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GEOGRAFIA POLÍTICA 
AULA 1 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Prof. Pedro Vicente de Castro 
 
 
 
 
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CONVERSA INICIAL 
Nesta aula, você vai aprender sobre o conceito de poder e sua relação 
com o espaço geográfico. Poder é um conceito central no estudo da política. 
Como indivíduos ou grupos adquirem, perdem ou transferem o poder político, 
mas também como esse poder é criado, bem como destruído ou limitado, são 
objetos clássicos da sociologia e da ciência política. Eleições frequentemente 
envolvem a aquisição de poder por um indivíduo ou grupo e a perda desse poder 
pelos incumbentes, bem como a transferência pacífica desses para os vitoriosos. 
Golpes de Estado e revoluções também, mas, nesses casos, a 
transferência envolve violência ou a ameaça de violência. A formação do Estado 
e das organizações administrativas pelas quais opera, burocracia e polícia, por 
sua vez, envolvem a criação do poder político. E sua divisão entre diferentes 
órgãos, como parlamentos e cortes judiciais, sua limitação. A decadência do 
Estado e suas organizações, por fim, sua destruição. 
Mas o que é poder? Teóricos da política discutem o que é poder há 
séculos. “Poder” é, antes de tudo, uma palavra. Usamos essa palavra com 
sentidos diversos e para designar fenômenos diferentes entre si. Não existe uma 
essência do poder que existe no mundo, independentemente da maneira como 
usamos a palavra poder. 
Ainda assim, é útil entender os elementos que constituem e distinguem 
diferentes fenômenos que descrevemos com essa palavra. Sociólogos e 
cientistas políticos enfatizam três concepções de poder pertinentes para o 
campo da política: poder decisório, poder de agenda e poder ideológico. Nesta 
aula, você vai aprender sobre o que constitui e distingue essas três formas de 
poder político. 
Poder político se relaciona de diversas maneiras com espaço geográfico. 
O Estado como o conhecemos é uma organização que reivindica o monopólio 
do poder sobre um grupo de pessoas que é identificado principalmente pela sua 
localização geográfica. Os conceitos tradicionalmente usados para expressar 
isso são soberania e território. 
Todo o indivíduo dentro do território sobre o qual um Estado reivindica 
soberania está sujeito ao seu poder. Ou, pelo menos, é isso que o Estado 
reivindica. Nesta aula, além de ser introduzido aos conceitos de soberania e 
território, você vai ver que, mais do que uma descrição da realidade, eles são 
 
 
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termos retóricos, usados por Estados para legitimarem seu poder e que não 
refletem toda a complexidade de relações entre poder e espaço geográfico no 
mundo real. 
TEMA 1 – PODER DECISÓRIO 
Frequentemente, quando dizemos que alguém tem poder, estamos 
dizendo que ele é capaz de fazer os outros agirem da maneira como ele deseja. 
Essa é a noção mais intuitiva de poder político: a capacidade de fazer os outros 
agirem como se deseja. Poder, nessa visão, é uma relação entre dois indivíduos. 
Trata-se de uma relação assimétrica, unidirecional: o indivíduo “A” deseja e “B” 
age em conformidade com esse desejo. 
Essa relação também supõe um cenário que cientistas sociais chamam 
de contrafactual, isto é, supõe que as coisas seriam diferentes se não houvesse 
uma relação de poder entre esses indivíduos. “B” age da forma como age porque 
“A” assim desejou. Se “A” não tivesse poder sobre “B”, “B” agiria de outra forma. 
Essa noção intuitiva de poder é comum às três concepções de poder que 
veremos na aula. O que as distingue é a maneira como entendem que é possível 
que “A” leve “B” a agir da forma como ele deseja. Uma maneira em como isso 
pode acontecer é expressa: “A” comanda explicitamente que “B” aja de certa 
forma e “B” obedece. 
Essa forma de poder expresso, explícito, é capturado pela concepção de 
poder decisório. Poder decisório é expresso, explícito, o que significa que seu 
exercício é diretamente observável. Observamos o exercício do poder decisório 
sempre que um indivíduo ou grupo decide e outro cumpre essa decisão. Esse 
tipo de poder é observável em relações hierárquicas: aquelas entre o patrão e 
seus empregados, entre os pais e seus filhos etc. Em todos esses casos, 
podemos observar diretamente uma parte mandando e outra obedecendo. 
No contexto da política, observamos o poder decisório sempre que um 
indivíduo ou grupo toma uma decisão que vincula outros: isto é, quando outros 
são obrigados a segui-la independentemente dos seus próprios desejos. O 
exemplo central em um país democrático é a produção legislativa: quando o 
parlamento aprova uma lei, o que vincula toda a população do país, ele exerce 
poder sobre essa população. 
Mas podemos ser mais específicos: o parlamento decide pela regra da 
maioria; a minoria, derrotada, desaprova a decisão. Por isso, é a maioria 
 
