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O irracional superior: o que restou do Imbecil, vol. IV
Olavo de Carvalho
1ª edição — fevereiro de 2023 — CEDET
Copyright © Herdeiros de Olavo de Carvalho
Os direitos desta edição pertencem ao
CEDET — Centro de Desenvolvimento Pro�ssional e Tecnológico
Av. Comendador Aladino Selmi, 4630,
Condomínio GR Campinas 2 — módulo 8
CEP: 13069-096 — Vila San Martin, Campinas-SP
Telefone: (19) 3249-0580
e-mail: livros@cedet.com.br
Direção editorial:
Silvio Grimaldo
Editor:
Felipe Denardi
Preparação de texto:
Daniel Araújo
Vitório Armelin
Diagramação:
Maurício Amaral
Capa:
NOZ marca
Revisão de provas:
Mariana Souto Figueiredo
Tomaz Lemos
Natalia Ruggiero
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
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Carvalho, Olavo de.
O irracional superior: o que restou do Imbecil, vol. IV / 
Olavo de Carvalho — Campinas, SP: Vide Editorial, 2023.
ISBN: 978-85-9507-155-1
1. Filoso�a moderna — Ensaios. 2. Ensaios e estudos �losó�cos.
I. Título II. Autor
CDD — 190-2 / 501-01
Í P C S
1. Filoso�a moderna — Ensaios — 190-2
2. Ensaios e estudos �losó�cos — 501-01
VIDE Editorial — www.videeditorial.com.br
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por
qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro
meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
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Este volume se compõe de todos os artigos que Olavo de Carvalho
publicou no ano de 2001, nos jornais Zero Hora, O Globo, Jornal da
Tarde, e na revista Época, e vem para integrar a série O que restou do
Imbecil, que, dando seqüência a O Imbecil Coletivo, de 1996
(reeditado por nós agora em 2021), já conta com seus três primeiros
volumes A longa marcha da vaca para o brejo (2019), O imbecil
juvenil (2020) e O leão e os ossos (2021). O acontecimento mais
marcante do ano de 2001 foi, sem dúvida, o ataque às torres gêmeas do
World Trade Center, várias vezes mencionado pelo �lósofo, que
comentou também o avanço no Brasil, tanto do comunismo — por
meio de mudanças escusas promovidas pelo governo e movimentações
de entidades como as farc, a cut e o mst — como da Nova Ordem
Mundial, pelos tentáculos de seus �nanciadores. Entretanto, o
verdadeiro valor desses artigos consiste em que, ao tocar esses vulgares
eventos, registrados em jornal, Olavo os aproveitava para traçar
paralelos históricos, e mais que isso, demonstrar sua continuidade e
sua relação causal com fatos passados por vezes ignorados do público
geral. Ele os usava como pretexto para explicitar princípios éticos e
cognitivos universais ou princípios básicos da ciência e da análise
política, bem como tocar, mais de uma vez, a essência da �loso�a e da
religião. E isso era feito tendo como centro a consciência humana, que
presencia os fatos e, contemplando-os amorosamente, busca confessá-
los tal como os vê — expediente este que, segundo o mesmo �lósofo,
estava em extinção no Brasil, completamente ausente nas “classes
falantes" — o meio universitário e jornalístico, que, em vez disso,
pautando-se pelo so�sma do argumentum ad ignorantiam, prefere
zurrar de sua cátedra: “Nunca ouvi falar; logo, você está errado". Esse
ilustre personagem coletivo, batizado de “irracional superior",
emprestou seu nome também ao livro, no qual o leitor o verá descrito
a seguir, no melhor estilo divertido e provocante de Olavo de Carvalho
— que nos deixou avisados: “Muitas coisas que eu escrevi vão ser úteis
depois da minha morte".
— O editor
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Se há um princípio moral universal, é aquele que, para abreviar,
chamarei “princípio de autoria": cada um é autor de seus atos. Esta
obviedade suprema tem conseqüências que, embora sejam igualmente
óbvias, muitas vezes são negadas na prática. A ocorrência desse
fenômeno assinala, nas pessoas envolvidas, uma consciência moral
frouxa e autocomplacente. Quem quer que negue implicitamente o
princípio de autoria falseia toda a moralidade.
Mas, justamente porque as deduções lógicas no caso são bem fáceis
de fazer, e de fato se fazem quase que por instinto, é evidente que o
falseamento delas, quando ocorre, raramente se dá por simples erro
lógico, mas denota quase sempre, no autor do juízo, algum fundo falso.
Não por coincidência, as pessoas moralmente frouxas são as que mais
se apressam a emitir juízos morais severos com pouco conhecimento
de causa. Invariavelmente, acabam caindo na negação do princípio de
autoria, e assim revelam a imoralidade de suas intenções por trás de
sua máscara de probidade. São pessoas que carregam por dentro a
angústia difusa de culpas mal conscientizadas, das quais buscam
aliviar-se mediante acusações a terceiros. A política é o campo
preferencial de atuação desses falsos moralistas, porque em política
sempre se pode falar de maneira ambígua e irresponsável, procurando
por exemplo atingir pessoas determinadas e concretas através de
acusações genéricas a entidades abstratas e indeterminadas (classes
sociais, modelos econômicos), tentando dar à mera responsabilidade
política a conotação de grave culpa moral pessoal, etc.
Se cada um só está obrigado, em princípio, a responder porA
arte de ler é uma operação simultânea em dois planos, como num
retrato onde o pintor tivesse de trabalhar ao mesmo tempo os detalhes
da frente e as linhas do fundo. A diferença entre o leitor culto e o
inculto é que este toma como plano de fundo a língua corrente da
mídia e das conversas vulgares, um quadro de referência
unidimensional no qual se perde tudo o que haja de mais sutil e
profundo, de mais pessoal e signi�cativo num escritor. O outro tem
mais pontos de comparação, porque, conhecendo a tradição da arte da
escrita, fala a língua dos escritores, que não é nunca “a língua de todo
mundo", por mais que até mesmo alguns bons escritores, equivocados
quanto a si próprios, pensem que é.
Não há propriamente uma “língua de todo mundo". Há as línguas das
regiões, dos grupos, das famílias, e há as codi�cações gerais que as
formalizam sinteticamente. Uma dessas codi�cações é a linguagem da
mídia. Ela procede mediante redução estatística e estabelecimento de
giros padronizados que, pela repetição, adquirem funcionalidade
automática.
Outra, oposta, é a da arte literária. Esta vai pelo aproveitamento das
expressões mais ricas e signi�cativas, capazes de exprimir o que
di�cilmente se poderia exprimir sem elas.
A linguagem da mídia ou da praça pública repete, da maneira mais
rápida e funcional, o que todo mundo já sabe. A língua dos escritores
torna dizível algo que, sem eles, mal poderia ser percebido. Aquela
delimita um horizonte coletivo de percepção dentro do qual todos, por
perceberem simultaneamente as mesmas coisas do mesmo modo e
sem o menor esforço de atenção, acreditam que percebem tudo. Esta
abre, para os indivíduos atentos, o conhecimento de coisas que foram
percebidas, antes deles, só por quem prestou muita atenção. Ela
estabelece também uma comunidade de percepção, mas que não é a da
praça pública: é a dos homens atentos de todas as épocas e lugares — a
comunidade daqueles que Schiller denominava “�lhos de Júpiter". Esta
comunidade não se reúne �sicamente como as massas num estádio,
nem estatisticamente como a comunidade dos consumidores e dos
eleitores. Seus membros não se comunicam senão pelos re�exos
enviados, de longe em longe, pelos olhos de almas solitárias que
brilham na vastidão escura, como as luzes das fazendas e vilarejos, de
noite, vistas da janela de um avião.
Uma en�m, é a língua das falsas obviedades, outra a das “percepções
pessoais autênticas" de que falava Saul Bellow. Muitos cientistas loucos,
entre os quais os nossos professores de literatura, asseguram que não
há diferença. Mas o único método cientí�co em que se apóiam para
fazer essa a�rmação é o argumentum ad ignorantiam, o mais tolo dos
artifícios sofísticos, que consiste em deduzir, de seu próprio
desconhecimento de alguma coisa, a inexistência objetiva da coisa. A
língua literária existe, sim, pelo simples fato de que os grandes
escritores se lêem uns aos outros, aprendem uns com os outros e têm,
como qualquer outra comunidade de ofício, suas tradições de
aprendizado, suas palavras-de-passe e seus códigos de iniciação. Tentar
negar esse fato histórico pela impossibilidade de deduzi-lo das regras
de Saussure é negar a existência das partículas atômicas pela
impossibilidade de conhecer ao mesmo tempo sua velocidade e sua
posição.
A seleção das leituras deve nortear-se, antes de tudo, pelo anseio de
apreender, na variedade do que se lê, as regras não escritas desse
código universal que une Shakespeare a Homero, Dante a Faulkner,
Camilo a Sófocles e Eurípides, Elliot a Confúcio e Jalal-Ed-Din Rûmi.
Compreendida assim, a leitura tem algo de uma aventura iniciática: é
a conquista da palavra perdida que dá acesso às chaves de um reino
oculto. Fora disso, é rotina pro�ssional, pedantismo ou divertimento
pueril.
Mas a aquisição do código supõe, além da leitura, a absorção ativa. É
preciso que você, além de ouvir, pratique a língua do escritor que está
lendo. Praticar, em português antigo, signi�ca também conversar. Se
você está lendo Dante, busque escrever como Dante. Traduza trechos
dele, imite o tom, as alusões simbólicas, a maneira, a visão do mundo.
A imitação é a única maneira de assimilar profundamente. Se é
impossível você aprender inglês ou espanhol só de ouvir, sem nunca
tentar falar, por que seria diferente com o estilo dos escritores? O
fetichismo atual da “originalidade" e da “criatividade" inibe a prática da
imitação. Quer que os aprendizes criem a partir do nada, ou da pura
linguagem da mídia. O máximo que eles conseguem é produzir
criativamente banalidades padronizadas.
Ninguém chega à originalidade sem ter dominado a técnica da
imitação. Imitar não vai tornar você um idiota servil, primeiro porque
nenhum idiota servil se eleva à altura de poder imitar os grandes,
segundo porque, imitando um, depois outro e outro e outro mais, você
não �cará parecido com nenhum deles, mas, compondo com o que
aprendeu deles o seu arsenal pessoal de modos de dizer, acabará no
�m das contas sendo você mesmo, apenas potencializado e enobrecido
pelas armas que adquiriu.
É nesse e só nesse sentido que, lendo, se aprende a escrever. É um ler
que supõe a busca seletiva da unidade por trás da variedade, o
aprendizado pela imitação ativa e a constituição do repertório pessoal
em permanente acréscimo e desenvolvimento. Muitos que hoje posam
de escritores não apenas jamais passaram por esse aprendizado como
nem sequer imaginam que ele exista.
Mas, fora dele, tudo é barbárie e incultura industrializada.
O Globo, 3 de fevereiro de 2001
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Desencontrado, eu mesmo me contesto.
— Chico Buarque de Hollanda, em Calabar
O que aconteceu no Rock in Rio é a imagem viva da esquizofrenia
nacional. O sujeito se veste de americano, pula e dança o dia inteiro ao
som da música americana e, quando vê na tela a bandeira dos Estados
Unidos, se in�ama de brios patrióticos e brada contra o colonialismo
cultural. Depois continua pulando — e joga latas de protesto na cabeça
de Carlinhos Brown quando ele quer estragar o festival de
americanidade tocando música baiana. Já viram uma coisa dessas? É
Olívio Dutra tomando Coca-Cola numa cuia de chimarrão — para
disfarçar — e fazendo um discurso contra a “água negra do
imperialismo".
Mas, no Fórum Social de Porto Alegre, a imagem adquiriu corpo,
vida e movimento: entre vaias e apupos à Nova Ordem Mundial, a
ilustrada assembléia manifestou seu amor ao direito trabalhista global,
ao desarmamento civil, às quotas raciais preferenciais e ao controle da
internet — quatro quintos do programa da Nova Ordem Mundial. O
quinto restante foi objeto de debates só porque os participantes
querem fazer tudo isso com os métodos econômicos de Cuba, do
Vietnã e da Coréia do Norte, o que certamente não será motivo de
discussão por muito tempo, já que a Nova Ordem Mundial sabe
respeitar a independência das nações e largá-las sozinhas, num
arrabalde infecto, quando elas fazem uma opção preferencial pelo
suicídio. Com a maior tranqüilidade, ela virou as costas aos povos da
África, que gritavam de revolta contra o capitalismo internacional que
não os largava e hoje espumam de ódio contra o capitalismo
internacional que os abandonou. No futuro Brasil socialista, quando
estivermos disputando a tapa uma perna de rato, Olívio Dutra,
exibindo indignado uma lata de Coca-Cola vazia, dirá que é tudo
culpa da maldita Ford que o deixou na mão quando ele mais precisava
dela.
Quando digo que este país está louco, insano, necessitado de urgentes
cuidados psiquiátricos, as pessoas pensam que estou brincando. Mas
vejam o número de nossos compatriotas que nos anunciam o
socialismo com a seriedade e a compenetração de quem tivesse nas
mãos um remédio salvador. O Estado socialista mais rico e poderoso
que já existiu foi a  . Era a segunda potência industrial do mundo.
Se o Brasil implantar o socialismo hoje, levará meio século, na melhor
das hipóteses, para alcançar o patamar de desenvolvimento que a 
havia escalado quando, em 1991, veio ao chão. Qual a altura desse
patamar? Segundo dados o�ciais,o cidadão médio soviético, em 1987,
recebia metade da ração de carne que o súdito do czar comia em 1913.
Os negros sob apartheid na África do Sul tinham mais carros per
capita que os soviéticos. Em 1989, sem guerra nem nada, havia
racionamento de comida em Moscou. A família média (média, não
pobre) de quatro pessoas espremia-se num cômodo de 3 metros
quadrados, como nossos favelados. O operário, trabalhando um ano
inteiro, ganhava metade do que uma mãe americana desempregada
recebia por mês do serviço social. Tudo isso, é claro, nas regiões mais
desenvolvidas. Na periferia — Uzbequistão e Tadjiquistão, por
exemplo — 93% das casas não tinham esgoto e 50% nem água
encanada. A atmosfera era a mais poluída da Europa e os
investimentos em saúde os mais baixos do mundo industrializado.
Mas o socialismo ao qual os brasileiros estão pedindo receitas de
prosperidade não é nem o da  . É o de Cuba, da Coréia do Norte,
do Vietnã, lugares aonde um russo só ia por aquele espírito de
sacrifício patriótico com que um o�cial inglês do século passado,
abandonando o conforto de seu clube londrino, se aventurava nas
matas do Sudão, entre mosquitos e orangotangos, pela glória da
Rainha. E ainda dizem que o doido sou eu.
Época, 3 de fevereiro de 2001
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As idéias in�uenciam o curso das coisas na sociedade, decerto, menos
pela validade objetiva do seu conteúdo do que por servir de símbolos
que condensam sentimentos coletivos — desejos, ódios, temores,
esperanças. É possível, até, que toda idéia brote desses sentimentos.
Mas a transformação do sentimento em idéia tem vários graus
possíveis de elaboração. O simples desejo de expressar o anseio
coletivo não é a única motivação que leva um �lósofo a criar uma
doutrina. Há também o impulso de coerência e o simples desejo de
conhecer a realidade, de abrir-se à variedade dos fatos mesmo quando
contrariem os nossos sentimentos e quando não possam facilmente ser
reduzidos à unidade de uma explicação. Esses três motivos de �losofar
são, por assim dizer, naturais. A diferente dosagem com que entrem na
fórmula pessoal de�ne o estilo e o modo de ser de cada �lósofo. O tipo
extremo, no qual um desses impulsos se agiganta ao ponto de engolir
os outros dois, é tão raro quanto o composto equilibrado dos três. Mas
que los hay, los hay.
O tipo mesmo do �lósofo “expressivo" é Nietzsche. Ele costumava
comparar-se a um perdigueiro, farejando o vento em busca do
possível, do latente, que depois ele cristalizava em símbolos literários
de um poder sugestivo quase hipnótico. É natural que este estilo de
pensamento, por estar ainda muito próximo da imaginação poética, se
expresse numa linguagem descontínua, aforística, metafórica. Por isto
Nietzsche não tem propriamente uma doutrina, mas uma massa ígnea
de doutrinas virtuais, umas em con�ito com as outras e algumas em
con�ito aberto com os fatos. O brilho da sua forma literária encobre e
revela, ao mesmo tempo, a hesitação informe de um saber que se
anuncia e não acaba de nascer. Oscilando entre o futurismo heróico e a
corrosão decadentista, o nietzscheanismo é uma aurora vacilante que
perde o seu momento e não se levanta jamais.
No extremo oposto está Spinoza. Seu apego à coerência lógica era
tanto, que ele não apenas exteriorizou sua doutrina sob a forma
acabada e plena de uma dedução geométrica, mas ainda proclamou a
absoluta soberania cognitiva da pura dedução racional e desprezou
como inútil e enganosa a experiência dos fatos. O spinozismo é o
espírito de sistema levado às suas últimas conseqüências. Há um
encanto estético também aí, mas não do tipo verbal: é a beleza abstrata
da unidade lógica, um diamante boiando no in�nito, fora do tempo,
longe da “agitação feroz e sem �nalidade" deste nosso mundo.
Tentativas de reintroduzi-lo no tempo, na ação, no empírico, só
mostram a falta de pudor de exegetas que se apressam a interpretá-lo
às avessas para pô-lo a serviço de �ns práticos que não eram nem
poderiam ser os dele.
Assim como o primeiro tipo tem algo do poeta ou do oráculo, e o
segundo do artista plástico, o perfeito respeitador dos fatos, sem deixar
de ser �lósofo, aproxima-se antes do modelo do cientista empírico. É
Max Weber. Weber meteu na cabeça um problema — o das relações
entre economia e moral religiosa — e, na tentativa de resolvê-lo, criou
instrumentos intelectuais que perfazem, no �m das contas, toda uma
�loso�a das ciências. Se jogarmos a sua obra fora e dela só
conservarmos os seus escritos de epistemologia e método, eles já
bastarão para fazer dele um astro de primeira grandeza. Mas,
acumulando fatos em cima de fatos e indo buscá-los nos registros de
todas as civilizações ao alcance das suas fontes, ele ampliou de tal
modo a área de sua investigação que, tendo lançado inicialmente uma
hipótese, morreu sem ter chegado a saber exatamente se era verdadeira
ou falsa. Mas seu legado incompleto é precioso. Ele deixou-nos algo
mais que um problema e um método. Deixounos um exemplo de
probidade intelectual levada até o extremo do auto-sacrifício.
Em geral, os �lósofos têm um pouco de cada uma dessas tendências,
arranjadas em padrões mais ou menos felizes. Oswald Spengler, por
exemplo, é uma mistura da imaginação simbólica de Nietzsche com a
ânsia weberiana de abranger todos os fatos. Faltando-lhe o senso da
coerência lógica, não lhe resta outro instrumento de uni�cação dos
fatos senão o símbolo mesmo. Por isto sua �loso�a da história é antes
uma metáfora, uma poética da história.
Uma combinação mais freqüente é a do segundo tipo com o terceiro:
aquele misto de investigador factual probo e sistematizador rigoroso,
mas seco e sem imaginação, que nas épocas de prestígio universitário
impera do alto das cátedras como um árbitro do razoável e do
irrazoável. Penso em Victor Cousin, em Léon Brunschvicg ou em
tantos, tantos dentre os neo-escolásticos! Fazem um bom trabalho e
são importantes durante algum tempo, mas depois são esquecidos.
A combinação mais letal é a do primeiro com o segundo tipos, sem
nada ou quase nada do terceiro. A mistura do farejador de tendências
com o construtor de sistemas, sem a humildade do cientista ante os
fatos, produz o arquiteto de desastres. Nele a possibilidade captada no
ar se transmuta, pela estruturação lógica, em projeto de ação que alia,
à força arregimentadora do símbolo e à certeza racional da ordem, o
total desprezo pela realidade quando ela insiste em contrariá-lo. É o
homem que não compreende nem quer compreender o mundo, mas
transformá-lo à imagem e semelhança de um desejo enrijecido em
sistema. Infelizmente, pela própria lógica das coisas, este é, de todos os
tipos, puros ou combinados, aquele que tem mais força de ação
imediata sobre o contorno social. É Karl Marx.
O equilíbrio das três tendências é uma felicidade raras vezes
alcançada. O homem que a realiza tem a fertilidade do primeiro tipo, a
coerência do segundo, a honestidade cientí�ca do terceiro. Sua
�loso�a, mesmo temporariamente ignorada pelos seus
contemporâneos, é sempre uma força bené�ca que atravessa os
séculos, inspirando, ensinando, civilizando. Os �lósofos deste tipo são
uma bênção para a humanidade. Exemplos? Bem, não me resta muito
espaço para dizer por que, mas, prometendo me explicar melhor
algum dia, voto, para o momento, em Aristóteles e Leibniz.
P.S.: No meu site da internet, um de meus artigos vem antecedido do
aviso de que foi rejeitado por todos os periódicos a que o ofereci.
Embora a frase obviamente não implique que eu o tenha oferecido a
todos os periódicos do país, alguns engraçadinhos parece que daí
deduziram, e passaram a insinuar, que fui censurado no Globo. Não
leram ou �zeram que não leram a data do artigo, muito anterior ao
início de minha colaboração neste jornal. Proclamar os méritos de
uma publicação que sabe respeitar a liberdade de seus colaboradores
não é só um dever: é um prazer. Alegremente, pois, informo que aqui
jamais sofri censura ou restrições de espécie alguma, por mais que isto
doa a pessoas que, não gostando nem de mim nem do Globo, muito
apreciariamque eu as sofresse.
O Globo, 10 de fevereiro de 2001
O  
Tal personagem já está entre nós. Converse dois
minutos com ele e emburre para sempre
Outro dia perguntei a um festejado jornalista brasileiro o que ele
achava de algo que eu tinha lido num determinado livro e obtive a
seguinte resposta: “Nunca ouvi falar e acho que não tem o menor
fundamento".
Desde que entrei mais ativamente na arena dos combates
jornalísticos, em 1995, quase 100% das objeções que tenho encontrado
assumem a forma desse argumento: “Eu não sei do que você está
falando, logo você está errado".
Em lógica, isso se chama argumentum ad ignorantiam: deduzir, do
próprio desconhecimento de uma coisa, a inexistência da coisa. É uma
das formas elementares de so�sma, e o que me espanta é que ela tenha
adquirido, para a mentalidade dos brasileiros falantes, tanta autoridade
e tanta credibilidade.
A premissa dessa atitude mental é, evidentemente, a mais
insustentável que se pode imaginar: “Eu sei tudo (logo, o que eu
desconheço não existe)". O sujeito que raciocina nessa base tem um
dogmatismo pueril e autocon�ante que chega a ser comovente em sua
total candura. É verdade que, no uso diário, o so�sma aparece
disfarçado sob a forma de um “entimema", isto é, de um silogismo com
premissa oculta: o sujeito faz uma elipse mental, saltando direto do
sentimento de surpresa para a negação peremptória da novidade
repulsiva, sem se dar conta do pressuposto lógico que embasa sua
conclusão. Ele não é, pois, conscientemente dogmático. Mas, em vez
de atenuar a gravidade do erro, isso só põe em relevo uma prodigiosa
inconsciência. Como um homem pode proclamar uma conclusão com
tanta segurança sem nem perceber a premissa imediata que a
fundamenta? Também é verdade que meus objetores pertencem em
geral a um mesmo grupo social, pelo qual não se poderia avaliar a
inteligência dos demais brasileiros: o grupo dos intelectuais
esquerdistas e das pessoas afetadas, de algum modo, pela linguagem
deles. Não me surpreende que esse grupo reúna o grosso do
contingente de cretinos e incapazes, pois as formas direitistas de
cretinice saíram da moda e re�uíram para o circuito fechado dos
grupelhos pseudo-esotéricos que vivem de uma inofensiva auto-
adoração.
Após estudar o assunto por três décadas e meia, já cheguei à
conclusão de que o esquerdismo não é nem sequer uma ideologia: é
apenas uma forma de inconsciência patológica, um escotoma
intelectual (e moral) adquirido por vício e covardia. A experiência já
me mostrou que, em circunstâncias normais, é utópico esperar de um
militante esquerdista qualquer exercício da inteligência além do
estritamente necessário para manter aquecidos os sentimentos grupais
que o unem a seus pares numa espécie de fusão mística. Na verdade,
isso é mais que uma observação pessoal: é uma conclusão cientí�ca do
psiquiatra Joseph Gabel em Ideologies and the corruption of thought
(London, Transaction Publishers, 1997), em que ele completa as
investigações que começou em 1962 (que creio já ter mencionado
nesses artigos) sobre a identidade de estrutura lógica entre o discurso
socialista (e nacional-socialista) e o delírio esquizofrênico.
Mas o que é espantoso, sim, é a velocidade com que as pessoas
adquirem essa patologia mediante nada mais que uma exposição breve
e super�cial ao linguajar esquerdista. Aos 14, aos 13 anos, um
estudante brasileiro já está preso, paralisado, petri�cado na crença de
que qualquer fato novo que pareça contrariar seu sentimento de estar
do lado dos bons contra os maus deve ser negado no ato, sem a
mínima averiguação. Ou na melhor das hipóteses neutralizado
mediante alguma combinação verbal de improviso que lhe dê uma
interpretação totalmente diversa. Essa gente está espiritualmente
morta, intelectualmente castrada já no ingresso da adolescência. São
meninos tacanhos, prematuramente endurecidos, lacrados no fundo
de um poço seco, em cuja escuridão crêem enxergar, por projeção
inversa, a imagem de um futuro radiante.
Época, 10 de fevereiro de 2001
O   C 
A revelação de pretensas descobertas históricas, que envolveriam dois
ex-presidentes da república numa trama sinistra para o assassinato de
inimigos políticos, sugere, uma vez mais, que a usp não é
propriamente uma universidade e sim uma gigantesca central de
adestramento de propagandistas revolucionários, adornada, aqui e ali,
de algumas escolas técnicas e cientí�cas regularmente e�cientes,
destinadas a dar ao conjunto o mínimo indispensável de
respeitabilidade acadêmica que justi�que o consumo voraz de verbas
estatais.
Segundo foi noticiado na  , pesquisadores da  teriam
localizado, entre os papéis do antigo Dops, uma mensagem na qual o
General João Batista de Figueiredo, então chefe do  , transmitia ao
nosso embaixador em Portugal a ordem, emanada do presidente da
república, General Ernesto Geisel, de aplicar um tal “Código 12" em
cima de dois exilados, um deles o Almirante Cândido Aragão. Código
12, segundo os criptógrafos uspianos, signi�ca matar o sujeito e �ngir
causa acidental.
Não examinei os papéis, mas, qualquer que seja o seu teor, as
conclusões factuais que se pretende tirar deles não resistem, por si, ao
mínimo exame crítico.
Em primeiro lugar, o próprio nome cifrado da operação já é
duvidoso. O que aparece nos documentos não é “Código 12": é
“Oyykl". Para acompanhar o raciocínio uspiano, temos de aceitar que
Oyykl, com o perdão da palavra, signi�ca Código 12, e que Código 12
signi�ca a porcaria acima mencionada. A sutileza criptográ�ca da
mensagem já brada aos céus que nenhuma conclusão a respeito pode
ser aceita prima facie, sem veri�cação por técnicos de fora de uma
instituição que assumiu, como seu dever pedagógico primordial, sujar
a reputação do regime militar e de tudo quanto a ele esteja associado
mesmo remotamente.
Uma corporação acadêmica que não se inibe de discriminar seu
próprio reitor, vetando o estudo de livros dele como fez com Miguel
Reale, e que chega ao cúmulo de di�cultar, durante décadas, o acesso
de seus alunos de ciências sociais às idéias do único dos nossos
sociólogos que tem envergadura universal — Gilberto Freyre —, não
deve ser chamada de preconceituosa, porque o termo é doce demais.
Ela é simplesmente sectária. Que os arquivos do Dops, em vez de ser
colocados sob a guarda de uma comissão mista supra-ideológica,
sejam entregues a essa suspeitíssima instituição, para que os utilize
como matéria-prima de shows publicitários a pretexto de ciência
histórica, já é algo, para o meu gosto, demasiado chocante.
Mas ainda há, nas conclusões uspianas, muitas aberrações a ser
explicadas, se explicação tiverem. Por exemplo: nada, no mundo, pode
justi�car que o chefe de um serviço secreto, ao efetivar a secreta
execução de uma secretíssima operação ilegal, o faça... por vias
diplomáticas! Por que raios um o�cial militar, que tem sob suas ordens
diretas pro�ssionais habilitados para missões de guerrilha, sabotagem
e quantas mais truculências o adestramento de combate inclua, no
momento de passar à ação transmite a ordem, não a eles, mas a um
funcionário civil? Seria o embaixador um agente mais quali�cado do
que os militares para convocar e acionar os executores da ordem
homicida? A coisa é tão estúpida que raia o impensável.
Menos ainda haverá explicação razoável para o fato de que, ao enviar
à embaixada de Lisboa o memorando assassino em vez de remetê-lo a
destinatário mais apropriado, o chefe da conspiração urdida em altos
círculos federais ainda �zesse tirar cópias do sigiloso documento para
uma repartição estadual paulista...
Porém o mais inverossímil da trama é a vítima. Por que, em pleno
processo de abertura democrática, o governo se comprometeria numa
arriscada operação para mandar matar, no exterior, um inimigo
esquecido, aposentado, política e militarmente inócuo? Já em 1964 a
agressividade do Almirante Aragão contra o novo regime revelara ser
apenas um blefe, quando sua ameaça de invadir o Palácio das
Laranjeiras com um batalhão de fuzileiros navais se desfezcomo por
mágica ante a simples reação verbal enérgica do governador Carlos
Lacerda. Se, à frente de tropas armadas, tudo o que ele conseguiu fazer
foi sair da história para entrar no esquecimento, que milagre poderia
tornar tão temível, onze anos depois, esse velho balão furado? Não, um
plano governamental para transmutar um almirante de opereta em
mártir da causa esquerdista seria insensato demais, contraproducente
demais, suicida demais para que pudéssemos acreditar nele à primeira
vista, con�ados na pura autoridade de meninos uspianos, ansiosos
para acrescentar a contribuição da sua criatividade pessoal ao �lme de
Bela Lugosi em que a máquina esquerdista de desinformação vem
transformando a história — digamos que o seja — do período militar.
Por �m, resta o fato de que as vítimas, após a data fatídica,
continuaram passando bem e ignorando por completo a sua morte
anunciada...
Tudo isso prova, no mínimo, que a acusação é duvidosa e sua
divulgação afoita. Se nem mesmo uma simples denúncia jornalística se
exime do dever de ser inspecionada “pelos dois lados" antes de
estampar-se em manchete, por que uma revelação histórica que se
arroga foros de seriedade acadêmica deveria ser alardeada pela 
antes de submeter-se à inspeção de historiadores pro�ssionais alheios
ou antagônicos à fé ideológica de seus autores?
Jornal da Tarde, 15 de fevereiro de 2001
C 
Se é certo que romances, contos e peças de teatro registram algo da
psicologia dos povos, nós, brasileiros, deveríamos atentar seriamente
para o seguinte fato: nenhuma literatura no mundo é tão abundante de
tipos insinceros e �ngidos como a nossa. Praticamente a galeria inteira
dos personagens de Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano
Ramos, Arthur Azevedo, Marques Rebelo, Nelson Rodrigues e tantos
outros é constituída de pequenos farsantes, fracos e sem caráter, nos
quais a mentira existencial se tornou como que uma segunda natureza.
Não se trata de mentirosos conscientes, maquiavélicos, demoníacos.
Não temos um Iago nem um Verkhovenski Jr. (o maligno
revolucionário de Os Demônios de Dostoiévski). São antes
personalidades de pés de barro, erigidas em cima de uma falsa
consciência, de um desvio do foco de atenção. Deslizam
instintivamente para fora da realidade, como que por medo de se
conhecer, de topar de repente com a imagem da sua própria miséria
interior. Tímidas e esquivas, revestem-se incessantemente de máscaras
verbais cujo comércio preenche nove décimos da sua vida de vigília. O
décimo restante — quando chega à consciência — é angústia secreta,
reprimida, que não ousa dizer seu nome.
Na tipologia de Lukács, que distingue entre os personagens que
sofrem porque sua consciência é mais ampla que a do meio em que
vivem e os que não conseguem abarcar a complexidade do meio, a
literatura brasileira criou um terceiro tipo: aquele cuja consciência não
está nem acima nem abaixo da realidade, mas ao lado dela, num
mundo à parte todo feito de �cções retóricas e afetação histriônica. Em
qualquer outra sociedade conhecida, um tipo assim estaria condenado
ao isolamento. Seria um excêntrico. No Brasil, ao contrário, ele é o tipo
dominante: o �ngimento é geral, a fuga da realidade tornou-se
instrumento de adaptação social. Mas adaptação, no caso, não signi�ca
e�ciência, e sim acomodação e cumplicidade com o engano geral,
produtor da geral ine�ciência e do fracasso crônico, do qual em
seguida se busca alívio em novas encenações, seja de revolta, seja de
otimismo. Na medida em que se amolda à sociedade brasileira, a alma
se afasta da realidade — e vice-versa. Ter a cabeça no mundo da lua,
dar às coisas sistematicamente nomes falsos, viver num estado de
permanente desconexão entre as percepções e o pensamento é o
estado normal do brasileiro. O homem realista, sincero consigo
próprio, direto e e�caz nas palavras e ações, é que se torna um tipo
isolado, esquisito, alguém que se deve evitar a todo preço e a propósito
do qual circulam cochichos à distância.
Meu amigo Andrei Pleshu, �lósofo romeno, resumia: “No Brasil,
ninguém tem a obrigação de ser normal". Se fosse só isso, estaria bem.
Esse é o Brasil tolerante, bonachão, que prefere o desleixo moral ao
risco da severidade injusta. Mas há no fundo dele um Brasil temível, o
Brasil do caos obrigatório, que rejeita a ordem, a clareza e a verdade
como se fossem pecados capitais. O Brasil onde ser normal não é só
desnecessário: é proibido. O Brasil onde você pode dizer que dois mais
dois são cinco, sete ou nove e meio, mas, se diz que são quatro, sente
nos olhares em torno o fogo do rancor ou o gelo do desprezo.
Sobretudo se insiste que pode provar.
Sem ter em conta esses dados, ninguém entende uma só discussão
pública no Brasil. Porque, quando um brasileiro reclama de alguma
coisa, não é que ela o incomode de fato. Não é nem mesmo que ela
exista. É apenas que ele gostaria de que ela existisse e fosse má, para
pôr em evidência a bondade daquele que a condena. Tudo o que ele
quer é dar uma impressão que, no fundo, tem pouco a ver com a coisa
da qual fala. Tem a ver apenas com ele próprio, com sua necessidade
de afeto, de aplauso, de aprovação. O assunto é mero pretexto para ele
lançar, de maneira sutil e elegante, um apelo que em linguagem direta
e franca o exporia ao ridículo.
Esse ardil psicológico funda-se em convenções provisórias, criadas de
improviso pela mídia e pelo diz-que-diz, que apontam à execração do
público umas tantas coisas das quais é bom falar mal. Pouco importa o
que sejam. O que importa é que sua condenação forma um topos, um
lugar-comum: um lugar no qual as pessoas se reúnem para sentir-se
bem mediante discursos contra o mal.
O sujeito não sabe, por exemplo, o que são transgênicos. Mas ele viu
de relance, num jornal, que é coisa ruim. Melhor que coisa ruim: é
coisa de má reputação. Falando contra ela, o cidadão sente-se igual a
todo mundo, rompe por instantes o isolamento que o humilha.
Essa solidariedade no �ngimento é a base do convívio brasileiro, o
pilar de geléia sobre o qual se constroem uma cultura e milhões de
vidas. Em outros lugares as pessoas em geral discutem coisas que
existem, e só as discutem porque perceberam que existem. Aqui as
discussões partem de simples nomes e sinais, imediatamente
associados a valores, ao ruim e ao bom, a despeito da completa
ausência das coisas consideradas.
Não se lê, por exemplo, um só livro de história que não condene a
“história o�cial" — a história que celebra as grandezas da pátria e
omite as misérias da luta de classes, do racismo, da opressão dos índios
e da vil exploração machista. Em vão buscamos um exemplar da dita
cuja. Não há cursos, nem livros, nem institutos de história o�cial. Por
toda parte, nas obras escritas, nas escolas de crianças e nas academias
de gente velha, só se fala da miséria da luta de classes, do racismo, de
índios oprimidos e da vil exploração machista. Há quatro décadas a
história militante que se opunha à história o�cial já se tornou
hegemônica e ocupou o espaço todo. Se há alguma história o�cial, é
ela própria. Mas, sem uma história o�cial para combater, ela perderia
todo o encanto da rebeldia convencional, pondo à mostra os cabelos
brancos que assinalam sua identidade de neo-o�cialismo consagrado
— balofo, repetitivo e caquético como qualquer academismo.
Direi então que ela açoita um cavalo morto? Não é bem isso. Ela
própria é um cavalo morto. Um cavalo morto que, para não admitir
que está morto, escoiceia outro cavalo morto. Todo o “debate
brasileiro" é uma troca de coices num cemitério de cavalos.
O Globo, 17 de fevereiro de 2001
S  
Por que ninguém entrevista Ladislav Bittman, o
ex-espião tcheco que sabe tudo sobre 1964?
Milhões de crianças brasileiras, nas escolas o�ciais, são adestradas para
repetir que o golpe militar de 1964 foi obra dos Estados Unidos, como
parte de um projeto de endurecimento geral da política exterior
ianque na América Latina.
Sabem quem inventou essa história e a disseminou na imprensa deste
país? Foi o serviço secreto da Tchecoslováquia,que naquele tempo
subsidiava numerosos jornalistas e jornais brasileiros. O próprio chefe
do serviço tcheco de desinformação, Ladislav Bittman, veio
inspecionar as fases �nais do engenhoso empreendimento que se
chamou “Operação omas Mann". O nome não aludia ao romancista,
mas ao então secretário-adjunto de Estado, omas A. Mann, que
deveria constar como responsável por uma “nova política exterior" de
incentivo aos golpes de Estado.
A safadeza foi realizada através da distribuição anônima de
documentos falsi�cados, que a imprensa e os políticos brasileiros, sem
o menor exame, engoliram como “provas" do intervencionismo
americano. O primeiro lance foi dado em fevereiro de 1964: um
documento com timbre e envelope copiados da Agência de
Informação dos  no Rio de Janeiro, que resumia os princípios
gerais da “nova política". A coisa chegou aos jornais junto com uma
carta de um anônimo funcionário americano, investido, como nos
�lmes, do papel do herói obscuro que, por julgar que “o povo tem o
direito de saber", divulgava o segredo que seus chefes o haviam
mandado esconder.
O escândalo explodiu nas manchetes e os planos sinistros do Senhor
Mann foram denunciados no Congresso. O embaixador americano
desmentiu que os planos existissem, mas era tarde: toda a imprensa e a
intelectualidade esquerdistas das Américas já tinham sido mobilizadas
para con�rmar a balela tcheca. A mentira penetrou tão fundo que, três
décadas e meia depois, o nome de omas A. Mann ainda é citado
como símbolo vivo do imperialismo intervencionista.
A essa primeira falsi�cação seguiram-se várias outras, para dar-lhe
credibilidade, entre as quais uma lista de “agentes da  " in�ltrados
nos meios diplomáticos, empresariais e políticos brasileiros, que
circulou pelos jornais sob a responsabilidade de um “Comitê de Luta
Contra o Imperialismo Americano", o qual nunca existiu fora da
cabeça dos agentes tchecos. Na verdade, confessou Bittman, “não
conhecíamos nem um único agente da  em ação no Brasil". Mas a
mais linda forjicação foi uma carta de 15 de abril de 1964, com
assinatura decalcada de J. Edgar Hoover, na qual o chefe do 
cumprimentava seu funcionário omas Brady pelo sucesso de uma
determinada “operação", que, pelo contexto, qualquer leitor
identi�cava imediatamente como o golpe que derrubara João Goulart.
Toda uma bibliogra�a com pretensões historiográ�cas, toda uma
visão de nosso passado e algumas boas dúzias de glórias acadêmicas
construíram-se em cima desses documentos forjados. Bem, a fraude já
foi desmascarada por um de seus próprios autores, e não foi ontem ou
anteontem. Bittman contou tudo em 1985, após ter desertado do
serviço secreto tcheco. Só que até agora essa con�ssão permaneceu
desconhecida do público brasileiro, bloqueada pelo amálgama de
preguiça, ignorância, interesse e cumplicidade que transformou
muitos de nossos jornalistas e intelectuais em agentes ainda mais
prestimosos da desinformação tcheca do que o fora o chefe mesmo do
serviço tcheco de desinformação. Quantos, nesses meios, não
continuam agindo como se fosse superiormente ético repassar às
futuras gerações, a título de ciência histórica, a mentira que o próprio
mentiroso renegou 15 anos atrás? Neurose, dizia um grande psicólogo
que conheci, é uma mentira esquecida na qual você ainda acredita.
Redescobrir a verdade sobre 1964 é curar o Brasil. Entrevistar Ladislav
Bittman já seria um bom começo.2
É
Época, 17 de fevereiro de 2001
O   
Intelectuais iluminados não são curiosidades inofensivas.
São maníacos perigosos.
— Eric Voegelin
Toda a ciência social do mundo, a marxista inclusa, ensina que nunca
as condições materiais e econômicas determinam diretamente a
conduta dos homens, mas que o fazem sempre e somente através da
interpretação que estes lhes dão, isto é, através dos fatores ideológicos,
culturais, morais e psicológicos envolvidos no processo.
Um exemplo tornará isso mais claro. Toda hora aparecem na  e nos
jornais pessoas cultíssimas, sabedoras, iluminadas, as quais nos
asseguram, com ar de certeza infalível, que a miséria produz a
criminalidade. O sujeito tra�ca, assalta, mata e estupra porque é um
excluído, um miserável, um favelado. É o que dizem. Mas — digo eu e
dizem os fatos — se o excluído, o miserável, o favelado é também
evangélico, ele não tra�ca, nem assalta, nem mata, nem estupra. Se
fazia essas coisas antes da conversão, cessa de fazê-las imediatamente
ao converter-se. Qual a diferença? Não é econômica, decerto. É
cultural, é moral, é psicológica e espiritual. O sujeito, ao converter-se,
sofre ainda o impacto cruel da miséria, da exclusão, do compressivo
estreitamento de suas possibilidades de ação na sociedade.
Apenas, deixou de acrescentar a esses males o mal ainda maior da
prática do crime. Ele ainda está na mesma situação, materialmente
falando. Apenas, passou a interpretá-la segundo outros valores, outros
símbolos, outros critérios. Isso faz, no pobre como no rico, toda a
diferença entre o criminoso e o homem de bem. A experiência de
milhares de evangelizadores e evangelizados, inclusive dentro dos
presídios, comprova que, na produção como na supressão da
criminalidade, o peso dos fatores morais e culturais é in�nitamente
mais decisivo do que a situação material em si. Eis o motivo pelo qual,
nas cadeias, a gerência do crime odeia aqueles a quem pejorativamente
chama “os bíblias". Eis o motivo pelo qual, na Colômbia, as  já
mataram 70 pastores evangélicos e, pelo seu porta-voz Mono Jojoy,
anunciaram que vão matar todos os outros.
Bastam essas observações para nos fazer perceber que a parte mais
audível e vistosa da discussão do problema da criminalidade no Brasil
é pura fraude. Essa discussão caracteriza-se, da maneira mais geral e
patente, pelo esforço de explicar tudo diretamente pelas condições
materiais, omitindo os demais fatores mencionados. E é assim por um
motivo muito simples: esses fatores não são produzidos pela situação
material mesma, como emanação natural e espontânea, mas são
introduzidos nela desde fora e desde cima, pela ação dos criadores de
cultura, dos “intelectuais" (no sentido gramsciano e elástico do termo).
Ora, quem são os cérebros iluminados que, nas horas de crise e agonia,
aparecem na  e nos jornais para receitar soluções? São os próprios
intelectuais militantes. Quando esses homens, ao analisar uma
situação catastró�ca, omitem o elemento cultural, estão ocultando a
contribuição que eles próprios deram à produção da catástrofe.
Se fossem honestos, jamais fariam isso. A primeira obrigação do
intérprete da sociedade é discernir sua própria posição, sua própria
atuação na cena descrita, para neutralizar o quanto possível a distorção
subjetiva ou interesseira. Ora, no Brasil o cuidado primordial dos
opinadores é �ngir que estão fora do quadro, é lançar tudo à conta de
causas externas justamente para que ninguém perceba que eles
próprios são o item número um do rol de causas.
O debate em torno da criminalidade tem sido uma gigantesca
máquina de auto-ocultação dos culpados. Há cinqüenta anos a cultura
que produzem, interpretando postiçamente o banditismo como
expressão direta e legítima de uma justa revolta contra a sociedade
injusta, atua como poderoso mecanismo de chantagem emocional que
desarma moralmente o aparelho repressivo, ao mesmo tempo que
infunde nos delinqüentes uma ilimitada autocon�ança e lhes fornece o
discurso de autolegitimação ideológica para a abdicação dos últimos
escrúpulos, para a passagem da violência caótica e imediatista à
violência organizada, politizada, que se viu na rebelião simultânea de
29 presídios paulistas.
Alguns desses gurus do crime vão até além disso, ensinando aos
delinqüentes as formas de organização revolucionária que aprenderam
em seus partidos ou em Cuba. Depois aparecem ante as câmeras,
�ngindo desinteresse generoso e superior isenção cientí�ca.
Todos esses fatos são empiricamente veri�cáveis, e a conclusão a que
levam não tem nenhum meio racional de ser impugnada: os
acontecimentos sangrentos da semanapassada foram — como o serão
os próximos do mesmo teor — o efeito lógico e inevitável de uma ação
coerente, contínua, pertinaz, empreendida pela intelectualidade
ativista na intenção de fomentar a revolta e transformar o Brasil
primeiro numa Colômbia, depois numa Cuba.
As péssimas condições do sistema carcerário, as prodigiosas
di�culdades econômicas da população, as frustrações de milhões de
excluídos, as injustiças e as maldades do sistema não produziram a
rebelião organizada e politizada dos detentos: o que a produziu foi a
crença, arti�cialmente inculcada nos delinqüentes pelos intelectuais,
de que essas circunstâncias deprimentes justi�cam que detentos se
organizem politicamente para a ação violenta. O que a produziu não
foi nenhum desejo sincero de suprimir ou remediar aqueles males,
todos eles remediáveis, todos eles suprimíveis, mas sim o de lhes
acrescentar o mal irremediável e irreversível por excelência: a
organização revolucionária da brutalidade coletiva.
São culpados da rebelião carcerária todos os que, há cinco décadas, a
desejam e a fomentam com seus discursos ideológicos, seja por
decisão voluntária ou por cumplicidade sonsa. São culpados todos os
que, rejeitando nominalmente esses discursos, se abstêm de combatê-
los sob a desculpa infame de que se tornaram inofensivos após a queda
do Muro de Berlim. São culpados todos os que, sabendo que doses
letais de ódio revolucionário são diariamente injetadas nas cabeças de
milhões de crianças brasileiras, nada fazem para desmascarar essa
pedagogia do abismo. São culpados todos os que, por comodismo, por
paternalismo, por medo de levar na testa rótulos pejorativos, por
desejo abjeto de fazer bonito ante o esquerdismo chique, não movem
um dedo para impedir que a cultura e a psique da nossa gente seja
infectada com os germes dos mais baixos instintos de vingança
política, adornados com rótulos edi�cantes como se fossem a
expressão mais alta da moralidade humana.
O Globo, 24 de fevereiro de 2001
O    
O problema é que são duas cabeças ocas
Não há criatura mais tipicamente dúbia e bicéfala que o revolucionário
que, perdida por decurso de prazo sua oportunidade de fazer a
revolução, sobe ao poder por vias legais e anuncia governar segundo as
mesmas normas que professava destruir. Que temível situação a do
ator que muda de personagem sem poder mudar de script! Otelo com
as idéias de Iago, Júlio César com as intenções de Brutus, por mais que
tente ser coerente, não escapará da dupla lealdade que o induz a apagar
com uma das mãos o que escreveu com a outra, a fazer do Estado o
instrumento da destruição do Estado e a desempenhar por �m, no
patíbulo da História, o duplo papel da corda e do pescoço.
O leitor há de ter percebido que acabo de enunciar a de�nição mesma
da tucanidade.
O sucesso político dessa entidade equívoca não se deve senão ao fato
de que ela encarna, em escala nacional, a autocontradição da própria
Nova Ordem Mundial, empenhada em realizar com os meios do
liberalismo a sociedade mais coletivista e dirigista que já se imaginou e
em preservar a propriedade privada mediante a regulamentação
socialista de tudo o mais. Por onde quer que ande semelhante criatura,
não cessará de fazer o mal às outras por meio do dano que traz a si
mesma, nem de sugar o próprio sangue mediante o derramamento do
alheio. Ai de quem caminhe a seu lado! Ai de quem �que contra ela!
Ai de quem não ligue! Ai de todos nós, pela simples existência de tal
monstruosidade sobre a face da Terra! Um exemplo de seu modo de
ser é a peculiar articulação lógica que montou entre economia e
educação, apostando os destinos da nação no futuro do capitalismo ao
mesmo tempo que adestra as crianças para viver no socialismo. Será
de espantar que os jovens absorvam essa lição como um convite a
espojar-se nas deleitações do hedonismo permissivista ao mesmo
tempo que se arrogam a autoridade moral de juízes austeros e
reformadores do mundo? Será de espantar que cada um deles creia
poder ser ao mesmo tempo o Marquês de Sade a emergir lívido de sua
alcova de prazeres e Moisés a descer do Sinai com as tábuas da lei nas
mãos e a ira divina estampada na face? Tomemos outro exemplo, os
“direitos humanos". A hipótese de que devotos servidores locais do
regime de Cuba pudessem estar seriamente empenhados na defesa dos
direitos humanos pode ser afastada in limine por absurdidade
intrínseca. A bandeira dos direitos humanos teve para eles função
simplesmente tática, de usar os bons sentimentos da população para
fomentar nos governantes uma escrupulosidade paralisante, inibindo
toda ação policial. Ao mesmo tempo, infundiam em tra�cantes,
ladrões, assassinos e estupradores a estimulante ilusão de não serem a
escória, mas a elite da espécie humana, provisoriamente tranca�ada
nos porões da História pela injusta ordem burguesa.
