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COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica. 7. ed. rev. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1976. P. 210-215. ARCAÍSMOS Arcaísmos são palavras, formas ou expressões antigas, que deixaram de ser usadas. Consulte-se a obra de qualquer escritor antigo, e logo se encontrará uma multidão de palavras ou expressões cuja forma ou sentido são hoje inteiramente desconhecidos. “Basta abrir, diz Adolfo Coelho, um monumento da nossa antiga literatura, comparar um trecho dum autor do século XIII, XIV ou XV com um trecho dum autor dos séculos seguintes para a cada passo vermos inovações e ao lado delas o desaparecimento de muitas particularidades antigas”. Os vocábulos não desaparecem de um momento para o outro. Aliás, nenhum fenômeno linguístico surge ou desaparece repentinamente. Nos idiomas, as mutações são sempre demoradas e lentas. O processo de arcaização dos termos é assim explicado por Darmesteter: “uma geração de homens, num dado momento, começa a abandonar tal palavra, representando por outra a ideia que ela designa; a geração seguinte conhecê-la-á ainda menos, e virá um instante em que ela já não será conhecida senão dos velhos, que, dentro em pouco, a levarão consigo para o túmulo”. Constitui vício, que cumpre evitar com cuidado, o emprego frequente e desnecessário do arcaísmo. A finalidade de quem escreve para o público é ser compreendido, mas arrisca-se a não atingir esse objetivo quem emprega, a todo instante palavras ou expressões que já estão fora da moda. A este propósito pode-se citar o caso do filósofo Demônax, narrado por Duarte Nunes do Leão. Tendo o citado filósofo dirigido a certo homem uma pergunta, respondeu-lhe este numa linguagem incompreensível, por antiga, naquela época. Ponderou-lhe então Demônax: “Eu perguntei-te isto agora neste ano, e neste dia, e tu respondes-me como se estivéssemos no tempo d’el-rei Agamenon”. A mania de pôr novamente em circulação, sem motivo justificado, apenas por pedantismo literário, palavras arcaicas, é acremente censurada por Rui Barbosa: “O gosto da antiguidade levado ao arcaísmo, isto é, a mania de rejuvenescer inutilmente formas anacrônicas, ininteligíveis ao ouvido comum na época em que se exumam com o vão intuito de as modernizar, avulta entre os mais ridículos e insensatos vícios do estilo, no falar idiomas vivos”. Deixa, porém, de ser condenável esta prática quando o autor, possuindo a justa medida das coisas, só usa de formas antigas quando necessárias ou cujo sentido ressalte com facilidade do próprio contexto. “Tão parco me portei, refere Castilho, no exercício desta prerrogativa, concedível a todo escritor sisudo e de consciência, que, se algumas raras vezes me vali de palavras passadas, foi quando entendi que eram necessárias, ou, pelo menos, úteis; por belas ou por expressivas, dignas de ressureição; o que nem a todos os arcaísmos acontece; e nunca as pus, senão em lugar e de modo que o contexto do período lhes declarasse, à justa, ou proximamente, à significação”. Nem sempre os vocábulos desaparecem inteiramente; às vezes, arcaízam-se numa forma, ao passo que, nas derivadas, continuam a viger e viçar; há ainda alguns que conservam o mesmo aspecto, mas mudam de significação. A ressurreição do arcaísmo é um fato comum em todas as línguas, já assinalado por Horácio, na célebre Arte Poética: Multa renascentur quae jam cecidere... si volet usus. Opera-se esta ressurreição por meio do povo que frequentemente conserva na memória vozes ou torneios, banidos da linguagem acadêmica; ou por intermédio dos literatos, que, atreitos a compulsar os velhos códices, inadvertidamente ou de propósito os põem de novo em movimento. Pela ressurreição se explica como termos considerados arcaicos, em épocas precedentes, são hoje vulgares e prestadios. Basta ver os que Nunes do Leão cita como tais: acoimar, afã, aleive, aquecer, arrefecer, aturar, atroar, confortar, doesto, esmerar, estugar, fagueiro, finado, grei, incréu, lidar, lídimo, quebrantar, sanha, sanhudo, tanger, vindita. COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica. 7. ed. rev. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1976. P. 210-215. Francisco José Freire tacha de arcaicas, em seu tempo, as seguintes palavras: agrura, atavio, córrego, delonga, desdar, devaneio, dissidente, embair, emboras, enfarado, escarcéu, escudar, esgares, esmolar, esquivar, galardoar, ladear, látego, lasso, louçania, poento, pompear, queixume, realeza, sobrecenho, timoneiro. As causas que determinam a arcaização dos vocábulos são: 1) o desaparecimento das instituições, costumes e objetos; suserano, vassalo, feudal, adail, ouvidor, comuna, anadel, almotacel, alcaide, bucelário, catapulta; 2) a sinonímia ou o neologismo: arteirice (astúcia), rouçar (violentar), asinha (depressa), punçante (pungente), manda (testamento); 3) o eufemismo ou a degradação de sentido: cornos (pontas, armas), parir (dar à luz), drudo (amante), manceba (concubina), feder (cheirar mal), tratante (negociante), safado (gasto pelo