 
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parlamentar que exerce poder sobre a população. Em um regime presidencial, o 
presidente pode vetar uma lei aprovada pelo parlamento. Em geral, o veto pode 
ser derrubado por uma maioria qualificada, isto é, uma maioria superior a 50% 
mais um dos votos. 
Se aqueles que apoiam a lei vetada não alcançam a maioria exigida, 
prevalece o status quo, que eles visavam a alterar. Nesse caso, é a minoria 
parlamentar, junto com o presidente, que exercem poder sobre a população 
como um todo e como sobre a maioria parlamentar. 
Nós poderíamos ir adiante e especificar os partidos que constituem a 
maioria e a minoria, quais seus líderes etc., mas o importante é que, em cada 
uma dessa especificações, podemos identificar o exercício do poder se 
pudermos observar uma decisão sendo tomada. Por isso, para o cientista político 
Robert Dahl a tomada de decisão é o fenômeno empírico cuja observação 
identifica o exercício do poder. 
Poder é decisão e decisão é observável. Para identificar quem detêm o 
poder em uma sociedade, basta identificar quem toma decisões que vinculam 
aos demais. Em sociedades democráticas, esses indivíduos ou grupos ocupam 
posições formais no sistema político: são parlamentares, presidentes, juízes, 
governadores, prefeitos etc. Ter poder político, nessas sociedades, é ocupar 
alguma dessas posições ou exercer poder por algum meio sobre alguém que 
ocupa. 
A noção de poder decisório é relacionada com as noções de coerção e 
dominação, que são importantes no vocabulário da política. Coerção é a 
influência exercida sobre as ações de outra pessoa por meio da ameaça do uso 
da violência. Coerção, portanto, é um meio para o exercício do poder. Em uma 
visão, o poder do Estado é, em última instância, baseado na coerção: a violação 
das leis do Estado é passível de punição, em última instância, violenta: privação 
de bens ou liberdade contra a vontade de quem está sendo punido. 
Já dominação é a situação em que um indivíduo impõe sua vontade sobre 
outro. Ser dominado é estar sujeito à vontade de outro. Dominação envolve, 
portanto, poder, mas é um termo vago, disputado. Ele pode ser usado para 
designar desde especificamente o poder arbitrário de um monarca absoluto, 
contexto em que é tido por algo a ser combatido, até o poder limitado e 
regulamentado de um Estado constitucional contemporâneo (como na 
 
 
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expressão dominação burocrática, de Max Weber), contexto em que é algo 
inevitável. 
TEMA 2 – PODER DE AGENDA 
O poder decisório é exercido e observado por meio da decisão. Mas e as 
questões que não chegam a ser objeto de uma decisão? Toda decisão envolve 
uma escolha entre o status quo – isto é, a maneira como as coisas já são – e 
uma ou mais alternativas. Em parlamentos, em particular, projetos de lei são 
propostas de alteração do status quo. 
A decisão tomada pelo parlamento ao votar esses projetos não é entre 
duas ou mais alternativas ainda não implementadas, mas entre alguma 
alternativa desse tipo e o status quo, já implementado. A derrota de um projeto 
de lei significa a manutenção desse status quo. 
Para dar um exemplo: atualmente, o abortoé proibido no Brasil exceto em 
circunstâncias excepcionais, como quando a gravidez é fruto de estupro ou 
coloca a vida da gestante em risco. Esse é o status quo. Qualquer decisão sobre 
o aborto vai envolver uma escolha entre esse status quo e alguma alternativa. 
Vamos imaginar que uma maioria dos parlamentares queira flexibilizar a lei para 
permitir o aborto sob demanda. 
Se isso vai acontecer ou não, depende da vontade de quem tem o poder 
de colocar um projeto de lei nesse sentido em votação, isto é, da vontade de 
quem tem o poder de decidir se o Congresso vai decidir. Se esse indivíduo ou 
grupo for contrário à alteração do status quo, ele não colocará a matéria em 
votação. A consequência disso é que o status quo será mantido muito embora 
haja uma maioria a favor da sua alteração. 
Esse poder de decidir o que será objeto de decisão é capturado pela 
noção de poder de agenda. Agenda refere-se à pauta de um órgão decisório 
como o parlamento ou um tribunal: as matérias sobre as quais ele está 
“agendado” para decidir. Quem tem poder de agenda tem o poder de impedir 
que decisões cujo resultado lhes desagradaria sejam tomadas. 
Como no exemplo do aborto, quem tem o poder de agenda antecipa qual 
será o resultado da decisão. Se esse resultado lhe agrada, ele pauta a decisão. 
Caso contrário, ele não a pauta. O status quo se mantém porque o órgão que 
tem poder decisório não chega a tomar uma decisão. A decisão de pautar a 
decisão é expressa e observável. Mas a decisão de não a pautar, não. Ela é 
 