Porém hoje são eles próprios o governo. Condenados a reprimir a
desordem pelos mesmos meios com que solapam a ordem, a fomentar
rebeliões pelos mesmos meios com que as reprimem, oscilam entre a
brutalidade sádica e a rendição masoquista, ora deixando fuzilar a
esmo presidiários amotinados, ora convidando a assembléia dos
meliantes a governar em seu lugar, não sabendo se mandam matá-los a
pau como cachorros loucos ou se se prosternam diante deles em
rapapés abjetos, derramando-se em juras de obediência como escravos
ante seu senhor.
A tucanidade, en�m, resume e simboliza o próprio desencontro
nacional, a condensação emblemática de todas as inépcias de um povo.
Emergida de um grupo de cérebros confusos que julgavam poder abrir
caminho para suas ambições por entre as páginas de O capital,
terminou mergulhando numa dialética abissal em que a síntese, em
vez de absorver tese e antítese, desaparece no entrechoque delas.
Como um Mercúrio mentecapto que, em vez de dominar com mão de
ferro as duas cobras do caduceu, fosse mordido por ambas.
Época, 24 de fevereiro de 2001
O -
A geração que hoje domina o cenário mental brasileiro não recebeu,
na juventude, senão uma única in�uência formadora: a das ideologias
de esquerda. Digo “ideologias", no plural, porque nela con�uíam o
marxismo-Leninismo tradicional, o social-nacionalismo e a New Le
(mitologia cubana inclusa). Mas no fundo diferiam muito pouco: cada
uma oferecia pretextos diferentes para convalidar a busca obsessiva da
mesma �nalidade, elevada ao estatuto de sentido último da existência:
a destruição do capitalismo.
Duas subcorrentes que poderiam ter aberto vias alternativas — o
pensamento católico e a New Age — foram facilmente neutralizadas,
castradas, absorvidas na corrente geral, perdendo toda substância
própria e reduzindo-se a excipientes da fórmula socialista: o
catolicismo forneceu o arremedo de Evangelho que inspira as
comunidades de base, a New Age perverteu-se em protesto
cocainó�lo, pansexual, gay e feminista contra a “moral burguesa"
(entre nós identi�cada, por um prodigioso rodopio semântico, com o
pensamento católico conservador). Documentos históricos dessas
absorções redutivas são, respectivamente, os escritos da dupla Betto &
Boff e os do hoje quase esquecido Luís Carlos Maciel.
A cabeça da minha geração foi moldada na supressão e na mutilação.
Autores, livros, idéias, fatos eram selecionados segundo um recorte
prévio destinado a con�rmar o discurso pronto. Isso não quer dizer
que fosse proibido ler livros “de direita". Podíamos lê-los, sim — mas
só aqueles que con�rmassem a imagem estereotipada que fazíamos da
direita e contra os quais a esquerda tivesse um contraveneno retórico
na ponta da língua. Os autores para os quais não se tinha resposta
dividiam-se em duas classes: aqueles cujo nome, jamais mencionado,
ia sendo esquecido até desaparecer por completo, e aqueles que eram
guardados fora do alcance dos nossos olhos pela precaução asséptica
de um rótulo infamante, quase sempre o inverso simétrico do que
eram na verdade.
Não era só pregação ideológica. Era todo um sistema de reações e
percepções que se automatizavam como re�exos e acabavam por
engolirtotalmente a nossa personalidade. E a ênfase do sistema estava
menos em nos passar determinadas crenças do que em infundir-nos a
repulsa prévia e temerosa a idéias, coisas e pessoas que
desconhecíamos por completo e que assim perdíamos todo desejo de
conhecer.
Dos 25 anos de idade até hoje, não �z senão abrir minha alma a todas
as in�uências, a todos os interesses, a todas as riquezas culturais e
espirituais que a coerção mental esquerdista, até então, me havia
tornado inacessíveis. Quanto mais vivo e aprendo, mais me espanto de
como era acanhado, mesquinho, somítico, regressivo o anti-horizonte
no qual os mestres da minha geração quiseram me prender. Anti-
horizonte no qual estão presos, ainda, quase todos os meus coetâneos,
mesmo aqueles que imaginam ter “passado para o outro lado", como
se uma tão profunda mutilação espiritual pudesse ser curada por uma
simples troca de carteirinha e como se aliás a própria de�nição
estereotípica dos dois lados não fosse ainda a mesma de sempre,
apenas com os valores nominalmente invertidos (digo nominalmente
porque a efetiva renúncia ao socialismo é tão dolorosa quanto a
recuperação de um drogado, e a pressa indecente com que uns quantos
anunciam sua mutação prova que ela não ocorreu senão in verbis).
Mas, quanto mais me espanto com isso, mais me horrorizo com a
mutilação ainda mais funda, com o estreitamento duplamente
compressivo que, num repasse infernal, essa geração está impondo aos
jovens de hoje. Os cinqüentões criados num quarto escuro não se
contentam com transmitir a seus �lhos sua ojeriza à luz, ao sol, ao
espaço aberto. Não. Furam-lhes os olhos e os tapam no fundo de uma
caverna, para privá-los da possibilidade mesma de conceber que exista
luz, sol, espaço aberto no mundo real.
Jornal da Tarde, 1º de março de 2001
S   
Graças a elas, a luta pela soberania torna-se
guerra contra um inexistente liberalismo
No Brasil, os nomes de doutrinas e regimes políticos não designam as
coisas que lhes correspondem na ordem das idéias e dos fatos.
Designam pessoas e os sentimentos que a gente tem por elas. Os
termos “liberalismo", “neoliberalismo" e “globalização", por exemplo,
são sinônimos. Empregam-se, indiferentemente, para dizer: “Maldito
c". Mas, como os sentimentos que os usuários dessas expressões têm
pelo maldito c são substancialmente os mesmos que têm pela direita
em geral, as três palavras passam a signi�car também fascismo,
nazismo e ditaduras militares latino-americanas, sem prejuízo de que
possam ser usadas ainda para designar as tradições dos Founding
Fathers americanos, a ideologia do Concílio de Trento e, last but not
least, o Lalau e o Luiz Estevão.
Não pretendo absolutamente modi�car essa norma lingüística
solidamente estabelecida, pois cada um tem a liberdade de usar o
divino dom da fala como bem entenda e, se uma nação inteira decidiu
utilizá-lo como instrumento de auto-intoxicação, quem sou eu para
aconselhá-la a não fazer isso? Não obstante, é bom informar que, no
resto do mundo, liberalismo é um regime de liberdade econômica e
política, neoliberalismo é a sutil adaptação desse regime ao paladar
dos nostálgicos do socialismo e globalização ou é a abertura das
fronteiras comerciais ou a consolidação de um onipotente Estado
mundial por cima da dissolução dos poderes regionais. Esses
fenômenos não apenas não são o mesmo, mas têm entre si algumas
incompatibilidades essenciais. Por exemplo, um Estado mundial, com
regulamentos padronizados em escala planetária, é absolutamente
contraditório com o princípio liberal da livre iniciativa local, não
podendo, pois, um liberal ser um globalista em sentido pleno. No uso
brasileiro dos termos, porém, essa incompatibilidade escapa por
completo à percepção humana, de modo que todo mundo acredita que
fomentando a intervenção do Estado na sociedade estará fazendo algo
contra a nova ordem global, quando esta, precisamente, necessita que
os Estados nacionais sejam “agentes de transformação" fortes o
bastante para implantar em seus respectivos países as novas leis
uniformizantes que vêm prontas de Nova York e de Genebra, como
por exemplo o desarmamento civil e as quotas raciais.
Mas a mixórdia semântica brasileira transpõe resolutamente as
fronteiras da psicose quando uma alma de nacionalista contempla com
horror a subserviência de nosso governo aos poderes internacionais e
chama isso de “liberalismo", identi�cando independência nacional
com “Estado forte", como se o governante de um Estado forte não
estivesse muito mais habilitado que o “maldito  " a impor a seus
governados as regulamentações globalistas que bem desejasse.
Não é de estranhar que, nesse contexto, os males econômicos do
Brasil acabem sendo atribuídos à economia liberal, a qual, no entanto,
praticamente inexiste neste país. O e Wall Street Journal e a Heritage
Foundation mantêm há anos uma meticulosa pesquisa de índices de
liberdade econômica, de�nida pela ausência de fatores como
intervenção estatal, impostos altos, regulamentações restritivas etc.
Nessa escala, que vai idealmente de 1 a 200, os regimes mais liberais do
mundo são Hong Kong (1), Cingapura (2), Irlanda (3), Nova Zelândia
(4), Estados Unidos e Luxemburgo (5), Reino Unido (7), Holanda (8) e
Suíça (9). O Brasil está em 93º lugar, bem pertinho da China (114). A
prevalecer a atual semântica, devemos nos libertar da exploração
globalista adotando os métodos de desenvolvimento da Índia (133), do
Haiti (137), de Cuba (152) e da Coréia do Norte (155). Teremos de
viver de esmolas do Banco Mundial, mas isso então se chamará
“soberania" — e quem serei eu para dizer que não?
Época, 3 de março de 2001
L  
Políticos, escritores, professores advertem-nos diariamente contra a
invasão dos “deletes", dos “mouses", dos “enters" e “starts" que povoam
nosso espaço lingüístico. Até universitários incapazes de conjugar um
verbo ou colocar pronomes arvoram-se em guardiões da pureza
vernácula, distribuindo nas ruas pan�etos contra o imperialismo
cultural nas horas de estudo em que deveriam estar aprendendo
português. E dizem até que servem ao idioma com mais devoção do
que a Academia Brasileira.
Todos esses melindres patrióticos são demasiado posados para que
cheguem a me comover. Não vejo neles senão o oportunismo de
demagogos que, em vez de cultivar o idioma, querem usá-lo como
pretexto para gerar um estado de alarmismo xenófobo útil a seus
propósitos políticos.
A desculpa a que se apegam, de que a importação vocabular
predispõe à subserviência ante o imperialismo, é a mais falsa e
estúpida que se pode imaginar. Se existe idioma que importa mais do
que exporta, é precisamente o inglês, o qual, de acordo com esse
raciocínio, deveria ser língua dos dominados e não dos dominadores.
Segundo a Cambridge History of English and American Literature
(vol.  , parte  , cap. 15, § 7), o empréstimo, sobretudo do francês e
do italiano, é prática tão extensiva no inglês moderno, que só um
quinto das suas palavras dicionarizadas é de origem nativa. Estariam
os ianques sob o domínio do imperialismo franco-italiano? Uma
língua não é uma simples coleção de palavras. É um sistema. A
natureza, o espírito, o valor do idioma estão na sua estrutura dinâmica,
no conjunto de regras que dão a sua forma total, a qual está para as
palavras isoladas como as proporções e o desenho de um edifício estão
para os tijolos que o compõem. Por isso, palavras importadas não têm,
por si, a força de corrompê-lo.
A corrupção começa no momento em que os falantes dão de usar
termos nativos enxertados em construções frasais copiadas do exterior,
que sejam incompatíveis com o espírito do idioma. Aí já não se trata
de inserir tijolos, mas de alterar a planta do edifício. Mais dano traz à
língua nacional quem escreve palavras portuguesas com sintaxe
estrangeira do que quem usa palavras estrangeiras numa construção
castiçamente vernácula. Este enriquece o idioma: aquele o contamina e
infecciona. Um traz alimento; o outro, um vírus. Por isso, adverte a
mesma Cambridge History:“Quaisquer que sejam os elementos que
compõem o nosso vocabulário, o modo com que se empregam é
puramente inglês". E aí é que está o mal: não podemos dizer o mesmo
dos termos que absorvemos. Com freqüência alarmante, esquemas e
maneirismos frasais ingleses, inúteis e estritamente pedantes, têm
entrado no nosso uso corrente. Nos jornais já não se diz, por exemplo,
“na semana passada" e sim “semana passada", sem preposição, para
corresponder ao inglês last week. Nem se escreve mais: “Não tenho
dinheiro, disse ele", sugestiva inversão da ordem de verbo e pronome
com que o narrador marcava sua distância psicológica do personagem.
Escreve-se “Não tenho dinheiro, ele disse", perdendo a nuance, só para
rimar com I have no money, he said.
Porém, se você protesta contra esses abusos, quem se levanta para
defendê-los, chamando você de “purista", de “reacionário", de
“lusó�lo"? Aqueles mesmos que cinco minutos antes queriam fechar a
alfândega às importações de palavras. Sim, porque em geral essas
criaturas não são verdadeiros nacionalistas e sim marxistas, que só
defendem o interesse nacional na medida em que, ecoando uma teoria
absurda inventada por Stalin, enxergam as relações internacionais
como luta de classes. Por extensão, são também adeptos do
progressismo lingüístico, segundo o qual toda construção nova é
melhor que a velha, bem como da ideologia da transgressão
obrigatória, segundo a qual toda regra lingüística é imposição tirânica
das classes dominantes, odioso mecanismo de exclusão social contra o
qual é preciso lutar com todas as armas, mesmo as da mentira e do
achincalhe.
Assim, as forças de dissolução lingüística entram no mercado sob a
proteção daqueles mesmos que posam como defensores do idioma.
Mas isso não vem de hoje.
Se algum fator dissolvente vem corrompendo e debilitando a língua
portuguesa do Brasil, é precisamente o transgressivismo obrigatório
que, desde o modernismo, se a�rma cada vez mais como ideologia
dogmática desses corruptores de menores que hoje dominam a
educação nacional. Tal é o maior inimigo da língua pátria, tal é o
agente destrutivo que há um século vem solapando e embrutecendo o
nosso idioma, despojando-o de toda precisão e sutileza, de toda
destreza e �exibilidade, reduzindo-o a um sistema de cacoetes que
limita severamente o círculo do dizível, portanto do pensável.
No começo do século  , ele forçou a brasilianização estereotipada
que, rompendo nossos laços culturais com Portugal, foi tornando cada
vez mais inacessível às novas gerações a leitura dos clássicos lusos,
favorecendo a fragmentação do português num esfarelado de dialetos
provincianos mutuamente incompreensíveis. Graças a ele, qualquer
brasileiro culto tem hoje mais di�culdade para ler Camilo Castelo
Branco ou Aquilino Ribeiro do que um menino americano para ler
Dickens ou ackeray.
Também por conta dessa ideologia adquirimos um conjunto de
preconceitos e inibições antigramaticais, estendendo a pecha de
“pedantismo" ao que quer que vá além do tatibitate cotidiano de jovens
mongolóides e privando-nos masoquisticamente de instrumentos
poderosos e originais como a mesóclise pronominal. Na sua ânsia de
vetar, de inibir, de paralisar a mente das camadas letradas para reduzi-
la à inermidade psicológica e lingüística das classes pobres, o nacional-
populismo conseguiu fazer da língua portuguesa falada no Brasil o
único idioma ocidental que, no século  , perdeu dois pronomes e
duas pessoas verbais, estando agora obrigado a usar de circunlóquios
ou a apelar para a ajuda dos possessivos ingleses his e yours para que o
ouvinte saiba de quem se está falando. Isto já é mais que simples
enfraquecimento do idioma: é a completa destruição de seus
fundamentos, por obra de dinamitadores que entram no edifício
disfarçados em funcionários da limpeza.
O nacional-populismo-transgressivismo não é um nacionalismo
verdadeiro. É uma doença, um complexo. Rebaixando os valores
nacionais à condição de instrumentos de uma estratégia política
interesseira, ele destrói o que �nge defender. Se queremos preservar o
idioma nacional, a cultura nacional, a honra nacional, a primeira coisa
que temos de fazer é tirá-las da guarda e tutela de usurpadores,
farsantes e aproveitadores.
O Globo, 3 de março de 2001
O  
Ele não liga para matanças de cristãos, mas
quando leva um pito é pranteado como mártir
De tempos em tempos, retorna às páginas da imprensa a lamúria de
praxe em torno das perseguições inquisitoriais de que teria sido vítima
o Doutor Genézio Darci, mais conhecido pelo nom de plume de
Leonardo Boff.
Esse escritor, que cinco anos após a queda do Muro de Berlim
proclamava ser a rejeição do marxismo “um atraso teórico" para a
Igreja, até hoje é apresentado como herói solitário em luta contra o
establishment, embora desde suas primeiras escaramuças com o Santo
Ofício ele tivesse o respaldo de um lobby internacional mais poderoso
que mil Santos Ofícios.
O Doutor Genézio nunca foi proibido de falar. Pediu-se apenas que
não falasse em nome da Igreja, �cando livre para fazê-lo na condição
de locutor leigo através de uma rede mundial de megafones.
O então franciscano, a�rma-se, era apenas uma alma bondosa que
queria o diálogo entre marxistas e cristãos. As regras do diálogo eram
bem nítidas: a Igreja deveria acolher e proteger quem �zesse
propaganda comunista entre seus �éis, enquanto nos países
comunistas os pregadores cristãos continuavam a ser presos,
torturados e enviados para o céu sob os cuidados pastorais de pelotões
de fuzilamento. Ninguém pediu que o Doutor Genézio, aliás Boff, se
abstivesse de falar em favor dessas vítimas. Seu mutismo, no caso, é
voluntário e, comparado a suas prolí�cas efusões de retórica lacrimal
em causa própria, sugere que ele mesmo é o maior dos mártires.
Por mais psicótico que seja esse critério de avaliação da gravidade
comparativa das perseguições, ele é endossado pelo noticiário
nacional, que considera o silêncio parcial e temporário solicitado ao
ex-frade coisa mais revoltante e digna de denúncia que o silêncio total
e de�nitivo imposto a alguns milhares de cristãos, no mesmo período,
mediante irrespondíveis tiros na nuca.
Se qualquer pretexto, por mais remoto e arti�cioso, serve para
justi�car o eterno retorno das carpideiras bófficas ao palco da mídia, o
recente livro do historiador Robert Royal, e catholic martyrs of the
twentieth century (New York, Crossroad, 2000), descrição da matança
sistemática de católicos nos países totalitários, não foi sequer noticiado
no Brasil. É o critério vigente: em compensação do martírio que os
protetores do Doutor Genézio impuseram à Igreja, ela não deve ter
nem mesmo o direito de lhe puxar maternalmente as orelhas quando
ele insinua que os mentores desse genocídio, Marx, Lenin, Mao e
Fidel, eram tão cristãos quanto Santa Teresinha do Menino Jesus.
Ainda mais elucidativa é a comparação entre o destino do Doutor
Genézio, tanto mais pranteado como vítima de censura quanto mais
espaço ocupa na mídia, e o dos sacerdotes conservadores que em vez
de levar uma inócua reprimenda foram logo excomungados, e os
quais, apesar disso, nunca, nunca são mencionados na imprensa
brasileira como vítimas de qualquer perseguição. Um pito cardinalício
no intocável Doutor Genézio torna-se mais escandaloso que a ameaça
pública de expulsão que autoridades eclesiásticas �zeram pesar não só
sobre Gustavo Corção, mas sobre todos os leitores que concordassem
com o que ele escrevia, por exemplo que era indecente um Papa
intervir em favor de terroristas e fazer vista grossa ao fuzilamento de
dissidentes em Moscou.
A duplicidade da escala de valores, aí, chega às alturas de um cinismo
quase impensável. Quando o senso moral de pessoas cultas é afetado
ao ponto de perder a noção das proporções, algo de muito grave
aconteceu na intimidade de sua constituição espiritual. A própria
“teologia da libertação" do Doutor Genézio-Boff preparou o terreno
para isso. Mas a doutrinação política não basta para gerar tamanho
efeito. É preciso uma ação mais funda, uma corrupçãodas capacidades
básicas de percepção e julgamento. Foi constatando esse assombroso
poder de deformação das consciências que David Horowitz, um
observador judeu dos con�itos católicos, tirou a seguinte conclusão: “A
teologia da libertação é um credo satânico".
Época, 10 de março de 2001
D  E
Para compreender a mentalidade de qualquer pessoa, família,
comunidade ou tradição, é preciso conhecer, mais que as condições
externas que moldaram o cenário da sua existência, os atos e decisões
livres que a distinguiram de todas as outras e �xaram o per�l da sua
identidade, o padrão das suas reações mais típicas e duradouras.
Mesmo esquecidas, mesmo recalcadas para o fundo do inconsciente,
essas marcas auto-adquiridas da individualidade acompanharão a
criatura — ou a entidade — até o �m dos seus dias. Positivas ou
negativas,
não poderão jamais ser removidas, apenas — se negativas —
compensadas, a duras penas, por novas decisões livres que neutralizem
até certo ponto os seus efeitos indesejados.
“A escolha faz o destino", dizia o grande Leopold Szondi. Uma
sucessão de escolhas individualizantes marca uma história, uma
biogra�a, uma comunidade, um povo, muito mais do que qualquer
acontecimento exterior que lhe sobrevenha por acaso ou por iniciativa
de outros.
Os portugueses, por exemplo, sofreram o terremoto de Lisboa e a
invasão napoleônica. Foram marcados por esses acontecimentos, mas
não tão profundamente quanto se haviam marcado a si mesmos pelo
livre empreendimento das navegações que os tornou, para sempre,
descobridores do mundo. O terremoto e a invasão sobrevivem apenas
como marcas do passado. Mas a epopéia das navegações é o sinal
permanente da identidade portuguesa.
Outro exemplo: os judeus sofreram o Holocausto, mas não o
sofreram porque quiseram. Ele lhes veio de fora, como um �agelo.
Marcou-os profundamente, mas não ao ponto de apagar sua
identidade. Esta nasce daquilo que �zeram, por escolha própria, ao
longo do tempo. E o principal que �zeram foi aceitar, livremente, a Lei
de Moisés. Sem o Holocausto, seriam tão judeus quanto sempre foram.
Não o seriam sem a Lei que escolheram, que o próprio Deus não lhes
impôs mas apenas lhes ofereceu: “Se me aceitas, Israel, Eu sou o teu
Deus". A decisão mesma de chamar Holocausto aos sofrimentos que
lhes foram impostos na  Guerra assinala a vitória da identidade
antiga, livremente assumida, sobre o impacto dissolvente de uma força
externa hostil. Interpretando o malefício novo à luz do simbolismo
bíblico, os judeus reataram as duas pontas do �o do seu destino, que o
imprevisto brutal quisera separar. Sim, a escolha, e não o
acontecimento, faz o destino.
Os dois exemplos que dei são de escolhas digni�cantes. Mas as
escolhas perversas, criminosas, hediondas, marcam o destino de
maneira igualmente profunda.
Tal é a marca das correntes e ideologias que prometem fazer do
Estado o reformador da sociedade. Desde o berço, todas, sem exceção,
escolheram como seu principal e inconfundível meio de ação aquele
que é próprio do Estado e que, na verdade, o de�ne e o distingue de
todas as demais instituições: o monopólio da violência física. O Estado
só é Estado porque tem a legitimidade — extorquida ou consentida —
do uso da força.
Quem quer que proponha modi�car a sociedade por meio do Estado
— em vez de fazê-lo por meio da religião, da cultura, da in�uência
pessoal, da livre associação dos indivíduos ou dos poderes
intermediários — sabe, desde o princípio, que seu meio de ação
essencial é a força. O Estado pode, é claro, usar também de outros
meios. Mas nenhum deles — nem a cultura, nem a educação, nem a
propaganda, nem a riqueza — é próprio e exclusivo dele. São
empréstimos casuais. O domínio mesmo que o Estado tenha sobre eles
repousa no controle que ele exerça sobre o seu meio próprio, que é a
força. Por isso, quaisquer meios brandos e incruentos que utilize não
são, a rigor, senão substitutos provisórios da força. Tão logo falhem em
dar os resultados esperados, o Estado entra em crise ou emprega a
força. Tertium non datur: não há terceira alternativa.
Apostar no Estado é, pois, apostar na violência. Esta aposta marca de
maneira indelével e inconfundível a vocação de todas as ideologias
modernas, de índole reformista ou revolucionária, que vêem no
Estado o motor e promotor do bem-estar social. Mas não me re�ro só
ao nazismo e ao socialismo. Mesmo formas in�nitamente mais
brandas de estatismo não podem escapar à lógica das coisas. Mesmo
homens de convicções tão acentuadamente democráticas como
Abraham Lincoln e Franklin D. Roosevelt — ou, entre nós, os militares
que se sucederam no poder após o Marechal Castelo Branco —
acabaram promovendo o autoritarismo e cometendo violências contra
seu próprio povo a partir do momento em que, por convicção ou por
falta de imaginação para conceber alternativas, �zeram do Estado o
pólo ativo da vida social e o escolheram como meio essencial para a
realização de seus ideais. Não é signi�cativo que o governo do grande
libertador Lincoln fosse também o inventor dos campos de
concentração, que o do sincero democrata Roosevelt instituísse contra
os descendentes de japoneses a prisão por suspeita racial? Não é
signi�cativo que o governo militar, criado para restaurar a democracia
ameaçada pelos comunistas, acabasse se cristalizando num aparato
repressivo que ele próprio não sabia desmontar, ao mesmo tempo que,
jurando defender a liberdade de mercado, expandia a máquina estatal
mais que qualquer de seus antecessores? Mais eloqüente ainda é o
exemplo dos whigs, progressistas ingleses, precursores do Welfare
State, que inventaram, antes de Stalin, a “arma da fome", com as
famigeradas Leis do Milho, de 1828, as quais, aplicadas contra a
Irlanda, reduziram sua população de oito milhões para quatro em um
século.
Mas se autênticos democratas foram levados a fazer essas coisas pelo
simples fato de apostarem no Estado como instrumento para melhorar
a sociedade, quanto mais malefício não farão homens imbuídos da
idéia de que o Estado deve não apenas melhorar e sim recriar ou
revolucionar a sociedade? E quanto mais vasto e duradouro não será o
mal que hão de produzir se, em vez de revolucionar apenas a estrutura
de uma sociedade determinada, pretenderem usar da força estatal para
criar uma nova civilização mundial, modi�car de alto abaixo a herança
cultural e os princípios morais, os valores religiosos, os quadros
elementares da percepção e, em suma, a natureza humana? Por isso,
quando intelectuais iluminados nos anunciam, como no Fórum Social
de Porto Alegre, que “um outro mundo é possível", o que se deve
concluir é que os cem milhões de mortos da experiência socialista,
mais quarenta do nazifascismo, ainda não foram o bastante para saciar
a ambição prometéica dos inventores estatais de mundos.
O Globo, 10 de março de 2001
R  
Quando os megacapitalistas, a burocracia planetária e a mídia
internacional, após apoiar com verbas e publicidade a organização do
Fórum Social Mundial, aceitam alegremente algumas das conclusões
do encontro e passam a declarar que, de fato, como já dizia o
doutíssimo Olívio Dutra, a globalização não foi igualmente boa para
todos, a conclusão que se deve tirar disso é, para mim, a mais óbvia
possível. O circo esquerdista de Porto Alegre foi apenas um útil
contraponto dialético de detalhe, programado pelos próprios
engenheiros do mundialismo para se encaixar na sua estratégia geral, a
qual não exclui nem mesmo, no vasto painel de um mundo cada vez
mais capitalista, a possibilidade de umas experiências socialistas, aqui
e ali, em países que sejam idiotas o bastante para desejá-las e
irrelevantes o su�ciente para que seu suicídio não prejudique em
grande coisa o universo em torno: tal parece ser o caso, precisamente,
do Brasil.
Mas o Brasil não seria tão bom para o desempenho dessa parte
vexaminosa do script maior se, precisamente, a nossa intelectualidade
não fosse cretina o bastante para não perceber o funcionamento da
máquina mundial de desinformação da qual ela própria é,no local, a
peça decisiva. Assim, as declarações espantosamente sincrônicas do
 , do Banco Mundial, da  e de George Soros em discreto apoio
às conclusões do Fórum gaúcho não despertarão a menor suspeita e,
em vez de ser interpretadas à luz dos preceitos mais elementares da
ciência das informações estratégicas, serão unanimemente aceitas e
repassadas em seu puro valor retórico nominal, como homenagens
casuais do globalismo à argumentação de seus adversários. Sancta
simplicitas! Ninguém, aqui, parece capaz de fazer o seguinte
raciocínio: premissa maior — o poder global expande-se igualmente
por meio da livre iniciativa capitalista ou da burocracia mundial
socializante. Premissa menor — em virtude das próprias dimensões
totalizantes do empreendimento, esses meios têm de ser alternados
para a coisa dar certo. Conclusão: frear o liberalismo e pisar no
acelerador do estatismo não diminui em nada a velocidade de
ascensão da Nova Ordem Mundial nem a da liquidação das
autonomias nacionais.
Mas, no Brasil, só as palavras contam. Como o nome “liberalismo"
está associado a “globalismo", e o nome “estatismo" a “independência
nacional", embora as quatro coisas aí signi�cadas não tenham nada a
ver com isso, só o que importa é reforçar os mesmos discursos de
sempre, porque, a�nal, o show tem de continuar.
Assim, comentando um relatório da  (a única organização
internacional que, por descuido da produção talvez, não fez coro às
unanimidades antiliberais da quinzena passada), segundo o qual o
mundo está hoje menos miserável do que 15 anos atrás, o editorialista
de um grande jornal de São Paulo diz que isso não pode ser, porque,
como informam outras tantas e ainda mais abalizadas autoridades
globais, o número de pessoas que vivem com menos de um dólar por
dia subiu de 1,2 bilhão de meados da década de 80 para 1,5 bilhão
hoje. São portanto 300 milhões de miseráveis a mais, quod erat
demonstrandum.
Acontece que, no mesmo período, a população mundial passou de
4,5 bilhões para 6 bilhões. Aumentou, portanto, de um terço, enquanto
o exército de miseráveis teve seu contingente acrescido de apenas um
quarto. A prosperidade está obviamente ganhando a corrida. Não
importa: na atmosfera geral de histrionismo antiliberal, qualquer
indício de que a miséria diminuiu vale como prova de que a miséria
cresceu. E como o que conta é mesmo o teatro, o articulista completa
sua “performance" proclamando que, apesar do que diz a  , “de�nir
a linha de indigência é um problema complexo de estatística social"
porque “os métodos são variados e a acurácia dos dados é precária".
Diante de tanta sabença, já ninguém mais ousa perguntar: que pode
entender da “acurácia" dos métodos estatísticos um sujeito que não
consegue sequer aplicar uma regra de três?
Jornal da Tarde, 15 de março de 2001
E  
Candidato preferencial a chefe de segurança: a
raposa
Primeiro o meu estômago, depois a vossa moral.
— Bertolt Brecht
O falecido Carlos Lacerda era louco, mas não rasgava dinheiro.
Quando fugia dos seguranças para entrar sozinho no meio de grevistas
enfurecidos ou de presidiários em rebelião, sabia que sua coragem
suicida era um apelo irresistível ao senso de honra de homens durões.
Qualquer um deles que o pegasse sozinho, num beco escuro, não
hesitaria em fazê-lo em pedaços.
Reunidos em milhares, inibia-os a própria superioridade numérica.
Eram leões. Não iriam precipitar-se, como hienas, sobre um adversário
só e desarmado. Ante a insensatez sublime do domador, as prevenções
das feras se desmanchavam: o ódio trans�gurava-se em respeito.
Mas os tempos mudaram. Nem o governador Mário Covas é Carlos
Lacerda nem os grevistas com que se defrontou são desordeiros
honrados. Ele não tem o controle da situação, eles não têm o senso de
lealdade guerreira. Nem ele é um domador, nem eles são leões. Seriam
hienas? Compará-los a animais é inexato. Animais não têm a malícia
de atrair sobre si a piedade que negam a um homem velho, doente e
recém-operado. Entre lobos, aquele que baixa o focinho desarma
automaticamente o mais forte. A ética dos nossos professores não
chega a tais alturas. “Pai, não bata nela. É a minha professora",
choramingava um cartaz, premeditado para dissuadir a Tropa de
Choque. Eles sabem, quando lhes interessa, apelar ao sentimento de
família — aquele mesmo sentimento que tentam extirpar das almas de
nossos �lhos, fomentando em lugar dele a revolta edípica contra a
autoridade.
No entanto essa multidão infame, que duas dúzias de cassetetes
erguidos bastam para pôr a correr, essa multidão que passa do temor
abjeto aos rosnados ameaçadores diante da visão tentadora do
adversário indefeso, essa multidão é que tem o encargo de ensinar aos
nossos �lhos a ética e os bons costumes.
Por isso é que, nas últimas décadas, os princípios espontâneos da
moral natural — ser digno, prestativo e bom — foram substituídos, na
boca senão na alma das crianças brasileiras, pelos chavões da
propaganda política. Por isso é que nossos �lhos já não sabem que é
feio brigar em cinco contra um, mas sabem soletrar de cor os slogans
do perfeito cidadãozinho pré-moldado: “Cadeia para os corruptos",
“eliminar as diferenças sociais", “combater a discriminação", etc.
Milhares de Pittas não trariam à consciência moral deste país um
dano comparável ao que nos chega pelas mãos dessas professorinhas
enragées.
E é gente desse tipo que mantém a nação em sobressalto com seus
clamores de “Ética!" e uma insaciável fome de cabeças. É para agradar
a essa ralé que a classe política, há 12 anos, vive num patético ritual de
autodestruição que, a pretexto de “puri�car as instituições", as debilita
a ponto de transformar em hábito banal — um direito do cidadão —
invadir prédios públicos, desrespeitar ordens judiciais e, last not least,
bater em quem foi eleito para apanhar.
Se o governador ferido prefere contemporizar, dizendo que aqueles
que o agrediram “não são professores", é porque lhe falta, ao lado da
sobrante coragem física, a coragem moral de declarar a verdade. Eles
são professores, sim, são representativos da mentalidade pedagógica —
instilada neles pelo próprio  — para a qual a suprema função da
escola é treinar militantes, é acender nas almas infantis o desprezo à
moral familiar, o narcisismo que não aceita limites à demanda de
satisfações, o ódio revolucionário que se arroga todos os direitos
contra o “Estado burguês". Tanto são representativos, que nenhum
comando de greve tomou a iniciativa de repudiar publicamente seus
atos. O governador sabe disso, mas é mais cômodo deixar-se bater do
que abjurar a mentira sobre a qual se construiu uma vida. Pois quem
insu�ou as violências de quinta-feira não foi só o  . Foi toda a
geração de belas almas que, desde a anistia, ocuparam o cenário
político para brilhar como encarnações da luz e do bem. Os Covas, os
Serras, os Gregoris, os Paulos Evaristos, os  s foram os professores
desses professores. Foram eles que, prometendo moralizar a política,
politizaram a moral. Foram eles que ensinaram essa gente a cobrar
mais ética dos políticos que de si mesma.
Foram eles que lhe inocularam aquela mistura de inveja, rancor e
auto-indulgência que não pode deixar de explodir, mais cedo ou mais
tarde, em convulsões de ódio histérico adornadas de retórica
igualitária.
Quem produz a causa deve suportar o efeito. Foi talvez por isso que o
governador se submeteu a uma humilhação evitável. Igor Caruso, o
grande psicanalista, dizia que as neuroses nascem de um instinto
reprimido de equilíbrio moral, que se restabelece à margem da
consciência mediante estranhos e inúteis gestos de autopunição.
Época, 17 de março de 2001
O   
Se o público brasileiro não adquirir rapidamente os conhecimentos
básicos que o habilitem a reconhecer operações de desinformação pelo
menos elementares, toda a nossa imprensa, toda a nossa classe política
e até o�ciais das Forças Armadas podem se transformar, a curtíssimo
prazo, em inermes e tolos agentes desinformadores a serviço da
revolução comunista na Américaseus
próprios atos, é também um ato assumir livremente a responsabilidade
por atos alheios, como os cônjuges se responsabilizam mutuamente
por suas obrigações econômicas, ao casar-se. As responsabilidades do
indivíduo podem estender-se em círculos concêntricos cada vez mais
amplos, indo das obrigações mais diretas, absolutas e incondicionais às
mais indiretas, abstratas e relativas, como a do governante que, pela
“ética da responsabilidade" weberiana, deve assumir a culpa até mesmo
pelos resultados mais indesejados e imprevisíveis de suas decisões,
tornando-se então “politicamente" culpado sem verdadeira culpa
moral pessoal.
Essa escala que vai da responsabilidade pessoal direta até a
responsabilidade indireta e quase simbólica é bastante fácil de
apreender e, como eu já disse, é de fato apreendida quase
instintivamente... exceto quando o desejo de inculpar é mais forte que
a razão. Neste caso, muito freqüente na política, uma linguagem de
imputação moral direta é usada contra um acusado que não poderia
ter responsabilidade pessoal concreta nos fatos em questão, como por
exemplo quando o criador de uma política econômica desastrada
(supondo-se que ela o seja mesmo) é chamado de “assassino" por
conta de uma complexa conjetura estatística que associa “índices de
desemprego" a “índices de mortalidade" e, num salto lógico
formidável, atribui a esse indivíduo a autoria de não sei quantas
mortes.
Esse tipo de retórica é um evidente charlatanismo, e seu usuário deve
ser considerado, desde logo, desquali�cado para opinar em questões
morais. Por exemplo, os autores do Livro negro do capitalismo,
paródia grotesca do Livro negro do comunismo, procuram nivelar,
como igualmente abomináveis, as execuções de dissidentes decretadas
pessoalmente por Stalin e Fidel Castro e as mortes por desnutrição
acontecidas na África ou na Ásia e atribuídas, mediante longas cadeias
de conjeturações econômicas, a efeitos indiretos de políticas
econômicas adotadas nos países ricos. Esse nivelamento nega, na base,
o princípio de autoria, e não é desculpável como mero erro de lógica
cometido com boas intenções. Os responsáveis por esse tipo de
propaganda desmascaram-se, no ato, como pessoas moralmente
escorregadias e indignas de con�ança.
Similarmente, o homem que, nada tendo cedido de seus bens aos
pobres, discursa iradamente contra governantes que não tomaram tais
ou quais medidas que no seu entender eliminariam a pobreza está
aplicando o princípio de autoria de maneira dúplice e
autocontraditória: desobrigando-se de fazer pelos desamparados o
pouco que está ao seu alcance, ele cobra o muito que supõe estar ao
alcance de outros, autonomeando-se assim um juiz mais habilitado a
julgar aquilo que só conhece por conjetura do que aquilo que sabe por
experiência direta. Quanto mais esse indivíduo discursar contra os
outros, mais estará se desmascarando a si próprio.
Jornal da Tarde, 4 de janeiro de 2001
J   
Origens do espetacular moralismo judiciário
europeu, que alguns acham um exemplo para
nós
Pouco antes da queda da urss, Mikhail Gorbachev reuniu a elite da
espionagem soviética e ordenou que a maior parcela possível do
patrimônio da kgb fosse privatizada em nome de testas-de-ferro e
investida no Ocidente. Isso nada teve a ver com as privatizações legais
que se seguiram no governo Ieltsin. Foi uma lavagem de dinheiro — a
maior da História. Graças a ela, a kgb, que hoje é ainda o principal
esteio do governo Putin, é apenas meia kgb: a outra metade está
espalhada no planeta, com nomes em inglês e japonês, com a cara mais
capitalista do mundo, subsidiando a guerra cultural, comprando
consciências, �nanciando guerrilhas e trá�co, com cifras que seriam
impensáveis no tempo em que o “ouro de Moscou", para passar ao
Ocidente, tinha de atravessar uma complexa rede de lavanderias
secretas como a de Armand Hammer, o patrocinador da família Gore.
Agora já vem tudo lavado.
Tal é a raiz da expansão aparentemente inexplicável da propaganda
esquerdista na década de maior sucesso do capitalismo. Não é nada
estranho que essa expansão se desse sobretudo nos meios
universitários americanos, hoje tomados pela fúria militante e, como
nota René Girard, cada vez mais incapacitados para tarefas intelectuais
superiores. Desde a década de 30 o movimento comunista está
consciente de que ganhar as classes intelectuais é mais rentável que
converter proletários. Apenas isso nunca foi tão fácil quanto hoje: se já
na Guerra do Vietnã a  e a China gastaram mais dinheiro em
propaganda antiamericana dentro dos Estados Unidos que no custeio
de material bélico, pode-se calcular o quanto esse gênero de operação
se tornou mais maneiro com a  trans�gurada numa rede sutil e
inabarcável de empresas e  s ocidentais.
Para fazer uma idéia da quantia envolvida, basta ter em mente que
aquele patrimônio, secreto e inacessível mesmo ao poder legislativo da
antiga  , incluía, como apenas um de seus itens, o tesouro nacional
espanhol em peças de ouro, acumulado desde Filipe  , levado para
Moscou durante a Guerra Civil e, evidentemente, jamais devolvido...
Não por coincidência, tão logo certas ações um pouco anteriores à
terceirização da  começaram a chamar a atenção na Europa, com a
revelação de documentos dos recém-abertos arquivos do Comitê
Central do  que atestavam as quantias formidáveis passadas a
partidos comunistas, a jornais e editoras e até às principais lideranças
social-democráticas do Ocidente na década de 80, a esquerda reagiu
com vigor. Ela mobilizou seus agentes no poder judiciário para que
desencadeassem uma universal caça às bruxas, paralisando e
desmoralizando mediante fáceis acusações de corrupção menor todas
as lideranças liberais e conservadoras que soubessem demais.
Mas não se tratava só de ocultar o passado imediato: a sucessão de
belos espetáculos judiciários, com juízes transformados em pop stars,
que foi uma marca dos anos 90 e na qual os caipiras de todo o planeta
viram um exemplo de alta moralidade digno de fazer corar os políticos
do Terceiro Mundo, serviu para desviar as atenções do público, dando
tempo à  terceirizada para que se espalhasse por toda parte,
discretamente, sem que ninguém atrapalhasse seu próspero comércio
de caixas-pretas. Foi a mais vasta operação diversionista de que se tem
notícia, feita para encobrir a mais notável trapaça de todos os tempos.
Época, 6 de janeiro de 2001
T  
When one acquires a perversion, 
one always despises the normal... 
All ill people are a club.
— Arthur Koestler
Quem comete delito mais grave: o sujeito que coloca uma bomba em
lugar público, despedaçando transeuntes inocentes, ou aquele que dá
uma surra em quem fez isso? A natureza humana, a razão e o instinto
respondem resolutamente: o primeiro. Em seu apoio vêm a
jurisprudência universal, as leis morais das grandes religiões e até o
regulamento da Associação Protetora dos Animais, que não considera
tão lesivo ao interesse dessas criaturas dar pancadas em uma delas
quanto liquidá-las às dúzias por meio de explosivos.
Toda a humanidade compreende intuitivamente que o torturador,
por cruel e asqueroso que seja, é apenas um agressor, ao passo que o
terrorista, por belo e idealista que se anuncie, é um homicida por
atacado, virtualmente um genocida. As diferenças não param aí.
Maus-tratos a um prisioneiro podem resultar do súbito impulso de
fazer justiça com as próprias mãos, enquanto o ato terrorista supõe
premeditação fria, planejamento racional, execução precisa. A tortura
admite graus, que vão de um tapa na cara até os requintes de
perversidade dos carrascos chineses e norte-coreanos, ao passo que
um homicídio não pode ser meio homicídio, um quinto de homicídio,
um-dezesseis-avos de homicídio. Condenar o terrorismo como “crime
hediondo" é falar de um delito de�nido, claro, inso�smável, ao passo
que usar o mesmo termo para quali�car a “tortura" é um expediente
lingüístico para meter no mesmo saco o torcionário cientí�co que
aplicou choques a um prisioneiro por meses a �o, oLatina.
A maior parte das nossas classes letradas não sabe sequer o que é
desinformação. Imagina que é apenas informação falsa para �ns gerais
de propaganda. Ignora por completo que se trata de ações
perfeitamente calculadas em vista de um �m, e que em noventa por
cento dos casos esse �m não é in�uenciar as multidões, mas atingir
alvos muito determinados — governantes, grandes empresários,
comandos militares — para induzi-los a decisões estratégicas
prejudiciais a seus próprios interesses e aos de seu país. A
desinformação-propaganda lida apenas com dados políticos ao alcance
do povo. A desinformação de alto nível falseia informações
especializadas e técnicas de relevância incomparavelmente maior.
O uso de informações falseadas é conhecido nas artes militares desde
que o mundo é mundo. “A arte da guerra consiste substancialmente de
engodo", dizia Sun Tzu no século  a.C.
Exemplos de informação falsa usada fora do campo militar estrito
aparecem, aqui e ali, na história mundial. Calúnias contra judeus e
protestantes nos países católicos, contra os católicos e judeus nos
países protestantes foram muitas vezes premeditadas para justi�car
perseguições. Os revolucionários de 1789 montaram uma verdadeira
indústria de informações falsas para jogar a opinião pública contra o
rei e, depois, para induzi-la a apoiar as medidas tirânicas do governo
revolucionário. O exemplo mais célebre foi a Grande Peur, o “Grande
Medo": informações alarmistas espalhadas pelo governo, que,
anunciando o iminente retorno das tropas reais — impossível, àquela
altura — desencadeavam explosões de violência popular contra os
suspeitos de monarquismo; explosões que em seguida o próprio
governo mandava a polícia controlar, brilhando no �m com a auréola
de paci�cador. A história das revoluções é a história da mentira.
Mas tudo isso ainda não era desinformação. Invenção pessoal de
Lenin, a desinformação (dezinformátsya) consiste em estender
sistematicamente o uso da técnica militar de informação falseada para
o campo mais geral da estratégia política, cultural, educacional etc., ou
seja, em fazer do engodo, que era a base da arte guerreira apenas, o
fundamento de toda ação governamental e, portanto, um instrumento
de engenharia social e política. Isso transformava a convivência
humana inteira numa guerra — numa guerra integral e permanente.
Quando Hitler usou pela primeira vez, em 1939, a expressão “guerra
total" para designar um tipo moderno de guerra que não envolvia
apenas os políticos e militares, mas toda a sociedade, a realidade da
coisa já existia desde 1917 na Rússia, mesmo sem combates contra um
inimigo externo: o socialismo é a guerra civil total e permanente.
No governo de Lenin, a desinformação era também a regra geral da
política externa. A famosa abertura econômica, planejada como etapa
dialética de uma iminente estatização total, foi anunciada como sinal
de um promissor abrandamento do rigor revolucionário, não só para
atrair os capitalistas, mas para dissuadir os governos ocidentais de
apoiar qualquer esforço contra-revolucionário. Assim, muitos líderes
exilados, desamparados pelos países que os abrigavam e iludidos pela
falsa promessa de democratização na Rússia, voltaram à pátria
conforme calculado e, obviamente, foram fuzilados no ato. Dos que
não voltaram, muitos foram mortos no próprio local de exílio por
agentes da Tcheka, a futura  .
O uso da informação traiçoeira nessa escala era uma novidade
absoluta na política mundial. Para fazer idéia de quanto as potências
ocidentais estavam despreparadas para isso, basta saber que os 
não tiveram um serviço secreto regular para operar no exterior em
tempo de paz senão às vésperas da  Guerra Mundial. Outro ponto de
comparação: a “ofensiva cultural" soviética — sedução e compra de
consciências nas altas esferas intelectuais e no show business —
começou já nos anos 20. A  não reagiu com iniciativa semelhante
senão na década de 50 — e foi logo barrada pela gritaria geral da mídia
contra a “histeria anticomunista".
Não obstante a abjeta inermidade das potências ocidentais ante a
Revolução Russa, o governo Leninista mantinha o povo em
sobressalto, alardeando que milhares de agentes secretos estrangeiros
estavam em solo russo armando a contra-revolução. Um dos raros
agentes que comprovadamente estavam lá era o inglês Sidney Reilly,
um informante mitômano que o Foreign Office considerava
pouquíssimo con�ável, e do qual a propaganda soviética fez o mentor
supremo da iminente invasão estrangeira que, evidentemente, nunca
aconteceu. Para avaliar o alcance dos efeitos da desinformação
soviética, basta notar que até a década de 70 o livro de Michael Sayers
e Albert E. Kahn, A grande conspiração, inspirado no alarmismo
Leninista de 1917, ainda circulava em tradução brasileira como obra
séria, com a chancela de uma grande editora. Diante de casos como
esse, de autodesinformação residual espontânea, não espanta que os
soviéticos tivessem em baixíssima conta a inteligência dos brasileiros,
principalmente comunistas.
Operações de desinformação em larga escala só são possíveis para
um regime totalitário, com o controle estatal dos meios de difusão, ou
para um partido clandestino com poder de vida e morte sobre seus
militantes. Qualquer tentativa similar em ambiente democrático
esbarra na �scalização da imprensa e do Legislativo. Não há, pois,
equivalente ocidental da desinformação soviética. Um governo pode, é
claro, fazer propaganda enganosa, mas não pode fazer desinformação
porque lhe faltam os meios para o domínio calculado dos efeitos, que é
precisamente o que distingue a técnica Leninista. Inversa e
complementarmente, a liberdade de informação nos países
democráticos sempre foi de uma utilidade formidável para a
desinformação soviética, não só pelo contínuo vazamento de
informações secretas do governo para a imprensa, mas também pela
facilidade de divulgar informações falsas pela mídia ávida de
denúncias e escândalos. O célebre general armênio Ivan I. Agayants,
por muitas décadas chefe do departamento de desinformação da  ,
chegava a �car espantado ante a facilidade de plantar mentiras na
imprensa norte-americana. Espantado e grato. Ele dizia: “Se os
americanos não tivessem a liberdade de imprensa, eu a inventaria para
eles".
