de apreender o quadro geral. Apegando-se a velhas polêmicas dogmáticas que podem ter sua importância, mas que nesse quadro se tornam extemporâneas e suicidas, parecem julgar mais importante humilhar as religiões concorrentes do que enfrentar o inimigo comum que vai esmagando todas elas juntas. No Corão, Deus adverte a muçulmanos, judeus e cristãos: “Concorrei na prática do bem, que no juízo �nal nós dirimiremos as vossas divergências". Se, na prática, nem todas as divergências podem ser adiadas para o juízo �nal, algumas, pelo menos, podem �car para depois de passado o perigo imediato, e outras podem ser canalizadas para uma simples “concorrência na prática do bem". Qualquer disputa interconfessional que não esteja numa dessas duas categorias ameaça tornar-se, na situação presente, apenas um pretexto piedoso para fazer o mal. ..: Não escrevi este artigo pensando no �lme O corpo, mas este é um exemplo escandaloso de tudo o que aí digo. Filmes como esse não devem ser respondidos com pedidos de censura, que só ajudam a sustentar a farsa do artista coitadinho perseguido pela autoridade inquisitorial, disfarçando a dura realidade das organizações religiosas inermes e marginalizadas que gemem sob o tacão da mais poderosa indústria de propaganda que já existiu no universo. O que se deve fazer é deixar que vão às telas, que façam sucesso — e em seguida processar os produtores por cumplicidade moral no massacre de religiosos, cobrando indenizações pesadas. As organizações cristãs, judaicas e muçulmanas deveriam juntar-se para isso — aproveitando que O corpo esculhamba com as três religiões ao mesmo tempo — e fazer a coisa doer na única parte sensível desses safados: o bolso. .. : A discussão do impeachment de Olívio Dutra na Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia Legislativa gaúcha foi adiada para maio. Enquanto isso, no jardim de Marie Claire, a propaganda comunista nas escolas já passou da fase da doutrinação à do ensino tático. A Escola Josué de Castro, de Veranópolis, , está ensinando a seus alunos a técnica da invasão de fazendas. Para esse �m, acaba de receber da Secretaria da Educação do uma verba extra de R$ 325.965,00. Se isso não é a revolução comunista �nanciada com dinheiro público, não sei que raio de coisa possa ser. O Globo, 21 de abril de 2001 T C Quem diria? Mas nem tudo o que é bom para Cuba é bom para o Brasil Alertado por um gentil leitor, fui veri�car na internet e comprovei que os transgênicos, tão odiados pela esquerda nacional, recebem as mais solícitas atenções do governo de Cuba e têm ajudado a melhorar consideravelmente a produção agrícola daquele Jardim do Éden. Se têm dúvidas (e há indivíduos cuja ocupação primordial na vida é cobrir de suspeitas qualquer informação que venha de Olavo de Carvalho, chegando alguns a questionar a existência física desse articulista), podem tirá-las examinando o site do Instituto de Biotecnología de Las Plantas,3 de Santa Clara, Cuba, entidade estatal destinada al desarrollo y aplicación de técnicas biotecnológicas e entre cujas criações se destacam plantas transgénicas de caña de azúcar, banano, papa y papaya, de grande sucesso entre os agricultores. O Senhor Bové, portanto, só será admitido na ilha de mãos amarradas e com focinheira, para não obstruir o progresso da ciência. Mas a incongruência da situação não nos deve fazer esquecer que nada, na atuação das forças de esquerda no continente, é pura arbitrariedade de excêntricos. Desde a fundação do Foro de São Paulo, vem tudo muito bem coordenadinho de Havana, exatamente como nos tempos da Organización Latinoamericana de Solidariedad, a Olas, o da revolução continental do qual aquela entidade é a reencarnação pós-moderna. Se Cuba aposta nos transgênicos, mas busca impedir que sejam usados aqui, não é por loucura: é por cálculo. É pelo mesmíssimo cálculo que o , dizendo querer plantar e produzir, invade, desmantela e paralisa fazendas produtivas. Loco sí, pero no tonto. No novo panorama do mundo, os movimentos revolucionários tornaram-se um dos principais instrumentos com que a Nova Ordem Mundial debilita e subjuga os Estados nacionais. Por isso os ataques que esses movimentos fazem às grandes potências são meramente verbais e pro forma. Nem poderia ser de outro modo, pois delas vêm o dinheiro que os sustenta e o aplauso que recebem da mídia chique em Londres e Paris. Já suas investidas contraa ordem pública, contra os valores nacionais, contra as forças armadas e contra o progresso econômico dos Estados periféricos nunca �cam em palavras. São ações materiais, contundentes, e�cazes, profundas. Entregue à sanha de invasores e de ecologistas enragés, a agricultura acabará por se tornar um investimento caro demais para as fortunas brasileiras. Quem ganhará com isso? Investiguem quem patrocina esses sujeitos e terão a resposta. Mas a agricultura é só um detalhe no conjunto de uma estratégia que, hoje, só os cegos de pro�ssão não querem enxergar. Que exemplo poderia ser mais patente que a santa aliança das multinacionais com a extrema esquerda na luta pela affirmative action? O mais cínico nisso tudo é que essa esquerda, para vender o país, se utiliza da velha retórica nacionalista dos anos 50. E o discurso ainda funciona tão bem que muitos patriotas sinceros, ouvindo-o, não chegam a perceber que o orador diz uma coisa e faz outra. ..: Um outro leitor, escandalizado por minha a�rmativa de que a associação de iluminismo com liberdade é só um re�exo condicionado verbal sem respaldo na realidade histórica, protesta que sou ingrato com o iluminismo, desfrutando as liberdades que ele criou e ainda falando mal dele. Que raio de raciocínio é esse? Se acabo de dizer que o iluminismo criou o totalitarismo, não posso, ao mesmo tempo, estar grato a ele por liberdade nenhuma. Ou o distinto trate de provar que minha premissa é falsa, ou não exija que eu aceite a conclusão da premissa contrária. Mas os requisitos mínimos de consistência, sem os quais nenhuma discussão é possível, parecem que se tornaram, para o típico brasileiro opinante de hoje, sutilezas inapreensíveis e mistérios esotéricos. E, quanto mais o sujeito tem preguiça de se elevar ao nível de uma discussão, menos resiste à comichão de dar palpite nela. Época, 21 de abril de 2001 Q Para mim, a coisa mais óbvia dos últimos meses é que o Fórum Social Mundial não nasceu como resposta ao encontro de Davos, mas como imitação paródica do Fórum da Liberdade, criado pelo empresário Jorge Gerdau Johannpeter e realizado anualmente, com enorme sucesso, pelo Instituto de Estudos Empresariais. A esquerda, convidada todo ano a discutir seus pontos de vista com os liberais, acabou se sentindo humilhada de desfrutar de tanta liberdade na casa alheia, e vingou-se fazendo um Fórum só para ela própria, fechando a porta a seus antigos an�triões. A idéia do contraponto a Davos deve ter surgido como enxerto publicitário posterior, provavelmente por sugestão do Sr. Ignacio Ramonet, o homem do Monde Diplomatique, em cujas mãos tinha ido parar, por meios que agora não vêm ao caso, a cópia do projeto de um “Congresso Nacionalista Mundial" — este sim, concebido originariamente como contraponto à reunião de Davos — que circulava discretamente entre certos políticos nacionalistas que depois não foram sequer convidados para o . O Congresso não era ideológico, mas geopolítico, e sua diretriz básica era a de reunir lideranças nacionalistas de todas as orientações ideológicas possíveis, justamente para discutir as perspectivas do nacionalismo, no sentido mais geral e abrangente do termo, num mundo onde direita e esquerda se davam as mãos na consecução de um projeto globalista de poder. Não deve ter sido muito difícil maquiar o projeto, para fazer dele o instrumento publicitário do neo- esquerdismo globalista �nanciado pela e por fundações multinacionais milionárias. A esquerda, a�nal, tem uma experiência de mais de sete décadas de parasitagem do nacionalismo. Que o forçadíssimo paralelo com Davos fosse imediatamente aceito com a maior facilidade, tanto pela mídia internacional quanto pelos próprios participantes do encontro suíço, é algo que, em épocas pretéritas, teria despertado nos observadores as mais inquietantes suspeitas. Mas, no ambiente de sonsice hipnótica que reina no Brasil, ninguém se lembrou de fazer nem mesmo a pergunta mais óbvia: que raio de antiglobalismo é esse, que os próprios globalistas patrocinam generosamente? Mas o fato é que essa pergunta, hoje, não ocorre aos cérebros nacionais nem mesmo diante de parcerias ainda mais escandalosas. O exemplo mais lindo é o da affirmative action, que hoje busca implantar no Brasil a política de quotas raciais. Não é esplêndido que, diante da aliança que para esse �m se estabeleceu entre a nossa esquerda radicalmente antiamericana e algumas das personi�cações mais típicas do Tio Sam, como a Fundação Ford e o BankBoston, ninguém dê o menor sinal de estranheza, ninguém ouse sequer fazer perguntas? É verdade que, nos , a affirmative action simplesmente não funcionou. Desde que ela entrou no cenário, o número de crimes praticados por negros contra brancos aumentou formidavelmente — segundo dados do que a grande imprensa de Nova York esconde embaixo do tapete —, mostrando que a população negra, desfrutando de vantagens o�ciais que no fundo a humilham, não se sente nem um pouco melhor do que antigamente. Mas, aplicada no Brasil, essa política pode ter uma utilidade formidável. Não exatamente para os negros, é claro. O Brasil tem 15 por cento de negros e 46 por cento de mestiços. Estes, pelo critério norte-americano, são negros. Se as potências internacionais conseguirem, com a ajuda da esquerda local, seduzir 61 por cento da nossa população para o apoio a uma política que é manifestamente imposta de fora para dentro, isso será a total desmoralização do Estado brasileiro, a completa liquidação de nossas pretensões de independência no quadro da Nova Ordem Mundial. O fato de que os “negros" — no sentido elástico e americano do termo — não sejam aqui a minoria, mas a esmagadora maioria, tornará a política de quotas um fardo demasiado pesado que, não podendo ser carregado nas costas do Estado brasileiro, acabará por torná-lo visceralmente dependente de ajuda internacional. Essa dependência será ainda facilitada pela destruição da cultura miscigenada — que Gilberto Freyre colocava no cerne da identidade nacional —, seguida de sua substituição pela fórmula americana de identidades étnicas separadas, unidas somente pela sujeição à estrutura legal e administrativa comum. É absolutamente impossível que os planejadores estratégicos estrangeiros não tenham feito esse cálculo elementar e que não tenham gostado do resultado. Por isso, hoje mais do que nunca, é preciso estar muito doido para acreditar no nacionalismo da nossa esquerda, que tão solicitamente se presta a colaborar para a produção desse resultado. A parasitagem esquerdista do nacionalismo foi inventada por Joseph Stalin, na década de 30. A luta entre nações, entre raças, entre regiões, entre culturas, disse ele numa instrução ao Comintern, deveria ser redesenhada para parecer luta de classes, e vice-versa. Que essa cirurgia plástica devesse ter, entre outros efeitos previsíveis, o de intensi�car essas lutas até fazer delas um genocídio permanente, tanto melhor. A fraqueza da inteligência nacional pode ser medida pela passividade de autômato com que, sete décadas depois, ela ainda se presta a representar no palco do mundo essa �cção Stalinista. Zero Hora, 22 de abril de 2001 O Éric Weil, �lósofo judeu-alemão que em protesto contra Hitler abandonou o uso do idioma natal e se tornou um clássico da língua francesa, enunciou nela esta verdade escandalosa: “Em política, o único ponto de vista legítimo é o do governante". As mentes incapazes de abstração podem ler isso como um apelo à obediência servil. Mas o que Weil quis dizer é que o cidadão que opine sobre política sem se colocar em imaginação na pele do governante, sem assumir no plano moral subjetivo as responsabilidades com que ele teria de arcar politicamente caso agisse segundo essa opinião, é apenas um tagarela que não tem o direito de ser ouvido pela comunidade. Esta norma é válida, inclusive, para opiniões políticas que não digam respeito ao conjunto da sociedade, mas apenas a aspectos determinados e parciais dela, poissargento que lhe deu um pontapé numa explosão de raiva, o médico que lhe aplicou uma injeção para que não morresse e o soldado de plantão que atendia o telefone na delegacia. Terrorismo e tortura, en�m, não estão no mesmo plano: aquele é hediondo em si, esta depende de graus e circunstâncias. E, quanto ao dano in�igido, o da tortura quase sempre pode ser reparado, física e moralmente. Mas que reparação oferecer à vítima que teve o corpo feito em mil pedaços pela explosão de uma bomba? A humanidade inteira admite essas verdades óbvias. Só uma classe de seres humanos as rejeita: os “intelectuais de esquerda". Estes prefeririam antes ser dilacerados por uma bomba plástica num saguão de aeroporto do que levar pancadas num porão de delegacia e sair vivos para berrar na imprensa contra a violência policial. Digo isso por mera inferência, supondo que consintam em escolher para si próprios o destino que alardeiam ser preferível para os outros. Mas suspeito que no fundo não seja nada disso. Suspeito que, quando vituperam o torturador e enaltecem o terrorista, estão impondo às vítimas destes dois tipos de criminosos uma escala de avaliação que jamais desejariam para si próprios. Suspeito, mesmo, que a hipótese de examinar a coisa pelos dois lados jamais lhes passou pela cabeça: em décadas de leituras de autores esquerdistas, nunca encontrei um único que se inclinasse a avaliar com igual peso e medida seus atos próprios e os alheios. Bem ao contrário: o pressuposto básico, o pilar mesmo do universo mental do esquerdista é o sentimento de estar num patamar ético e ontológico diferente e superior, em função do qual ações que cometidas por outras pessoas seriam crimes hediondos se tornam méritos beati�cantes quando praticadas por ele ou em nome da sua doutrina. Foi assim que Karl Marx, após ter escrito páginas ferinas contra os patrões que abusavam sexualmente de suas empregadas, não teve o menor escrúpulo de consciência em pôr para fora de casa o �lho que havia gerado na sua doméstica Helene Demuth. Foi assim que a doutrina Guevara, ensinando o revolucionário a ser “uma fria e calculista máquina de matar", tornou-se, para milhões de idiotas, uma mensagem de amor só comparável ao Sermão da Montanha. Foi assim que Fidel Castro, começando sua carreira como pistoleiro de aluguel e culminando-a como genocida, veio a ser considerado pelo Sr. Luiz Inácio Lula da Silva um modelo superior de conduta ética. E é assim que o Grupo Tortura Nunca Mais julga que os suspeitos de envolvimento mesmo indireto, remoto e conjetural em casos de tortura devem ser perseguidos até o �m dos tempos, como ratos, como nazistas, para que os réus confessos de terrorismo, instalados em altos postos da República, possam estar tranqüilos no desfrute de suas honras, glórias e mordomias. Contra estes, bene�ciados pela anistia, já não se pode dizer uma palavra. Mas aqueles, segundo a presidente dessa entidade, cometeram “crimes inanistiáveis, imprescritíveis e de lesa-humanidade. Não poderiam ocupar cargos pagos com dinheiro da sociedade brasileira". Anistia, cargos, dinheiro público, no entender dessa senhora, são só para os terroristas, para os que mataram por atacado. Que alguém sugira estender os benefícios da lei aos que maltrataram esses pobrezinhos no varejo, e ela se encrespa: “Não aceitamos essa lei". Inútil argumentar contra essa mentalidade. Sua recusa obstinada de julgar por um padrão eqüitativo; sua insistência obsessiva em atribuir, sempre e a priori, motivos altruísticos aos atos de uns e intenções egoístas aos de outros; sua radical incompreensão do Segundo Mandamento — tudo isso torna impossível o confronto racional, que a cegueira ideológica substitui por uma retórica de inculpação desvairada e autovitimização patética. As pessoas que se deixam embriagar por esse discurso adquirem um escotoma moral, um impedimento ao exercício da razão e daquele senso das proporções que é o corolário imediato da igualdade humana. Ninguém é menos dotado do instinto da igualdade jurídica do que os apóstolos da igualdade econômica. Só resta saber a causa profunda dessa de�ciência. Segundo Joseph Gabel, é um tipo de doença mental, de esquizofrenia. Segundo Eric Voegelin, é uma sociopatia, uma enfermidade da esfera moral que não afeta a superfície do eu. Mas às vezes essa discussão se torna puramente acadêmica: na , os esquizofrênicos e sociopatas tomaram de assalto o hospital e tranca�aram nele quem pretendesse diagnosticá-los. E é preciso ser ainda mais doido que eles para não perceber que estão querendo fazer a mesma coisa aqui. O Globo, 6 de janeiro de 2001 M Se comparar a gravidade relativa dos delitos fosse o mesmo que enaltecer a prática de algum deles, o Código Penal inteiro seria uma vasta apologia do crime. Basta essa constatação lógica inicial para evidenciar o seguinte: fazer do meu artigo de sábado passado uma “defesa da tortura" requer uma dose anormalmente grande, seja de idiotice, seja de má-fé. Em casos análogos, procuro sempre apostar na hipótese da idiotice, para poder continuar acreditando que há algo de bom no fundo das almas mais estragadas. No caso presente, não posso. Nem o Sr. Márcio Moreira Alves é um idiota, nem é idiota a Dona Cecília Coimbra. São ambos caluniadores maliciosos, perversos, que, com plena consciência da mentira, atribuem a um jornalista opiniões que ele não tem, com o intuito preciso de danar-lhe a reputação para em cima da sua ruína construir a prosperidade do negócio mais sujo que existe na face da Terra: o comércio do ódio. No meu artigo, a�rmei com todas as letras que tortura é crime. Repeti isso três vezes. Acrescentei apenas que maltratar é menos grave que matar — uma asserção de simples bom senso, que aliás nem teria sentido enunciar se eu não visse na tortura um crime, de vez que, em lógica, a comparação de graus subentende a identidade de gênero. Nada podendo alegar contra esse argumento, que é que faz o Sr. Moreira? Faz aquilo que, para um tipo como ele, é a coisa mais fácil: ele mente. Mente, atribuindo-me propósitos que brotam da sua vontade de caluniar e não daquilo que escrevi. Por que, em vez de se ater ao que lê, o Sr. Moreira prefere especular intenções ostensivamente discordes com a letra do texto e, tomando-as com obscena afoiteza como premissas certas e demonstradas, usá-las como armas para difamar alguém de cujos atos e de cuja moralidade ele, rigorosamente, ignora tudo? Não preciso, como ele, conjeturar motivos. Se ele não me conhece, eu o conheço. Sei por que ele faz o que faz. Ele mesmo o sugere, na expressão �nal do seu artigo: “Separar quem lutou de peito aberto dos que se esconderam". Nos dias em que o presidente Costa e Silva fechou o Congresso, inaugurando o endurecimento e a perpetuação do regime que seu antecessor concebera como breve interregno autoritário curativo, �z o que achei que devia fazer: entrei para o Partido Comunista. Não era a coisa mais sábia, muito menos a mais confortável. Ela me custou, de imediato, perigos e incomodidades; a longo prazo, o arrependimento de ter, na luta contra uma ditadura encabulada e capenga, colaborado às tontas com a mais totalitária e assassina das tiranias. Mas, enquanto os meus problemas começavam, os do Sr. Moreira terminavam: naquele momento ele embarcava para Paris, onde, instalado numa bela cobertura em bairro elegante, pôde desfrutar com tranqüila segurança as glórias hauridas no arremedo teatral de heroísmo com que dera um gran �nale à sua carreira de histrião parlamentar. Por isso nunca pude admirar aquilo que ele imagina ser a sua coragem, e que Benedito Valladares descreveu melhor como uma aptidão de bancar o Tiradentes com o pescoço dos outros. Não me perdôo levianamente de ter sido comunista, nem alego para enobrecer tal desatino os motivos autodigni�cantes com que tantos hoje procuram maquiar sua cumplicidade com o mal do século. Mas não posso, em sã consciência, me acusar de covardia. Por ter sacri�cado minha juventude e minha segurança em prol da esquerda perseguida é que tenhomesmo ações de governo limitadas a esses aspectos afetariam a sociedade toda e seriam por ela julgadas. A sucessão de decepções que o Brasil tem tido com seus governantes, cada qual tão hábil em censurar os erros de seu antecessor quanto propenso a cometê-los ainda piores quando sobe ao poder, mostra que essa exigência elementar da moralidade intelectual é completamente desatendida entre nós. Os políticos de carreira, candidatos a cargos eletivos, são tão incapazes de imaginar-se na posição do governante quando o criticam que, quando chega o dia de substituí-lo no cargo, estão completamente despreparados para o papel: tão logo assumem o governo, descobrem um outro mundo, imprevisto e rebelde a seus planos, que nem de longe haviam previsto quando ponti�cavam do alto das tribunas da oposição. E então, sonsos e desorientados, cometem erro atrás de erro. Mas, se até os políticos são assim, que dizer do cidadão comum e, sobretudo, dessa classe especial de cidadãos que são os intelectuais, os críticos de tudo, os opinadores pro�ssionais entre os quais me incluo? Cada qual, aí, se crê no direito de julgar em nome de ideais abstratos e critérios hipotéticos de perfeição, sem ter na mínima conta as di�culdades reais da situação concreta. Pior ainda, ninguém, ao opinar sobre problemas nacionais, se atém ao domínio daquilo em que pode interferir pessoalmente. O professor não se contenta em opinar sobre o que ele e seus pares devem ensinar, o escritor sobre o que os escritores podem fazer para escrever melhores livros, o jornalista sobre como fazer melhores jornais. Não: cada um, quando abre a boca, tem planos de escala nacional que, para ser executados, supõem no mínimo um poder presidencial. No Brasil só se debate uma coisa: planos de governo — e esses planos nem sequer são planos: são ideais genéricos, puramente verbais, que servem como padrão para julgar e condenar a realidade, mas não se tornar eles próprios uma realidade. Cada brasileiro fala como um presidente virtual, investido de plenos poderes imaginários que, quando os tiver no mundo real, haverá de fazer e acontecer. Ao mesmo tempo, todos se recusam a conceber as di�culdades concretas de exercer o poder, e cobram do governante o que eles próprios, no lugar dele, jamais poderiam fazer. Cada um fala como se tivesse nas mãos o cetro imperial, mas com as responsabilidades de simples cidadão comum, às vezes até menor de idade. O contraste entre a escala macroscópica dos temas e a incapacidade de se elevar, no exame deles, ao “ponto de vista do governante" marca os debates nacionais com os sinais inconfundíveis do puerilismo e da papagaiada histriônica. Procurando escapar à contaminação desse vício deprimente, tenho evitado opinar em escala propriamente política, atendo-me antes àquilo que entendo que eu e os meus colegas de ofício — escritores, jornalistas, professores — podemos fazer aqui e agora, com o poder que temos. Mesmo quando os temas de meus artigos são estritamente políticos, não discuto aí o que o governante deve fazer, mas o que nós, formadores de opinião, devemos pensar e dizer. Sou um caso raro de brasileiro desprovido de planos de governo — não os tenho nem para mim nem para quem quer que seja. Tenho planos para uma vida intelectual digna, que sou capaz de realizar na minha escala pessoal e que proponho aos que tenham as mesmas ambições que eu. Mas aquele que assim se atém ao domínio em que pode falar com plena responsabilidade se arrisca a ser totalmente incompreendido. Num país onde todos falam desde cima de um palanque, como poderiam compreender o discurso do sapateiro que não se eleva acima das chinelas? Jornal da Tarde, 26 de abril de 2001 A A mente humana não tem nenhum meio de testar uma hipótese senão concedendo iguais chances de credibilidade à hipótese contrária. Mas às vezes isso não �ca bem, e em tais circunstâncias os esgares de indignação no rosto do advogado da primeira hipótese devem ser aceitos como cabal demonstração cientí�ca da falsidade da segunda. Ora, ninguém sabe mostrar-se indignado com a veemência, com o pathos de um militante de esquerda, apologista dos crimes de tortura e genocídio cometidos pelo governo de Cuba, quando aponta atrocidades análogas, mas de escala muito menor, praticadas no Brasil. Por isso, denúncias de crimes atribuídos ao regime militar não devem ser averiguadas. Têm de ser aceitas prima facie, alardeadas por todos os meios de comunicação, estampadas nos livros escolares, �xadas em letras eternas na memória nacional antes que algum aventureiro ouse amortecer o fervor da certeza por meio de um gélido ponto de interrogação. Na verdade, não é só que essas denúncias não devam ser averiguadas. Elas nem mesmo podem sê-lo, na prática, pois, com exceção dos arquivos militares, os depósitos de documentos daquele período estão, em geral, entregues à guarda de militantes de esquerda. Dominando as fontes de informação, a esquerda tem ainda o monopólio dos meios de investigação, instalada como está na che�a dos departamentos de História de todas as universidades públicas, assim como na dos órgãos distribuidores de verbas de pesquisas, às quais se acrescentam os generosos subsídios de empresas e fundações estrangeiras, empenhadas em impor aos países do Terceiro Mundo uma ideologia politicamente correta que inclui, como um de seus itens essenciais, a desmoralização sistemática das Forças Armadas. Acrescentem a isso o predomínio esquerdista nos meios de comunicação e a completa devoção do a seu papel de preparador ideológico das crianças brasileiras para a luta de classes, e terão uma idéia de quanto a imagem do passado histórico forjada no molde da propaganda ideológica se tornou mais difícil de contestar do que um decreto de César na Roma imperial. Tão vasto poder de controle sobre a visão do passado é fenômeno inédito nas democracias. Somente os regimes totalitários lograram conquistar tão sólida autoridade monopolística sobre a fabricação do relato histórico, fazendo dele um dos pilares de sua dominação ideológica sobre a vida presente. Mas, por uma atroz coincidência, foi justamente um grande historiador, Lorde Acton, quem disse que o poder absoluto corrompe absolutamente. Os donos do passado, afeitos às delícias do monólogo incontestado, acabam relaxando as precauções mais elementares e caindo na sua própria armadilha: acabam acreditando tão piamente em si mesmos que já não veri�cam nem as contradições mais gritantes das histórias que alardeiam. Um caso recente ilustrará isso da maneira mais escandalosa. João Antônio dos Santos Abi-Eçab e sua esposa Catarina Helena, terroristas o�cialmente dados como mortos numa colisão entre o Volks em que viajavam e a traseira de um caminhão perto de Vassouras, , teriam, na verdade, sido presos no bairro do Maracanã e mortos a tiros, sepultados em São João de Meriti e mais tarde desenterrados, vestidos e colocados no automóvel, por gente do Exército, para simular o acidente rodoviário em 8 de novembro de 1968. A denúncia é do Jornal Nacional. Baseia-se no depoimento do ex- soldado Waldemar Martins de Oliveira, que, segundo declarou ao repórter Caco Barcelos, na época atuava no serviço de informações do Exército na área de Marília, , e teria presenciado a execução. Contra essa acusação, divulgada em tom de certeza inabalável, restam os seguintes fatos: Quanto à testemunha: 1. Waldemar diz que desertou do Exército em 1970, cansado de participar de malvadezas governamentais. Ele mente. A folha de alterações do recruta Waldemar no 27º Batalhão de Infantaria Pára-quedista, da qual obtive cópia com os o�ciais que mantêm o site mostra que ele desapareceu do quartel no começo de setembro de 1968, sendo dado como desertor a partir do dia 11 desse mês e não podendo, portanto, estar a serviço do Exército dois meses depois. 2. Waldemar sentou praça em janeiro de 1968. Ele pretende ter realizado inúmeras “operações secretas" entre esse dia e a morte do casal. Mas qual exército do mundo designaria para operaçõesde inteligência um recruta que nem terminou o período regulamentar de um ano de treinamento? Simplesmente não havia recrutas, mesmo treinados, na área de Operação de Informações do Exército, que só empregava o�ciais e graduados com curso de especialização. Para piorar ainda mais as coisas, Waldemar, lotado no então I Exército, não poderia atuar em Marília, , que era área do II Exército. Quanto às vítimas: 1. Abi-Eçab e sua esposa não poderiam ter morrido em 8 de novembro, pois no dia 13 do mesmo mês participaram do assalto ao carro pagador do Ipeg (Instituto de Previdência do Estado da Guanabara), segundo depoimento do líder comunista Jacob Gorender na quinta edição, revista e corrigida, de seu livro de memórias Combate nas trevas (São Paulo, Ática, p. 109), con�rmado por Luís Mir em A revolução impossível: A esquerda e a luta armada no Brasil (São Paulo, Best-Seller, 1994, p. 337). 