 
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simplesmente a consequência da ausência da decisão de pautar. Ela é, nesse 
sentido, uma não decisão. 
A noção de não decisão é central para a discussão dos sociólogos Peter 
Bachrach e Morton Baratz sobre as “duas faces do poder”. Bachrach e Baratz 
argumentam que poder decisório é apenas uma face do poder. O poder de tomar 
decisões que vinculam aos demais é, sem dúvida, poder. 
Mas não é a única forma de poder. O poder de decidir – e não decidir – 
se uma decisão será tomada é igualmente importante. Mas, enquanto o poder 
decisório é expresso e observável, o poder de agenda pode ser oculto e não 
observável. Quando ele é exercido por meio de uma não decisão, não há 
qualquer fenômeno empírico que evidencie esse poder. 
O que há é a ausência de um fenômeno: decisão. Mas a ausência de 
decisão pode se dever a duas causas diferentes: 1. aqueles que têm poder 
decisório estão satisfeitos com o status quo; ou 2. eles estão insatisfeitos, mas 
foram impedidos de tomar uma decisão alterando o status quo pela ausência de 
uma decisão daquele que tem poder de agenda. É difícil distinguir qual a 
verdadeira causa da não decisão. Logo, diferentemente do poder decisório, o 
poder de agenda pode ser oculto e não observável. 
Em países democráticos, chefes de governo, sejam presidentes ou 
primeiros-ministros, costumam gozar de iniciativa exclusiva em algumas 
matérias legislativas, isto é, somente eles podem propor projetos de lei sobre 
determinados assuntos. Geralmente, o parlamento pode alterar e emendar o 
projeto, mas não propor um por conta própria. Isso confere poder de agenda ao 
chefe de governo. 
Se antecipar que o parlamento vai alterar tanto o projeto a ponto de torná-
lo menos atraente que o status quo, ele simplesmente não propõe o projeto. Essa 
não decisão impede o parlamento de decidir e garante a manutenção do status 
quo, que o chefe de governo prefere à lei que o parlamento eventualmente 
aprovaria. 
Poder de agenda é frequentemente usado em ciência política para se 
referir à iniciativa legislativa de exclusividade do chefe de governo e a 
prerrogativas semelhantes. Mas a aplicação da expressão vai além disso. Ela se 
aplica sempre que algum processo social ou político permite que um indivíduo 
ou grupo mantenha uma questão política fora da agenda. 
 
 
7 
Um exemplo histórico importante é o fim da escravidão nos Estados 
Unidos. As lideranças políticas do período pós-independência sabiam que, se o 
fim da escravidão fosse votado pelo Congresso, ele seria aprovado. A escravidão 
contava com apoio incondicional apenas nos estados do sul, que não contavam 
com maioria no Congresso. O receio das lideranças era de que, se o Congresso 
acabasse com a escravidão, os estados do sul se separariam do restante do país 
(que foi o que, no fim das contas, aconteceu). 
Por isso, elas entraram em um acordo tácito para manter o fim da 
escravidão fora da agenda. Isso significava não apenas não submeter a questão 
a votação no Congresso, mas sequer discuti-la: os partidos políticos americanos 
da primeira metade do século XIX, silentes sobre a escravidão, eram fruto desse 
acordo tácito para a não politização do tema. O acordo só foi rompido com a 
emergência de um novo partido político, o republicano, comandado por novas 
lideranças e que tinha o abolicionismo como principal bandeira. 
TEMA 3 – PODER IDEOLÓGICO 
As concepções de poder decisório e de agenda supõem um conflito de 
desejos. Lembre-se que ambas supõem um cenário contrafactual; supõe que as 
coisas seriam diferentes se não houvesse uma relação de poder entre esses 
indivíduos. “B” age da forma como age porque “A” assim desejou. Se “A” não 
tivesse poder sobre “B”, “B” agiria de outra forma. 
No caso do poder decisório, “B” age da forma como age porque “A” tomou 
uma decisão expressa nesse sentido. No caso do poder de agenda, “B” age da 
forma como age porque isso é exigido sob o status quo e “A” impediu o status 
quo de ser alterado por meio de uma não decisão. Em ambos os casos, “B” agiria 
de outra forma se “A” não tivesse decidido ou se o status quo fosse outro. 
Uma situação em que isso pode ser o caso é aquela em que os desejos 
de “A” e “B” são conflitantes: “A” quer algo diferente do que “B” quer. “B” só age 
da forma como age porque “A” tem o poder de impor seu desejo a ela por meio 
de uma decisão ou uma não decisão. Se “A” não tivesse esse poder, “B” agiria 
da forma que deseja, que é contrária ao desejo da “A”. 
A concepção de poder ideológico aponta que essa não é a única situação 
em que “A” pode exercer poder sobre “B”. Isso também pode ocorrer muito 
embora os desejos de “A” e “B” não sejam conflitantes. Nessa situação, o poder 
de “A” não consiste em fazer “B” agir em desacordo com seus próprios desejos, 
 