..: Este assunto continua no artigo da semana que vem. Por
enquanto, vão apenas tratando de conjeturar, se quiserem, o seguinte:
quantos técnicos em desinformação, que aprenderam em Cuba sob a
orientação da  , são hoje “formadores de opinião" no Brasil?
O Globo, 17 de março de 2001
C  
Quali�car assim a luta entre capitalismo e
socialismo é um vício de linguagem
Se você quer avaliar a extensão do domínio hipnótico que os cacoetes
marxistas ainda exercem sobre o sistema neuronal de pessoas que se
supõem imunes a qualquer contaminação de marxismo, basta ver que
estas, quando argumentam em favor do capitalismo, admitem colar na
própria testa o rótulo de defensores de uma determinada “ideologia".
Uma ideologia é, por de�nição, um simulacro de teoria cientí�ca. É,
segundo a correta expressão do próprio Marx, um “vestido de idéias"
que encobre interesses ou desejos. Ao aceitar de�nir-se na linguagem
de seu adversário, o liberal moderno assume o papel que ele lhe impõe:
confessa-se porta-voz dos interesses dos ricos. Que a con�ssão seja
falsa não a torna menos e�caz. Transferida do confronto objetivo das
doutrinas para o terreno da concorrência de interesses, a luta parece
opor agora o explorado ao explorador. Por elegante que seja a
argumentação deste último, ele estará condenado a personi�car
sempre o malvado da história.
Descrever o confronto entre capitalismo e socialismo como “luta de
ideologias" é aceitar um jogo viciado, no qual um dos lados dita as
regras, dá as cartas e predetermina o desenlace.
O capitalismo não é uma ideologia. É um sistema econômico que
existiu e provou suas virtudes desde dois séculos antes que alguém se
lembrasse de formulá-lo em palavras. E o primeiro que esboça essa
formulação,Adam Smith, não é de maneira alguma um ideólogo, um
inventor de símbolos retóricos para construir futuros no ar em favor
de tais ou quais ambições de classe. É um homem de ciência em toda a
extensão do termo, esboçando hipóteses para descrever e explicar uma
realidade existente. O socialismo, em contrapartida, milênios antes de
existir sequer como estratégia política concreta já tinha seus ideólogos,
seus embelezadores de enganos, seus estilistas de interesses de grupos
ressentidos e ambiciosos. Por isso, o confronto de socialistas e liberais
não opõe ideologia a ideologia: a defesa do socialismo é sempre a
auto-atribuição ideológica dos méritos imaginários de um futuro
possível, a do capitalismo é sempre a análise cientí�ca de processos
econômicos existentes e dos meios objetivos de aumentar sua
e�ciência. Malgrado tudo quanto se possa alegar contra ele sob outros
aspectos (e eu mesmo não tenho deixado de alegá-lo), o capitalismo
não somente gerou riquezas incalculáveis, mas pôs em ação os meios
práticos de distribuí-las ao povo e criou instituições como a
democracia parlamentar, a liberdade de imprensa, os direitos
humanos, ao passo que o socialismo só o que fez até hoje foi prometer
um futuro melhor ao mesmo tempo que reintroduzia o trabalho
escravo banido pelo capitalismo, suprimia todos os direitos civis e
políticos conhecidos, reduzia mais de 1 bilhão de pessoas a uma
angustiante miséria e, para se sustentar no poder, recorria a meios de
uma crueldade quase impensável, como por exemplo a empalação e o
esfolamento de prisioneiros — um recurso muito usado durante o
governo de Lenin.
O capitalismo não é uma ideologia — é uma realidade continuamente
aperfeiçoada pela ciência. Ideologia é o socialismo — o vestido de
idéias que encobre as ambições sociopáticas de semi-intelectuais
ávidos de poder.
E uma prova a mais de que isso é assim poderá ser dada por eventuais
reações socialistas a este artigo, as quais, como todas as contestações a
meus artigos anteriores, não conseguirão e aliás nem tentarão
impugnar a veracidade de nenhuma de suas a�rmações, mas se
limitarão a expressar descontentamento e revolta contra sua
publicação.
Época, 24 de março de 2001
O   
Quando os comunistas sobem ao poder na Rússia em 1917, eles
trazem várias décadas de experiência da clandestinidade e nenhuma
experiência da política “normal", da legalidade democrática vigente
nos maiores países europeus e na América. A conseqüência imediata
foi que levaram para o governo as técnicas e hábitos da luta
clandestina. “Governo revolucionário", no caso, veio a signi�car:
governo por meios de ação clandestinos: ocultação, traição, engodo,
perfídia. O lutador clandestino é aquele que se permite tudo, que não
tem compromisso com nenhuma ordem legal ou moral exterior, que
inventa livremente sua regra conforme os interesses e contingências da
luta pelo poder.
O que distinguiu o poder soviético nascente foi menos o emprego da
violência do que o caráter deliberado e calculista da sua brutalidade.
Lenin e Dzerzhinzski, o chefe da polícia secreta, estavam persuadidos
de que a violência funcionava sobretudo pelo seu impacto psicológico,
pelo terror que infundia às multidões. Por isto adotaram métodos de
uma crueldade que, para a opinião pública civilizada, era
simplesmente inimaginável.
O empalamento de prisioneiros foi um deles. Empalamentos são
raridade estranha na história ocidental. O Conde Vlad, guerreiro
romeno miti�cado como Drácula, empregou-os contra os invasores
turcos porque, usuários habituais dessa prática, eles a temiam acima de
tudo. Na opinião dele, era empalar ou ser empalado. O requinte
soviético foi que os candidatos a empalamento não foram escolhidos
entre empaladores em potencial, mas entre padres e monges, para
escandalizar os �éis e fazê-los perder a con�ança na religião, segundo
a meta Leninista de “extirpar o cristianismo da face da Terra".
Também as inovações socialistas em matéria de tortura desa�am a
imaginação do homem normal. Esfolar prisioneiros, fechá-los numa
tumba junto com cadáveres em decomposição, colocá-los na ponta de
uma prancha e escorregá-los lentamente para dentro de uma fornalha,
encostar na sua barriga uma gaiola sem fundo, com um rato dentro, e
em seguida aquecer com a chama de uma vela o traseiro do rato para
que, sem saída, ele roesse o caminho no corpo da vítima — eis alguns
dos processos então documentados por uma comissão de investigação
dos países aliados.
Quem se interessar por esses fatos poderá consultar A People’s
Tragedy: e Russian Revolution 1891–1924 (London, Jonathan Cape,
1996), de Orlando Figes, um dos melhores estudos sobre o período,
bem como o clássico depoimento de Sergei P. Melgounov, e Red
Terror in Russia (London, J. M. Dent, 1925).
Naturalmente serei acusado de mau gosto por relembrar essa parte da
história, bem conhecida porém propositadamente esquecida. Mas o
esquecimento proposital, com todo o bom gosto que se alegue para
justi�cá-lo, é parte do crime: é o recalque que consolida a neurose e
eterniza a repetição dos sintomas. Para ver como isso funciona, basta
notar como, desde então, os próprios socialistas se esmeraram em
fazer um tremendo escarcéu publicitário em torno de denúncias de
tortura, verdadeiras ou falsas, contra ditaduras que, em matéria de
truculência, não têm gabarito para concorrer com a tradição Leninista.
Ninguém tem mais força e eloqüência na retórica de acusação do que
o criminoso que oculta suas próprias culpas: ele sabe quanto a
revelação de seus crimes o tornaria odioso, por isso é tão hábil em
desenhar uma imagem odiosa de seus adversários. Ele tem estampado
na alma o modelo do seu discurso.
É assim que se explica que sejam sobretudo os adeptos e servidores
locais do regime cubano que exibem em público as mais patéticas
emoções do escândalo ao falar das violências do nosso regime militar.
Toda tortura é odiosa, mas não consta que a nossa ditadura tenha
recorrido sistematicamente a mutilações de prisioneiros, ao passo que
o canal dos exilados cubanos,  Martí, exibe semanalmente uma
procissão in�ndável de dedos cortados, orelhas arrancadas e olhos
vazados que atestam a continuidade do Leninismo nas prisões
políticas de Havana.
É precisamente a consciência reprimida da sua cumplicidade moral
com tais crimes que infunde nessas pessoas, pelo arquiconhecido
mecanismo de inculpação projetiva, o fogo da eloqüência com que
fazem brilhar ante os olhos da multidão o esplendor macabro de
crimes incomparavelmente menores.
De modo análogo, a onda mundial de protestos em torno da morte
de Orlando Letellier, assassinado no exílio por agentes da ditadura
chilena, serviu para acabar de apagar da memória popular o fato de
que a prática de mandar matar oposicionistas no exterior foi uma
invenção de Lenin — invenção que fez algumas centenas de vítimas
em Paris e Londres logo na primeira década da Revolução, e cujo uso
se prolongou comprovadamente pelo menos até os anos 50, com o
assassinato do General Walter Krivitsky num hotel em Washington.
Nenhum desses episódios teve repercussão publicitária nem de longe
comparável à do caso Letellier. Como é possível que um único
homicídio suscite mais revolta que centenas deles? A explicação é que
a indignação do ser humano normal contra o crime e a violência é
mista daquela tristeza que inclina antes ao silêncio do que às grandes
efusões de lágrimas públicas: ela jamais pode concorrer, em
teatralismo midiático, com as emoções �ngidas de sociopatas.
Foi precisamente a síntese indissolúvel de crueldade e �ngimento, a
mistura de barbárie e cerebralismo, de ação oculta e publicidade
histérica que caracterizou o primeiro governo socialista da Rússia,
depois imitado �elmente por todos os socialismos revolucionários
subseqüentes, da Ásia à América Latina.
O que o socialismo trouxe de novidade ao mundo foi um estilo
inédito de ação política, radicalmente diferente de tudo quanto a
civilização do Ocidente houvesse conhecido até então. O impacto
dessa novidade abriu para o homemdo século  um abismo de
oportunidades de degradação moral e espiritual que ultrapassavam,
em horror e crueldade, tudo o que a humanidade anterior pudesse
imaginar. A história desse século, o mais sangrento da história
humana, seria inexplicável sem esse precedente aberto pelo
revolucionário que sobe ao governo e leva consigo, para dentro do
aparelho de Estado, o espírito da clandestinidade.
O Globo, 24 de março de 2001
F  
Abraham Lincoln, que de lenhador se fez presidente, teve ainda fôlego
para se tornar, mediante o estudo dos clássicos, um dos maiores
estilistas da língua inglesa. eodore Roosevelt, no intervalo de lutas
políticas e aventuras militares, escreveu ensaios literários que ainda
hoje se lêem com proveito. Nada digo de Jefferson, intelectual dentre
os mais notáveis do seu tempo, muito menos dos Adams, uma dinastia
de eruditos. Saltando de continente, admito que devo a Sir Winston
Churchill algumas das horas de leitura mais divertidas e estimulantes
que já vivi, e da �loso�a moral de Lorde Balfour só tenho a lamentar
que autor tão bom escrevesse tão pouco.
Na França ninguém chegou a presidente ou primeiro-ministro sem
que uma digna folha de serviços literários lhe abrisse caminho. Não
preciso citar gênios como Clemenceau ou de Gaulle: mesmo o
humilde Georges Pompidou, em campanha, jamais deixava de fazer
uma pausa para proferir eruditas conferências sobre Racine ou Victor
Hugo. Já se disse que um político francês não liga para imputações de
corrupção, mas chega a bater-se em duelo se acusado de um erro de
gramática. Mas essas coisas não acontecem só em países estrangeiros.
O Brasil antigo deu belos exemplos de consciência literária em
políticos eminentes. A tradição nasce com o fundador mesmo do
nosso país, o Andrada. Ele �xou um nível de exigência sob cuja
autoridade �oresceram, na política nacional, in�ndáveis
personalidades intelectuais de alto calibre, de José de Alencar a
Joaquim Nabuco, de Oliveira Lima a Ruy Barbosa. A República, a
Revolução de 30 e o regime militar conservaram o padrão, mesmo
declinante. Mas esse Brasil morreu, abruptamente, na década de 80. A
pretexto de democratização, abriram-se as portas a uma autêntica
“invasão vertical dos bárbaros".
Na nova onda de políticos que então brotou do nada, o justo orgulho
de representar as “classes populares" passou a comprovar-se mediante
a apresentação de um novo e inusitado tipo de credencial: o direito à
ignorância, fundamentado na origem pobre de Suas Excelências.
Malgrado o fato de que ao longo da nossa História o crescimento da
corrupção acompanhasse a curva ascendente da participação popular
na política, continuou-se a proclamar como um dogma inquestionável
o refrão de que “o mau exemplo vem de cima" e a não ver mal algum
na presença maciça de semi-analfabetos e mocorongos em postos de
responsabilidade.
Ao contrário, tornou-se hábito e até obrigação moral admitir que
pessoas de origem humilde, ao ascender aos primeiros escalões do
poder, continuassem a cultivar, ao menos em público, uma auto-
imagem de pobres e oprimidos, como se seus salários de deputados ou
governadores não bastassem para custear sua educação e libertá-los de
sua miséria cultural originária.
Eu, que, neto de lavadeira e �lho de operária, julguei ter o dever de
estudar para defender a honra da minha classe humilhada — e que ao
assim proceder não �z senão seguir os passos de um Machado, de um
Cruz e Souza, de um Lima Barreto e de tantos outros que na minha
ingenuidade supus exemplares —, passei a me sentir, no novo
ambiente, um anormal. A moda agora era o sujeito vir da ignorância e,
subindo, permanecer nela, cultivá-la e atirá-la ao rosto da sociedade,
com o orgulho masoquista da vítima que exibe suas chagas para
atormentar o culpado. Mas todo exibicionismo forçado tem limites. O
orgulho da ignorância é tão hipócrita que, na mesma medida em que
se exibe, procura ocultar-se.
A prova é que muitas dessas criaturas alternam seu desempenho
populista de iletrados orgulhosos com tentativas de fazer-se passar por
jornalistas e escritores, publicando artigos e livros escritos por
anônimos terceiros. Governantes atarefados, ou sem talento especí�co
para determinadas matérias, sempre recorreram a redatores auxiliares.
A diferença é que hoje quase todos os políticos, mesmo insigni�cantes
e desocupados, têm seu ghost writer, não porque lhes falte tempo ou o
domínio de assuntos especializados, mas simplesmente porque lhes
falta o conhecimento da língua geral do Brasil.
Trombeteiam nos palanques em defesa da “identidade nacional", mas
não concedem sequer a homenagem de uns minutos de atenção ao
primeiro e essencial componente dela: o idioma. Tornado habitual,
esse uso passa por inocente. Poucos se dão conta de que ele revela o
caráter de farsa grotesca, e no �m trágica, assumido desde há alguns
anos por todo o chamado “debate político nacional". O homem que
não domina as palavras é dominado por elas: vive num mundo de
ilusões verbais, que toma por realidades. Quando consegue montar
uma frase, imagina que provou um fato. A fala, em vez de ser uma
janela para o mundo, substitui o mundo. É a auto-hipnose verbal
tomando o lugar do conhecimento.
É o psitacismo elevado à condição de suprema ciência. Sempre que
me vejo na circunstância de discutir com um desses sujeitos, sinto-me
tentado a desanimar ante a inutilidade do empreendimento. Na
melhor das hipóteses, o infeliz captará a lógica das palavras, sem a
mínima intuição das realidades subentendidas, e fará frases, julgando
que me refutou. Por isso, em vez de discutir com eles, talvez seja
melhor apenas descrevê-los, na esperança de que se reconheçam na
descrição e, num relance, tenham uma salvadora visão do imensurável
ridículo de suas vidas �ngidas.
Zero Hora, 25 de março de 2001
D   
A falta de santos, de místicos, de �lósofos, num país de dimensões
continentais e 500 anos de existência, já basta para fazer dele uma
anomalia espiritual assustadora, provavelmente sem similar na
História universal.
Porém mais anormal ainda é que ninguém se preocupe com isso, que
todos creiam dever constituir primeiro a sociedade ideal, com 200
milhões de cidadãos satisfeitos e rechonchudos, para depois, só depois,
tratar de adquirir alguma consistência no plano do espírito. Esta
pretensão insensata é talvez a maior manifestação de desprezo coletivo
à “única coisa necessária" que já se observou na espécie humana.
Não há, no repertório das possibilidades históricas conhecidas,
exemplo de sociedade que lograsse encher todos os estômagos para só
depois alimentar os corações e cérebros. Os povos mais primitivos, as
comunidades mais rudimentares já mostravam saber que algum tipo
de conhecimento metafísico precedia no tempo e na ordem
hierárquica dos fatores a organização material da sociedade — pois a
sociedade é feita por homens, e a organização da alma humana
precede a possibilidade mesma da ação racional na sociedade.
A expressão “mito fundador" anda hoje nas bocas dos nossos
acadêmicos, mas é evidente que eles não têm a menor idéia do que seja
isso. Imaginam que se trate de uma enorme ilusão coletiva inventada
por espertalhões da classe dominante para colocar os homens a seu
serviço — uma imensa cenoura de burro a orientar o trajeto da
carroça histórica. Santo Deus! Acham que mito fundador é ideologia.
O conceito de mito fundador vem de Schelling. Um mito fundador
não é uma ideologia. Ideologia é um discurso que não compreende a
realidade, mas motiva os homens a substituir uma realidade que
compreenderam mal por outra da qual não vão compreender nada.
Inspirados pela ideologia do socialismo, os seguidores de Lenin
substituíram a sociedade tzarista, da qual tinham uma compreensão
falseada, pela monstruosidade incompreensível que foi a sociedade
soviética. Inspirados nos falsos diagnósticos sociais de Hitler, os
nazistas desmantelaram uma república que não compreendiam e
puseram no lugar dela um pesadelo ininteligível. Guiados por pessoas
que acham que mito fundador é ideologia,um povo que não
compreende a raiz de seus males se prepara, neste país, para produzir
males in�nitamente maiores que, se vierem a se consumar, talvez já
não possam ser compreendidos por nenhuma inteligência humana.
Ideologia é isso: um discurso que, partindo de uma falsa visão do
presente, atrai os homens para a construção de um futuro que, depois
de pronto, é feio demais para que suportem reconhecer nele a obra de
suas mãos. Por isso os desiludidos de ideologias criminosas raramente
se apresentam como aquilo que são: cúmplices fracassados de um
crime sem recompensa. Apresentam-se como vítimas traídas pelo
destino. Falseiam o passado como falsearam o futuro.
Um autêntico mito fundador, ao contrário, é uma verdade inicial
compactada que, no desenrolar da História, vai desdobrando o seu
sentido e �orescendo sob a forma de ciência, de leis, de valores, de
civilização. Um mito fundador não é um “produto cultural", pela
simples razão de que ele, e só ele, é a semente de toda cultura possível.
Um mito fundador constitui-se, em geral, da narrativa simbólica de
fatos que efetivamente sucederam, fatos tão essenciais e signi�cativos
que acabam por transferir parte do seu padrão de signi�cado para
tudo o que venha a acontecer em seguida numa determinada área
civilizacional. Assim, por exemplo, Northrop Frye demonstrou que
todos os esquemas narrativos conhecidos na grande literatura
ocidental são variações de enredos bíblicos.
Ora, os esquemas narrativos da literatura superior são os padrões de
autocompreensão imaginativa de uma civilização. E os padrões de
autocompreensão imaginativa são, por sua vez, os esquemas de ação
possíveis.
A Bíblia, mito fundador da civilização ocidental, está no fundo de
toda a nossa compreensão de nós mesmos e de todas as nossas
possibilidades de ação.
Fora disso, não há senão ideologia, erro, loucura. A desorientação
radical da sociedade brasileira vem da ligação tênue, cada vez mais
distante, cada vez mais evanescente, que nossa história tem com as
raízes bíblicas da civilização do Ocidente. Tanto perdemos a
compreensão do nosso mito fundador que chegamos a querer
substituí-lo por mitos tribais, indígenas ou africanos, belos e
sugestivos o quanto sejam, mas ineptos a dar forma a uma civilização
vasta e complexa. Mas hoje descemos abaixo dos mitos tribais, que,
limitados o quanto fossem, tinham a sua verdade. Já não queremos
nem mesmo construir o Brasil em cima de verdades parciais.
Queremos a mentira total. Queremos uma ideologia.
Jornal da Tarde, 29 de março de 2001
E     
Há um método infalível de tirar conclusões
erradas — o método brasileiro de raciocinar
Se você quer estragar de�nitivamente um cérebro, acostume-o desde
pequeno a tomar os sentidos das palavras, estampados nos dicionários,
como se fossem traduções diretas de coisas e fatos. Em seguida,
quando ele montar um raciocínio com essas palavras, faça-o acreditar
piamente que a conclusão se aplica aos fatos e a coisas
correspondentes.
Esse é o método infalível de ir parar longe da realidade. Após
algumas décadas de experiência na leitura de jornais e livros
brasileiros, posso assegurar que ele é praticamente o único método
admitido nos debates públicos neste país.
Querem um exemplo? A palavra “iluminismo" designa idéias de
liberdade e razão, opostas ao dogmatismo, à fé cega e às tiranias.
“Inquisição", por sua vez, quer dizer um tribunal que mandava os
heréticos para a fogueira. Logo — segundo o método acima referido
—, se estivermos falando de tortura, podemos concluir razoavelmente
que a Inquisição fez uso regular desse expediente e que a difusão do
iluminismo extirpou essa prática hedionda do rol das atividades
humanas decentes.
Essa crença é hoje em dia um topos, um lugar-comum, não apenas
tido por verdade auto-evidente, mas usado como premissa capaz de
transmitir sua veracidade a quaisquer conclusões que se tirem dele.
No entanto, se em vez de se contentar com palavras você decidir
investigar os fatos em detalhe, indo além do que se pode encontrar em
livros de divulgação escritos pelo método brasileiro de raciocinar,
descobrirá que os inquisidores foram as primeiras autoridades a
enxergar na tortura algo de imoral e, sem poder aboli-la por completo,
as primeiras a limitar severamente a sua prática, vetando a efusão de
sangue e proibindo que o mesmo prisioneiro fosse torturado mais de
uma vez. Isso foi um dos passos mais decisivos na evolução dos
direitos humanos.
Os iluministas, por seu lado, consagraram a noção do Estado — em
vez da religião ou da cultura — como autoridade moral suprema,
portanto do governante como “guia dos povos". Com isso, prepararam
o terreno não só para o advento do Terror revolucionário na França,
mas para a emergência dos totalitarismos modernos que
reinstauraram a prática ilimitada da tortura. Essa realidade histórica é
totalmente escamoteada quando, com a maior inocência, o sujeito
raciocina com base no valor nominal dos termos.
Igualmente inepto — só para dar outro exemplo — é o raciocínio que
atenua as culpas de terroristas sob a alegação de que são minorias em
luta clandestina contra um governo tirânico, ao mesmo tempo que
condena com veemência o “terrorismo de Estado". Nominalmente, as
duas coisas são inversas, mas de fato o terrorismo de Estado só veio a
existir por obra de grupos clandestinos que, subindo ao poder,
conservaram, agora como técnicas de governo, suas antigas práticas de
luta — havendo portanto entre o terrorismo clandestino e o estatal
uma relação análoga à de ovo e galinha, entre os quais não há oposição
lógica mas apenas diferenças de fases na evolução temporal de uma só
e mesma criatura.
O terrorista avulso de hoje é o terrorista estatal de amanhã, como o
foram Lenin e Hitler, Mao e Fidel. E há sempre um intervalo misto,
como no caso das  , que fazem terrorismo avulso nas regiões
submetidas ao governo central, terrorismo estatal nas áreas sob seu
próprio domínio.
Tomar as palavras como coisas é introduzir, em debates sérios, um
elemento de magia hipnótica. Feito com inocência, é prova de burrice
e incultura. Feito de propósito, é esplêndida vigarice.
Época, 31 de março de 2001
L  
Quando alguém me diz que o comunismo é coisa do passado, que
advertir contra ele é açoitar um cavalo morto, tenho às vezes uma certa
suspeita de estar conversando com um canalha. Não que o sujeito o
seja necessariamente. Mas, a rigor, somente um canalha descontaria
1,2 bilhão de pessoas que ainda vivem sob a tirania comunista como
uma quantidade negligenciável, um in�nitesimal no in�nito. Somente
um canalha desprezaria como irrelevantes os 40 fuzilamentos mensais
de mulheres chinesas (e seus respectivos médicos) que se recusam a
praticar aborto. Somente um canalha se persuadiria de que, só porque
meia dúzia de �rmas americanas estão ganhando dinheiro em Pequim
(como se já não tivessem faturado outro tanto na Rússia de Lenin), o
comunismo se tornou inofensivo como um rinoceronte de pano.
Somente um canalha �ngiria ignorar que, após a dissolução da urss,
nenhum torcionário da kgb foi demitido, muito menos punido, e que a
maior máquina de espionagem, polícia política, terror estatal e tortura
institucionalizada que já existiu no universo, com um orçamento
superior ao de todos os serviços secretos ocidentais somados, continua
funcionando como se nada tivesse acontecido.
Somente um canalha induziria o povo a ignorar essas coisas, para
que, quando a revolução que se prepara no Brasil com dinheiro do
narcotrá�co tomar o poder, ninguém perceba estar revivendo a
tragédia da Rússia, da China e de Cuba.
Pois não é preciso ir para o exterior, basta olhar para o Brasil mesmo
para ver a força monstruosa que o movimento comunista, seja lá com
que nome for — pois ao longo da história ele mudou de nome muitas
vezes, ao sabor de seus interesses do momento — vem adquirindo a
cada dia que passa. Só para dar um exemplo, a difusão de idéias
comunistas nas escolas, da qual muitos brasileiros ainda nem tomaram
consciência, e que outrosinsistem em ignorar propositadamente
(entre eles o ministro da educação), já passou da fase de simples
“doutrinação" para a do direto e franco estupro das consciências. Em
milhares de escolas o�ciais, professores pagos com dinheiro público
usam de sua in�uência e de seu poder não apenas para instaurar o
culto de líderes genocidas e o mito da democracia socialista, mas para
intimidar e punir qualquer criança que não consinta em repetir seu
discurso magistral. A mais leve divergência, às vezes a simples dúvida,
sujeitam o aluno ao constrangimento diante dos colegas, incutindo
nele o temor pelo futuro da sua carreira escolar e pro�ssional. Meus
próprios �lhos passaram por isso, e recebo mensalmente dezenas de e-
mails com relatos de situações similares. Chamar a isso “propaganda",
“doutrinação", é brandura terminológica de quem não quer ver a
gravidade do que se passa. E o que se passa é que o terrorismo
psicológico já impôs seu domínio sobre os corações infantis,
preparando-os para aceitar, como coisa normal, inevitável e até boa,
um governo de assassinos e psicopatas como aquele que ainda vigora
em Cuba e que já vigora nas regiões sob o domínio das  .
Em face disso, os brasileiros reagem... encobrindo fatos com palavras,
amortecendo a consciência do perigo mediante chavões soporíferos,
exibindo aquele ar de calma �ngida que trai o medo, o pavor de
encarar a realidade. Direi que isso é ingenuidade? Não. A ingenuidade
não tem a astúcia verbal requerida para tamanho auto-engano.
Um leitor, todo empombado de falsa ciência, me escreve que o
comunismo não foi mais violento do que as guerras de religião, o
Santo Ofício, a queima de bruxas ou a Noite de São Bartolomeu. Com
aquele ar sabe-tudo de professorzinho de ginásio, cita o horror de
Montaigne ante a crueldade das guerras civis de seu tempo e conclui
que “a violência sempre esteve presente nas diferentes fases da
história". Nada como uma frase-feita para um brasileiro brilhar
falando do que não sabe. Nada como um belo chavão para igualar,
numa pasta verbal uniforme, as mais prodigiosas diferenças. A
Inquisição espanhola, o tribunal mais cruel de que se teve notícia antes
do século  , matou 20 mil pessoas ao longo de quatro séculos. O
governo Leninista completou cifra idêntica em poucas semanas.
Ademais, quase todos os exemplos de crueldade em massa observados
ao longo da história se deram por ocasião de guerras, seja entre
estados, tribos ou grupos religiosos. A repressão soviética foi o
primeiro caso de violência estatal permanente contra cidadãos
desarmados, em tempo de paz. O exemplo proliferou. Quando os
alemães começaram a enviar judeus a Auschwitz, 20 milhões de russos
já tinham sido mortos pelo governo soviético. Mesmo ao término da
sua obra macabra, em 1945, o nazismo, com toda a máquina genocida
montada para esse �m, não tinha conseguido igualar a produtividade
da indústria soviética da morte.
Sob qualquer aspecto que se examine, o socialismo não é de maneira
alguma uma idéia decente, que se possa discutir tranqüilamente como
alternativa viável para um país, ou que se possa, sem crime de
pedo�lia intelectual, incutir em crianças nas escolas. É uma doutrina
hedionda, macabra, nem um pouco melhor que a ideologia nazista, e
que, para cúmulo de cinismo, ainda ousa falar grosso, em nome da
moral, quando condena os excessos e violências, incomparavelmente
menores, que seus adversários cometeram no afã de deter sua marcha
homicida de devoradora de povos e continentes.
Tão logo aceitamos a lógica infernal da sua propaganda,
obscurecemos nossa inteligência, perdemos o senso da verdade e o
senso das proporções. Perdemos até o senso do antes e do depois.
Incutem-nos, por exemplo, a noção de que a guerrilha brasileira foi a
única saída que lhes foi deixada pelo governo repressor que, em 31 de
março de 1964, fechou todas as portas à oposição legal. Mas como
pode ter sido isso, se a guerrilha começou em 1961, sempre dirigida e
�nanciada desde Cuba? Dizem-nos que a Operação Condor foi uma
conspiração internacional entre ditaduras, para sufocar movimentos
pací�cos e democráticos. Mas como pode ter sido isso, se a tal
operação só surgiu tardiamente, em resposta ao movimento armado
tricontinental, dirigido desde Havana e �nanciado com dinheiro
soviético? Mediante as lições dos mestres socialistas, desaprendemos
até o senso instintivo da ordem temporal dos fatos.
Acreditar nessa gente, ainda que por breves instantes, é desmantelar o
próprio cérebro, é destruir em nossas almas a capacidade para as
distinções mais elementares e auto-evidentes. Por isso já não tenho
mais paciência com pessoas que consentem que seus �lhos sejam
submetidos a esse tipo de estupidi�cação. Por um tempo, imaginei que
fossem apenas idiotas, covardes ou preguiçosos. Mas a idiotice, a
covardia e a preguiça têm limites: ultrapassado um certo ponto,
transformam-se na modalidade mais requintada e sutil de canalhice.
O Globo, 31 de março de 2001
A  
Quando se fala dos cem milhões de vítimas do socialismo, isto se
refere a pessoas assassinadas de propósito, por ordem de governantes,
em tempo de paz. São “inimigos de classe" liquidados mediante
fuzilamentos, enforcamentos, espancamentos, torturas várias e
inanição forçada. São vítimas de genocídio deliberado. Seu número
não inclui nem soldados mortos em combate, nem vítimas civis da
guerra ou de crimes comuns, nem muito menos taxas de mortalidade
infantil ou cálculos de diminuição da expectativa de vida média por
conta da ine�cácia econômica do socialismo. Se incluísse, o total, na
mais modesta das hipóteses, duplicaria. Mas, mesmo sem isso, cem
milhões já bastam para tornar o socialismo, desde o simples ponto de
vista quantitativo, um �agelo mais mortífero que duas guerras
mundiais somadas, mais todas as epidemias e terremotos deste e de
vários séculos.
Quando, nada tendo a opor à realidade brutal desses dados, o
propagandista do socialismo quer aliviar a má impressão desviando os
olhos do público para os “horrores do capitalismo", ele não encontra aí
nada de parecido. Nem Gulag, nem fuzilamentos em massa, nem
expurgos, nem guardas vermelhos a retirar professores de suas
cátedras para espancá-los até à morte. Que artifício lhe resta, então,
senão apelar à duplicidade de pesos e medidas para ajustar o resultado
do cálculo ao efeito publicitário premeditado? Então ele atribuirá às
democracias ocidentais a culpa pelas guerras iniciadas por governos
totalitários, nivelará moralmente o genocídio premeditado com os
efeitos imprevistos de políticas econômicas, fará do governo de
Washington o autor intencional das mortes de famintos em países
submetidos a regimes estatistas e socializantes da Ásia, da África e da
América Latina onde o capitalismo mal chegou a entrar, e por �m
debitará na conta dos governos capitalistas todos os feitos de
assaltantes, estupradores, serial killers e delinqüentes em geral.
Ao perceber que tudo isso ainda não basta para completar a cifra
desejada e que a manobra inteira já começa a soar inconvincente, ele
apelará ao derradeiro subterfúgio: negar o valor dos números,
abolindo, num golpe de caneta, a diferença entre o assassino de uma só
vítima e o assassino de milhões, diferença que minutos antes, quando
imaginava poder usá-la contra o capitalismo, ele mesmo enfatizava aos
berros. Então, matar os 300 assassinos de 200 policiais e soldados, no
Brasil, terá se tornado crime tão hediondo quanto fuzilar, em Cuba,
dezessete mil dissidentes civis desarmados. Revidar o ataque de tropas
armadas, numa guerra civil, será tão abominável quanto retirar de suas
casas, na calada da noite, dezenas de milhões de cidadãos inermes,
para os fuzilar e jogar na vala comum.
Depois de todos esses cortes, enxertos e suturas, não há realidade que
resista. A imagem do capitalismo aí �ca, sim, pelo menos tão má
quanto a do socialismo. Talvez até um pouco pior.
Mas qualquer palavra mais doce do que canalhice, que eu empregasse
para quali�car esse gênero de discurso, me tornaria indigno da
condição de escritor;indigno, a rigor, da simples identidade funcional
de jornalista. Pois, se há uma obrigação elementar do jornalista, é a de
dar aos fenômenos que descreve a justa proporção que têm na
realidade. E não há um só tratado sobre a arte da argumentação, de
Aristóteles e Quintiliano até Schopenhauer e Chaïm Perelman, que
não exclua da arte retórica, mãe do jornalismo, o uso daquele tipo de
expedientes maliciosos, relegando-os ao lixo da erística, a arte de
ludibriar o público, a retórica prostituída dos intrujões e dos canalhas.
Chamá-los canalhas não é, nem de longe, a expressão de um
sentimento pessoal. É a justa e exata aplicação de um juízo consagrado
entre os mestres da arte da argumentação. É o reconhecimento
objetivo da intromissão de um linguajar fraudulento que, se não pode
ser eliminado das arengas de arruaceiros e demagogos, deve ser
banido, sem complacência, de todo debate que se pretenda
intelectualmente respeitável.
Isso é requisito preliminar, independente, mesmo, do mérito das
questões em disputa.
Mas, no caso presente, se há algo comparável à vileza dos
procedimentos argumentativos usados para igualar o inigualável, é a
feiúra moral da causa a que sacri�cam a sua honradez intelectual os
que a tanto se prestam.
As dimensões do mal que eles pretendem ocultar são tão colossais,
ultrapassam de tal modo as medidas do humanamente concebível, que
a Igreja, em sentenças papais proferidas ex cathedra, de�niu o
fenômeno como intrinsecamente diabólico, condenando à
excomunhão automática qualquer católico que, por palavras, atos ou
omissões, colaborasse com o monstruoso empreendimento.
No entanto não falta quem se escandalize diante dessa sentença papal
mais que diante da imensidão do próprio crime que ela condena.
Onde já se viu, dirão, diabolizar assim as pessoas? Feio, no sentimento
de quem assim fala, não é matar cem milhões de seres humanos. Feio é
aliviar, por piedade, as culpas dos criminosos, atribuindo a autoria de
seus feitos ao demônio. Feio não é Pol Pot, não é Stalin, não é Mao,
não é Fidel. Feio é o Papa que, vendo-os conduzidos pelo demônio
como bonecos, joga as culpas deles sobre o tentador e implora a Deus
que os perdoe porque não sabem o que fazem.
É assim que, na imaginação dos que se dizem bem intencionados, o
crime se converte em mérito, e o perdão em crime.
Admito que a visão do mal, nas proporções com que ele surge no
fenômeno socialista, é em si mesma estupefaciente — o bastante para
que a alma vacilante, diante dela, di�cilmente resista à tentação de
negar a realidade, como os olhos do poeta, diante da sangre derramada
de seu amigo Ignacio Sanchez, gritavam desesperados: No! Yo no
quiero verla!
Admito que a fraqueza humana, para se defender instintivamente da
atração hipnótica do mal, pre�ra negá-lo.
Mas a ignorância voluntária é, já, a vitória do mal.
..: Peço encarecidamente a meus antagonistas que, quando me
cobrarem as fontes das informações que veiculo, não o façam naquele
tom arrogante de quem �nge a certeza de não obter resposta. (a) Os
dados sobre a manipulação comunista das consciências infantis foram
coletados pelo Prof. Nelson Lehmann da Silva, da  n , que pode ser
consultado pelo e-mail (b) A prova de que a ação conjunta dos
militares resultou da intervenção cubana na guerrilha, e não esta
daquela, está em O apoio de Cuba à luta armada no Brasil, de Denise
Rollemberg (Rio, Mauad, 2001).
.. : Mais um livro importante sobre a situação catastró�ca do Rio
Grande do Sul, ignorada no resto do país, acaba de sair em Porto
Alegre Crônicas contra o totalitarismo (Fundação Tarso Dutra, f. 051
2214419), de Percival Puggina.
.. : Agradeço ao meu colega Leandro Konder sua gentileza de me
reconhecer, em público, como homem tolerante e capaz de diálogo. Da
minha parte, jamais lhe neguei qualidades similares.
O Globo, 7 de abril de 2001
C  
Quem diz que são a mesma coisa não sabe o que
diz
Neste país você não pode impugnar uma opinião como ideológica e
não-cientí�ca sem que se ergam da platéia vozes histéricas,
sublinhadas por olhares de ódio, proclamando que ciência é ideologia.
Pior ainda, ideologia burguesa.
Que nenhum conhecimento possa estar livre da contaminação das
crenças gerais da sociedade é coisa óbvia. Mas pretender que todas
essas crenças sejam ideológicas e associadas a uma classe em particular
já é loucura, porque uma ideologia de classe não é outra coisa senão a
especi�cação ideológica de crenças comuns a todas as classes. A
maioria das pessoas está persuadida, por exemplo, de que a vida tem
algum sentido. Se não fosse essa crença geral, nenhuma delas poderia
tentar realizar esse sentido segundo valores “aristocráticos",
“burgueses", “proletários" ou seja lá o que for. Uma teoria cientí�ca
que dê por pressuposto que a vida tem sentido está contaminada de
uma crença do senso comum, mas isso não a torna ideológica de
maneira alguma. A distinção de senso comum e ideologia é tão
incontornável que todas as ideologias em con�ito buscam argumentos
no depósito do mesmo senso comum. Ele existe sem elas, mas não elas
sem ele.
Em segundo lugar, ainda que uma teoria cientí�ca repetisse ipsis
litteris uma sentença de alguma cartilha ideológica, nem por isso ela se
tornaria ideológica. Uma a�rmação não é ideológica ou cientí�ca por
seu conteúdo isolado e sim pela forma lógica da estrutura
argumentativa que a sustenta.
A argumentação ideológica é toda feita de saltos, elipses e duplos
sentidos por onde se introduzem de maneira mais ou menos sorrateira
os pressupostos mais arriscados e descabidos. Já a estrutura da
demonstração cientí�ca exige o controle rigoroso do sentido
intencional dos conceitos e a translucidez no encadeamento das
provas. Isso é assim justamente para que a presença de qualquer
elemento ideológico, fantástico ou subjetivo possa ser advertida e
descontada no cômputo da validade �nal das provas. Esse cômputo é o
que justamente falta no pensamento ideológico, que a ele se furta sob a
alegação insana de que ele próprio é a única forma de pensamento que
existe — alegação que, pelo simples fato de ser brandida contra uma
outra forma de pensamento, já a�rma a existência desta última e,
portanto, sua própria falsidade.
Quem proclama que ciência é ideologia só prova, com isso, que é um
ideólogo e não um homem de ciência, pois a identidade de ciência e
ideologia só vale como preceito ideológico e não como regra do
método cientí�co. Essa proclamação não expressa uma identidade
real, mas um desejo: ciência e ideologia não são a mesma coisa, mas o
ideólogo desejaria que fossem, para que nenhuma prova cientí�ca
pudesse valer contra as pretensões de sua ideologia.
Que duas coisas costumem aparecer juntas não quer dizer que sejam
a mesma coisa. A mistura usual da ciência com elementos ideológicos
não apenas não constitui prova de que ciência seja ideologia, mas, bem
ao contrário, a possibilidade mesma de assinalar aí a presença desses
elementos repousa na distinção entre eles e a ciência genuína. Dito de
outro modo: se ciência fosse ideologia, seria impossível provar que há
elementos ideológicos numa teoria cientí�ca qualquer. A identidade de
ciência e ideologia é, pois, um desses casos de escabrosidade
intelectual em que o conteúdo do enunciado é desmentido pelo fato
mesmo de que seja possível alguém enunciá-lo, como, por exemplo,
quando um sujeito diz que aquilo que está dizendo é indizível. O
indivíduo que é adestrado para repetir frases desse tipo sem atentar
para a incongruência da situação se torna progressivamente um
alienado verboso e sem consciência de si.
Infelizmente, esse é o único treinamento que hoje se pode adquirir na
maioria das universidades brasileiras. Por isso todo mundo aí acredita
que ciência é ideologia.
Época, 8 de abril de 2001
D   
Se vocês querem “superar o capitalismo", a primeira coisa que têm a
fazer é tirar da cabeça a idéia de socialismo. O socialismo não apenas é
incapaz de superar o capitalismo, como na verdade é apenas uma
sombra dele, sem vida própria.O capitalismo só será superado quando a economia, que ele
transformou em centro da existência, já não for mais aceita como
princípio causal da História, isto é, quando o último marxista for
enforcado nas tripas do último homo oeconomicus.
A superação do capitalismo não pode consistir na destruição da
economia de mercado, pela simples razão de que o mercado não é uma
ideologia, um regime, uma lei que um governante baixou e outro possa
revogar, mas é uma dimensão da existência humana. Algum tipo de
economia de mercado sempre existiu e, mesmo no mais burocratizado
dos socialismos, continuou a existir. Suprimir a economia de mercado
é tão inviável quanto proibir as relações sexuais. O que distinguiu o
capitalismo moderno, surgido nos Países Baixos na época da Reforma,
foi um conjunto de condições culturais, morais e políticas que, na
ausência de forças políticas reguladoras da vida social, permitiram que
o próprio mercado assumisse o papel de regulador. Mas não de
regulador autocrático. Os principais fatores daquele conjunto eram a
homogeneidade dos valores morais vigentes (cristãos e judaicos) e a
inexistência de um poder central coercitivo: o acordo interior, na
ausência de coerção externa. Tais foram as bases éticas que, como bem
viu Adam Smith, fundamentavam a economia de mercado sem que
esta, por si, pudesse criá-las. Foi a presença dessas condições que
favoreceu o desenvolvimento do capitalismo nos países protestantes e
o inibiu nos países católicos, de forte autoridade central.
Por isso é absurdo considerar o capitalismo uma “ideologia", uma
racionalização de anseios políticos. O capitalismo surgiu como
realidade operante muito antes de que alguém o formulasse como
ideologia. As posteriores “ideologias" capitalistas jamais conseguiram
dar conta da rica complexidade do capitalismo e nem mesmo explicar
su�cientemente sua e�cácia.
Mas nessa origem aparecia já uma contradição fundamental. É que
não só a fórmula econômica surgida espontaneamente daquela
combinação de fatores culturais subsistiu longamente após a
dissolução dela, mas também seu sucesso fez com que fosse exportada
para regiões onde combinação similar nunca existiu. Pois bem, onde o
capitalismo se instalou sem essa base ética, ele teve de improvisar uma
— e, aí, a pura “ideologia" capitalista, racionalização esquemática, fez
as vezes do fundamento ético faltante. Isto não podia dar certo. Daí o
sentido de coisa imposta, revolucionária e autoritária, que a
modernização capitalista adquiriu em tantos países, inclusive o Brasil,
onde essa contradição se radicalizou ao máximo no regime militar, tão
liberal nos seus pretextos ideológicos quanto estatista, centralizador e
prepotente nas suas ações.
Ora, o ponto em comum entre “ideologia liberal-capitalista" e
marxismo é o viés economicista. O primeiro parte de um recorte
fenomênico abstrato — a conduta econômica racional — e o adota,
arbitrariamente, como modelo explicativo e norma corretiva de toda a
vida social. O segundo não faz senão “colocar de cabeça para baixo"
esse modelo, atribuindo a conduta econômica racional já não ao homo
oeconomicus individual e sim ao Estado socialista, que é ainda mais
abstrato, hipotético e arti�cial do que ele.
Daí a simbiose doentia de ideologia liberal e de socialismo onde quer
que as autênticas bases culturais do capitalismo falhem. Mas estas
bases falham cada vez mais num mundo onde a religião recua e o
poder político se expande.
Por isto o capitalismo se descaracteriza a olhos vistos, �cando cada
vez mais parecido com o socialismo, ao mesmo tempo que o
socialismo, fracassado enquanto fórmula econômica, ganha uma
sobrevida postiça na forma de mitologia cultural do capitalismo e
Ersatz de ética religiosa. Por isso, também, será impossível irmos “além
do capitalismo", mesmo em sonhos, enquanto nossa imaginação
estiver presa a essa mitologia.
“Superar o capitalismo" é retirar a economia do topo da vida social,
submetendo-a a valores supra-econômicos. Mas isso é, no mesmo ato,
abdicar do socialismo. O pós-capitalismo ainda não existe nem em
teoria. Mas, quando existir, será menos parecido com o socialismo do
que com o capitalismo originário, onde a lei de Deus era mais
importante do que o progresso econômico e por isto mesmo o
progresso econômico era uma bênção e não uma maldição.
Jornal da Tarde, 13 de abril de 2001
D   
O Fórum da Liberdade, criação do industrial Jorge Gerdau
Johannpeter e do Instituto de Estudos Empresariais, realiza-se todos os
anos, em Porto Alegre, desde 1988. É o maior, o mais sério e o mais
democrático círculo de discussões sociopolíticas deste país. No ano
passado e agora, no dia 10 de abril, reuniu quase duas mil pessoas no
auditório da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul para ouvir
políticos, empresários, escritores e homens de ciência, brasileiros e
estrangeiros, de convicções e tendências diversas, que ali discutiam,
num ambiente de liberdade e tolerância, temas essenciais para o
desenvolvimento nacional. Como é obra de liberais, a coisa acabou por
suscitar meses atrás a inveja dos esquerdistas, que, sentindo-se
humilhados em vez de lisonjeados pela liberdade que aí desfrutavam
como convidados, decidiram fazer o seu próprio fórum, com cinco
diferenças vitais: (1) recorreram ao dinheiro público em vez de ater-se
aos recursos privados; (2) somaram a isso o dinheiro estrangeiro, em
vez de contentar-se com patrocínio nacional; (3) negaram o direito de
voz aos liberais que anualmente lhes franqueavam os microfones do
Fórum da Liberdade; (4) incluíram na lista de convidados especiais
alguns assassinos, genocidas e tra�cantes, um tipo de gente que não
freqüenta o Fórum da Liberdade; (5) disfarçaram a origem caricatural
e imitativa de seu empreendimento sob as aparências,
desproporcionais e forçadas, de um pendant nacionalista do encontro
global de Davos. Essa macaquice perversa chamou-se, como se sabe,
“Fórum
Social Mundial". Em contraste com o original, que mal chega a ser
mencionado na imprensa fora do Rio Grande, recebeu a mais
espetaculosa cobertura do lobby esquerdista na mídia nacional e
internacional.
Não pretendo, ao dizer isso, corrigir a pauta da mídia mundial.
Pretendo apenas buscar a lógica por trás do absurdo. E, nesse
empenho, ocorre-me lembrar que, entre os documentos da  que
despertaram curiosidade quando da abertura dos arquivos do Comitê
Central do  , um, em especial, foi e é sonegado até hoje ao exame
dos pesquisadores: a lista dos jornais e jornalistas ocidentais
subsidiados pela espionagem soviética. Alguns dados fragmentários
foram obtidos pelo escritor russo Vladimir Bukovsky. Comprometiam
celebridades social-democratas e as maiores editoras de jornais
“progressistas" da Europa. Mas sua divulgação, feita na Itália, não
vingou: foi bloqueada pela de�agração da Operação Mãos Limpas, a
qual, mediante e�cazes acusações de corrupção menor, logrou instar
lideranças liberais e conservadoras para que se abstivessem de
investigar aquilo que foi certamente o mais vasto empreendimento de
compra de consciências em toda a história humana. Ajudando assim
os comunistas a escorregar para fora da linha de investigações, a
célebre ofensiva moralista da magistratura italiana talvez contivesse em
seu nome uma alusão ao sabonete usado em análogas circunstâncias
pelo mais escorregadio dos magistrados, o limpíssimo Pôncio Pilatos.
Estes fatos podem parecer muito distantes do assunto inicial deste
artigo, mas dão ao leitor uma idéia da origem e das dimensões
majestosas do lobby esquerdista na mídia européia, idéia sem a qual
seria totalmente incompreensível a repercussão planetária de uma
paródia de debate encenada em Porto Alegre.
Também não é despropositado notar que, após a queda do bloco
soviético, a  , com seu nome alterado pela enésima vez, continuou
a funcionar normalmente, sem que nenhum de seus espiões, esbirros e
torcionários fosse punido ou sequer investigado por seus crimes. Ao
contrário, o próprio Boris Yeltsin, o demolidor do bloco, deteve
temerosamente sua marretaante os muros da  , não só refreando-
se de fazer sondagens mas consentindo até mesmo em erguer uma
estátua a um agente da instituição, celebrado como o espião soviético
que permanecera mais tempo in�ltrado no governo dos  .