2. Mesmo na hipótese de que tivessem morrido no próprio dia 13, seria impossível prendê-los, matá-los, sepultá-los em São João de Meriti, desenterrá-los, limpá-los, vesti-los e levá-los para Vassouras para simular o acidente, tudo no mesmo dia. 3. Nas fotos exibidas pelo Jornal Nacional havia na estrada nítidas marcas de frenagem do Volks até a um metro de distância do caminhão. Um dos dois falecidos teria ressuscitado para frear o carro? Ou este foi freado por algum poderoso recruta Waldemar que, sentado sobre o cadáver, ainda teve tempo de sair voando pela janela um metro antes de que o veículo se espatifasse de encontro à rabeira do caminhão? Há muitos outros absurdos no depoimento de Waldemar, que não tenho espaço para expor aqui. Mas um desertor que mente sobre a data de sua deserção, mortos que praticam um assalto cinco dias depois de falecidos, um cadáver que acorda e freia um carro que vai bater já não são loucura bastante? A coisa toda é tão imensuravelmente estúpida que, dez anos atrás, ninguém lhe prestaria atenção, exceto psiquiátrica. Mas, no ambiente de carnavalesco triunfalismo Anti-Anos-de- Chumbo, até um repórter geralmente criterioso como Caco Barcelos se embriaga de loucura denuncista e, no meio das requintadas averiguações médico-legais que não deixou de fazer — o que muito o honra como pro�ssional —, se esquece da primeira lição que os repórteres tarimbados ensinam aos novatos: conferir nomes e datas. O vírus da infalibilidade dos donos da memória nacional tornou-se a vaca louca do jornalismo brasileiro: contaminados, mesmo os mais fortes dentre nós endoidam. O Globo, 28 de abril de 2001 D Pela primeira vez um homem de esquerda percebe que no Brasil não existe direita Quem imagina que a imprensa se alimenta de novidades não tem a menor idéia do que se passa na cabeça de jornalistas. Eles gostam mesmo é da novidade-padrão, inde�nidamente requentável com pequenas variações. O motivo é simples: ela é fácil de escrever e de efeito garantido. Denúncias de corrupção, fofocas do beautiful people, taxas de desemprego, brigas de políticos infundem no redator aquela segurança do mágico que vai brilhar com o mesmo truque, pela milésima vez, ante uma platéia que já o esqueceu 999 vezes. Quando você tem pressa e o trabalho é muito — duas condições que jamais falham nas redações —, a melhor notícia é aquela que já vem escrita. A novidade autêntica, inédita, sem nome no catálogo, é um problema, um abacaxi: o sujeito não sabe nem por onde começar. Faltam-lhe os esquemas verbais, os lugares-comuns, os argumentos de apelo automático sem os quais mesmo o redator mais talentoso �ca desamparado como uma tartaruga sem casca. O inédito, o esquisito, o incatalogável requer meios de expressão também inéditos. Exige algo mais que técnica jornalística: exige uma inventividade literária que raramente consente em dar o ar de sua graça no alvoroço do “fechamento". Por falta de meios de expressão, às vezes aquilo que é mais interessante, mais urgente, mais útil vai para a lata de lixo, inapelavelmente condenado pela fatalidade da regra wittgensteiniana: “O que não se pode falar, deve-se calar". E, quando casos desse tipo se acumulam, a imprensa deixa de cumprir seu papel de abrir para o leitor as janelas do mundo. Torna-se um repressivo “guardião do portal", incumbido de lacrar os horizontes e manter a imaginação popular presa do repetitivo e do convencional. Por isso mesmo é uma alegria ler o que li na coluna de Zuenir Ventura da semana passada. Pela primeira vez um jornalista reconhecidamente “de esquerda" dá uma espiada no mundo e, ao voltar, repara que desembarcou num país anormal — num país onde não existe direita. Normalmente, seria preciso ser direitista para notar isso, mas no Brasil nem os direitistas são direitistas o bastante para chegar a tamanho atrevimento de percepção. Em geral admitem o uso consagrado que faz do direitismo uma modalidade de crime hediondo e dizem que são “de centro", sentindo-se mais ou menos como as prostitutas quando dizem que são massagistas. Mas a criminalização da direita não se produziu sozinha. Ela é o resultado de meio século de “revolução cultural" — a ocupação esquerdista de todos os espaços, que inclui, como área privilegiada, o espaço verbal. E isso vai muito além do domínio sobre a linguagem dos jornais e das escolas. Os mestres soviéticos de desinformação recomendavam especial empenho na redação de dicionários. A partir dos anos 50, os principais dicionários em circulação no Brasil são verdadeiros receituários de semântica esquerdista, a qual assim se integra no uso corrente como se fosse a coisa mais normal e apolítica do mundo, rejeitando para o limbo do indizível, portanto impensável, tudo o que escape da ortodoxia consagrada. Passadas duas gerações, a anormalidade da situação trans�gurou-se em normalidade postiça, e aí, mesmo quando o sujeito viaja, não lhe ocorre reparar numa diferença como aquela que Zuenir assinalou: pois o indizível e impensável se torna também imperceptível, mesmo quando nos posa diante dos olhos da cara com a sutileza de um hipopótamo. É preciso ser muito inteligente e muito sincero para romper o cerco da repetição dessensibilizante e, num relance, perceber algo que está fora da pauta mental admitida. Quando os homens dormem, dizia Heráclito, eles se fecham cada qual em seu mundo; quando acordam, voltam todos ao mesmo mundo. Não �ca bem a gente criticar ou elogiar, nas páginas de uma revista, os colegas de redação. Mas Zuenir ajudou o leitor a emergir da hipnose brasileira para voltar ao mundo de todos os homens. Que mais se pode exigir de um jornalista? Época, 28 de abril de 2001 T Em carta publicada no Globo do último dia 21, a Professora Denise Rollemberg esclarece que é minha e não dela a conclusão que tirei do seu livro O apoio de Cuba à luta armada no Brasil e segundo a qual “a ação conjunta dos militares (em 1964) resultou da intervenção cubana na guerrilha, e não esta daquela". Ela nem precisava ter dito isso. Uma convenção universal do ofício pensante reza que aquilo que um autor infere de fatos alegados por outro é de inteira responsabilidade do primeiro. Mas a Professora Denise não haverá de se magoar comigo se eu acrescentar que, arcando com a responsabilidade das conclusões, levo também o mérito que possa haver nelas. Inversa e complementarmente, recai sobre ela a responsabilidade — bem como o mérito, se algum há nisso — de recusá-las contra os fatos que as impõem. No seu livro, a Professora Denise, logo após reconhecer que o governo de Cuba participava de ações revolucionárias no Brasil desde 1961, escreve: Após 1964, a esquerda tendeu, e tende ainda, a construir a memória da sua luta, sobretudo, como de resistência ao autoritarismo do novo regime [...]. No entanto, a interpretação da luta armada como essencialmente de resistência deixa à sombra aspectos centrais da experiência nos embates travados pelos movimentos sociais de esquerda no período anterior a 1964. Traduzido do peculiar idioma universitário nacional — o único, no mundo, em que ambigüidade é sinônimo de rigor— que signi�ca esse parágrafo senão que a esquerda brasileira, com a ajuda de Cuba, tentava conquistar o poder por via armada desde três anos antes do golpe militar e que, depois dele, passou a usar o novo regime como pretexto retroativo para alegar que fora compelida ao uso das armas, a contragosto, com lágrimas de piedade nos olhos, pela supressão autoritária de seus meios incruentos de luta? A esquerda, en�m, mentiu durante quase 40 anos, enquanto a direita, a execrável direita, simplesmente dizia a verdade ao alegar que o golpe de 1964 fora uma reação legítima contra uma revolução em curso que não se vexava de recorrer à violência armada com a ajuda clandestina de uma ditadura estrangeira. Nada, absolutamente nada nesses fatos permite concluir, com a Professora Denise, que “o apoio que o governo cubano deu a guerrilheiros no Brasil, em três momentos diferentes, não poderia explicar — e muito menos justi�car — a ação dos militares". A idéia mesma de que uma ingerência armada de país estrangeiro não explique nem justi�que uma reação igualmente armada da nação ofendida é, por si, su�cientemente extravagante para não precisar ser discutida: sua expressão em palavras já basta para impugná-la no ato. Que essa reação, porém, assumisse a forma de um golpe militar e da derrubada do governo constituído é algo que poderia parecer estranho, mas cuja explicação, involuntária aliás, vem da própria Professora Denise. Ela conta (p. 26) que esse governo, ao apreender em �ns de 1962 as provas materiais da intervenção armada cubana, em vez de encaminhar pelo menos um protesto público aos organismos internacionais, como seria sua mais modesta obrigação, que é que fez? Escondeu as provas e as devolveu, discretamente, a um emissário de Fidel Castro. A Professora Denise não percebe nesse ato presidencial nada de particularmente anômalo, tanto que, meio às tontas, o descreve como simples e corriqueira “solução diplomática". Mas qual presidente, de qual país, tendo as provas de uma intervenção armada estrangeira, as esconderia de seus compatriotas e as devolveria ao país interventor sem tornar-se cúmplice dele e, portanto, culpado de crime de alta traição? E por que haveria João Goulart de cometer esse crime se não estivesse mais comprometido com os planos do agressor do que com seus deveres de governante? Meu Deus! Num país onde um presidente foi escorraçado do cargo por simples desvio de verbas e um senador arrisca perder o mandato por violar o sigilo da votação numa miúda comissão parlamentar, será tão difícil à Professora Denise compreender a gravidade imensurável do crime de passar a uma nação agressora um segredo militar? E como não enxergar aí a parceria do criminoso e do cúmplice na implementação de uma única e mesma estratégia revolucionária? Entre a guerrilha de 1961 e a retórica “pací�ca" que se lhe seguiu havia diferenças, sim, mas elas não re�etiam senão a astuta combinação de métodos, ora simultâneos, ora alternados, com que os comunistas, realizando a fórmula consagrada de Stalin que prevê a unidade da estratégia por meio de uma alucinante variação de táticas, desnorteiam seus adversários. Nada, nada neste mundo pode ocultar a continuidade do esforço revolucionário que, orientado desde Havana, sacode o continente há quatro décadas. Con�rma-o — involuntariamente, como sempre — a própria Professora Denise, ao admitir que “após a experiência frustrada das Ligas (1961), e já instaurada a ditadura civil-militar, Cuba rede�niu a maneira de apoiar a revolução no Brasil". Quem poderia “rede�nir" o que já não estivesse de�nido? Ao trair a con�ança da nação, João Goulart não fez senão dar prosseguimento, por outros meios, à guerrilha de 1961, do mesmo modo que a luta armada após o golpe deu prosseguimento à traição goulartiana e, em seguida, três décadas e meia de ocultação e mentiras, nas cátedras e nos jornais, deram prosseguimento à guerrilha de Marighela e Lamarca, sempre variando os meios em vista da �nalidade constante: a implantação do regime comunista. Se fosse preciso maior prova dessa continuidade estratégica, deu-a o Foro de São Paulo, ao assumir, sob o aplauso de Lulas e tutti quanti, sua identidade de reencarnação do Comintern, destinada a “reconquistar na América Latina o que foi perdido no Leste Europeu", segundo palavras reproduzidas no jornal o�cial cubano Granma de 5 de julho de 1990. É evidente que a Professora Denise, sabendo disso, não poderia dizê- lo nesses termos sem arriscar seu emprego num meio universitário comprometido, até à goela, com a sustentação da mentira. Por isso ela o disse com meias palavras. É compreensível que ela se irrite quando alguém o traduz para palavras inteiras. Mas, da minha parte, estou pouco me lixando para o emprego de quantos acadêmicos, há quatro décadas, sejam remunerados pelo Estado brasileiro para colaborar com a ingerência cubana, soviética e chinesa nos assuntos nacionais, seja sob a forma de guerrilhas, seja de sua ocultação. Cada salário que essa gente recebeu é pagamento, extorquido da vítima, em recompensa de um ato mensal de traição. Não a�rmo que este seja o caso pessoal da Professora Denise, da qual nada sei. Mas que ninguém venha dizer que acuso somente um dos lados, pois não me canso, nesta coluna e em outras publicações, de denunciar os que hoje recebem dinheiro de fundações americanas para minar as bases da identidade nacional. Que freqüentemente sejam os mesmos que trabalham para Cuba, é coisa indigna de espanto. Traição é traição, qualquer que seja o país estrangeiro bene�ciado por ela. O Globo, 5 de maio de 2001 M O maior criminoso do Brasil está preso, mas ninguém ousa falar mal dele Vocês já repararam no tratamento discreto, macio, quase gentil que as classes falantes têm dado a Fernandinho Beira-Mar desde que foi preso? Imprensa, políticos, intelectuais — ninguém parece ter um pingo de raiva desse homem responsável por tantas mortes, por tanto sofrimento, por tanta iniqüidade. Ninguém o chama de assassino, de genocida, de monstro, de nenhum daqueles nomes que tão facilmente vêm à boca de todos quando se referem a desarmados vigaristas de colarinho branco ou até mesmo à pessoa do presidente da república. Nenhuma multidão em fúria, convocada pelos autodesignados porta- vozes dos sentimentos populares, se reúne na porta da delegacia para xingá-lo como se xingou Luiz Estevão. Nenhum moralista, com lágrimas de indignação nos olhos, condena como insulto à memória de inumeráveis vítimas os cuidados paternais que o tra�cante recebe na cadeia, como tantos julgaram um acinte a prisão especial que, em obediência à lei, as autoridades deram ao juiz Lalau, malandro septuagenário incapaz de matar uma galinha. Não obstante, o homem que distribui drogas a crianças nas escolas e mata quem tenta impedi-lo é, obviamente, um assassino, um genocida, um sociopata amoral e cínico. Aplicados a suspeitos de crimes incruentos, esses termos são �guras de expressão, hipérboles descomunais, �ores de plástico de uma retórica postiça. Usados para de�nir Luiz Fernando da Costa, são termos exatos, precisos, quase cientí�cos. A liberalidade tropical no emprego das hipérboles para falar de quem rouba contrasta singularmente com a inibição de usar as palavras em seu sentido literal para falar de quem mata. De onde vem essa assustadora inversão das cotações de palavras, homens e crimes na linguagem brasileira? De modo geral, ela re�ete, inequivocamente, a in�uência da “revolução cultural" gramsciana que, há 40 anos, com a obstinação sutil das bactérias e dos vírus, contamina de antivalores comunistas — sem esse nome, é claro — os sentimentos e as reações de nossa opinião pública. Mas, no caso presente, há algo mais que isso — algo de in�nitamente mais sinistro. Há o temor instintivo de revelar a uma luz muito direta e crua a feiúra de um sócio das . Pois essa luz ameaçaria re�etir-se sobre a imagem da guerrilha e, portanto, de todos os seus amigos e apologistas: Fidel Castro, o presidente Chávez, Lula, o governador Olívio Dutra,o , a esquerda quase inteira. Falar de Fernandinho Beira-Mar com uma linguagem proporcional à gravidade de seus crimes seria — para usar a expressão consagrada do jargão militante — “dar munição ao inimigo". Naquilo que dentro de uma cabeça esquerdista faz as vezes de consciência moral, não há pecado maior. Portanto, moderação nas palavras! Abandonado há tempos em nome da “ética", da “participação" e do “dever de denunciar", o estilo noticioso frio, factual, sem comentários, é de repente retirado da gaveta e mostra toda a sua inesperada serventia: num ambiente de furor moralista e indignação oratória, o relato neutro, asséptico, soa quase como um elogio. E não pensem que, para pôr em ação esses anticorpos verbais, tenha sido necessário emitir uma palavra de ordem, distribuir avisos de algum comitê central, mover alguma complexa cadeia de comando. Nada disso. A reação já se produz sozinha, por automatismo, quase inconscientemente. Todos mentem em uníssono — e ninguém tem culpa porque ninguém mandou ninguém fazer nada. É precisamente esse domínio tácito sobre as consciências, essa redução coletiva dos formadores de opinião ao estado sonambúlico de inocentes úteis, que Antonio Gramsci denominava “hegemonia" — o prelúdio psicológico à tomada do poder. A hegemonia já está, portanto, conquistada. Se de�nitivamente ou não, isso depende. Depende de que ninguém diga o que está acontecendo. E é por isto mesmo que insisto em dizê-lo. Época, 5 de maio de 2001 L Dentro da linha de raciocínio segundo a qual os tra�cantes não são tra�cantes porque querem, mas porque nós os obrigamos a sê-lo, o cineasta Breno Silveira, ao anunciar o �lme que está fazendo para mostrar que a Falange Vermelha é quase uma instituição de caridade, contou à Folha de São Paulo de 2 de maio que conheceu Marcinho vp durante uma �lmagem no Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro. O futuro detento do presídio de segurança máxima do Bangu tinha então 12 anos e trabalhava carregando os equipamentos da equipe cinematográ�ca: “Aquela foi uma experiência que me marcou muito. Eu me lembro de um depoimento bonito do Marcinho vp, em que ele a�rmava que gostaria de ser advogado, mas que a vida, com certeza, não iria deixar". Curioso. Um de meus melhores amigos, o escritor Ronaldo Alves, nasceu no Morro da Rocinha — mil vezes pior que o Dona Marta —, cresceu entre bandidos e quis se tornar advogado. A vida obviamente não o deixou, mas ele foi assim mesmo. Nunca roubou um palito de fósforo. Enquanto os meninos da vizinhança jogavam pelada e faziam troca-troca, ele estudava. Coisa análoga posso dizer de mim mesmo, que na infância, embora criado entre cidadãos pacatos num bairro operário, conheci tanto quanto Marcinho a miséria, a fome, a indiferença do mundo, somando-se a isso a doença que só me largou na idade adulta. Não consigo sentir dó desses sujeitos que dizem que �caram pér�dos ou burros porque tiveram um mau começo de vida. Pois em geral eles começaram melhor que eu. Mais curioso ainda é que nem eu nem Ronaldo tivemos a chance de conviver, logo na entrada da adolescência, com gente do show business que nos pudesse abrir a perspectiva de uma existência mais alta. O ambiente de compressiva mediocridade em que fomos criados não teve essa abertura luminosa. Ali sofremos decerto mais zombaria e discriminação por nossa mania de estudar do que Marcinho por sua inclinação ao crime. Mas supremamente curioso é o critério moral com que Breno Silveira julga a sociedade e a si mesmo. Juro que, se um garoto da favela fosse meu ajudante por um só dia — não tenho equipamentos de �lmagem, mas ele poderia, digamos, ajeitar meus livros nas estantes —, eu não o largaria enquanto não tivesse a certeza de haver feito por ele tudo o que estivesse ao meu alcance para encaminhá-lo melhor na vida. Eu faria isso ainda que ele não tivesse me contado o que queria ser quando crescesse. Se me contasse, então, eu compreenderia no ato que não se tratava de um “depoimento", por mais interessante que parecesse, mas de um apelo. Quando um menino pobre nos conta seus sonhos de futuro, ele não está enriquecendo nossa memória de artista: está pedindo socorro. Sei disso porque um dia também contei meus sonhos — e ninguém ligou a mínima. Nem por isso achei que tinha o direito de me vingar, mais tarde, vendendo tóxicos a crianças. Breno Silveira, com suas câmeras e holofotes, passou pela vida de Marcinho e não deixou marcas. Marcinho foi quem deixou um “depoimento bonito" para adornar as memórias do cineasta. Substancial contribuição: Breno pode agora sacá-la do baú e, do alto de sua autoridade moral de membro da elite esquerdista, julgar e condenar os que não �zeram pelo menino do Morro Dona Marta o que ele também não fez. Com a diferença de que a eles o menino nunca pediu nada. O contraste não poderia ser maior com a atitude de Walter Salles, o diretor de Central do Brasil, que, encontrando um menino pobre que aliás não lhe pedia nada, lhe ofereceu emprego num �lme que mudou sua vida. Um �lme que, como o de Breno Silveira, também mostra miséria e sofrimento, mas não faz dos bandidos vítimas e não transmite nenhuma lição de moral além daquela da qual o próprio Walter Salles deu exemplo — aquela lição que, segundo Goethe, resume todo o dever do homem: ser digno, prestativo e bom. A quem não quer ou não pode ser essas coisas resta o consolo moral de falar mal da sociedade. É isso o que, no Brasil de hoje, se chama “ética". Por isso acho que o �lme de Breno Silveira não deveria nem ser feito. Ninguém precisa desse tipo de preleções de ética. Mas há um bocado de Marcinhos em potencial que precisam do dinheiro dessa produção para ter a chance de uma vida nova. Jornal da Tarde, 10 de maio de 2001 M A noção geral consagrada que se transmite nos livros acadêmicos e na mídia sobre o golpe de 1964 não passa de uma gigantesca operação de despistamento, calculada para enfatizar uma duvidosa ingerência americana de modo a ocultar das atenções populares a mais que provada intromissão do bloco soviético nos con�itos nacionais da época. Criação de ativistas que mal escondem seu comprometimento político, ela é obra de pura propaganda destinada a inculcar no público, em consonância com a orientação geral da desinformação comunista, a impressão tácita de que a Guerra Fria não se travou entre os eua e as potências comunistas, mas entre os eua e heróicos movimentos nacionalistas do Terceiro Mundo. Digo “impressão tácita" porque, admitida em voz alta, essa premissa se autodesmascararia no ato; por isto é preciso disfarçá-la sob mil e uma conclusões que se tiram dela sem declará-la. A prova mais patente da falsi�cação é o contraste entre o número de conjeturas que circulam sobre a ação local da nesse período, fundadas em indícios circunstanciais sem uma só prova documental ou testemunhal, e a omissão completa e sistemática de referências à dos serviços secretos comunistas, malgrado a profusão de documentos que a con�rmam. Quantos livros, artigos, reportagens e entrevistas circulam sobre “a no Brasil"? Milhares. Quantos sobre “a no Brasil"? Nenhum. Numa década em que a abertura dos arquivos soviéticos vem comprovando a veracidade de praticamente tudo o que a velha esquerda estigmatizava como “mentiras imperialistas", o desinteresse dos historiadores brasileiros por averiguar essa parte suja da história revela sua compulsão de varrer para baixo do tapete os fatos politicamente inconvenientes. Entre esses fatos, a simples con�ssão do espião tcheco Ladislav Bittman de que em 1964 o serviço secreto de seu país tinha na sua folha de pagamento um pequeno exército de jornalistas brasileiros e controlava um jornal inteiro já bastaria para derrubar toda a mitologia consagrada. Esta só permanece de pé porque os perdedores se tornaram retroativamente vencedores através da manipulação da história. Mas a nova hegemonia esquerdista que possibilitou esse estado de coisas não é fenômeno exclusivamente brasileiro. Em 1997 David Horowitzobservava: A situação nas universidades era espantosa. Os marxistas e socialistas que tinham sido refutados pelos acontecimentos históricos eram agora o establishment o�cial do mundo acadêmico. O marxismo tinha produzido os mais sangrentos e opressivos regimes da história humana — mas, após sua queda, havia mais marxistas no corpo docente das universidades americanas do que em todo o antigo bloco comunista. Idêntica esquisitice nota-se na França, em Portugal, na Itália — na Europa ocidental inteira, com exceção da Inglaterra, onde os intelectuais conservadores �zeram 40 anos atrás sua própria “revolução cultural" (na base, aliás, da pura luta de argumentos e sem recorrer aos truques sujos da “ocupação de espaços", tão caros às almas gramscianas). Derrotado como regime político-econômico, o socialismo ganhou uma miraculosa sobrevida como mitologia cultural do capitalismo. Dois fatores contribuíram para isso: o prodigioso �orescimento da indústria cultural, que deu espaço para a multiplicação sem �m da pseudo-intelectualidade universitária e midiática; e a distribuição de uma parcela considerável das verbas da , privatizadas discretamente logo antes da queda da e espargidas por toda parte como uma bênção urbi et orbi de São Gorbatchov. Mas, em parte, o fenômeno é inerente à natureza do capitalismo, que prospera industrializando sua própria auto�agelação como uma espécie de vacina anti-socialista. O comércio de mitos esquerdistas pode coexistir inde�nidamente com o crescimento do capitalismo porque vicia as classes letradas em lucrar com o abuso das liberdades capitalistas. Os bene�ciados por esse comércio sabem que ele não sobreviveria um dia ao advento do regime comunista, o qual por isto mesmo se torna tanto mais in�uente como mito inspirador da produção cultural quanto mais a tentação de realizá-lo como proposta econômica vai desaparecendo do horizonte visível. A força dos mitos, a�nal, depende precisamente de que ninguém os submeta ao teste da prática. Assim, o socialismo perdeu toda substância própria ao tornar-se puro ódio �ngido ao capitalismo que o alimenta. Nenhuma pro�ssão, hoje, tem futuro garantido como a de intelectual de esquerda: quanto mais você ganha dinheiro, fama e autoridade moral falando mal do capitalismo, mais está livre do risco de que a ditadura do proletariado venha tirá-lo do seu confortável patamar de classe média ascendente. Se Marx exagerou ao dizer que as bases econômicas da vida determinam a consciência dos homens, é verdade que elas determinam a de alguns. Principalmente a desse tipo de intelectuais: não é de espantar que indivíduos cuja subsistência pro�ssional depende de uma farsa sejam também mentirosos, compulsivamente, no conteúdo daquilo que dizem e escrevem. *** A todos aqueles que, lutando contra a ditadura militar brasileira, foram pedir ajuda e inspiração ao governo de Fidel Castro, prometo solenemente jamais voltar a escrever uma só palavra contra o socialismo se vocês me provarem as seguintes coisas: 1) Que em Cuba havia mais liberdade de imprensa que no Brasil. 2) Que em Cuba havia menos prisioneiros políticos que no Brasil (se vocês não quiserem, não precisam nem mesmo levar em conta a diferença de população dos dois países; contento-me com números absolutos). 3) Que em Cuba havia um partido de oposição funcionando com a liberdade, mesmo limitada, do . 