 
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mas em fazer “B” desenvolver os desejos que “A” deseja que ela tenha: em fazer 
“B” querer o que “A” quer que ela queira. 
De acordo com a concepção de poder ideológico, há circunstâncias em 
que “B” agiria de outra forma se “A” não tivesse poder sobre ela não porque agiria 
da forma que deseja, mas porque teria outros desejos. Sob o poder de “A”, “B” 
age como deseja, mas seus desejos são diferentes daqueles que teria se não 
fosse sujeita ao poder de “A”. 
Esse é o ponto central da discussão do sociólogo Steven Lukes sobre a 
“terceira face do poder”. Lukes se inspira principalmente na tradição de teorias 
marxistas sobre ideologia. Essa tradição buscava explicar por que o capitalismo 
sobrevivia apesar de, de acordo com teorias marxistas, ser contra o interesse da 
maioria da população. 
Uma resposta é que o capitalismo não sobrevive apesar dos desejos 
dessa população, mas em virtude deles. A população na verdade apoia o 
sistema e é por isso que ele sobrevive. Acontece que os desejos da população 
são contrários aos seus “verdadeiros” interesses. A percepção que ela tem do 
seu próprio interesse é incorreta. Ela tem uma “falsa consciência” da realidade e 
do seu interesse em alterá-la. 
Isso nos leva à grande dificuldade de que a concepção de poder 
ideológico sofre: ela supõe que aquele que é dominado dessa forma têm uma 
falsa concepção do seu próprio interesse. Isso, por sua vez, depende de supor 
que as pessoas têm um verdadeiro interesse que pode ser diferente da 
percepção que elas próprias têm de qual seja. Isso, por sua vez, levanta a 
questão: Quem está em posiçãode identificar qual o verdadeiro interesse das 
pessoas? 
Como vimos, o poder decisório é expresso, observável: ele é evidenciado 
pela tomada de uma decisão que vincula aos demais. O poder de agenda nem 
sempre é: quando ele é exercido por meio de uma não decisão, pode ser difícil 
encontrar evidências de sua existência. Mas ambos supõem que há alguém que 
é obrigado a agir contra seu próprio desejo. Essa pessoa sabe disso e isso é, a 
princípio, observável. 
As concepções de poder decisório e de agenda tomam os desejos das 
pessoas pelo valor de face. Já o poder ideológico, não. Alguém pode ser 
dominado ideologicamente muito embora não seja obrigado a agir contra seu 
desejo. Os desejos das pessoas são suspeitos. Eles podem ser contrários aos 
 