Ainda na mesma linha de juntar dados para uma conclusão à qual
seria temeridade atribuir o caráter de coisa certa mas covardia abster-
se de admitir como hipótese razoável, é preciso lembrar aquilo que
disse um dos principais agentes da espionagem comunista no Brasil, o
tcheco Ladislav Bittman, que a repartição para a qual trabalhava
mantinha em sua folha de pagamentos uma considerável tropa de
jornalistas brasileiros e subsidiava até um jornal inteiro. Embora
Bittman publicasse esses dados em 1985 (no seu livro e kgb and
Soviet disinformation), até hoje os pesquisadores acadêmicos, sempre
tão ansiosos por desventrar “os porões" da era militar, não mostraram
o menor interesse em saber quem eram esses felizardos e que serviços
prestaram à espionagem soviética.
Mas, falando em desinteresse, não é menor aquele que a imprensa
nacional demonstra ante o pedido de impeachment do governador
gaúcho Olívio Dutra, que será votado terça-feira próxima na Comissão
de Constituição e Justiça da Assembléia Legislativa do Rio Grande. Em
contrapartida, as senhoras chiques de Paris são informadas, pela
revista Marie Claire de abril, de que, graças ao milagre da
administração popular dutrina, Porto Alegre é hoje — literalmente —
“um jardim". Um jardim de democracia e igualdade.
De fato — acrescento eu — só um igualitarismo profundo pode ter
inspirado algumas das iniciativas que levaram o governador Olívio
Dutra a tornar-se, em pleno jardim, o alvo de um pedido de
impeachment. Vou citar só uma dentre dezenas. O Colégio Tiradentes,
da Brigada Militar, ocupa há 12 anos os lugares de honra no ranking
das melhores escolas gaúchas, segundo pesquisas dos jornais Zero
Hora e Correio do Povo. Enquanto os alunos da rede pública estadual
recebem 2.400 horas-aula por ano, os do Tiradentes recebem 3.200. A
média de aprovação geral de seus alunos é 7; nas demais escolas, 5.
Tudo isso feria doloridamente o espírito igualitário de S. Excia. e de
sua secretária da educação, Lúcia Camini. Para dar �m a tão
intolerável estado de coisas, determinaram que o colégio seria fundido
com outra instituição, também da Brigada Militar, dedicada à
reeducação de o�ciais condenados pela prática de crimes graves. Deste
modo, os alunos do Tiradentes, em vez de constituir uma odiosa elite a
pairar soberbamente sobre este baixo mundo, terão a oportunidade de
ser reeducados nos princípios do igualitarismo, recebendo aulas na
companhia de estupradores, assassinos e ladrões. Isso é mais que
igualdade. É uma imagem do paraíso bíblico: o lobo e o cordeiro
estudando juntos no jardim de Marie Claire.
O Globo, 14 de abril de 2001
C,   
Agora ela é cientí�ca e meticulosa
Comparar a censura dos tempos do governo militar com o sistema
gramsciano de controle das informações que a esquerda instalou no
Brasil é comparar a gerência de um armazém de bairro com a
administração cientí�ca de uma multinacional.
A censura militar, desde logo, se apresentava ostensivamente como tal
e não fazia o mínimo esforço para ocultar sua presença. Todo mundo
sabia que estrofes de Os Lusíadas e receitas de bolos assinalavam fatos
suprimidos. Se um jornal, para não se prejudicar comercialmente,
maquiava as lacunas com notícias inócuas, fazia-o porque queria.
Ninguém o obrigava a isso. A censura reconhecia-se como fenômeno
anormal e provisório, sem a menor ambição de manipular as
consciências a longo prazo.
Em segundo lugar, seu alcance, ao menos de início, era antes policial-
militar do que político. Havia a guerrilha urbana, com seqüestros e
atentados por toda parte, e a ordem era impedir que a mídia se
tornasse instrumento de propaganda dos guerrilheiros. Hoje sabemos
que eles eram poucos e mal armados, mas na época não era essa a
impressão que eles próprios disseminavam: se procuravam aterrorizar
o governo para induzi-lo a sentir-se acuado por uma guerra civil, era
sabendo que a reação de qualquer governo nessas circunstâncias seria
implantar um estado de exceção, incluindo o controle das
informações. Seu cálculo, como de praxe na estratégia comunista, foi
duplo: se o governo não reagisse, arriscava-se a ser derrotado
militarmente; se reagisse, poderia depois ser desmoralizado por
décadas de gritaria contra a censura. A imensa produção
historiográ�co-lacrimal de acadêmicos esquerdistas que até hoje
impõe à consciência nacional uma visão falseada daquele período já
estava nos planos desde então: ela é o aproveitamento político da
derrota militar, a continuação da guerrilha por outros meios.
É verdade que mais tarde os cortes se ampliaram, suprimindo
notícias políticas sem ligação com a guerrilha. Mas, pelo seu próprio
caráter aleatório e despropositado, muitos desses cortes eram o
contrário de uma operação planejada: era a loucura geral disseminada
entre funcionários ineptos e apavorados que, sem instruções precisas,
buscavam desesperadamente mostrar serviço. Em terceiro lugar, a
censura agiu exclusivamente sobre a mídia popular, sem interferir na
circulação de livros (só uns poucos foram proibidos, porque
ensinavam a técnica da guerrilha urbana) e de publicações acadêmicas.
Por isso, a época hoje apresentada como a de mais rígido controle
estatal do pensamento foi a de maior �orescimento editorial
esquerdista em toda a nossa História — muitas vezes com ajuda
�nanceira do próprio governo — e a da consolidação da hegemonia
esquerdista nos meios culturais e acadêmicos.
Objetivo limitado, renúncia à in�uência de longo prazo, execução
canhestra por meio de funcionários incultos, abstenção quase
completa de interferências profundas na esfera superior das idéias e da
cultura. Tais as marcas que caracterizaram a censura militar, à qual
seria um exagero demagógico dar as dimensões de uma verdadeira
manipulação das consciências.
Em contraste, o controle esquerdista das informações, hoje, visa
essencialmente ao longo prazo, tem a seu serviço os mais adestrados
pro�ssionais acadêmicos, age principalmente por cima, pelo controle
das idéias e da visão histórica suscetíveis de moldar o futuro, e,
sobretudo, é meticuloso no empenho de apagar suas pistas. O espectro
de fatos e idéias cuja circulação ele bloqueia é imensamente maior que
o abrangido pela censura militar, chegando a ocultar da população
estudantil brasileira praticamente toda a produção dos pensadores
liberais e conservadores das últimas décadas e capítulos inteiros da
História nacional, como por exemplo a participação de Cuba na
direção das nossas guerrilhas, durante 20 anos negada como pér�da
mentira direitista e agora comprovada, sob protestos gerais, pelo
corajoso estudo de Denise Rollemberg, Apoio de Cuba à luta armada
no Brasil (Rio, Mauad, 2001).
Época, 14 de abril de 2001
O  
Desde 1789, praticamente todas as perseguições em massa, todos os
genocídios do mundo seguiram o mesmo esquema, obsessivamente
repetitivo e invariável: o sacrifício dos crentes pelos ateus militantes. O
quadro é aterrador. França, México, Espanha: matança dos católicos.
Rússia e países satélites: matança dos cristãos ortodoxos (católicos, na
Polônia, na Croácia e na Hungria). Alemanha: matança dos judeus.
China, Tibete, Indonésia etc.: matança dos budistas e muçulmanos.
Total: mais de cem milhões de mortos.
Em todos esses casos, a vítima é religiosa, o assassino é ateu,
materialista, progressista, darwinista, portador do projeto de “um
mundo melhor" em qualquer de suas inúmeras versões. Esse é o fato
mais constante e mais nítido da história moderna, e também o mais
ignorado, omitido, disfarçado. O homem religioso é uma espécie em
extinção, não porque suas crenças tenham sido substituídas por outras
melhores, mas porque está sendo extinto �sicamente.
Não obstante, ainda há quem acredite que as religiões, e não as
ideologias ateísticas, cienti�cistas e materialistas,são responsáveis pela
falta de liberdade no mundo. Daí que a propaganda anti-religiosa,
malgrado os efeitos devastadores que produziu, seja aceita não
somente como atividade cultural elevada e digna, mas como um dos
pilares mesmos do sistema democrático e até como expressão suprema
dos mais belos ideais humanos. Quando milhões de jovens
imbecilizados pela mídia chegam às lágrimas de comoção idealística
ao ouvir em “Imagine’’, de John Lennon, a descrição de uma sociedade
paradisíaca, nem de longe percebem que seu apelo à supressão de
todas as religiões é, em essência, uma legitimação do maior dos
genocídios.
Nos países em que não sofrem violência física, os religiosos vêem
suas crenças excluídas do debate superior sob a alegação da
neutralidade do Estado leigo, e expostas à derrisão em publicações
acadêmicas sem direito de resposta. Nos �lmes, raramente aparece um
padre ou pastor protestante que não seja virtualmente um psicopata,
um pedó�lo ou um serial killer.
Mesmo os rabinos, que durante um tempo foram poupados de
ataques cinematográ�cos diretos por conta da memória recente do
Holocausto nazista, já começam a ser mostrados como repressores
insanos. A blasfêmia imposta ao público por um establishment
industrial milionário é apresentada como expressão da liberdade
criadora de artistas independentes, e qualquer protesto de entidades
religiosas isoladas e impotentes é logo sufocado em nome da liberdade
e da tolerância. Desse tipo de liberdade dizia Eric Voegelin: “Até os
nacional-socialistas defendiam a liberdade. A liberdade para eles, é
claro, com exclusão de todos os outros".
A rigor, não há qualquer diferença signi�cativa entre uma teoria
biológica racista, que sem nenhuma intenção política explícita acabe
concorrendo indiretamente para justi�car a discriminação de negros,
amarelos, judeus ou árabes, e uma argumentação anti-religiosa que,
com a maior inocência e os ares mais democráticos do mundo, ajude a
amortecer na opinião pública a consciência do horror das matanças de
crentes. Em ambos os casos há cumplicidade ao menos inconsciente
com o genocídio. A diferença é que todos os crimes do racismo,
somados, não produziram metade do efeito letal da anti-religião.
No entanto, os próprios religiosos, com freqüência, se recusam a
perceber que o ódio anti-religioso do mundo moderno é geral, que ele
se volta contra todas as religiões e não contra alguma delas em
particular. A maioria deles parece ainda mais empenhada em
polêmicas inter-religiosas do que na defesa comum do direito de crer
em Deus.
Historicamente, a cegueira para o perigo comum já foi, entre os
séculos  e  , a causa de que a religião (católica, no caso)
perdesse sua legitimidade de poder público, cedendo-a aos Estados
nacionais nascentes. Um clero intelectualmente frágil, sem medida de
comparação possível com a elite esclarecida dos séculos  e  ,
revelou-se incapaz de rearticular a civilização ameaçada pela pululação
de seitas em guerra, e in extremis a Europa foi salva pela emergência
da nova autoridade, nacional e monárquica. Mas o advento desta não
apenas acelerou o processo de fragmentação da consciência religiosa
como também elevou incalculavelmente o potencial destrutivo das
guerras, que, de con�itos locais entre grupos, se tornaram lutas de
grande escala entre nação e nação.
Hoje, a ascensão de um poder global ateu e materialista apela,
novamente, à urgência de apaziguar con�itos inter-religiosos, em
muitos casos fomentados por “agentes provocadores". E de novo os
intelectuais religiosos — só que, agora, de todas as religiões — se
mostram incapazes de apreender o quadro geral. Apegando-se a velhas
polêmicas dogmáticas que podem ter sua importância, mas que nesse
quadro se tornam extemporâneas e suicidas, parecem julgar mais
importante humilhar as religiões concorrentes do que enfrentar o
inimigo comum que vai esmagando todas elas juntas.
No Corão, Deus adverte a muçulmanos, judeus e cristãos: “Concorrei
na prática do bem, que no juízo �nal nós dirimiremos as vossas
divergências". Se, na prática, nem todas as divergências podem ser
adiadas para o juízo �nal, algumas, pelo menos, podem �car para
depois de passado o perigo imediato, e outras podem ser canalizadas
para uma simples “concorrência na prática do bem". Qualquer disputa
interconfessional que não esteja numa dessas duas categorias ameaça
tornar-se, na situação presente, apenas um pretexto piedoso para fazer
o mal.
..: Não escrevi este artigo pensando no �lme O corpo, mas este é
um exemplo escandaloso de tudo o que aí digo. Filmes como esse não
devem ser respondidos com pedidos de censura, que só ajudam a
sustentar a farsa do artista coitadinho perseguido pela autoridade
inquisitorial, disfarçando a dura realidade das organizações religiosas
inermes e marginalizadas que gemem sob o tacão da mais poderosa
indústria de propaganda que já existiu no universo. O que se deve
fazer é deixar que vão às telas, que façam sucesso — e em seguida
processar os produtores por cumplicidade moral no massacre de
religiosos, cobrando indenizações pesadas. As organizações cristãs,
judaicas e muçulmanas deveriam juntar-se para isso — aproveitando
que O corpo esculhamba com as três religiões ao mesmo tempo — e
fazer a coisa doer na única parte sensível desses safados: o bolso.
.. : A discussão do impeachment de Olívio Dutra na Comissão de
Constituição e Justiça da Assembléia Legislativa gaúcha foi adiada para
maio. Enquanto isso, no jardim de Marie Claire, a propaganda
comunista nas escolas já passou da fase da doutrinação à do ensino
tático. A Escola Josué de Castro, de Veranópolis,  , está ensinando a
seus alunos a técnica da invasão de fazendas. Para esse �m, acaba de
receber da Secretaria da Educação do  uma verba extra de R$
325.965,00. Se isso não é a revolução comunista �nanciada com
dinheiro público, não sei que raio de coisa possa ser.
O Globo, 21 de abril de 2001
T  C
Quem diria? Mas nem tudo o que é bom para
Cuba é bom para o Brasil
Alertado por um gentil leitor, fui veri�car na internet e comprovei que
os transgênicos, tão odiados pela esquerda nacional, recebem as mais
solícitas atenções do governo de Cuba e têm ajudado a melhorar
consideravelmente a produção agrícola daquele Jardim do Éden.
Se têm dúvidas (e há indivíduos cuja ocupação primordial na vida é
cobrir de suspeitas qualquer informação que venha de Olavo de
Carvalho, chegando alguns a questionar a existência física desse
articulista), podem tirá-las examinando o site do Instituto de
Biotecnología de Las Plantas,3 de Santa Clara, Cuba, entidade estatal
destinada al desarrollo y aplicación de técnicas biotecnológicas e entre
cujas criações se destacam plantas transgénicas de caña de azúcar,
banano, papa y papaya, de grande sucesso entre os agricultores.
O Senhor Bové, portanto, só será admitido na ilha de mãos
amarradas e com focinheira, para não obstruir o progresso da ciência.
Mas a incongruência da situação não nos deve fazer esquecer que
nada, na atuação das forças de esquerda no continente, é pura
arbitrariedade de excêntricos. Desde a fundação do Foro de São Paulo,
vem tudo muito bem coordenadinho de Havana, exatamente como
nos tempos da Organización Latinoamericana de Solidariedad, a Olas,
o  da revolução continental do qual aquela entidade é a
reencarnação pós-moderna.
Se Cuba aposta nos transgênicos, mas busca impedir que sejam
usados aqui, não é por loucura: é por cálculo. É pelo mesmíssimo
cálculo que o  , dizendo querer plantar e produzir, invade,
desmantela e paralisa fazendas produtivas.
Loco sí, pero no tonto. No novo panorama do mundo, os
movimentos revolucionários tornaram-se um dos principais
instrumentos com que a Nova Ordem Mundial debilita e subjuga os
Estados nacionais. Por isso os ataques que esses movimentos fazem às
grandes potências são meramente verbais e pro forma. Nem poderia
ser de outro modo, pois delas vêm o dinheiro que os sustenta e o
aplauso que recebem da mídia chique em Londres e Paris. Já suas
investidas contraa ordem pública, contra os valores nacionais, contra
as forças armadas e contra o progresso econômico dos Estados
periféricos nunca �cam em palavras. São ações materiais,
contundentes, e�cazes, profundas.
Entregue à sanha de invasores e de ecologistas enragés, a agricultura
acabará por se tornar um investimento caro demais para as fortunas
brasileiras. Quem ganhará com isso? Investiguem quem patrocina
esses sujeitos e terão a resposta.
Mas a agricultura é só um detalhe no conjunto de uma estratégia que,
hoje, só os cegos de pro�ssão não querem enxergar. Que exemplo
poderia ser mais patente que a santa aliança das multinacionais com a
extrema esquerda na luta pela affirmative action? O mais cínico nisso
tudo é que essa esquerda, para vender o país, se utiliza da velha
retórica nacionalista dos anos 50. E o discurso ainda funciona tão bem
que muitos patriotas sinceros, ouvindo-o, não chegam a perceber que
o orador diz uma coisa e faz outra.
..: Um outro leitor, escandalizado por minha a�rmativa de que a
associação de iluminismo com liberdade é só um re�exo condicionado
verbal sem respaldo na realidade histórica, protesta que sou ingrato
com o iluminismo, desfrutando as liberdades que ele criou e ainda
falando mal dele. Que raio de raciocínio é esse? Se acabo de dizer que
o iluminismo criou o totalitarismo, não posso, ao mesmo tempo, estar
grato a ele por liberdade nenhuma. Ou o distinto trate de provar que
minha premissa é falsa, ou não exija que eu aceite a conclusão da
premissa contrária. Mas os requisitos mínimos de consistência, sem os
quais nenhuma discussão é possível, parecem que se tornaram, para o
típico brasileiro opinante de hoje, sutilezas inapreensíveis e mistérios
esotéricos. E, quanto mais o sujeito tem preguiça de se elevar ao nível
de uma discussão, menos resiste à comichão de dar palpite nela.
Época, 21 de abril de 2001
Q     
Para mim, a coisa mais óbvia dos últimos meses é que o Fórum Social
Mundial não nasceu como resposta ao encontro de Davos, mas como
imitação paródica do Fórum da Liberdade, criado pelo empresário
Jorge Gerdau Johannpeter e realizado anualmente, com enorme
sucesso, pelo Instituto de Estudos Empresariais. A esquerda,
convidada todo ano a discutir seus pontos de vista com os liberais,
acabou se sentindo humilhada de desfrutar de tanta liberdade na casa
alheia, e vingou-se fazendo um Fórum só para ela própria, fechando a
porta a seus antigos an�triões.
A idéia do contraponto a Davos deve ter surgido como enxerto
publicitário posterior, provavelmente por sugestão do Sr. Ignacio
Ramonet, o homem do Monde Diplomatique, em cujas mãos tinha ido
parar, por meios que agora não vêm ao caso, a cópia do projeto de um
“Congresso Nacionalista Mundial" — este sim, concebido
originariamente como contraponto à reunião de Davos — que
circulava discretamente entre certos políticos nacionalistas que depois
não foram sequer convidados para o  .
O Congresso não era ideológico, mas geopolítico, e sua diretriz básica
era a de reunir lideranças nacionalistas de todas as orientações
ideológicas possíveis, justamente para discutir as perspectivas do
nacionalismo, no sentido mais geral e abrangente do termo, num
mundo onde direita e esquerda se davam as mãos na consecução de
um projeto globalista de poder. Não deve ter sido muito difícil
maquiar o projeto, para fazer dele o instrumento publicitário do neo-
esquerdismo globalista �nanciado pela  e por fundações
multinacionais milionárias. A esquerda, a�nal, tem uma experiência
de mais de sete décadas de parasitagem do nacionalismo. Que o
forçadíssimo paralelo com Davos fosse imediatamente aceito com a
maior facilidade, tanto pela mídia internacional quanto pelos próprios
participantes do encontro suíço, é algo que, em épocas pretéritas, teria
despertado nos observadores as mais inquietantes suspeitas. Mas, no
ambiente de sonsice hipnótica que reina no Brasil, ninguém se
lembrou de fazer nem mesmo a pergunta mais óbvia: que raio de
antiglobalismo é esse, que os próprios globalistas patrocinam
generosamente? Mas o fato é que essa pergunta, hoje, não ocorre aos
cérebros nacionais nem mesmo diante de parcerias ainda mais
escandalosas. O exemplo mais lindo é o da affirmative action, que hoje
busca implantar no Brasil a política de quotas raciais. Não é
esplêndido que, diante da aliança que para esse �m se estabeleceu
entre a nossa esquerda radicalmente antiamericana e algumas das
personi�cações mais típicas do Tio Sam, como a Fundação Ford e o
BankBoston, ninguém dê o menor sinal de estranheza, ninguém ouse
sequer fazer perguntas? É verdade que, nos  , a affirmative action
simplesmente não funcionou. Desde que ela entrou no cenário, o
número de crimes praticados por negros contra brancos aumentou
formidavelmente — segundo dados do  que a grande imprensa de
Nova York esconde embaixo do tapete —, mostrando que a população
negra, desfrutando de vantagens o�ciais que no fundo a humilham,
não se sente nem um pouco melhor do que antigamente.
Mas, aplicada no Brasil, essa política pode ter uma utilidade
formidável. Não exatamente para os negros, é claro. O Brasil tem 15
por cento de negros e 46 por cento de mestiços. Estes, pelo critério
norte-americano, são negros. Se as potências internacionais
conseguirem, com a ajuda da esquerda local, seduzir 61 por cento da
nossa população para o apoio a uma política que é manifestamente
imposta de fora para dentro, isso será a total desmoralização do Estado
brasileiro, a completa liquidação de nossas pretensões de
independência no quadro da Nova Ordem Mundial.
O fato de que os “negros" — no sentido elástico e americano do
termo — não sejam aqui a minoria, mas a esmagadora maioria,
tornará a política de quotas um fardo demasiado pesado que, não
podendo ser carregado nas costas do Estado brasileiro, acabará por
torná-lo visceralmente dependente de ajuda internacional.
Essa dependência será ainda facilitada pela destruição da cultura
miscigenada — que Gilberto Freyre colocava no cerne da identidade
nacional —, seguida de sua substituição pela fórmula americana de
identidades étnicas separadas, unidas somente pela sujeição à
estrutura legal e administrativa comum.
É absolutamente impossível que os planejadores estratégicos
estrangeiros não tenham feito esse cálculo elementar e que não
tenham gostado do resultado. Por isso, hoje mais do que nunca, é
preciso estar muito doido para acreditar no nacionalismo da nossa
esquerda, que tão solicitamente se presta a colaborar para a produção
desse resultado. A parasitagem esquerdista do nacionalismo foi
inventada por Joseph Stalin, na década de 30. A luta entre nações,
entre raças, entre regiões, entre culturas, disse ele numa instrução ao
Comintern, deveria ser redesenhada para parecer luta de classes, e
vice-versa. Que essa cirurgia plástica devesse ter, entre outros efeitos
previsíveis, o de intensi�car essas lutas até fazer delas um genocídio
permanente, tanto melhor.
A fraqueza da inteligência nacional pode ser medida pela passividade
de autômato com que, sete décadas depois, ela ainda se presta a
representar no palco do mundo essa �cção Stalinista.
Zero Hora, 22 de abril de 2001
O    
Éric Weil, �lósofo judeu-alemão que em protesto contra Hitler
abandonou o uso do idioma natal e se tornou um clássico da língua
francesa, enunciou nela esta verdade escandalosa: “Em política, o
único ponto de vista legítimo é o do governante". As mentes incapazes
de abstração podem ler isso como um apelo à obediência servil. Mas o
que Weil quis dizer é que o cidadão que opine sobre política sem se
colocar em imaginação na pele do governante, sem assumir no plano
moral subjetivo as responsabilidades com que ele teria de arcar
politicamente caso agisse segundo essa opinião, é apenas um tagarela
que não tem o direito de ser ouvido pela comunidade. Esta norma é
válida, inclusive, para opiniões políticas que não digam respeito ao
conjunto da sociedade, mas apenas a aspectos determinados e parciais
dela, poissargento que lhe
deu um pontapé numa explosão de raiva, o médico que lhe aplicou
uma injeção para que não morresse e o soldado de plantão que atendia
o telefone na delegacia.
Terrorismo e tortura, en�m, não estão no mesmo plano: aquele é
hediondo em si, esta depende de graus e circunstâncias. E, quanto ao
dano in�igido, o da tortura quase sempre pode ser reparado, física e
moralmente. Mas que reparação oferecer à vítima que teve o corpo
feito em mil pedaços pela explosão de uma bomba? A humanidade
inteira admite essas verdades óbvias. Só uma classe de seres humanos
as rejeita: os “intelectuais de esquerda". Estes prefeririam antes ser
dilacerados por uma bomba plástica num saguão de aeroporto do que
levar pancadas num porão de delegacia e sair vivos para berrar na
imprensa contra a violência policial.
Digo isso por mera inferência, supondo que consintam em escolher
para si próprios o destino que alardeiam ser preferível para os outros.
Mas suspeito que no fundo não seja nada disso. Suspeito que, quando
vituperam o torturador e enaltecem o terrorista, estão impondo às
vítimas destes dois tipos de criminosos uma escala de avaliação que
jamais desejariam para si próprios. Suspeito, mesmo, que a hipótese de
examinar a coisa pelos dois lados jamais lhes passou pela cabeça: em
décadas de leituras de autores esquerdistas, nunca encontrei um único
que se inclinasse a avaliar com igual peso e medida seus atos próprios
e os alheios. Bem ao contrário: o pressuposto básico, o pilar mesmo do
universo mental do esquerdista é o sentimento de estar num patamar
ético e ontológico diferente e superior, em função do qual ações que
cometidas por outras pessoas seriam crimes hediondos se tornam
méritos beati�cantes quando praticadas por ele ou em nome da sua
doutrina.
Foi assim que Karl Marx, após ter escrito páginas ferinas contra os
patrões que abusavam sexualmente de suas empregadas, não teve o
menor escrúpulo de consciência em pôr para fora de casa o �lho que
havia gerado na sua doméstica Helene Demuth.
Foi assim que a doutrina Guevara, ensinando o revolucionário a ser
“uma fria e calculista máquina de matar", tornou-se, para milhões de
idiotas, uma mensagem de amor só comparável ao Sermão da
Montanha.
Foi assim que Fidel Castro, começando sua carreira como pistoleiro
de aluguel e culminando-a como genocida, veio a ser considerado pelo
Sr. Luiz Inácio Lula da Silva um modelo superior de conduta ética.
E é assim que o Grupo Tortura Nunca Mais julga que os suspeitos de
envolvimento mesmo indireto, remoto e conjetural em casos de
tortura devem ser perseguidos até o �m dos tempos, como ratos, como
nazistas, para que os réus confessos de terrorismo, instalados em altos
postos da República, possam estar tranqüilos no desfrute de suas
honras, glórias e mordomias. Contra estes, bene�ciados pela anistia, já
não se pode dizer uma palavra. Mas aqueles, segundo a presidente
dessa entidade, cometeram “crimes inanistiáveis, imprescritíveis e de
lesa-humanidade. Não poderiam ocupar cargos pagos com dinheiro
da sociedade brasileira". Anistia, cargos, dinheiro público, no entender
dessa senhora, são só para os terroristas, para os que mataram por
atacado. Que alguém sugira estender os benefícios da lei aos que
maltrataram esses pobrezinhos no varejo, e ela se encrespa: “Não
aceitamos essa lei".
Inútil argumentar contra essa mentalidade. Sua recusa obstinada de
julgar por um padrão eqüitativo; sua insistência obsessiva em atribuir,
sempre e a priori, motivos altruísticos aos atos de uns e intenções
egoístas aos de outros; sua radical incompreensão do Segundo
Mandamento — tudo isso torna impossível o confronto racional, que a
cegueira ideológica substitui por uma retórica de inculpação
desvairada e autovitimização patética. As pessoas que se deixam
embriagar por esse discurso adquirem um escotoma moral, um
impedimento ao exercício da razão e daquele senso das proporções
que é o corolário imediato da igualdade humana. Ninguém é menos
dotado do instinto da igualdade jurídica do que os apóstolos da
igualdade econômica. Só resta saber a causa profunda dessa
de�ciência. Segundo Joseph Gabel, é um tipo de doença mental, de
esquizofrenia. Segundo Eric Voegelin, é uma sociopatia, uma
enfermidade da esfera moral que não afeta a superfície do eu. Mas às
vezes essa discussão se torna puramente acadêmica: na  , os
esquizofrênicos e sociopatas tomaram de assalto o hospital e
tranca�aram nele quem pretendesse diagnosticá-los. E é preciso ser
ainda mais doido que eles para não perceber que estão querendo fazer
a mesma coisa aqui.
O Globo, 6 de janeiro de 2001
M 
Se comparar a gravidade relativa dos delitos fosse o mesmo que
enaltecer a prática de algum deles, o Código Penal inteiro seria uma
vasta apologia do crime. Basta essa constatação lógica inicial para
evidenciar o seguinte: fazer do meu artigo de sábado passado uma
“defesa da tortura" requer uma dose anormalmente grande, seja de
idiotice, seja de má-fé.
Em casos análogos, procuro sempre apostar na hipótese da idiotice,
para poder continuar acreditando que há algo de bom no fundo das
almas mais estragadas.
No caso presente, não posso. Nem o Sr. Márcio Moreira Alves é um
idiota, nem é idiota a Dona Cecília Coimbra. São ambos caluniadores
maliciosos, perversos, que, com plena consciência da mentira,
atribuem a um jornalista opiniões que ele não tem, com o intuito
preciso de danar-lhe a reputação para em cima da sua ruína construir
a prosperidade do negócio mais sujo que existe na face da Terra: o
comércio do ódio.
No meu artigo, a�rmei com todas as letras que tortura é crime. Repeti
isso três vezes. Acrescentei apenas que maltratar é menos grave que
matar — uma asserção de simples bom senso, que aliás nem teria
sentido enunciar se eu não visse na tortura um crime, de vez que, em
lógica, a comparação de graus subentende a identidade de gênero.
Nada podendo alegar contra esse argumento, que é que faz o Sr.
Moreira? Faz aquilo que, para um tipo como ele, é a coisa mais fácil:
ele mente. Mente, atribuindo-me propósitos que brotam da sua
vontade de caluniar e não daquilo que escrevi.
Por que, em vez de se ater ao que lê, o Sr. Moreira prefere especular
intenções ostensivamente discordes com a letra do texto e, tomando-as
com obscena afoiteza como premissas certas e demonstradas, usá-las
como armas para difamar alguém de cujos atos e de cuja moralidade
ele, rigorosamente, ignora tudo? Não preciso, como ele, conjeturar
motivos. Se ele não me conhece, eu o conheço. Sei por que ele faz o
que faz. Ele mesmo o sugere, na expressão �nal do seu artigo: “Separar
quem lutou de peito aberto dos que se esconderam". Nos dias em que
o presidente Costa e Silva fechou o Congresso, inaugurando o
endurecimento e a perpetuação do regime que seu antecessor
concebera como breve interregno autoritário curativo, �z o que achei
que devia fazer: entrei para o Partido Comunista. Não era a coisa mais
sábia, muito menos a mais confortável. Ela me custou, de imediato,
perigos e incomodidades; a longo prazo, o arrependimento de ter, na
luta contra uma ditadura encabulada e capenga, colaborado às tontas
com a mais totalitária e assassina das tiranias. Mas, enquanto os meus
problemas começavam, os do Sr. Moreira terminavam: naquele
momento ele embarcava para Paris, onde, instalado numa bela
cobertura em bairro elegante, pôde desfrutar com tranqüila segurança
as glórias hauridas no arremedo teatral de heroísmo com que dera um
gran �nale à sua carreira de histrião parlamentar. Por isso nunca pude
admirar aquilo que ele imagina ser a sua coragem, e que Benedito
Valladares descreveu melhor como uma aptidão de bancar o
Tiradentes com o pescoço dos outros. Não me perdôo levianamente de
ter sido comunista, nem alego para enobrecer tal desatino os motivos
autodigni�cantes com que tantos hoje procuram maquiar sua
cumplicidade com o mal do século. Mas não posso, em sã consciência,
me acusar de covardia. Por ter sacri�cado minha juventude e minha
segurança em prol da esquerda perseguida é que tenhomesmo ações de governo limitadas a esses aspectos
afetariam a sociedade toda e seriam por ela julgadas.
A sucessão de decepções que o Brasil tem tido com seus governantes,
cada qual tão hábil em censurar os erros de seu antecessor quanto
propenso a cometê-los ainda piores quando sobe ao poder, mostra que
essa exigência elementar da moralidade intelectual é completamente
desatendida entre nós.
Os políticos de carreira, candidatos a cargos eletivos, são tão
incapazes de imaginar-se na posição do governante quando o criticam
que, quando chega o dia de substituí-lo no cargo, estão completamente
despreparados para o papel: tão logo assumem o governo, descobrem
um outro mundo, imprevisto e rebelde a seus planos, que nem de
longe haviam previsto quando ponti�cavam do alto das tribunas da
oposição. E então, sonsos e desorientados, cometem erro atrás de erro.
Mas, se até os políticos são assim, que dizer do cidadão comum e,
sobretudo, dessa classe especial de cidadãos que são os intelectuais, os
críticos de tudo, os opinadores pro�ssionais entre os quais me incluo?
Cada qual, aí, se crê no direito de julgar em nome de ideais abstratos e
critérios hipotéticos de perfeição, sem ter na mínima conta as
di�culdades reais da situação concreta. Pior ainda, ninguém, ao opinar
sobre problemas nacionais, se atém ao domínio daquilo em que pode
interferir pessoalmente. O professor não se contenta em opinar sobre o
que ele e seus pares devem ensinar, o escritor sobre o que os escritores
podem fazer para escrever melhores livros, o jornalista sobre como
fazer melhores jornais. Não: cada um, quando abre a boca, tem planos
de escala nacional que, para ser executados, supõem no mínimo um
poder presidencial. No Brasil só se debate uma coisa: planos de
governo — e esses planos nem sequer são planos: são ideais genéricos,
puramente verbais, que servem como padrão para julgar e condenar a
realidade, mas não se tornar eles próprios uma realidade. Cada
brasileiro fala como um presidente virtual, investido de plenos poderes
imaginários que, quando os tiver no mundo real, haverá de fazer e
acontecer. Ao mesmo tempo, todos se recusam a conceber as
di�culdades concretas de exercer o poder, e cobram do governante o
que eles próprios, no lugar dele, jamais poderiam fazer. Cada um fala
como se tivesse nas mãos o cetro imperial, mas com as
responsabilidades de simples cidadão comum, às vezes até menor de
idade. O contraste entre a escala macroscópica dos temas e a
incapacidade de se elevar, no exame deles, ao “ponto de vista do
governante" marca os debates nacionais com os sinais inconfundíveis
do puerilismo e da papagaiada histriônica.
Procurando escapar à contaminação desse vício deprimente, tenho
evitado opinar em escala propriamente política, atendo-me antes
àquilo que entendo que eu e os meus colegas de ofício — escritores,
jornalistas, professores — podemos fazer aqui e agora, com o poder
que temos. Mesmo quando os temas de meus artigos são estritamente
políticos, não discuto aí o que o governante deve fazer, mas o que nós,
formadores de opinião, devemos pensar e dizer.
Sou um caso raro de brasileiro desprovido de planos de governo —
não os tenho nem para mim nem para quem quer que seja. Tenho
planos para uma vida intelectual digna, que sou capaz de realizar na
minha escala pessoal e que proponho aos que tenham as mesmas
ambições que eu. Mas aquele que assim se atém ao domínio em que
pode falar com plena responsabilidade se arrisca a ser totalmente
incompreendido. Num país onde todos falam desde cima de um
palanque, como poderiam compreender o discurso do sapateiro que
não se eleva acima das chinelas?
Jornal da Tarde, 26 de abril de 2001
A    

A mente humana não tem nenhum meio de testar uma hipótese senão
concedendo iguais chances de credibilidade à hipótese contrária. Mas
às vezes isso não �ca bem, e em tais circunstâncias os esgares de
indignação no rosto do advogado da primeira hipótese devem ser
aceitos como cabal demonstração cientí�ca da falsidade da segunda.
Ora, ninguém sabe mostrar-se indignado com a veemência, com o
pathos de um militante de esquerda, apologista dos crimes de tortura e
genocídio cometidos pelo governo de Cuba, quando aponta
atrocidades análogas, mas de escala muito menor, praticadas no Brasil.
Por isso, denúncias de crimes atribuídos ao regime militar não devem
ser averiguadas. Têm de ser aceitas prima facie, alardeadas por todos
os meios de comunicação, estampadas nos livros escolares, �xadas em
letras eternas na memória nacional antes que algum aventureiro ouse
amortecer o fervor da certeza por meio de um gélido ponto de
interrogação.
Na verdade, não é só que essas denúncias não devam ser averiguadas.
Elas nem mesmo podem sê-lo, na prática, pois, com exceção dos
arquivos militares, os depósitos de documentos daquele período estão,
em geral, entregues à guarda de militantes de esquerda. Dominando as
fontes de informação, a esquerda tem ainda o monopólio dos meios de
investigação, instalada como está na che�a dos departamentos de
História de todas as universidades públicas, assim como na dos órgãos
distribuidores de verbas de pesquisas, às quais se acrescentam os
generosos subsídios de empresas e fundações estrangeiras,
empenhadas em impor aos países do Terceiro Mundo uma ideologia
politicamente correta que inclui, como um de seus itens essenciais, a
desmoralização sistemática das Forças Armadas.
Acrescentem a isso o predomínio esquerdista nos meios de
comunicação e a completa devoção do  a seu papel de preparador
ideológico das crianças brasileiras para a luta de classes, e terão uma
idéia de quanto a imagem do passado histórico forjada no molde da
propaganda ideológica se tornou mais difícil de contestar do que um
decreto de César na Roma imperial.
Tão vasto poder de controle sobre a visão do passado é fenômeno
inédito nas democracias. Somente os regimes totalitários lograram
conquistar tão sólida autoridade monopolística sobre a fabricação do
relato histórico, fazendo dele um dos pilares de sua dominação
ideológica sobre a vida presente.
Mas, por uma atroz coincidência, foi justamente um grande
historiador, Lorde Acton, quem disse que o poder absoluto corrompe
absolutamente. Os donos do passado, afeitos às delícias do monólogo
incontestado, acabam relaxando as precauções mais elementares e
caindo na sua própria armadilha: acabam acreditando tão piamente
em si mesmos que já não veri�cam nem as contradições mais gritantes
das histórias que alardeiam.
Um caso recente ilustrará isso da maneira mais escandalosa. João
Antônio dos Santos Abi-Eçab e sua esposa Catarina Helena, terroristas
o�cialmente dados como mortos numa colisão entre o Volks em que
viajavam e a traseira de um caminhão perto de Vassouras,  , teriam,
na verdade, sido presos no bairro do Maracanã e mortos a tiros,
sepultados em São João de Meriti e mais tarde desenterrados, vestidos
e colocados no automóvel, por gente do Exército, para simular o
acidente rodoviário em 8 de novembro de 1968.
A denúncia é do Jornal Nacional. Baseia-se no depoimento do ex-
soldado Waldemar Martins de Oliveira, que, segundo declarou ao
repórter Caco Barcelos, na época atuava no serviço de informações do
Exército na área de Marília,  , e teria presenciado a execução. Contra
essa acusação, divulgada em tom de certeza inabalável, restam os
seguintes fatos: Quanto à testemunha: 1. Waldemar diz que desertou
do Exército em 1970, cansado de participar de malvadezas
governamentais. Ele mente. A folha de alterações do recruta Waldemar
no 27º Batalhão de Infantaria Pára-quedista, da qual obtive cópia com
os o�ciais que mantêm o site mostra que ele desapareceu do quartel no
começo de setembro de 1968, sendo dado como desertor a partir do
dia 11 desse mês e não podendo, portanto, estar a serviço do Exército
dois meses depois.
2. Waldemar sentou praça em janeiro de 1968. Ele pretende ter
realizado inúmeras “operações secretas" entre esse dia e a morte do
casal. Mas qual exército do mundo designaria para operaçõesde
inteligência um recruta que nem terminou o período regulamentar de
um ano de treinamento? Simplesmente não havia recrutas, mesmo
treinados, na área de Operação de Informações do Exército, que só
empregava o�ciais e graduados com curso de especialização. Para
piorar ainda mais as coisas, Waldemar, lotado no então I Exército, não
poderia atuar em Marília,  , que era área do II Exército.
Quanto às vítimas: 1. Abi-Eçab e sua esposa não poderiam ter
morrido em 8 de novembro, pois no dia 13 do mesmo mês
participaram do assalto ao carro pagador do Ipeg (Instituto de
Previdência do Estado da Guanabara), segundo depoimento do líder
comunista Jacob Gorender na quinta edição, revista e corrigida, de seu
livro de memórias Combate nas trevas (São Paulo, Ática, p. 109),
con�rmado por Luís Mir em A revolução impossível: A esquerda e a
luta armada no Brasil (São Paulo, Best-Seller, 1994, p. 337).
2. Mesmo na hipótese de que tivessem morrido no próprio dia 13,
seria impossível prendê-los, matá-los, sepultá-los em São João de
Meriti, desenterrá-los, limpá-los, vesti-los e levá-los para Vassouras
para simular o acidente, tudo no mesmo dia.
3. Nas fotos exibidas pelo Jornal Nacional havia na estrada nítidas
marcas de frenagem do Volks até a um metro de distância do
caminhão. Um dos dois falecidos teria ressuscitado para frear o carro?
Ou este foi freado por algum poderoso recruta Waldemar que, sentado
sobre o cadáver, ainda teve tempo de sair voando pela janela um metro
antes de que o veículo se espatifasse de encontro à rabeira do
caminhão? Há muitos outros absurdos no depoimento de Waldemar,
que não tenho espaço para expor aqui. Mas um desertor que mente
sobre a data de sua deserção, mortos que praticam um assalto cinco
dias depois de falecidos, um cadáver que acorda e freia um carro que
vai bater já não são loucura bastante? A coisa toda é tão
imensuravelmente estúpida que, dez anos atrás, ninguém lhe prestaria
atenção, exceto psiquiátrica.
Mas, no ambiente de carnavalesco triunfalismo Anti-Anos-de-
Chumbo, até um repórter geralmente criterioso como Caco Barcelos
se embriaga de loucura denuncista e, no meio das requintadas
averiguações médico-legais que não deixou de fazer — o que muito o
honra como pro�ssional —, se esquece da primeira lição que os
repórteres tarimbados ensinam aos novatos: conferir nomes e datas. O
vírus da infalibilidade dos donos da memória nacional tornou-se a
vaca louca do jornalismo brasileiro: contaminados, mesmo os mais
fortes dentre nós endoidam.
O Globo, 28 de abril de 2001
D  
Pela primeira vez um homem de esquerda
percebe que no Brasil não existe direita
Quem imagina que a imprensa se alimenta de novidades não tem a
menor idéia do que se passa na cabeça de jornalistas. Eles gostam
mesmo é da novidade-padrão, inde�nidamente requentável com
pequenas variações. O motivo é simples: ela é fácil de escrever e de
efeito garantido. Denúncias de corrupção, fofocas do beautiful people,
taxas de desemprego, brigas de políticos infundem no redator aquela
segurança do mágico que vai brilhar com o mesmo truque, pela
milésima vez, ante uma platéia que já o esqueceu 999 vezes. Quando
você tem pressa e o trabalho é muito — duas condições que jamais
falham nas redações —, a melhor notícia é aquela que já vem escrita.
A novidade autêntica, inédita, sem nome no catálogo, é um
problema, um abacaxi: o sujeito não sabe nem por onde começar.
Faltam-lhe os esquemas verbais, os lugares-comuns, os argumentos de
apelo automático sem os quais mesmo o redator mais talentoso �ca
desamparado como uma tartaruga sem casca. O inédito, o esquisito, o
incatalogável requer meios de expressão também inéditos. Exige algo
mais que técnica jornalística: exige uma inventividade literária que
raramente consente em dar o ar de sua graça no alvoroço do
“fechamento". Por falta de meios de expressão, às vezes aquilo que é
mais interessante, mais urgente, mais útil vai para a lata de lixo,
inapelavelmente condenado pela fatalidade da regra wittgensteiniana:
“O que não se pode falar, deve-se calar". E, quando casos desse tipo se
acumulam, a imprensa deixa de cumprir seu papel de abrir para o
leitor as janelas do mundo. Torna-se um repressivo “guardião do
portal", incumbido de lacrar os horizontes e manter a imaginação
popular presa do repetitivo e do convencional.
Por isso mesmo é uma alegria ler o que li na coluna de Zuenir
Ventura da semana passada. Pela primeira vez um jornalista
reconhecidamente “de esquerda" dá uma espiada no mundo e, ao
voltar, repara que desembarcou num país anormal — num país onde
não existe direita. Normalmente, seria preciso ser direitista para notar
isso, mas no Brasil nem os direitistas são direitistas o bastante para
chegar a tamanho atrevimento de percepção. Em geral admitem o uso
consagrado que faz do direitismo uma modalidade de crime hediondo
e dizem que são “de centro", sentindo-se mais ou menos como as
prostitutas quando dizem que são massagistas.
Mas a criminalização da direita não se produziu sozinha. Ela é o
resultado de meio século de “revolução cultural" — a ocupação
esquerdista de todos os espaços, que inclui, como área privilegiada, o
espaço verbal. E isso vai muito além do domínio sobre a linguagem
dos jornais e das escolas. Os mestres soviéticos de desinformação
recomendavam especial empenho na redação de dicionários. A partir
dos anos 50, os principais dicionários em circulação no Brasil são
verdadeiros receituários de semântica esquerdista, a qual assim se
integra no uso corrente como se fosse a coisa mais normal e apolítica
do mundo, rejeitando para o limbo do indizível, portanto impensável,
tudo o que escape da ortodoxia consagrada. Passadas duas gerações, a
anormalidade da situação trans�gurou-se em normalidade postiça, e
aí, mesmo quando o sujeito viaja, não lhe ocorre reparar numa
diferença como aquela que Zuenir assinalou: pois o indizível e
impensável se torna também imperceptível, mesmo quando nos posa
diante dos olhos da cara com a sutileza de um hipopótamo.
É preciso ser muito inteligente e muito sincero para romper o cerco
da repetição dessensibilizante e, num relance, perceber algo que está
fora da pauta mental admitida. Quando os homens dormem, dizia
Heráclito, eles se fecham cada qual em seu mundo; quando acordam,
voltam todos ao mesmo mundo. Não �ca bem a gente criticar ou
elogiar, nas páginas de uma revista, os colegas de redação. Mas Zuenir
ajudou o leitor a emergir da hipnose brasileira para voltar ao mundo
de todos os homens. Que mais se pode exigir de um jornalista?
Época, 28 de abril de 2001
T  
Em carta publicada no Globo do último dia 21, a Professora Denise
Rollemberg esclarece que é minha e não dela a conclusão que tirei do
seu livro O apoio de Cuba à luta armada no Brasil e segundo a qual “a
ação conjunta dos militares (em 1964) resultou da intervenção cubana
na guerrilha, e não esta daquela". Ela nem precisava ter dito isso. Uma
convenção universal do ofício pensante reza que aquilo que um autor
infere de fatos alegados por outro é de inteira responsabilidade do
primeiro. Mas a Professora Denise não haverá de se magoar comigo se
eu acrescentar que, arcando com a responsabilidade das conclusões,
levo também o mérito que possa haver nelas. Inversa e
complementarmente, recai sobre ela a responsabilidade — bem como
o mérito, se algum há nisso — de recusá-las contra os fatos que as
impõem.
No seu livro, a Professora Denise, logo após reconhecer que o
governo de Cuba participava de ações revolucionárias no Brasil desde
1961, escreve:
Após 1964, a esquerda tendeu, e tende ainda, a construir a memória da sua luta, sobretudo,
como de resistência ao autoritarismo do novo regime [...]. No entanto, a interpretação da luta
armada como essencialmente de resistência deixa à sombra aspectos centrais da experiência
nos embates travados pelos movimentos sociais de esquerda no período anterior a 1964.
Traduzido do peculiar idioma universitário nacional — o único, no
mundo, em que ambigüidade é sinônimo de rigor— que signi�ca esse
parágrafo senão que a esquerda brasileira, com a ajuda de Cuba,
tentava conquistar o poder por via armada desde três anos antes do
golpe militar e que, depois dele, passou a usar o novo regime como
pretexto retroativo para alegar que fora compelida ao uso das armas, a
contragosto, com lágrimas de piedade nos olhos, pela supressão
autoritária de seus meios incruentos de luta? A esquerda, en�m,
mentiu durante quase 40 anos, enquanto a direita, a execrável direita,
simplesmente dizia a verdade ao alegar que o golpe de 1964 fora uma
reação legítima contra uma revolução em curso que não se vexava de
recorrer à violência armada com a ajuda clandestina de uma ditadura
estrangeira.
Nada, absolutamente nada nesses fatos permite concluir, com a
Professora Denise, que “o apoio que o governo cubano deu a
guerrilheiros no Brasil, em três momentos diferentes, não poderia
explicar — e muito menos justi�car — a ação dos militares". A idéia
mesma de que uma ingerência armada de país estrangeiro não
explique nem justi�que uma reação igualmente armada da nação
ofendida é, por si, su�cientemente extravagante para não precisar ser
discutida: sua expressão em palavras já basta para impugná-la no ato.
Que essa reação, porém, assumisse a forma de um golpe militar e da
derrubada do governo constituído é algo que poderia parecer
estranho, mas cuja explicação, involuntária aliás, vem da própria
Professora Denise. Ela conta (p. 26) que esse governo, ao apreender em
�ns de 1962 as provas materiais da intervenção armada cubana, em
vez de encaminhar pelo menos um protesto público aos organismos
internacionais, como seria sua mais modesta obrigação, que é que fez?
Escondeu as provas e as devolveu, discretamente, a um emissário de
Fidel Castro.