4) Que a ditadura militar brasileira matou mais gente que a ditadura cubana (novamente, aceito números absolutos). Se vocês me provarem essas coisas, prometo inscrever-me no e tornar-me o mais devotado dos seus militantes. Se não provarem, terei todo o direito e até o dever de continuar julgando que vocês são uns embrulhões e mentirosos; que vocês não lutavam pela democracia coisíssima nenhuma e que tudo o que vocês queriam era fazer aqui o que Fidel Castro fez em Cuba, com a única diferença de que vocês próprios estariam no papel de Fidel Castro. O Globo, 12 de maio de 2001 E Por que o marxismo é uma doença da alma e por que os doentes fogem do tratamento Quando digo que a honestidade intelectual é incompatível com a contaminação marxista da inteligência, não há nisso nenhuma “tomada de posição ideológica". Há, sim, a conclusão de mais de 20 anos de estudos, durante os quais me abstive de opinar em matéria política justamente para evitar que uma “tomada de posição" falseasse minha visão do assunto. Uma das conclusões a que cheguei é que não pode haver honestidade se o opinador não distingue, em suas idéias, o que é conhecimento da realidade e o que é ativa intervenção nela: ninguém pode escapar da ilusão e da mentira se seus pensamentos são profecias auto-realizáveis. Ora, no marxismo, especulação e ação vêm essencialmente confundidas porque ele rejeita in limine qualquer conhecimento puramente teórico ou contemplativo. Para o marxista, a separação de teoria e prática é “formalismo burguês": só podemos conhecer a realidade mergulhando de cabeça no processo ativo de sua transformação. Essa idéia penetrou fundo na mentalidade dos intelectuais e hoje impera, seja como dogma estabelecido, seja como pressuposto inconsciente, sobre todos os debates públicos neste país ou onde quer que o marxismo tenha exercido uma in�uência determinante. Acontece que essa é talvez a idéia mais enganosa que alguém já teve. Enquanto não a varrermos das cabeças pensantes, não haverá honestidade, sinceridade e realismo em nenhuma discussão política ou cultural. A “união de teoria e prática" exerce sobre as consciências um apelo muito forte porque nela reconhecem, instintivamente, sua própria linguagem interior, ignorada pelo realismo frio das �loso�as cientí�cas. Na esfera da alma individual, teoria e prática são de fato inseparáveis. Quando tomo consciência de um dado de minha realidade pessoal, o conhecimento adquirido se incorpora, imediatamente, a essa própria realidade. O preguiçoso que toma consciência de que é preguiçoso já não é apenas um preguiçoso: é um preguiçoso consciente. A consciência da preguiça já não é pura visão teórica: ela age imediatamente sobre a realidade conhecida e a transforma. Ora, a escala do coletivo, do histórico, do social, que é onde o marxismo e seus resíduos a�rmam resolutamente a união de teoria e prática, é precisamente onde ela não pode se realizar de maneira alguma. Supondo-se, por exemplo, que a visão marxista da classe proletária fosse certa, nem por isso ela se impregnaria automaticamente na prática das lutas proletárias como a consciência da preguiça se impregna na alma do preguiçoso. Entre a teoria na mente de Marx e a revolução proletária no mundo real, algumas décadas de propaganda teriam de ser percorridas. Não há transmissão automática dos pensamentos dos �lósofos às ações da multidão. Na verdade, 150 anos de marxismo não bastaram para metê-lo na cabeça dos trabalhadores do mundo, malgrado os prodigiosos esforços da propaganda soviética. Ao a�rmar a unidade intrínseca e essencial daquilo que só pode ser unido por muito trabalho e artifício, o marxismo falseia, na base, os dois pilares da inteligência humana: o conhecimento e a ação. Quem quer que tenha se deixado levar pelos encantos do marxismo está gravemente contaminado por uma mentira fundamental, que, se não for erradicada, acabará por falsear todo o seu pensamento. Só que, como na escala individual consciência e realidade estão de fato unidas, a falsidade não será só do pensamento: será também da personalidade, dos atos, da vida. Eis por que combater o marxismo não é só combater uma “opinião" como qualquer outra: é convocar de volta à autenticidade da vida seres humanos que alienaram suas existências no altar de uma farsa e que já não sabem como sair dela. É psicoterapia, no sentido mais nobre da palavra. Se me odeiam por praticá-la, isso re�ete apenas o terror pânico com que os fantasmas da neurose reagem ante a chegada da elucidação terapêutica. Época, 12 de maio de 2001 A Como eu vinha dizendo que imitar é o melhor jeito de aprendera escrever, muitos leitores, com razão, sentiram-se no direito de me perguntar quem imitei. Ao longo da vida, �z muitos exercícios de imitação. Não publiquei nenhum, é claro, nem os guardei. Mas ainda ressoam no que escrevo — aos meus próprios ouvidos, pelo menos — as vozes dos mestres que escolhi. Os principais foram, entre os clássicos da língua portuguesa, Camões, Antônio Ferreira, Fernão Mendes Pinto, Camilo e Euclides. Machado foi um deleite, não um aprendizado. Nunca o imitei conscientemente, porque, malgrado a devoção que lhe tenho, as diferenças de personalidade entre nós são demasiado fundas. Não consigo me conceber tímido, recatado, elegante e, ademais, funcionário público. Mas com facilidade me imagino um navegante e aventureiro como os nossos clássicos renascentistas, um polemista doido doublé de metafísico como Camilo, um misto de cientista e repórter como Euclides. A empatia, no aprendizado por imitação, é tudo. Por isto cada um tem de escolher seus modelos. Os meus entram aqui como simples amostras. Do Eça, para dizer a verdade, jamais gostei muito. Ele escreve tão gostoso porque seu pensamento é fácil, leviano, sem densidade ou luta interior. Não me lembro de ter voltado jamais a uma página sua. Pessoa, tanto quanto Machado, foi um amor impossível. Ele é maravilhoso, mas eu jamais desejaria ser esse sombrio professor de inglês, todo encapotado no mistério e sem ânimo de decifrá-lo. Também nada devo literariamente a Bruno Tolentino, malgrado a amizade e a admiração sem reservas que tenho por ele. O fator que nos separa é sociológico. Brega por origem e vocação, não posso me identi�car com as raízes culturais — portanto, nem com o tônus verbal — de um rapaz de família célebre, parente de meio mundo, criado entre literatos. Fui amigo e devoto discípulo de Herberto Sales. A primeira visão que tive dele foi a de um velho mulato gorducho, sentado a um canto no lobby do Hotel Glória com um livro e um caderninho. O livro era um volume de Proust. No caderninho Herberto anotava, com uma caligra�a miúda, as soluções verbais que pudesse aproveitar. Poucos autores brasileiros, dizia Otto Maria Carpeaux, tiveram uma consciência artística tão desperta, tão aguda, tão esforçada quanto Herberto Sales. Aprendi também com o próprio Carpeaux, do qual li praticamente tudo o que publicou em português. Ele não era um visual, mas um auditivo. Não nos fazia ver as coisas, mas adivinhá-las pela sua repercussão em épocas e almas. Ele tinha a arte camerística de, num breve artigo, introduzir sutilmente um tema, desenvolvê-lo, fazê-lo ressoar em muitas oitavas e resolvê-lo rapidamente, nas linhas �nais, com uma coda abrupta e estonteante. Ninguém, entre nós, dominou como ele a técnica do ensaio breve, condensação poética de controvérsias cientí�cas enormemente complexas. A Nelson Rodrigues também devo muito. Dois títulos condensam toda a sua arte de escrever: A vida como ela é e O óbvio ululante. O segredo do seu estilo é a audácia de dizer as coisas da maneira mais direta e corriqueira, trans�gurando o prosaico em símbolo. Não encontro coisa similar senão em Pío Baroja e Julien Green, embora neste sem nada do cinismo de Nelson, naquele com um cinismo diferente, mais frio e resignado. Mas a arte de resumir todo um argumento numa frase breve, de impacto brutal — que tantos me condenam como se fosse prova de não sei que sentimentos ruins — aprendi mesmo foi com três santos: São Paulo Apóstolo, Santo Agostinho e São Bernardo. Tudo tem um preço. Ninguém pode imitar os santos, nem mesmo em literatura, sem escandalizar uma intelectualidade pó-de-arroz. Dos autores estrangeiros do século , além de Baroja e Green, os que mais me ensinaram foram Ortega y Gasset e Bernanos. Ortega é de longe o maior prosador da língua espanhola, sem similares nela ou em qualquer outra pela sua força de fazer ver aquilo de que fala. Na verdade, mais que fazer ver. Ele próprio comparava a força aliciante do seu estilo a um punho que saltasse da página e agarrasse o leitor pela goela, obrigando-o a envolver-se na discussão como se fosse problema pessoal. Efeito parecido despertam as páginas de Bernanos, mas com um pathos de moralista encolerizado que falta por completo ao amável e gentil Ortega. Como escritor de livros de �loso�a tive de passar também pelos problemas da exposição �losó�ca, mais complexos, do ponto de vista técnico-literário, do que em geral se imagina. Para mim, o maior expositor �losó�co de todos os tempos (não o maior �lósofo, é claro) foi Éric Weil. Nos seus escritos, a construção abstrata eleva-se às alturas de uma realização estética, mas de uma estética que, em vez de se superpor como um adorno ao pensamento conceitual, é encarnação direta do próprio espírito �losó�co. A força do seu estilo é a beleza da razão quando alcança o plano mais alto da pura necessidade metafísica. Apenas, para apreciá-la, é preciso ter desenvolvido o senso dessa necessidade, que falta por completo às mentes grosseiras, divididas entre o caos empírico e o formalismo lógico vazio. A estas o vigor da prova pode dar a impressão de um autoritarismo dogmático, de uma imposição da vontade, quando ela vem precisamente do contrário, da total rendição da vontade ante aquilo que, simplesmente, é o que é. Virtudes similares, em grau menor, encontro em Edmund Husserl e Louis Lavelle, com a ressalva de que este insiste demais no que já demonstrou e aquele abusa dos termos técnicos em prol da brevidade que, como já dizia Horácio, se opõe à clareza. O grande expositor �losó�co nada tem de “didático". A �loso�a, sendo educação em sua mais íntima essência, é por isto mesmo metadidática, não havendo nela a possibilidade de uma seriação graduada do mais fácil para o mais difícil. Em �loso�a a melhor maneira de dizer é aquela que encarne da maneira mais direta e �el o próprio método �losó�co, e o método �losó�co melhor é o que mais e�cazmente apreenda a coisa da qual se fala, sem nada acrescentar à sua simplicidade ou subtrair da sua complexidade. Não se pode falar legitimamente de �loso�a senão desde um ponto de vista �losó�co. Não há quadro de referência externo desde o qual se possa “compreender" uma �loso�a, pela simples razão de que a �loso�a é a arte de montar os quadros de referência de toda compreensão. Por isso, a “divulgação �losó�ca" acaba sendo, quase sempre, fraude; e os melhores escritos �losó�cos quase nunca parecem bons a quem os julgue de fora, com critérios unilateralmente “literários". O Globo, 19 de maio de 2001 E Estão tentando aliviar a má impressão do envolvimento com o trá�co A prisão de Luiz Fernando da Costa num acampamento de guerrilheiros colombianos, com provas da troca de drogas por armas, foi talvez a coisa mais temível que já aconteceu para a esquerda nacional desde a morte de Carlos Lamarca e Carlos Marighella. Beira- Mar é um arquivo vivente das relações perigosas entre banditismo e revolução, e por isso alguns jornalistas, sempre ansiosos de vasculhar porões e ralos para destroçar a carreira de políticos de direita, são tão circunspectos e evasivos no que diz respeito ao tra�cante. Se ele soubesse algo capaz de incriminar Antonio Carlos Magalhães ou Paulo Maluf, os repórteres o assediariam dia e noite. Como o que ele sabe é contra a esquerda, há na imprensa quem chegue a protestar contra o destaque que a notícia de sua prisão mereceu em alguns jornais e revistas. Outros não se contentam com abafar notícias: partem para a desinformação ativa. Segundo uma nota reproduzida em várias publicações na semana passada, o representante do Programa das Nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas, Klaus Nyholm, teria dito que as não atuam como tra�cantes de drogas, limitando-se a cobrar imposto “por toda a cocaína que sai do território colombiano", e que as tropas paramilitares de extrema direita, estas sim, têm envolvimento direto com o trá�co, do qual obtêm de US$ 200 milhões a US$ 500 milhões por ano. A primeira dessas declarações é autêntica, mas Nyholm a fez muito tempoatrás, pois já vem citada num artigo de Noam Chomsky de junho de 2000. Com data falseada, ela serve agora de amortecedor contra o impacto das provas encontradas com Beira-Mar. Mas a quem isso pode iludir? Mesmo que não participassem diretamente do trá�co, as seriam ainda mais criminosas que os tra�cantes, já que os dominaram e reduziram à condição de súditos, tornando-se mandantes e bene�ciárias maiores de seu comércio ilícito. Quanto à segunda declaração, Nyholm simplesmente não poderia tê- la feito. Ninguém que não pretendesse se autodenunciar como mentiroso ou retardado mental a�rmaria que as recebem imposto de “toda a cocaína que sai da Colômbia" para, logo na frase seguinte, anunciar que uma parcela considerável desse todo vem do maior inimigo delas. Pois aí o infeliz teria de explicar se a extrema direita paga imposto à guerrilha comunista ou se inventou um jeito de burlar o Fisco. Só a volúpia comunista de mentir pode tornar um jornalista tão cego para a absurdidade pueril daquilo que inventa. No entanto, seria imprudente explicar pela sanha radical de indivíduos isolados o viés esquerdista que deforma boa parte do noticiário circulante. A situação re�ete uma estratégia racional, consciente, empenhada na conquista dos meios de comunicação desde a década de 60, quando entraram no Brasil as idéias de Antonio Gramsci, teórico da “ocupação de espaços". Já em 1993 a admitia ter em sua folha de pagamento nada menos de 800 jornalistas — o su�ciente para produzir sete edições semanais de Época! Somem a isso os que trabalham para o , o e as centenas de s esquerdistas milionárias (sem que nada de comparável, mesmo remotamente, contrabalance o fenômeno pelo lado da direita) — e verão a classe jornalística amplamente subjugada aos interesses de uma facção política que não prima pela transparência, seja de seus planos para a derrubada do Estado, seja dos meios de �nanciamento com que pretende realizá-los. Malgrado suas alegações de “ética", muitos jornalistas de esquerda estão indo longe demais na prática da regra Leninista de que os �ns justi�cam os meios. Alguns deles não têm sequer consciência de que o que estão fazendo é mau e desonesto. Simplesmente identi�cam a direita com o mal e sentem que mentir contra ela não é pecado. Mas “mentir em prol da verdade" foi o pretexto entorpecente que levou muitos homens bons a colaborar com o genocídio de 100 milhões de vítimas. Época, 19 de maio de 2001 T Todo mundo sabe — e os testemunhos psicanalíticos e psiquiátricos o con�rmam abundantemente — que uma grande fonte de sofrimentos humanos é a possessividade materna. Muitas mulheres têm, de fato, uma di�culdade de reconhecer em seus �lhos criaturas independentes. Vêem-nos como propriedades pessoais e adornos destinados ao seu próprio embelezamento subjetivo. A revolução psicológica dos anos 60, que muito contribuiu para minar a autoridade familiar e que é geralmente celebrada na intelectualidade progressista como um momento importante na libertação do ser humano, insistiu muito nisso. No entanto, dessa mesma revolução psicológica nasceu a forma atual e radicalizada de reivindicação feminista que, de maneira aparentemente paradoxal, restabelece a possessividade materna em níveis jamais ambicionados pela mais ciumenta mamãe italiana ou judia — e não falo das mamães italianas e judias reais, mas da sua versão piadística grotescamente ampliada. A reivindicação do poder materno absoluto começa a raiar o monstruoso no momento em que as mulheres, quando querem ter �lhos a despeito de algum obstáculo natural, recorrem a arriscadas manipulações genéticas de moralidade duvidosa, ao passo que outras, para livrar-se dos seus depois de os ter gerado, se permitem assassiná- los em massa pelo aborto legalizado. Em ambos esses casos extremos — opostos só em aparência —, a exigência feminina de poder sobre o próprio corpo amplia-se numa reivindicação de onipotência sobre a vida e a morte de outrem. Em ambos os casos, a vaidade pueril e o egoísmo grosseiro sobrepõem-se imperiosamente à consideração da simples possibilidade teórica de que seus �lhos possam ser algo mais do que meios genéticos de satisfação pessoal de suas mães. A exploração da vaidade feminina por meio da lisonja é o mais velho expediente dos manipuladores ambiciosos. O antepassado de todos eles, caso alguém não se lembre, já aparece no Gênesis prometendo poder a Eva. Apenas, a evolução da técnica médica e dos meios de in�uência psíquica pelos meios de comunicação de massa deu a essa promessa um alcance estratégico jamais sonhado, fazendo dela uma ameaça iminente de abolição do senso moral mais elementar em toda a fração feminina da humanidade. A mulher imbuída do “direito" de produzir ou matar seus �lhos a seu bel-prazer é, na melhor das hipóteses, uma sociopata, na qual o desejo de posse e a ambição de poder se sobrepuseram aos sentimentos de base que constituem a condição sine qua non da vida familiar, da decência e do amor pessoal. A adoção universal da nova moral ultrafeminista será uma catástrofe civilizacional de proporções assustadoras. Muito provavelmente, a natureza feminina reagirá por si mesma contra essa brutal mutação psíquica que lhe querem impor, e a nova moral do poder materno absoluto não passará de um projeto insano, abortado nas pranchetas dos engenheiros sociais que a conceberam. Mas a natureza, para agir com plena e�cácia, tem de ser ajudada pela cultura. Uma guerra cultural tem de ser travada em defesa dos sentimentos maternos sãos e contra a oferta de fazer de cada mãe uma deusa, investida do poder de vida e morte sobre seus �lhos. Jornal da Tarde, 24 de maio de 2001 R O nacionalismo de esquerda é uma fraude Os apóstolos do Estado nacional, que espumam de indignação patriótica à simples idéia de privatizar alguma empresa estatal, tornam-se de repente globalistas assanhados quando um poder supranacional vem defender os interesses deles contra os interesses da pátria. Essa conduta é tão repetida e uniforme que só um perfeito idiota não perceberia nela um padrão, e por trás do padrão uma estratégia. Desde logo, “a pátria" que eles celebram se constitui exclusivamente de estatais, onde têm sua base de operações e de onde dominam não somente uma boa fatia do Estado, mas também os sindicatos de funcionários públicos e seus monumentais fundos de pensão. Defendendo sua toca com a ferocidade de javalis acuados, desprezam tudo o mais que compõe a noção de “pátria" e não se inibem de colocar-se a serviço de s e governos estrangeiros quando atacam as instituições nacionais, desmoralizam as Forças Armadas, desmembram o território brasileiro em “nações indígenas" independentes, impõem normas à educação de nossas crianças, fomentam con�itos raciais para destruir o senso de unidade nacional e, em suma, arrebentam com tudo o que constitui e de�ne a essência mesma da nacionalidade. Da pátria, só uma coisa lhes interessa: o dinheiro e o poder que lhes vêm das estatais. Em segundo lugar, o nacionalismo que ostentam é de um tipo peculiar, desde o ponto de vista ideológico. É um nacionalismo seletivo e negativo, que enfatiza menos o apego aos valores nacionais do que a ojeriza ao estrangeiro — e mesmo assim não ao estrangeiro em geral, como seria próprio da xenofobia ordinária, mas a um estrangeiro em particular: o americano. Assim, por exemplo, não sentem a menor dor na consciência quando, sob o pretexto imbecil de que toda norma gramatical é imposição ideológica das classes dominantes, demolem a língua portuguesa e acabam suprimindo do idioma duas pessoas verbais (mutilação inédita na história lingüística do Ocidente); mas, ante o simples ingresso de palavras inglesas no vocabulário — um processo normal de assimilação que jamais prejudicou idioma nenhum, e que aliás é mais intenso no inglês do que no português —, saltam ao palanque, com os olhos vidrados de cólera, para denunciar o “imperialismo cultural". Ser nacionalista, para essa gente, não é amar o queé brasileiro: é apenas odiar o americano um pouco mais do que se odeia o nacional. Mas, para cúmulo de hipocrisia, seu alegado antiamericanismo não os impede de celebrar o intervencionismo ianque quando lhes convém, por exemplo quando ajudam alegremente a desmoralizar a cultura miscigenada que constitui o cerne mesmo do estilo brasileiro de viver e lutam para impor entre nós a política americana das quotas raciais, em consonância com as campanhas milionárias subsidiadas pelas fundações Ford e Rockefeller. Do mesmo modo, seu antiamericanismo fecha os olhos à entrada de novos códigos morais — feministas e abortistas, por exemplo — improvisados em laboratórios americanos de engenharia social com a �nalidade precisa de destruir os obstáculos culturais ao advento da nova civilização globalista. Redução do nacionalismo à defesa das estatais, substituição do antiamericanismo ao patriotismo positivo, adesão oportunista ao que é americano quando favorece a esquerda: desa�o qualquer um a provar que a conduta constante e sistemática da chamada “esquerda nacionalista" não tem sido exatamente essa que aqui descrevo, de�nida por esses três pontos. Nunca, na História, houve patriotas a quem se aplicasse tão exatamente, tão literalmente e com tanta justiça a observação de Samuel Johnson, de que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas. Época, 26 de maio de 2001 N Por baixo de suas a�nidades profundas e de sua abominável parceria na década de 30, socialismo e nazi-fascismo conservaram durante algum tempo uma diferença irredutível que permitia reconhecê-los à distância e — como direi? — pelo cheiro. O socialismo, com toda a sua absurdidade infernal, alegava-se no entanto fundado numa ciência, numa interpretação racional da história e da sociedade. O fascismo desprezava todas as argumentações e apelava diretamente às paixões, ao instinto, à irracionalidade bruta. Era uma diferença antes de embalagem que de substância, pois ambos, no fundo, eram igualmente irracionais. Talvez por isso mesmo, à medida que o nazi-fascismo some do horizonte visível e permanece conhecido apenas pela imagem estereotípica que dele se conserva na mídia popular, mais fácil se torna para os socialistas copiar suas idéias, suas propostas e até mesmo seu estilo, seguros de que a ninguém ocorrerá chamá-los de nazi-fascistas por isso. Nazista em toda a linha é a ebuliente fusão de ódio nacionalista, moralismo inquisitorial e retórica populista, que se tornou a marca inconfundível da esquerda brasileira. Mais nazista ainda o assalto irracionalista à idéia de verdade e de ciência objetiva, hoje promovido nas universidades por tropas de choque de vândalos togados, que não se vexam de reprimir nos alunos, mediante a chacota magisterial e a ameaça de sanções disciplinares, qualquer tentação de argumentar com lógica contra sua doutrina. Esta pode resumir-se num breve parágrafo: “Não existe ciência ou conhecimento objetivo. Não existe verdade. Tudo o que existe são discursos ideológicos, legitimadores de interesses econômicos. Há o discurso dos privilegiados e o discurso dos excluídos. Sejam bonzinhos e tomem partido deste último". Esse parágrafo contém, rigorosamente, tudo o que um estudante brasileiro pode aprender hoje em qualquer curso universitário da área de “humanas". Milhões de arranjos e variações são feitos para adaptar a mensagem às exigências das várias disciplinas, podendo-se portanto encontrá-la, sem qualquer diferença ou acréscimo substancial, em linguagem jurídica, psicológica, teológica, historiográ�ca, sociológica, �losó�ca, geográ�ca etc. Nada, nem uma única idéia se admite, em qualquer área do conhecimento, que não seja redutível, sem prejuízo do seu conteúdo, à fórmula-padrão universal, o parágrafo dos parágrafos, essência primeira e última do saber humano. A variedade dos arranjos dá aos leigos e recém-chegados uma impressão de riqueza atordoante, su�ciente para mantê-los sentados em suas carteiras até o dia em que, tendo percebido en�m a mágica besta que os fez de otários, já estejam cansados e amestrados demais para desejar desmascará-la, e optem pela alternativa mais cômoda de seguir os passos de seus mestres na senda da auto-estupidi�cação letrada. Então, por medo de parecer ingênuos que acreditam em lógica, estarão dispostos a repetir os mais rematados contra-sensos e a defendê-los bravamente, não com argumentos, é claro, mas com aquela variada coleção de trejeitos de indignação, despeito e repugnância que hoje constitui o indispensável vocabulário facial de um perfeito sábio acadêmico. Querem um exemplo? Dona Marilena Chauí, talvez a mais típica encarnação do ideal universitário nacional, acaba de estatuir como um “princípio nuclear da lógica do poder" a seguinte coisa: “Toda sociedade está dividida originariamente entre o desejo dos grandes de comandar e oprimir e o desejo do povo de não ser comandado nem oprimido, de�nindo o lugar do governante não acima das classes e sim como aliança necessária com o desejo do povo e como contenção do desejo dos grandes". Qualquer cidadão alfabetizado sabe que quem “comanda e oprime" não são “os grandes", de modo geral e abstrato, mas sim justamente os governantes, e que o fazem quase que invariavelmente sob o pretexto de proteger o povo contra “os desejos dos grandes". De Ivan, o terrível e Luís até Hitler, Mussolini, Lenin e Stalin, não houve um só déspota que não impusesse sua autoridade absoluta mediante a destruição dos poderes intermediários, isto é, dos “grandes" sem cargo o�cial, e que não o �zesse em nome dos pequeninos e desamparados. Todo mundo sabe disso, mas alegá-lo é coisa do tempo em que o raciocínio lógico não era vulgaridade indigna de um acadêmico. Fica valendo, pois, o princípio chauínico, ou chauinista: governantes não comandam nem oprimem. Quem comanda e oprime são os ricos que estão fora do governo. Não contente com isso, Dona Marilena enuncia um segundo “princípio nuclear", alegando que não é nem de sua invenção, mas que exprime a quintessência unanimitária do “pensamento político moderno". Segundo esse princípio, “a moralidade pública não depende do caráter dos indivíduos e sim da qualidade das instituições como expressões concretas do lugar e do sentido da lei". Sei que argumentar não vale, mas quem quer que conheça um pouco o tal “pensamento político moderno", de Maquiavel a Voegelin, de Hobbes a Weber, de Tocqueville a Peyre�tte (sem esquecer evidentemente Marx), sabe precisamente o contrário do que a�rma essa senhora: sabe que a moralidade depende de tudo, menos das instituições e das leis. Depende do costume, da cultura, da religião, da educação, até da economia. Depende sobretudo do caráter dos indivíduos, moldado por esses fatores de base. Os códigos e instituições vêm em cima, seja como expressões da moralidade consagrada, seja como vãs e monstruosas tentativas totalitárias de mudá-la por decreto. Nunca houve um grande pensador político que dissesse o contrário. A ideóloga da , num golpe de teclado, falseia todo o consenso universal — e ninguém parece reparar na prodigiosa leviandade que se requer para isso. Num ambiente com um mínimo de racionalidade, nenhum intelectual acadêmico seria tolo e pretensioso o bastante para consagrar a�rmativas pueris como “princípios nucleares". Mas hoje isso pode ser feito impunemente. O que ninguém pode é denunciar essa intrujice sem ser assediado imediatamente pelo único tipo de argumentos que se admitem como legítimos no nazismo de cátedra: olhares de ódio, insinuações malévolas, eventualmente alguns palavrões. Abajo la inteligencia já se tornou, en�m, norma consagrada. Agora só falta acrescentar: Viva la muerte. O Globo, 2 de junho de 2001 F Para cada homicídio que denunciam, eles foram cúmplices de outros 49 Os brasileiros que foram treinar guerrilha em Cuba não se tornaram somente pontas-de-lança da estratégia cubana no exterior, mas também, obviamente, suportes do regime de Fidel Castro no próprio âmbito cubano. Recebidos com honras,sustentados com verbas do Estado, tiveram funções e utilidades bem nítidas no esquema de poder �delista, alguns como o�ciais da inteligência militar, outros como símbolos legitimadores e garotos-propaganda do regime, um papel a que muitos ainda se prestam com cínica devoção. Como qualquer ajudante e bene�ciário de uma ditadura, �zeram-se cúmplices dos crimes cometidos por ela, no mesmo sentido e na mesmíssima proporção com que acusam de parceria nos crimes da ditadura nacional qualquer indivíduo, daqui ou de fora, que de algum modo tenha apoiado o regime militar ou recebido favores dele. Moralmente, a única diferença que pode haver entre uma cumplicidade e a outra reside na magnitude dos crimes praticados pelas ditaduras respectivas. Mas essa comparação não é nada favorável aos que hoje detêm o monopólio do direito de acusar. O Brasil do período ditatorial não teve mais de 2 mil prisioneiros políticos. Cuba teve 100 mil. Para cada esquerdista brasileiro preso no -Codi, no Dops, na Ilha Grande, 50 cubanos foram jogados nas prisões políticas de Havana, com a solícita cumplicidade política e moral desse brasileiro. E os mortos, então? A ditadura brasileira fez 300 vítimas; a cubana, 17 mil. Para cada comunista brasileiro morto pelos militares, morreram mais de 50 dissidentes cubanos. A diferença não é só quantitativa. Ela afeta a própria natureza dos crimes. Dezessete mil mortes, numa população cerca de 14 vezes menor que a do Brasil, já são um genocídio, a liquidação metódica e sistemática de um grupo, de uma classe. Genocídio com um detalhe ainda mais pér�do: em Cuba, desde a fuga de Batista, não houve resistência armada interna. A ditadura brasileira matou guerrilheiros e terroristas. Cuba, com o apoio deles, matou cidadãos desarmados, pací�cos e sem periculosidade alguma, a maioria por motivos fúteis, muitas vezes por uma simples tentativa de sair em busca de uma vida melhor. Se é lícito denominar “�lhote da ditadura" a qualquer um que tenha colaborado com o regime militar, com igual rigor e justiça os que se bene�ciaram da ajuda de Cuba devem ser chamados “�lhotes do genocídio". Mas 17 mil são só os que morreram em território cubano. Não estou contando aqueles que tropas armadas, instruídas e �nanciadas pelo governo de Havana, co-irmãs da guerrilha brasileira, assassinaram no Peru, na Nicarágua, na Colômbia. São 80 mil no total: para cada comunista morto no Brasil, seus companheiros mataram mais de 49 não-comunistas no continente. E continuam matando. Seus sofrimentos, além de fartamente indenizados em dinheiro, já foram vingados 49 vezes. Com que autoridade moral, pois, ainda erguem seu dedo acusador contra os “�lhotes da ditadura"? Malgrado a força intrínseca desses fatos e números, a malícia esquerdista poderá tentar neutralizá-los alegando que saem da boca de um anticomunista. Mas seria inverter causa e efeito. Não penso essas coisas por ser anticomunista: tornei-me anticomunista porque me dei conta dessas coisas. Mesmo assim, guardei-as comigo anos a �o, por medo de prejudicar aqueles a quem um dia chamara “companheiros". Se de algo posso ser acusado, é desse comodismo pusilânime do qual por �m me libertei, mas que me fez tardar demasiado em dizer a verdade. Muitos, sabendo dela tanto quanto eu, vivem ainda de camu�á-la sob jogos de palavras, e não para proteger a terceiros, mas a si mesmos e às vantagens de que hoje desfrutam, seja como membros do governo, seja como ídolos da oposição. Nisso consiste toda a sua moral: culpa reprimida, transmutada em fome insaciável de retaliações e compensações. É claro que os crimes da ditadura militar devem ser denunciados, investigados e punidos — mas não por esse tipo de gente. Não por essa escória. Época, 2 de junho de 2001 H De uma polêmica que o Dr. Oswaldo Porchat Pereira teve comigo, e da qual saiu com o rabo entre as pernas após uma vã tentativa de me assustar com uns argumentos supremamente calhordas, concluí que ele era um fracote. Da leitura de um de seus escritos �losó�cos de maturidade, concluí que era um idiota. Lendo, agora, sua tese de doutoramento, retirada do baú pela Editora da Unesp, descubro, com grata satisfação, que 33 anos atrás ele não era nada disso: era um estudioso sério, capaz de trabalho intelectual pesado, honesto