 
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seus verdadeiros interesses. Mas esses verdadeiros interesses não são 
observáveis, nem mesmo a princípio. Eles não são um fenômeno empírico. Eles 
são uma suposição teórica, contrafactual sobre que desejos as pessoas teriam 
caso não fossem ideologicamente dominadas. 
Essa desconfiança em relação aos desejos das pessoas leva ao risco de 
que a concepção de poder ideológico seja usada por um grupo para justificar sua 
ação contra esses desejos. Esse grupo pode argumentar que está agindo contra 
os desejos das pessoas, mas em conformidade com seus verdadeiros 
interesses. A população não sabe quais são esses interesses, mas os membros 
desse grupo sabem. 
E isso justifica que desconsiderem os desejos dela. Dessa forma, o grupo 
pode exercer poder decisório e de agenda sobre a população, ao mesmo tempo 
em que reivindica que a está libertando do poder ideológico. É o que muitas 
“vanguardas revolucionárias” fizeram no século XX. O problema é que, sendo os 
verdadeiros interesses das pessoas uma suposição teórica, a reivindicação 
dessas vanguardas não pode ser desmentida por fatos. 
O fato de que a população discorda de suas ações é irrelevante, dado que 
seus desejos não refletem seus verdadeiros interesses. A concepção de poder 
ideológico corre o risco de virar uma carta branca para que grupos dominem 
pessoas reais dizendo que estão libertando seus verdadeiros “eus”, que são 
puramente imaginários, como o filósofo Isaiah Berlin alerta. 
Muito embora sofra com essa dificuldade, a concepção de poder 
ideológico não precisa ser descartada. Ela é pertinente sempre que se 
argumenta que um grupo, além de dominado pelo poder decisório e de agenda 
de outro, ainda “internaliza” o discurso que justifica sua dominação: como o 
camponês que se curva sempre que o senhor de sua terra passa. 
Contudo, como o antropólogo James Scott ressalva, esses argumentos 
devem ser encarados com ceticismo: o dominado pode repetir o discurso que 
justifica sua condição como uma estratégia de sobrevivência. Dado que ele não 
tem o poder de alterar sua condição, protestar verbalmente contra ela pode só 
tornar sua situação ainda pior. Isso não significa necessariamente que ele aceita 
essa situação. Apenas que é impotente para alterá-la. 
A concepção de poder ideológico é útil para entender o conceito de 
autoridade. Poder é um elemento da autoridade. Mas a autoridade vai além de 
poder. É o poder acompanhado da reivindicação de que ele é justo, bom ou 
 
 
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legítimo. Se aquele que é dominado aceita essa reivindicação, podemos dizer 
que ele é dominado ideologicamente. 
Em teoria, a fonte do poder pode ser exclusivamente a aceitação da 
reivindicação de autoridade. Se “B” aceita que é justo, bom ou legítimo que “A” 
mande em si, então isso é suficiente para que “B” obedeça a “A”. Mas, em casos 
que envolvem política, esse raramente é o caso. A autoridade geralmente 
acompanha o exercício do poder por outros meios. 
TEMA 4 – SOBERANIA 
Uma maneira influente de conceber a relação entre poder político e 
espaço geográfico é por meio da díade de conceitos soberania-território. 
Soberania é um termo importante na história do pensamento político. Um sentido 
usual refere-se ao caráter supostamente ilimitado e incontrastado do poder de 
que um Estado gozaria em relação àqueles sujeitos à sua autoridade. 
Outro sentido, associado ao primeiro refere-se à suposta ausência de uma 
autoridade superior aos Estados, que possa lhes impor limites. Essa noção de 
soberania é importante na maneira como concebemos as relações entre os 
Estados: nessas relações, eles não estariam sujeitos a nenhuma autoridade a 
não ser aquela com que eles próprios consentem por meio de tratados 
internacionais. 
Historicamente, contudo, soberania é um termo retórico usado por 
apologistas para justificar o poder que monarcas estavam crescentemente 
adquirindo, mas ainda não possuíam de fato e, na verdade, nunca viriam a 
possuir. Por isso, o conceito de soberania reflete mais uma ambição do que uma 
realidade. 
A relação entre príncipes e a Igreja Católica sempre foi contenciosa. Mas, 
até o fim da Idade Média, a sujeição dos príncipes à autoridade da Igreja, ao 
menos simbolicamente, era amplamente reconhecida. A Igreja não dispunha de 
mecanismos para fazer valer sua vontade contra a de um príncipe por contra 
própria. Mas a declaração de um papa tomando partido em uma disputa entre 
pretendentes ao trono, por exemplo, justificava o recurso à força por aquele 
apoiado pela Igreja. Príncipes também tinham de conviver com nobres que 
tinham fontes de poder próprias, na forma de riquezas, tropas e alianças 
políticas. 
 
