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O DIREITO E A MORAL

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Há relações necessárias entre o Direito e as normas morais de uma sociedade? Será que as normas jurídicas precisam ser consideradas boas pela população? Ou inexiste qualquer ponto de contato entre o direito e a moral?
Uma primeira resposta a tais indagações é trazida pela Teoria do Mínimo Ético, delineada pelo jurista Georg Jellinek (1851-1911). Tal teoria afirma que todas as normas jurídicas são normas morais. Especificamente, considera-se que as normas morais mais importantes da sociedade são transformadas, pelo Estado, em normas jurídicas.
Nesse sentido, a sociedade sempre considera corretas as normas jurídicas, não podendo existir tais normas que sejam vistas como imorais. Há normas morais que não se convertem em normas jurídicas, pois não são consideradas as mais importantes da sociedade.
Por exemplo, a proibição ao homicídio é uma norma moral que a sociedade, por meio do Estado, dada sua importância, transformou em jurídica. Por outro lado, existem regras de etiqueta social como, por exemplo, um cavalheiro abrir a porta para uma dama, que não são transformadas em jurídicas pelo Estado.
Mas nem todos concordam com a teoria do Mínimo Ético. Muitos afirmam que existem normas jurídicas imorais (contrárias à moral) e normas jurídica amorais (indiferentes à moral). A norma que define o valor do salário mínimo, por exemplo, é, inegavelmente, jurídica. Muitos, todavia, argumentam que seja imoral, tendo-se em vista o baixo valor especificado.
Há normas, ainda, amorais. São normas de caráter meramente técnico, cujo conteúdo não pode ser avaliado nem de modo positivo nem de modo negativo pela moral. Por exemplo, a norma jurídica que especifica que os carros devem parar na luz vermelha do semáforo. Por que a cor vermelha para parar? Por que não outra? Essa escolha não envolve questões morais, mas uma mera convenção técnica.
Uma última objeção ainda pode ser levantada: será que existe uma única moral na sociedade? Ou será que a sociedade possui várias morais que convivem simultaneamente? Se esta segunda pergunta puder ser respondida afirmativamente, então não podemos dizer que o direito sempre seja visto como moral por todos os membros da sociedade, pois existem várias morais sociais.
Outra teoria busca explicar essas relações, mas de um modo diametralmente oposto: a Teoria da Separação entre o Direito e a Moral.
Thomasius (1655-1728) afirma que não há ponto de contato entre as esferas analisadas. A Moral é um conjunto de regras que regula a esfera íntima dos seres humanos, sendo aplicável apenas no nível da consciência. O Direito, por sua vez, é um conjunto de regras que apenas regula a esfera externa dos comportamentos humanos, ou seja, a manifestação e a concretização desses comportamentos.
A teoria de Thomasius não explica satisfatoriamente, contudo, as regras da chamada moral social (costumes, etiqueta etc.), que se referem a comportamentos externos, sem grandes preocupações com a esfera íntima. Também não explica os casos em que o direito se preocupa com a esfera íntima das pessoas, como no caso da verificação de dolo ou culpa na prática de um crime (é necessário saber se o autor teve ou não a intenção de praticá-lo). Assim, não parece ser um critério adequado para justificar a separação entre os campos.
Ainda afirmando a separação entre Direito e Moral, podemos apontar o jurista Hans Kelsen (1881-1973). Sua visão, contudo, difere da de Thomasius.
Para Kelsen, não há qualquer diferença essencial entre as esferas. As regras morais são em tudo idênticas às normas jurídicas, salvo por um aspecto, por assim dizer, externo: as normas jurídicas são as normas morais com maior condição de se impor socialmente de modo eficaz. A diferença estaria no grau da força coercível por detrás da norma: o emissor da norma jurídica é mais “forte”, no sentido de poder concretizar socialmente sua ameaça, do que o emissor de uma norma moral.
Além disso, ele adota o princípio da relatividade da moral, admitindo que toda sociedade possui mais de um conjunto de regras morais, que podem julgar o direito de modos diversos. Um grupo social, que adota sua moral própria, pode considerar uma regra jurídica justa; outro grupo, da mesma sociedade, mas adotando outra moral, pode reputar tal regra jurídica injusta.
O fato de os grupos sociais poderem julgar o direito, todavia, não interfere no seu funcionamento. Em outras palavras, as normas jurídicas são criadas pelo próprio direito e somente deixam de existir se revogadas por ele. Enquanto existem, independentemente da opinião dos destinatários, podem impor seu comportamento. No momento em que uma nova norma jurídica é criada, basta que ela siga os procedimentos do próprio direito, sem precisar referir-se às outras normas morais, para passar a existir.
A visão de Kelsen afasta do direito a pretensão de estar preso, necessariamente, a um conteúdo superior ou distinto dele. Revela, com enorme precisão, que o direito moderno pode servir a diversas moralidades ao mesmo tempo, sem, contudo, ser reduzido a qualquer delas. Enquanto a força que impõe o direito (no caso, o Estado) for socialmente mais eficaz do que outras, suas regras deverão ser cumpridas independentemente das avaliações morais que possam receber.
Alguns autores, porém, perplexos ante a revelação kelseniana, refutam a possibilidade de relativismo moral e de o Direito não possuir qualquer ponto de contato com a Moral. Adotando a Teoria dos “círculos secantes”, elaborada por Claude du Pasquier, afirmam simplesmente que o conjunto das normas morais é parcialmente coincidente com o conjunto das normas jurídicas.
Assim, para tais autores, haveria regras morais não jurídicas e regras jurídicas amorais e imorais. Além disso, ambos os conjuntos possuiriam regras comuns, que são ao mesmo tempo morais e jurídicas. O exemplo outrora citado da proibição ao homicídio pode ser resgatado, estando, simultaneamente, em ambos os conjuntos.
Podemos filiar Miguel Reale à teoria dos círculos secantes. Para ele, embora possam existir normas jurídicas fora do universo da moral, seria desejável que o maior número possível delas estivesse de acordo com a moral.
Três teorias, em síntese, tentam explicar as relações entre as normas jurídicas e as normas morais. A Teoria do Mínimo Ético defende que as normas morais mais importantes são transformadas em normas jurídicas. A Teoria da Separação do Direito e da Moral afirma que não há ponto de relação necessário entre ambos os campos. Thomasius afirma que o objeto das normas morais é um (esfera íntima) e das normas jurídicas é outro (comportamento externo); Kelsen, por sua vez, afirma que existem diversos grupos de normas morais e o direito não se prende necessariamente a qualquer deles, sendo um campo próprio e autônomo. Por fim, a Teoria dos “círculos secantes” estabelece que há um núcleo comum entre a Moral e o Direito, composto por normas simultaneamente morais e jurídicas.

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