A Professora Denise não percebe nesse ato presidencial nada de
particularmente anômalo, tanto que, meio às tontas, o descreve como
simples e corriqueira “solução diplomática". Mas qual presidente, de
qual país, tendo as provas de uma intervenção armada estrangeira, as
esconderia de seus compatriotas e as devolveria ao país interventor
sem tornar-se cúmplice dele e, portanto, culpado de crime de alta
traição? E por que haveria João Goulart de cometer esse crime se não
estivesse mais comprometido com os planos do agressor do que com
seus deveres de governante? Meu Deus! Num país onde um presidente
foi escorraçado do cargo por simples desvio de verbas e um senador
arrisca perder o mandato por violar o sigilo da votação numa miúda
comissão parlamentar, será tão difícil à Professora Denise
compreender a gravidade imensurável do crime de passar a uma nação
agressora um segredo militar? E como não enxergar aí a parceria do
criminoso e do cúmplice na implementação de uma única e mesma
estratégia revolucionária? Entre a guerrilha de 1961 e a retórica
“pací�ca" que se lhe seguiu havia diferenças, sim, mas elas não
re�etiam senão a astuta combinação de métodos, ora simultâneos, ora
alternados, com que os comunistas, realizando a fórmula consagrada
de Stalin que prevê a unidade da estratégia por meio de uma
alucinante variação de táticas, desnorteiam seus adversários. Nada,
nada neste mundo pode ocultar a continuidade do esforço
revolucionário que, orientado desde Havana, sacode o continente há
quatro décadas. Con�rma-o — involuntariamente, como sempre — a
própria Professora Denise, ao admitir que “após a experiência
frustrada das Ligas (1961), e já instaurada a ditadura civil-militar,
Cuba rede�niu a maneira de apoiar a revolução no Brasil". Quem
poderia “rede�nir" o que já não estivesse de�nido? Ao trair a con�ança
da nação, João Goulart não fez senão dar prosseguimento, por outros
meios, à guerrilha de 1961, do mesmo modo que a luta armada após o
golpe deu prosseguimento à traição goulartiana e, em seguida, três
décadas e meia de ocultação e mentiras, nas cátedras e nos jornais,
deram prosseguimento à guerrilha de Marighela e Lamarca, sempre
variando os meios em vista da �nalidade constante: a implantação do
regime comunista. Se fosse preciso maior prova dessa continuidade
estratégica, deu-a o Foro de São Paulo, ao assumir, sob o aplauso de
Lulas e tutti quanti, sua identidade de reencarnação do Comintern,
destinada a “reconquistar na América Latina o que foi perdido no
Leste Europeu", segundo palavras reproduzidas no jornal o�cial
cubano Granma de 5 de julho de 1990.
É evidente que a Professora Denise, sabendo disso, não poderia dizê-
lo nesses termos sem arriscar seu emprego num meio universitário
comprometido, até à goela, com a sustentação da mentira. Por isso ela
o disse com meias palavras. É compreensível que ela se irrite quando
alguém o traduz para palavras inteiras.
Mas, da minha parte, estou pouco me lixando para o emprego de
quantos acadêmicos, há quatro décadas, sejam remunerados pelo
Estado brasileiro para colaborar com a ingerência cubana, soviética e
chinesa nos assuntos nacionais, seja sob a forma de guerrilhas, seja de
sua ocultação. Cada salário que essa gente recebeu é pagamento,
extorquido da vítima, em recompensa de um ato mensal de traição.
Não a�rmo que este seja o caso pessoal da Professora Denise, da qual
nada sei. Mas que ninguém venha dizer que acuso somente um dos
lados, pois não me canso, nesta coluna e em outras publicações, de
denunciar os que hoje recebem dinheiro de fundações americanas
para minar as bases da identidade nacional. Que freqüentemente
sejam os mesmos que trabalham para Cuba, é coisa indigna de
espanto. Traição é traição, qualquer que seja o país estrangeiro
bene�ciado por ela.
O Globo, 5 de maio de 2001
M  
O maior criminoso do Brasil está preso, mas
ninguém ousa falar mal dele
Vocês já repararam no tratamento discreto, macio, quase gentil que as
classes falantes têm dado a Fernandinho Beira-Mar desde que foi
preso? Imprensa, políticos, intelectuais — ninguém parece ter um
pingo de raiva desse homem responsável por tantas mortes, por tanto
sofrimento, por tanta iniqüidade. Ninguém o chama de assassino, de
genocida, de monstro, de nenhum daqueles nomes que tão facilmente
vêm à boca de todos quando se referem a desarmados vigaristas de
colarinho branco ou até mesmo à pessoa do presidente da república.
Nenhuma multidão em fúria, convocada pelos autodesignados porta-
vozes dos sentimentos populares, se reúne na porta da delegacia para
xingá-lo como se xingou Luiz Estevão. Nenhum moralista, com
lágrimas de indignação nos olhos, condena como insulto à memória
de inumeráveis vítimas os cuidados paternais que o tra�cante recebe
na cadeia, como tantos julgaram um acinte a prisão especial que, em
obediência à lei, as autoridades deram ao juiz Lalau, malandro
septuagenário incapaz de matar uma galinha.
Não obstante, o homem que distribui drogas a crianças nas escolas e
mata quem tenta impedi-lo é, obviamente, um assassino, um genocida,
um sociopata amoral e cínico. Aplicados a suspeitos de crimes
incruentos, esses termos são �guras de expressão, hipérboles
descomunais, �ores de plástico de uma retórica postiça. Usados para
de�nir Luiz Fernando da Costa, são termos exatos, precisos, quase
cientí�cos. A liberalidade tropical no emprego das hipérboles para
falar de quem rouba contrasta singularmente com a inibição de usar as
palavras em seu sentido literal para falar de quem mata.
De onde vem essa assustadora inversão das cotações de palavras,
homens e crimes na linguagem brasileira? De modo geral, ela re�ete,
inequivocamente, a in�uência da “revolução cultural" gramsciana que,
há 40 anos, com a obstinação sutil das bactérias e dos vírus, contamina
de antivalores comunistas — sem esse nome, é claro — os sentimentos
e as reações de nossa opinião pública.
Mas, no caso presente, há algo mais que isso — algo de in�nitamente
mais sinistro. Há o temor instintivo de revelar a uma luz muito direta e
crua a feiúra de um sócio das  . Pois essa luz ameaçaria re�etir-se
sobre a imagem da guerrilha e, portanto, de todos os seus amigos e
apologistas: Fidel Castro, o presidente Chávez, Lula, o governador
Olívio Dutra,o  , a esquerda quase inteira.
Falar de Fernandinho Beira-Mar com uma linguagem proporcional à
gravidade de seus crimes seria — para usar a expressão consagrada do
jargão militante — “dar munição ao inimigo". Naquilo que dentro de
uma cabeça esquerdista faz as vezes de consciência moral, não há
pecado maior. Portanto, moderação nas palavras! Abandonado há
tempos em nome da “ética", da “participação" e do “dever de
denunciar", o estilo noticioso frio, factual, sem comentários, é de
repente retirado da gaveta e mostra toda a sua inesperada serventia:
num ambiente de furor moralista e indignação oratória, o relato
neutro, asséptico, soa quase como um elogio.
E não pensem que, para pôr em ação esses anticorpos verbais, tenha
sido necessário emitir uma palavra de ordem, distribuir avisos de
algum comitê central, mover alguma complexa cadeia de comando.
Nada disso. A reação já se produz sozinha, por automatismo, quase
inconscientemente. Todos mentem em uníssono — e ninguém tem
culpa porque ninguém mandou ninguém fazer nada.
É precisamente esse domínio tácito sobre as consciências, essa
redução coletiva dos formadores de opinião ao estado sonambúlico de
inocentes úteis, que Antonio Gramsci denominava “hegemonia" — o
prelúdio psicológico à tomada do poder. A hegemonia já está,
portanto, conquistada. Se de�nitivamente ou não, isso depende.
Depende de que ninguém diga o que está acontecendo. E é por isto
mesmo que insisto em dizê-lo.
Época, 5 de maio de 2001
L  
Dentro da linha de raciocínio segundo a qual os tra�cantes não são
tra�cantes porque querem, mas porque nós os obrigamos a sê-lo, o
cineasta Breno Silveira, ao anunciar o �lme que está fazendo para
mostrar que a Falange Vermelha é quase uma instituição de caridade,
contou à Folha de São Paulo de 2 de maio que conheceu Marcinho vp
durante uma �lmagem no Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro. O
futuro detento do presídio de segurança máxima do Bangu tinha então
12 anos e trabalhava carregando os equipamentos da equipe
cinematográ�ca: “Aquela foi uma experiência que me marcou muito.
Eu me lembro de um depoimento bonito do Marcinho vp, em que ele
a�rmava que gostaria de ser advogado, mas que a vida, com certeza,
não iria deixar".
Curioso. Um de meus melhores amigos, o escritor Ronaldo Alves,
nasceu no Morro da Rocinha — mil vezes pior que o Dona Marta —,
cresceu entre bandidos e quis se tornar advogado. A vida obviamente
não o deixou, mas ele foi assim mesmo. Nunca roubou um palito de
fósforo. Enquanto os meninos da vizinhança jogavam pelada e faziam
troca-troca, ele estudava.
Coisa análoga posso dizer de mim mesmo, que na infância, embora
criado entre cidadãos pacatos num bairro operário, conheci tanto
quanto Marcinho  a miséria, a fome, a indiferença do mundo,
somando-se a isso a doença que só me largou na idade adulta.
Não consigo sentir dó desses sujeitos que dizem que �caram pér�dos
ou burros porque tiveram um mau começo de vida. Pois em geral eles
começaram melhor que eu.
Mais curioso ainda é que nem eu nem Ronaldo tivemos a chance de
conviver, logo na entrada da adolescência, com gente do show business
que nos pudesse abrir a perspectiva de uma existência mais alta. O
ambiente de compressiva mediocridade em que fomos criados não
teve essa abertura luminosa. Ali sofremos decerto mais zombaria e
discriminação por nossa mania de estudar do que Marcinho  por
sua inclinação ao crime.
Mas supremamente curioso é o critério moral com que Breno Silveira
julga a sociedade e a si mesmo. Juro que, se um garoto da favela fosse
meu ajudante por um só dia — não tenho equipamentos de �lmagem,
mas ele poderia, digamos, ajeitar meus livros nas estantes —, eu não o
largaria enquanto não tivesse a certeza de haver feito por ele tudo o
que estivesse ao meu alcance para encaminhá-lo melhor na vida. Eu
faria isso ainda que ele não tivesse me contado o que queria ser
quando crescesse. Se me contasse, então, eu compreenderia no ato que
não se tratava de um “depoimento", por mais interessante que
parecesse, mas de um apelo. Quando um menino pobre nos conta seus
sonhos de futuro, ele não está enriquecendo nossa memória de artista:
está pedindo socorro. Sei disso porque um dia também contei meus
sonhos — e ninguém ligou a mínima. Nem por isso achei que tinha o
direito de me vingar, mais tarde, vendendo tóxicos a crianças. Breno
Silveira, com suas câmeras e holofotes, passou pela vida de Marcinho
 e não deixou marcas.
Marcinho foi quem deixou um “depoimento bonito" para adornar as
memórias do cineasta. Substancial contribuição: Breno pode agora
sacá-la do baú e, do alto de sua autoridade moral de membro da elite
esquerdista, julgar e condenar os que não �zeram pelo menino do
Morro Dona Marta o que ele também não fez. Com a diferença de que
a eles o menino nunca pediu nada.
O contraste não poderia ser maior com a atitude de Walter Salles, o
diretor de Central do Brasil, que, encontrando um menino pobre que
aliás não lhe pedia nada, lhe ofereceu emprego num �lme que mudou
sua vida. Um �lme que, como o de Breno Silveira, também mostra
miséria e sofrimento, mas não faz dos bandidos vítimas e não
transmite nenhuma lição de moral além daquela da qual o próprio
Walter Salles deu exemplo — aquela lição que, segundo Goethe,
resume todo o dever do homem: ser digno, prestativo e bom. A quem
não quer ou não pode ser essas coisas resta o consolo moral de falar
mal da sociedade. É isso o que, no Brasil de hoje, se chama “ética". Por
isso acho que o �lme de Breno Silveira não deveria nem ser feito.
Ninguém precisa desse tipo de preleções de ética. Mas há um bocado
de Marcinhos  em potencial que precisam do dinheiro dessa
produção para ter a chance de uma vida nova.
Jornal da Tarde, 10 de maio de 2001
M  
A noção geral consagrada que se transmite nos livros acadêmicos e na
mídia sobre o golpe de 1964 não passa de uma gigantesca operação de
despistamento, calculada para enfatizar uma duvidosa ingerência
americana de modo a ocultar das atenções populares a mais que
provada intromissão do bloco soviético nos con�itos nacionais da
época. Criação de ativistas que mal escondem seu comprometimento
político, ela é obra de pura propaganda destinada a inculcar no
público, em consonância com a orientação geral da desinformação
comunista, a impressão tácita de que a Guerra Fria não se travou entre
os eua e as potências comunistas, mas entre os eua e heróicos
movimentos nacionalistas do Terceiro Mundo. Digo “impressão tácita"
porque, admitida em voz alta, essa premissa se autodesmascararia no
ato; por isto é preciso disfarçá-la sob mil e uma conclusões que se
tiram dela sem declará-la.
A prova mais patente da falsi�cação é o contraste entre o número de
conjeturas que circulam sobre a ação local da  nesse período,
fundadas em indícios circunstanciais sem uma só prova documental
ou testemunhal, e a omissão completa e sistemática de referências à
dos serviços secretos comunistas, malgrado a profusão de documentos
que a con�rmam.
Quantos livros, artigos, reportagens e entrevistas circulam sobre “a
 no Brasil"? Milhares. Quantos sobre “a  no Brasil"? Nenhum.
Numa década em que a abertura dos arquivos soviéticos vem
comprovando a veracidade de praticamente tudo o que a velha
esquerda estigmatizava como “mentiras imperialistas", o desinteresse
dos historiadores brasileiros por averiguar essa parte suja da história
revela sua compulsão de varrer para baixo do tapete os fatos
politicamente inconvenientes.
Entre esses fatos, a simples con�ssão do espião tcheco Ladislav
Bittman de que em 1964 o serviço secreto de seu país tinha na sua
folha de pagamento um pequeno exército de jornalistas brasileiros e
controlava um jornal inteiro já bastaria para derrubar toda a mitologia
consagrada. Esta só permanece de pé porque os perdedores se
tornaram retroativamente vencedores através da manipulação da
história.
Mas a nova hegemonia esquerdista que possibilitou esse estado de
coisas não é fenômeno exclusivamente brasileiro. Em 1997 David
Horowitzobservava:
A situação nas universidades era espantosa. Os marxistas e socialistas que tinham sido
refutados pelos acontecimentos históricos eram agora o establishment o�cial do mundo
acadêmico. O marxismo tinha produzido os mais sangrentos e opressivos regimes da história
humana — mas, após sua queda, havia mais marxistas no corpo docente das universidades
americanas do que em todo o antigo bloco comunista.
Idêntica esquisitice nota-se na França, em Portugal, na Itália — na
Europa ocidental inteira, com exceção da Inglaterra, onde os
intelectuais conservadores �zeram 40 anos atrás sua própria
“revolução cultural" (na base, aliás, da pura luta de argumentos e sem
recorrer aos truques sujos da “ocupação de espaços", tão caros às almas
gramscianas).
Derrotado como regime político-econômico, o socialismo ganhou
uma miraculosa sobrevida como mitologia cultural do capitalismo.
Dois fatores contribuíram para isso: o prodigioso �orescimento da
indústria cultural, que deu espaço para a multiplicação sem �m da
pseudo-intelectualidade universitária e midiática; e a distribuição de
uma parcela considerável das verbas da  , privatizadas
discretamente logo antes da queda da  e espargidas por toda parte
como uma bênção urbi et orbi de São Gorbatchov.
Mas, em parte, o fenômeno é inerente à natureza do capitalismo, que
prospera industrializando sua própria auto�agelação como uma
espécie de vacina anti-socialista. O comércio de mitos esquerdistas
pode coexistir inde�nidamente com o crescimento do capitalismo
porque vicia as classes letradas em lucrar com o abuso das liberdades
capitalistas. Os bene�ciados por esse comércio sabem que ele não
sobreviveria um dia ao advento do regime comunista, o qual por isto
mesmo se torna tanto mais in�uente como mito inspirador da
produção cultural quanto mais a tentação de realizá-lo como proposta
econômica vai desaparecendo do horizonte visível. A força dos mitos,
a�nal, depende precisamente de que ninguém os submeta ao teste da
prática.
Assim, o socialismo perdeu toda substância própria ao tornar-se puro
ódio �ngido ao capitalismo que o alimenta. Nenhuma pro�ssão, hoje,
tem futuro garantido como a de intelectual de esquerda: quanto mais
você ganha dinheiro, fama e autoridade moral falando mal do
capitalismo, mais está livre do risco de que a ditadura do proletariado
venha tirá-lo do seu confortável patamar de classe média ascendente.
Se Marx exagerou ao dizer que as bases econômicas da vida
determinam a consciência dos homens, é verdade que elas
determinam a de alguns. Principalmente a desse tipo de intelectuais:
não é de espantar que indivíduos cuja subsistência pro�ssional
depende de uma farsa sejam também mentirosos, compulsivamente,
no conteúdo daquilo que dizem e escrevem.
***
A todos aqueles que, lutando contra a ditadura militar brasileira,
foram pedir ajuda e inspiração ao governo de Fidel Castro, prometo
solenemente jamais voltar a escrever uma só palavra contra o
socialismo se vocês me provarem as seguintes coisas: 1) Que em Cuba
havia mais liberdade de imprensa que no Brasil. 2) Que em Cuba havia
menos prisioneiros políticos que no Brasil (se vocês não quiserem, não
precisam nem mesmo levar em conta a diferença de população dos
dois países; contento-me com números absolutos). 3) Que em Cuba
havia um partido de oposição funcionando com a liberdade, mesmo
limitada, do  . 4) Que a ditadura militar brasileira matou mais
gente que a ditadura cubana (novamente, aceito números absolutos).
Se vocês me provarem essas coisas, prometo inscrever-me no  e
tornar-me o mais devotado dos seus militantes. Se não provarem, terei
todo o direito e até o dever de continuar julgando que vocês são uns
embrulhões e mentirosos; que vocês não lutavam pela democracia
coisíssima nenhuma e que tudo o que vocês queriam era fazer aqui o
que Fidel Castro fez em Cuba, com a única diferença de que vocês
próprios estariam no papel de Fidel Castro.
O Globo, 12 de maio de 2001
E 
Por que o marxismo é uma doença da alma e
por que os doentes fogem do tratamento
Quando digo que a honestidade intelectual é incompatível com a
contaminação marxista da inteligência, não há nisso nenhuma
“tomada de posição ideológica". Há, sim, a conclusão de mais de 20
anos de estudos, durante os quais me abstive de opinar em matéria
política justamente para evitar que uma “tomada de posição" falseasse
minha visão do assunto.
Uma das conclusões a que cheguei é que não pode haver honestidade
se o opinador não distingue, em suas idéias, o que é conhecimento da
realidade e o que é ativa intervenção nela: ninguém pode escapar da
ilusão e da mentira se seus pensamentos são profecias auto-realizáveis.
Ora, no marxismo, especulação e ação vêm essencialmente
confundidas porque ele rejeita in limine qualquer conhecimento
puramente teórico ou contemplativo. Para o marxista, a separação de
teoria e prática é “formalismo burguês": só podemos conhecer a
realidade mergulhando de cabeça no processo ativo de sua
transformação. Essa idéia penetrou fundo na mentalidade dos
intelectuais e hoje impera, seja como dogma estabelecido, seja como
pressuposto inconsciente, sobre todos os debates públicos neste país
ou onde quer que o marxismo tenha exercido uma in�uência
determinante.
Acontece que essa é talvez a idéia mais enganosa que alguém já teve.
Enquanto não a varrermos das cabeças pensantes, não haverá
honestidade, sinceridade e realismo em nenhuma discussão política ou
cultural.
A “união de teoria e prática" exerce sobre as consciências um apelo
muito forte porque nela reconhecem, instintivamente, sua própria
linguagem interior, ignorada pelo realismo frio das �loso�as
cientí�cas. Na esfera da alma individual, teoria e prática são de fato
inseparáveis. Quando tomo consciência de um dado de minha
realidade pessoal, o conhecimento adquirido se incorpora,
imediatamente, a essa própria realidade. O preguiçoso que toma
consciência de que é preguiçoso já não é apenas um preguiçoso: é um
preguiçoso consciente. A consciência da preguiça já não é pura visão
teórica: ela age imediatamente sobre a realidade conhecida e a
transforma.
Ora, a escala do coletivo, do histórico, do social, que é onde o
marxismo e seus resíduos a�rmam resolutamente a união de teoria e
prática, é precisamente onde ela não pode se realizar de maneira
alguma. Supondo-se, por exemplo, que a visão marxista da classe
proletária fosse certa, nem por isso ela se impregnaria
automaticamente na prática das lutas proletárias como a consciência
da preguiça se impregna na alma do preguiçoso. Entre a teoria na
mente de Marx e a revolução proletária no mundo real, algumas
décadas de propaganda teriam de ser percorridas. Não há transmissão
automática dos pensamentos dos �lósofos às ações da multidão. Na
verdade, 150 anos de marxismo não bastaram para metê-lo na cabeça
dos trabalhadores do mundo, malgrado os prodigiosos esforços da
propaganda soviética.
Ao a�rmar a unidade intrínseca e essencial daquilo que só pode ser
unido por muito trabalho e artifício, o marxismo falseia, na base, os
dois pilares da inteligência humana: o conhecimento e a ação.
Quem quer que tenha se deixado levar pelos encantos do marxismo
está gravemente contaminado por uma mentira fundamental, que, se
não for erradicada, acabará por falsear todo o seu pensamento. Só que,
como na escala individual consciência e realidade estão de fato unidas,
a falsidade não será só do pensamento: será também da personalidade,
dos atos, da vida.
Eis por que combater o marxismo não é só combater uma “opinião"
como qualquer outra: é convocar de volta à autenticidade da vida seres
humanos que alienaram suas existências no altar de uma farsa e que já
não sabem como sair dela. É psicoterapia, no sentido mais nobre da
palavra. Se me odeiam por praticá-la, isso re�ete apenas o terror
pânico com que os fantasmas da neurose reagem ante a chegada da
elucidação terapêutica.
Época, 12 de maio de 2001
A    
Como eu vinha dizendo que imitar é o melhor jeito de aprendera
escrever, muitos leitores, com razão, sentiram-se no direito de me
perguntar quem imitei. Ao longo da vida, �z muitos exercícios de
imitação. Não publiquei nenhum, é claro, nem os guardei. Mas ainda
ressoam no que escrevo — aos meus próprios ouvidos, pelo menos —
as vozes dos mestres que escolhi.
Os principais foram, entre os clássicos da língua portuguesa, Camões,
Antônio Ferreira, Fernão Mendes Pinto, Camilo e Euclides. Machado
foi um deleite, não um aprendizado. Nunca o imitei conscientemente,
porque, malgrado a devoção que lhe tenho, as diferenças de
personalidade entre nós são demasiado fundas. Não consigo me
conceber tímido, recatado, elegante e, ademais, funcionário público.
Mas com facilidade me imagino um navegante e aventureiro como os
nossos clássicos renascentistas, um polemista doido doublé de
metafísico como Camilo, um misto de cientista e repórter como
Euclides.
A empatia, no aprendizado por imitação, é tudo. Por isto cada um
tem de escolher seus modelos.
Os meus entram aqui como simples amostras. Do Eça, para dizer a
verdade, jamais gostei muito. Ele escreve tão gostoso porque seu
pensamento é fácil, leviano, sem densidade ou luta interior. Não me
lembro de ter voltado jamais a uma página sua. Pessoa, tanto quanto
Machado, foi um amor impossível. Ele é maravilhoso, mas eu jamais
desejaria ser esse sombrio professor de inglês, todo encapotado no
mistério e sem ânimo de decifrá-lo.
Também nada devo literariamente a Bruno Tolentino, malgrado a
amizade e a admiração sem reservas que tenho por ele.
O fator que nos separa é sociológico. Brega por origem e vocação, não
posso me identi�car com as raízes culturais — portanto, nem com o
tônus verbal — de um rapaz de família célebre, parente de meio
mundo, criado entre literatos.
Fui amigo e devoto discípulo de Herberto Sales. A primeira visão que
tive dele foi a de um velho mulato gorducho, sentado a um canto no
lobby do Hotel Glória com um livro e um caderninho. O livro era um
volume de Proust. No caderninho Herberto anotava, com uma
caligra�a miúda, as soluções verbais que pudesse aproveitar. Poucos
autores brasileiros, dizia Otto Maria Carpeaux, tiveram uma
consciência artística tão desperta, tão aguda, tão esforçada quanto
Herberto Sales.
Aprendi também com o próprio Carpeaux, do qual li praticamente
tudo o que publicou em português. Ele não era um visual, mas um
auditivo. Não nos fazia ver as coisas, mas adivinhá-las pela sua
repercussão em épocas e almas. Ele tinha a arte camerística de, num
breve artigo, introduzir sutilmente um tema, desenvolvê-lo, fazê-lo
ressoar em muitas oitavas e resolvê-lo rapidamente, nas linhas �nais,
com uma coda abrupta e estonteante. Ninguém, entre nós, dominou
como ele a técnica do ensaio breve, condensação poética de
controvérsias cientí�cas enormemente complexas.
A Nelson Rodrigues também devo muito. Dois títulos condensam
toda a sua arte de escrever: A vida como ela é e O óbvio ululante. O
segredo do seu estilo é a audácia de dizer as coisas da maneira mais
direta e corriqueira, trans�gurando o prosaico em símbolo. Não
encontro coisa similar senão em Pío Baroja e Julien Green, embora
neste sem nada do cinismo de Nelson, naquele com um cinismo
diferente, mais frio e resignado.
Mas a arte de resumir todo um argumento numa frase breve, de
impacto brutal — que tantos me condenam como se fosse prova de
não sei que sentimentos ruins — aprendi mesmo foi com três santos:
São Paulo Apóstolo, Santo Agostinho e São Bernardo. Tudo tem um
preço. Ninguém pode imitar os santos, nem mesmo em literatura, sem
escandalizar uma intelectualidade pó-de-arroz.
Dos autores estrangeiros do século  , além de Baroja e Green, os
que mais me ensinaram foram Ortega y Gasset e Bernanos. Ortega é
de longe o maior prosador da língua espanhola, sem similares nela ou
em qualquer outra pela sua força de fazer ver aquilo de que fala. Na
verdade, mais que fazer ver. Ele próprio comparava a força aliciante do
seu estilo a um punho que saltasse da página e agarrasse o leitor pela
goela, obrigando-o a envolver-se na discussão como se fosse problema
pessoal. Efeito parecido despertam as páginas de Bernanos, mas com
um pathos de moralista encolerizado que falta por completo ao amável
e gentil Ortega.
Como escritor de livros de �loso�a tive de passar também pelos
problemas da exposição �losó�ca, mais complexos, do ponto de vista
técnico-literário, do que em geral se imagina. Para mim, o maior
expositor �losó�co de todos os tempos (não o maior �lósofo, é claro)
foi Éric Weil. Nos seus escritos, a construção abstrata eleva-se às
alturas de uma realização estética, mas de uma estética que, em vez de
se superpor como um adorno ao pensamento conceitual, é encarnação
direta do próprio espírito �losó�co. A força do seu estilo é a beleza da
razão quando alcança o plano mais alto da pura necessidade
metafísica. Apenas, para apreciá-la, é preciso ter desenvolvido o senso
dessa necessidade, que falta por completo às mentes grosseiras,
divididas entre o caos empírico e o formalismo lógico vazio. A estas o
vigor da prova pode dar a impressão de um autoritarismo dogmático,
de uma imposição da vontade, quando ela vem precisamente do
contrário, da total rendição da vontade ante aquilo que, simplesmente,
é o que é.
Virtudes similares, em grau menor, encontro em Edmund Husserl e
Louis Lavelle, com a ressalva de que este insiste demais no que já
demonstrou e aquele abusa dos termos técnicos em prol da brevidade
que, como já dizia Horácio, se opõe à clareza.
O grande expositor �losó�co nada tem de “didático". A �loso�a,
sendo educação em sua mais íntima essência, é por isto mesmo
metadidática, não havendo nela a possibilidade de uma seriação
graduada do mais fácil para o mais difícil. Em �loso�a a melhor
maneira de dizer é aquela que encarne da maneira mais direta e �el o
próprio método �losó�co, e o método �losó�co melhor é o que mais
e�cazmente apreenda a coisa da qual se fala, sem nada acrescentar à
sua simplicidade ou subtrair da sua complexidade. Não se pode falar
legitimamente de �loso�a senão desde um ponto de vista �losó�co.
Não há quadro de referência externo desde o qual se possa
“compreender" uma �loso�a, pela simples razão de que a �loso�a é a
arte de montar os quadros de referência de toda compreensão. Por
isso, a “divulgação �losó�ca" acaba sendo, quase sempre, fraude; e os
melhores escritos �losó�cos quase nunca parecem bons a quem os
julgue de fora, com critérios unilateralmente “literários".
O Globo, 19 de maio de 2001
E  
Estão tentando aliviar a má impressão do
envolvimento com o trá�co
A prisão de Luiz Fernando da Costa num acampamento de
guerrilheiros colombianos, com provas da troca de drogas por armas,
foi talvez a coisa mais temível que já aconteceu para a esquerda
nacional desde a morte de Carlos Lamarca e Carlos Marighella. Beira-
Mar é um arquivo vivente das relações perigosas entre banditismo e
revolução, e por isso alguns jornalistas, sempre ansiosos de vasculhar
porões e ralos para destroçar a carreira de políticos de direita, são tão
circunspectos e evasivos no que diz respeito ao tra�cante. Se ele
soubesse algo capaz de incriminar Antonio Carlos Magalhães ou Paulo
Maluf, os repórteres o assediariam dia e noite. Como o que ele sabe é
contra a esquerda, há na imprensa quem chegue a protestar contra o
destaque que a notícia de sua prisão mereceu em alguns jornais e
revistas.
Outros não se contentam com abafar notícias: partem para a
desinformação ativa. Segundo uma nota reproduzida em várias
publicações na semana passada, o representante do Programa das
Nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas, Klaus
Nyholm, teria dito que as  não atuam como tra�cantes de drogas,
limitando-se a cobrar imposto “por toda a cocaína que sai do território
colombiano", e que as tropas paramilitares de extrema direita, estas
sim, têm envolvimento direto com o trá�co, do qual obtêm de US$ 200
milhões a US$ 500 milhões por ano.
A primeira dessas declarações é autêntica, mas Nyholm a fez muito
tempoatrás, pois já vem citada num artigo de Noam Chomsky de
junho de 2000. Com data falseada, ela serve agora de amortecedor
contra o impacto das provas encontradas com Beira-Mar. Mas a quem
isso pode iludir? Mesmo que não participassem diretamente do trá�co,
as  seriam ainda mais criminosas que os tra�cantes, já que os
dominaram e reduziram à condição de súditos, tornando-se
mandantes e bene�ciárias maiores de seu comércio ilícito.
Quanto à segunda declaração, Nyholm simplesmente não poderia tê-
la feito. Ninguém que não pretendesse se autodenunciar como
mentiroso ou retardado mental a�rmaria que as  recebem
imposto de “toda a cocaína que sai da Colômbia" para, logo na frase
seguinte, anunciar que uma parcela considerável desse todo vem do
maior inimigo delas. Pois aí o infeliz teria de explicar se a extrema
direita paga imposto à guerrilha comunista ou se inventou um jeito de
burlar o Fisco.
Só a volúpia comunista de mentir pode tornar um jornalista tão cego
para a absurdidade pueril daquilo que inventa. No entanto, seria
imprudente explicar pela sanha radical de indivíduos isolados o viés
esquerdista que deforma boa parte do noticiário circulante. A situação
re�ete uma estratégia racional, consciente, empenhada na conquista
dos meios de comunicação desde a década de 60, quando entraram no
Brasil as idéias de Antonio Gramsci, teórico da “ocupação de espaços".
Já em 1993 a  admitia ter em sua folha de pagamento nada menos
de 800 jornalistas — o su�ciente para produzir sete edições semanais
de Época! Somem a isso os que trabalham para o  , o  e as
centenas de  s esquerdistas milionárias (sem que nada de
comparável, mesmo remotamente, contrabalance o fenômeno pelo
lado da direita) — e verão a classe jornalística amplamente subjugada
aos interesses de uma facção política que não prima pela
transparência, seja de seus planos para a derrubada do Estado, seja dos
meios de �nanciamento com que pretende realizá-los.
Malgrado suas alegações de “ética", muitos jornalistas de esquerda
estão indo longe demais na prática da regra Leninista de que os �ns
justi�cam os meios. Alguns deles não têm sequer consciência de que o
que estão fazendo é mau e desonesto. Simplesmente identi�cam a
direita com o mal e sentem que mentir contra ela não é pecado. Mas
“mentir em prol da verdade" foi o pretexto entorpecente que levou
muitos homens bons a colaborar com o genocídio de 100 milhões de
vítimas.
Época, 19 de maio de 2001
T 
Todo mundo sabe — e os testemunhos psicanalíticos e psiquiátricos o
con�rmam abundantemente — que uma grande fonte de sofrimentos
humanos é a possessividade materna. Muitas mulheres têm, de fato,
uma di�culdade de reconhecer em seus �lhos criaturas independentes.
Vêem-nos como propriedades pessoais e adornos destinados ao seu
próprio embelezamento subjetivo.
A revolução psicológica dos anos 60, que muito contribuiu para
minar a autoridade familiar e que é geralmente celebrada na
intelectualidade progressista como um momento importante na
libertação do ser humano, insistiu muito nisso.
No entanto, dessa mesma revolução psicológica nasceu a forma atual
e radicalizada de reivindicação feminista que, de maneira
aparentemente paradoxal, restabelece a possessividade materna em
níveis jamais ambicionados pela mais ciumenta mamãe italiana ou
judia — e não falo das mamães italianas e judias reais, mas da sua
versão piadística grotescamente ampliada.
A reivindicação do poder materno absoluto começa a raiar o
monstruoso no momento em que as mulheres, quando querem ter
�lhos a despeito de algum obstáculo natural, recorrem a arriscadas
manipulações genéticas de moralidade duvidosa, ao passo que outras,
para livrar-se dos seus depois de os ter gerado, se permitem assassiná-
los em massa pelo aborto legalizado.
Em ambos esses casos extremos — opostos só em aparência —, a
exigência feminina de poder sobre o próprio corpo amplia-se numa
reivindicação de onipotência sobre a vida e a morte de outrem.
Em ambos os casos, a vaidade pueril e o egoísmo grosseiro
sobrepõem-se imperiosamente à consideração da simples
possibilidade teórica de que seus �lhos possam ser algo mais do que
meios genéticos de satisfação pessoal de suas mães.
A exploração da vaidade feminina por meio da lisonja é o mais velho
expediente dos manipuladores ambiciosos. O antepassado de todos
eles, caso alguém não se lembre, já aparece no Gênesis prometendo
poder a Eva.
Apenas, a evolução da técnica médica e dos meios de in�uência
psíquica pelos meios de comunicação de massa deu a essa promessa
um alcance estratégico jamais sonhado, fazendo dela uma ameaça
iminente de abolição do senso moral mais elementar em toda a fração
feminina da humanidade.
A mulher imbuída do “direito" de produzir ou matar seus �lhos a seu
bel-prazer é, na melhor das hipóteses, uma sociopata, na qual o desejo
de posse e a ambição de poder se sobrepuseram aos sentimentos de
base que constituem a condição sine qua non da vida familiar, da
decência e do amor pessoal.
A adoção universal da nova moral ultrafeminista será uma catástrofe
civilizacional de proporções assustadoras.
Muito provavelmente, a natureza feminina reagirá por si mesma
contra essa brutal mutação psíquica que lhe querem impor, e a nova
moral do poder materno absoluto não passará de um projeto insano,
abortado nas pranchetas dos engenheiros sociais que a conceberam.
Mas a natureza, para agir com plena e�cácia, tem de ser ajudada pela
cultura. Uma guerra cultural tem de ser travada em defesa dos
sentimentos maternos sãos e contra a oferta de fazer de cada mãe uma
deusa, investida do poder de vida e morte sobre seus �lhos.
Jornal da Tarde, 24 de maio de 2001
R  
O nacionalismo de esquerda é uma fraude
Os apóstolos do Estado nacional, que espumam de indignação
patriótica à simples idéia de privatizar alguma empresa estatal,
tornam-se de repente globalistas assanhados quando um poder
supranacional vem defender os interesses deles contra os interesses da
pátria.
Essa conduta é tão repetida e uniforme que só um perfeito idiota não
perceberia nela um padrão, e por trás do padrão uma estratégia. Desde
logo, “a pátria" que eles celebram se constitui exclusivamente de
estatais, onde têm sua base de operações e de onde dominam não
somente uma boa fatia do Estado, mas também os sindicatos de
funcionários públicos e seus monumentais fundos de pensão.
Defendendo sua toca com a ferocidade de javalis acuados, desprezam
tudo o mais que compõe a noção de “pátria" e não se inibem de
colocar-se a serviço de  s e governos estrangeiros quando atacam
as instituições nacionais, desmoralizam as Forças Armadas,
desmembram o território brasileiro em “nações indígenas"
independentes, impõem normas à educação de nossas crianças,
fomentam con�itos raciais para destruir o senso de unidade nacional
e, em suma, arrebentam com tudo o que constitui e de�ne a essência
mesma da nacionalidade. Da pátria, só uma coisa lhes interessa: o
dinheiro e o poder que lhes vêm das estatais.
Em segundo lugar, o nacionalismo que ostentam é de um tipo
peculiar, desde o ponto de vista ideológico. É um nacionalismo
seletivo e negativo, que enfatiza menos o apego aos valores nacionais
do que a ojeriza ao estrangeiro — e mesmo assim não ao estrangeiro
em geral, como seria próprio da xenofobia ordinária, mas a um
estrangeiro em particular: o americano.
Assim, por exemplo, não sentem a menor dor na consciência quando,
sob o pretexto imbecil de que toda norma gramatical é imposição
ideológica das classes dominantes, demolem a língua portuguesa e
acabam suprimindo do idioma duas pessoas verbais (mutilação inédita
na história lingüística do Ocidente); mas, ante o simples ingresso de
palavras inglesas no vocabulário — um processo normal de
assimilação que jamais prejudicou idioma nenhum, e que aliás é mais
intenso no inglês do que no português —, saltam ao palanque, com os
olhos vidrados de cólera, para denunciar o “imperialismo cultural".
Ser nacionalista, para essa gente, não é amar o queé brasileiro: é
apenas odiar o americano um pouco mais do que se odeia o nacional.
Mas, para cúmulo de hipocrisia, seu alegado antiamericanismo não os
impede de celebrar o intervencionismo ianque quando lhes convém,
por exemplo quando ajudam alegremente a desmoralizar a cultura
miscigenada que constitui o cerne mesmo do estilo brasileiro de viver
e lutam para impor entre nós a política americana das quotas raciais,
em consonância com as campanhas milionárias subsidiadas pelas
fundações Ford e Rockefeller.
Do mesmo modo, seu antiamericanismo fecha os olhos à entrada de
novos códigos morais — feministas e abortistas, por exemplo —
improvisados em laboratórios americanos de engenharia social com a
�nalidade precisa de destruir os obstáculos culturais ao advento da
nova civilização globalista.
Redução do nacionalismo à defesa das estatais, substituição do
antiamericanismo ao patriotismo positivo, adesão oportunista ao que é
americano quando favorece a esquerda: desa�o qualquer um a provar
que a conduta constante e sistemática da chamada “esquerda
nacionalista" não tem sido exatamente essa que aqui descrevo, de�nida
por esses três pontos.
Nunca, na História, houve patriotas a quem se aplicasse tão
exatamente, tão literalmente e com tanta justiça a observação de
Samuel Johnson, de que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas.
Época, 26 de maio de 2001
N  
Por baixo de suas a�nidades profundas e de sua abominável parceria
na década de 30, socialismo e nazi-fascismo conservaram durante
algum tempo uma diferença irredutível que permitia reconhecê-los à
distância e — como direi? — pelo cheiro. O socialismo, com toda a sua
absurdidade infernal, alegava-se no entanto fundado numa ciência,
numa interpretação racional da história e da sociedade. O fascismo
desprezava todas as argumentações e apelava diretamente às paixões,
ao instinto, à irracionalidade bruta.
Era uma diferença antes de embalagem que de substância, pois
ambos, no fundo, eram igualmente irracionais. Talvez por isso mesmo,
à medida que o nazi-fascismo some do horizonte visível e permanece
conhecido apenas pela imagem estereotípica que dele se conserva na
mídia popular, mais fácil se torna para os socialistas copiar suas idéias,
suas propostas e até mesmo seu estilo, seguros de que a ninguém
ocorrerá chamá-los de nazi-fascistas por isso.
Nazista em toda a linha é a ebuliente fusão de ódio nacionalista,
moralismo inquisitorial e retórica populista, que se tornou a marca
inconfundível da esquerda brasileira. Mais nazista ainda o assalto
irracionalista à idéia de verdade e de ciência objetiva, hoje promovido
nas universidades por tropas de choque de vândalos togados, que não
se vexam de reprimir nos alunos, mediante a chacota magisterial e a
ameaça de sanções disciplinares, qualquer tentação de argumentar
com lógica contra sua doutrina. Esta pode resumir-se num breve
parágrafo: “Não existe ciência ou conhecimento objetivo. Não existe
verdade. Tudo o que existe são discursos ideológicos, legitimadores de
interesses econômicos. Há o discurso dos privilegiados e o discurso
dos excluídos. Sejam bonzinhos e tomem partido deste último".
Esse parágrafo contém, rigorosamente, tudo o que um estudante
brasileiro pode aprender hoje em qualquer curso universitário da área
de “humanas". Milhões de arranjos e variações são feitos para adaptar
a mensagem às exigências das várias disciplinas, podendo-se portanto
encontrá-la, sem qualquer diferença ou acréscimo substancial, em
linguagem jurídica, psicológica, teológica, historiográ�ca, sociológica,
�losó�ca, geográ�ca etc. Nada, nem uma única idéia se admite, em
qualquer área do conhecimento, que não seja redutível, sem prejuízo
do seu conteúdo, à fórmula-padrão universal, o parágrafo dos
parágrafos, essência primeira e última do saber humano.
A variedade dos arranjos dá aos leigos e recém-chegados uma
impressão de riqueza atordoante, su�ciente para mantê-los sentados
em suas carteiras até o dia em que, tendo percebido en�m a mágica
besta que os fez de otários, já estejam cansados e amestrados demais
para desejar desmascará-la, e optem pela alternativa mais cômoda de
seguir os passos de seus mestres na senda da auto-estupidi�cação
letrada.
Então, por medo de parecer ingênuos que acreditam em lógica,
estarão dispostos a repetir os mais rematados contra-sensos e a
defendê-los bravamente, não com argumentos, é claro, mas com
aquela variada coleção de trejeitos de indignação, despeito e
repugnância que hoje constitui o indispensável vocabulário facial de
um perfeito sábio acadêmico.
Querem um exemplo? Dona Marilena Chauí, talvez a mais típica
encarnação do ideal universitário nacional, acaba de estatuir como um
“princípio nuclear da lógica do poder" a seguinte coisa: “Toda
sociedade está dividida originariamente entre o desejo dos grandes de
comandar e oprimir e o desejo do povo de não ser comandado nem
oprimido, de�nindo o lugar do governante não acima das classes e sim
como aliança necessária com o desejo do povo e como contenção do
desejo dos grandes".
Qualquer cidadão alfabetizado sabe que quem “comanda e oprime"
não são “os grandes", de modo geral e abstrato, mas sim justamente os
governantes, e que o fazem quase que invariavelmente sob o pretexto
de proteger o povo contra “os desejos dos grandes". De Ivan, o terrível
e Luís  até Hitler, Mussolini, Lenin e Stalin, não houve um só
déspota que não impusesse sua autoridade absoluta mediante a
destruição dos poderes intermediários, isto é, dos “grandes" sem cargo
o�cial, e que não o �zesse em nome dos pequeninos e desamparados.
Todo mundo sabe disso, mas alegá-lo é coisa do tempo em que o
raciocínio lógico não era vulgaridade indigna de um acadêmico. Fica
valendo, pois, o princípio chauínico, ou chauinista: governantes não
comandam nem oprimem. Quem comanda e oprime são os ricos que
estão fora do governo.
Não contente com isso, Dona Marilena enuncia um segundo
“princípio nuclear", alegando que não é nem de sua invenção, mas que
exprime a quintessência unanimitária do “pensamento político
moderno". Segundo esse princípio, “a moralidade pública não depende
do caráter dos indivíduos e sim da qualidade das instituições como
expressões concretas do lugar e do sentido da lei".
Sei que argumentar não vale, mas quem quer que conheça um pouco
o tal “pensamento político moderno", de Maquiavel a Voegelin, de
Hobbes a Weber, de Tocqueville a Peyre�tte (sem esquecer
evidentemente Marx), sabe precisamente o contrário do que a�rma
essa senhora: sabe que a moralidade depende de tudo, menos das
instituições e das leis. Depende do costume, da cultura, da religião, da
educação, até da economia. Depende sobretudo do caráter dos
indivíduos, moldado por esses fatores de base. Os códigos e
instituições vêm em cima, seja como expressões da moralidade
consagrada, seja como vãs e monstruosas tentativas totalitárias de
mudá-la por decreto.
Nunca houve um grande pensador político que dissesse o contrário.
A ideóloga da  , num golpe de teclado, falseia todo o consenso
universal — e ninguém parece reparar na prodigiosa leviandade que se
requer para isso.
Num ambiente com um mínimo de racionalidade, nenhum
intelectual acadêmico seria tolo e pretensioso o bastante para
consagrar a�rmativas pueris como “princípios nucleares". Mas hoje
isso pode ser feito impunemente. O que ninguém pode é denunciar
essa intrujice sem ser assediado imediatamente pelo único tipo de
argumentos que se admitem como legítimos no nazismo de cátedra:
olhares de ódio, insinuações malévolas, eventualmente alguns
palavrões. Abajo la inteligencia já se tornou, en�m, norma consagrada.
Agora só falta acrescentar: Viva la muerte.
O Globo, 2 de junho de 2001
F  
Para cada homicídio que denunciam, eles foram
cúmplices de outros 49
Os brasileiros que foram treinar guerrilha em Cuba não se tornaram
somente pontas-de-lança da estratégia cubana no exterior, mas
também, obviamente, suportes do regime de Fidel Castro no próprio
âmbito cubano. Recebidos com honras,sustentados com verbas do
Estado, tiveram funções e utilidades bem nítidas no esquema de poder
�delista, alguns como o�ciais da inteligência militar, outros como
símbolos legitimadores e garotos-propaganda do regime, um papel a
que muitos ainda se prestam com cínica devoção.
Como qualquer ajudante e bene�ciário de uma ditadura, �zeram-se
cúmplices dos crimes cometidos por ela, no mesmo sentido e na
mesmíssima proporção com que acusam de parceria nos crimes da
ditadura nacional qualquer indivíduo, daqui ou de fora, que de algum
modo tenha apoiado o regime militar ou recebido favores dele.
Moralmente, a única diferença que pode haver entre uma
cumplicidade e a outra reside na magnitude dos crimes praticados
pelas ditaduras respectivas. Mas essa comparação não é nada favorável
aos que hoje detêm o monopólio do direito de acusar.
O Brasil do período ditatorial não teve mais de 2 mil prisioneiros
políticos. Cuba teve 100 mil. Para cada esquerdista brasileiro preso no
 -Codi, no Dops, na Ilha Grande, 50 cubanos foram jogados nas
prisões políticas de Havana, com a solícita cumplicidade política e
moral desse brasileiro. E os mortos, então? A ditadura brasileira fez
300 vítimas; a cubana, 17 mil. Para cada comunista brasileiro morto
pelos militares, morreram mais de 50 dissidentes cubanos.
A diferença não é só quantitativa. Ela afeta a própria natureza dos
crimes. Dezessete mil mortes, numa população cerca de 14 vezes
menor que a do Brasil, já são um genocídio, a liquidação metódica e
sistemática de um grupo, de uma classe. Genocídio com um detalhe
ainda mais pér�do: em Cuba, desde a fuga de Batista, não houve
resistência armada interna. A ditadura brasileira matou guerrilheiros e
terroristas. Cuba, com o apoio deles, matou cidadãos desarmados,
pací�cos e sem periculosidade alguma, a maioria por motivos fúteis,
muitas vezes por uma simples tentativa de sair em busca de uma vida
melhor.
Se é lícito denominar “�lhote da ditadura" a qualquer um que tenha
colaborado com o regime militar, com igual rigor e justiça os que se
bene�ciaram da ajuda de Cuba devem ser chamados “�lhotes do
genocídio".
Mas 17 mil são só os que morreram em território cubano. Não estou
contando aqueles que tropas armadas, instruídas e �nanciadas pelo
governo de Havana, co-irmãs da guerrilha brasileira, assassinaram no
Peru, na Nicarágua, na Colômbia. São 80 mil no total: para cada
comunista morto no Brasil, seus companheiros mataram mais de 49
não-comunistas no continente. E continuam matando. Seus
sofrimentos, além de fartamente indenizados em dinheiro, já foram
vingados 49 vezes. Com que autoridade moral, pois, ainda erguem seu
dedo acusador contra os “�lhotes da ditadura"? Malgrado a força
intrínseca desses fatos e números, a malícia esquerdista poderá tentar
neutralizá-los alegando que saem da boca de um anticomunista.
Mas seria inverter causa e efeito. Não penso essas coisas por ser
anticomunista: tornei-me anticomunista porque me dei conta dessas
coisas.