e até corajoso. Tendo divulgado as duas primeiras conclusões, vejo-me na estrita obrigação de publicar a terceira, ao menos para que se veja que o homem não é ruim por natureza, mas �cou assim por força de três décadas e tanto de serviço público na , uma experiência capaz de corromper até os santos e da qual eu, que nunca passei por ela, não posso jurar que me sairia melhor. Ciência e dialética em Aristóteles permaneceu inédito e agora vem a público por mérito de D. Marilena Chauí, a qual, por distração ou malícia, inaugurou com o livro uma coleção à qual deu o mesmo nome daquela que há dois anos dirijo na Editora Record: Biblioteca de Filoso�a. Dona Marilena é mesmo uma pessoa estranha. Anos atrás (corrijam- me, por favor, se eu estiver errado), acusada por José Guilherme Merquior de plagiar uns escritos de Claude Leffort, respondeu que tivera um caso amoroso com o autor plagiado, sugerindo que páginas inteiras da obra dele teriam sido transmitidas à sua pessoa por meios que não são da nossa conta. Mas ela não há de ser acusada de ter por mim análoga simpatia. A palavra mais doce que já disse a meu respeito foi “cafajeste", recebendo uma resposta que, embora publicada, não ouso repetir, de vez que já passou há tempos a emoção do insulto que me fez proferi-la. Lembro o episódio apenas para atestar que D. Marilena não tem comigo nenhuma intimidade afável que justi�caria, como no caso Leffort, uma transmissão telepática. Permanece, pois, o mistério. Não podendo resolvê-lo, voltemos ao Dr. Porchat. Para avaliar a importância do seu trabalho, é preciso estar ciente de que ele, no seu momento, respondeu e�cazmente a uma polêmica de meio século que se travava em torno da continuidade ou descontinuidade da idéia de ciência em Aristóteles, e que essa discussão não tinha somente interesse histórico, dada a inspiração que muitos �lósofos da ciência e cientistas de ofício, especialmente biólogos, estavam buscando no Estagirita para revigorar o senso da unidade orgânica do saber. A disputa nasceu com Werner Jaeger (depois autor da celebradíssima Paidéia), quando, aplicando a Aristóteles o método biográ�co-genético que tão bem funciona com autores mais recentes, concluiu que a �loso�a do mestre tinha passado por substanciais mutações e nela não se encontrava mais unidade do que aquela que se pode vislumbrar nas expressões de qualquer alma humana, que se transforma no curso dos tempos e se esquece de si. Embora rejeitando em essência o método de Jaeger, o grosso do establishment acadêmico subscreveu a idéia de que haveria em Aristóteles, e sobretudo em sua concepção do saber cientí�co, vários começos e recomeços, não sobrando no �m um sistema, porém ao menos dois, num con�ito sem solução. Opondo-se valentemente a essa respeitável maioria, Porchat matou a questão pelo método que aprendera de Victor Goldschmidt e Martial Guéroult: a reconstituição meticulosa, mediante leitura analítica, da “ordem das razões" que estruturam uma �loso�a. Daí surge brilhantemente restaurada a unidade da teoria aristotélica da ciência, acima de qualquer dúvida razoável. No curso de minhas investigações sobre a concepção do discurso em Aristóteles, topei, evidentemente, com a mesma questão. Cheguei à mesma resposta, sem ter o tempo ou os meios de prová-la, e passei adiante, pois o objeto da minha investigação era outro. Mas sempre conservei algumas dúvidas quanto a esse ponto em particular, sabendo que um dia eu ou alguém teria de voltar lá para tirá-lo a limpo. Diante da constatação de que Porchat, numa tese inédita, já tinha matado o problema, só posso exclamar: bravo! Evidentemente, se eu tivesse lido a tese enquanto trabalhava no meu Aristóteles em nova perspectiva, isto em nada teria mudadominha conclusão global, mas certamente eu a teria a�rmado com mais vigor e certeza, pois a unidade da lógica cientí�ca é um argumento decisivo em favor da unidade da concepção aristotélica do discurso em geral, que é o que ali procuro defender. Só lamento que um sujeito tão capaz fosse sepultar seus talentos no cemitério uspiano. Dá para entender por que, começando com Aristóteles, ele terminou no pirronismo, a mais demissionária das �loso�as. Era pedir demissão do emprego — ou da �loso�a. Jornal da Tarde, 7 de junho de 2001 A Desde o �m da urss, a esquerda nacional tem-se empenhado dia e noite em advertir os nossos nacionalistas — especialmente os das Forças Armadas — contra o perigo do mundo unipolar e em persuadi- los a tornar-se esquerdistas por patriotismo. Há pessoas que vivem disso, e há pessoas — até nas Forças Armadas — que acreditam nelas. Mas só um perfeito idiota não percebe que a potência dominante que nos impõe as políticas econômicas contra as quais a esquerda se bate é a mesma que nos impõe o politicamente correto, o abortismo, o feminismo, o ecologismo e, en�m, todos os modelos culturais que constituem o restante do programa da própria esquerda. Muito menos é possível a um cérebro medianamente são deixar de notar que as fundações e empresas multimilionárias que subsidiam a difusão desses novos modelos de conduta são as mesmas que, por outro lado, sustentam a implantação da Nova Ordem Mundial e das tais políticas econômicas que os apóstolos desses modelos alardeiam execrar. E quem quer que perceba essas duas coisas não tem como evitar a conclusão de que o mundo unipolar é ainda mais unipolar do que os porta-vozes da esquerda desejariam dar a entender. Tão unipolar, que dele provêm não somente as propostas que a esquerda odeia, mas também as que ela ama e personi�ca. E dele, igualmente, vem o dinheiro para subsidiar a implantação de uma coisa e da outra. A esquerda, em suma, utiliza-se de um vocabulário estereotipado da época da bipolaridade para iludir os nacionalistas, desorientá-los e subjugá-los à estratégia mundialista, atraindo seus ataques numa direção falsa para que não atinem com a verdadeira. O componente essencial desse vocabulário é a velha identi�cação do “norte- americano" com o “liberal-capitalista", da qual decorre, automaticamente, a confusão do nacionalismo com o estatismo, o Estado previdenciário e, last not least, o socialismo. É com a �nalidade de legitimar esse brutal engano que o discurso corrente dos homens de esquerda contra o e a Nova Ordem Mundial apresenta estes dois fenômenos como se fossem a quintessência do liberal-capitalismo e não, precisamente ao contrário — como o demonstra a história — invenções puramente socialistas destinadas a estrangular, junto com a liberdade econômica, a liberdade política no mundo. e Nova Ordem Mundial são capítulos da história do centralismo avassalador que tudo sacri�ca no altar do controle burocrático e da economia plani�cada, os ídolos já mil vezes desmascarados, de cujos poderes místicos a propaganda socialista promete, no entanto, obter a cura de todos os males. Do primeiro, disse seu próprio inventor, Lorde Keynes, que era “essencialmente uma concepção socialista". Quanto à segunda, foi de ponta a ponta uma criação do famoso think tank londrino do socialismo gradualista que, após passar por várias denominações, acabou se notabilizando como Fabian Society. Foi um de seus membros mais ilustres o escritor H. G. Wells, que delineou já em 1928 o programa inteiro da Nova Ordem Mundial e o publicou no seu livro A conspiração aberta. “Aberta" é força de expressão. “Conspiração" também. O socialismo fabiano jamais se envolveu em atentados, comícios, passeatas, muito menos em conspirações de porão. Tudo o que ele faz é preparar intelectuais para colocá-los em altos postos de assessoria desde os quais possam, discretamente, mas sem nenhum segredo, incutir idéias socialistas nas cabeças dos governantes. O esquema foi inventado pelo teórico Graham Wallas, que com cinco décadas de antecedência formulou a estratégia gramsciana da “ocupação de espaços" e da “revolução passiva" (e dizer que Gramsci ainda passa por gênio!). A magnitude dos efeitos da coisa contrasta singularmente com a circunspecção dos meios. Praticamente todos os grandes giros da economia moderna no sentido centralizador e socializante do Estado previdenciário foram planejados por socialistas fabianos. Só para dar uma idéia do alcance da sua in�uência, os planos de governo de três dos mais poderosos — e dos mais estatizantes — dentre os presidentes dos , Roosevelt, Kennedy e Johnson, foram diretamente copiados de obras de autores fabianos e adotaram até seus títulos: o New Deal de Roosevelt é um livro de Stuart Chase, a New Frontier de Kennedy um livro de Henry Wallace, e a Great Society de Johnson um livro do próprio Graham Wallas. Malgrado seu estilo so, antes social-democrático que comunista, os fabianos sempre consideraram a uma valiosa aliada na sua luta contra o liberal-capitalismo. No fundo, ela foi bem mais que isso: desertores da informaram que pelo menos um dos livros de Sidney Webb, o mais célebre presidente da Fabian Society, não foi escrito por ele, mas veio pronto do Ministério das Relações Exteriores soviético. É compreensível. Muito antes de Gramsci, a também já havia descoberto as virtudes do gradualismo reformista que, pelo alto e no macio, socializa o mundo mais depressa do que poderiam fazê-lo alguns milhares de Ches Guevaras — os autênticos bois de piranha do único socialismo que sai sempre vencedor. A suprema vantagem do método discreto é que, quando os engenhosos planos estatizantes de intelectuais socialistas desconhecidos do povão fazem por �m pesar sobre o bolso das massas o custo imensurável da sua tolice, nunca faltam na praça intelectuais de esquerda radical, que, ignorando ou �ngindo ignorar tudo do trabalho de seus parceiros fabianos, lançam a culpa do desastre... no capitalismo liberal! Não veja a tua mão esquerda o que faz a tua direita, ensina a Bíblia. O socialismo tem a sua própria versão demoníaca desse ensinamento: não vejam as tuas massas barulhentas o que fazem os teus aliados silenciosos — e assim, não sabendo quem as oprime, elas descarregarão sua fúria no bode expiatório que melhor convenha à tua estratégia. Resta saber apenas se os nossos nacionalistas — sobretudo os das Forças Armadas — consentirão em reduzir-se ao papel de massas manipuladas. O Globo, 9 de junho de 2001 R, C Há menos negros na elite cubana que na brasileira Nunca houve no Brasil partido racista, militância racista, pregação racista, imprensa racista, comícios racistas, pan�etos racistas, �lmes racistas, programas de rádio ou peças de teatro racistas. Não obstante a total ausência de meios materiais de difusão, a ideologia racista, transmitindo-se por meios telepáticos, sutis e não identi�cados, parece ser um sucesso entre nós. A acreditarmos nas altas autoridades que opinam sobre a matéria, inclusive o presidente da república, este é um país barbaramente racista. Muitos intelectuais brasileiros vivem hoje de divulgar essa tese, encomendada e paga por fundações americanas, por motivos, decerto, puramente humanitários e de maneira alguma geopolíticos. Um dos argumentos decisivos alegados em favor dela é que negros e mulatos, constituindo a maioria da população, são minoria nas elites e nos bons empregos. A diferença de nível econômico-social entre comunidades raciais pode ter várias causas. Uma delas é que do �m da escravatura até o primeiro surto industrial brasileiro decorreram mais de 40 anos: a população negra e mulata cresceu vertiginosamente sem que aumentasse ao mesmo tempo o número de empregos. A industrialização, por sua vez, coincidiu com a chegada de imigrantes, que, com excelente formação pro�ssional, levaram a melhor no mercado de trabalho. Mas nunca se fez um estudo cientí�co que confrontasse as várias causas possíveis. Uma delas foi escolhidahoje o estofo moral para falar duro com a esquerda triunfante. Já o Sr. Moreira, que tudo deve a ela e que nunca lhe deu senão o brilho mundano da sua presença nas rodas de gente de bem, tem agora de justi�car retroativamente sua existência mostrando serviço. E que serviço, senão o mais baixo e infame, o serviço do intrigante e caluniador? Já de Dona Cecília nada sei, a não ser que preside uma entidade consagrada a deformar o juízo moral das pessoas, inoculando nele o vício de avaliar tudo com dois pesos e duas medidas. Cada palavra sua visa a bloquear a inteligência do público, impedindo-o de comparar discursos com discursos, atos com atos, �ns com �ns, meios com meios. O simples cotejo equilibrado seria letal a uma campanha que arrecada fundos dos �éis que converte ao maniqueísmo. Por isso, ao falar de guerrilheiros e militares, ela tem de confrontar os belos ideais dos primeiros com a violência crua dos meios empregados pelos segundos, sem nenhum direito ao vice-versa. Claro: ela já escolheu a priori os mocinhos e os bandidos, reservando aos primeiros o atenuante do relativismo histórico e aos segundos a sentença implacável da moral absoluta. Não vale, por exemplo, perguntar: se os heróis de Dona Cecília queriam a democracia, por que foram buscar apoio e inspiração ideológica em ditaduras incomparavelmente mais ferozes do que aquela que combatiam? Seriam eles idiotas ao ponto de imaginar que Fidel Castro ou Mao Tsé-Tung desejavam instaurar aqui a liberdade que haviam esmagado nos seus próprios países? Ou, ao contrário, eram apenas hipócritas como a própria Dona Cecília? Feitas essas perguntas, torna-se impossível recusar aos militares uma comparação justa. Por isso era preciso evitá-las, e nisto Dona Cecilia foi ótima. Mas mesmo uma mente astuta às vezes se trai. Após enaltecer os lances de guerrilha como expressões superiores do idealismo em contraste com a covardia da tortura, ela aponta, à guisa de prova suprema da maldade e baixeza dos militares, um típico lance de guerrilha: acusa-os de... jogar bombas. Não satisfeita com esse ato falho, ela se mela mais ainda no ridículo da mentira ao proclamar que tais bombas �zeram “centenas de mortos e desaparecidos". Dos mortos, ela cita o total de exatamente um: o próprio criminoso, o notório auto-explodido do Riocentro. Não podendo nomear mais nenhum, arredonda a conta com a evasiva “e desaparecidos". Mas que raios de bombas seriam essas, capazes de desmaterializar pedaços de cadáveres? Por escandalosos que sejam esses meios de argumentação, seu emprego é bem coerente com a �nalidade da campanha de Dona Cecília: despertar ódio unilateral a uma facção, amor devoto à outra, sem ter na mínima conta a lógica, a justiça ou a realidade. Por isso, ao acusar-me de “defesa da tortura" ela sabe que, como o Sr. Moreira, mente para mostrar serviço. E, quando se gaba do apoio internacional que recebe no exercício dessa sujeira, temos a certeza de que seus esforços são bem recompensados. O Globo, 13 de janeiro de 2001 O É aquele que descon�a que suas objeções já ocorreram ao autor — e já estão respondidas A precaução mais elementar, ao ler os escritos de um �lósofo, é lembrar que nossas objeções mais imediatas já devem ter-lhe ocorrido e podem estar respondidas, ao menos de maneira implícita, em alguma outra parte de sua obra. Um �lósofo é, a�nal, um especialista em unidade: raramente ele enunciará alguma proposição solta, sem raiz em princípios gerais e sem uma rede de conexões com a totalidade de suas idéias. Um bom leitor de �loso�a não se perde na discussão de detalhes isolados, mas, guiado por um instinto de coerência que já o torna um pouco �lósofo, busca por trás de tudo os princípios e fundamentos. Só as objeções desse leitor contam para o �lósofo. As demais são irrelevantes como tiros de espoleta, e ele só as responderá por polidez. Pela mesma razão, o �lósofo que publique artigos na imprensa tem o direito de supor que seus leitores, sabendo da existência de uma �loso�a por trás de cada opinião isolada, terão o bom senso de refrear suas objeções mais afoitas até captar melhor a posição dela no conjunto. Pois, para um �lósofo, nenhum assunto, por efêmero e casual que pareça, é solto e independente: cada um remete ao centro desde o qual tudo — ou nada — se explica. Se o leitor brasileiro não está habituado a essa precaução, é por um motivo muito simples: em geral os indivíduos autorizados pelo Estado a representar em público o papel de “�lósofos" não são �lósofos de maneira alguma, apenas professores e divulgadores, que não têm nem o dever nem a competência do olhar �losó�co. Tanto isso é assim que, quando aparece algum �lósofo de verdade, um Mário Ferreira dos Santos, um Vilém Flusser, alguém en�m capaz de pensar desde os fundamentos, a primeira coisa que fazem é considerá-lo um estraga- prazeres e abster-se religiosamente de prestar atenção ao que ele diz. Diante do que escrevem esses professores, não é preciso aquela precaução, porque eles não têm um quadro próprio de referência que deva ser conhecido: suas falas se recortam diretamente sobre o fundo comum das conversações públicas do dia e podem ser compreendidas pelo simples cotejo com ideologias, modas ou programas partidários. Mas tentar esse enfoque ante as opiniões de um �lósofo é cortar as próprias pernas, impedindo-se de chegar a conclusões ou objeções relevantes. É verdade que �lósofos — Gabriel Marcel, Benedetto Croce, Ortega y Gasset — escreveram artigos de jornal, mas nenhum deles logrou a proeza — ou teve a pretensão — de fazer de algum desses artigos uma peça autônoma, destacável do fundo de seu pensamento e passível de ser julgada por si. Autonomia é para romances, contos, poemas. Em �loso�a, toda expressão é provisória e requer o acúmulo praticamente interminável de esclarecimentos. Mas ao público brasileiro de hoje falta algo mais que a consciência disso. Falta o sentido mesmo da ligação orgânica entre as asserções e os argumentos que as embasam. Em �loso�a — e tudo o que um �lósofo escreve é expressão de sua �loso�a —, nenhuma proposição signi�ca nada quando considerada independentemente das razões que a ela conduzem. Nas discussões vulgares, ao contrário, cada a�rmação vale por si; os argumentos podem torná-la mais aceitável, mas nada lhe acrescentam: sobra-lhes apenas a função de �oreados enfáticos, destinados a sublinhar e colorir uma decisão tomada antes e independentemente deles. As idéias em circulação reduzem-se assim a meia dúzia de enunciados gerais simples, fórmulas estereotípicas em torno das quais não há mais discussão além da estritamente necessária para produzir, no mais breve prazo possível, um ardoroso “pró" ou um indignado “contra". Época, 13 de janeiro de 2001 U O Fórum Social Mundial seria apenas mais um festival internacional de exibicionismo esquerdista, sem nada de especial, se não se destacasse precisamente por este detalhe invulgar: é o mais descarado empreendimento de propaganda ideológica já �nanciado com dinheiro público neste ou em qualquer outro Estado brasileiro. É ilegal em toda a linha, e qualquer cidadão, mediante simples ação popular na Justiça, pode frustrar sua realização a qualquer momento. Não obstante sua pretensão de constituir um pendant esquerdista dos encontros periódicos de teóricos do capitalismo na cidade suíça de Davos, ele não passa de uma inversão caricatural do Fórum da Liberdade, realizado anualmente pelos liberais gaúchos com enorme sucesso. Entre os dois fóruns, no entanto, há três diferenças. Primeira: o da Liberdade é realizado dentro da lei, com dinheiro das contribuições voluntárias de participantes e patrocinadores. A segunda é que nele os convidados representam todas as correntes ideológicas — liberais, conservadores, nacionalistas, esquerdistas —, ao passo que sua versão “Social" é um Clube do Bolinha — ou da Luluzinha — onde só entram os ideologicamente corretos, o que marca precisamente a distância entre o debate e a propaganda. A terceira diferença é a mais signi�cativaa priori e o�cializada como única explicação permitida: a “discriminação". Os negros e mulatos �caram na pior porque somos todos uns malditos racistas e não lhes damos a mínima chance. Uma revista semanal chegou a anunciar “a prova de�nitiva" do racismo dominante: numa enquete, 90% dos entrevistados disseram que sim, que existe muito racismo no Brasil. Logo, provado estava. Não ocorreu aos editores ponderar que, se tantos diziam isso, era precisamente por serem contra o racismo e que os demais podiam ter negado a existência dele por julgá-lo coisa feia demais para existir aqui. Isso evidentemente inverteria a conclusão da pesquisa. Mas esse cuidado metodológico foi excluído in limine como preconceito racista — e a pesquisa chegou cienti�camente ao resultado premeditado. Desde então, consagrou-se como norma designar o fenômeno investigado pelo nome da causa a averiguar, �cando assim dispensada a averiguação e provada a discriminação racial. Os partidos de esquerda, sempre devotos da probidade cientí�ca, exultaram, adotando a denúncia do racismo brasileiro em seus programas eleitorais. Escrevo este artigo na piedosa intenção de sugerir que a retirem de lá imediatamente, porque descobri uma coisa temível: examinada pelo mesmo critério estatístico, Cuba é o país mais racista da América Latina. Com 60% de negros e mulatos na população em geral, só 10% de sua elite política não é branca. Fulgencio Batista era um ditador mulato rodeado de assessores mulatos. Pelo método cientí�co brasileiro, a conclusão se impõe: uma revolução racista branqueou o governo. Para piorar as coisas, Oscar Lopez Montenegro, um mulato que fugiu de Cuba e hoje distribui em Miami pan�etos contra o racismo cubano, informou ao Washington Times que, quando o governo de Fidel é pressionado pela opinião pública estrangeira para soltar prisioneiros, invariavelmente solta um branco. Outro exilado, Manuel Cuesta Morúa, diz que no Exército de Cuba não há generais negros. “Cuba é um país dirigido por velhos brancos", con�rma Juan Carlos Espinosa, diretor do Cuban Studies Center da St. omas University, em Miami. E Denis Rousseau, ex-correspondente da France-Presse em Havana, a�rma que a elite cubana está preocupadíssima com o aumento do número de mestiços na população. Logo, das duas uma: ou vocês param de denunciar o racismo brasileiro, ou param de louvar as qualidades excelsas da democracia cubana. Época, 9 de junho de 2001 A Sempre que os esquerdistas querem impor um novo item do seu programa, alegam que ele é a única maneira de curar determinados males. Invariavelmente, quando a proposta sai vencedora, os males que ela prometia eliminar são agravados. O normal seria que, em tais circunstâncias, a esquerda fosse responsabilizada pelo desastre. Mas isto jamais acontece, pois instantaneamente o argumento legitimador originário desaparece do repertório e é substituído por um novo sistema de alegações, que celebra o fracasso como um sucesso ou como necessidade histórica incontornável. Ninguém compreenderá nada da história do século — nem deste começo do — se não conhecer esse mecanismo de justi�cação retroativa pelo qual se leva o povo a trabalhar em prol de metas não declaradas, que o escandalizariam se as conhecesse e que por isto só podem ser atingidas pela via indireta da cenoura-de-burro. Alguns exemplos tornarão isso bem claro. 1) Quando o Partido Comunista lançou seu programa de destruição das instituições familiares “burguesas", consubstanciado no que mais tarde viria a ser a “liberação sexual", sua alegação principal, elaborada pelo Dr. Wilhelm Reich, era que homossexualismo, sado-masoquismo, fetichismo etc. eram frutos da educação patriarcal repressiva. Eliminada a causa, essas condutas desviantes tenderiam a desaparecer do cenário social. Bem, os últimos resíduos de valores patriarcais foram suprimidos da educação ocidental entre as décadas de 70 e 80, e o que se viu em seguida? A disseminação, em escala apocalíptica, daquelas mesmas condutas que se prometia eliminar. Obtido o resultado, essas condutas começaram a ser celebradas como saudáveis, dignas e meritórias, e toda crítica a elas passou a ser condenada — às vezes sob as penas da lei — como abuso intolerável e atentado contra os direitos humanos. 2) Quando a esquerda mundial começou a lutar pela legalização do aborto, um de seus argumentos principais era que o grande número de abortos era causado pela proibição, que facilitava a ação de charlatães, intrometidos e gente não habilitada em geral. A legalização, prometia- se, obrigaria a realizar o aborto em condições medicamente aceitáveis, portanto diminuindo o número de casos. Qual foi o resultado? No primeiro ano, o número de abortos nos subiu de 100 mil para um milhão e não parou de crescer até hoje. Pelo menos 30 milhões de bebês já foram sacri�cados, ao mesmo tempo que os apologistas da legalização, em vez de admitir a falácia do seu argumento inicial, festejam o fato consumado, tratando de marginalizar e criminalizar qualquer crítica ao novo estado de coisas. 3) Quando os esquerdistas norte-americanos inventaram a política de quotas e indenizações conhecida como affirmative action, alegavam que ela diminuiria a criminalidade entre a população negra. O�cializada a nova política, o número de crimes cometidos por negros contra brancos aumentou signi�cativamente, segundo estatísticas do . Que �zeram então os apóstolos da affirmative action? Reconheceram humildemente que reforçar o sentimento de identidade racial era alimentar preconceitos e con�itos de raça? Nada. Celebraram o aumento da hostilidade racial como um progresso da democracia. 4) Quando, querendo destruir a tradição norte-americana que considerava a educação um dever da comunidade, das igrejas e das famílias antes que do Estado, a esquerda norte-americana reivindicou a burocratização do ensino, um de seus argumentos básicos era que a delinqüência juvenil só poderia ser controlada mediante a ação educacional do Estado. Com Jimmy Carter, em 1980, os passaram a ter pela primeira vez um Ministério da Educação e programas de ensino uniformes. Duas décadas depois, a delinqüência entre crianças e adolescentes não apenas vem crescendo muito mais que antes, mas adotou como seu quartel-general as escolas públicas, hoje transformadas em áreas de risco, ao ponto de que no começo do ano a prefeitura de Nova York estava privatizando as suas por não ter meios de controlar a violência nelas. Em resposta, que faz a esquerda? Admite que errou? Não. Luta pela uniformização estatal do ensino em escala mundial. 