 
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Conforme monarcas afirmavam sua independência em relação à Igreja e 
buscavam impor-se sobre a nobreza, seus apologistas buscavam um 
vocabulário para justificar esses desenvolvimentos. É nesse contexto que o 
conceito de soberania ganha centralidade no vocabulário político europeu. 
Vários autores o mobilizam na defesa de seu arranjo constitucional preferido. 
Mas um que é marcante e cuja discussão deixa claro o caráter aspiracional (em 
vez de descritivo) do conceito é Thomas Hobbes. Hobbes é um defensor do 
caráter absoluto do poder do soberano. 
Seu argumento é de que isso é um pré-requisito para a manutenção da 
paz civil, que, por sua vez, é um pré-requisito para o desempenho de qualquer 
atividade humana que tenha valor. Na ausência de um soberano absoluto, 
estaríamos no “estado de natureza”. 
O estado de natureza era um artifício retórico utilizado por muitos autores 
nos séculos XVII-XVIII em argumentos sobre política. Trata-se de um cenário 
imaginário ou contrafactual: como seria o mundo se não houvessem instituições 
políticas? Cada autor pintava esse cenário da melhor forma para sustentar o 
argumento que queria fazer sobre como essas instituições deveriam ser. Hobbes 
pinta esse cenário de maneira sombria: 
Numa tal condição não há lugar para o trabalho, pois o seu fruto é 
incerto; consequentemente, não há cultivo da terra, nem navegação, 
nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há 
construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as 
coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da 
Terra, bem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há 
sociedade; e o que é pior de tudo, um medo contínuo e perigo de morte 
violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e 
curta. (p. 109) 
Para sair desse cenário, as pessoas precisam consentir com o poder 
absoluto de um soberano. Esse soberano então delegará seu poder a 
instituições inferiores para criar e aplicar leis e tomar as demais medidas 
necessárias para a manutenção da paz civil. Mas por que o poder do soberano 
precisa ser absoluto? Um soberano não pode tomar as medidas necessárias 
para manter a paz civil sem ter carta branca para fazer o que bem entender? A 
resposta de Hobbes é “não”. 
Caso haja limites para a autoridade do soberano, deverá haver algum 
órgão para violações desses limites e fazê-los valer, caso contrário eles serão 
inócuos. No limite, o conflito entre o soberano e esse órgão pode se tornar 
violentoe degringolar em guerra civil. Hobbes escreve na sequência da Guerra 
 
 
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Civil Inglesa, provocada precisamente por um conflito desse tipo: rei e 
parlamento discordavam sobre a existência de limitações à autoridade do 
primeiro e, eventualmente, foram levados a resolver suas diferenças no campo 
de batalha. O argumento de Hobbes não é mera abstração. Havia um referente 
concreto, compartilhado por todos, no momento em que ele escrevia. 
O poder absoluto, o que Hobbes designa por soberania, é a única que 
garante, portanto, a paz civil. Outros arranjos contêm o germe da guerra civil. 
Hobbes concede que esse poder pode ser exercido por uma assembleia, muito 
embora ache preferível depositá-lo em uma única pessoa. 
Seja como for, o arranjo constitucional que defende não é compatível com 
limites ao poder (na forma de direitos fundamentais, por exemplo), com 
separação dos poderes ou com federalismo, em que há a divisão de 
competências entre estados e governo federal. Isto é, o arranjo constitucional 
que expressa a soberania como Hobbes a via é incompatível com elementos dos 
arranjos constitucionais adotados por vários países atualmente. Isso reflete o 
fato de que, muito embora os argumentos de Hobbes tenham sido muito 
influentes, a proposta política específica que ele defendia não foi a vitoriosa. 
Aparentemente, não há soberano nos países contemporâneos. 
Uma possibilidade para conciliar direitos fundamentais e separação de 
poderes com o conceito de soberania é argumentar, como o teórico político Carl 
Schmidt, que, embora exerça um poder absoluto na política cotidiana, em 
situações extraordinárias, de emergência nacional, alguém precisa assumir um 
poder desse tipo. Caso contrário, o arranjo constitucional entrará em colapso. 
O poder absoluto, portanto, longe de incompatível com o poder limitado 
da política cotidiana, é uma pré-condição para ele. Mas é no mínimo duvidoso 
que, mesmo que seja necessário conceder poder absoluto a um indivíduo em 
situações de emergência nacional, isso signifique que ele é o soberano e, 
portanto, na verdade goza desse poder o tempo todo. 
Outra possibilidade é argumentar que a soberania não reside em um 
indivíduo, mas no povo como um todo, que nunca abre mão do poder de 
substituir o arranjo constitucional existente por outro. Mas é difícil conceber como 
isso pode ser verdade quando o povo nunca exerce e, na verdade, é incapaz de 
exercer qualquer poder senão por meio do arranjo constitucional existente. 
Em vez de tentar salvar a ideia de soberania, podemos simplesmente 
reconhecer que ela foi, desde o princípio, um termo retórico, que reflete mais 
 