Mesmo assim, guardei-as comigo anos a �o, por medo de prejudicar
aqueles a quem um dia chamara “companheiros". Se de algo posso ser
acusado, é desse comodismo pusilânime do qual por �m me libertei,
mas que me fez tardar demasiado em dizer a verdade. Muitos, sabendo
dela tanto quanto eu, vivem ainda de camu�á-la sob jogos de palavras,
e não para proteger a terceiros, mas a si mesmos e às vantagens de que
hoje desfrutam, seja como membros do governo, seja como ídolos da
oposição. Nisso consiste toda a sua moral: culpa reprimida,
transmutada em fome insaciável de retaliações e compensações.
É claro que os crimes da ditadura militar devem ser denunciados,
investigados e punidos — mas não por esse tipo de gente. Não por essa
escória.
Época, 2 de junho de 2001
H  
De uma polêmica que o Dr. Oswaldo Porchat Pereira teve comigo, e da
qual saiu com o rabo entre as pernas após uma vã tentativa de me
assustar com uns argumentos supremamente calhordas, concluí que
ele era um fracote. Da leitura de um de seus escritos �losó�cos de
maturidade, concluí que era um idiota.
Lendo, agora, sua tese de doutoramento, retirada do baú pela Editora
da Unesp, descubro, com grata satisfação, que 33 anos atrás ele não era
nada disso: era um estudioso sério, capaz de trabalho intelectual
pesado, honesto e até corajoso.
Tendo divulgado as duas primeiras conclusões, vejo-me na estrita
obrigação de publicar a terceira, ao menos para que se veja que o
homem não é ruim por natureza, mas �cou assim por força de três
décadas e tanto de serviço público na  , uma experiência capaz de
corromper até os santos e da qual eu, que nunca passei por ela, não
posso jurar que me sairia melhor.
Ciência e dialética em Aristóteles permaneceu inédito e agora vem a
público por mérito de D. Marilena Chauí, a qual, por distração ou
malícia, inaugurou com o livro uma coleção à qual deu o mesmo nome
daquela que há dois anos dirijo na Editora Record: Biblioteca de
Filoso�a.
Dona Marilena é mesmo uma pessoa estranha. Anos atrás (corrijam-
me, por favor, se eu estiver errado), acusada por José Guilherme
Merquior de plagiar uns escritos de Claude Leffort, respondeu que
tivera um caso amoroso com o autor plagiado, sugerindo que páginas
inteiras da obra dele teriam sido transmitidas à sua pessoa por meios
que não são da nossa conta.
Mas ela não há de ser acusada de ter por mim análoga simpatia. A
palavra mais doce que já disse a meu respeito foi “cafajeste", recebendo
uma resposta que, embora publicada, não ouso repetir, de vez que já
passou há tempos a emoção do insulto que me fez proferi-la.
Lembro o episódio apenas para atestar que D. Marilena não tem
comigo nenhuma intimidade afável que justi�caria, como no caso
Leffort, uma transmissão telepática. Permanece, pois, o mistério. Não
podendo resolvê-lo, voltemos ao Dr. Porchat.
Para avaliar a importância do seu trabalho, é preciso estar ciente de
que ele, no seu momento, respondeu e�cazmente a uma polêmica de
meio século que se travava em torno da continuidade ou
descontinuidade da idéia de ciência em Aristóteles, e que essa
discussão não tinha somente interesse histórico, dada a inspiração que
muitos �lósofos da ciência e cientistas de ofício, especialmente
biólogos, estavam buscando no Estagirita para revigorar o senso da
unidade orgânica do saber.
A disputa nasceu com Werner Jaeger (depois autor da celebradíssima
Paidéia), quando, aplicando a Aristóteles o método biográ�co-genético
que tão bem funciona com autores mais recentes, concluiu que a
�loso�a do mestre tinha passado por substanciais mutações e nela não
se encontrava mais unidade do que aquela que se pode vislumbrar nas
expressões de qualquer alma humana, que se transforma no curso dos
tempos e se esquece de si.
Embora rejeitando em essência o método de Jaeger, o grosso do
establishment acadêmico subscreveu a idéia de que haveria em
Aristóteles, e sobretudo em sua concepção do saber cientí�co, vários
começos e recomeços, não sobrando no �m um sistema, porém ao
menos dois, num con�ito sem solução.
Opondo-se valentemente a essa respeitável maioria, Porchat matou a
questão pelo método que aprendera de Victor Goldschmidt e Martial
Guéroult: a reconstituição meticulosa, mediante leitura analítica, da
“ordem das razões" que estruturam uma �loso�a. Daí surge
brilhantemente restaurada a unidade da teoria aristotélica da ciência,
acima de qualquer dúvida razoável.
No curso de minhas investigações sobre a concepção do discurso em
Aristóteles, topei, evidentemente, com a mesma questão. Cheguei à
mesma resposta, sem ter o tempo ou os meios de prová-la, e passei
adiante, pois o objeto da minha investigação era outro. Mas sempre
conservei algumas dúvidas quanto a esse ponto em particular, sabendo
que um dia eu ou alguém teria de voltar lá para tirá-lo a limpo. Diante
da constatação de que Porchat, numa tese inédita, já tinha matado o
problema, só posso exclamar: bravo! Evidentemente, se eu tivesse lido
a tese enquanto trabalhava no meu Aristóteles em nova perspectiva,
isto em nada teria mudadominha conclusão global, mas certamente
eu a teria a�rmado com mais vigor e certeza, pois a unidade da lógica
cientí�ca é um argumento decisivo em favor da unidade da concepção
aristotélica do discurso em geral, que é o que ali procuro defender.
Só lamento que um sujeito tão capaz fosse sepultar seus talentos no
cemitério uspiano. Dá para entender por que, começando com
Aristóteles, ele terminou no pirronismo, a mais demissionária das
�loso�as. Era pedir demissão do emprego — ou da �loso�a.
Jornal da Tarde, 7 de junho de 2001
A    
Desde o �m da urss, a esquerda nacional tem-se empenhado dia e
noite em advertir os nossos nacionalistas — especialmente os das
Forças Armadas — contra o perigo do mundo unipolar e em persuadi-
los a tornar-se esquerdistas por patriotismo. Há pessoas que vivem
disso, e há pessoas — até nas Forças Armadas — que acreditam nelas.
Mas só um perfeito idiota não percebe que a potência dominante que
nos impõe as políticas econômicas contra as quais a esquerda se bate é
a mesma que nos impõe o politicamente correto, o abortismo, o
feminismo, o ecologismo e, en�m, todos os modelos culturais que
constituem o restante do programa da própria esquerda.
Muito menos é possível a um cérebro medianamente são deixar de
notar que as fundações e empresas multimilionárias que subsidiam a
difusão desses novos modelos de conduta são as mesmas que, por
outro lado, sustentam a implantação da Nova Ordem Mundial e das
tais políticas econômicas que os apóstolos desses modelos alardeiam
execrar.
E quem quer que perceba essas duas coisas não tem como evitar a
conclusão de que o mundo unipolar é ainda mais unipolar do que os
porta-vozes da esquerda desejariam dar a entender. Tão unipolar, que
dele provêm não somente as propostas que a esquerda odeia, mas
também as que ela ama e personi�ca. E dele, igualmente, vem o
dinheiro para subsidiar a implantação de uma coisa e da outra.
A esquerda, em suma, utiliza-se de um vocabulário estereotipado da
época da bipolaridade para iludir os nacionalistas, desorientá-los e
subjugá-los à estratégia mundialista, atraindo seus ataques numa
direção falsa para que não atinem com a verdadeira. O componente
essencial desse vocabulário é a velha identi�cação do “norte-
americano" com o “liberal-capitalista", da qual decorre,
automaticamente, a confusão do nacionalismo com o estatismo, o
Estado previdenciário e, last not least, o socialismo.
É com a �nalidade de legitimar esse brutal engano que o discurso
corrente dos homens de esquerda contra o  e a Nova Ordem
Mundial apresenta estes dois fenômenos como se fossem a
quintessência do liberal-capitalismo e não, precisamente ao contrário
— como o demonstra a história — invenções puramente socialistas
destinadas a estrangular, junto com a liberdade econômica, a liberdade
política no mundo.  e Nova Ordem Mundial são capítulos da
história do centralismo avassalador que tudo sacri�ca no altar do
controle burocrático e da economia plani�cada, os ídolos já mil vezes
desmascarados, de cujos poderes místicos a propaganda socialista
promete, no entanto, obter a cura de todos os males. Do primeiro,
disse seu próprio inventor, Lorde Keynes, que era “essencialmente uma
concepção socialista". Quanto à segunda, foi de ponta a ponta uma
criação do famoso think tank londrino do socialismo gradualista que,
após passar por várias denominações, acabou se notabilizando como
Fabian Society. Foi um de seus membros mais ilustres o escritor H. G.
Wells, que delineou já em 1928 o programa inteiro da Nova Ordem
Mundial e o publicou no seu livro A conspiração aberta.
“Aberta" é força de expressão. “Conspiração" também. O socialismo
fabiano jamais se envolveu em atentados, comícios, passeatas, muito
menos em conspirações de porão. Tudo o que ele faz é preparar
intelectuais para colocá-los em altos postos de assessoria desde os
quais possam, discretamente, mas sem nenhum segredo, incutir idéias
socialistas nas cabeças dos governantes. O esquema foi inventado pelo
teórico Graham Wallas, que com cinco décadas de antecedência
formulou a estratégia gramsciana da “ocupação de espaços" e da
“revolução passiva" (e dizer que Gramsci ainda passa por gênio!). A
magnitude dos efeitos da coisa contrasta singularmente com a
circunspecção dos meios. Praticamente todos os grandes giros da
economia moderna no sentido centralizador e socializante do Estado
previdenciário foram planejados por socialistas fabianos. Só para dar
uma idéia do alcance da sua in�uência, os planos de governo de três
dos mais poderosos — e dos mais estatizantes — dentre os presidentes
dos  , Roosevelt, Kennedy e Johnson, foram diretamente copiados
de obras de autores fabianos e adotaram até seus títulos: o New Deal
de Roosevelt é um livro de Stuart Chase, a New Frontier de Kennedy
um livro de Henry Wallace, e a Great Society de Johnson um livro do
próprio Graham Wallas.
Malgrado seu estilo so, antes social-democrático que comunista, os
fabianos sempre consideraram a  uma valiosa aliada na sua luta
contra o liberal-capitalismo. No fundo, ela foi bem mais que isso:
desertores da  informaram que pelo menos um dos livros de
Sidney Webb, o mais célebre presidente da Fabian Society, não foi
escrito por ele, mas veio pronto do Ministério das Relações Exteriores
soviético. É compreensível. Muito antes de Gramsci, a  também já
havia descoberto as virtudes do gradualismo reformista que, pelo alto
e no macio, socializa o mundo mais depressa do que poderiam fazê-lo
alguns milhares de Ches Guevaras — os autênticos bois de piranha do
único socialismo que sai sempre vencedor.
A suprema vantagem do método discreto é que, quando os
engenhosos planos estatizantes de intelectuais socialistas
desconhecidos do povão fazem por �m pesar sobre o bolso das massas
o custo imensurável da sua tolice, nunca faltam na praça intelectuais
de esquerda radical, que, ignorando ou �ngindo ignorar tudo do
trabalho de seus parceiros fabianos, lançam a culpa do desastre... no
capitalismo liberal! Não veja a tua mão esquerda o que faz a tua
direita, ensina a Bíblia. O socialismo tem a sua própria versão
demoníaca desse ensinamento: não vejam as tuas massas barulhentas o
que fazem os teus aliados silenciosos — e assim, não sabendo quem as
oprime, elas descarregarão sua fúria no bode expiatório que melhor
convenha à tua estratégia.
Resta saber apenas se os nossos nacionalistas — sobretudo os das
Forças Armadas — consentirão em reduzir-se ao papel de massas
manipuladas.
O Globo, 9 de junho de 2001
R,    C
Há menos negros na elite cubana que na
brasileira
Nunca houve no Brasil partido racista, militância racista, pregação
racista, imprensa racista, comícios racistas, pan�etos racistas, �lmes
racistas, programas de rádio ou peças de teatro racistas.
Não obstante a total ausência de meios materiais de difusão, a
ideologia racista, transmitindo-se por meios telepáticos, sutis e não
identi�cados, parece ser um sucesso entre nós. A acreditarmos nas
altas autoridades que opinam sobre a matéria, inclusive o presidente da
república, este é um país barbaramente racista.
Muitos intelectuais brasileiros vivem hoje de divulgar essa tese,
encomendada e paga por fundações americanas, por motivos, decerto,
puramente humanitários e de maneira alguma geopolíticos. Um dos
argumentos decisivos alegados em favor dela é que negros e mulatos,
constituindo a maioria da população, são minoria nas elites e nos bons
empregos.
A diferença de nível econômico-social entre comunidades raciais
pode ter várias causas. Uma delas é que do �m da escravatura até o
primeiro surto industrial brasileiro decorreram mais de 40 anos: a
população negra e mulata cresceu vertiginosamente sem que
aumentasse ao mesmo tempo o número de empregos. A
industrialização, por sua vez, coincidiu com a chegada de imigrantes,
que, com excelente formação pro�ssional, levaram a melhor no
mercado de trabalho.
Mas nunca se fez um estudo cientí�co que confrontasse as várias
causas possíveis. Uma delas foi escolhidahoje o estofo
moral para falar duro com a esquerda triunfante. Já o Sr. Moreira, que
tudo deve a ela e que nunca lhe deu senão o brilho mundano da sua
presença nas rodas de gente de bem, tem agora de justi�car
retroativamente sua existência mostrando serviço. E que serviço, senão
o mais baixo e infame, o serviço do intrigante e caluniador? Já de
Dona Cecília nada sei, a não ser que preside uma entidade consagrada
a deformar o juízo moral das pessoas, inoculando nele o vício de
avaliar tudo com dois pesos e duas medidas. Cada palavra sua visa a
bloquear a inteligência do público, impedindo-o de comparar
discursos com discursos, atos com atos, �ns com �ns, meios com
meios. O simples cotejo equilibrado seria letal a uma campanha que
arrecada fundos dos �éis que converte ao maniqueísmo. Por isso, ao
falar de guerrilheiros e militares, ela tem de confrontar os belos ideais
dos primeiros com a violência crua dos meios empregados pelos
segundos, sem nenhum direito ao vice-versa. Claro: ela já escolheu a
priori os mocinhos e os bandidos, reservando aos primeiros o
atenuante do relativismo histórico e aos segundos a sentença
implacável da moral absoluta. Não vale, por exemplo, perguntar: se os
heróis de Dona Cecília queriam a democracia, por que foram buscar
apoio e inspiração ideológica em ditaduras incomparavelmente mais
ferozes do que aquela que combatiam? Seriam eles idiotas ao ponto de
imaginar que Fidel Castro ou Mao Tsé-Tung desejavam instaurar aqui
a liberdade que haviam esmagado nos seus próprios países? Ou, ao
contrário, eram apenas hipócritas como a própria Dona Cecília? Feitas
essas perguntas, torna-se impossível recusar aos militares uma
comparação justa. Por isso era preciso evitá-las, e nisto Dona Cecilia
foi ótima.
Mas mesmo uma mente astuta às vezes se trai. Após enaltecer os
lances de guerrilha como expressões superiores do idealismo em
contraste com a covardia da tortura, ela aponta, à guisa de prova
suprema da maldade e baixeza dos militares, um típico lance de
guerrilha: acusa-os de... jogar bombas. Não satisfeita com esse ato
falho, ela se mela mais ainda no ridículo da mentira ao proclamar que
tais bombas �zeram “centenas de mortos e desaparecidos". Dos
mortos, ela cita o total de exatamente um: o próprio criminoso, o
notório auto-explodido do Riocentro. Não podendo nomear mais
nenhum, arredonda a conta com a evasiva “e desaparecidos". Mas que
raios de bombas seriam essas, capazes de desmaterializar pedaços de
cadáveres? Por escandalosos que sejam esses meios de argumentação,
seu emprego é bem coerente com a �nalidade da campanha de Dona
Cecília: despertar ódio unilateral a uma facção, amor devoto à outra,
sem ter na mínima conta a lógica, a justiça ou a realidade. Por isso, ao
acusar-me de “defesa da tortura" ela sabe que, como o Sr. Moreira,
mente para mostrar serviço. E, quando se gaba do apoio internacional
que recebe no exercício dessa sujeira, temos a certeza de que seus
esforços são bem recompensados.
O Globo, 13 de janeiro de 2001
O  
É aquele que descon�a que suas objeções já
ocorreram ao autor — e já estão respondidas
A precaução mais elementar, ao ler os escritos de um �lósofo, é
lembrar que nossas objeções mais imediatas já devem ter-lhe ocorrido
e podem estar respondidas, ao menos de maneira implícita, em
alguma outra parte de sua obra. Um �lósofo é, a�nal, um especialista
em unidade: raramente ele enunciará alguma proposição solta, sem
raiz em princípios gerais e sem uma rede de conexões com a totalidade
de suas idéias. Um bom leitor de �loso�a não se perde na discussão de
detalhes isolados, mas, guiado por um instinto de coerência que já o
torna um pouco �lósofo, busca por trás de tudo os princípios e
fundamentos. Só as objeções desse leitor contam para o �lósofo. As
demais são irrelevantes como tiros de espoleta, e ele só as responderá
por polidez. Pela mesma razão, o �lósofo que publique artigos na
imprensa tem o direito de supor que seus leitores, sabendo da
existência de uma �loso�a por trás de cada opinião isolada, terão o
bom senso de refrear suas objeções mais afoitas até captar melhor a
posição dela no conjunto. Pois, para um �lósofo, nenhum assunto, por
efêmero e casual que pareça, é solto e independente: cada um remete
ao centro desde o qual tudo — ou nada — se explica.
Se o leitor brasileiro não está habituado a essa precaução, é por um
motivo muito simples: em geral os indivíduos autorizados pelo Estado
a representar em público o papel de “�lósofos" não são �lósofos de
maneira alguma, apenas professores e divulgadores, que não têm nem
o dever nem a competência do olhar �losó�co. Tanto isso é assim que,
quando aparece algum �lósofo de verdade, um Mário Ferreira dos
Santos, um Vilém Flusser, alguém en�m capaz de pensar desde os
fundamentos, a primeira coisa que fazem é considerá-lo um estraga-
prazeres e abster-se religiosamente de prestar atenção ao que ele diz.
Diante do que escrevem esses professores, não é preciso aquela
precaução, porque eles não têm um quadro próprio de referência que
deva ser conhecido: suas falas se recortam diretamente sobre o fundo
comum das conversações públicas do dia e podem ser compreendidas
pelo simples cotejo com ideologias, modas ou programas partidários.
Mas tentar esse enfoque ante as opiniões de um �lósofo é cortar as
próprias pernas, impedindo-se de chegar a conclusões ou objeções
relevantes.
É verdade que �lósofos — Gabriel Marcel, Benedetto Croce, Ortega y
Gasset — escreveram artigos de jornal, mas nenhum deles logrou a
proeza — ou teve a pretensão — de fazer de algum desses artigos uma
peça autônoma, destacável do fundo de seu pensamento e passível de
ser julgada por si. Autonomia é para romances, contos, poemas. Em
�loso�a, toda expressão é provisória e requer o acúmulo praticamente
interminável de esclarecimentos. Mas ao público brasileiro de hoje
falta algo mais que a consciência disso. Falta o sentido mesmo da
ligação orgânica entre as asserções e os argumentos que as embasam.
Em �loso�a — e tudo o que um �lósofo escreve é expressão de sua
�loso�a —, nenhuma proposição signi�ca nada quando considerada
independentemente das razões que a ela conduzem. Nas discussões
vulgares, ao contrário, cada a�rmação vale por si; os argumentos
podem torná-la mais aceitável, mas nada lhe acrescentam: sobra-lhes
apenas a função de �oreados enfáticos, destinados a sublinhar e colorir
uma decisão tomada antes e independentemente deles. As idéias em
circulação reduzem-se assim a meia dúzia de enunciados gerais
simples, fórmulas estereotípicas em torno das quais não há mais
discussão além da estritamente necessária para produzir, no mais
breve prazo possível, um ardoroso “pró" ou um indignado “contra".
Época, 13 de janeiro de 2001
U  
O Fórum Social Mundial seria apenas mais um festival internacional
de exibicionismo esquerdista, sem nada de especial, se não se
destacasse precisamente por este detalhe invulgar: é o mais descarado
empreendimento de propaganda ideológica já �nanciado com
dinheiro público neste ou em qualquer outro Estado brasileiro. É ilegal
em toda a linha, e qualquer cidadão, mediante simples ação popular na
Justiça, pode frustrar sua realização a qualquer momento.
Não obstante sua pretensão de constituir um pendant esquerdista dos
encontros periódicos de teóricos do capitalismo na cidade suíça de
Davos, ele não passa de uma inversão caricatural do Fórum da
Liberdade, realizado anualmente pelos liberais gaúchos com enorme
sucesso. Entre os dois fóruns, no entanto, há três diferenças. Primeira:
o da Liberdade é realizado dentro da lei, com dinheiro das
contribuições voluntárias de participantes e patrocinadores. A segunda
é que nele os convidados representam todas as correntes ideológicas —
liberais, conservadores, nacionalistas, esquerdistas —, ao passo que
sua versão “Social" é um Clube do Bolinha — ou da Luluzinha — onde
só entram os ideologicamente corretos, o que marca precisamente a
distância entre o debate e a propaganda.
A terceira diferença é a mais signi�cativaa priori e o�cializada como
única explicação permitida: a “discriminação". Os negros e mulatos
�caram na pior porque somos todos uns malditos racistas e não lhes
damos a mínima chance. Uma revista semanal chegou a anunciar “a
prova de�nitiva" do racismo dominante: numa enquete, 90% dos
entrevistados disseram que sim, que existe muito racismo no Brasil.
Logo, provado estava.
Não ocorreu aos editores ponderar que, se tantos diziam isso, era
precisamente por serem contra o racismo e que os demais podiam ter
negado a existência dele por julgá-lo coisa feia demais para existir
aqui. Isso evidentemente inverteria a conclusão da pesquisa. Mas esse
cuidado metodológico foi excluído in limine como preconceito racista
— e a pesquisa chegou cienti�camente ao resultado premeditado.
Desde então, consagrou-se como norma designar o fenômeno
investigado pelo nome da causa a averiguar, �cando assim dispensada
a averiguação e provada a discriminação racial.
Os partidos de esquerda, sempre devotos da probidade cientí�ca,
exultaram, adotando a denúncia do racismo brasileiro em seus
programas eleitorais. Escrevo este artigo na piedosa intenção de
sugerir que a retirem de lá imediatamente, porque descobri uma coisa
temível: examinada pelo mesmo critério estatístico, Cuba é o país mais
racista da América Latina. Com 60% de negros e mulatos na
população em geral, só 10% de sua elite política não é branca.
Fulgencio Batista era um ditador mulato rodeado de assessores
mulatos. Pelo método cientí�co brasileiro, a conclusão se impõe: uma
revolução racista branqueou o governo.
Para piorar as coisas, Oscar Lopez Montenegro, um mulato que fugiu
de Cuba e hoje distribui em Miami pan�etos contra o racismo cubano,
informou ao Washington Times que, quando o governo de Fidel é
pressionado pela opinião pública estrangeira para soltar prisioneiros,
invariavelmente solta um branco. Outro exilado, Manuel Cuesta
Morúa, diz que no Exército de Cuba não há generais negros. “Cuba é
um país dirigido por velhos brancos", con�rma Juan Carlos Espinosa,
diretor do Cuban Studies Center da St. omas University, em Miami.
E Denis Rousseau, ex-correspondente da France-Presse em Havana,
a�rma que a elite cubana está preocupadíssima com o aumento do
número de mestiços na população.
Logo, das duas uma: ou vocês param de denunciar o racismo
brasileiro, ou param de louvar as qualidades excelsas da democracia
cubana.
Época, 9 de junho de 2001
A   
Sempre que os esquerdistas querem impor um novo item do seu
programa, alegam que ele é a única maneira de curar determinados
males. Invariavelmente, quando a proposta sai vencedora, os males
que ela prometia eliminar são agravados. O normal seria que, em tais
circunstâncias, a esquerda fosse responsabilizada pelo desastre. Mas
isto jamais acontece, pois instantaneamente o argumento legitimador
originário desaparece do repertório e é substituído por um novo
sistema de alegações, que celebra o fracasso como um sucesso ou
como necessidade histórica incontornável.
Ninguém compreenderá nada da história do século  — nem deste
começo do  — se não conhecer esse mecanismo de justi�cação
retroativa pelo qual se leva o povo a trabalhar em prol de metas não
declaradas, que o escandalizariam se as conhecesse e que por isto só
podem ser atingidas pela via indireta da cenoura-de-burro.
Alguns exemplos tornarão isso bem claro.
1) Quando o Partido Comunista lançou seu programa de destruição
das instituições familiares “burguesas", consubstanciado no que mais
tarde viria a ser a “liberação sexual", sua alegação principal, elaborada
pelo Dr. Wilhelm Reich, era que homossexualismo, sado-masoquismo,
fetichismo etc. eram frutos da educação patriarcal repressiva.
Eliminada a causa, essas condutas desviantes tenderiam a desaparecer
do cenário social. Bem, os últimos resíduos de valores patriarcais
foram suprimidos da educação ocidental entre as décadas de 70 e 80, e
o que se viu em seguida? A disseminação, em escala apocalíptica,
daquelas mesmas condutas que se prometia eliminar. Obtido o
resultado, essas condutas começaram a ser celebradas como saudáveis,
dignas e meritórias, e toda crítica a elas passou a ser condenada — às
vezes sob as penas da lei — como abuso intolerável e atentado contra
os direitos humanos.
2) Quando a esquerda mundial começou a lutar pela legalização do
aborto, um de seus argumentos principais era que o grande número de
abortos era causado pela proibição, que facilitava a ação de charlatães,
intrometidos e gente não habilitada em geral. A legalização, prometia-
se, obrigaria a realizar o aborto em condições medicamente aceitáveis,
portanto diminuindo o número de casos. Qual foi o resultado? No
primeiro ano, o número de abortos nos  subiu de 100 mil para um
milhão e não parou de crescer até hoje. Pelo menos 30 milhões de
bebês já foram sacri�cados, ao mesmo tempo que os apologistas da
legalização, em vez de admitir a falácia do seu argumento inicial,
festejam o fato consumado, tratando de marginalizar e criminalizar
qualquer crítica ao novo estado de coisas.
3) Quando os esquerdistas norte-americanos inventaram a política de
quotas e indenizações conhecida como affirmative action, alegavam
que ela diminuiria a criminalidade entre a população negra.
O�cializada a nova política, o número de crimes cometidos por negros
contra brancos aumentou signi�cativamente, segundo estatísticas do
 . Que �zeram então os apóstolos da affirmative action?
Reconheceram humildemente que reforçar o sentimento de identidade
racial era alimentar preconceitos e con�itos de raça? Nada.
Celebraram o aumento da hostilidade racial como um progresso da
democracia.
4) Quando, querendo destruir a tradição norte-americana que
considerava a educação um dever da comunidade, das igrejas e das
famílias antes que do Estado, a esquerda norte-americana reivindicou
a burocratização do ensino, um de seus argumentos básicos era que a
delinqüência juvenil só poderia ser controlada mediante a ação
educacional do Estado. Com Jimmy Carter, em 1980, os  passaram
a ter pela primeira vez um Ministério da Educação e programas de
ensino uniformes. Duas décadas depois, a delinqüência entre crianças
e adolescentes não apenas vem crescendo muito mais que antes, mas
adotou como seu quartel-general as escolas públicas, hoje
transformadas em áreas de risco, ao ponto de que no começo do ano a
prefeitura de Nova York estava privatizando as suas por não ter meios
de controlar a violência nelas. Em resposta, que faz a esquerda?
Admite que errou? Não. Luta pela uniformização estatal do ensino em
escala mundial.
5) No Brasil, a única maneira de diminuir a violência nas áreas rurais,
proclamavam os esquerdistas, era dar terras e dinheiro ao  . Pois
bem, as terras foram dadas — foi a maior distribuição de terras de toda
a história humana, com muito dinheiro atrás. A violência não
diminuiu: aumentou muito. A esquerda confessa que errou? Não. Trata
de organizar a violência e celebrá-la como a conquista de um novo
patamar histórico na luta pelo socialismo.
Os exemplos poderiam multiplicar-se ad in�nitum — e notem que
propositadamente evitei mencionar os casos extremos, sucedidos no
próprio âmbito dos países socialistas, como a coletivização da
agricultura na  , o Grande Salto para a Frente e a Revolução
Cultural na China, a revolução cubana, etc. limitando-me a fatos
sucedidos no mundo capitalista.
A promessa salvadora trans�gurada em desastre e seguida da troca de
discurso legitimador foi, em suma, o modus agendi essencial e
constante da esquerda mundial ao longo de um século, e não se vê o
menor sinal de que algum mentor esquerdista tenha problemas de
consciência por isso. Ao contrário, todos continuam prometendo a
solução dos males, ao mesmo tempo que já têm pronta, na gaveta, a
futura legitimação dos males agravados. Prometem diminuir o
consumo de drogas mediante a liberalização, controlar a corrupção
mediante o “orçamento participativo", reprimir a delinqüência
mediante o desarmamento civil ou mediante o“direito alternativo"
Leninista que criminaliza antes a posição social do acusado do que o
seu ato criminoso. Sabem perfeitamente aonde tudo isso leva — mas
sabem também que ninguém os apoiaria se proclamassem em voz alta
o que desejam.
..: O pedido de impeachment do governador Olívio Dutra passou
pela Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia gaúcha. Vai a
plenário. Mas a imprensa nacional continua ignorando o caso.
O Globo, 16 de junho de 2001
C  
Quanto mais forte o comunismo se torna no
Brasil, menos se pode falar dele
Nunca no mundo se publicaram tantos e tão bons livros sobre o
comunismo quanto nestes anos que se seguiram ao desmantelamento
da urss. O motivo é óbvio: a abertura, ainda que parcial, dos Arquivos
do Comitê Central do pcus, um tesouro inesgotável para os estudiosos.
Não é de espantar que, rompida a barreira do segredo estatal, tantos
investigadores se precipitem sobre os registros de um passado macabro
para decifrar o que foi certamente um dos maiores mistérios da
História humana: a genu�exão voluntária de milhões de homens
cultos ante o altar de uma doutrina grotesca, assassina e
intrinsecamente absurda.
Todos os paradoxos, todas as contradições da alma humana se
espremem e se fundem na composição desse mistério de iniqüidade:
compreendê-lo para não reencená-lo é o dever número 1 de quem
tenha assimilado a lição de Sócrates segundo a qual “uma vida não
examinada não é digna de ser vivida".
Mas o que espanta não é a onda mundial de curiosidade que fez de
Moscou a meca dos historiadores. É o absoluto desinteresse que, no
Brasil, se opõe à divulgação de suas descobertas.
Mais que depressa, no começo dos anos 90, no Brasil o comunismo
foi decretado coisa do passado, e quem se interessasse em relembrar-
lhe os crimes e atrocidades se tornava suspeito de fanatismo
macarthista, se não de obsessão monomaníaca merecedora de
cuidados psiquiátricos. Esquecer, silenciar — ou na melhor das
hipóteses despedir-se do assunto com meia dúzia de lugares-comuns
aceitos como explicação de�nitiva — tornou-se uma lei natural a que
somente os anormais poderiam furtar-se.
Mas anormal, digo eu, é um cérebro capaz de julgar mera
coincidência que essa década de esquecimento do comunismo fosse
também a de maior expansão da in�uência comunista sobre os
destinos do país.
Não me re�ro só ao crescimento eleitoral da esquerda. Re�ro-me à
conquista do monopólio da pregação política nas escolas (onde a
hipótese de um discurso anticomunista é hoje inconcebível) e à
consolidação de certos direitos morais adquiridos que são
ostensivamente negados ao restante da população.
Um movimento comunista abertamente violento é hoje aceito como
parceiro do Estado sem precisar sequer de registro legal. Políticos
comunistas podem associar-se a quadrilhas de tra�cantes sem ser
jamais investigados. Grupos comunistas podem bloquear à vontade as
vias de comunicação, sem que ninguém veja nisso um óbvio exercício
de treinamento insurrecional.
Com o apoio ostensivo do governo, os comunistas colocaram-se
acima da lei e ainda detêm em suas mãos o monopólio quase completo
dos meios de investigar, denunciar, julgar e condenar. Antes mesmo de
ocupar nominalmente o poder, eles já se tornaram uma classe especial,
uma nomenklatura onipotente, arrogante e intolerante. Em
conseqüência, o simples ato de escrever uns artigos contra eles tornou-
se um insulto, uma ameaça, um abuso insuportável.
Eis aí a razão do desinteresse a que me referi. Há uma direta conexão
de causa e efeito entre a proibição tácita de olhar o passado e a rapidez
fulminante com que ele se repete diante de milhões de olhares sonsos
que, não o conhecendo, não o podem reconhecer. O comunismo “saiu
da moda" como as roupas que saem das passarelas para entrar no uso
geral e cotidiano. Simplesmente foi preciso mantê-lo fora do horizonte
de consciência nacional para que, sem ser incomodado por olhares
inquisitivos, ele pudesse crescer à sombra da indiferença geral de suas
vítimas.
Por isso mesmo interpreto em sentido inverso os conselhos
inibidores que me recomendam falar menos do comunismo para não
parecer maluco ou fanático. Diante da grande tragédia que se prepara,
só um observador morbidamente intimidado se absteria de tocar no
assunto para não dar a impressão de estar vendo coisas. E,
sinceramente, não vale a pena se deixar enlouquecer por mera
obsessão de parecer normal.
Época, 16 de junho de 2001
E  
N.B.: Aviso à parte não gaúcha do universo: O Sr. Luiz Inácio Lula
da Silva é, tanto quanto eu, articulista da Zero Hora de Porto
Alegre. Por uma ironia involuntária da diagramação, seu artigo é
sempre publicado nas costas do meu. — O. de C.
Meu vizinho aí da página de trás, que nela desfruta as delícias da
liberdade de imprensa como eu as desfruto aqui, é, como ninguém
ignora, candidato crônico à presidência da república e corre o sério
risco de ser eleito — um mal que, se aconteceu até a um professor da
usp, pode acontecer a qualquer um de nós.
Em vista dessa eventualidade, pensei se não seria o caso de tirar um
sórdido proveito da proximidade quase indecorosa que nos une na
mesma folha de papel e lançar-lhe de chofre, através desta tênue
barreira de celulose, umas quantas perguntas que, se ele não me
responder agora, muito menos responderá depois de eleito.
A primeira é formulada no meu interesse próprio. Prezado Sr. Inácio:
uma vez presidente, o senhor vai deixar que eu continue escrevendo
que o senhor é um comunista, bajulador de regimes genocidas,
friamente insensível à sorte de cem milhões de vítimas imoladas no
altar de uma ideologia bem parecida com a sua, ou vou ter de mudar
de assunto? A segunda, faço-a no interesse geral. O senhor, que é
socialista, já disse que nada tem contra o capital estrangeiro. Lenin,
que não o era menos, também não tinha. Muito menos têm os atuais
governantes da China, que provaram por a + b a compatibilidade de
uma sangrenta ditadura comunista com os interesses dos grandes
investidores ocidentais e vice-versa. Quando o senhor diz que o
regime da China é um exemplo para o Brasil, é disso que o senhor está
falando? Se não é, então a que raio de China está se referindo? Existe
outra? Terceira. Quando uns militantes da  quiseram atravessar a
fronteira para fazer manifestações políticas ilegais em solo argentino e
foram barrados na fronteira, choveram protestos da esquerda nacional.
Agora, quando foram barrados os dez jornalistas que o
acompanhavam à China para o simples desempenho de suas
legalíssimas funções pro�ssionais, tudo o que o senhor fez foi lamentar
a falta de cobertura da sua viagem, sem emitir um pio, um gemido, um
“ai" sequer contra o ostensivo cerceamento da liberdade de imprensa.
O senhor já pensou no que aconteceria se os repórteres fossem
impedidos de entrar, não na China comunista, mas no Chile de
Pinochet? Já imaginou os editoriais coléricos, as lágrimas de
indignação, as vigílias cívicas na  ? Já imaginou, sobretudo, o que o
senhor próprio diria, mesmo levando em conta que a proporção entre
os crimes de Pinochet e os do regime chinês é de um para vinte mil? O
senhor não acha mesmo que sua duplicidade de pesos e medidas já
está dando na vista? Quarta. Vamos falar um pouco do seu virtual
antecessor. O senhor sabe que o papel dos governantes na história não
é assinalado por seus erros ou acertos passageiros, mas pelas
mudanças duradouras que imprimem no rumo das coisas. O senhor
sabe que o controle da in�ação, que o governo alardeia como sua
grande obra, é coisa efêmera como bolha de sabão. Sabe que as
privatizações mal feitas ou uma política econômica errada de alto a
baixo também são males transitórios, podendo ser corrigidos pelo
próximo governo. De tudo o que  fez, só uma coisa é irreversível: a
distribuição de terras e dinheiro ao  , que esse movimento não vai
devolver nunca mais. O senhor sabe perfeitamente que, se o  não
plantar aí um único pé de feijão, mas decidir usar as terras para �ns
estratégicos totalmente alheios à agricultura,o governo não terá a
mínima condição de tomar tudo de volta, pois ele próprio transformou
essa entidade, que não tem nem registro legal, num poder territorial,
político e econômico incontrolável. O senhor sabe que, pela sua
própria estrutura — nem sindical, nem partidária, nem paramilitar,
nem empresarial, nem burocrática, mas sim um pouco de tudo isso ao
mesmo tempo —, esse movimento é rigorosamente indiscernível dos
sovietes da Rússia pré-revolucionária. Dar poder a essa coisa, com as
terras dos outros e o dinheiro do governo, foi no �m das contas a
realização máxima e essencial do presidente  . Dito isto, vem a
pergunta: o senhor acha que poderá fazer mais do que ele fez em prol
da revolução socialista? Olhe lá o que vai responder! Veja bem que
nem Lenin teve na sua folha de realizações um feito de tal
envergadura, pois a�nal já encontrou os sovietes prontos. O senhor
tem certeza de que uma gestão socialista “de transição pací�ca" depois
de  não será um redundante videotape? São essas as perguntas.
Peço que o senhor não as interprete como provocações de um
adversário. Não sou seu adversário. Até votei no senhor — é verdade
que após tomar três engoves — para não ter de votar no Collor. Talvez
até vote de novo, nas próximas eleições, dado que seu concorrente
principal, José Serra, é um antitabagista fanático que ameaça proibir o
fumo até ao ar livre, e eu conto com a sólida aliança de interesses entre
o petismo nacional e a indústria cubana de tabacos para me garantir o
direito de fumar na cadeia.
Dito isso, encerro esta nossa amável conversa e dirijo-me aos demais
leitores, para tranqüilizá-los. Não, amigos, não temam pela minha
segurança. No Brasil socialista, a cadeia será provavelmente o lugar
mais seguro, pois todos os membros do  terão sido retirados de lá
para ocupar cargos na nomenklatura, e a população carcerária do país
será constituída de apenas duas pessoas: eu e o embaixador Meira
Penna. E o embaixador, coitado, nem sequer fuma.
Zero Hora, 17 de junho de 2001
O   
Uma classe empresarial que, incapaz de criar a militância de massas
adequada à defesa de seus interesses e projetos, se alia no último
momento a um partido revolucionário na esperança de que este a
proteja é, evidentemente, uma classe possuída pelo desejo de morrer.
As racionalizações que seus mentores possam conceber para legitimar
essa aposta suicida só comprovam o estado de completa alienação a
que chegaram. Dessas racionalizações, a mais deplorável é aquela que
os leva a imaginar que, se agora o suspeitíssimo aliado necessita da sua
ajuda �nanceira para conquistar o Estado, continuará a necessitar dela
após tê-lo conquistado; a imaginar que, se hoje podem negociar com
ele como detentores do poder econômico, poderão manipulá-lo
amanhã mediante o uso do mesmo instrumento. Mostram, nisso, uma
total incompreensão da natureza do próprio poder econômico.
Sobretudo, uma fatal ignorância de suas fraquezas e limitações
congênitas.
A forma mais elementar e mais essencial do poder é o poder da
violência, o poder de agredir, de matar, de intimidar �sicamente. Só
esta, uma vez possuída em plenitude, age autonomamente e se impõe
por seus próprios meios, não apenas dispensando o concurso de
quaisquer outros, mas forçando-os a servi-la se necessário. Todas as
demais formas de poder, o econômico sobretudo, nada são e nada
podem sem a mediação do poder armado que os garante.
Que é, a�nal, “possuir" uma riqueza? Não é deter �sicamente e
pessoalmente o domínio sobre objetos materiais. É exercer o domínio
legal sobre o uso de determinados bens e valores. “Legal", aí, quer
dizer: reconhecido e protegido por um poder armado, capaz de
remover os obstáculos ao exercício do direito de possuir. O poder
econômico é, pois, um poder indireto e de segundo grau, um poder
que jamais é fundamentum sui, um poder que visceralmente depende
de outro para se exercer e subsistir. É, de certo modo, um poder
simbólico e evanescente, que sem a proteção do poder armado se
dissipa, de repente, como um sonho.
Um caso bem triste ilustrará o que digo. Um dos mais prósperos
empresários rurais de Cuba, nos anos 50, era amigo de infância de
Fidel Castro e inimigo �gadal de Fulgêncio Batista — um ditador que,
convém jamais esquecer, chegara ao poder com o apoio do Partido
Comunista. Desde os primeiros momentos da revolução, esse homem
estendeu seu generoso apoio aos barbudos de Sierra Maestra. Chegou
a montar em sua fazenda um hospital clandestino para socorrer os
combatentes �delistas feridos em batalha. Vitoriosa a revolução,
retirada a máscara democrática do novo regime e assumida em
público a identidade comunista de Fidel Castro, ainda assim o rico
cidadão continuou a apoiar o velho companheiro. Sua con�ança nele
só foi um pouco abalada quando o comitê revolucionário começou a
fuzilar indiscriminadamente os o�ciais das Forças Armadas, muitos
deles limpos de qualquer compromisso com o governo caído. Um dia,
quando chegaram à fazenda notícias do fuzilamento iminente de
certos coronéis que eram amigos comuns de Fidel e do nosso
personagem, a esposa do fazendeiro achou que podia interceder junto
ao governante em favor dos condenados, em nome dos velhos tempos.
A resposta de Fidel foi mais ou menos a seguinte: — Em nome da
gratidão e da amizade, concederemos a vocês o direito de sair para
Miami amanhã, num avião militar. Cada um poderá levar US$ 20 e a
roupa do corpo.
O homem terminou seus dias como garçom em Miami. Seu �lho, que
entrou para o Exército norte-americano e chegou a o�cial, contou esta
história ao advogado José Carlos Graça Wagner, que a contou a mim.
Posso ter errado em detalhes, mas, em essência, a reprodução do relato
é �el.
O poder econômico, por nada ser sem a proteção do poder armado,
necessita da ordem jurídica, da paz e da tranqüilidade como do ar que
respira. No Estado de Direito, a força de agressão física, monopólio do
Estado, não pode se exercer sem uma série de mediações jurídicas,
políticas, morais e consuetudinárias que, atenuando sua crueza, a
tornam permeável ao diálogo, às negociações, aos acordos e às
transigências. É só então que o poder econômico avulta em
importância e, mediante o uso inteligente de seus meios de barganha,
pode chegar a in�uenciar e até a determinar o rumo das coisas na
sociedade.
Abalada a ordem por uma precipitação revolucionária, o poder
econômico reduz-se ao poder de o rico desarmado pedir misericórdia
ao sargentão armado, ao comissário-do-povo armado, ao  armado
ou a qualquer das outras versões em que a brutalidade militante possa
ter-se encarnado no cenário macabro da recorrente alucinação
messiânica em que se transformou a história dos tempos modernos.
O poder econômico, portanto, só tem força de barganha com o
revolucionário enquanto este não chega ao poder. Depois, bem, o
depois já foi narrado milhares de vezes por uma multidão de exilados
que um dia foram ricos em Havana antes da chegada de Fidel, em
Berlim antes da chegada de Hitler, em Petrogrado antes da chegada de
Lenin ou em Pequim antes da chegada de Mao.
É difícil os ricos entrarem no reino dos céus. Mas mais difícil ainda é
saírem vivos do paraíso socialista.
Jornal da Tarde, 21 de junho de 2001
D   
Já assinalei mil vezes, em cursos e artigos, mas igualmente em vão em
ambos os casos, esse traço inconfundível do leitor brasileiro atual,
sobretudo universitário, que é a incapacidade de discernir entre a
expressão de um estado emocional e a referência a um fato percebido.
O que quer que um autor diga é interpretado sempre como
manifestação de seus desejos, gostos, preferências, ódios e temores, e
nunca como descrição adequada ou inadequada de um dado do
mundo objetivo. Nos termos da teoria clássica de Karl Bühler, a
linguagem é reduzida à sua função expressiva, com exclusão da
denominativa. Isso con�gura nitidamente um quadro de
analfabetismo funcional.
O que hoje se chama “ensino universitário" neste país consiste
essencialmente na transmissão sistemática dessa incompetência àsnovas gerações. Se é verdade que a incapacidade de compreender o
que se lê é um sinal de educação de�ciente, então a quase totalidade da
educação superior tal como praticada no Brasil deve ser condenada,
simplesmente, como propaganda enganosa.
Esse estado de coisas não resulta apenas da “má qualidade", genérica
e abstratamente. Ele vem de um aglomerado de in�uências culturais
bem ativas, constituído de marxismo gramsciano, psicanálise,
relativismo antropológico, nietzscheanismo, desconstrucionismo, mais
teoria dos paradigmas cientí�cos de omas S. Kuhn. O sincretismo
dessas in�uências, que hoje constitui a típica atmosfera ideológica do
nosso ambiente universitário, tem sobre as inteligências juvenis um
efeito embrutecedor e paralisante, agravado pelos cacoetes do
vocabulário “politicamente correto" que se impõe como idioma
obrigatório das discussões pretensamente letradas.
Cada uma dessas correntes, considerada individualmente, se
caracteriza por ser uma hipótese limitada e provisória, elaborada
dentro de categorias que só se aplicam a classes de objetos muito
determinados e fundada numa base empírica muito estreita. Mas o
efeito conjugado delas, na exclusão de quaisquer outras in�uências
culturais de maior envergadura que pudessem relativizá-las e reduzir
cada uma ao tamanho que lhe é próprio, é produzir no estudante uma
falsa impressão de universalidade que lhe dá a ilusão de estar muito
bem orientado no horizonte maior da cultura, justamente no instante
em que suas perspectivas se comprimem até à medida do provinciano
e do gremial.
Nenhuma dessas correntes, e muito menos a soma delas, tem a
universalidade necessária para poder constituir a base de uma
educação superior. Para quem já viesse do curso secundário com essa
base, o estudo delas poderia ser útil, à guisa de tempero crítico e
contrapeso relativizador. O que não se pode é admitir uma bagagem
cultural constituída apenas de contrapesos ou uma alimentação
constituída somente de temperos. É precisamente essa falsa bagagem e
esse falso alimento que hoje formam a substância mesma da educação
superior no país.
Quando me re�ro a base, o que quero dizer é o conhecimento dos
dados fundamentais da civilização e a aquisição de um quadro de
referências histórico-cultural su�cientemente amplo. Isto só se adquire
pela absorção do legado grego, cristão-medieval, renascentista e
moderno, de preferência encaixado no panorama maior das culturas
antigas e orientais.
Na mente que possua essa base, aquelas modas culturais ingressam
como acréscimos de detalhe que podem exercer um efeito vivi�cante
sobre a visão do conjunto. Sem base, os detalhes, boiando soltos no
vazio, acabam por constituir um Ersatz de totalidade, preenchendo
com opiniões genéricas e frases de efeito o espaço que deveria estar
repleto de conhecimentos positivos. A deformidade intelectual daí
resultante faz da mente do estudante brasileiro uma caricatura grotesca
da inteligência humana.
Caracterizam-na a completa falta do senso das proporções, a quase
impossibilidade de distinguir entre forma e matéria, a ênfase obsessiva
em detalhes de ocasião, a completa cegueira para as contradições mais
patentes.
Um exemplo é a transformação que o relativismo sofreu ao tornar-se
moda nos nossos círculos acadêmicos. Ele já não é mais aquela
precaução elegante que buscava compensar a unilateralidade das
a�rmações mediante o reconhecimento da verdade ao menos parcial
das suas contrárias. É um ceticismo ou negativismo militante, fanático,
agressivo, irracional, que a�rma peremptoriamente a inexistência de
quaisquer verdades objetivas e tem um acesso de cólera sagrada à
menor cogitação de que alguma talvez exista. Não há nada mais
ridículo do que um relativista que se apega ao relativismo com fé
dogmática e rejeita como tentação demoníaca a possibilidade de que
alguma a�rmação talvez seja menos relativa que as outras.
O efeito desse hábito sobre a inteligência é devastador. Não existindo
verdades objetivas, a linguagem só pode ser compreendida como
expressão de estados subjetivos — mas não ocorre jamais aos viciados
nesse enfoque a idéia de que também sua apreensão dos estados
subjetivos alheios não poderia, nesse caso, ser uma percepção objetiva
mas somente a projeção dos seus próprios estados subjetivos. O
alardeado “pensamento crítico", em tais circunstâncias, torna-se
apenas um tiroteio cego de imputações projetivas que se ignoram, até
o ponto de que o “objeto" em discussão, reduzido a mero pretexto de
a�rmações da vontade, desaparece completamente de vista. A
possibilidade de uma “argumentação" é aí evidentemente nula, e o
único fator decisivo que condiciona a vitória ou derrota nas discussões
é a maior ou menor capacidade de impressionar mediante uma
performance psicológica mais exibicionista e mais insana, e por isto
mesmo mais de acordo com as expectativas doentias da platéia.