uso); 4) o sentido especial: degredos (decretos), físico (médico), manha (dote do espírito); 5) a homonímia: ca (porque) por causa de cá (aqui), u ou hu (onde) por causa de u (vogal), osso (urso) por causa de osso (tecido ósseo). Dividem-se os arcaísmos em léxicos ou de palavras e sintáticos ou de construção. Subdividem-se os léxicos em intrínsecos e extrínsecos. Arcaísmos intrínsecos dizem-se os que são arcaísmos sob determinado aspecto. Podem ser: 1) GRÁFICOS: aver, omem, onrra, hir, hum, he, ley, mha, tẽpo, rrazon; 2) FONÉTICOS: dino, malino, assi, seneficar, virgéu, cossario, estormento, marteiro, segre, hostao, hereo, lũa, cheo, cea, poer; 3) FLEXIONAIS, que apresentam as modalidades: a) de gênero: planeta (f.), linhagem (m.), mar (f.), tribo (m.), fantasma (f.), fim (f.), mapa (f.) comũa, varoa, infaçoa; b) de número: alférezes, arráezes, símprezes; c) de pessoa: amades, devedes, ouvides, disserom. 4) SEMÂNTICOS: arreio (enfeite), britar (quebrar), partes (qualidades), atender (esperar), benzer (abençoar), comprido (cheio), peça (espaço de tempo), saúde (salvação), soterrar (enterrar), catar (olhar). Dizem-se arcaísmos extrínsecos os que foram inteiramente substituídos por sinônimos de raiz diferente. Estão neste caso os seguintes: COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica. 7. ed. rev. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1976. P. 210-215. Atimar Substituído por concluir, executar Aguça pressa, cuidado, diligência Adur apenas, por acaso abondo suficiente, bastante acarom à face, à vista bandoria dissensão, discórdia Cajuso por acaso Saga retaguarda Coita aflição, dor, pena Chus mais chouvir fechar, cerrar Desy depois disto Eiri ontem Ende daí envezamento transtorno, desordem entença pleito, demanda enxeco dano, perda escatima apartamento, separação femença atenção, cuidado festinar apressar garçom moço, mancebo Juso abaixo mazcabo falha, injúria mandareiro mensageiro, procurador mentres enquanto, pelo tempo que mesnada porção de soldados assalariados meszcrar intrigar, malquistar palmeirim peregrino, estrangeiro precudir açoutar, bater prasmar censurar, vituperar postremeiro último, derradeiro proe utilidade, conveniência rancoura querela ou queixa judicial rabolaria pompa viciosa sages prudente, sábio tamalavez algum tanto, alguma coisa toste logo, cedo vianda carne, alimento velas vigias, sentinelas Constitui arcaísmo sintático o emprego: 1) de duas negativas pré-verbais: “ninguém nom sabia”; 2) da preposição de, como segundo termo de comparação: “peior doutra rem”; ou como partitivo: “tomarom do pam”; COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica. 7. ed. rev. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1976. P. 210-215.3) do caso-complemento do pronome pessoal pelo caso-sujeito: “o coraçom pode mais ca mi”, “Ora vamo eu e ti ó longo desta ribeira”; 4) do sujeito coletivo geral com verbo no plural: “cristãidade que estam"; 5) do sujeito coletivo com o verbo no singular: “morreo grandes gentes”; 6) de omem ou ome, como sujeito indeterminado: “omem nom poderia mostrar”; 7) de cujo interrogativo: “preguntou cuja filha era”; 8) do subjuntivo pelo imperativo: “tu... digas-me mandado de mha senhor”; 9) do particípio variável com os verbos ter e haver: “avedes graça ganhada”; 10) de frequentes anacolutos: “e depois seu padre dela filharom-lhe seus genros a terra”; 11) da preposição em antes de oração integrante, começada por como: “sabedes bem en como esta terra da Espanha foi perduda”; 12) de gram, a par de mui ou muito, formando o superlativo absoluto: “e disse a gram alta voz”; 13) do adjunto restritivo sem de: “bondade Deus”; 14) de se ou si por assim, exprimindo afirmação: “se vos vejades prazer”; 15) de certas locuções conjuncionais com o indicativo: “ata que vejo a vossa fim”; 16) de verbos com regência diferente da atual. Assim, haver, ousar, dever, travar, construídos com a; pecar, com em (hoje contra); começar, com de ou sem preposição, etc. São ainda arcaísmos sintáticos o período demasiado extenso travado de partículas e de particípios; a colocação muito livre das palavras na frase; a ordem prevalentemente indireta, a pontuação escassa, etc. Exemplo: Deus que quer manifestar as obras de seus servos e que pareçam com galardon ante os homens, aveeo que o sobredito Enrique, cavaleiro de Jesu Cristo, que jazia sepultado no dito moesteiro de Sam Vicente, que mostrou Deus por êle grandes milagres, antres os quaes apareceu antre os homens ũu mui maravilhoso, segundo o que del conta a escriptura, na qual faz mençon que na cabeceira de moimento do dito cavaleiro se levantou ũma palma semelhávil a esta que tragem os romeus que vam em Jerusalim, e, levantada assi esta palma, começou d’enverdecer e deitar fôlhas e fazer verdura, e cresceu sôbre a terra e feze-se muit’alta. (Esse trecho não faz parte do texto de Coutinho. Foi extraído de Cardoso e Cunha (1978, p. 197) – originalmente retirado da Crestomatia Arcaica, de J. J. Nunes, p. 146-7, conforme citação dos autores)
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