5) No Brasil, a única maneira de diminuir a violência nas áreas rurais, proclamavam os esquerdistas, era dar terras e dinheiro ao . Pois bem, as terras foram dadas — foi a maior distribuição de terras de toda a história humana, com muito dinheiro atrás. A violência não diminuiu: aumentou muito. A esquerda confessa que errou? Não. Trata de organizar a violência e celebrá-la como a conquista de um novo patamar histórico na luta pelo socialismo. Os exemplos poderiam multiplicar-se ad in�nitum — e notem que propositadamente evitei mencionar os casos extremos, sucedidos no próprio âmbito dos países socialistas, como a coletivização da agricultura na , o Grande Salto para a Frente e a Revolução Cultural na China, a revolução cubana, etc. limitando-me a fatos sucedidos no mundo capitalista. A promessa salvadora trans�gurada em desastre e seguida da troca de discurso legitimador foi, em suma, o modus agendi essencial e constante da esquerda mundial ao longo de um século, e não se vê o menor sinal de que algum mentor esquerdista tenha problemas de consciência por isso. Ao contrário, todos continuam prometendo a solução dos males, ao mesmo tempo que já têm pronta, na gaveta, a futura legitimação dos males agravados. Prometem diminuir o consumo de drogas mediante a liberalização, controlar a corrupção mediante o “orçamento participativo", reprimir a delinqüência mediante o desarmamento civil ou mediante o“direito alternativo" Leninista que criminaliza antes a posição social do acusado do que o seu ato criminoso. Sabem perfeitamente aonde tudo isso leva — mas sabem também que ninguém os apoiaria se proclamassem em voz alta o que desejam. ..: O pedido de impeachment do governador Olívio Dutra passou pela Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia gaúcha. Vai a plenário. Mas a imprensa nacional continua ignorando o caso. O Globo, 16 de junho de 2001 C Quanto mais forte o comunismo se torna no Brasil, menos se pode falar dele Nunca no mundo se publicaram tantos e tão bons livros sobre o comunismo quanto nestes anos que se seguiram ao desmantelamento da urss. O motivo é óbvio: a abertura, ainda que parcial, dos Arquivos do Comitê Central do pcus, um tesouro inesgotável para os estudiosos. Não é de espantar que, rompida a barreira do segredo estatal, tantos investigadores se precipitem sobre os registros de um passado macabro para decifrar o que foi certamente um dos maiores mistérios da História humana: a genu�exão voluntária de milhões de homens cultos ante o altar de uma doutrina grotesca, assassina e intrinsecamente absurda. Todos os paradoxos, todas as contradições da alma humana se espremem e se fundem na composição desse mistério de iniqüidade: compreendê-lo para não reencená-lo é o dever número 1 de quem tenha assimilado a lição de Sócrates segundo a qual “uma vida não examinada não é digna de ser vivida". Mas o que espanta não é a onda mundial de curiosidade que fez de Moscou a meca dos historiadores. É o absoluto desinteresse que, no Brasil, se opõe à divulgação de suas descobertas. Mais que depressa, no começo dos anos 90, no Brasil o comunismo foi decretado coisa do passado, e quem se interessasse em relembrar- lhe os crimes e atrocidades se tornava suspeito de fanatismo macarthista, se não de obsessão monomaníaca merecedora de cuidados psiquiátricos. Esquecer, silenciar — ou na melhor das hipóteses despedir-se do assunto com meia dúzia de lugares-comuns aceitos como explicação de�nitiva — tornou-se uma lei natural a que somente os anormais poderiam furtar-se. Mas anormal, digo eu, é um cérebro capaz de julgar mera coincidência que essa década de esquecimento do comunismo fosse também a de maior expansão da in�uência comunista sobre os destinos do país. Não me re�ro só ao crescimento eleitoral da esquerda. Re�ro-me à conquista do monopólio da pregação política nas escolas (onde a hipótese de um discurso anticomunista é hoje inconcebível) e à consolidação de certos direitos morais adquiridos que são ostensivamente negados ao restante da população. Um movimento comunista abertamente violento é hoje aceito como parceiro do Estado sem precisar sequer de registro legal. Políticos comunistas podem associar-se a quadrilhas de tra�cantes sem ser jamais investigados. Grupos comunistas podem bloquear à vontade as vias de comunicação, sem que ninguém veja nisso um óbvio exercício de treinamento insurrecional. Com o apoio ostensivo do governo, os comunistas colocaram-se acima da lei e ainda detêm em suas mãos o monopólio quase completo dos meios de investigar, denunciar, julgar e condenar. Antes mesmo de ocupar nominalmente o poder, eles já se tornaram uma classe especial, uma nomenklatura onipotente, arrogante e intolerante. Em conseqüência, o simples ato de escrever uns artigos contra eles tornou- se um insulto, uma ameaça, um abuso insuportável. Eis aí a razão do desinteresse a que me referi. Há uma direta conexão de causa e efeito entre a proibição tácita de olhar o passado e a rapidez fulminante com que ele se repete diante de milhões de olhares sonsos que, não o conhecendo, não o podem reconhecer. O comunismo “saiu da moda" como as roupas que saem das passarelas para entrar no uso geral e cotidiano. Simplesmente foi preciso mantê-lo fora do horizonte de consciência nacional para que, sem ser incomodado por olhares inquisitivos, ele pudesse crescer à sombra da indiferença geral de suas vítimas. Por isso mesmo interpreto em sentido inverso os conselhos inibidores que me recomendam falar menos do comunismo para não parecer maluco ou fanático. Diante da grande tragédia que se prepara, só um observador morbidamente intimidado se absteria de tocar no assunto para não dar a impressão de estar vendo coisas. E, sinceramente, não vale a pena se deixar enlouquecer por mera obsessão de parecer normal. Época, 16 de junho de 2001 E N.B.: Aviso à parte não gaúcha do universo: O Sr. Luiz Inácio Lula da Silva é, tanto quanto eu, articulista da Zero Hora de Porto Alegre. Por uma ironia involuntária da diagramação, seu artigo é sempre publicado nas costas do meu. — O. de C. Meu vizinho aí da página de trás, que nela desfruta as delícias da liberdade de imprensa como eu as desfruto aqui, é, como ninguém ignora, candidato crônico à presidência da república e corre o sério risco de ser eleito — um mal que, se aconteceu até a um professor da usp, pode acontecer a qualquer um de nós. Em vista dessa eventualidade, pensei se não seria o caso de tirar um sórdido proveito da proximidade quase indecorosa que nos une na mesma folha de papel e lançar-lhe de chofre, através desta tênue barreira de celulose, umas quantas perguntas que, se ele não me responder agora, muito menos responderá depois de eleito. A primeira é formulada no meu interesse próprio. Prezado Sr. Inácio: uma vez presidente, o senhor vai deixar que eu continue escrevendo que o senhor é um comunista, bajulador de regimes genocidas, friamente insensível à sorte de cem milhões de vítimas imoladas no altar de uma ideologia bem parecida com a sua, ou vou ter de mudar de assunto? A segunda, faço-a no interesse geral. O senhor, que é socialista, já disse que nada tem contra o capital estrangeiro. Lenin, que não o era menos, também não tinha. Muito menos têm os atuais governantes da China, que provaram por a + b a compatibilidade de uma sangrenta ditadura comunista com os interesses dos grandes investidores ocidentais e vice-versa. Quando o senhor diz que o regime da China é um exemplo para o Brasil, é disso que o senhor está falando? Se não é, então a que raio de China está se referindo? Existe outra? Terceira. Quando uns militantes da quiseram atravessar a fronteira para fazer manifestações políticas ilegais em solo argentino e foram barrados na fronteira, choveram protestos da esquerda nacional. Agora, quando foram barrados os dez jornalistas que o acompanhavam à China para o simples desempenho de suas legalíssimas funções pro�ssionais, tudo o que o senhor fez foi lamentar a falta de cobertura da sua viagem, sem emitir um pio, um gemido, um “ai" sequer contra o ostensivo cerceamento da liberdade de imprensa. O senhor já pensou no que aconteceria se os repórteres fossem impedidos de entrar, não na China comunista, mas no Chile de Pinochet? Já imaginou os editoriais coléricos, as lágrimas de indignação, as vigílias cívicas na ? Já imaginou, sobretudo, o que o senhor próprio diria, mesmo levando em conta que a proporção entre os crimes de Pinochet e os do regime chinês é de um para vinte mil? O senhor não acha mesmo que sua duplicidade de pesos e medidas já está dando na vista? Quarta. Vamos falar um pouco do seu virtual antecessor. O senhor sabe que o papel dos governantes na história não é assinalado por seus erros ou acertos passageiros, mas pelas mudanças duradouras que imprimem no rumo das coisas. O senhor sabe que o controle da in�ação, que o governo alardeia como sua grande obra, é coisa efêmera como bolha de sabão. Sabe que as privatizações mal feitas ou uma política econômica errada de alto a baixo também são males transitórios, podendo ser corrigidos pelo próximo governo. De tudo o que fez, só uma coisa é irreversível: a distribuição de terras e dinheiro ao , que esse movimento não vai devolver nunca mais. O senhor sabe perfeitamente que, se o não plantar aí um único pé de feijão, mas decidir usar as terras para �ns estratégicos totalmente alheios à agricultura,o governo não terá a mínima condição de tomar tudo de volta, pois ele próprio transformou essa entidade, que não tem nem registro legal, num poder territorial, político e econômico incontrolável. O senhor sabe que, pela sua própria estrutura — nem sindical, nem partidária, nem paramilitar, nem empresarial, nem burocrática, mas sim um pouco de tudo isso ao mesmo tempo —, esse movimento é rigorosamente indiscernível dos sovietes da Rússia pré-revolucionária. Dar poder a essa coisa, com as terras dos outros e o dinheiro do governo, foi no �m das contas a realização máxima e essencial do presidente . Dito isto, vem a pergunta: o senhor acha que poderá fazer mais do que ele fez em prol da revolução socialista? Olhe lá o que vai responder! Veja bem que nem Lenin teve na sua folha de realizações um feito de tal envergadura, pois a�nal já encontrou os sovietes prontos. O senhor tem certeza de que uma gestão socialista “de transição pací�ca" depois de não será um redundante videotape? São essas as perguntas. Peço que o senhor não as interprete como provocações de um adversário. Não sou seu adversário. Até votei no senhor — é verdade que após tomar três engoves — para não ter de votar no Collor. Talvez até vote de novo, nas próximas eleições, dado que seu concorrente principal, José Serra, é um antitabagista fanático que ameaça proibir o fumo até ao ar livre, e eu conto com a sólida aliança de interesses entre o petismo nacional e a indústria cubana de tabacos para me garantir o direito de fumar na cadeia. Dito isso, encerro esta nossa amável conversa e dirijo-me aos demais leitores, para tranqüilizá-los. Não, amigos, não temam pela minha segurança. No Brasil socialista, a cadeia será provavelmente o lugar mais seguro, pois todos os membros do terão sido retirados de lá para ocupar cargos na nomenklatura, e a população carcerária do país será constituída de apenas duas pessoas: eu e o embaixador Meira Penna. E o embaixador, coitado, nem sequer fuma. Zero Hora, 17 de junho de 2001 O Uma classe empresarial que, incapaz de criar a militância de massas adequada à defesa de seus interesses e projetos, se alia no último momento a um partido revolucionário na esperança de que este a proteja é, evidentemente, uma classe possuída pelo desejo de morrer. As racionalizações que seus mentores possam conceber para legitimar essa aposta suicida só comprovam o estado de completa alienação a que chegaram. Dessas racionalizações, a mais deplorável é aquela que os leva a imaginar que, se agora o suspeitíssimo aliado necessita da sua ajuda �nanceira para conquistar o Estado, continuará a necessitar dela após tê-lo conquistado; a imaginar que, se hoje podem negociar com ele como detentores do poder econômico, poderão manipulá-lo amanhã mediante o uso do mesmo instrumento. Mostram, nisso, uma total incompreensão da natureza do próprio poder econômico. Sobretudo, uma fatal ignorância de suas fraquezas e limitações congênitas. A forma mais elementar e mais essencial do poder é o poder da violência, o poder de agredir, de matar, de intimidar �sicamente. Só esta, uma vez possuída em plenitude, age autonomamente e se impõe por seus próprios meios, não apenas dispensando o concurso de quaisquer outros, mas forçando-os a servi-la se necessário. Todas as demais formas de poder, o econômico sobretudo, nada são e nada podem sem a mediação do poder armado que os garante. Que é, a�nal, “possuir" uma riqueza? Não é deter �sicamente e pessoalmente o domínio sobre objetos materiais. É exercer o domínio legal sobre o uso de determinados bens e valores. “Legal", aí, quer dizer: reconhecido e protegido por um poder armado, capaz de remover os obstáculos ao exercício do direito de possuir. O poder econômico é, pois, um poder indireto e de segundo grau, um poder que jamais é fundamentum sui, um poder que visceralmente depende de outro para se exercer e subsistir. É, de certo modo, um poder simbólico e evanescente, que sem a proteção do poder armado se dissipa, de repente, como um sonho. Um caso bem triste ilustrará o que digo. Um dos mais prósperos empresários rurais de Cuba, nos anos 50, era amigo de infância de Fidel Castro e inimigo �gadal de Fulgêncio Batista — um ditador que, convém jamais esquecer, chegara ao poder com o apoio do Partido Comunista. Desde os primeiros momentos da revolução, esse homem estendeu seu generoso apoio aos barbudos de Sierra Maestra. Chegou a montar em sua fazenda um hospital clandestino para socorrer os combatentes �delistas feridos em batalha. Vitoriosa a revolução, retirada a máscara democrática do novo regime e assumida em público a identidade comunista de Fidel Castro, ainda assim o rico cidadão continuou a apoiar o velho companheiro. Sua con�ança nele só foi um pouco abalada quando o comitê revolucionário começou a fuzilar indiscriminadamente os o�ciais das Forças Armadas, muitos deles limpos de qualquer compromisso com o governo caído. Um dia, quando chegaram à fazenda notícias do fuzilamento iminente de certos coronéis que eram amigos comuns de Fidel e do nosso personagem, a esposa do fazendeiro achou que podia interceder junto ao governante em favor dos condenados, em nome dos velhos tempos. A resposta de Fidel foi mais ou menos a seguinte: — Em nome da gratidão e da amizade, concederemos a vocês o direito de sair para Miami amanhã, num avião militar. Cada um poderá levar US$ 20 e a roupa do corpo. O homem terminou seus dias como garçom em Miami. Seu �lho, que entrou para o Exército norte-americano e chegou a o�cial, contou esta história ao advogado José Carlos Graça Wagner, que a contou a mim. Posso ter errado em detalhes, mas, em essência, a reprodução do relato é �el. O poder econômico, por nada ser sem a proteção do poder armado, necessita da ordem jurídica, da paz e da tranqüilidade como do ar que respira. No Estado de Direito, a força de agressão física, monopólio do Estado, não pode se exercer sem uma série de mediações jurídicas, políticas, morais e consuetudinárias que, atenuando sua crueza, a tornam permeável ao diálogo, às negociações, aos acordos e às transigências. É só então que o poder econômico avulta em importância e, mediante o uso inteligente de seus meios de barganha, pode chegar a in�uenciar e até a determinar o rumo das coisas na sociedade. Abalada a ordem por uma precipitação revolucionária, o poder econômico reduz-se ao poder de o rico desarmado pedir misericórdia ao sargentão armado, ao comissário-do-povo armado, ao armado ou a qualquer das outras versões em que a brutalidade militante possa ter-se encarnado no cenário macabro da recorrente alucinação messiânica em que se transformou a história dos tempos modernos. O poder econômico, portanto, só tem força de barganha com o revolucionário enquanto este não chega ao poder. Depois, bem, o depois já foi narrado milhares de vezes por uma multidão de exilados que um dia foram ricos em Havana antes da chegada de Fidel, em Berlim antes da chegada de Hitler, em Petrogrado antes da chegada de Lenin ou em Pequim antes da chegada de Mao. É difícil os ricos entrarem no reino dos céus. Mas mais difícil ainda é saírem vivos do paraíso socialista. Jornal da Tarde, 21 de junho de 2001 D Já assinalei mil vezes, em cursos e artigos, mas igualmente em vão em ambos os casos, esse traço inconfundível do leitor brasileiro atual, sobretudo universitário, que é a incapacidade de discernir entre a expressão de um estado emocional e a referência a um fato percebido. O que quer que um autor diga é interpretado sempre como manifestação de seus desejos, gostos, preferências, ódios e temores, e nunca como descrição adequada ou inadequada de um dado do mundo objetivo. Nos termos da teoria clássica de Karl Bühler, a linguagem é reduzida à sua função expressiva, com exclusão da denominativa. Isso con�gura nitidamente um quadro de analfabetismo funcional. O que hoje se chama “ensino universitário" neste país consiste essencialmente na transmissão sistemática dessa incompetência àsnovas gerações. Se é verdade que a incapacidade de compreender o que se lê é um sinal de educação de�ciente, então a quase totalidade da educação superior tal como praticada no Brasil deve ser condenada, simplesmente, como propaganda enganosa. Esse estado de coisas não resulta apenas da “má qualidade", genérica e abstratamente. Ele vem de um aglomerado de in�uências culturais bem ativas, constituído de marxismo gramsciano, psicanálise, relativismo antropológico, nietzscheanismo, desconstrucionismo, mais teoria dos paradigmas cientí�cos de omas S. Kuhn. O sincretismo dessas in�uências, que hoje constitui a típica atmosfera ideológica do nosso ambiente universitário, tem sobre as inteligências juvenis um efeito embrutecedor e paralisante, agravado pelos cacoetes do vocabulário “politicamente correto" que se impõe como idioma obrigatório das discussões pretensamente letradas. Cada uma dessas correntes, considerada individualmente, se caracteriza por ser uma hipótese limitada e provisória, elaborada dentro de categorias que só se aplicam a classes de objetos muito determinados e fundada numa base empírica muito estreita. Mas o efeito conjugado delas, na exclusão de quaisquer outras in�uências culturais de maior envergadura que pudessem relativizá-las e reduzir cada uma ao tamanho que lhe é próprio, é produzir no estudante uma falsa impressão de universalidade que lhe dá a ilusão de estar muito bem orientado no horizonte maior da cultura, justamente no instante em que suas perspectivas se comprimem até à medida do provinciano e do gremial. Nenhuma dessas correntes, e muito menos a soma delas, tem a universalidade necessária para poder constituir a base de uma educação superior. Para quem já viesse do curso secundário com essa base, o estudo delas poderia ser útil, à guisa de tempero crítico e contrapeso relativizador. O que não se pode é admitir uma bagagem cultural constituída apenas de contrapesos ou uma alimentação constituída somente de temperos. É precisamente essa falsa bagagem e esse falso alimento que hoje formam a substância mesma da educação superior no país. Quando me re�ro a base, o que quero dizer é o conhecimento dos dados fundamentais da civilização e a aquisição de um quadro de referências histórico-cultural su�cientemente amplo. Isto só se adquire pela absorção do legado grego, cristão-medieval, renascentista e moderno, de preferência encaixado no panorama maior das culturas antigas e orientais. Na mente que possua essa base, aquelas modas culturais ingressam como acréscimos de detalhe que podem exercer um efeito vivi�cante sobre a visão do conjunto. Sem base, os detalhes, boiando soltos no vazio, acabam por constituir um Ersatz de totalidade, preenchendo com opiniões genéricas e frases de efeito o espaço que deveria estar repleto de conhecimentos positivos. A deformidade intelectual daí resultante faz da mente do estudante brasileiro uma caricatura grotesca da inteligência humana. Caracterizam-na a completa falta do senso das proporções, a quase impossibilidade de distinguir entre forma e matéria, a ênfase obsessiva em detalhes de ocasião, a completa cegueira para as contradições mais patentes. Um exemplo é a transformação que o relativismo sofreu ao tornar-se moda nos nossos círculos acadêmicos. Ele já não é mais aquela precaução elegante que buscava compensar a unilateralidade das a�rmações mediante o reconhecimento da verdade ao menos parcial das suas contrárias. É um ceticismo ou negativismo militante, fanático, agressivo, irracional, que a�rma peremptoriamente a inexistência de quaisquer verdades objetivas e tem um acesso de cólera sagrada à menor cogitação de que alguma talvez exista. Não há nada mais ridículo do que um relativista que se apega ao relativismo com fé dogmática e rejeita como tentação demoníaca a possibilidade de que alguma a�rmação talvez seja menos relativa que as outras. O efeito desse hábito sobre a inteligência é devastador. Não existindo verdades objetivas, a linguagem só pode ser compreendida como expressão de estados subjetivos — mas não ocorre jamais aos viciados nesse enfoque a idéia de que também sua apreensão dos estados subjetivos alheios não poderia, nesse caso, ser uma percepção objetiva mas somente a projeção dos seus próprios estados subjetivos. O alardeado “pensamento crítico", em tais circunstâncias, torna-se apenas um tiroteio cego de imputações projetivas que se ignoram, até o ponto de que o “objeto" em discussão, reduzido a mero pretexto de a�rmações da vontade, desaparece completamente de vista. A possibilidade de uma “argumentação" é aí evidentemente nula, e o único fator decisivo que condiciona a vitória ou derrota nas discussões é a maior ou menor capacidade de impressionar mediante uma performance psicológica mais exibicionista e mais insana, e por isto mesmo mais de acordo com as expectativas doentias da platéia. O ambiente dessas discussões é evidentemente psicótico, e a aquisição desta psicose é hoje considerada não apenas um sinal de cultura, mas um requisito indispensável para o cidadão ser aceito como pessoa normal no ambiente universitário. A formação superior, nessas condições, consiste em passar da ignorância natural à inconsciência militante e desta à onipotência cega que culmina na loucura. O Globo, 23 de junho de 2001 B É o que a gente faz quando aceita falar respeitosamente do comunismo Não há insolência maior nem mais pér�da armadilha verbal que exigir daquele que combate o comunismo que o faça “em tom respeitoso". Vou lhe mostrar o que acontece quando você, por medo de ser chantageado em nome de supostas regras de polidez do debate democrático, cede a essa exigência. Logicamente falando, só há dois motivos possíveis para continuar respeitando uma ideologia depois que ela matou 100 milhões de pessoas: ou você admite que esse resultado letal foi um desvio acidental de percurso, um detalhe supér�uo na evolução histórica de um lindo ideal, ou parte logo para a legitimação ostensiva do genocídio. Ou você defende o marxismo mediante a supressão do nexo essencial entre fatos e idéias que é a própria base dele, ou o enaltece mediante um argumento que faz dele uma apologia do crime. No primeiro caso, você é um idiota; no segundo, é um monstro de amoralidade e frieza. Não há como escapar dessa alternativa quando se aceita apostar 100 milhões de vidas num ameno e respeitoso joguinho de idéias. Tão logo entra nisso, com boa-fé e sem se dar conta das implicações morais de sua decisão, você se desliga de sua consciência profunda — que percebe essas implicações perfeitamente bem — e passa a raciocinar só com a periferia de seu ser pensante. Rompido o elo entre o coração e a máquina de tagarelar, você já é um esquizóide ao menos honorário: e quando a patologia adquirida começa a se manifestar em sintomas — um sentimento de culpa difusa, um medo sem razão, umas inibições súbitas e inexplicáveis — você já não tem a menor condição de saber de onde eles vieram. Todas as neuroses, dizia Igor Caruso, são produzidas pela repressão da consciência moral, da voz interior que nos indica o sentido profundo de nossas escolhas e a lógica implacável de suas conseqüências. Quando você sufoca a voz da consciência, é essa lógica que você expele de seu horizonte de visão. Por não querer arcar com o peso da escolha moral consciente, você entrega as rédeas de seu destino à mecânica do inconsciente — ou ao primeiro que, em torno, deseje pegá-las. E quem mais desejaria pegá-las que o manipulador que sonha em conduzi-lo pela argola do nariz, como um boi sonso, a transigências e complacências que lúcido e consciente você não poderia aceitar de maneira alguma? Então, ao admitir que matar ou não matar 100 milhões de pessoas é apenas uma livre escolha entre “linhas ideológicas", você já nem pode se dar conta de que isso é o mesmo que um assassino declarar que entre ele e sua vítima nada mais se passou que uma divergência quanto à interpretação do Código Penal. Contra essa insinuação, subentendida na exigência acimareferida, é preciso reiterar com todo o vigor: a condenação do comunismo não é um ato político ou ideológico, é um ato moral. Não é livre escolha, é obrigação elementar e indeclinável como a condenação do nazismo e do fascismo. A moral transcende in�nitamente a esfera das ideologias e dos jogos de poder. Submetê-la a essa esfera é prostituí-la, e ninguém a prostitui mais que o comunista que, após tê-la assim subjugado, alardeia querer “ética na política", com uma piscadela maliciosa ao círculo dos iniciados que sabem aonde ele quer chegar com isso. Contra esse jogo é preciso não esquecer jamais que comunismo é genocídio. É genocídio na teoria, é genocídio na estratégia, é genocídio na prática historicamente conhecida e é genocídio nos métodos atuais com que subsiste em Cuba, se fortalece na China e se propaga na Colômbia. É genocídio na apologia da violência por Karl Marx, na técnica Leninista do terror sistemático, na arquitetura Stalinista e maoísta do Estado-presídio cuja máxima e�ciência, segundo técnicos da , foi alcançada em Cuba. O comunismo prega o genocídio, justi�ca o genocídio, orgulha-se do genocídio e, onde quer que tenha reinado, sempre viveu do genocídio. Discuti-lo respeitosamente é admitir que exista o direito moral à propaganda do genocídio. É Época, 23 de junho de 2001 L Quando Hannah Arendt disse que a ambição das ideologias revolucionárias não era criar uma sociedade melhor, mas mudar a natureza humana, ela pôs, sem dúvida, o dedo na ferida. A facilidade com que os apóstolos do futuro melhor aceitam e legitimam o fato bruto da injustiça, da opressão e do genocídio nas sociedades criadas por eles próprios contrasta pateticamente com sua revolta e indignação contra meras idéias abstratas, símbolos e valores culturais de outras sociedades. Mesmo hoje, após a revelação de todos os crimes históricos da sua revolução, parece-lhes menos urgente denunciar o ininterrupto morticínio estatal chinês ou desmontar a máquina letal da narcoguerrilha do que destruir a linguagem e os valores de sociedades que, se têm lá sua quota de males e desvarios, nunca foram genocidas nem totalitárias. É que nessa linguagem e nesses valores, às vezes milenares, se incorpora o seu inimigo por excelência: a natureza humana. No empenho de destruí-la, qualquer pretexto, por mais mesquinho que seja, serve para impor uma nova semântica que force os seres humanos a sacri�car suas percepções e sentimentos espontâneos no altar da moda politicamente elegante. Realidades naturais conhecidas há milênios são então relativizadas como “criações culturais", enquanto palavras de ordem fabricadas ainda ontem são impostas como expressões da natureza eterna e auto-evidente. Por exemplo, o simples fato de que algumas pessoas possam mudar de aparência mediante cortes, suturas e enxertos de silicone já basta para rebaixar a “estereótipos" as diferenças sexuais que qualquer animal reconhece à primeira vista. Não espanta que, nessa rebelião contra a natureza das coisas, uma dose considerável de ódio revolucionário se lance sobre o mais universal dos princípios: o princípio lógico e ontológico da identidade. O abismo de inconsciência em que isso pode mergulhar a espécie humana é imensurável. Para dar uma idéia aproximada do perigo, peço ao leitor que tenha a boa vontade de acompanhar nas próximas linhas uma breve demonstração um tanto “técnica". A ambição de construir uma lógica paradoxal, alheia ao princípio de identidade, só pode se realizar na hipótese de que o próprio discurso em que se enunciam as regras dessa lógica �que imune à exigência de decidir se é regido pelo paradoxo ou pela identidade. Este é pois um caso especial daquela “proibição de perguntar", que, segundo Eric Voegelin, fundamenta tantas doutrinas modernas, �losó�cas no vocabulário e na forma aparente, anti�losó�cas no fundo e no espírito. Se enunciamos o princípio de identidade pela proposição x, segundo a qual = , e o da lógica paradoxal pela proposição y, segundo a qual ≠ , então podemos perguntar se a própria proposição y é ou não igual a ela mesma. No primeiro caso, o conteúdo da proposição é impugnado pela possibilidade mesma de enunciá-la: só podemos enunciar a proposição y, segundo a qual ≠ , porque sabemos que y = y, isto é, que a proposição, considerada por sua vez como possível sujeito de proposições, é uma exceção à regra pretensamente universal que ela própria enuncia. No segundo caso, y ≠ y, e portanto y, ao declarar que ≠ , a�rma precisamente que = , de modo que a suposta lógica paradoxal não é paradoxal de maneira alguma e sim é apenas um disfarce verbal da boa e velha lógica de identidade. Mais gravemente ainda, a auto-supressão da lógica paradoxal se estenderia até mesmo aos sinais = e ≠, os quais, não podendo ser iguais a si mesmos, teriam de ser iguais a seus contraditórios, mas nem isto poderiam ser de maneira �rme e constante, já que, a cada vez que se a�rmasse que um deles é o outro, esta mesma a�rmação, no ato, se trans�guraria na sua contraditória. Para ser possível, a lógica paradoxal exige portanto que ela própria jamais seja examinada — nem à luz de suas próprias regras, das quais sua enunciação constitui imediatamente o desmentido, nem à luz da lógica de identidade, que ela impugna. A lógica paradoxal só pode ser concebida com base numa proibição de examinar. Não é uma lógica, é um ato de magia evocatória que, instaurando-se por um ukase (para quem não sabe: decreto do tzar), subsiste pela obediência atônita daqueles que estejam dispostos a submeter-se a todas as humilhações por puro ódio ao princípio de identidade. O efeito paralisante que esse tipo de jogo mental exerce sobre a intuição lógica é manifesto. Quem quer que admita levar a sério um discurso lógico que só pode ser sustentado contra a própria intuição direta das condições reais em que o discurso é enunciado consente em tornar-se cobaia de um exercício de esquizofrenia experimental, que, tornado hábito, resultará na completa ruptura entre pensar e conhecer. Vale a pena submeter-se a esse risco em nome de rancor extravagante e arti�cioso voltado contra um princípio abstrato? Para atinar com a inspiração gnóstica e demoníaca da qual nasce a tentação de expor-se a esse risco, basta lembrar aquilo que Schelling, um grande �lósofo não inteiramente isento de contaminação gnóstica, mas sincero e limpo demais para não rejeitar in extremis a “morte de Deus" a que ela conduz inelutavelmente, declarou a respeito: “Não desprezeis o princípio de identidade, porque, bem compreendido, o princípio de identidade é Deus". Não há desvario a que o ódio a Deus não possa conduzir, seja na esfera do totalitarismo político, seja na do totalitarismo intelectual, mais inofensivo só em aparência. ..: Nunca me encontrei com Evandro Carlos de Andrade. Toda a convivência que tive com ele foi por e-mail e telefone. No entanto, se existiu na imprensa brasileira alguém que ajudou a restaurar minha con�ança na dignidade da pro�ssão jornalística, foi ele. Foi ele que, no confronto desigual entre os mandarins da e um ilustre desconhecido, em 1995, abriu generosamente o espaço do Globo para que a parte mais fraca se defendesse e acabasse obtendo, em resultado, a mais improvável das vitórias. Nunca me esqueci dessa demonstração de exemplar decência, a que se seguiram muitas outras, consolidando minha admiração por um colega distante cuja �sionomia, até agora, nem sequer imagino. Goethe a�rmava que três qualidades resumem o dever do homem sobre a Terra: ser digno, prestativo e bom. Evandro não apenas foi tudo isso, mas soube sê-lo para com um desconhecido, do qual nada podia esperar. Época, 30 de junho de 2001 L O abuso da palavra so�sma tornou-se hábito consagrado nos debates nacionais Dois instrumentos usuais da patifaria intelectual são o entimema erístico e o so�sma. Entimema é um silogismo do qual uma das premissas, considerada óbvia ou de domínio público, vem omitida. Por ser leve e prestar-se bem à expressãoliterária, é o meio preferencial da persuasão retórica, a argumentação jornalística por excelência, que, não podendo demonstrar o certo ou o razoável, se contenta com o verossímil, isto é, com aquilo que, por a�nar-se com as crenças do público, é aceito como verdadeiro sem maiores discussões. O verossímil, com freqüência, é também verdadeiro, mas às vezes não o é. O único meio de testá-lo é explicitar a premissa oculta, transformando o entimema num silogismo completo. Ao fazer isso, não raro descobrimos que a premissa oculta não era óbvia nem de domínio público, mas sim alguma estupidez infame, encoberta para poder extorquir a anuência sonsa da platéia distraída. Neste caso o entimema é dito erístico: erística é a arte da argumentação capciosa, a retórica pervertida dos charlatães. Já o so�sma é um silogismo aparentemente perfeito, mas construído sobre premissas falsas difíceis de impugnar ou ardilosamente desviado na passagem crucial das premissas à conclusão. Um público afeito à discussão vulgar, mas sem treino �losó�co especí�co, engolirá sem a menor objeção doses maciças de entimemas erísticos, porém, diante de qualquer raciocínio lógico mais elaborado, facilmente será persuadido a armar-se de descon�ança caipira e a rejeitar como “so�smas" as provas mais sérias e fundamentadas, pelo simples fato de serem mais sutis que seu alimento discursivo habitual. Daí a freqüência com que o rótulo de “so�sma" é usado levianamente pelos patifes para impugnar qualquer raciocínio que leve a conclusões que os desagradem. Nesses casos, caracteristicamente, jamais a acusação de so�sma vem acompanhada da devida indicação dos erros que a justi�cariam. Ou o rótulo vem sozinho, solto no ar como uma fórmula mágica, na esperança de que exerça automático efeito difamatório, ou sustenta-se em alegações que nada têm de uma refutação em regra e não passam em geral da expressão sumária de uma opinião antagônica à do argumento rejeitado, isto quando não são, elas próprias, entimemas erísticos da mais baixa qualidade. So�sma é termo técnico de lógica e seu uso legítimo requer a explicitação dos erros sofísticos correspondentes. Se, em vez disso, alguém o emprega informalmente como �gura de linguagem, só pode ser para rebaixar como so�sma algo que não é so�sma. Um exemplo recente é o do jovem redator de editoriais num grande jornal, que, nomeando-me “rei do so�sma", dispara sobre mim a seguinte cobrança: “Por que, em vez de quanti�car o placar das mortes, Olavo de Carvalho simplesmente não condena todas as ditaduras (chinesa, cubana, brasileira, chilena etc.)