O ambiente dessas discussões é evidentemente psicótico, e a
aquisição desta psicose é hoje considerada não apenas um sinal de
cultura, mas um requisito indispensável para o cidadão ser aceito
como pessoa normal no ambiente universitário. A formação superior,
nessas condições, consiste em passar da ignorância natural à
inconsciência militante e desta à onipotência cega que culmina na
loucura.
O Globo, 23 de junho de 2001
B  
É o que a gente faz quando aceita falar
respeitosamente do comunismo
Não há insolência maior nem mais pér�da armadilha verbal que exigir
daquele que combate o comunismo que o faça “em tom respeitoso".
Vou lhe mostrar o que acontece quando você, por medo de ser
chantageado em nome de supostas regras de polidez do debate
democrático, cede a essa exigência.
Logicamente falando, só há dois motivos possíveis para continuar
respeitando uma ideologia depois que ela matou 100 milhões de
pessoas: ou você admite que esse resultado letal foi um desvio
acidental de percurso, um detalhe supér�uo na evolução histórica de
um lindo ideal, ou parte logo para a legitimação ostensiva do
genocídio. Ou você defende o marxismo mediante a supressão do nexo
essencial entre fatos e idéias que é a própria base dele, ou o enaltece
mediante um argumento que faz dele uma apologia do crime. No
primeiro caso, você é um idiota; no segundo, é um monstro de
amoralidade e frieza. Não há como escapar dessa alternativa quando se
aceita apostar 100 milhões de vidas num ameno e respeitoso joguinho
de idéias.
Tão logo entra nisso, com boa-fé e sem se dar conta das implicações
morais de sua decisão, você se desliga de sua consciência profunda —
que percebe essas implicações perfeitamente bem — e passa a
raciocinar só com a periferia de seu ser pensante. Rompido o elo entre
o coração e a máquina de tagarelar, você já é um esquizóide ao menos
honorário: e quando a patologia adquirida começa a se manifestar em
sintomas — um sentimento de culpa difusa, um medo sem razão,
umas inibições súbitas e inexplicáveis — você já não tem a menor
condição de saber de onde eles vieram.
Todas as neuroses, dizia Igor Caruso, são produzidas pela repressão
da consciência moral, da voz interior que nos indica o sentido
profundo de nossas escolhas e a lógica implacável de suas
conseqüências. Quando você sufoca a voz da consciência, é essa lógica
que você expele de seu horizonte de visão. Por não querer arcar com o
peso da escolha moral consciente, você entrega as rédeas de seu
destino à mecânica do inconsciente — ou ao primeiro que, em torno,
deseje pegá-las. E quem mais desejaria pegá-las que o manipulador
que sonha em conduzi-lo pela argola do nariz, como um boi sonso, a
transigências e complacências que lúcido e consciente você não
poderia aceitar de maneira alguma? Então, ao admitir que matar ou
não matar 100 milhões de pessoas é apenas uma livre escolha entre
“linhas ideológicas", você já nem pode se dar conta de que isso é o
mesmo que um assassino declarar que entre ele e sua vítima nada mais
se passou que uma divergência quanto à interpretação do Código
Penal.
Contra essa insinuação, subentendida na exigência acimareferida, é
preciso reiterar com todo o vigor: a condenação do comunismo não é
um ato político ou ideológico, é um ato moral. Não é livre escolha, é
obrigação elementar e indeclinável como a condenação do nazismo e
do fascismo. A moral transcende in�nitamente a esfera das ideologias
e dos jogos de poder. Submetê-la a essa esfera é prostituí-la, e ninguém
a prostitui mais que o comunista que, após tê-la assim subjugado,
alardeia querer “ética na política", com uma piscadela maliciosa ao
círculo dos iniciados que sabem aonde ele quer chegar com isso.
Contra esse jogo é preciso não esquecer jamais que comunismo é
genocídio. É genocídio na teoria, é genocídio na estratégia, é genocídio
na prática historicamente conhecida e é genocídio nos métodos atuais
com que subsiste em Cuba, se fortalece na China e se propaga na
Colômbia. É genocídio na apologia da violência por Karl Marx, na
técnica Leninista do terror sistemático, na arquitetura Stalinista e
maoísta do Estado-presídio cuja máxima e�ciência, segundo técnicos
da  , foi alcançada em Cuba. O comunismo prega o genocídio,
justi�ca o genocídio, orgulha-se do genocídio e, onde quer que tenha
reinado, sempre viveu do genocídio. Discuti-lo respeitosamente é
admitir que exista o direito moral à propaganda do genocídio.
É
Época, 23 de junho de 2001
L 
Quando Hannah Arendt disse que a ambição das ideologias
revolucionárias não era criar uma sociedade melhor, mas mudar a
natureza humana, ela pôs, sem dúvida, o dedo na ferida.
A facilidade com que os apóstolos do futuro melhor aceitam e
legitimam o fato bruto da injustiça, da opressão e do genocídio nas
sociedades criadas por eles próprios contrasta pateticamente com sua
revolta e indignação contra meras idéias abstratas, símbolos e valores
culturais de outras sociedades.
Mesmo hoje, após a revelação de todos os crimes históricos da sua
revolução, parece-lhes menos urgente denunciar o ininterrupto
morticínio estatal chinês ou desmontar a máquina letal da
narcoguerrilha do que destruir a linguagem e os valores de sociedades
que, se têm lá sua quota de males e desvarios, nunca foram genocidas
nem totalitárias. É que nessa linguagem e nesses valores, às vezes
milenares, se incorpora o seu inimigo por excelência: a natureza
humana.
No empenho de destruí-la, qualquer pretexto, por mais mesquinho
que seja, serve para impor uma nova semântica que force os seres
humanos a sacri�car suas percepções e sentimentos espontâneos no
altar da moda politicamente elegante. Realidades naturais conhecidas
há milênios são então relativizadas como “criações culturais",
enquanto palavras de ordem fabricadas ainda ontem são impostas
como expressões da natureza eterna e auto-evidente. Por exemplo, o
simples fato de que algumas pessoas possam mudar de aparência
mediante cortes, suturas e enxertos de silicone já basta para rebaixar a
“estereótipos" as diferenças sexuais que qualquer animal reconhece à
primeira vista.
Não espanta que, nessa rebelião contra a natureza das coisas, uma
dose considerável de ódio revolucionário se lance sobre o mais
universal dos princípios: o princípio lógico e ontológico da identidade.
O abismo de inconsciência em que isso pode mergulhar a espécie
humana é imensurável. Para dar uma idéia aproximada do perigo,
peço ao leitor que tenha a boa vontade de acompanhar nas próximas
linhas uma breve demonstração um tanto “técnica".
A ambição de construir uma lógica paradoxal, alheia ao princípio de
identidade, só pode se realizar na hipótese de que o próprio discurso
em que se enunciam as regras dessa lógica �que imune à exigência de
decidir se é regido pelo paradoxo ou pela identidade.
Este é pois um caso especial daquela “proibição de perguntar", que,
segundo Eric Voegelin, fundamenta tantas doutrinas modernas,
�losó�cas no vocabulário e na forma aparente, anti�losó�cas no fundo
e no espírito.
Se enunciamos o princípio de identidade pela proposição x, segundo
a qual  =  , e o da lógica paradoxal pela proposição y, segundo a
qual  ≠  , então podemos perguntar se a própria proposição y é ou
não igual a ela mesma.
No primeiro caso, o conteúdo da proposição é impugnado pela
possibilidade mesma de enunciá-la: só podemos enunciar a
proposição y, segundo a qual  ≠  , porque sabemos que y
= y, isto é, que a proposição, considerada por sua vez como possível
sujeito de proposições, é uma exceção à regra pretensamente universal
que ela própria enuncia.
No segundo caso, y ≠ y, e portanto y, ao declarar que  ≠  , a�rma
precisamente que  =  , de modo que a suposta lógica paradoxal não
é paradoxal de maneira alguma e sim é apenas um disfarce verbal da
boa e velha lógica de identidade.
Mais gravemente ainda, a auto-supressão da lógica paradoxal se
estenderia até mesmo aos sinais = e ≠, os quais, não podendo ser
iguais a si mesmos, teriam de ser iguais a seus contraditórios, mas nem
isto poderiam ser de maneira �rme e constante, já que, a cada vez que
se a�rmasse que um deles é o outro, esta mesma a�rmação, no ato, se
trans�guraria na sua contraditória.
Para ser possível, a lógica paradoxal exige portanto que ela própria
jamais seja examinada — nem à luz de suas próprias regras, das quais
sua enunciação constitui imediatamente o desmentido, nem à luz da
lógica de identidade, que ela impugna. A lógica paradoxal só pode ser
concebida com base numa proibição de examinar. Não é uma lógica, é
um ato de magia evocatória que, instaurando-se por um ukase (para
quem não sabe: decreto do tzar), subsiste pela obediência atônita
daqueles que estejam dispostos a submeter-se a todas as humilhações
por puro ódio ao princípio de identidade.
O efeito paralisante que esse tipo de jogo mental exerce sobre a
intuição lógica é manifesto. Quem quer que admita levar a sério um
discurso lógico que só pode ser sustentado contra a própria intuição
direta das condições reais em que o discurso é enunciado consente em
tornar-se cobaia de um exercício de esquizofrenia experimental, que,
tornado hábito, resultará na completa ruptura entre pensar e conhecer.
Vale a pena submeter-se a esse risco em nome de rancor extravagante
e arti�cioso voltado contra um princípio abstrato? Para atinar com a
inspiração gnóstica e demoníaca da qual nasce a tentação de expor-se
a esse risco, basta lembrar aquilo que Schelling, um grande �lósofo
não inteiramente isento de contaminação gnóstica, mas sincero e
limpo demais para não rejeitar in extremis a “morte de Deus" a que ela
conduz inelutavelmente, declarou a respeito: “Não desprezeis o
princípio de identidade, porque, bem compreendido, o princípio de
identidade é Deus".
Não há desvario a que o ódio a Deus não possa conduzir, seja na
esfera do totalitarismo político, seja na do totalitarismo intelectual,
mais inofensivo só em aparência.
..: Nunca me encontrei com Evandro Carlos de Andrade. Toda a
convivência que tive com ele foi por e-mail e telefone. No entanto, se
existiu na imprensa brasileira alguém que ajudou a restaurar minha
con�ança na dignidade da pro�ssão jornalística, foi ele. Foi ele que, no
confronto desigual entre os mandarins da  e um ilustre
desconhecido, em 1995, abriu generosamente o espaço do Globo para
que a parte mais fraca se defendesse e acabasse obtendo, em resultado,
a mais improvável das vitórias. Nunca me esqueci dessa demonstração
de exemplar decência, a que se seguiram muitas outras, consolidando
minha admiração por um colega distante cuja �sionomia, até agora,
nem sequer imagino.
Goethe a�rmava que três qualidades resumem o dever do homem
sobre a Terra: ser digno, prestativo e bom. Evandro não apenas foi
tudo isso, mas soube sê-lo para com um desconhecido, do qual nada
podia esperar.
Época, 30 de junho de 2001
L  
O abuso da palavra so�sma tornou-se hábito
consagrado nos debates nacionais
Dois instrumentos usuais da patifaria intelectual são o entimema
erístico e o so�sma. Entimema é um silogismo do qual uma das
premissas, considerada óbvia ou de domínio público, vem omitida. Por
ser leve e prestar-se bem à expressãoliterária, é o meio preferencial da
persuasão retórica, a argumentação jornalística por excelência, que,
não podendo demonstrar o certo ou o razoável, se contenta com o
verossímil, isto é, com aquilo que, por a�nar-se com as crenças do
público, é aceito como verdadeiro sem maiores discussões. O
verossímil, com freqüência, é também verdadeiro, mas às vezes não o
é. O único meio de testá-lo é explicitar a premissa oculta,
transformando o entimema num silogismo completo. Ao fazer isso,
não raro descobrimos que a premissa oculta não era óbvia nem de
domínio público, mas sim alguma estupidez infame, encoberta para
poder extorquir a anuência sonsa da platéia distraída. Neste caso o
entimema é dito erístico: erística é a arte da argumentação capciosa, a
retórica pervertida dos charlatães.
Já o so�sma é um silogismo aparentemente perfeito, mas construído
sobre premissas falsas difíceis de impugnar ou ardilosamente desviado
na passagem crucial das premissas à conclusão.
Um público afeito à discussão vulgar, mas sem treino �losó�co
especí�co, engolirá sem a menor objeção doses maciças de entimemas
erísticos, porém, diante de qualquer raciocínio lógico mais elaborado,
facilmente será persuadido a armar-se de descon�ança caipira e a
rejeitar como “so�smas" as provas mais sérias e fundamentadas, pelo
simples fato de serem mais sutis que seu alimento discursivo habitual.
Daí a freqüência com que o rótulo de “so�sma" é usado levianamente
pelos patifes para impugnar qualquer raciocínio que leve a conclusões
que os desagradem.
Nesses casos, caracteristicamente, jamais a acusação de so�sma vem
acompanhada da devida indicação dos erros que a justi�cariam. Ou o
rótulo vem sozinho, solto no ar como uma fórmula mágica, na
esperança de que exerça automático efeito difamatório, ou sustenta-se
em alegações que nada têm de uma refutação em regra e não passam
em geral da expressão sumária de uma opinião antagônica à do
argumento rejeitado, isto quando não são, elas próprias, entimemas
erísticos da mais baixa qualidade.
So�sma é termo técnico de lógica e seu uso legítimo requer a
explicitação dos erros sofísticos correspondentes. Se, em vez disso,
alguém o emprega informalmente como �gura de linguagem, só pode
ser para rebaixar como so�sma algo que não é so�sma.
Um exemplo recente é o do jovem redator de editoriais num grande
jornal, que, nomeando-me “rei do so�sma", dispara sobre mim a
seguinte cobrança: “Por que, em vez de quanti�car o placar das mortes,
Olavo de Carvalho simplesmente não condena todas as ditaduras
(chinesa, cubana, brasileira, chilena etc.)?".
Bem, a resposta é que não faço isso porque regimes de força que
matam 300 pessoas em 20 anos, como a ditadura militar brasileira, e
regimes que matam 3.200 pessoas por dia — tal foi a média da China
comunista — simplesmente não são espécies do mesmo gênero,
malgrado a comunidade do nome que os designa. O termo “ditadura",
indicando uma estrutura formal de governo e não o concreto modus
agendi pelo qual esse governo se impõe e se mantém — numa gama de
opções que vai do simples golpe parlamentar ao holocausto —, não dá
conta de uma diferença essencial.
Correspondendo à de autoritarismo e totalitarismo, essa diferença é
consagrada na distinção entre homicídio e genocídio, entre a violência
esporádica e a extinção planejada de uma raça, classe ou nação.
Deduzir da pura coincidência de nomes a identidade de fenômenos
tão diversos é óbvia trapaça erística, tanto mais perversa se usada para
legitimar o nivelamento moral de males incomensuráveis, clássico
expediente erístico da propaganda totalitária.
Época, 30 de junho de 2001
D   
Um dos exemplos mais estonteantes da vigarice que domina a cultura
moderna é a atitude do establishment acadêmico ante a psicanálise:
pois, ao mesmo tempo que lhe nega todo estatuto de ciência, celebra a
explicação psicanalítica do fenômeno religioso como uma vitória da
ciência sobre a superstição.
Ou seja: as investigações que a psicanálise realiza no seu próprio
domínio especializado não são cientí�cas, mas miraculosamente o são
as conclusões que ela tira delas para o remotíssimo campo da história
cultural. É como um cliente sem fundos no banco acreditar que seu
saldo negativo pode ser investido no mercado de ações.
Tamanha intrujice não poderia ser admitida num cérebro humano
normal sem a ajuda daquela cegueira especí�ca que se chama viés
ideológico: a necessidade de apostar na mentira para justi�car uma
opinião anteriormente assumida. No caso, essa opinião é a que
identi�ca ciência com materialismo, religião com fantasia e
superstição. Quando uma doutrina não cientí�ca parece sustentar esse
dogma, ela adquire retroativamente o estatuto de cientí�ca, mesmo
entre aqueles que sabem que de cientí�co ela não tem nada.
Esse joguinho de esconde-esconde pelo qual uma consciência
comodista �nge que não vê aquilo que vê perfeitamente bem é hoje o
padrão mesmo da mentalidade do mundo acadêmico. A
prestidigitação que legitima a psicanálise da religião é só um exemplo.
Outro é a sucessão de “releituras" com que se arranjam ex post facto
signi�cações mais aceitáveis para teorias desacreditadas. Os
intelectuais marxistas vivem disso — e, pior ainda, crêem que é uma
atividade perfeitamente respeitável. E não é preciso mencionar a legião
de estruturalistas, desconstrucionistas, adeptos da estética-da-recepção
e outros pelo gênero, que já tratam de introduzir a ambigüidade na
própria formulação originária de suas doutrinas, prevendo a
inevitabilidade das futuras acomodações semânticas.
Quem busque medir a extensão dominada por charlatães, vigaristas,
palhaços e loucos furiosos no mundo acadêmico veri�cará, com
espanto, que ela não apenas supera o perímetro ocupado pelos
pesquisadores sérios, mas também abrange as áreas mais elevadas e
valorizadas do terreno: os farsantes não se encontram
predominantemente entre os cientistas e docentes anônimos, mas
entre os nomes de maior destaque em cada área.
É evidente que uma parte da culpa por esse estado de coisas não cabe
à instituição acadêmica, mas à mídia, à indústria editorial e ao show
business. É a caixa de ressonância das “classes falantes" que dá a certos
sujeitos um destaque que eles jamais obteriam no seu estrito meio
pro�ssional e os eleva à categoria de “fenômenos culturais". Os
instrumentos de difusão estão precisamente nas mãos daquele típico
semi-intelectual ou pseudo-intelectual que, não dominando nenhum
ramo do conhecimento, busca em vez disso dominar a opinião
pública. Secretamente consciente de sua inépcia, ele consola-se
dizendo que não tem tempo de tentar conhecer a realidade porque está
ocupado em transformá-la. Não é de espantar que, de tudo o que se
estuda e se discute na esfera acadêmica, esse tipo colha — e portanto
divulgue — preferencialmente aquilo que se parece com ele. Daí que as
idéias que alcançam maior repercussão não sejam as melhores, as mais
consistentes, as mais verdadeiras, porém as mais “fecundas", as mais
“revolucionárias", isto é, aquelas que podem produzir mais discussões
insensatas no plano intelectual e mais agitação sem propósito na vida
social. O establishment acadêmico pode, com razão, alegar que nada
disso é culpa sua, e sim do pseudo-intelectual que domina a imprensa
cultural e forja o “espírito do tempo". Mas esse personagem é, por sua
vez, produto do ensino universitário. Quanto mais se expandem as
universidades, menor é o contingente de estudantes diplomados que
vão para a pesquisa séria e maior o dos que saem para a “indústria
cultural", o ramo mais pujante e expansivo da economia moderna.
Dividida entre a exigência de produzir conhecimento e a de moldar
pro�ssionais do prêt-à-porter mental, a universidade avança por uma
via dupla cujas pistas divergem cada vez mais, ameaçando atingir em
breve o ponto de ruptura. Então será preciso escolher. Mas a escolha já
está feita e todos sabem qual é. Nesse dia, portanto, as universidades
como centros de produção de conhecimento se tornarão obsoletas e o
mundo verá surgir um novotipo de instituição, mais leve, mais ágil,
menos comprometido com a geração de empregos e a satisfação
“cultural" das massas. Talvez seja a volta da academia platônica.
Jornal da Tarde, 5 de julho de 2001
T 
A recente pesquisa do Ibope, na qual 55% dos eleitores clamam por
uma revolução socialista no Brasil, fala por si. Mas, para melhor captar
o alcance da sua signi�cação no presente momento histórico, é preciso
realçar os seguintes pontos.
Primeiro. A população consultada não disse simplesmente
“socialismo" (o item “socialismo" foi objeto de uma pergunta em
separado), nem muito menos “transição pací�ca para o socialismo".
Disse “revolução socialista", o que indica claramente sua disposição de
aceitar, como coisa normal e desejável, todo o cortejo de crueldades e
horrores inerente a essa modalidade de transformação político-social.
Nenhuma revolução socialista se fez até hoje sem genocídio, que
chegou, no caso chinês, à extinção de dez por cento da população
local. Isso equivaleria, aqui, a dezesseis milhões de brasileiros. A morte
dessas pessoas já parece, à maioria do nosso eleitorado, um preço
módico a pagar pelo prazer de viver na China.
Segundo. Nenhuma revolução socialista se realizou, até hoje, com a
garantia de tamanho respaldo popular. Isto garante, ao primeiro
governo revolucionário do Brasil, os meios para impor, sem muita
reação adversa, as leis e controles que bem entenda. A minoria
refratária terá contra si não apenas a força repressiva do Estado, mas a
ira popular. Por exemplo, a constituição de uma rede de espionagem
interna, com voluntários civis, terá aqui pelo menos tanto apoio
quanto teve na Venezuela de Chávez, a qual, com isso, se aproxima
velozmente da taxa cubana de um espião do governo para cada 28
habitantes.
Terceiro. Re�etindo o sucesso obtido por trinta anos de “revolução
cultural" inspirada em Antonio Gramsci, a conversão maciça do
eleitorado brasileiro ao socialismo revolucionário é, ela mesma, um
momento capital do processo revolucionário, o qual já está, portanto,
em pleno curso de realização, como o compreenderá quem quer que
conheça algo da estratégia traçada pelo fundador do Partido
Comunista Italiano.
Quarto. Ao preconizar uma revolução socialista como “solução" para
os atuais problemas do país, imaginando-o portanto como um ideal a
ser realizado no futuro, aquela parcela majoritária do eleitorado
mostra não ter a menor idéia de que já está em plena revolução, e
muito menos de que os problemas que a angustiam no momento
presente, longe de ser males que a revolução possa curar, são sintomas
e etapas do processo revolucionário mesmo. Aí, novamente, a fórmula
anunciada pelo estrategista italiano está seguida à risca: o que ele
denomina “revolução passiva" é precisamente essa etapa de lusco-
fusco, essa noite da consciência, esse torpor agitado e sombrio em que
uma população semi-hipnotizada faz a revolução sem perceber e,
quando acorda, já está sob o domínio do Estado comunista. Como
jamais a estratégia gramsciana foi tentada em tão larga escala, também
jamais se observou, na história dos tempos modernos, um fenômeno
tão vasto de cegueira coletiva.
Quinto. O governo comunista, ao constituir-se, já terá de imediato
nas mãos, além da cumplicidade popular, quatro instrumentos
decisivos para consolidar velozmente o seu poder, desarticulando, no
ato, qualquer possibilidade de oposição: (a) o controle dos meios de
comunicação, propaganda e ensino, através da organizada militância
instalada na mídia e na rede de escolas de todos os níveis; (b) a
obediência garantida e zelosa da burocracia estatal, já devidamente
doutrinada e amestrada através dos sindicatos de funcionários
públicos; (c) o controle da Zona Rural, através da bem treinada
militância do  ; (d) uma legislação �scal habilitada a “colocar o
empresariado de joelhos" com a velocidade com que Hitler, autor dessa
expressão, o fez na Alemanha.
Sexto. Com exceção do controle da mídia, todos os demais itens
apontados no parágrafo anterior, inclusive o domínio do sistema
educacional, foram servidos à liderança gramsciana, de bandeja, pelo
atual governo. Este, portanto, longe de constituir “o adversário" a ser
derrubado pela revolução, vem sendo no sentido mais estrito do termo
aquilo que no jargão revolucionário se denomina “governo de
transição para o socialismo", tendo representado, portanto, exatamente
o papel que alguns anos atrás o cientista político Alain Touraine, tão
respeitosamente ouvido pelo nosso presidente da república,
recomendou que ele consentisse em representar no palco da história,
caso não quisesse desempenhar o de vítima inerme de um processo
irreversível. Sendo o nosso presidente homem versado na estratégia
gramsciana — e ele se gaba de ser um dos mais versados — é
impossível que ele não esteja consciente do papel que escolheu; e ele
próprio deu mais uma prova disso ao explicitar seus atos em palavras,
aconselhando à nação que não hesite em curvar-se ao destino previsto,
como ele próprio se curvou.
Para a perfeição integral do poder revolucionário, falta apenas um
item: o apoio das Forças Armadas. Ele é difícil de obter, em vista de
feridas históricas ainda não cicatrizadas, mas talvez possa ser, em
parte, alcançado mediante a manipulação de ressentimentos e
ambições nacionalistas — que hábeis agitadores civis vêm tratando de
providenciar — e, em parte, substituído pela neutralização e
enfraquecimento da classe militar, que o atual governo já
providenciou.
Se me perguntarem como esse processo pode ser detido, responderei
que, obviamente, não sei. Mudar o curso da história está além das
minhas pretensões: elas se resumem, no momento, em tentar enxergá-
lo. E notem que, no meio da cegueira geral, isso já é muito para um
pobre observador humano.
O Globo, 7 de julho de 2001
F  
É tanta cultura que eles já não agüentam:
precisam reparti-la
Sob a coordenação do Professor Lejeune Mato Grosso Xavier de
Carvalho, presidente da Federação Nacional dos Sociólogos, um lobby
de proporções colossais, constituído de sindicatos, associações
estudantis, sociedades cientí�cas, cut, oab, Contag, cnbb e não sei mais
quantas instituições, está sendo organizado para pressionar o Senado a
aprovar o projeto de lei que torna obrigatório, nas 17 mil escolas de
ensino médio do país, o ensino de sociologia e �loso�a.
O próximo passo da luta, segundo o Professor Lejeune, será “a
mobilização total nos cursos,  s, congregações, departamentos,
reitorias e entidades correlatas". Essas entidades deverão: (a) produzir
uma chuva de e-mails sobre os senadores; (b) exercer pressão direta
sobre “ , Weffort, Moisés, Wilmar Faria e outros do alto escalão do
governo"; (c) agitar a massa estudantil para que ocupe as ruas e faça
caravanas a Brasília; (d) abrir espaço na mídia e municiá-la de
informações favoráveis ao projeto. É uma campanha das dimensões
das Diretas Já. Mas aí se tratava de luta política, que facilmente
desperta as paixões da massa angustiada. Um observador
extraplanetário �caria comovido até às lágrimas de ver tão poderosas
forças agitando-se em vista de um objetivo puramente cultural e
pedagógico.
Tamanha vontade de ensinar tem, no entanto, algo de estranho. O
Professor Lejeune entusiasma-se sobretudo com a mobilização dos
�lósofos — pilhas e pilhas de �lósofos, massas de �lósofos. Ao ouvi-lo,
damos por fato consumado que, no momento presente, pelo menos 17
mil deles se encontram tão repletos de conhecimentos �losó�cos que,
se não os derramarem sobre as cabeças juvenis, explodirão de pletora
intelectual.
O país que tem 17 mil �lósofos prontinhos para ensinar é, decerto, o
mais culto do mundo. É de fato uma injustiça que tanta cultura �que
retida na geração mais velha, sem ser repassada aos jovens.
Por isso mesmo o Professor Lejeune repele, como procrastinação
odiosa, qualquer tentativa de discutir, antes da aprovação da lei, o
conteúdo a ser ensinado nas novas disciplinas. Para que discutir, se ele,
Lejeune Mato Grosso em pessoa, já sabe esse conteúdo detrás para
diante? Eis como ele o resume: sociologia e �loso�a consistem em
fazer o aluno “entender seu mundo, a realidade que o cerca, as classes e
as lutas de classe, o papel do Estado e modos de produção" (sic).
Que haja 17 mil pessoas habilitadas a ensinar essas coisas, eis algo de
que não se pode mesmo duvidar. Na verdade há mais. Milhões de
militantes da  , do  e do  estão convictos de que a realidade
que os cerca se constitui, essencialmente, de luta de classes. Trata-se
apenas de tornar esse discurso obrigatório para os alunos de 17 mil
estabelecimentos de ensino.
A coisa é simples, direta e brutal. Portanto, nada de discussões.
Sociologia e �loso�a já! O Professor Lejeune vaticina que isso será “a
maior das revoluções". Tem razão: desde os tempos de Stalin, jamais
tamanha rede de difusão foi colocada, com dinheiro do governo, à
disposição da propaganda comunista. Tal é, pois, o motivo da
mobilização, que só um extraplanetário explicaria de outra forma.
Não sou ninguém para contestar uma assembléia inteira de sábios e
educadores, encabeçada por 17 mil �lósofos. Cá com meus botões
pergunto quantos deles agüentariam dez minutos de debate sobre as
categorias de Aristóteles ou as formas a priori de Kant. Mas isso,
obviamente, não vem ao caso. O que lhes incumbe ensinar eles já o
sabem de cor e salteado. Aliás, quem não sabe? Resta apenas perguntar
se, contra a formidável pressão organizada, os pais que não desejem
ver seus �lhos amestrados na doutrina da luta de classes terão a
coragem de enviar pelo menos umas tímidas cartinhas de protesto ao
Senado. Se não a tiverem, ótimo: é sinal de que o Brasil está maduro
para a �loso�a do Professor Lejeune.
Época, 7 de julho de 2001
O  
And Kaipha was, in his own mind, 
a benefactor of mankind.
— William Blake
e best lack all conviction, while the worst 
are full of passionate intensity.
— William Butler Yeats
Um dos trechos que mais me impressionam no Evangelho é aquele em
que Jesus, sob a acusação de difundir ensinamentos suspeitos, apela ao
testemunho do público: “Tenho falado francamente ao mundo", a�rma
Ele, “e nada disse em oculto. Pergunta-o aos que me ouviram". Um dos
guardas lhe dá então uma bofetada. Jesus lhe responde: “Se eu disse
mal, prova-o. Se disse bem, por que me feres?" (João, 18, 19–23).
Quando Northrop Frye demonstrou, em e great code,4 que em
última instância todos os enredos da literatura de �cção estão
pre�gurados nos livros sacros, ele se esqueceu de dizer que todos os
acontecimentos das nossas vidas estão pre�gurados na literatura de
�cção. Que é a �cção, a�nal, senão o conjunto dos esquemas
imaginários das vidas possíveis? Pelo menos assim o entendia
Aristóteles, mestre de Frye. E que é o conjunto das vidas possíveis
senão a sinfonia dos ecos terrenos da vida divina, a reverberação do
eterno no tempo? Nossas biogra�as são as cópias de uma cópia. Por
trás delas, uma única história se passou: a da vida, paixão e morte de
Nosso Senhor Jesus Cristo.
A cena do testemunho rejeitado repete-se milhões de vezes, ao longo
dos séculos, onde quer que um escritor, um professor, um orador, seja
acusado de dizer o que não disse, de ensinar o que não ensinou, de
pregar o que não pregou. Se nesse momento ele alega o testemunho
público de seus escritos, de seus ouvintes, de tudo o que é arquinotório
e documentado, isso não o livra da má vontade do juiz iníquo. O
simples desejo de provar é tido como insolência. Calem-se as
testemunhas, suprimam-se os documentos: o que vale não é a palavra
de quem viu, leu ou ouviu. O que vale é a palavra de quem, nada tendo
visto, lido ou ouvido, conjetura, suspeita e acusa. A ignorância
maliciosa torna-se fonte da autoridade, suprimindo não somente os
fatos, mas a simples possibilidade de alegá-los. O que importa não é
conhecer, é odiar com intensidade.
Esse modelo eterno reaparece diariamente na nossa imprensa, no
parlamento, nas cátedras acadêmicas e nas escolas de crianças, quando
aqueles que desagradam ao consenso dominante são rotulados de
“fascistas". Se apelam ao testemunho de seus escritos, alegando que
jamais disseram uma palavra em favor do fascismo, que o condenaram
e que pregaram o contrário dele, terão de dar-se por felizes se em
resposta não receberem uma bofetada, mas apenas um riso de
escárnio. No tribunal dos infernos, o escárnio dos canalhas é a prova
suprema. Todos os testemunhos, todos os documentos do mundo não
valem para impugná-lo. Mais probante que ele, só a bofetada do
guarda.
Milhões de pequenos brasileiros estão sendo educados nessa
pedagogia de Anás e Caifás. Logo estarão prontos para, à simples
menção de certos nomes dos quais nada sabem, gritar em uníssono:
“Fascistas!". Ai de quem tombe sob o olhar fulminante desse temível
tribunal mirim! Não por coincidência, a acusação de fascismo provém
sempre daquela corrente que se consolidou no poder na Rússia com a
ajuda nazista, que vendeu a Espanha aos franquistas em troca de
favores anglo-franceses, que amparou tantos militarismos
nacionalistas em toda parte, que no Brasil se aliou à ditadura de Vargas
e em Cuba, sim, em Cuba, apoiou a ascensão de Fulgencio Batista e
depois usurpou os lucros de sua destituição engendrada pelos
americanos. Tudo isso é fato histórico conhecido, ao menos de quem
estudou.
Não é preciso dizer que, nos tribunais nazi-fascistas, análoga sintaxe
governava o uso da acusação de “comunista", naqueles anos mesmos
em que Hitler e Stalin, por baixo da contenda de superfície entre seus
devotos militantes, trocavam favores, informes secretos, armas e
dinheiro — já muito antes do pacto Ribbentrop-Molotov, que apenas
formalizou aos olhos do mundo essa aliança macabra.
Mas, na lógica da alma revolucionária, é a própria cumplicidade no
crime que, pelo bem conhecido efeito potencializador da inversão
histérica, confere ao juiz a sua postiça autoridade de acusar. Quanto
mais ele tenha manchado suas mãos no sangue, tanto mais seu ódio
reprimido a si mesmo se trans�gurará, no nível da sua falsa
consciência intoxicada de ideologia, em indignada eloqüência contra o
inocente. Tal é o mecanismo íntimo daquela passionate intensity de
que falava Yeats, da qual só os fanáticos assassinos são capazes, e que
desarma, pela força avassaladora do cinismo, as defesas do homem
normal. O homem comum dos tempos modernos, esvaziado do
espírito e reduzido a con�ar-se à autoridade exterior do consenso
dominante, não resiste à retórica insana do mal: sob o violento ataque
frontal à verdade, acaba sempre cedendo, admitindo-se culpado do
que não fez, como milhares de réus nos Processos de Moscou na
década de 30. Só a fé amparada no exemplo de Cristo pode
permanecer imperturbável e, ante o assalto da mentira demoníaca,
retrucar simplesmente: “Se eu disse mal, prova-o. Se disse bem, por
que me feres?".
O Globo, 14 de julho de 2001
A-
O articulista faz uma con�ssão pessoal
Como há um só articulista que escreve habitualmente contra o
socialismo na imprensa de circulação nacional, e como o peculiar
conceito socialista de democracia exige que não haja nenhum, todos
os artifícios — da difamação às ameaças, da chacota à afetação de
silêncio superior — já foram tentados para persuadir esse um a mudar
de assunto. A última moda é adulá-lo, elogiar-lhe o estilo, lamber-lhe o
ego até o total amolecimento de seu juízo crítico e então, quando ele
está indefeso e derretido num mar de lisonja, lançar-lhe à queima-
roupa a insinuação fatal: “Desista".
Sugestão análoga às vezes vem de pessoas boas, sem nenhuma
intenção perversa. É no olhar e no tom que se discerne, nas outras, o
intuito de calar o articulista.
Infelizmente esse articulista sou eu. Digo “infelizmente" porque, com
outro, o ardil talvez funcionasse. Já comigo ele não tem a menor
chance, sendo eu uma alma impérvia e coriácea, sem outra ambição na
vida senão a de fazer exatamente o que tem feito.
Os senhores — falo de meus aduladores interesseiros, e não dos
demais leitores, é claro — não têm a menor idéia de como é bom, para
um sujeitoque ajudou a construir uma mentira na juventude, poder
desmontá-la na maturidade, tijolo a tijolo, com a meticulosidade
sádica do demolidor que não se contenta em derrubar paredes, mas
quer ir até o último fundamento, arrancar a última pedrinha do
alicerce e deixar o terreno limpo e nu como antes do início da
construção.
Poder fazer isso é uma libertação, um alívio, uma antecipação terrena
da paz eterna. Nada do que os senhores possam me oferecer vale isso.
Nada. Muito menos a lisonja, que é a mais instável e in�acionada das
moedas.
Mas não pensem que, quando falo em libertação, me re�ro ao
arrependimento, no sentido moral do termo. A libertação de que falo
não é só moral, é existencial, é ontológica. É descobrir e provar,
diariamente, que a vida humana não tem de ser um teatrinho de
papelão, que ela pode ser integralmente real, que um homem pode
passar do auto-engano e da farsa interior a uma existência de verdade,
como Pinóquio deixou de ser um boneco para se tornar menino de
carne e osso.
Nessas circunstâncias — repito Oscar Wilde —, dizer a verdade é
mais que um dever: é um prazer. Mais que um prazer, é uma autêntica
exaltação da alma, que ao descer da ilusão aos fatos descobre, pela
primeira vez, a dimensão da altura e da profundidade, a estatura real
do espírito. É uma descida que é ascensão, se me entendem.
Mas não entendem, não. Pessoas como os senhores não concebem o
abandono das ilusões senão — mui estereotipicamente — como a
troca dos belos ideais de juventude pelo realismo cru e egoísta da
maturidade. Não vendo o que nesses ideais há de pura vaidade e
soberba, de pura volúpia de poder camu�ada em belas palavras, não
podem compreender o que há de legítimo idealismo no sacrifício
maduro da mentira juvenil. Aqueles que, abandonando o socialismo,
caíram na amargura cética ou no oportunismo cínico não o
abandonaram verdadeiramente. São seus escravos e hão de sê-lo
eternamente. Cultuam-no em imagem invertida: vendo ainda nele o
bem e lamentando apenas que seja um bem impossível, aderem à
realidade como quem, após longa resistência, cede a uma tentação
aviltante. Deixam o socialismo como quem trai um deus sem cessar de
amá-lo.
Esses não entenderam nada. O socialismo nunca foi um deus ou um
ideal. Foi uma mentira demoníaca e uma exploração da fatuidade das
multidões. Abandoná-lo não é perder um ideal: é reconquistar a vida,
a alma, o sentido do dever e a dignidade da missão humana.
É para mostrar esse bem aos que ainda o desconhecem que escrevo
contra o socialismo. Os senhores, que não sabem nada disso, podem
me atribuir projetivamente os motivos mais estapafúrdios: ódio, inveja,
ressentimento, fanatismo, o diabo. Pouco me importa. Eu sei o que
estou fazendo, e os senhores não sabem o que dizem.
Época, 14 de julho de 2001
G  
No começo do século xix, muitos historiadores das religiões estavam
conscientes dos elos de continuidade entre a heresia gnóstica dos
primeiros séculos da Era Cristã e as �loso�as iluministas e românticas.
Por uma triste ironia, justamente no momento em que essas �loso�as,
logo a seguir, se transmutaram em movimentos ideológicos de massas,
a consciência daqueles elos desapareceu do horizonte intelectual e o
fenômeno totalitário resultante desses movimentos não pôde ser
adequadamente compreendido.
Coube ao �lósofo alemão Eric Voegelin (1901–1985) o mérito de
haver não somente redescoberto a inspiração gnóstica das ideologias
totalitárias, mas criado os instrumentos intelectuais para enquadrá-la
numa compreensão mais geral da história.
Malgrado a alucinante variedade dos movimentos gnósticos e as
diferenças entre suas formulações teóricas, há no fundo de todos eles a
unidade de uma cosmovisão, ou no mínimo de um sentimento
cósmico comum: a vivência do universo como lugar hostil e do
homem como criatura jogada no meio de uma máquina absurda e
incompreensível. Em última instância, é a rejeição do julgamento que
Deus fez da sua própria criação no último dia do Gênesis, quando Ele
olhou o cosmos e “viu que era bom". Para os gnósticos, a ordem
cósmica é essencialmente má e ao homem não resta senão o caminho
da fuga ou da revolta. Ao longo dos oito volumes de sua History of
political ideas e dos cinco da obra inacabada Order and History
(ambas publicadas pela University of Missouri Press), Voegelin
demonstrou que dessa visão inicial emergiram os desenvolvimentos
mais variados, desde a total rejeição da vida mediante o ascetismo à
outrance dos cátaros, passando pelo sonho dos alquimistas
elisabetanos de “corrigir a natureza", até as utopias políticas modernas
da Revolução Francesa e dos movimentos comunista, nazista e fascista,
com suas ambições prometéicas de sociedade planejada, Estado
onipotente e felicidade coletiva a ser alcançada por meio de um
morticínio redentor.
O gnosticismo, assim compreendido, não é só uma revolta contra o
catolicismo em particular, mas contra toda visão tradicional da ordem
social como expressão da ordem divina da alma e do cosmos. A
transformação de uma corrente esotérica em poderoso movimento de
massas que dominou a história dos dois últimos séculos observou-se
principalmente no Ocidente, em razão das guerras religiosas que, a
partir do século  , romperam a unidade da sociedade cristã e
eliminaram a religião como poder público, instituindo o moderno
Estado leigo que, erigido sobre um vácuo espiritual, acabou por se
revelar impotente para resistir à invasão dos movimentos gnósticos de
massa. Re�uindo para o Oriente, esses movimentos devastaram ali as
religiões tradicionais (ortodoxa, judaica, budista, confuciana e
islâmica, principalmente), manifestando da maneira mais patente a
sua natureza universalmente antiespiritual e não apenas anticatólica
em especial.
Mas é inevitável que toda grande descoberta no reino das idéias
venha seguida de perto por alguma versão paródica que ao mesmo
tempo a imita e inverte o seu sentido.
Assim, não demoraram a aparecer, no ambiente católico de extrema
direita, doutrinários que, explorando indícios fortuitos de semelhanças
entre algumas idéias gnósticas e elementos de doutrina judaica,
islâmica, budista, etc., apresentaram uma nova versão da revolução
gnóstica. Esta já não seria uma aberração voltada contra toda a visão
normal e tradicional, mas a aliança dos gnosticismos do Oriente e do
Ocidente numa conspiração universal contra a Igreja Católica.
Nunca ocorreu a esses gênios da parasitagem intelectual perguntar-se
por que, na guerra de todos contra a Igreja Católica, esta foi, das
religiões tradicionais, a que menos vítimas deu à sanha dos
revolucionários gnósticos. Mesmo diante dos horrores da perseguição
sofrida na França, no México, na Espanha, na Polônia, em Cuba;
mesmo diante da evidência de tantos Catholic martyrs of the twentieth
century meticulosamente coletada pelo historiador Robert Royal (New
York, Crossroad, 2000), não há como nivelar, em números, o
morticínio dos católicos ao dos ortodoxos, judeus, muçulmanos e
budistas sacri�cados na Rússia, na Alemanha, na China, no Tibete e
não sei mais onde pela máquina genocida da revolução gnóstica. A
religião chinesa, em particular, pode-se considerar hoje virtualmente
expulsa da história pela brutal doutrinação materialista que bloqueou
o acesso de mais de um bilhão de seres humanos às noções religiosas e
metafísicas mais elementares.
Ora, essas religiões não-católicas são precisamente aquelas que,
segundo a caricatura extremista da teoria de Voegelin, constituiriam,
mediante uma aliança com o materialismo militante, o outro braço da
revolução gnóstica voltada contra a Igreja Católica. Se elas fossem
realmente isso, então restaria explicar por que, em vez de coordenar-se
num assalto conjunto a Roma, elas escolheram primeiro destruir-se a
si mesmas.
Não, a Igreja Católica não é o único, nem, hoje em dia, o principal
alvo do ataque gnóstico. Ela sofreu muito, está muito dividida e
corroída pelos vermes gnósticos da “teologia da libertação". Mas ela é
— ainda — uma sólida fortaleza contra a destruição do espíritotradicional e da visão normal do homem no cosmos. Tão importante é
o seu papel estratégico, que mesmo ocasionais hesitações da sua parte
bastaram para dar ao inimigo a oportunidade de avanços e conquistas
formidáveis, como se viu na ascensão do nazismo, que ela poderia ter
impedido se agisse em tempo, ou nos espetaculares sucessos que o
comunismo obteve nas próprias �leiras católicas durante as décadas de
60 e 70, na esteira das confusões paralisantes que se seguiram ao
Concílio Vaticano  . Jogar a Igreja contra as demais religiões
massacradas pela fúria das ideologias totalitárias é fazer causa comum
com o inimigo de toda religião e de toda espiritualidade. É ressuscitar
em escala universal os con�itos inter-religiosos que, no começo dos
tempos modernos, só puderam ser apaziguados mediante o advento
do Estado leigo que abriu as portas à invasão das ideologias gnósticas.
Muitos podem colaborar com isso por inocência e boa-fé, pois o amor
sincero à Igreja nem sempre vem acompanhado de uma visão
abrangente e adequada da história. Mas outros sabem perfeitamente
bem para quem trabalham e aonde querem chegar. Quando ouvir um
desses, caro leitor, não se deixe iludir por pretextos piedosos e por uma
linguagem de sacristia: ele é a voz da velha revolta gnóstica que,
disfarçada de devoção cristã, tenta dividir para reinar.
O Globo, 21 de julho de 2001
B 
“Ele lutou pela verdadeira educação para a
cidadania"
O falecimento de Mortimer J. Adler, aos 98 anos, há cerca de um mês,
não foi registrado pela imprensa nacional. Duvido que não haja pelo
menos uns poucos brasileiros que devam a esse �lósofo e educador o
melhor do que aprenderam nesta vida — mil vezes melhor do que
poderiam ter aprendido em qualquer curso universitário ou na leitura
diária de todas as publicações culturais impressas nesta parte do
mundo. Mas, no geral, a cultura nacional está hoje nas mãos de
pessoas que ignoram Mortimer J. Adler. Se não o ignorassem, não
seriam o que são, nem a cultura nacional a miséria que é.
A diferença básica entre a classe falante brasileira e a americana que
ela tanto inveja é, simplesmente, que esta recebeu na escola uma liberal
education, e ela não. Adler foi a estrela máxima e a encarnação mesma
da liberal education nos Estados Unidos — o educador que, em última
análise, fez a cabeça da elite intelectual mais ágil do país mais forte do
mundo.
Liberal education é, para resumir, a educação da mente para os
debates culturais e cívicos mediante a leitura meditada dos clássicos.
Acabo de escrever esta palavra, “clássicos", e já vejo que não sou
compreendido. A falta de uma liberal education dá a esse termo a
acepção estrita de obras literárias famosas e antigas, lidas por lazer ou
obrigação escolar. Um clássico, no sentido de Adler, não é sempre uma
obra de literatura: entre os clássicos há livros sobre eletricidade e
�siologia animal, os milagres de Cristo e a constituição romana: coisas
que ninguém hoje leria por lazer e que geralmente são deixadas aos
especialistas. Mas um clássico não é um livro para especialistas. É um
livro que deu origem aos termos, conceitos e valores que usamos na
vida diária e nos debates públicos. É um livro para o homem comum
que pretenda ser o cidadão consciente de uma democracia. Clássicos
são livros que criaram as noções de realidade e fantasia, senso comum
e extravagância, razão e irrazão, liberdade e tirania, absoluto e relativo
— as noções que usamos diariamente para expressar nossos pontos de
vista. Só que, quando o fazemos sem uma educação liberal, limitamo-
nos a repetir um script que não compreendemos. Nossas palavras não
têm fundo, não re�etem uma longa experiência humana nem um
sólido senso de realidade, apenas a superfície verbal do momento, as
ilusões de um vocabulário prêt-à-porter. A educação liberal consiste
não somente em dar esses livros a ler, mas em ensinar a lê-los segundo
uma técnica de compreensão e interpretação que começa com os
eruditos greco-romanos e atravessa, como um �o condutor, toda a
história da consciência ocidental.
A liberal education é uma tradição nos  desde antes da
Independência. Adler lutou como um leão para que se tornasse
patrimônio de todos os americanos, mas seu sucesso foi só parcial. As
universidades principais têm, todas, seus programas de liberal
education, mas no ensino médio a idéia não pegou por completo. Hoje
a diferença essencial entre a rede de escolas públicas, fábricas de
delinqüentes, e as escolas de elite que formam os governantes e os
líderes intelectuais americanos é que estas se atêm �elmente à velha
educação liberal e aquelas se deleitam em experimentos pedagógicos
de “engenharia comportamental" — muitos dos quais inspiram os
programas de nosso  .
Fala-se muito, hoje, em educação para a cidadania. Mas só há duas
maneiras de formar o cidadão: a educação liberal e a manipulação
ideológica. Ou o sujeito aprende a absorver os dados da “grande
conversação" entre os espíritos superiores de todas as épocas e a tomar
posição sabendo do que fala, ou aprende a falar direitinho como seus
mestres mandaram, usando os termos com a conotação que desejam,
segundo os interesses dominantes do dia. A opção brasileira está feita.
Por isso, neste país, poucos souberam da vida ou da morte de
Mortimer J. Adler.
Época, 21 de julho de 2001
O -
Os livros de divulgação cientí�ca para a juventude falam sempre com
desprezo do “antropomor�smo" das idéias antigas acerca do cosmos.
Nada mais ingênuo, parece, do que vislumbrar intenções humanas —
ou divinas — nas plantas, nas pedras, nos ventos e nas galáxias.
Sentado no pináculo da evolução cientí�ca, qualquer garoto de escola,
baseado na autoridade de livros que nunca leu, ri das gerações que o
antecederam desde o começo do mundo.
Mas o fato é que por trás de toda concepção cientí�ca do universo há
sempre um esquema imaginativo subentendido, e enquanto esquema
imaginativo da totalidade da natureza o antropomor�smo é
in�nitamente menos ingênuo do que todos aqueles que o sucederam
desde o Renascimento até hoje.
Descartes e Newton concebiam o universo como um relógio.
Nenhum índio seria cretino o bastante para acreditar numa coisa
dessas. Mesmo um indiozinho pequenininho já sabe que a natureza é
astuta e imprevisível. A hipótese de aprisioná-la numas quantas
fórmulas repetíveis lhe pareceria puro charlatanismo, e ele não
precisaria de mais de uns segundos para rejeitá-la in limine. Já a nossa
cultíssima civilização precisou de três séculos para despertar da ilusão
mecanicista. Precisamos de Planck e Heisenberg para nos provar algo
que qualquer indiozinho de 6 anos nos teria contado antes deles. Não
nego que a prova, em si, vale alguma coisa. Mas quantos a conhecem?