 
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uma ambição do que uma realidade. Ela era usada pelos apologistas de 
monarcas europeus para justificar a pretensão que esses governantes tinham ao 
poder absoluto. 
Esses monarcas realmente tiveram sucesso em se desvencilhar da Igreja 
Católica e consolidar seu domínio sobre a nobreza de seus países. Mas eles 
nunca chegaram a exercer o poder absoluto que sua retórica oficial alardeava. 
Isso é ainda mais verdade dos governantes contemporâneos de países onde há 
direitos fundamentais, separação de poderes ou federalismo. 
TEMA 5 – TERRITÓRIO 
Território é o outro lado da moeda da soberania. No imaginário político 
contemporâneo, não há indivíduo ou órgão que seja soberano, mas o Estado 
como um todo seria. A soberania seria um atributo do Estado, ainda que Estado 
refira-se a diversas organizações políticas diferentes, como parlamento, 
judiciário, burocracia e polícia. De alguma forma, em seu conjunto, essas 
organizações políticas deteriam a soberania. 
Todo Estado seria soberano. Mas existem vários Estados. Como todos 
podem ser soberanos ao mesmo tempo? Como todos podem ter poder absoluto 
ao mesmo tempo? Se um tem poder absoluto, isso não significa que os demais 
estão sujeitos a ele e, por isso, não podem ter igualmente poder absoluto? 
Território é a resposta para essas questões. 
No imaginário político contemporâneo, Estados exercem soberania sobre 
um determinado espaço geográfico chamado território. Diferentes Estados 
podem exercer soberania sobre territórios não coincidentes, mas não sobre o 
mesmo território. 
Nesse contexto, território não é um pedaço de terra. Não é algo que tenha 
uma existência física. Estados não exercem poder sobre pedaços de terra. Eles 
exercem poder sobre pessoas. Território é o que determina sobre quais pessoas 
Estados exercem poder. 
Fronteiras, que delimitam um território no espaço geográfico, marcam 
uma descontinuidade na relação entre os Estados e as pessoas: aquelas 
localizadas para cá das fronteiras e, portanto, dentro do território estão 
submetidas ao poder do Estado de uma maneira diferente do que aquelas que 
estão para lá das fronteiras e, portanto, fora do território. 
 
 
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Não que Estados não exerçam poder sobre aqueles que estão fora do 
território ou tratem igualmente aqueles que estão dentro. Mas o território é o que 
determina que tipo de poder o Estado pode ou não pode exercer sobre as 
pessoas. A cidadania que pode estender o poder do Estado sobre alguém para 
além do território ou limitá-lo para aquém é ela própria determinada pelo 
território: deriva do local de nascimento da pessoa ou do local de nascimento de 
seus antepassados. 
Essa visão da relação entre poder e território leva à uma concepção do 
exercício do poder político igualmente marcada pela descontinuidade da 
fronteira. Dentro do território, teríamos o Estado como fonte de poder e 
autoridade últimas, todas as demais organizações políticas sendo subordinadas 
a ele: o plano da política interna. 
Para além do território, teríamos Estados relacionando-se entre si e 
exclusivamente entre si: o plano da política externa. Esse modelo, contudo, é 
uma distorção da realidade e pode nos levar a ignorar ou compreender mal as 
maneiras em que ela diverge do esperado. Isso é o que o geógrafo John Agnew 
chama de armadilha territorial. 
Na verdade, não existe a forte descontinuidade entre política interna e 
política externa que a visão comum sobre a relação entre poder e território 
sugere. Estados não exercem um poder incontrastado dentro de seu território. 
Frequentemente, convivem com outras organizações, não subordinadas a ele, 
que também exercem poder. Há Estados cujos territórios são parcialmente 
controlados por organizações criminosas ou guerrilhas armadas, inspiradas por 
ideologias extremistas ou não. 
O caso de Estados “falidos”, como a Somália, cujo governo reconhecido 
internacionalmente só tem controle militar da região ao redor da capital, 
Mogadíscio, é um exemplo extremo de uma realidade que, em menor grau, é 
encontrada em muitos países. A armadilha territorial nos leva a ver esses casos 
como excepcionais e desviantes. Mas, na verdade, historicamente o convívio e 
a disputa entre diferentes organizações políticos em um mesmo território é a 
norma, não a exceção. 
De maneira semelhante, não há uma separação drástica entre política 
interna e política externa. Política externa é frequentemente praticada com vistas 
à política interna: uma guerra vitoriosa pode aumentar o apoio doméstico de um 
líder político e fazer a diferença para sua sobrevivência. Além disso, Estados não 
 