?". Bem, a resposta é que não faço isso porque regimes de força que matam 300 pessoas em 20 anos, como a ditadura militar brasileira, e regimes que matam 3.200 pessoas por dia — tal foi a média da China comunista — simplesmente não são espécies do mesmo gênero, malgrado a comunidade do nome que os designa. O termo “ditadura", indicando uma estrutura formal de governo e não o concreto modus agendi pelo qual esse governo se impõe e se mantém — numa gama de opções que vai do simples golpe parlamentar ao holocausto —, não dá conta de uma diferença essencial. Correspondendo à de autoritarismo e totalitarismo, essa diferença é consagrada na distinção entre homicídio e genocídio, entre a violência esporádica e a extinção planejada de uma raça, classe ou nação. Deduzir da pura coincidência de nomes a identidade de fenômenos tão diversos é óbvia trapaça erística, tanto mais perversa se usada para legitimar o nivelamento moral de males incomensuráveis, clássico expediente erístico da propaganda totalitária. Época, 30 de junho de 2001 D Um dos exemplos mais estonteantes da vigarice que domina a cultura moderna é a atitude do establishment acadêmico ante a psicanálise: pois, ao mesmo tempo que lhe nega todo estatuto de ciência, celebra a explicação psicanalítica do fenômeno religioso como uma vitória da ciência sobre a superstição. Ou seja: as investigações que a psicanálise realiza no seu próprio domínio especializado não são cientí�cas, mas miraculosamente o são as conclusões que ela tira delas para o remotíssimo campo da história cultural. É como um cliente sem fundos no banco acreditar que seu saldo negativo pode ser investido no mercado de ações. Tamanha intrujice não poderia ser admitida num cérebro humano normal sem a ajuda daquela cegueira especí�ca que se chama viés ideológico: a necessidade de apostar na mentira para justi�car uma opinião anteriormente assumida. No caso, essa opinião é a que identi�ca ciência com materialismo, religião com fantasia e superstição. Quando uma doutrina não cientí�ca parece sustentar esse dogma, ela adquire retroativamente o estatuto de cientí�ca, mesmo entre aqueles que sabem que de cientí�co ela não tem nada. Esse joguinho de esconde-esconde pelo qual uma consciência comodista �nge que não vê aquilo que vê perfeitamente bem é hoje o padrão mesmo da mentalidade do mundo acadêmico. A prestidigitação que legitima a psicanálise da religião é só um exemplo. Outro é a sucessão de “releituras" com que se arranjam ex post facto signi�cações mais aceitáveis para teorias desacreditadas. Os intelectuais marxistas vivem disso — e, pior ainda, crêem que é uma atividade perfeitamente respeitável. E não é preciso mencionar a legião de estruturalistas, desconstrucionistas, adeptos da estética-da-recepção e outros pelo gênero, que já tratam de introduzir a ambigüidade na própria formulação originária de suas doutrinas, prevendo a inevitabilidade das futuras acomodações semânticas. Quem busque medir a extensão dominada por charlatães, vigaristas, palhaços e loucos furiosos no mundo acadêmico veri�cará, com espanto, que ela não apenas supera o perímetro ocupado pelos pesquisadores sérios, mas também abrange as áreas mais elevadas e valorizadas do terreno: os farsantes não se encontram predominantemente entre os cientistas e docentes anônimos, mas entre os nomes de maior destaque em cada área. É evidente que uma parte da culpa por esse estado de coisas não cabe à instituição acadêmica, mas à mídia, à indústria editorial e ao show business. É a caixa de ressonância das “classes falantes" que dá a certos sujeitos um destaque que eles jamais obteriam no seu estrito meio pro�ssional e os eleva à categoria de “fenômenos culturais". Os instrumentos de difusão estão precisamente nas mãos daquele típico semi-intelectual ou pseudo-intelectual que, não dominando nenhum ramo do conhecimento, busca em vez disso dominar a opinião pública. Secretamente consciente de sua inépcia, ele consola-se dizendo que não tem tempo de tentar conhecer a realidade porque está ocupado em transformá-la. Não é de espantar que, de tudo o que se estuda e se discute na esfera acadêmica, esse tipo colha — e portanto divulgue — preferencialmente aquilo que se parece com ele. Daí que as idéias que alcançam maior repercussão não sejam as melhores, as mais consistentes, as mais verdadeiras, porém as mais “fecundas", as mais “revolucionárias", isto é, aquelas que podem produzir mais discussões insensatas no plano intelectual e mais agitação sem propósito na vida social. O establishment acadêmico pode, com razão, alegar que nada disso é culpa sua, e sim do pseudo-intelectual que domina a imprensa cultural e forja o “espírito do tempo". Mas esse personagem é, por sua vez, produto do ensino universitário. Quanto mais se expandem as universidades, menor é o contingente de estudantes diplomados que vão para a pesquisa séria e maior o dos que saem para a “indústria cultural", o ramo mais pujante e expansivo da economia moderna. Dividida entre a exigência de produzir conhecimento e a de moldar pro�ssionais do prêt-à-porter mental, a universidade avança por uma via dupla cujas pistas divergem cada vez mais, ameaçando atingir em breve o ponto de ruptura. Então será preciso escolher. Mas a escolha já está feita e todos sabem qual é. Nesse dia, portanto, as universidades como centros de produção de conhecimento se tornarão obsoletas e o mundo verá surgir um novotipo de instituição, mais leve, mais ágil, menos comprometido com a geração de empregos e a satisfação “cultural" das massas. Talvez seja a volta da academia platônica. Jornal da Tarde, 5 de julho de 2001 T A recente pesquisa do Ibope, na qual 55% dos eleitores clamam por uma revolução socialista no Brasil, fala por si. Mas, para melhor captar o alcance da sua signi�cação no presente momento histórico, é preciso realçar os seguintes pontos. Primeiro. A população consultada não disse simplesmente “socialismo" (o item “socialismo" foi objeto de uma pergunta em separado), nem muito menos “transição pací�ca para o socialismo". Disse “revolução socialista", o que indica claramente sua disposição de aceitar, como coisa normal e desejável, todo o cortejo de crueldades e horrores inerente a essa modalidade de transformação político-social. Nenhuma revolução socialista se fez até hoje sem genocídio, que chegou, no caso chinês, à extinção de dez por cento da população local. Isso equivaleria, aqui, a dezesseis milhões de brasileiros. A morte dessas pessoas já parece, à maioria do nosso eleitorado, um preço módico a pagar pelo prazer de viver na China. Segundo. Nenhuma revolução socialista se realizou, até hoje, com a garantia de tamanho respaldo popular. Isto garante, ao primeiro governo revolucionário do Brasil, os meios para impor, sem muita reação adversa, as leis e controles que bem entenda. A minoria refratária terá contra si não apenas a força repressiva do Estado, mas a ira popular. Por exemplo, a constituição de uma rede de espionagem interna, com voluntários civis, terá aqui pelo menos tanto apoio quanto teve na Venezuela de Chávez, a qual, com isso, se aproxima velozmente da taxa cubana de um espião do governo para cada 28 habitantes. Terceiro. Re�etindo o sucesso obtido por trinta anos de “revolução cultural" inspirada em Antonio Gramsci, a conversão maciça do eleitorado brasileiro ao socialismo revolucionário é, ela mesma, um momento capital do processo revolucionário, o qual já está, portanto, em pleno curso de realização, como o compreenderá quem quer que conheça algo da estratégia traçada pelo fundador do Partido Comunista Italiano. Quarto. Ao preconizar uma revolução socialista como “solução" para os atuais problemas do país, imaginando-o portanto como um ideal a ser realizado no futuro, aquela parcela majoritária do eleitorado mostra não ter a menor idéia de que já está em plena revolução, e muito menos de que os problemas que a angustiam no momento presente, longe de ser males que a revolução possa curar, são sintomas e etapas do processo revolucionário mesmo. Aí, novamente, a fórmula anunciada pelo estrategista italiano está seguida à risca: o que ele denomina “revolução passiva" é precisamente essa etapa de lusco- fusco, essa noite da consciência, esse torpor agitado e sombrio em que uma população semi-hipnotizada faz a revolução sem perceber e, quando acorda, já está sob o domínio do Estado comunista. Como jamais a estratégia gramsciana foi tentada em tão larga escala, também jamais se observou, na história dos tempos modernos, um fenômeno tão vasto de cegueira coletiva. Quinto. O governo comunista, ao constituir-se, já terá de imediato nas mãos, além da cumplicidade popular, quatro instrumentos decisivos para consolidar velozmente o seu poder, desarticulando, no ato, qualquer possibilidade de oposição: (a) o controle dos meios de comunicação, propaganda e ensino, através da organizada militância instalada na mídia e na rede de escolas de todos os níveis; (b) a obediência garantida e zelosa da burocracia estatal, já devidamente doutrinada e amestrada através dos sindicatos de funcionários públicos; (c) o controle da Zona Rural, através da bem treinada militância do ; (d) uma legislação �scal habilitada a “colocar o empresariado de joelhos" com a velocidade com que Hitler, autor dessa expressão, o fez na Alemanha. Sexto. Com exceção do controle da mídia, todos os demais itens apontados no parágrafo anterior, inclusive o domínio do sistema educacional, foram servidos à liderança gramsciana, de bandeja, pelo atual governo. Este, portanto, longe de constituir “o adversário" a ser derrubado pela revolução, vem sendo no sentido mais estrito do termo aquilo que no jargão revolucionário se denomina “governo de transição para o socialismo", tendo representado, portanto, exatamente o papel que alguns anos atrás o cientista político Alain Touraine, tão respeitosamente ouvido pelo nosso presidente da república, recomendou que ele consentisse em representar no palco da história, caso não quisesse desempenhar o de vítima inerme de um processo irreversível. Sendo o nosso presidente homem versado na estratégia gramsciana — e ele se gaba de ser um dos mais versados — é impossível que ele não esteja consciente do papel que escolheu; e ele próprio deu mais uma prova disso ao explicitar seus atos em palavras, aconselhando à nação que não hesite em curvar-se ao destino previsto, como ele próprio se curvou. Para a perfeição integral do poder revolucionário, falta apenas um item: o apoio das Forças Armadas. Ele é difícil de obter, em vista de feridas históricas ainda não cicatrizadas, mas talvez possa ser, em parte, alcançado mediante a manipulação de ressentimentos e ambições nacionalistas — que hábeis agitadores civis vêm tratando de providenciar — e, em parte, substituído pela neutralização e enfraquecimento da classe militar, que o atual governo já providenciou. Se me perguntarem como esse processo pode ser detido, responderei que, obviamente, não sei. Mudar o curso da história está além das minhas pretensões: elas se resumem, no momento, em tentar enxergá- lo. E notem que, no meio da cegueira geral, isso já é muito para um pobre observador humano. O Globo, 7 de julho de 2001 F É tanta cultura que eles já não agüentam: precisam reparti-la Sob a coordenação do Professor Lejeune Mato Grosso Xavier de Carvalho, presidente da Federação Nacional dos Sociólogos, um lobby de proporções colossais, constituído de sindicatos, associações estudantis, sociedades cientí�cas, cut, oab, Contag, cnbb e não sei mais quantas instituições, está sendo organizado para pressionar o Senado a aprovar o projeto de lei que torna obrigatório, nas 17 mil escolas de ensino médio do país, o ensino de sociologia e �loso�a. O próximo passo da luta, segundo o Professor Lejeune, será “a mobilização total nos cursos, s, congregações, departamentos, reitorias e entidades correlatas". Essas entidades deverão: (a) produzir uma chuva de e-mails sobre os senadores; (b) exercer pressão direta sobre “ , Weffort, Moisés, Wilmar Faria e outros do alto escalão do governo"; (c) agitar a massa estudantil para que ocupe as ruas e faça caravanas a Brasília; (d) abrir espaço na mídia e municiá-la de informações favoráveis ao projeto. É uma campanha das dimensões das Diretas Já. Mas aí se tratava de luta política, que facilmente desperta as paixões da massa angustiada. Um observador extraplanetário �caria comovido até às lágrimas de ver tão poderosas forças agitando-se em vista de um objetivo puramente cultural e pedagógico. Tamanha vontade de ensinar tem, no entanto, algo de estranho. O Professor Lejeune entusiasma-se sobretudo com a mobilização dos �lósofos — pilhas e pilhas de �lósofos, massas de �lósofos. Ao ouvi-lo, damos por fato consumado que, no momento presente, pelo menos 17 mil deles se encontram tão repletos de conhecimentos �losó�cos que, se não os derramarem sobre as cabeças juvenis, explodirão de pletora intelectual. O país que tem 17 mil �lósofos prontinhos para ensinar é, decerto, o mais culto do mundo. É de fato uma injustiça que tanta cultura �que retida na geração mais velha, sem ser repassada aos jovens. Por isso mesmo o Professor Lejeune repele, como procrastinação odiosa, qualquer tentativa de discutir, antes da aprovação da lei, o conteúdo a ser ensinado nas novas disciplinas. Para que discutir, se ele, Lejeune Mato Grosso em pessoa, já sabe esse conteúdo detrás para diante? Eis como ele o resume: sociologia e �loso�a consistem em fazer o aluno “entender seu mundo, a realidade que o cerca, as classes e as lutas de classe, o papel do Estado e modos de produção" (sic). Que haja 17 mil pessoas habilitadas a ensinar essas coisas, eis algo de que não se pode mesmo duvidar. Na verdade há mais. Milhões de militantes da , do e do estão convictos de que a realidade que os cerca se constitui, essencialmente, de luta de classes. Trata-se apenas de tornar esse discurso obrigatório para os alunos de 17 mil estabelecimentos de ensino. A coisa é simples, direta e brutal. Portanto, nada de discussões. Sociologia e �loso�a já! O Professor Lejeune vaticina que isso será “a maior das revoluções". Tem razão: desde os tempos de Stalin, jamais tamanha rede de difusão foi colocada, com dinheiro do governo, à disposição da propaganda comunista. Tal é, pois, o motivo da mobilização, que só um extraplanetário explicaria de outra forma. Não sou ninguém para contestar uma assembléia inteira de sábios e educadores, encabeçada por 17 mil �lósofos. Cá com meus botões pergunto quantos deles agüentariam dez minutos de debate sobre as categorias de Aristóteles ou as formas a priori de Kant. Mas isso, obviamente, não vem ao caso. O que lhes incumbe ensinar eles já o sabem de cor e salteado. Aliás, quem não sabe? Resta apenas perguntar se, contra a formidável pressão organizada, os pais que não desejem ver seus �lhos amestrados na doutrina da luta de classes terão a coragem de enviar pelo menos umas tímidas cartinhas de protesto ao Senado. Se não a tiverem, ótimo: é sinal de que o Brasil está maduro para a �loso�a do Professor Lejeune. Época, 7 de julho de 2001 O And Kaipha was, in his own mind, a benefactor of mankind. — William Blake e best lack all conviction, while the worst are full of passionate intensity. — William Butler Yeats Um dos trechos que mais me impressionam no Evangelho é aquele em que Jesus, sob a acusação de difundir ensinamentos suspeitos, apela ao testemunho do público: “Tenho falado francamente ao mundo", a�rma Ele, “e nada disse em oculto. Pergunta-o aos que me ouviram". Um dos guardas lhe dá então uma bofetada. Jesus lhe responde: “Se eu disse mal, prova-o. Se disse bem, por que me feres?" (João, 18, 19–23). Quando Northrop Frye demonstrou, em e great code,4 que em última instância todos os enredos da literatura de �cção estão pre�gurados nos livros sacros, ele se esqueceu de dizer que todos os acontecimentos das nossas vidas estão pre�gurados na literatura de �cção. Que é a �cção, a�nal, senão o conjunto dos esquemas imaginários das vidas possíveis? Pelo menos assim o entendia Aristóteles, mestre de Frye. E que é o conjunto das vidas possíveis senão a sinfonia dos ecos terrenos da vida divina, a reverberação do eterno no tempo? Nossas biogra�as são as cópias de uma cópia. Por trás delas, uma única história se passou: a da vida, paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. A cena do testemunho rejeitado repete-se milhões de vezes, ao longo dos séculos, onde quer que um escritor, um professor, um orador, seja acusado de dizer o que não disse, de ensinar o que não ensinou, de pregar o que não pregou. Se nesse momento ele alega o testemunho público de seus escritos, de seus ouvintes, de tudo o que é arquinotório e documentado, isso não o livra da má vontade do juiz iníquo. O simples desejo de provar é tido como insolência. Calem-se as testemunhas, suprimam-se os documentos: o que vale não é a palavra de quem viu, leu ou ouviu. O que vale é a palavra de quem, nada tendo visto, lido ou ouvido, conjetura, suspeita e acusa. A ignorância maliciosa torna-se fonte da autoridade, suprimindo não somente os fatos, mas a simples possibilidade de alegá-los. O que importa não é conhecer, é odiar com intensidade. Esse modelo eterno reaparece diariamente na nossa imprensa, no parlamento, nas cátedras acadêmicas e nas escolas de crianças, quando aqueles que desagradam ao consenso dominante são rotulados de “fascistas". Se apelam ao testemunho de seus escritos, alegando que jamais disseram uma palavra em favor do fascismo, que o condenaram e que pregaram o contrário dele, terão de dar-se por felizes se em resposta não receberem uma bofetada, mas apenas um riso de escárnio. No tribunal dos infernos, o escárnio dos canalhas é a prova suprema. Todos os testemunhos, todos os documentos do mundo não valem para impugná-lo. Mais probante que ele, só a bofetada do guarda. Milhões de pequenos brasileiros estão sendo educados nessa pedagogia de Anás e Caifás. Logo estarão prontos para, à simples menção de certos nomes dos quais nada sabem, gritar em uníssono: “Fascistas!". Ai de quem tombe sob o olhar fulminante desse temível tribunal mirim! Não por coincidência, a acusação de fascismo provém sempre daquela corrente que se consolidou no poder na Rússia com a ajuda nazista, que vendeu a Espanha aos franquistas em troca de favores anglo-franceses, que amparou tantos militarismos nacionalistas em toda parte, que no Brasil se aliou à ditadura de Vargas e em Cuba, sim, em Cuba, apoiou a ascensão de Fulgencio Batista e depois usurpou os lucros de sua destituição engendrada pelos americanos. Tudo isso é fato histórico conhecido, ao menos de quem estudou. Não é preciso dizer que, nos tribunais nazi-fascistas, análoga sintaxe governava o uso da acusação de “comunista", naqueles anos mesmos em que Hitler e Stalin, por baixo da contenda de superfície entre seus devotos militantes, trocavam favores, informes secretos, armas e dinheiro — já muito antes do pacto Ribbentrop-Molotov, que apenas formalizou aos olhos do mundo essa aliança macabra. Mas, na lógica da alma revolucionária, é a própria cumplicidade no crime que, pelo bem conhecido efeito potencializador da inversão histérica, confere ao juiz a sua postiça autoridade de acusar. Quanto mais ele tenha manchado suas mãos no sangue, tanto mais seu ódio reprimido a si mesmo se trans�gurará, no nível da sua falsa consciência intoxicada de ideologia, em indignada eloqüência contra o inocente. Tal é o mecanismo íntimo daquela passionate intensity de que falava Yeats, da qual só os fanáticos assassinos são capazes, e que desarma, pela força avassaladora do cinismo, as defesas do homem normal. O homem comum dos tempos modernos, esvaziado do espírito e reduzido a con�ar-se à autoridade exterior do consenso dominante, não resiste à retórica insana do mal: sob o violento ataque frontal à verdade, acaba sempre cedendo, admitindo-se culpado do que não fez, como milhares de réus nos Processos de Moscou na década de 30. Só a fé amparada no exemplo de Cristo pode permanecer imperturbável e, ante o assalto da mentira demoníaca, retrucar simplesmente: “Se eu disse mal, prova-o. Se disse bem, por que me feres?". O Globo, 14 de julho de 2001 A- O articulista faz uma con�ssão pessoal Como há um só articulista que escreve habitualmente contra o socialismo na imprensa de circulação nacional, e como o peculiar conceito socialista de democracia exige que não haja nenhum, todos os artifícios — da difamação às ameaças, da chacota à afetação de silêncio superior — já foram tentados para persuadir esse um a mudar de assunto. A última moda é adulá-lo, elogiar-lhe o estilo, lamber-lhe o ego até o total amolecimento de seu juízo crítico e então, quando ele está indefeso e derretido num mar de lisonja, lançar-lhe à queima- roupa a insinuação fatal: “Desista". Sugestão análoga às vezes vem de pessoas boas, sem nenhuma intenção perversa. É no olhar e no tom que se discerne, nas outras, o intuito de calar o articulista. Infelizmente esse articulista sou eu. Digo “infelizmente" porque, com outro, o ardil talvez funcionasse. Já comigo ele não tem a menor chance, sendo eu uma alma impérvia e coriácea, sem outra ambição na vida senão a de fazer exatamente o que tem feito. Os senhores — falo de meus aduladores interesseiros, e não dos demais leitores, é claro — não têm a menor idéia de como é bom, para um sujeitoque ajudou a construir uma mentira na juventude, poder desmontá-la na maturidade, tijolo a tijolo, com a meticulosidade sádica do demolidor que não se contenta em derrubar paredes, mas quer ir até o último fundamento, arrancar a última pedrinha do alicerce e deixar o terreno limpo e nu como antes do início da construção. Poder fazer isso é uma libertação, um alívio, uma antecipação terrena da paz eterna. Nada do que os senhores possam me oferecer vale isso. Nada. Muito menos a lisonja, que é a mais instável e in�acionada das moedas. Mas não pensem que, quando falo em libertação, me re�ro ao arrependimento, no sentido moral do termo. A libertação de que falo não é só moral, é existencial, é ontológica. É descobrir e provar, diariamente, que a vida humana não tem de ser um teatrinho de papelão, que ela pode ser integralmente real, que um homem pode passar do auto-engano e da farsa interior a uma existência de verdade, como Pinóquio deixou de ser um boneco para se tornar menino de carne e osso. Nessas circunstâncias — repito Oscar Wilde —, dizer a verdade é mais que um dever: é um prazer. Mais que um prazer, é uma autêntica exaltação da alma, que ao descer da ilusão aos fatos descobre, pela primeira vez, a dimensão da altura e da profundidade, a estatura real do espírito. É uma descida que é ascensão, se me entendem. Mas não entendem, não. Pessoas como os senhores não concebem o abandono das ilusões senão — mui estereotipicamente — como a troca dos belos ideais de juventude pelo realismo cru e egoísta da maturidade. Não vendo o que nesses ideais há de pura vaidade e soberba, de pura volúpia de poder camu�ada em belas palavras, não podem compreender o que há de legítimo idealismo no sacrifício maduro da mentira juvenil. Aqueles que, abandonando o socialismo, caíram na amargura cética ou no oportunismo cínico não o abandonaram verdadeiramente. São seus escravos e hão de sê-lo eternamente. Cultuam-no em imagem invertida: vendo ainda nele o bem e lamentando apenas que seja um bem impossível, aderem à realidade como quem, após longa resistência, cede a uma tentação aviltante. Deixam o socialismo como quem trai um deus sem cessar de amá-lo. Esses não entenderam nada. O socialismo nunca foi um deus ou um ideal. Foi uma mentira demoníaca e uma exploração da fatuidade das multidões. Abandoná-lo não é perder um ideal: é reconquistar a vida, a alma, o sentido do dever e a dignidade da missão humana. É para mostrar esse bem aos que ainda o desconhecem que escrevo contra o socialismo. Os senhores, que não sabem nada disso, podem me atribuir projetivamente os motivos mais estapafúrdios: ódio, inveja, ressentimento, fanatismo, o diabo. Pouco me importa. Eu sei o que estou fazendo, e os senhores não sabem o que dizem. Época, 14 de julho de 2001 G No começo do século xix, muitos historiadores das religiões estavam conscientes dos elos de continuidade entre a heresia gnóstica dos primeiros séculos da Era Cristã e as �loso�as iluministas e românticas. Por uma triste ironia, justamente no momento em que essas �loso�as, logo a seguir, se transmutaram em movimentos ideológicos de massas, a consciência daqueles elos desapareceu do horizonte intelectual e o fenômeno totalitário resultante desses movimentos não pôde ser adequadamente compreendido. Coube ao �lósofo alemão Eric Voegelin (1901–1985) o mérito de haver não somente redescoberto a inspiração gnóstica das ideologias totalitárias, mas criado os instrumentos intelectuais para enquadrá-la numa compreensão mais geral da história. Malgrado a alucinante variedade dos movimentos gnósticos e as diferenças entre suas formulações teóricas, há no fundo de todos eles a unidade de uma cosmovisão, ou no mínimo de um sentimento cósmico comum: a vivência do universo como lugar hostil e do homem como criatura jogada no meio de uma máquina absurda e incompreensível. Em última instância, é a rejeição do julgamento que Deus fez da sua própria criação no último dia do Gênesis, quando Ele olhou o cosmos e “viu que era bom". Para os gnósticos, a ordem cósmica é essencialmente má e ao homem não resta senão o caminho da fuga ou da revolta. Ao longo dos oito volumes de sua History of political ideas e dos cinco da obra inacabada Order and History (ambas publicadas pela University of Missouri Press), Voegelin demonstrou que dessa visão inicial emergiram os desenvolvimentos mais variados, desde a total rejeição da vida mediante o ascetismo à outrance dos cátaros, passando pelo sonho dos alquimistas elisabetanos de “corrigir a natureza", até as utopias políticas modernas da Revolução Francesa e dos movimentos comunista, nazista e fascista, com suas ambições prometéicas de sociedade planejada, Estado onipotente e felicidade coletiva a ser alcançada por meio de um morticínio redentor. O gnosticismo, assim compreendido, não é só uma revolta contra o catolicismo em particular, mas contra toda visão tradicional da ordem social como expressão da ordem divina da alma