Kant estava erradíssimo ao conceber a autonomia de julgamento como
a �na �or da civilização moderna. O homo urbanus, na sua
esmagadora maioria, acredita em Planck e Heisenberg só por ouvir
dizer: não tem a independência de juízo com que o indiozinho
acredita em seus próprios olhos.
O mecanicismo se impôs porque dava aos homens uma demencial
ilusão de poder. “Saber é prever, prever para poder", proclamava
Comte. Se a realidade era uma máquina, bastava saber apertar os
botões certos para obter os resultados desejados. Daí à “física social" e
à economia planejada, foi um piscar de olhos. Uns 150 milhões de
seres humanos pereceram vítimas desse experimento cientí�co. E tudo
começou com um relógio. É verdade que a falsa imagem do conjunto,
simpli�cando o raciocínio, permitiu que certos detalhes fossem
calculados com mais precisão. Descartes conhecia os pormenores da
refração óptica bem melhor que o indiozinho. Mas isto não tornava
menos idiota o seu esquema geral do cosmos, nem menos
devastadoras as conseqüências de uma ciência de pormenores erguida
sobre um esquema imaginativo pueril.
Nada do que se diga da importância vital dos esquemas imaginativos
no conhecimento será exagero. Não podemos conhecer, pela
observação cientí�ca, a totalidade do real. Mas todos temos dela
alguma expectativade todas. No Fórum da
Liberdade, as pessoas são convidadas a falar conforme sua experiência
no trato do assunto. Nenhum sapateiro, ali, vai além das chinelas. A
mim, por exemplo, ninguém ali faz perguntas sobre desemprego ou
carência habitacional, problemas com os quais só tive contato na
condição de vítima atônita, e dos quais tudo o que eu teria a dizer é
que de fato são uma bela encrenca. No entanto, tenho me saído melhor
em áreas como educação, cultura, história etc., e o Fórum da
Liberdade me pergunta exatamente sobre isso. Para falar do sistema
bancário, traz o Gustavo Franco, que soube fazer a coisa andar. Para
falar da empresa privada, chama o Dr. Jorge Gerdau, que tem uma que
funciona. E assim por diante. Já o pessoal do Fórum Social anuncia
possuir a solução para males de grande porte: a miséria das nações
pobres, a exclusão social e coisas assim. Seria justo esperar que essas
criaturas nos mostrassem sua folha de realizações — ou pelo menos a
de sua ideologia — no concernente à solução desses problemas.
Poderíamos perguntar, por exemplo: a quantos seres humanos o
socialismo já deu uma vida melhor? Se excluirmos os membros da
nomenklatura, que obviamente tiveram a melhor das vidas, a cifra que
obteremos em resposta só não é nula porque é negativa: em quase
todas as nações socialistas o padrão de vida é hoje inferior ao de antes
do socialismo. Na melhor das hipóteses, é igual: quando Cuba se gaba
de ter o terceiro ou quarto lugar do continente em qualidade de saúde
ou educação, omite que já os tinha desde 1951, oito anos antes da
revolução. Em outros países, como o Vietnã, a fome e a miséria
alcançam níveis apocalípticos, enquanto na China o salário médio de
um trabalhador, após meio século de morticínios redentores soi disant
destinados a elevar seu padrão de vida, é de 40 dólares.
Em contrapartida, nesse vale de lágrimas que é o capitalismo, a fração
mais pobre da população norte-americana e européia de hoje tem um
nível de consumo muito superior ao da classe média dos anos 50. Já na
África, que segundo os doutrinários socialistas experimentaria um
�orescimento econômico espantoso tão logo os europeus fossem
embora de lá com seus malditos investimentos colonialistas,
populações inteiras hoje morrem à míngua, e o Fórum Social, segundo
nos anunciou neste mesmo jornal o inesquecível Sr. Luiz Marques, nos
mostrará que isso é culpa dos pér�dos ex-colonialistas que já não
botam mais seu dinheiro lá. Tal é o know how que essa gente virá
transmitir aos gaúchos em troca do dinheiro dos seus impostos.
De todos os problemas econômicos do mundo, os doutrinários
socialistas só resolveram, até agora, um único: o seu próprio. Cada um
deles tem um bom emprego em universidade, jornal ou instituição de
pesquisa em prósperos países capitalistas, e nenhum jamais foi idiota o
bastante para se propor a resolver, não os problemas “do mundo", mas
o de algum país socialista. Não se atrevendo a cuidar do seu próprio
quintal, eles se tornaram especialistas em dar palpites no alheio: o
socialismo, como se sabe, não tem vida autônoma, mas se alimenta das
doações de diletantes capitalistas insanos de Nova York e Genebra, que
o sustentam mais ou menos como quem mantém, em casa, uma
criação de jacarés. Em retribuição, os jacarés mostram os dentes e
sacodem as caudas para impressionar as visitas. Essa será toda a
utilidade do Fórum Social. A diferença é que o salário dos jacarés não
será pago por capitalistas insanos de Nova York e Genebra, mas pelos
contribuintes gaúchos.
Zero Hora, 14 de janeiro de 2001
P  
Uma prova notável da cretinice vigente é o número de pessoas, na
imprensa, nas universidades ou em toda parte, que imaginam que o
puro ódio político que sentem por mim as investe de autoridade
bastante para negar-me o estatuto de �lósofo mediante o simples
acréscimo de aspas ou de alguma expressão pejorativa ao termo que o
designa, sem jamais se perguntar se elas próprias estariam habilitadas,
já não digo a discutir, mas simplesmente a ler e compreender por alto
algum de meus livros de �loso�a — uma quali�cação que, por
mistério, lhes parece totalmente dispensável no caso.
Ao multiplicar-se o número de episódios que a ilustram, essa auto-
atribuição de autoridade intelectual por parte de sujeitos obviamente
despreparados para as mais elementares tarefas de uma vida de
estudos assinala, mais que uma inusitada arrogância coletiva, uma
grave perda geral do senso de realidade, do senso das proporções.
Ultrapassado um certo limite, a ignorância pretensiosa deixa de ser um
estado transitório de feiúra moral associado à má formação intelectual,
e se torna um desvio de personalidade, um tipo de sociopatia.
Não conheço, no presente panorama mental brasileiro, sintoma mais
alarmante e mais digno de estudo.
Não é normal, na imprensa do mundo, que um escritor que se dirige
à parte mais culta do público desperte tanto interesse e tanta raiva na
outra parte, a ponto de centenas de iletrados lhe enviarem cartas
furiosas, onde as ameaças de processo judicial e de agressão física se
mesclam pateticamente a todos os palavrões do idioma,
complementados pela surpreendente assertiva de que o destinatário —
não o remetente — é sujeito grosseiro e sem educação.
Um detalhe interessante é a repetição obsessiva de slogans e lugares-
comuns do jargão esquerdista. Aparecendo justamente nas mensagens
que com mais vigor condenam o meu antiesquerdismo como uma
obsessão de chutar gatos mortos, a coisa soa como um eloqüente coro
de miados num cemitério felino. E nunca um só desses defuntos
miantes deu o menor sinal de perceber que seu próprio falatório dava
a prova da falsidade do que alegava. A perda da sensibilidade
lingüística acompanha pari passu a ascensão do simplismo fanático e
da imbecilização moral.
Talvez ainda mais estranha é a convicção, que em muitos desses
indivíduos parece totalmente sincera, de possuir, além daquela
tremenda autoridade intelectual, também um signi�cativo poder de
intimidação. Escrevem, de fato, no tom feroz de quem espera que o
destinatário, lendo, �que paralisado de medo ante um imponderável
perigo iminente, desista de publicar artigos e, quem sabe, até mesmo
se desmaterialize em pleno ar.
Muitas dessas pessoas, numa situação normal, nem mesmo leriam
meus artigos, os quais obviamente não foram feitos para elas. Se não os
lessem, nenhuma falta fariam ao autor, que conta com a compreensão
e a simpatia de outras — e mais vastas — faixas de público. Por que
então os lêem, se cada leitura as precipita numa crise de raiva que
culmina numa auto-eletrocução verbal? Tudo isso é fantástico,
espantoso e, numa palavra, dadaísta. A observação, comum nos livros
de historiadores, de que análogos fenômenos se observam
regularmente nas crises pré-revolucionárias não prova que vai haver
uma revolução no Brasil, mas sugere que uma parcela signi�cativa da
população falante já está em pleno transe de estupidez revolucionária,
prelúdio do suicídio nacional.
Jornal da Tarde, 18 de janeiro de 2001
Z   
Quando digo que a queda do nível de consciência das nossas classes
falantes já atingiu a faixa do calamitoso, não estou exagerando nem
brincando. Acompanho com regularidade os debates políticos, leio as
principais publicações culturais, recebo diariamente dezenas de e-
mails de universitários que levantam discussões sobre mil e um
assuntos: tenho uma boa amostragem do que se passa. Seis anos atrás
ainda era possível documentar, através de exemplos selecionados,
como o �z nos dois volumes de O Imbecil Coletivo, a veloz ascensão
da estupidez na intelectualidade nacional. Hoje quem tentasse coleta
similar seria esmagado sob a massa de documentos. Mas esse estado
de coisas não deixa de ter suas vantagens. A maior delas é que, pelo
acúmulo de material, a confusão inicial dos dados cede lugar ao
desenho nítido de algumas constantes: o conjunto de cacoetes e
incompetências que hoje caracteriza a forma mentis do opinador
nacional típico já pode ser descrito em poucas linhas.
A primeiraque se traduz em imagens. É sobre estas imagens
que se constrói o edifício do conhecimento racional. Toda a psicologia,
de Aristóteles a Piaget, mostra que a inteligência racional não opera
diretamente sobre os dados dos sentidos, mas sobre as imagens, os
“fantasmas", diziam os gregos, depositados na memória. A imaginação
é a ponte entre o sensível e o inteligível. Imaginatio mediatrix, dizia o
grande Hugo de São Vítor: a imaginação é mediadora.
Por isso, todo conhecimento, toda civilização se ergue sobre um
fundo imaginário. A tremenda estabilidade, a sanidade inabalável de
tantas culturas primitivas dotadas de nada mais que um mínimo de
saber cientí�co deveu-se justamente à adequação entre seus esquemas
imaginativos e a realidade da sua experiência vivida. Envoltos em
mitos e lendas, esses homens antigos podiam nada saber de quarks e
buracos negros, mas tinham um pressentimento certeiro do lugar da
existência humana no cosmos e sabiam traduzi-lo em atos e palavras
dotados de sentido. Há in�nitamente mais sentido em falar com as
plantas do que em imaginar-se engrenagem de um relógio. A
concepção antropomór�ca da planta é incomparavelmente mais
inteligente e mais digna do que a concepção relogiomór�ca do
homem. Achar que uma planta é uma pessoa pode inibir um homem
de matar a planta. Mas se você acha que as pessoas são relógios, nada
mais lógico do que matá-las porque se recusam a funcionar como
relógios. Robespierre, Lenin e Hitler nada �zeram senão tirar as
conseqüências das premissas lançadas por Descartes e Newton. Viktor
Frankl dizia isso: se o homem é apenas um produto industrial, não há
nada de mais em jogar alguns fora no controle de qualidade. Cada vez
mais acho que ele tinha razão. Auschwitz e o Gulag não são
propriamente �lhos da ciência, mas são �lhos do esquema imaginativo
imbecil e inumano que a ciência moderna criou ad hoc para poder se
desenvolver.
É altamente duvidoso que mesmo os mais extraordinários progressos
da técnica valham tamanha mutilação da imagem do mundo, mesmo
porque nada prova que a amputação fosse estritamente necessária, que
a ciência que temos, ou mesmo outra melhor, não poderia ter-se
desenvolvido sem isso.
Hoje o mecanicismo está desmoralizado, morto, esquecido. Mas a
imagem medieval do cosmos vivente e dotado de sentido cujo lugar ele
usurpou no imaginário do homem ocidental e que já não era
certamente um puro antropomor�smo, mas uma concepção muito
mais �na e elaborada — continua sepultada e proibida. E as ondas de
ocultismo e bruxaria, que de tempos em tempos inundam o mundo
tecnológico, não são senão o protesto neurótico de um impulso
legítimo que, reprimido, ressurge sob a forma de doença. A
imaginação do homem ocidental não foi sufocada pelo puro
materialismo, mas por uma parceria de materialismo e ocultismo.
Quando Edmund Husserl, no começo do século  , advertiu para
uma crise de racionalidade nas ciências, ele tocou no problema
decisivo da nossa civilização: até que ponto um saber cientí�co que se
erigiu sobre um esquema imaginativo falso e mutilador pode
conservar a dignidade de ciência em vez de tornar-se uma mitologia
de segunda mão?
O Globo, 28 de julho de 2001
F  
A inteligência brasileira vive num espaço
separado
Nada mais característico da miséria intelectual brasileira que a reserva
de mercado concedida a certos autores e a certas correntes de
pensamento na economia geral das atenções universitárias. Foucault,
Derrida, Lacan, Deleuze, Freud, Nietzsche, Marx, Gramsci e
Heidegger estão entre os privilegiadíssimos. Devem essa posição —
grosso modo, é claro — a seu prestígio de críticos radicais da
civilização do Ocidente. O lado pitoresco da coisa é que tanta atenção
aos críticos coexista com um total desinteresse pelo objeto criticado. É
normal um intelectual brasileiro con�ar piamente no diagnóstico
nietzschiano da mente de Sócrates sem ter a menor vontade de saber o
que o próprio Sócrates fez ou disse. Não conheço um único intelectual
público que tenha concedido algum tempo ao estudo de Aristóteles,
mas conheço centenas que asseguram que Aristóteles foi superado não
sei onde ou quando. Quando digo que a física de Aristóteles estava
mais avançada que o mecanicismo renascentista, porque antecipava o
indeterminismo de Heisenberg, olham-me com aquela cara de quem
viu um et. E assim por diante. Os dados, a realidade, a consistência da
civilização não interessam. Só o que interessa é sua crítica. No �m,
“pensamento crítico" vira isso: con�ar na opinião de terceiros,
dispensando-se de
um exame pessoal do assunto.
Se o assunto é cristianismo, então, a fantasia vai parar longe. Com a
maior seriedade, catedráticos nos asseguram que a Igreja tem “uma
concepção dualista de alma e corpo" ou que ela prega “uma ética de
altruísmo". A primeira dessas doutrinas é puro Descartes, a segunda
uma criação de Auguste Comte, feita para desbancar o conceito cristão
de caridade.
Entre o ambiente cultural brasileiro e a realidade histórica da
civilização ergueu-se um muro de preconceitos, frases feitas,
indiferença e esquecimento.
Mais assustador que a ignorância do passado, porém, é o desinteresse
pelo presente. Quantas vezes, diante de públicos universitários
supostamente interessados em �loso�a, constatei que nunca tinham
ouvido falar de Eric Voegelin, de Xavier Zubiri, de Bernard Lonergan,
certamente os �lósofos mais criativos da segunda metade do século 
! Haviam parado em Derrida.
Um coágulo de marxismo-estruturalismo-psicanálise-
desconstrucionismo havia obstruído de�nitivamente seus condutos
cerebrais.
O tratamento de choque de Alan Sokal não surtiu efeito nesta parte
do mundo. Imposturas intelectuais foi bastante lido, mas só é
conclusivo para quem tenha formação cientí�ca bastante para sentir a
gravidade de seus argumentos. Como esse não é o caso da maioria de
nosso público universitário, o livro �ca com a fama de ter sido apenas
uma pegadinha engenhosa.
Recomendo então dois remédios de mais fácil assimilação. O
primeiro é inkers of the New Le, de Roger Scruton, a
demonstração inequívoca da menoridade mental dos tótens
acadêmicos ainda cultuados no Brasil. O segundo é Mensonge, de
Malcolm Bradbury, uma devastadora sátira do desconstrucionismo.
Trata da vida e das obras de Henri Mensonge, philosophe inconnu que
teria sido não somente o verdadeiro criador da celebrada doutrina da
“inexistência do sujeito", mas também... o primeiro a praticá-la. E tão
coerente foi esse pensador que nunca foi visto em parte alguma e só
deixou dois escritos, inéditos e jamais lidos por quem quer que fosse:
Moi? e La fornication comme acte culturel.
Se você tem um �lho na universidade, faça uma experiência: dê-lhe
os livrinhos de Scruton e Bradbury. Se depois de os ler ele continuar
desinteressado de conhecer o mundo extra muros, você pode ter
certeza: ele fará uma brilhante carreira de intelectual acadêmico. É
verdade que o salário não será grande coisa, mas sempre restará a
esperança de que ele chegue ao cume da pro�ssão: a presidência da
república.
Época, 28 de julho de 2001
“O   "
Uma famosa dama do show business, no meio de ruidosa festa na
boate carioca People’s, tentava se comunicar, aos berros, pelo telefone:
“Fulaninho? Eu estou aqui no Pipo. Pipo! Píiiiiiiipo! Pê-i-pê-ó, seu
burro! Pipo!".
Outro dia, num programa de perguntas e respostas, um famoso
cantor, solicitado a desencavar do seu vasto repertório léxico o nome
de algo que se encontrasse em academias de musculação e começasse
com “e", respondeu resolutamente: “Estrutor".
Em idênticas circunstâncias, outra estrela, convidada a emitir com
seus lábios de mel um vocábulo com inicial “i", não hesitou um
segundo: “Iscola".
A vida imita a arte. “Os pedar da bicicreta" saíram da piada para
entrar na História.
É falso alegar que esses personagens são almas simplórias, gente do
povo.
São formadores de opinião, ganham rios de dinheiro e, entre
banqueiros e senadores, é chique recebê-los em casa. A meninada os
tem como ídolos, e um sorriso dos desgraçados, numcaracterística é a absoluta incapacidade de distinguir
entre um conceito e uma �gura de linguagem. Quando temos um
sentimento difuso a respeito de algo que não compreendemos bem,
experimentamos naturalmente a di�culdade de expressá-lo. Uma
�gura de linguagem, apelando a semelhanças sugestivas, ajuda-nos a
vencer a di�culdade. Saímos de um nebuloso isolamento e penetramos
na corrente da conversação pública. A decorrente sensação de ter
emergido das trevas para a luz é, porém, totalmente ilusória: maior
domínio da expressão não signi�ca melhor conhecimento do objeto
do qual se fala, ingresso na tagarelice coletiva não signi�ca contato
com a realidade. Quase todo debatedor público neste país, quando
consegue domar sua di�culdade de expressão, sente ter dito algo de
“objetivo", talvez até mesmo de evidente e autoprobante, quando na
verdade apenas objetivou sua subjetividade. Quanto mais árduo o
desa�o expressivo, mais a vitória é enganosa. A libertação das brumas
interiores, a capacidade de exprimir o que sentimos é, decerto, um
pressuposto do conhecimento objetivo, mas ainda está muito longe de
alcançá-lo. No Brasil ela tende antes a substituí-lo. A confusão entre
falar e conhecer é uma regra estabelecida dos debates nacionais.
Nessas condições, qualquer pretensão de “conceito", quando chega a
despontar, se esgota em mera de�nição nominal. O processo de exame
pelo qual o investigador, fazendo a crítica de suas �guras de
linguagem, acaba apreendendo algo da coisa real por entre as frestas
do que ele próprio disse dela, parece ser totalmente desconhecido
nesta parte do mundo. A expressão �gurada e aproximativa, em vez de
ser apenas o começo do processo de investigação, é o término dele: o
sujeito mal acabou de enunciar um vago problema, e crê já ter em
mãos uma conclusão líquida e certa.
Eu não diria, no entanto, que essa inépcia nasce da excessiva afeição
às palavras, erroneamente assinalada como traço da nossa cultura por
observadores estrangeiros como James Bryce e Hermann Keyserling.
O que nos faz tomar as palavras por coisas não é o amor às primeiras,
mas a di�culdade de, por meio delas, chegar às segundas. Pesquisas de
antropologia empresarial mostraram que nossa população é insensível
à palavra escrita, necessitando do apoio dos gestos e sons para que a
mensagem atinja a consciência. Mas essa dependência da presença
física do emissor assinala também uma di�culdade de saltar sobre a
situação concreta do diálogo e apreender diretamente as coisas e
relações mencionadas. O que se capta nesse tipo de comunicação é
menos algo a respeito da realidade externa do que as intenções e
sentimentos do falante. O brasileiro inclina-se a apreender antes “o que
querem dele" do que o quid da coisa da qual se fala. Diga você o que
disser, sobre não importa o quê, e ele ouvirá uma ordem, um pedido,
um apelo, um estímulo, uma proibição. É natural que, ouvindo assim,
também fale assim, isto é, que, numa situação que exige descrever fatos
e seres, ele se atenha a expressar o que sente, sem notar sequer a
diferença entre uma coisa e outra. Sua fala será então respondida na
mesma clave, e assim por diante inde�nidamente, numa espécie de
solipsismo coletivo no qual as almas, quanto mais se abrem umas às
outras, mais se fecham na sua ilusão subjetivista.
Daí a compulsiva necessidade de “tomar posição" antes e
independentemente de conhecer as coisas em questão, bem como a
impossibilidade de ouvir uma argumentação ou prova senão como
expressão mais elaborada de uma “tomada de posição" subjetiva. No
Brasil não se discutem idéias, teorias, visões da realidade: discutem-se
“posições" — atitudes, preferências, gostos e antipatias. Se é verdade o
que dizia Henry James, que “os senhores falam de coisas; os escravos,
de pessoas", então somos, indiscutivelmente, uma nação de escravos.
É evidente que, não alcançado o nível do pensamento conceptual,
mais impossível ainda �ca provar o que quer que seja. Daí a segunda
característica do debatedor brasileiro hoje em dia: a completa
ignorância do que seja uma prova ou demonstração, na verdade uma
total inconsciência da necessidade de provas. Em vez da prova, temos
a reiteração enfática ou o apelo a novas �guras de linguagem, que, pela
sua carga sentimental, bastem para estabelecer uma sintonia entre os
sentimentos do ouvinte e os da platéia, sem nem de longe tocar nos
objetos em questão. E o sujeito que fez isso sai persuadido de que disse
alguma coisa do mundo real.
Curiosamente, indivíduos que ignoram tudo dos critérios de prova
em �loso�a ou ciência estão bem atualizados com as limitações desses
critérios, assinaladas por autores em voga. Em resultado, a limitação se
torna um substitutivo do critério mesmo e é por sua vez absolutizada,
com grande reconforto para o presunçoso ignorante que, justamente
por nada ter provado, acredita estar no cume da evolução
epistemológica — como um paralítico que, ao ter notícia dos
argumentos de Zenão sobre a impossibilidade do movimento, se
sentisse superior às pessoas capazes de andar.
..: Após acusar-me de um crime que não cometi e mostrar-se
indignado de que eu tivesse o desplante de achar isso ruim, o Sr.
Márcio Moreira Alves anuncia agora que vai abandonar o ringue para
não ter de se rebaixar ao nível da minha pessoa. Sapientíssima decisão.
Ele que �que lá em cima, no seu grand monde de comunistas chiques,
e não desça mais ao humilde porãozinho que, em paz com Deus,
habito. Se descer, vai apanhar de novo.
Já o tal de Betto, que de maneira mais ou menos vaga e implícita
parece ter endossado as acusações do Sr. Moreira, não requer uma
resposta em separado, porque, tendo ido essas acusações para o ralo da
completa desmoralização, com elas há de ir automaticamente, sem
deixar saudades, quem quer que as tenha subscrito.
O Globo, 20 de janeiro de 2001
D  
O fórum esquerdista no Rio Grande não é
contra a Nova Ordem Mundial, é contra o Brasil
Quando você discute com um comunista, ele exige, antes de tudo, que
você aceite a premissa de que ele defende os pobres e você os ricos. Se
você a aceita ou, por desatenção e comodismo, deixa de contestá-la
com veemência, ele passa a tratá-lo com toda a delicadeza, porque
sabe que aos olhos da platéia você já está liquidado e que quanto mais
polido ele for daí por diante mais somará, ao prestígio de defensor dos
oprimidos, a boa imagem de democrata respeitador do adversário
moribundo.
Se, em vez disso, você mexe em alguns pontos doloridos da má
consciência esquerdista — sua aliança de um século com os tubarões
do monopolismo capitalista, a exploração maciça do trabalho escravo
para �nanciar o movimento comunista internacional, a corrupção de
milhares de jornalistas e políticos pelas verbas descomunais da  —,
aí ele resolve o problema dizendo que você partiu para os ataques
pessoais, que você é um fascista ou que não se fazem mais direitistas
educados como antigamente.
Já sei, portanto, o que vão me responder quando eu disser que o
Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, é uma gigantesca
mobilização de verbas e forças estrangeiras para um ataque direto à
soberania nacional, disfarçado em defesa de nossos interesses na arena
econômica do mundo.
Mas nem sempre essa gente responde. O prefeito petista de Porto
Alegre, por exemplo, não respondeu nada quando meses atrás, num
debate, eu lhe disse que, com toda a sua aparente defesa de nossa
integridade territorial, seu partido, se chegar ao poder, não somente
entregará a Amazônia como ainda poderá ceder mais uns estados, de
quebra, pela simples razão de que tudo isso já foi pago. Já foi pago à
esquerda nacional, hoje maciçamente �nanciada por empresas e  s
tentaculares a serviço dos mesmos interesses que ela �nge combater.
O silêncio do prefeito, no entanto, foi menos eloqüente que as
recentes declarações do vice-governador do Rio Grande, Miguel
Rossetto, segundo o qual toda a oratória canina que o  vai despejar
sobre o capitalismo internacional não afetará em nada as boas relações
do governo do estado com o Banco Mundial.É evidente: o festival de
esquerdismo na capital gaúcha não pode arranhar no mais mínimo
que seja os interesses do monopolismo global. Pode apenas destruir
por completo o Estado de Direito no Brasil, criando e legitimando o
precedente escandaloso do apoio o�cial à pregação genocida dos
narcoterroristas colombianos.
Mas esse precedente não é o único: ao participar despudoradamente
da sustentação logística de um empreendimento de propaganda
ideológica ostensiva, o governo gaúcho derrubará, de um só golpe, a
legislação eleitoral existente, sob os olhos complacentes do Executivo,
do Legislativo e do Judiciário federais, que, temendo as reações da
mídia cúmplice, não ousarão punir a arrogante ilegalidade explícita
dessa declaração de guerra revolucionária.
Apresentar o fórum como uma alternativa aos debates capitalistas de
Davos é apenas um truque publicitário, operado com o auxílio do
diretor do jornal Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet, célebre
propagandista empenhado em, sob o pretexto de apoio aos
nacionalismos, fortalecer o braço estatista, centralizador e burocrático
da Nova Ordem Mundial, em detrimento, de�nitivo ou provisório, de
seu braço privatista e neoliberal.
O fórum não sonha em alterar no que quer que seja a Nova Ordem
Mundial. Sonha apenas em mudar o lugar do Brasil dentro dela,
transformando-o, de uma próspera nação capitalista apta a disputar
uma posição de liderança, numa Colômbia devastada e eternamente
cabisbaixa.
Época, 20 de janeiro de 2001
D 
Um público que está contaminado de doutrinação marxista até a
medula não tem, por isso mesmo, a menor idéia de que está sendo
doutrinado. A primeira etapa da doutrinação é puramente cultural,
difusa, e não visa a incutir no sujeito a menor convicção política
explícita, mas apenas a moldar sua cosmovisão segundo as linhas
básicas da �loso�a marxista, sem este nome, naturalmente, e
apresentada como se fosse “o" conhecimento em geral. Com exceção
de um reduzidíssimo número de intelectuais que estudaram
criticamente o movimento comunista e das pessoas demasiado pobres
que não receberam educação nenhuma, são raros os cidadãos
brasileiros que já não estejam conquistados para essa visão do mundo,
no mínimo por desconhecer que ela é uma visão e não o próprio
mundo.
Em especial, a explicação da história com base no esquema marxista
das classes sociais economicamente de�nidas, que é o terreno prévio
para uma doutrinação mais ativa, já se pode considerar
de�nitivamente integrada nos esquemas de pensamento da mídia e da
população instruída, ao ponto de que ninguém, aí, tem a consciência
de que ela é apenas uma teoria entre outras e todos a tomam como se
fosse um traslado direto da realidade vivida. Por menos que ela
coincida com a efetiva distribuição das forças no panorama social
brasileiro, o cidadão espontaneamente apela aos seus conceitos básicos
— se não à sua nomenclatura — para expressar o que acha que se
passa na sociedade. Assim, por exemplo, a burocracia estatal, em vez
de ser encarada como uma força autônoma — o que é um traço
característico da sociedade brasileira — e embora nela se recrute a
maior parte da militância esquerdista, se tornou invisível o bastante
para que os efeitos de suas ações sejam atribuídos à “classe
dominante", compreendida no sentido de “os ricos" ou “os capitalistas".
A classe média, que abrange 46% da nossa população e inclui a quase
totalidade das pessoas politicamente atuantes (sobretudo na esquerda),
não tem nenhuma consciência de si como entidade distinta, mas cada
um, dentro dela, espontaneamente divide o quadro social entre os “os
ricos" e os “os pobres", tomando os discursos partidários como se
fossem traduções �éis das realidades sociológicas subjacentes e
catalogando-se a si mesmo na classe dos pobres, sem reparar que os
pobres o colocam na classe dos ricos e, na verdade, o invejam e o
odeiam mais do que a qualquer banqueiro. A alienação entre a
realidade social e o discurso de auto-explicação, em tais
circunstâncias, é total.
Com igual facilidade, a compreensão das idéias como expressões
estereotipadas de interesses de classe é projetada sobre a imagem do
nosso passado histórico, passando como um trator sobre o fato,
facilmente comprovável mas marxisticamente inexplicável, de que no
Brasil os discursos ideológicos quase nunca coincidem com os
interesses objetivos das classes sociais envolvidas. Na educação
pública, nos livros, nos programas pretensamente educativos da  , a
redução marxista das criações culturais a superestruturas dos
interesses de classe já está tão profundamente integrada no
vocabulário corrente que quem deseje apresentar alguma outra versão
da história não tem nem por onde começar a se explicar e pode até
cair no ridículo ao bater de frente com o “senso comum" (no sentido
gramsciano do termo).
De maneira bastante compreensível, mas nem por isto menos irônica,
quanto mais limitado o horizonte de uma pessoa esteja aos cânones da
vulgata marxista, mais ela reagirá com quatro pedras na mão à
denúncia de que existe propaganda do marxismo no Brasil e, mais
ainda, à idéia de que os comunistas tenham algum poder entre nós.
Ser invisível, já dizia René Guénon, é da essência mesma do poder.
Uma segunda fase da doutrinação é a que vai associar, ao estereótipo
das classes, os valores morais e emocionais necessários a despertar
reações de agrado ou desagrado conforme o discurso ouvido soe de
maneira a parecer associado aos “interesses de classe" dos bondosos
pobres ou dos malvados ricos, por menos que, objetivamente, tenham
algo a ver com isso. O discurso em favor da livre empresa, por
exemplo, embora objetivamente fale em favor da imensa população
pobre que vive da economia informal, é rejeitado como defesa dos
interesses da “elite" e das multinacionais, enquanto o discurso
estatizante, embora não arranhe no mais mínimo que seja os interesses
das classes ricas e de fato fortaleça a burocracia onipotente que reduz o
país à pobreza mediante uma carga tributária escorchante, é facilmente
aceito como tradução dos interesses dos “excluídos". Da alienação
passa-se então à alucinação, mas, não por coincidência, a própria
angústia decorrente do vago pressentimento da loucura é em seguida
explorada para gerar mais ódio à imagem estereotipada da “classe
dominante", responsabilizada por todos os males e personi�cada em
indivíduos e grupos que, na verdade, não são dominantes de maneira
alguma e funcionam como puros bodes expiatórios, como por
exemplo os militares. A tal ponto os símbolos convencionais se
substituem à percepção dos fatos que um acontecimento como o
Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, é passivamente aceito pelo
seu valor nominal de manifestação antiglobalista, malgrado o apoio
que recebe da  , o coração da Nova Ordem Mundial, bem como da
rede mundial de  s que estão para a  como as veias e artérias
estão para o coração.
..: Tendo outras coisas a dizer neste meu espaço semanal em vez de
gastá-lo para rebater a nova investida caluniosa de Dona Cecília
Coimbra (O Globo, 20 de janeiro), mas ao mesmo tempo repugnando-
me toda afetação de silêncio superior, coloquei uma resposta a ela e a
seus comparsas no meu website https://olavodecarvalho. org/, onde
mostro como essa senhora, por inépcia furiosa, prova o que queria
desmentir e desmente o que queria provar. E, doravante, chega de
explicações: qualquer nova tentativa de fazer do meu artigo “Tortura e
terrorismo" uma apologia da tortura será respondida diretamente com
um processo judicial.
O Globo, 27 de janeiro de 2001
T 
Ele não é um militante anti�delista: é só um
sujeito que conhece Cuba porque ajudou a fazê-
la
Oscar Luís Geerken foi assessor do Comitê Revolucionário cubano.
Dedicou 16 anos de sua vida à causa �delista, até que, em 1993, fugiu
para Miami. Não se ligou a nenhuma organização contra-
revolucionária. Não pretende ser mais que uma testemunha solitária, e
foi nessa condição que, convidado por um amigo, veio a Porto Alegre
para descrever, a quem desejeouvi-lo, alguns aspectos da economia
cubana que, de�nitivamente, não estão na pauta do Fórum Social
Mundial.
A imprensa gaúcha, com as poucas exceções de sempre, tem feito o
que pode para ocultar essa presença incômoda, que, se exibida em
tamanho natural, bastaria para desmoralizar o custoso
empreendimento publicitário subsidiado pelo governo estadual e
destinado a oferecer aos brasileiros o modelo de progresso e
prosperidade de algumas das nações mais atrasadas e miseráveis do
planeta.
Para compensar um pouco essa injustiça, abdico de expressar aqui
minha opinião pessoal e cedo este espaço a algumas frases aterradoras
ouvidas logo após um almoço, na quarta-feira, num rodízio gaúcho: 
— Sem nenhum exagero, hoje comi mais carne de vaca que durante
toda a década de 80 em Cuba. No máximo, às vezes, conseguíamos uns
pedaços de frango.
— Mas como as coisas chegaram a esse ponto? 
— Bem, a reforma agrária cubana distribuiu as terras férteis entre as
fazendas estatais e os camponeses independentes. Aquelas, embora
tendo capital, equipamentos, fertilizantes e assistência técnica, nada
conseguiram produzir, enquanto os camponeses, sem nada disso,
produziam alguma coisa. Como isso dava má impressão, foram
acusados de vender no mercado negro, de elevar arti�cialmente os
preços, de trair a revolução. Perderam suas terras e muitos foram para
a cadeia. A produção de alimentos em Cuba tornou-se irrisória.
Mesmo produtos de primeira necessidade, como leite em pó e
papinhas para nenês, que antes da revolução eram feitos em Havana,
depois da reforma agrária tiveram de ser importados.
— E os novos restaurantes que o governo liberou para a iniciativa
privada? 
— Cada restaurante pode ter no máximo 12 cadeiras, e mesmo assim é
difícil ter o que servir. O sujeito oferece, por exemplo, um frango.
Passa o �scal e pergunta: “Onde comprou?". É claro que foi no
mercado negro. Onde mais poderia ser? Aí o restaurante é fechado e o
camarada vai preso.
— Mas a situação não pode ser ruim como em nossas favelas.
— Em matéria de alimentação, o favelado brasileiro está melhor
servido que o cidadão médio cubano. Em assistência médica e
educação, o cubano ganha, mas já ganhava antes da revolução.
— E os salários? 
— Para você fazer uma idéia, um amigo meu, que é cirurgião, ganha
430 pesos cubanos por mês: mais ou menos US$ 15.
Já sei que, de Cuba, virão nos próximos dias informações de que o
homem é um maluco, é um farsante, é um isto, um aquilo, e receberão
toda a atenção que a imprensa local negou ao acusado. Para a massa
puerilizada pela propaganda, a credibilidade de uma calúnia é
diretamente proporcional a sua difusão, mas o homem experiente sabe
que, para sujar bem, é preciso estar bem sujo: é mais fácil para Fidel
Castro sujar a reputação da testemunha que limpar o que ela viu em
sua ilha.
..: Dada a prioridade das declarações de Geerken, minha resposta
ao deputado José Dirceu, planejada de início para sair aqui, será
colocada em minha homepage, http:// www.olavodecarvalho.org,1
durante a próxima semana.
Época, 27 de janeiro de 2001
P  
Já tive a ocasião de observar que a propaganda petista, investindo
pesado na imagem de honestidade incorruptível e no discurso de
inculpação moralista, �ca, ela própria, não apenas aquém dos padrões
de qualquer código moral superior, mas muito abaixo das exigências
mais corriqueiras do Código de Proteção ao Consumidor.
Ela acaba de con�rmar isso, com os outdoors com que cobriu a
cidade de Porto Alegre nos primeiros dias do Fórum Social Mundial.
Eles apregoam que o partido “é contra toda injustiça, em qualquer
lugar do mundo". Essa propaganda é uma fraude em toda a extensão
da palavra, e o partido deveria ser responsabilizado judicialmente por
mentir aos eleitores de maneira tão cínica e descarada.
De um lado, são notórios os esforços dos líderes petistas para
disfarçar e acobertar as crueldades e violências do regime cubano,
mais vastas, mais graves e mais atuais que aquelas que eles próprios,
�ngindo altos sentimentos de indignação ética, denunciam no General
Pinochet.
Neste mesmo momento, o médico Elias Biscet, reconhecido pela
Anistia Internacional como prisioneiro de consciência, sofre torturas
sem �m num cárcere em Havana, pelo simples fato de opor-se à
política o�cial de abortos em massa. E que faz o  ? Denuncia o
crime? Expulsa de suas �leiras aquele horrendo ex-padreco que
proclamou a Cuba de Fidel “o reino de Deus na Terra"? Não. Em vez
disso, o governo petista do Rio Grande do Sul patrocina com dinheiro
público esse grotesco festival de propaganda �delista que é o Fórum
Social Mundial.
A Anistia Internacional acaba de denunciar a morte de 77 membros
da seita Falun Gong em prisões chinesas, e que faz o  ? Alardeia o
fato, com palavras emocionadas, do alto da tribuna do Fórum Social
Mundial? Nada. Discursa contra nações democráticas que protegem
refugiados e acolhem perseguidos políticos de todas as proveniências
ideológicas.
O ex-assessor do Comitê Revolucionário Cubano, Oscar Luís
Geerken, vem a Porto Alegre com seus recursos pessoais, para contar
aos gaúchos os crimes e atrocidades da revolução que ele mesmo
ajudou a dominar seu país, e que fazem os petistas e seus solícitos
servidores jornalísticos? Ajudam-no a combater a injustiça “em
qualquer lugar do mundo"? Não. Fazem tudo para ocultar a sua
presença incômoda, quando não para sujar a reputação desse
combatente solitário mediante insinuações sórdidas, em linguagem
copiada ipsis litteris dos discursos caluniosos com que Fidel Castro se
evade das denúncias irrespondíveis dos refugiados cubanos de Miami.
Sim, o cartaz do  é pura propaganda enganosa, como é propaganda
enganosa a declaração do governador Olívio Dutra, de que o gasto de
dinheiro público com esse circo comunista se justi�ca como
“investimento", por trazer turistas e seu dinheiro para a cidade de
Porto Alegre. Que bela desculpa! Se ela valesse alguma coisa, valeria
muito mais para justi�car um congresso de turistas neoliberais, que, a
darmos crédito ao que se diz no próprio Fórum, têm muito mais
dinheiro.
Para mim, esse Fórum foi a pá de cal nas pretensões petistas de
encarnar algo de moralmente digno e saudável. Propaganda sectária
travestida de debate, apologia de regimes escravistas envolta em
pompas de guerra santa contra a miséria, nele o discurso monológico
de uma ideologia sociopática só não ocupou todo o espaço porque
umas centenas de jovens corajosos, de doze diretórios estudantis
gaúchos, invadiram o plenário para vaiar os Olívios, Lulas e Zés
Dirceus e, sem deixar-se atemorizar pela pressão policial, dizer-lhes
umas verdades na cara, resumidas no refrão: “O Fórum tem um
milhão; a educação, nem um tostão".
Excetuado esse instante de sinceridade, o Fórum foi aquele festival de
oratória canina e autobeati�cação que, de uns anos para cá, assinala
indefectivelmente o estilo esquerdista de ser. Contemplando esse
espetáculo abjeto, perdi o pouco de respeito que ainda poderia ter por
essa gente, e declaro alto e bom som: mais até do que o velho Partido
Comunista, que no fundo da sua produção industrial de mentiras
conservava ao menos a �delidade a uma doutrina explícita em nome
da qual podia ser cobrado, o  , que usa de todas as doutrinas
conforme lhe convenham, e que tanto pode ser marxista como
envergar a máscara trabalhista, socialdemocrata ou social-cristã
sempre que julgue que esses disfarces o aproximarão do poder, tornou-
se a encarnação da falsidade escorregadia e do maquiavelismo
oportunista.
***
Agora, uma atençãozinha aos meus críticos.
Na revista Nao-til número 73, o articulista Marco Antônio Trisch
Mendonça, protestando contra a abertura de espaço na imprensa para
estas minhas considerações quinzenais, concede no entanto metade da
sua coluna à transcrição de uma delas. Não nego que gostei dessa parte
do seu artigo. Na metade que lhe resta, ele informa que lambeu a
Retórica de Aristóteles, o que deve ser verdade, por inusitado que
pareça esse modo de absorção de conhecimentos, e também que é
comunista,coisa que ninguém jamais suspeitaria, não é mesmo? Em
seguida, interpretando uma frase na qual digo que os educadores
esquerdistas, em vez de alfabetizar seus discípulos, querem adestrá-los
para o ataque como se fossem cães, ele entende que chamo esses
discípulos de cães — o que mostra que pelo menos no seu caso o
adestramento obteve êxito, ao ponto de dispensar a alfabetização quase
que por completo. No momento culminante da sua argumentação, ele
declara que sou muito histérico, e esta horrível constatação
psiquiátrica o deixa num tal estado de nervos que ele próprio cai
vítima de tartamudez histérica e, em transe, exclama: “Não sei o que
dizer!" — uma asserção que não hesito em admitir como incontestável
e auto-evidente.
Já o tal Juremir não se cansa. Quer por toda lei dizer alguma coisa
contra mim. Quando não encontra nada, apela a algo que pelo menos
pareça contra. Com o ar de quem vai soltar um petardo, fazer um
arraso, me desmoralizar por completo, ele informa aos leitores do
Correio do Povo do dia 14 que dei cursos de astrologia e sou autor de
alguns livros a respeito. Omite, obviamente, que essa informação está
acessível no meu site, e que ela não tem nada de escandaloso, exceto
aos olhos de quem, como o próprio Juremir, desconheça a distinção
entre os dois sentidos da palavra “astrologia": de um lado, a vulgar
técnica preditiva, de outro a simbólica cosmológica das Artes Liberais,
sem a qual não se compreende uma só linha de Dante ou de Santo
Tomás, e que hoje é matéria de conhecimento obrigatório para todo
estudante de histórias das idéias em qualquer centro civilizado. A
ignorância do Juremir, no caso, é tão vasta que lhe encobre o horizonte
inteiro, levando-o a supor que todos os seus leitores tomarão a palavra
“astrologia" no seu sentido pop, o único que ele conhece, e daí tirarão
conclusões temíveis para a minha reputação intelectual. Esse Juremir é
realmente um caso para a assistência social. Não posso sequer chamá-
lo malicioso. A malícia dele é a de um menino que, tendo feito cocô
nas calças, dá um sorrisinho de orgulho maquiavélico, achando que
cometeu uma perversidade digna do Marquês de Sade.
Zero Hora, 28 de janeiro de 2001
S  A
Cuba é o único país do Ocidente onde o cidadão pode ser preso por
mandar batizar um �lho. Quando um ex-sacerdote diz ver nesse país
“o reino de Deus na Terra", está claro que ele não se despiu apenas da
batina, nem da fé católica, mas dos últimos vestígios de moral cristã,
mesmo laicizada, que ainda pudessem restar no seu coração de
apóstata.
Isso não quer dizer que seja um ateu. O ateísmo é uma rejeição da fé,
não uma inversão dela. A inversão coloca no topo o que estava
embaixo, chamando o inferno de céu, odiando o que Deus ama e
amando o que Deus abomina. O Anticristo não é um não-Cristo, uma
supressão do Cristo: é um Cristo às avessas, que ilude as multidões
porque corresponde ao Cristo ponto por ponto, apenas de cabeça para
baixo. Por isso o ex-sacerdote não se torna ateu. De certo modo,
continua sacerdote. Sem isso, não poderia o�ciar o rito diante do
cruci�xo invertido.
A inversão não troca somente o alto pelo baixo, mas o interior pelo
exterior. Toda religião, e o cristianismo também, possui um núcleo de
doutrina imutável e uma in�nidade de símbolos exteriores que
mudam com o tempo, re�etindo a adaptação da fé às modas culturais e
às variações do imaginário popular.
Numa época com forte senso da hierarquia, a imagem de Cristo Rei
sugeria a analogia da Nova Aliança com a estabilidade da ordem social
e cósmica. Numa sociedade democrática, predomina a imagem do
Cristo simples e popular, a circular anônimo entre mendigos e
prostitutas. Cristo contém em si, inseparavelmente, a autoridade e a
simplicidade. A moda cultural enfatizará autonomamente uma ou
outra, de maneira que ela acabe por se tornar, sozinha, o emblema do
cristianismo. A essa altura, que faz a Igreja do Anticristo? Enverga esse
emblema e o ostenta com tal espalhafato, que ele acaba por encobrir e
substituir o núcleo da fé, jogando-o fora em nome de algo que, aos
olhos da multidão, passa pelo mais puro cristianismo.
A divinização dos símbolos da realeza permitiu que a autoridade do
Cristo Rei personi�cada no monarca legitimasse, sem grande
escândalo público, a matança de bispos e santos. Numa época de
igualitarismo, a moda cultural é a “igreja dos pobres". Em seu nome
são renegados e abolidos os Dez Mandamentos, o Credo e cada
palavra do Evangelho, sem que ninguém se dê conta de ter-se afastado
do cristianismo um só milímetro. Proibir a missa, criminalizar o
batismo, matar multidões de crentes tornam-se provas de profunda fé
cristã.
Quanto mais adventício, periférico e desprezível é o símbolo, maior
seu poder de usurpar o lugar do simbolizado. Não conhecemos com
certeza, por exemplo, a �gura real do Jesus histórico. Todas as suas
representações são imaginárias. Algumas épocas conceberam-no com
os traços nobres de um príncipe, outras com a �sionomia rústica de
um camponês; umas, como um adulto atlético, de olhar severo; outras,
como um jovem de expressão sonhadora e barba rala. Na nossa época,
onde à moda populista se somou a idolatria da juventude, veio a
predominar esta última imagem. E a coincidência fortuita dela com os
traços de Ernesto Che Guevara basta para dar verossimilhança à
identidade essencial desse genocida frio e psicopata com o próprio
Jesus Cristo, proclamada pelo sacerdote acima referido.
Esaú trocou sua primogenitura por um prato de lentilhas, que ao
menos o alimentou por umas horas; o sacerdote de que estou falando
sugere que a troquemos pela contemplação idiota de um pôster que, se
fosse o dos Beatles, funcionaria igualmente bem para essa �nalidade.
Mas quem é o tal sacerdote? Alusões e indiretas, sobretudo proferidas
com ar de inocência, não são do meu estilo. Se me perguntarem se
estou falando do tal de Betto, responderei que indiscutivelmente sim,
com a ressalva de que não o aponto como indivíduo e sim como
amostra casual de um tipo cujo nome é legião. Tanto que chego a
confundi-lo com o Sr. Boff, em razão da xifopagia espiritual que os
une, e, não conseguindo distinguir nenhum dos dois do peruano
Gutierrez que de certo modo os gerou, poderia aplicar a qualquer dos
três a descrição acima, sem mudar uma só palavra. Pouco importam,
en�m, os nomes: o sacerdócio do Anticristo é missão impessoal como
um comissariado do povo na extinta  , e ninguém lhe vende a
alma sem entregar, com ela, a identidade pessoal.
Jornal da Tarde, 1º de fevereiro de 2001
A  
É lendo que se aprende a escrever — eis o tipo mesmo da fórmula
sintética que traz dentro muitas verdades, mas que de tão repetida
acaba valendo por si mesma, como um fetiche, esvaziada daqueles
conteúdos valiosos que, para ser apreendidos, requereriam que a
fórmula fosse antes negada e relativizada dialeticamente do que aceita
sem mais nem menos.
Ler, sim, mas ler o quê? E basta ler ou é preciso fazer algo mais com o
que se lê? Quando a fórmula passa a substituir estas duas perguntas
em vez de suscitá-las, ela já não vale mais nada.
A seleção das leituras supõe muitas leituras, e não haveria saída deste
círculo vicioso sem a distinção de dois tipos: as leituras de mera
inspeção conduzem à escolha de um certo número de títulos para
leitura atenta e aprofundada. É esta que ensina a escrever, mas não se
chega a esta sem aquela. Aquela, por sua vez, supõe a busca e a
consulta. Não há, pois, leitura séria sem o domínio das cronologias,
bibliogra�as, enciclopédias, resenhas históricas gerais. O sujeito que
nunca tenha lido um livro até o �m, mas que de tanto vasculhar
índices e arquivos tenha adquirido uma visão sistêmica do que deve ler
nos anos seguintes, já é um homem mais culto do que aquele que, de
cara, tenha mergulhado na Divina Comédia ou na Crítica da razão
pura sem saber de onde saíram nem por que as está lendo.
Mas há também aquilo que, se não me engano, foi Borges quem disse:
“Para compreender um único livro, é preciso ter lido muitos livros".

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