 
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são como indivíduos com vontades próprios que se relacionam entre si. São um 
conjunto de instituições povoados por indivíduos e grupos. 
Esses grupos interagem entre si influenciando e sendo influenciados por 
aqueles sob outros Estados. Ao longo da história europeia, a interferência de 
outros príncipes em disputas internas pelo poder foi a regra. Disputas sobre a 
sucessão eram frequentemente o estopim para as guerras e o redesenho das 
fronteiras entre os países. 
Já no século XX, durante a Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética 
estavam envolvidos na política interna dos outros países, apoiando grupos 
políticos simpáticos e tentandoinfluenciar a partir de dentro a política desses 
países em um sentido favorável aos seus interesses. 
Isso não significa que a díade de conceitos soberania-território deva ser 
descartada, mas sim que os discursos que os mobilizam devem ser tomados 
com um grão de sal. Como ocorre com soberania, os discursos que mobilizam o 
conceito de território são frequentemente mais aspiracionais que descritivos; 
refletem uma ambição, não uma realidade. São discursos que buscam afirmam 
o poder do Estado contra organizações políticas concorrentes. Mas isso não nos 
deve cegar para o fato de que elas existem. 
NA PRÁTICA 
Dramas políticos, para o cinema e para a televisão, costumam trazer 
muitos exemplos de poder decisório e poder de agenda. Um clássico do gênero 
é Mr. Smitth goes to Washington (que no Brasil recebeu o infeliz título A mulher 
faz o homem). O filme retrata, entre outras coisas, um “filibuster” no Senado dos 
Estados Unidos. 
O “filibuster” é um instrumento pelo qual uma pessoa pode impedir o 
Senado de prosseguir com uma votação. Para derrubar um “filibuster”, é preciso 
uma supermaioria, de 60% dos votos. Isso significa que, se uma minoria de mais 
de 40% não quiser que a votação seja concluída porque antecipa que será 
derrotada, ela pode impedir que a votação prossiga. Trata-se de um clássico 
exemplo de poder de agenda. 
Sobre o poder que a ideologia pode ter de fazer as pessoas adquirirem 
uma imagem falsa da realidade e, por isso, colaborarem com seus dominadores, 
um exemplo clássico é o romance 1984, de George Orwell. Orwell retrata uma 
sociedade imaginária em que a ideologia foi longe a ponto de alterar a própria 
 
 
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língua que as pessoas falam e privá-las do vocabulário para caracterizar sua 
própria condição de dominação. 
FINALIZANDO 
Nesta aula, você aprendeu sobre o conceito de poder e sua relação com 
o espaço geográfico. Poder é um conceito central no estudo da política. Teóricos 
da política discutem o que é poder há século. Você também aprendeu sobre três 
concepções de poder pertinentes para o campo da política que são enfatizadas 
por sociólogos e cientistas: poder decisório, poder de agenda e poder ideológico. 
Poder decisório é o poder de tomar uma decisão que se vincula aos 
demais. Poder de agenda é o poder de decidir sobre que questões serão 
decididas. Já poder ideológico é o poder de fazer os outros desenvolverem os 
desejos que se deseja que eles tenham. Cada concepção aponta para um 
aspecto importante da política, mas cada uma também tem suas limitações e 
fraquezas. 
Nesta aula, você aprendeu ainda sobre os conceitos de soberania e 
território. Soberania é o poder ilimitado e incontrastado supostamente exercido 
pelo Estado. Esse poder é exercido sobre pessoas cuja relação com o Estado é 
determinada por sua relação com um espaço geográfico delimitado: o território. 
Você viu como soberania e território refletem mais uma ambição dos 
Estados do que uma realidade. Nenhum Estado exerce o poder ilimitado que 
teóricos políticos como Thomas Hobbes lhe atribuíram. E o poder de muitos 
Estados convive e é desafiado pelo de outras organizações dentro do mesmo 
território. A forma de Estado que chega mais perto de realizar as ambições 
expressas pela díade de conceitos soberania-território é o Estado nacional. 
 
 
 
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REFERÊNCIAS 
BACHRACH, P.; BARATZ, M. S. Decisions and Nondecisions: an analytical 
framework. American Political Science Review, v. 57, n. 3, p. 632-642, 1963. 
BERLIN, I. Two Concepts of Liberty. Oxford: Oxford University Press, 1958. 
DAHL, R. A. The concept of power. Behavioral Science, v. 2, n. 3, p. 201-215, 
1957. 
LUKES, S. Power: a radical view. Macmillan International Higher Education, 
1974. 
SCOTT, J. C. Domination & the Arts of Resistance: Hidden Transcripts. New 
Haven: Yale University Press, 1992.

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