e do cosmos. A transformação de uma corrente esotérica em poderoso movimento de massas que dominou a história dos dois últimos séculos observou-se principalmente no Ocidente, em razão das guerras religiosas que, a partir do século , romperam a unidade da sociedade cristã e eliminaram a religião como poder público, instituindo o moderno Estado leigo que, erigido sobre um vácuo espiritual, acabou por se revelar impotente para resistir à invasão dos movimentos gnósticos de massa. Re�uindo para o Oriente, esses movimentos devastaram ali as religiões tradicionais (ortodoxa, judaica, budista, confuciana e islâmica, principalmente), manifestando da maneira mais patente a sua natureza universalmente antiespiritual e não apenas anticatólica em especial. Mas é inevitável que toda grande descoberta no reino das idéias venha seguida de perto por alguma versão paródica que ao mesmo tempo a imita e inverte o seu sentido. Assim, não demoraram a aparecer, no ambiente católico de extrema direita, doutrinários que, explorando indícios fortuitos de semelhanças entre algumas idéias gnósticas e elementos de doutrina judaica, islâmica, budista, etc., apresentaram uma nova versão da revolução gnóstica. Esta já não seria uma aberração voltada contra toda a visão normal e tradicional, mas a aliança dos gnosticismos do Oriente e do Ocidente numa conspiração universal contra a Igreja Católica. Nunca ocorreu a esses gênios da parasitagem intelectual perguntar-se por que, na guerra de todos contra a Igreja Católica, esta foi, das religiões tradicionais, a que menos vítimas deu à sanha dos revolucionários gnósticos. Mesmo diante dos horrores da perseguição sofrida na França, no México, na Espanha, na Polônia, em Cuba; mesmo diante da evidência de tantos Catholic martyrs of the twentieth century meticulosamente coletada pelo historiador Robert Royal (New York, Crossroad, 2000), não há como nivelar, em números, o morticínio dos católicos ao dos ortodoxos, judeus, muçulmanos e budistas sacri�cados na Rússia, na Alemanha, na China, no Tibete e não sei mais onde pela máquina genocida da revolução gnóstica. A religião chinesa, em particular, pode-se considerar hoje virtualmente expulsa da história pela brutal doutrinação materialista que bloqueou o acesso de mais de um bilhão de seres humanos às noções religiosas e metafísicas mais elementares. Ora, essas religiões não-católicas são precisamente aquelas que, segundo a caricatura extremista da teoria de Voegelin, constituiriam, mediante uma aliança com o materialismo militante, o outro braço da revolução gnóstica voltada contra a Igreja Católica. Se elas fossem realmente isso, então restaria explicar por que, em vez de coordenar-se num assalto conjunto a Roma, elas escolheram primeiro destruir-se a si mesmas. Não, a Igreja Católica não é o único, nem, hoje em dia, o principal alvo do ataque gnóstico. Ela sofreu muito, está muito dividida e corroída pelos vermes gnósticos da “teologia da libertação". Mas ela é — ainda — uma sólida fortaleza contra a destruição do espíritotradicional e da visão normal do homem no cosmos. Tão importante é o seu papel estratégico, que mesmo ocasionais hesitações da sua parte bastaram para dar ao inimigo a oportunidade de avanços e conquistas formidáveis, como se viu na ascensão do nazismo, que ela poderia ter impedido se agisse em tempo, ou nos espetaculares sucessos que o comunismo obteve nas próprias �leiras católicas durante as décadas de 60 e 70, na esteira das confusões paralisantes que se seguiram ao Concílio Vaticano . Jogar a Igreja contra as demais religiões massacradas pela fúria das ideologias totalitárias é fazer causa comum com o inimigo de toda religião e de toda espiritualidade. É ressuscitar em escala universal os con�itos inter-religiosos que, no começo dos tempos modernos, só puderam ser apaziguados mediante o advento do Estado leigo que abriu as portas à invasão das ideologias gnósticas. Muitos podem colaborar com isso por inocência e boa-fé, pois o amor sincero à Igreja nem sempre vem acompanhado de uma visão abrangente e adequada da história. Mas outros sabem perfeitamente bem para quem trabalham e aonde querem chegar. Quando ouvir um desses, caro leitor, não se deixe iludir por pretextos piedosos e por uma linguagem de sacristia: ele é a voz da velha revolta gnóstica que, disfarçada de devoção cristã, tenta dividir para reinar. O Globo, 21 de julho de 2001 B “Ele lutou pela verdadeira educação para a cidadania" O falecimento de Mortimer J. Adler, aos 98 anos, há cerca de um mês, não foi registrado pela imprensa nacional. Duvido que não haja pelo menos uns poucos brasileiros que devam a esse �lósofo e educador o melhor do que aprenderam nesta vida — mil vezes melhor do que poderiam ter aprendido em qualquer curso universitário ou na leitura diária de todas as publicações culturais impressas nesta parte do mundo. Mas, no geral, a cultura nacional está hoje nas mãos de pessoas que ignoram Mortimer J. Adler. Se não o ignorassem, não seriam o que são, nem a cultura nacional a miséria que é. A diferença básica entre a classe falante brasileira e a americana que ela tanto inveja é, simplesmente, que esta recebeu na escola uma liberal education, e ela não. Adler foi a estrela máxima e a encarnação mesma da liberal education nos Estados Unidos — o educador que, em última análise, fez a cabeça da elite intelectual mais ágil do país mais forte do mundo. Liberal education é, para resumir, a educação da mente para os debates culturais e cívicos mediante a leitura meditada dos clássicos. Acabo de escrever esta palavra, “clássicos", e já vejo que não sou compreendido. A falta de uma liberal education dá a esse termo a acepção estrita de obras literárias famosas e antigas, lidas por lazer ou obrigação escolar. Um clássico, no sentido de Adler, não é sempre uma obra de literatura: entre os clássicos há livros sobre eletricidade e �siologia animal, os milagres de Cristo e a constituição romana: coisas que ninguém hoje leria por lazer e que geralmente são deixadas aos especialistas. Mas um clássico não é um livro para especialistas. É um livro que deu origem aos termos, conceitos e valores que usamos na vida diária e nos debates públicos. É um livro para o homem comum que pretenda ser o cidadão consciente de uma democracia. Clássicos são livros que criaram as noções de realidade e fantasia, senso comum e extravagância, razão e irrazão, liberdade e tirania, absoluto e relativo — as noções que usamos diariamente para expressar nossos pontos de vista. Só que, quando o fazemos sem uma educação liberal, limitamo- nos a repetir um script que não compreendemos. Nossas palavras não têm fundo, não re�etem uma longa experiência humana nem um sólido senso de realidade, apenas a superfície verbal do momento, as ilusões de um vocabulário prêt-à-porter. A educação liberal consiste não somente em dar esses livros a ler, mas em ensinar a lê-los segundo uma técnica de compreensão e interpretação que começa com os eruditos greco-romanos e atravessa, como um �o condutor, toda a história da consciência ocidental. A liberal education é uma tradição nos desde antes da Independência. Adler lutou como um leão para que se tornasse patrimônio de todos os americanos, mas seu sucesso foi só parcial. As universidades principais têm, todas, seus programas de liberal education, mas no ensino médio a idéia não pegou por completo. Hoje a diferença essencial entre a rede de escolas públicas, fábricas de delinqüentes, e as escolas de elite que formam os governantes e os líderes intelectuais americanos é que estas se atêm �elmente à velha educação liberal e aquelas se deleitam em experimentos pedagógicos de “engenharia comportamental" — muitos dos quais inspiram os programas de nosso . Fala-se muito, hoje, em educação para a cidadania. Mas só há duas maneiras de formar o cidadão: a educação liberal e a manipulação ideológica. Ou o sujeito aprende a absorver os dados da “grande conversação" entre os espíritos superiores de todas as épocas e a tomar posição sabendo do que fala, ou aprende a falar direitinho como seus mestres mandaram, usando os termos com a conotação que desejam, segundo os interesses dominantes do dia. A opção brasileira está feita. Por isso, neste país, poucos souberam da vida ou da morte de Mortimer J. Adler. Época, 21 de julho de 2001 O - Os livros de divulgação cientí�ca para a juventude falam sempre com desprezo do “antropomor�smo" das idéias antigas acerca do cosmos. Nada mais ingênuo, parece, do que vislumbrar intenções humanas — ou divinas — nas plantas, nas pedras, nos ventos e nas galáxias. Sentado no pináculo da evolução cientí�ca, qualquer garoto de escola, baseado na autoridade de livros que nunca leu, ri das gerações que o antecederam desde o começo do mundo. Mas o fato é que por trás de toda concepção cientí�ca do universo há sempre um esquema imaginativo subentendido, e enquanto esquema imaginativo da totalidade da natureza o antropomor�smo é in�nitamente menos ingênuo do que todos aqueles que o sucederam desde o Renascimento até hoje. Descartes e Newton concebiam o universo como um relógio. Nenhum índio seria cretino o bastante para acreditar numa coisa dessas. Mesmo um indiozinho pequenininho já sabe que a natureza é astuta e imprevisível. A hipótese de aprisioná-la numas quantas fórmulas repetíveis lhe pareceria puro charlatanismo, e ele não precisaria de mais de uns segundos para rejeitá-la in limine. Já a nossa cultíssima civilização precisou de três séculos para despertar da ilusão mecanicista. Precisamos de Planck e Heisenberg para nos provar algo que qualquer indiozinho de 6 anos nos teria contado antes deles. Não nego que a prova, em si, vale alguma coisa. Mas quantos a conhecem? Kant estava erradíssimo ao conceber a autonomia de julgamento como a �na �or da civilização moderna. O homo urbanus, na sua esmagadora maioria, acredita em Planck e Heisenberg só por ouvir dizer: não tem a independência de juízo com que o indiozinho acredita em seus próprios olhos. O mecanicismo se impôs porque dava aos homens uma demencial ilusão de poder. “Saber é prever, prever para poder", proclamava Comte. Se a realidade era uma máquina, bastava saber apertar os botões certos para obter os resultados desejados. Daí à “física social" e à economia planejada, foi um piscar de olhos. Uns 150 milhões de seres humanos pereceram vítimas desse experimento cientí�co. E tudo começou com um relógio. É verdade que a falsa imagem do conjunto, simpli�cando o raciocínio, permitiu que certos detalhes fossem calculados com mais precisão. Descartes conhecia os pormenores da refração óptica bem melhor que o indiozinho. Mas isto não tornava menos idiota o seu esquema geral do cosmos, nem menos devastadoras as conseqüências de uma ciência de pormenores erguida sobre um esquema imaginativo pueril. Nada do que se diga da importância vital dos esquemas imaginativos no conhecimento será exagero. Não podemos conhecer, pela observação cientí�ca, a totalidade do real. Mas todos temos dela alguma expectativade todas. No Fórum da Liberdade, as pessoas são convidadas a falar conforme sua experiência no trato do assunto. Nenhum sapateiro, ali, vai além das chinelas. A mim, por exemplo, ninguém ali faz perguntas sobre desemprego ou carência habitacional, problemas com os quais só tive contato na condição de vítima atônita, e dos quais tudo o que eu teria a dizer é que de fato são uma bela encrenca. No entanto, tenho me saído melhor em áreas como educação, cultura, história etc., e o Fórum da Liberdade me pergunta exatamente sobre isso. Para falar do sistema bancário, traz o Gustavo Franco, que soube fazer a coisa andar. Para falar da empresa privada, chama o Dr. Jorge Gerdau, que tem uma que funciona. E assim por diante. Já o pessoal do Fórum Social anuncia possuir a solução para males de grande porte: a miséria das nações pobres, a exclusão social e coisas assim. Seria justo esperar que essas criaturas nos mostrassem sua folha de realizações — ou pelo menos a de sua ideologia — no concernente à solução desses problemas. Poderíamos perguntar, por exemplo: a quantos seres humanos o socialismo já deu uma vida melhor? Se excluirmos os membros da nomenklatura, que obviamente tiveram a melhor das vidas, a cifra que obteremos em resposta só não é nula porque é negativa: em quase todas as nações socialistas o padrão de vida é hoje inferior ao de antes do socialismo. Na melhor das hipóteses, é igual: quando Cuba se gaba de ter o terceiro ou quarto lugar do continente em qualidade de saúde ou educação, omite que já os tinha desde 1951, oito anos antes da revolução. Em outros países, como o Vietnã, a fome e a miséria alcançam níveis apocalípticos, enquanto na China o salário médio de um trabalhador, após meio século de morticínios redentores soi disant destinados a elevar seu padrão de vida, é de 40 dólares. Em contrapartida, nesse vale de lágrimas que é o capitalismo, a fração mais pobre da população norte-americana e européia de hoje tem um nível de consumo muito superior ao da classe média dos anos 50. Já na África, que segundo os doutrinários socialistas experimentaria um �orescimento econômico espantoso tão logo os europeus fossem embora de lá com seus malditos investimentos colonialistas, populações inteiras hoje morrem à míngua, e o Fórum Social, segundo nos anunciou neste mesmo jornal o inesquecível Sr. Luiz Marques, nos mostrará que isso é culpa dos pér�dos ex-colonialistas que já não botam mais seu dinheiro lá. Tal é o know how que essa gente virá transmitir aos gaúchos em troca do dinheiro dos seus impostos. De todos os problemas econômicos do mundo, os doutrinários socialistas só resolveram, até agora, um único: o seu próprio. Cada um deles tem um bom emprego em universidade, jornal ou instituição de pesquisa em prósperos países capitalistas, e nenhum jamais foi idiota o bastante para se propor a resolver, não os problemas “do mundo", mas o de algum país socialista. Não se atrevendo a cuidar do seu próprio quintal, eles se tornaram especialistas em dar palpites no alheio: o socialismo, como se sabe, não tem vida autônoma, mas se alimenta das doações de diletantes capitalistas insanos de Nova York e Genebra, que o sustentam mais ou menos como quem mantém, em casa, uma criação de jacarés. Em retribuição, os jacarés mostram os dentes e sacodem as caudas para impressionar as visitas. Essa será toda a utilidade do Fórum Social. A diferença é que o salário dos jacarés não será pago por capitalistas insanos de Nova York e Genebra, mas pelos contribuintes gaúchos. Zero Hora, 14 de janeiro de 2001 P Uma prova notável da cretinice vigente é o número de pessoas, na imprensa, nas universidades ou em toda parte, que imaginam que o puro ódio político que sentem por mim as investe de autoridade bastante para negar-me o estatuto de �lósofo mediante o simples acréscimo de aspas ou de alguma expressão pejorativa ao termo que o designa, sem jamais se perguntar se elas próprias estariam habilitadas, já não digo a discutir, mas simplesmente a ler e compreender por alto algum de meus livros de �loso�a — uma quali�cação que, por mistério, lhes parece totalmente dispensável no caso. Ao multiplicar-se o número de episódios que a ilustram, essa auto- atribuição de autoridade intelectual por parte de sujeitos obviamente despreparados para as mais elementares tarefas de uma vida de estudos assinala, mais que uma inusitada arrogância coletiva, uma grave perda geral do senso de realidade, do senso das proporções. Ultrapassado um certo limite, a ignorância pretensiosa deixa de ser um estado transitório de feiúra moral associado à má formação intelectual, e se torna um desvio de personalidade, um tipo de sociopatia. Não conheço, no presente panorama mental brasileiro, sintoma mais alarmante e mais digno de estudo. Não é normal, na imprensa do mundo, que um escritor que se dirige à parte mais culta do público desperte tanto interesse e tanta raiva na outra parte, a ponto de centenas de iletrados lhe enviarem cartas furiosas, onde as ameaças de processo judicial e de agressão física se mesclam pateticamente a todos os palavrões do idioma, complementados pela surpreendente assertiva de que o destinatário — não o remetente — é sujeito grosseiro e sem educação. Um detalhe interessante é a repetição obsessiva de slogans e lugares- comuns do jargão esquerdista. Aparecendo justamente nas mensagens que com mais vigor condenam o meu antiesquerdismo como uma obsessão de chutar gatos mortos, a coisa soa como um eloqüente coro de miados num cemitério felino. E nunca um só desses defuntos miantes deu o menor sinal de perceber que seu próprio falatório dava a prova da falsidade do que alegava. A perda da sensibilidade lingüística acompanha pari passu a ascensão do simplismo fanático e da imbecilização moral. Talvez ainda mais estranha é a convicção, que em muitos desses indivíduos parece totalmente sincera, de possuir, além daquela tremenda autoridade intelectual, também um signi�cativo poder de intimidação. Escrevem, de fato, no tom feroz de quem espera que o destinatário, lendo, �que paralisado de medo ante um imponderável perigo iminente, desista de publicar artigos e, quem sabe, até mesmo se desmaterialize em pleno ar. Muitas dessas pessoas, numa situação normal, nem mesmo leriam meus artigos, os quais obviamente não foram feitos para elas. Se não os lessem, nenhuma falta fariam ao autor, que conta com a compreensão e a simpatia de outras — e mais vastas — faixas de público. Por que então os lêem, se cada leitura as precipita numa crise de raiva que culmina numa auto-eletrocução verbal? Tudo isso é fantástico, espantoso e, numa palavra, dadaísta. A observação, comum nos livros de historiadores, de que análogos fenômenos se observam regularmente nas crises pré-revolucionárias não prova que vai haver uma revolução no Brasil, mas sugere que uma parcela signi�cativa da população falante já está em pleno transe de estupidez revolucionária, prelúdio do suicídio nacional. Jornal da Tarde, 18 de janeiro de 2001 Z Quando digo que a queda do nível de consciência das nossas classes falantes já atingiu a faixa do calamitoso, não estou exagerando nem brincando. Acompanho com regularidade os debates políticos, leio as principais publicações culturais, recebo diariamente dezenas de e- mails de universitários que levantam discussões sobre mil e um assuntos: tenho uma boa amostragem do que se passa. Seis anos atrás ainda era possível documentar, através de exemplos selecionados, como o �z nos dois volumes de O Imbecil Coletivo, a veloz ascensão da estupidez na intelectualidade nacional. Hoje quem tentasse coleta similar seria esmagado sob a massa de documentos. Mas esse estado de coisas não deixa de ter suas vantagens. A maior delas é que, pelo acúmulo de material, a confusão inicial dos dados cede lugar ao desenho nítido de algumas constantes: o conjunto de cacoetes e incompetências que hoje caracteriza a forma mentis do opinador nacional típico já pode ser descrito em poucas linhas. A primeiraque se traduz em imagens. É sobre estas imagens que se constrói o edifício do conhecimento racional. Toda a psicologia, de Aristóteles a Piaget, mostra que a inteligência racional não opera diretamente sobre os dados dos sentidos, mas sobre as imagens, os “fantasmas", diziam os gregos, depositados na memória. A imaginação é a ponte entre o sensível e o inteligível. Imaginatio mediatrix, dizia o grande Hugo de São Vítor: a imaginação é mediadora. Por isso, todo conhecimento, toda civilização se ergue sobre um fundo imaginário. A tremenda estabilidade, a sanidade inabalável de tantas culturas primitivas dotadas de nada mais que um mínimo de saber cientí�co deveu-se justamente à adequação entre seus esquemas imaginativos e a realidade da sua experiência vivida. Envoltos em mitos e lendas, esses homens antigos podiam nada saber de quarks e buracos negros, mas tinham um pressentimento certeiro do lugar da existência humana no cosmos e sabiam traduzi-lo em atos e palavras dotados de sentido. Há in�nitamente mais sentido em falar com as plantas do que em imaginar-se engrenagem de um relógio. A concepção antropomór�ca da planta é incomparavelmente mais inteligente e mais digna do que a concepção relogiomór�ca do homem. Achar que uma planta é uma pessoa pode inibir um homem de matar a planta. Mas se você acha que as pessoas são relógios, nada mais lógico do que matá-las porque se recusam a funcionar como relógios. Robespierre, Lenin e Hitler nada �zeram senão tirar as conseqüências das premissas lançadas por Descartes e Newton. Viktor Frankl dizia isso: se o homem é apenas um produto industrial, não há nada de mais em jogar alguns fora no controle de qualidade. Cada vez mais acho que ele tinha razão. Auschwitz e o Gulag não são propriamente �lhos da ciência, mas são �lhos do esquema imaginativo imbecil e inumano que a ciência moderna criou ad hoc para poder se desenvolver. É altamente duvidoso que mesmo os mais extraordinários progressos da técnica valham tamanha mutilação da imagem do mundo, mesmo porque nada prova que a amputação fosse estritamente necessária, que a ciência que temos, ou mesmo outra melhor, não poderia ter-se desenvolvido sem isso. Hoje o mecanicismo está desmoralizado, morto, esquecido. Mas a imagem medieval do cosmos vivente e dotado de sentido cujo lugar ele usurpou no imaginário do homem ocidental e que já não era certamente um puro antropomor�smo, mas uma concepção muito mais �na e elaborada — continua sepultada e proibida. E as ondas de ocultismo e bruxaria, que de tempos em tempos inundam o mundo tecnológico, não são senão o protesto neurótico de um impulso legítimo que, reprimido, ressurge sob a forma de doença. A imaginação do homem ocidental não foi sufocada pelo puro materialismo, mas por uma parceria de materialismo e ocultismo. Quando Edmund Husserl, no começo do século , advertiu para uma crise de racionalidade nas ciências, ele tocou no problema decisivo da nossa civilização: até que ponto um saber cientí�co que se erigiu sobre um esquema imaginativo falso e mutilador pode conservar a dignidade de ciência em vez de tornar-se uma mitologia de segunda mão? O Globo, 28 de julho de 2001 F A inteligência brasileira vive num espaço separado Nada mais característico da miséria intelectual brasileira que a reserva de mercado concedida a certos autores e a certas correntes de pensamento na economia geral das atenções universitárias. Foucault, Derrida, Lacan, Deleuze, Freud, Nietzsche, Marx, Gramsci e Heidegger estão entre os privilegiadíssimos. Devem essa posição — grosso modo, é claro — a seu prestígio de críticos radicais da civilização do Ocidente. O lado pitoresco da coisa é que tanta atenção aos críticos coexista com um total desinteresse pelo objeto criticado. É normal um intelectual brasileiro con�ar piamente no diagnóstico nietzschiano da mente de Sócrates sem ter a menor vontade de saber o que o próprio Sócrates fez ou disse. Não conheço um único intelectual público que tenha concedido algum tempo ao estudo de Aristóteles, mas conheço centenas que asseguram que Aristóteles foi superado não sei onde ou quando. Quando digo que a física de Aristóteles estava mais avançada que o mecanicismo renascentista, porque antecipava o indeterminismo de Heisenberg, olham-me com aquela cara de quem viu um et. E assim por diante. Os dados, a realidade, a consistência da civilização não interessam. Só o que interessa é sua crítica. No �m, “pensamento crítico" vira isso: con�ar na opinião de terceiros, dispensando-se de um exame pessoal do assunto. Se o assunto é cristianismo, então, a fantasia vai parar longe. Com a maior seriedade, catedráticos nos asseguram que a Igreja tem “uma concepção dualista de alma e corpo" ou que ela prega “uma ética de altruísmo". A primeira dessas doutrinas é puro Descartes, a segunda uma criação de Auguste Comte, feita para desbancar o conceito cristão de caridade. Entre o ambiente cultural brasileiro e a realidade histórica da civilização ergueu-se um muro de preconceitos, frases feitas, indiferença e esquecimento. Mais assustador que a ignorância do passado, porém, é o desinteresse pelo presente. Quantas vezes, diante de públicos universitários supostamente interessados em �loso�a, constatei que nunca tinham ouvido falar de Eric Voegelin, de Xavier Zubiri, de Bernard Lonergan, certamente os �lósofos mais criativos da segunda metade do século ! Haviam parado em Derrida. Um coágulo de marxismo-estruturalismo-psicanálise- desconstrucionismo havia obstruído de�nitivamente seus condutos cerebrais. O tratamento de choque de Alan Sokal não surtiu efeito nesta parte do mundo. Imposturas intelectuais foi bastante lido, mas só é conclusivo para quem tenha formação cientí�ca bastante para sentir a gravidade de seus argumentos. Como esse não é o caso da maioria de nosso público universitário, o livro �ca com a fama de ter sido apenas uma pegadinha engenhosa. Recomendo então dois remédios de mais fácil assimilação. O primeiro é inkers of the New Le, de Roger Scruton, a demonstração inequívoca da menoridade mental dos tótens acadêmicos ainda cultuados no Brasil. O segundo é Mensonge, de Malcolm Bradbury, uma devastadora sátira do desconstrucionismo. Trata da vida e das obras de Henri Mensonge, philosophe inconnu que teria sido não somente o verdadeiro criador da celebrada doutrina da “inexistência do sujeito", mas também... o primeiro a praticá-la. E tão coerente foi esse pensador que nunca foi visto em parte alguma e só deixou dois escritos, inéditos e jamais lidos por quem quer que fosse: Moi? e La fornication comme acte culturel. Se você tem um �lho na universidade, faça uma experiência: dê-lhe os livrinhos de Scruton e Bradbury. Se depois de os ler ele continuar desinteressado de conhecer o mundo extra muros, você pode ter certeza: ele fará uma brilhante carreira de intelectual acadêmico. É verdade que o salário não será grande coisa, mas sempre restará a esperança de que ele chegue ao cume da pro�ssão: a presidência da república. Época, 28 de julho de 2001 “O " Uma famosa dama do show business, no meio de ruidosa festa na boate carioca People’s, tentava se comunicar, aos berros, pelo telefone: “Fulaninho? Eu estou aqui no Pipo. Pipo! Píiiiiiiipo! Pê-i-pê-ó, seu burro! Pipo!". Outro dia, num programa de perguntas e respostas, um famoso cantor, solicitado a desencavar do seu vasto repertório léxico o nome de algo que se encontrasse em academias de musculação e começasse com “e", respondeu resolutamente: “Estrutor". Em idênticas circunstâncias, outra estrela, convidada a emitir com seus lábios de mel um vocábulo com inicial “i", não hesitou um segundo: “Iscola". A vida imita a arte. “Os pedar da bicicreta" saíram da piada para entrar na História. É falso alegar que esses personagens são almas simplórias, gente do povo. São formadores de opinião, ganham rios de dinheiro e, entre banqueiros e senadores, é chique recebê-los em casa. A meninada os tem como ídolos, e um sorriso dos desgraçados, numcaracterística é a absoluta incapacidade de distinguir entre um conceito e uma �gura de linguagem. Quando temos um sentimento difuso a respeito de algo que não compreendemos bem, experimentamos naturalmente a di�culdade de expressá-lo. Uma �gura de linguagem, apelando a semelhanças sugestivas, ajuda-nos a vencer a di�culdade. Saímos de um nebuloso isolamento e penetramos na corrente da conversação pública. A decorrente sensação de ter emergido das trevas para a luz é, porém, totalmente ilusória: maior domínio da expressão não signi�ca melhor conhecimento do objeto do qual se fala, ingresso na tagarelice coletiva não signi�ca contato com a realidade. Quase todo debatedor público neste país, quando consegue domar sua di�culdade de expressão, sente ter dito algo de “objetivo", talvez até mesmo de evidente e autoprobante, quando na verdade apenas objetivou sua subjetividade. Quanto mais árduo o desa�o expressivo, mais a vitória é enganosa. A libertação das brumas interiores, a capacidade de exprimir o que sentimos é, decerto, um pressuposto do conhecimento objetivo, mas ainda está muito longe de alcançá-lo. No Brasil ela tende antes a substituí-lo. A confusão entre falar e conhecer é uma regra estabelecida dos debates nacionais. Nessas condições, qualquer pretensão de “conceito", quando chega a despontar, se esgota em mera de�nição nominal. O processo de exame pelo qual o investigador, fazendo a crítica de suas �guras de linguagem, acaba apreendendo algo da coisa real por entre as frestas do que ele próprio disse dela, parece ser totalmente desconhecido nesta parte do mundo. A expressão �gurada e aproximativa, em vez de ser apenas o começo do processo de investigação, é o término dele: o sujeito mal acabou de enunciar um vago problema, e crê já ter em mãos uma conclusão líquida e certa. Eu não diria, no entanto, que essa inépcia nasce da excessiva afeição às palavras, erroneamente assinalada como traço da nossa cultura por observadores estrangeiros como James Bryce e Hermann Keyserling. O que nos faz tomar as palavras por coisas não é o amor às primeiras, mas a di�culdade de, por meio delas, chegar às segundas. Pesquisas de antropologia empresarial mostraram que nossa população é insensível à palavra escrita, necessitando do apoio dos gestos e sons para que a mensagem atinja a consciência. Mas essa dependência da presença física do emissor assinala também uma di�culdade de saltar sobre a situação concreta do diálogo e apreender diretamente as coisas e relações mencionadas. O que se capta nesse tipo de comunicação é menos algo a respeito da realidade externa do que as intenções e sentimentos do falante. O brasileiro inclina-se a apreender antes “o que querem dele" do que o quid da coisa da qual se fala. Diga você o que disser, sobre não importa o quê, e ele ouvirá uma ordem, um pedido, um apelo, um estímulo, uma proibição. É natural que, ouvindo assim, também fale assim, isto é, que, numa situação que exige descrever fatos e seres, ele se atenha a expressar o que sente, sem notar sequer a diferença entre uma coisa e outra. Sua fala será então respondida na mesma clave, e assim por diante inde�nidamente, numa espécie de solipsismo coletivo no qual as almas, quanto mais se abrem umas às outras, mais se fecham na sua ilusão subjetivista. Daí a compulsiva necessidade de “tomar posição" antes e independentemente de conhecer as coisas em questão, bem como a impossibilidade de ouvir uma argumentação ou prova senão como expressão mais elaborada de uma “tomada de posição" subjetiva. No Brasil não se discutem idéias, teorias, visões da realidade: discutem-se “posições" — atitudes, preferências, gostos e antipatias. Se é verdade o que dizia Henry James, que “os senhores falam de coisas; os escravos, de pessoas", então somos, indiscutivelmente, uma nação de escravos. É evidente que, não alcançado o nível do pensamento conceptual, mais impossível ainda �ca provar o que quer que seja. Daí a segunda característica do debatedor brasileiro hoje em dia: a completa ignorância do que seja uma prova ou demonstração, na verdade uma total inconsciência da necessidade de provas. Em vez da prova, temos a reiteração enfática ou o apelo a novas �guras de linguagem, que, pela sua carga sentimental, bastem para estabelecer uma sintonia entre os sentimentos do ouvinte e os da platéia, sem nem de longe tocar nos objetos em questão. E o sujeito que fez isso sai persuadido de que disse alguma coisa do mundo real. Curiosamente, indivíduos que ignoram tudo dos critérios de prova em �loso�a ou ciência estão bem atualizados com as limitações desses critérios, assinaladas por autores em voga. Em resultado, a limitação se torna um substitutivo do critério mesmo e é por sua vez absolutizada, com grande reconforto para o presunçoso ignorante que, justamente por nada ter provado, acredita estar no cume da evolução epistemológica — como um paralítico que, ao ter notícia dos argumentos de Zenão sobre a impossibilidade do movimento, se sentisse superior às pessoas capazes de andar. ..: Após acusar-me de um crime que não cometi e mostrar-se indignado de que eu tivesse o desplante de achar isso ruim, o Sr. Márcio Moreira Alves anuncia agora que vai abandonar o ringue para não ter de se rebaixar ao nível da minha pessoa. Sapientíssima decisão. Ele que �que lá em cima, no seu grand monde de comunistas chiques, e não desça mais ao humilde porãozinho que, em paz com Deus, habito. Se descer, vai apanhar de novo. Já o tal de Betto, que de maneira mais ou menos vaga e implícita parece ter endossado as acusações do Sr. Moreira, não requer uma resposta em separado, porque, tendo ido essas acusações para o ralo da completa desmoralização, com elas há de ir automaticamente, sem deixar saudades, quem quer que as tenha subscrito. O Globo, 20 de janeiro de 2001 D O fórum esquerdista no Rio Grande não é contra a Nova Ordem Mundial, é contra o Brasil Quando você discute com um comunista, ele exige, antes de tudo, que você aceite a premissa de que ele defende os pobres e você os ricos. Se você a aceita ou, por desatenção e comodismo, deixa de contestá-la com veemência, ele passa a tratá-lo com toda a delicadeza, porque sabe que aos olhos da platéia você já está liquidado e que quanto mais polido ele for daí por diante mais somará, ao prestígio de defensor dos oprimidos, a boa imagem de democrata respeitador do adversário moribundo. Se, em vez disso, você mexe em alguns pontos doloridos da má consciência esquerdista — sua aliança de um século com os tubarões do monopolismo capitalista, a exploração maciça do trabalho escravo para �nanciar o movimento comunista internacional, a corrupção de milhares de jornalistas e políticos pelas verbas descomunais da —, aí ele resolve o problema dizendo que você partiu para os ataques pessoais, que você é um fascista ou que não se fazem mais direitistas educados como antigamente. Já sei, portanto, o que vão me responder quando eu disser que o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, é uma gigantesca mobilização de verbas e forças estrangeiras para um ataque direto à soberania nacional, disfarçado em defesa de nossos interesses na arena econômica do mundo. Mas nem sempre essa gente responde. O prefeito petista de Porto Alegre, por exemplo, não respondeu nada quando meses atrás, num debate, eu lhe disse que, com toda a sua aparente defesa de nossa integridade territorial, seu partido, se chegar ao poder, não somente entregará a Amazônia como ainda poderá ceder mais uns estados, de quebra, pela simples razão de que tudo isso já foi pago. Já foi pago à esquerda nacional, hoje maciçamente �nanciada por empresas e s tentaculares a serviço dos mesmos interesses que ela �nge combater. O silêncio do prefeito, no entanto, foi menos eloqüente que as recentes declarações do vice-governador do Rio Grande, Miguel Rossetto, segundo o qual toda a oratória canina que o vai despejar sobre o capitalismo internacional não afetará em nada as boas relações do governo do estado com o Banco Mundial.É evidente: o festival de esquerdismo na capital gaúcha não pode arranhar no mais mínimo que seja os interesses do monopolismo global. Pode apenas destruir por completo o Estado de Direito no Brasil, criando e legitimando o precedente escandaloso do apoio o�cial à pregação genocida dos narcoterroristas colombianos. Mas esse precedente não é o único: ao participar despudoradamente da sustentação logística de um empreendimento de propaganda ideológica ostensiva, o governo gaúcho derrubará, de um só golpe, a legislação eleitoral existente, sob os olhos complacentes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário federais, que, temendo as reações da mídia cúmplice, não ousarão punir a arrogante ilegalidade explícita dessa declaração de guerra revolucionária. Apresentar o fórum como uma alternativa aos debates capitalistas de Davos é apenas um truque publicitário, operado com o auxílio do diretor do jornal Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet, célebre propagandista empenhado em, sob o pretexto de apoio aos nacionalismos, fortalecer o braço estatista, centralizador e burocrático da Nova Ordem Mundial, em detrimento, de�nitivo ou provisório, de seu braço privatista e neoliberal. O fórum não sonha em alterar no que quer que seja a Nova Ordem Mundial. Sonha apenas em mudar o lugar do Brasil dentro dela, transformando-o, de uma próspera nação capitalista apta a disputar uma posição de liderança, numa Colômbia devastada e eternamente cabisbaixa. Época, 20 de janeiro de 2001 D Um público que está contaminado de doutrinação marxista até a medula não tem, por isso mesmo, a menor idéia de que está sendo doutrinado. A primeira etapa da doutrinação é puramente cultural, difusa, e não visa a incutir no sujeito a menor convicção política explícita, mas apenas a moldar sua cosmovisão segundo as linhas básicas da �loso�a marxista, sem este nome, naturalmente, e apresentada como se fosse “o" conhecimento em geral. Com exceção de um reduzidíssimo número de intelectuais que estudaram criticamente o movimento comunista e das pessoas demasiado pobres que não receberam educação nenhuma, são raros os cidadãos brasileiros que já não estejam conquistados para essa visão do mundo, no mínimo por desconhecer que ela é uma visão e não o próprio mundo. Em especial, a explicação da história com base no esquema marxista das classes sociais economicamente de�nidas, que é o terreno prévio para uma doutrinação mais ativa, já se pode considerar de�nitivamente integrada nos esquemas de pensamento da mídia e da população instruída, ao ponto de que ninguém, aí, tem a consciência de que ela é apenas uma teoria entre outras e todos a tomam como se fosse um traslado direto da realidade vivida. Por menos que ela coincida com a efetiva distribuição das forças no panorama social brasileiro, o cidadão espontaneamente apela aos seus conceitos básicos — se não à sua nomenclatura — para expressar o que acha que se passa na sociedade. Assim, por exemplo, a burocracia estatal, em vez de ser encarada como uma força autônoma — o que é um traço característico da sociedade brasileira — e embora nela se recrute a maior parte da militância esquerdista, se tornou invisível o bastante para que os efeitos de suas ações sejam atribuídos à “classe dominante", compreendida no sentido de “os ricos" ou “os capitalistas". A classe média, que abrange 46% da nossa população e inclui a quase totalidade das pessoas politicamente atuantes (sobretudo na esquerda), não tem nenhuma consciência de si como entidade distinta, mas cada um, dentro dela, espontaneamente divide o quadro social entre os “os ricos" e os “os pobres", tomando os discursos partidários como se fossem traduções �éis das realidades sociológicas subjacentes e catalogando-se a si mesmo na classe dos pobres, sem reparar que os pobres o colocam na classe dos ricos e, na verdade, o invejam e o odeiam mais do que a qualquer banqueiro. A alienação entre a realidade social e o discurso de auto-explicação, em tais circunstâncias, é total. Com igual facilidade, a compreensão das idéias como expressões estereotipadas de interesses de classe é projetada sobre a imagem do nosso passado histórico, passando como um trator sobre o fato, facilmente comprovável mas marxisticamente inexplicável, de que no Brasil os discursos ideológicos quase nunca coincidem com os interesses objetivos das classes sociais envolvidas. Na educação pública, nos livros, nos programas pretensamente educativos da , a redução marxista das criações culturais a superestruturas dos interesses de classe já está tão profundamente integrada no vocabulário corrente que quem deseje apresentar alguma outra versão da história não tem nem por onde começar a se explicar e pode até cair no ridículo ao bater de frente com o “senso comum" (no sentido gramsciano do termo). De maneira bastante compreensível, mas nem por isto menos irônica, quanto mais limitado o horizonte de uma pessoa esteja aos cânones da vulgata marxista, mais ela reagirá com quatro pedras na mão à denúncia de que existe propaganda do marxismo no Brasil e, mais ainda, à idéia de que os comunistas tenham algum poder entre nós. Ser invisível, já dizia René Guénon, é da essência mesma do poder. Uma segunda fase da doutrinação é a que vai associar, ao estereótipo das classes, os valores morais e emocionais necessários a despertar reações de agrado ou desagrado conforme o discurso ouvido soe de maneira a parecer associado aos “interesses de classe" dos bondosos pobres ou dos malvados ricos, por menos que, objetivamente, tenham algo a ver com isso. O discurso em favor da livre empresa, por exemplo, embora objetivamente fale em favor da imensa população pobre que vive da economia informal, é rejeitado como defesa dos interesses da “elite" e das multinacionais, enquanto o discurso estatizante, embora não arranhe no mais mínimo que seja os interesses das classes ricas e de fato fortaleça a burocracia onipotente que reduz o país à pobreza mediante uma carga tributária escorchante, é facilmente aceito como tradução dos interesses dos “excluídos". Da alienação passa-se então à alucinação, mas, não por coincidência, a própria angústia decorrente do vago pressentimento da loucura é em seguida explorada para gerar mais ódio à imagem estereotipada da “classe dominante", responsabilizada por todos os males e personi�cada em indivíduos e grupos que, na verdade, não são dominantes de maneira alguma e funcionam como puros bodes expiatórios, como por exemplo os militares. A tal ponto os símbolos convencionais se substituem à percepção dos fatos que um acontecimento como o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, é passivamente aceito pelo seu valor nominal de manifestação antiglobalista, malgrado o apoio que recebe da , o coração da Nova Ordem Mundial, bem como da rede mundial de s que estão para a como as veias e artérias estão para o coração. ..: Tendo outras coisas a dizer neste meu espaço semanal em vez de gastá-lo para rebater a nova investida caluniosa de Dona Cecília Coimbra (O Globo, 20 de janeiro), mas ao mesmo tempo repugnando- me toda afetação de silêncio superior, coloquei uma resposta a ela e a seus comparsas no meu website https://olavodecarvalho. org/, onde mostro como essa senhora, por inépcia furiosa, prova o que queria desmentir e desmente o que queria provar. E, doravante, chega de explicações: qualquer nova tentativa de fazer do meu artigo “Tortura e terrorismo" uma apologia da tortura será respondida diretamente com um processo judicial. O Globo, 27 de janeiro de 2001 T Ele não é um militante anti�delista: é só um sujeito que conhece Cuba porque ajudou a fazê- la Oscar Luís Geerken foi assessor do Comitê Revolucionário cubano. Dedicou 16 anos de sua vida à causa �delista, até que, em 1993, fugiu para Miami. Não se ligou a nenhuma organização contra- revolucionária. Não pretende ser mais que uma testemunha solitária, e foi nessa condição que, convidado por um amigo, veio a Porto Alegre para descrever, a quem desejeouvi-lo, alguns aspectos da economia cubana que, de�nitivamente, não estão na pauta do Fórum Social Mundial. A imprensa gaúcha, com as poucas exceções de sempre, tem feito o que pode para ocultar essa presença incômoda, que, se exibida em tamanho natural, bastaria para desmoralizar o custoso empreendimento publicitário subsidiado pelo governo estadual e destinado a oferecer aos brasileiros o modelo de progresso e prosperidade de algumas das nações mais atrasadas e miseráveis do planeta. Para compensar um pouco essa injustiça, abdico de expressar aqui minha opinião pessoal e cedo este espaço a algumas frases aterradoras ouvidas logo após um almoço, na quarta-feira, num rodízio gaúcho: — Sem nenhum exagero, hoje comi mais carne de vaca que durante toda a década de 80 em Cuba. No máximo, às vezes, conseguíamos uns pedaços de frango. — Mas como as coisas chegaram a esse ponto? — Bem, a reforma agrária cubana distribuiu as terras férteis entre as fazendas estatais e os camponeses independentes. Aquelas, embora tendo capital, equipamentos, fertilizantes e assistência técnica, nada conseguiram produzir, enquanto os camponeses, sem nada disso, produziam alguma coisa. Como isso dava má impressão, foram acusados de vender no mercado negro, de elevar arti�cialmente os preços, de trair a revolução. Perderam suas terras e muitos foram para a cadeia. A produção de alimentos em Cuba tornou-se irrisória. Mesmo produtos de primeira necessidade, como leite em pó e papinhas para nenês, que antes da revolução eram feitos em Havana, depois da reforma agrária tiveram de ser importados. — E os novos restaurantes que o governo liberou para a iniciativa privada? — Cada restaurante pode ter no máximo 12 cadeiras, e mesmo assim é difícil ter o que servir. O sujeito oferece, por exemplo, um frango. Passa o �scal e pergunta: “Onde comprou?". É claro que foi no mercado negro. Onde mais poderia ser? Aí o restaurante é fechado e o camarada vai preso. — Mas a situação não pode ser ruim como em nossas favelas. — Em matéria de alimentação, o favelado brasileiro está melhor servido que o cidadão médio cubano. Em assistência médica e educação, o cubano ganha, mas já ganhava antes da revolução. — E os salários? — Para você fazer uma idéia, um amigo meu, que é cirurgião, ganha 430 pesos cubanos por mês: mais ou menos US$ 15. Já sei que, de Cuba, virão nos próximos dias informações de que o homem é um maluco, é um farsante, é um isto, um aquilo, e receberão toda a atenção que a imprensa local negou ao acusado. Para a massa puerilizada pela propaganda, a credibilidade de uma calúnia é diretamente proporcional a sua difusão, mas o homem experiente sabe que, para sujar bem, é preciso estar bem sujo: é mais fácil para Fidel Castro sujar a reputação da testemunha que limpar o que ela viu em sua ilha. ..: Dada a prioridade das declarações de Geerken, minha resposta ao deputado José Dirceu, planejada de início para sair aqui, será colocada em minha homepage, http:// www.olavodecarvalho.org,1 durante a próxima semana. Época, 27 de janeiro de 2001 P Já tive a ocasião de observar que a propaganda petista, investindo pesado na imagem de honestidade incorruptível e no discurso de inculpação moralista, �ca, ela própria, não apenas aquém dos padrões de qualquer código moral superior, mas muito abaixo das exigências mais corriqueiras do Código de Proteção ao Consumidor. Ela acaba de con�rmar isso, com os outdoors com que cobriu a cidade de Porto Alegre nos primeiros dias do Fórum Social Mundial. Eles apregoam que o partido “é contra toda injustiça, em qualquer lugar do mundo". Essa propaganda é uma fraude em toda a extensão da palavra, e o partido deveria ser responsabilizado judicialmente por mentir aos eleitores de maneira tão cínica e descarada. De um lado, são notórios os esforços dos líderes petistas para disfarçar e acobertar as crueldades e violências do regime cubano, mais vastas, mais graves e mais atuais que aquelas que eles próprios, �ngindo altos sentimentos de indignação ética, denunciam no General Pinochet. Neste mesmo momento, o médico Elias Biscet, reconhecido pela Anistia Internacional como prisioneiro de consciência, sofre torturas sem �m num cárcere em Havana, pelo simples fato de opor-se à política o�cial de abortos em massa. E que faz o ? Denuncia o crime? Expulsa de suas �leiras aquele horrendo ex-padreco que proclamou a Cuba de Fidel “o reino de Deus na Terra"? Não. Em vez disso, o governo petista do Rio Grande do Sul patrocina com dinheiro público esse grotesco festival de propaganda �delista que é o Fórum Social Mundial. A Anistia Internacional acaba de denunciar a morte de 77 membros da seita Falun Gong em prisões chinesas, e que faz o ? Alardeia o fato, com palavras emocionadas, do alto da tribuna do Fórum Social Mundial? Nada. Discursa contra nações democráticas que protegem refugiados e acolhem perseguidos políticos de todas as proveniências ideológicas. O ex-assessor do Comitê Revolucionário Cubano, Oscar Luís Geerken, vem a Porto Alegre com seus recursos pessoais, para contar aos gaúchos os crimes e atrocidades da revolução que ele mesmo ajudou a dominar seu país, e que fazem os petistas e seus solícitos servidores jornalísticos? Ajudam-no a combater a injustiça “em qualquer lugar do mundo"? Não. Fazem tudo para ocultar a sua presença incômoda, quando não para sujar a reputação desse combatente solitário mediante insinuações sórdidas, em linguagem copiada ipsis litteris dos discursos caluniosos com que Fidel Castro se evade das denúncias irrespondíveis dos refugiados cubanos de Miami. Sim, o cartaz do é pura propaganda enganosa, como é propaganda enganosa a declaração do governador Olívio Dutra, de que o gasto de dinheiro público com esse circo comunista se justi�ca como “investimento", por trazer turistas e seu dinheiro para a cidade de Porto Alegre. Que bela desculpa! Se ela valesse alguma coisa, valeria muito mais para justi�car um congresso de turistas neoliberais, que, a darmos crédito ao que se diz no próprio Fórum, têm muito mais dinheiro. Para mim, esse Fórum foi a pá de cal nas pretensões petistas de encarnar algo de moralmente digno e saudável. Propaganda sectária travestida de debate, apologia de regimes escravistas envolta em pompas de guerra santa contra a miséria, nele o discurso monológico de uma ideologia sociopática só não ocupou todo o espaço porque umas centenas de jovens corajosos, de doze diretórios estudantis gaúchos, invadiram o plenário para vaiar os Olívios, Lulas e Zés Dirceus e, sem deixar-se atemorizar pela pressão policial, dizer-lhes umas verdades na cara, resumidas no refrão: “O Fórum tem um milhão; a educação, nem um tostão". Excetuado esse instante de sinceridade, o Fórum foi aquele festival de oratória canina e autobeati�cação que, de uns anos para cá, assinala indefectivelmente o estilo esquerdista de ser. Contemplando esse espetáculo abjeto, perdi o pouco de respeito que ainda poderia ter por essa gente, e declaro alto e bom som: mais até do que o velho Partido Comunista, que no fundo da sua produção industrial de mentiras conservava ao menos a �delidade a uma doutrina explícita em nome da qual podia ser cobrado, o , que usa de todas as doutrinas conforme lhe convenham, e que tanto pode ser marxista como envergar a máscara trabalhista, socialdemocrata ou social-cristã sempre que julgue que esses disfarces o aproximarão do poder, tornou- se a encarnação da falsidade escorregadia e do maquiavelismo oportunista. *** Agora, uma atençãozinha aos meus críticos. Na revista Nao-til número 73, o articulista Marco Antônio Trisch Mendonça, protestando contra a abertura de espaço na imprensa para estas minhas considerações quinzenais, concede no entanto metade da sua coluna à transcrição de uma delas. Não nego que gostei dessa parte do seu artigo. Na metade que lhe resta, ele informa que lambeu a Retórica de Aristóteles, o que deve ser verdade, por inusitado que pareça esse modo de absorção de conhecimentos, e também que é comunista,coisa que ninguém jamais suspeitaria, não é mesmo? Em seguida, interpretando uma frase na qual digo que os educadores esquerdistas, em vez de alfabetizar seus discípulos, querem adestrá-los para o ataque como se fossem cães, ele entende que chamo esses discípulos de cães — o que mostra que pelo menos no seu caso o adestramento obteve êxito, ao ponto de dispensar a alfabetização quase que por completo. No momento culminante da sua argumentação, ele declara que sou muito histérico, e esta horrível constatação psiquiátrica o deixa num tal estado de nervos que ele próprio cai vítima de tartamudez histérica e, em transe, exclama: “Não sei o que dizer!" — uma asserção que não hesito em admitir como incontestável e auto-evidente. Já o tal Juremir não se cansa. Quer por toda lei dizer alguma coisa contra mim. Quando não encontra nada, apela a algo que pelo menos pareça contra. Com o ar de quem vai soltar um petardo, fazer um arraso, me desmoralizar por completo, ele informa aos leitores do Correio do Povo do dia 14 que dei cursos de astrologia e sou autor de alguns livros a respeito. Omite, obviamente, que essa informação está acessível no meu site, e que ela não tem nada de escandaloso, exceto aos olhos de quem, como o próprio Juremir, desconheça a distinção entre os dois sentidos da palavra “astrologia": de um lado, a vulgar técnica preditiva, de outro a simbólica cosmológica das Artes Liberais, sem a qual não se compreende uma só linha de Dante ou de Santo Tomás, e que hoje é matéria de conhecimento obrigatório para todo estudante de histórias das idéias em qualquer centro civilizado. A ignorância do Juremir, no caso, é tão vasta que lhe encobre o horizonte inteiro, levando-o a supor que todos os seus leitores tomarão a palavra “astrologia" no seu sentido pop, o único que ele conhece, e daí tirarão conclusões temíveis para a minha reputação intelectual. Esse Juremir é realmente um caso para a assistência social. Não posso sequer chamá- lo malicioso. A malícia dele é a de um menino que, tendo feito cocô nas calças, dá um sorrisinho de orgulho maquiavélico, achando que cometeu uma perversidade digna do Marquês de Sade. Zero Hora, 28 de janeiro de 2001 S A Cuba é o único país do Ocidente onde o cidadão pode ser preso por mandar batizar um �lho. Quando um ex-sacerdote diz ver nesse país “o reino de Deus na Terra", está claro que ele não se despiu apenas da batina, nem da fé católica, mas dos últimos vestígios de moral cristã, mesmo laicizada, que ainda pudessem restar no seu coração de apóstata. Isso não quer dizer que seja um ateu. O ateísmo é uma rejeição da fé, não uma inversão dela. A inversão coloca no topo o que estava embaixo, chamando o inferno de céu, odiando o que Deus ama e amando o que Deus abomina. O Anticristo não é um não-Cristo, uma supressão do Cristo: é um Cristo às avessas, que ilude as multidões porque corresponde ao Cristo ponto por ponto, apenas de cabeça para baixo. Por isso o ex-sacerdote não se torna ateu. De certo modo, continua sacerdote. Sem isso, não poderia o�ciar o rito diante do cruci�xo invertido. A inversão não troca somente o alto pelo baixo, mas o interior pelo exterior. Toda religião, e o cristianismo também, possui um núcleo de doutrina imutável e uma in�nidade de símbolos exteriores que mudam com o tempo, re�etindo a adaptação da fé às modas culturais e às variações do imaginário popular. Numa época com forte senso da hierarquia, a imagem de Cristo Rei sugeria a analogia da Nova Aliança com a estabilidade da ordem social e cósmica. Numa sociedade democrática, predomina a imagem do Cristo simples e popular, a circular anônimo entre mendigos e prostitutas. Cristo contém em si, inseparavelmente, a autoridade e a simplicidade. A moda cultural enfatizará autonomamente uma ou outra, de maneira que ela acabe por se tornar, sozinha, o emblema do cristianismo. A essa altura, que faz a Igreja do Anticristo? Enverga esse emblema e o ostenta com tal espalhafato, que ele acaba por encobrir e substituir o núcleo da fé, jogando-o fora em nome de algo que, aos olhos da multidão, passa pelo mais puro cristianismo. A divinização dos símbolos da realeza permitiu que a autoridade do Cristo Rei personi�cada no monarca legitimasse, sem grande escândalo público, a matança de bispos e santos. Numa época de igualitarismo, a moda cultural é a “igreja dos pobres". Em seu nome são renegados e abolidos os Dez Mandamentos, o Credo e cada palavra do Evangelho, sem que ninguém se dê conta de ter-se afastado do cristianismo um só milímetro. Proibir a missa, criminalizar o batismo, matar multidões de crentes tornam-se provas de profunda fé cristã. Quanto mais adventício, periférico e desprezível é o símbolo, maior seu poder de usurpar o lugar do simbolizado. Não conhecemos com certeza, por exemplo, a �gura real do Jesus histórico. Todas as suas representações são imaginárias. Algumas épocas conceberam-no com os traços nobres de um príncipe, outras com a �sionomia rústica de um camponês; umas, como um adulto atlético, de olhar severo; outras, como um jovem de expressão sonhadora e barba rala. Na nossa época, onde à moda populista se somou a idolatria da juventude, veio a predominar esta última imagem. E a coincidência fortuita dela com os traços de Ernesto Che Guevara basta para dar verossimilhança à identidade essencial desse genocida frio e psicopata com o próprio Jesus Cristo, proclamada pelo sacerdote acima referido. Esaú trocou sua primogenitura por um prato de lentilhas, que ao menos o alimentou por umas horas; o sacerdote de que estou falando sugere que a troquemos pela contemplação idiota de um pôster que, se fosse o dos Beatles, funcionaria igualmente bem para essa �nalidade. Mas quem é o tal sacerdote? Alusões e indiretas, sobretudo proferidas com ar de inocência, não são do meu estilo. Se me perguntarem se estou falando do tal de Betto, responderei que indiscutivelmente sim, com a ressalva de que não o aponto como indivíduo e sim como amostra casual de um tipo cujo nome é legião. Tanto que chego a confundi-lo com o Sr. Boff, em razão da xifopagia espiritual que os une, e, não conseguindo distinguir nenhum dos dois do peruano Gutierrez que de certo modo os gerou, poderia aplicar a qualquer dos três a descrição acima, sem mudar uma só palavra. Pouco importam, en�m, os nomes: o sacerdócio do Anticristo é missão impessoal como um comissariado do povo na extinta , e ninguém lhe vende a alma sem entregar, com ela, a identidade pessoal. Jornal da Tarde, 1º de fevereiro de 2001 A É lendo que se aprende a escrever — eis o tipo mesmo da fórmula sintética que traz dentro muitas verdades, mas que de tão repetida acaba valendo por si mesma, como um fetiche, esvaziada daqueles conteúdos valiosos que, para ser apreendidos, requereriam que a fórmula fosse antes negada e relativizada dialeticamente do que aceita sem mais nem menos. Ler, sim, mas ler o quê? E basta ler ou é preciso fazer algo mais com o que se lê? Quando a fórmula passa a substituir estas duas perguntas em vez de suscitá-las, ela já não vale mais nada. A seleção das leituras supõe muitas leituras, e não haveria saída deste círculo vicioso sem a distinção de dois tipos: as leituras de mera inspeção conduzem à escolha de um certo número de títulos para leitura atenta e aprofundada. É esta que ensina a escrever, mas não se chega a esta sem aquela. Aquela, por sua vez, supõe a busca e a consulta. Não há, pois, leitura séria sem o domínio das cronologias, bibliogra�as, enciclopédias, resenhas históricas gerais. O sujeito que nunca tenha lido um livro até o �m, mas que de tanto vasculhar índices e arquivos tenha adquirido uma visão sistêmica do que deve ler nos anos seguintes, já é um homem mais culto do que aquele que, de cara, tenha mergulhado na Divina Comédia ou na Crítica da razão pura sem saber de onde saíram nem por que as está lendo. Mas há também aquilo que, se não me engano, foi Borges quem disse: “Para compreender um único livro, é preciso ter lido muitos livros".