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UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 1 Dedicatória (A Cícero) Pegue o que quiser, não há direitos somente deveres autorais godard a bertolucci, que solicitara imagens para os sonhadores se há um poema foi feito para se dar nenhum poema deveria aguardar no sótão na gaveta no porão hangar todo poema se existe é dom nem comércio nem benção doação mesmo não-poema, ou quase, um poema A contrapelo de cofre gaveta rígido disco ou escape grátis esvoaça entoando o sim mais o não um poema não se furta doa veia a veia à toa À toa como a vida se abre arma zen por isso todo poema se dedica mesmo (beltrano sicarno fulano) quando não porta nome senha indicação escrever é transferir sem escritura atestado ou posse certidão mesmo na dúvida mesmo na dívida salto sem proteção o poema escapole pronto se foi sem controle de si autorizado um mote para outros & mais outros ao infinito re ver ber a r (30.XII.04) {NASCIMENTO, Evando. Dedicatória. In:___. Retrato Desnatural (diários – 2004 a 2007). Rio de Janeiro: Record, 2008} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 2 I. Por viver muitos anos dentro do mato moda ave O menino pegou um olhar de pássaro – Contraiu visão Fontana. Por forma que ele enxergava as coisas por igual como os pássaros enxergam. As coisas ainda inominadas. Água não era ainda a palavra água. Pedra não era ainda a palavra pedra. E tal. As palavras eram livres de gramáticas e podiam ficar em qualquer posição. Por forma que o menino podia inaugurar. Podia dar às pedras costumes de flor. Podia dar ao canto formato de sol. E, se quisesse caber em uma abelha, era só abrir a palavra abelha e entrar dentro dela. Como se fosse a infância da língua. {BARROS, Manoel de. Canção do ver. In:___. Poemas Rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 3 SONATA AO LUAR Sombra Boa não tinha e-mail. Escreveu um bilhete: Maria me espera debaixo do ingazeiro quando a lua estiver arta. Amarrou o bilhete no pescoço do cachorro e atiçou: Vai, Ramela, passa! Ramela alcançou a cozinha num átimo. Maria leu e sorriu. Quando a lua ficou arta Maria estava. E o amor se fez Sob um luar sem defeito de abril. {BARROS, Manoel de. Desenhos de uma voz. In:___. Poemas Rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 4 VENTO Se a gente jogar uma pedra no vento Ele nem olha pra trás. Se a gente atacar o vento com uma enxada Ele nem sai sangue da bunda. Ele não dói nada. Vento não tem tripa. Se a gente enfiar uma faca no vento Ele nem faz ui. A gente estudou no Colégio que vento é o ar em movimento. E que o ar em movimento é vento. Eu quis uma vez implantar uma costela no vento. Depois me ensinaram que vento não tem organismo. Fiquei estudado. {BARROS, Manoel de. Desenhos de uma voz. In:___. Poemas Rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 5 O COPO Estava o jacaré na beira do brejo tomando um copo de sol. Foi o menino E tascou uma pedra No olho do jacaré. O bicho soltou três urros E quebrou o silêncio do lugar. Os cacos do silêncio ficaram espalhados na praia. O copo de sol não rachou nem. {BARROS, Manoel de. Desenhos de uma voz. In:___. Poemas Rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 6 NOTÍCIA DE JORNAL Haroldo Barbosa e Luiz Reis Tentou contra a existência num humilde barracão Joana de tal por causa de um tal João. Depois de medicada retirou-se pro seu lar Aí, a notícia carece de exatidão: O lar não mais existe, ninguém volta ao que acabou. Joana é mais uma mulata triste que errou. Errou na dose, errou no amor, Joana errou de João, Ninguém notou. Ninguém morou Na dor que era o seu mal A dor da gente não sai no jornal UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 7 NO CORPO De que vale tentar reconstruir com palavras O que o verão levou Entre nuvens e risos Junto com o jornal velho pelos ares O sonho na boca, o incêndio na cama, o apelo da noite Agora são apenas esta contração (este clarão) do maxilar dentro do rosto. A poesia é o presente. {GULLAR, Ferreira. No corpo. In:___. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 8 SUBVERSIVA A poesia Quando chega Não respeita nada. Nem pai nem mãe. Quando ela chega De qualquer de seus abismos Desconhece o Estado e a Sociedade Civil Infringe o Código de Águas Relincha Como puta Nova Em frente ao Palácio da Alvorada. E só depois Reconsidera: beija Nos olhos os que ganham mal Embala no colo Os que têm sede de felicidade E de justiça. E promete incendiar o país. {GULLAR, Ferreira. Subversiva. In:___. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 9 POEMA BRASILEIRO No Piauí de cada 100 crianças que nascem 78 morrem antes de completar 8 anos de idade No Piauí de cada 100 crianças que nascem 78 morrem antes de completar 8 anos de idade No Piauí de cada 100 crianças que nascem 78 morrem antes de completar 8 anos de idade Antes de completar 8 anos de idade Antes de completar 8 anos de idade Antes de completar 8 anos de idade Antes de completar 8 anos de idade {GULLAR, Ferreira. Poema Brasileiro. In:___. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 10 UM SORRISO Quando com minhas mãos de labareda te acendo e em rosa embaixo te espetalas quando com meu facho aceso e cego penetro a noite de tua flor que exala urina e mel que busco com toda essa assassina fúria de macho? que busco eu em fogo aqui embaixo? senão colher com a repentina mão do delírio uma outra flor: a do sorriso que no alto o teu rosto ilumina? {GULLAR, Ferreira. Um sorriso. In:___. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 11 Reinvenção A vida só é possível reinventada. Anda o sol pelas campinas e passeia a mão dourada pelas águas, pelas folhas... Ah! tudo bolhas que vem de fundas piscinas de ilusionismo... — mais nada. Mas a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada. Vem a lua, vem, retira as algemas dos meus braços. Projeto-me por espaços cheios da tua Figura. Tudo mentira! Mentira da lua, na noite escura. Não te encontro, não te alcanço... Só — no tempo equilibrada, desprendo-me do balanço que além do tempo me leva. Só — na treva, fico: recebida e dada. Porque a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada. {MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 12 TRANSFORMAÇÃO DO DANÇARINO Nasce da sombra o dançarino, de um ovo de seda e mistério. E seu perfil é transparente, e sua carne é a de um inseto. Eu o amo como às borboletas, à asa das libélulas - e erro no seu mundo sem solo, reino, que se vai tornando sidéreo. Suas tênues mãos nadatocam, e olha entre verdes águas, cego. Cada posição de seu corpo é um símbolo instantâneo e hermético. Toma nos lábios o silêncio e é um peixe bebendo o mar, quieto. Gira, e súbito se divide, como espelho que cai de um prego. {MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 13 Canção Pus o meu sonho num navio e o navio em cima do mar; - depois, abri o mar com as mãos, para o meu sonho naufragar Minhas mãos ainda estão molhadas do azul das ondas entreabertas, e a cor que escorre de meus dedos colore as areias desertas. O vento vem vindo de longe, a noite se curva de frio; debaixo da água vai morrendo meu sonho, dentro de um navio... Chorarei quanto for preciso, para fazer com que o mar cresça, e o meu navio chegue ao fundo e o meu sonho desapareça. Depois, tudo estará perfeito; praia lisa, águas ordenadas, meus olhos secos como pedras e as minhas duas mãos quebradas. {MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 14 Canção No desequilíbrio dos mares, as proas giram sozinhas... Numa das naves que afundaram é que certamente tu vinhas. Eu te esperei todos os séculos sem desespero e sem desgosto, e morri de infinitas mortes guardando sempre o mesmo rosto Quando as ondas te carregaram meu olhos, entre águas e areias, cegaram como os das estátuas, a tudo quanto existe alheias. Minhas mãos pararam sobre o ar e endureceram junto ao vento, e perderam a cor que tinham e a lembrança do movimento. E o sorriso que eu te levava desprendeu-se e caiu de mim: e só talvez ele ainda viva dentro destas águas sem fim. {MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 15 Motivo Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta. Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento. Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, — não sei, não sei. Não sei se fico ou passo. Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: — mais nada. {MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 16 Retrato Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: — Em que espelho ficou perdida a minha face? {MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 17 Marinha O barco é negro sobre o azul. Sobre o azul os peixes são negros. Desenham malhas negras as redes, sobre o azul. Sobre o azul, os peixes são negros. Negras são as vozes dos pescadores, atirando-se palavras no azul. É o último azul do mar e do céu. A noite já vem, dos lados de Burma, toda negra, molhada de azul: — a noite que chega também do mar. {MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 18 PRINCIPIANTE Sua mão mal se movimenta, custa a escorregar pela mesa, caracol no jardim da ciência, desenrolando letra a letra a obscura linha do seu nome. Ah, como é leve o átomo puro, e ágil o equilíbrio do mundo, e rápido, e célere, o curso do céu, do destino de tudo! Mas na terra o pálido aluno devagar escreve o seu nome. {MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 19 Leveza Leve é o pássaro: e a sua sombra voante, mais leve. E a cascata aérea de sua garganta, mais leve. E o que lembra, ouvindo-se deslizar seu canto, mais leve. E o desejo rápido desse mais antigo instante, mais leve. E a fuga invisível do amargo passante, mais leve. {MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 20 VERSOS ESCRITOS NÁGUA Os poucos versos que aí vão, Em lugar de outros é que os ponho. Tu que me lês, deixo ao teu sonho Imaginar como serão Neles porás tua tristeza Ou bem teu júbilo, e, talvez, Lhes acharás, tu que me lês, Alguma sombra de beleza... Quem os ouviu não os amou. Meus pobres versos comovidos! Por isso fiquem esquecidos Onde o mau vento os atirou. {BANDEIRA, Manuel. In:___. A cinza das horas. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 21 Balõezinhos Na feira livre do arrabaldezinho Um homem loquaz apregoa balõezinhos de cor: - "O melhor divertimento para as crianças!" Em redor dele há um ajuntamento de menininhos pobres, Fitando com olhos muito redondos os grandes balõezinhos muito redondos. No entanto a feira burburinha. Vão chegando as burguesinhas pobres, E as criadas das burguesinhas ricas, E mulheres do povo, e as lavadeiras da redondeza. Nas bancas de peixe, Nas barraquinhas de cereais, Junto às cestas de hortaliças O tostão é regateado com acrimônia. Os meninos pobres não vêem as ervilhas tenras, Os tomatinhos vermelhos, Nem as frutas, Nem nada. Sente-se bem que para eles ali na feira os balõezinhos de cor são a [única mercadoria útil e verdadeiramente indispensável. O vendedor infatigável apregoa: - "O melhor divertimento para as crianças!" E em torno do homem loquaz os menininhos pobres fazem um [círculo inamovível de desejo e espanto. {BANDEIRA, Manuel. In:___. Ritmo dissoluto. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 22 Teresa A primeira vez que vi Teresa Achei que ela tinha pernas estúpidas Achei também que a cara parecia uma perna Quando vi Teresa de novo Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo (Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse) Da terceira vez não vi mais nada Os céus se misturaram com a terra E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas. {BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 23 A morte absoluta Morrer. Morrer de corpo e de alma. Completamente. Morrer sem deixar o triste despojo da carne, A exangue máscara de cera, Cercada de flores, Que apodrecerão - felizes! - num dia, Banhada de lágrimas Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte. Morrer sem deixar porventura uma alma errante... A caminho do céu? Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu? Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra, A lembrança de uma sombra Em nenhum coração, em nenhum pensamento, Em nenhuma epiderme. Morrer tão completamente Que um dia ao lerem o teu nome num papelPerguntem: "Quem foi?..." Morrer mais completamente ainda, - Sem deixar sequer esse nome. {BANDEIRA, Manuel. In:___. Lira dos cinquent’anos. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 24 Meninos carvoeiros Os meninos carvoeiros Passam a caminho da cidade. — Eh, carvoero! E vão tocando os animais com um relho enorme. Os burros são magrinhos e velhos. Cada um leva seis sacos de carvão de lenha. A aniagem é toda remendada. Os carvões caem. (Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe, dobrando-se com um gemido.) — Eh, carvoero! Só mesmo estas crianças raquíticas Vão bem com estes burrinhos descadeirados. A madrugada ingênua parece feita para eles... Pequenina, ingênua miséria! Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis! —Eh, carvoero! Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado, Encarapitados nas alimárias, Apostando corrida, Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos desamparados. Petrópolis, 1921 {BANDEIRA, Manuel. In: ___. Ritmo dissoluto. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 25 Pneumotórax Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse. Mandou chamar o médico: — Diga trinta e três. — Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . . — Respire. ............................................................................................................... — O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. — Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? — Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. {BANDEIRA, Manuel. In:___. Libertinagem. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 26 Profundamente Quando ontem adormeci Na noite de São João Havia alegria e rumor Vozes cantigas e risos Ao pé das fogueiras acesas. No meio da noite despertei Não ouvi mais vozes nem risos Apenas balões Passavam errantes Silenciosamente Apenas de vez em quando O ruído de um bonde Cortava o silêncio Como um túnel. Onde estavam os que há pouco Dançavam Cantavam E riam Ao pé das fogueiras acesas? — Estavam todos dormindo Estavam todos deitados Dormindo Profundamente. * Quando eu tinha seis anos Não pude ver o fim da festa de São João Porque adormeci. Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo Minha avó Meu avô Totônio Rodrigues Tomásia Rosa Onde estão todos eles? — Estão todos dormindo Estão todos deitados Dormindo Profundamente. {BANDEIRA, Manuel. In:___. Libertinagem. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 27 Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconseqüente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que eu nunca tive E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d'água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei — Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada {BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 28 Evocação do Recife Recife Não a Veneza americana Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais Não o Recife dos Mascates Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois — Recife das revoluções libertárias Mas o Recife sem história nem literatura Recife sem mais nada Recife da minha infância A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras mexericos namoros risadas A gente brincava no meio da rua Os meninos gritavam: Coelho sai! Não sai! A distância as vozes macias das meninas politonavam: Roseira dá-me uma rosa Craveiro dá-me um botão (Dessas rosas muita rosa Terá morrido em botão...) De repente nos longos da noite um sino Uma pessoa grande dizia: Fogo em Santo Antônio! Outra contrariava: São José! Totônio Rodrigues achava sempre que era são José. Os homens punham o chapéu saíam fumando E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo. Rua da União... Como eram lindos os montes das ruas da minha infância Rua do Sol (Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal) Atrás de casa ficava a Rua da Saudade... ...onde se ia fumar escondido Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora... ...onde se ia pescar escondido Capiberibe — Capiberibe Lá longe o sertãozinho de Caxangá Banheiros de palha Um dia eu vi uma moça nuinha no banho Fiquei parado o coração batendo Ela se riu Foi o meu primeiro alumbramento Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras Novenas Cavalhadas E eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos Capiberibe — Capiberibe Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas Com o xale vistoso de pano da Costa E o vendedor de roletes de cana O de amendoim que se chamava midubim e não era torrado era cozido Me lembro de todos os pregões: Ovos frescos e baratos Dez ovos por uma pataca Foi há muito tempo... A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros Vinha da boca do povo na língua errada UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 29 do povo Língua certa do povo Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil Ao passo que nós O que fazemos É macaquear A sintaxe lusíada A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem Terras que não sabia onde ficavam Recife... Rua da União... A casa de meu avô... Nunca pensei que ela acabasse! Tudo lá parecia impregnado de eternidade Recife... Meu avô morto. Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô. {BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 30 Poema do beco Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? — O que eu vejo é o beco. {BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 31 Poema tirado de uma notíciade jornal João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dançou Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado. {BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 32 Trem de ferro Café com pão Café com pão Café com pão Virge Maria que foi isso maquinista? Agora sim Café com pão Agora sim Voa, fumaça Corre, cerca Ai seu foguista Bota fogo Na fornalha Que eu preciso Muita força Muita força Muita força (trem de ferro, trem de ferro) Oô... Foge, bicho Foge, povo Passa ponte Passa poste Passa pasto Passa boi Passa boiada Passa galho Da ingazeira Debruçada No riacho Que vontade De cantar! Oô... (café com pão é muito bom) Quando me prendero No canaviá Cada pé de cana Era um oficiá Oô... Menina bonita Do vestido verde Me dá tua boca Pra matar minha sede Oô... Vou mimbora vou mimbora Não gosto daqui Nasci no sertão Sou de Ouricuri Oô... Vou depressa Vou correndo Vou na toda Que só levo Pouca gente Pouca gente Pouca gente... (trem de ferro, trem de ferro) {BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 33 Última Canção do Beco Beco que cantei num dístico Cheio de elipses mentais, Beco das minhas tristezas, Das minhas perplexidades (Mas também dos meus amores, Dos meus beijos, dos meus sonhos), Adeus para nunca mais! Vão demolir esta casa. Mas meu quarto vai ficar, Não como forma imperfeita Neste mundo de aparências: Vai ficar na eternidade, Com seus livros, com seus quadros, Intacto, suspenso no ar! Beco de sarças de fogo, De paixões sem amanhãs, Quanta luz mediterrânea No esplendor da adolescência Não recolheu nestas pedras O orvalho das madrugadas, A pureza das manhãs! Beco das minhas tristezas. Não me envergonhei de ti! Foste rua de mulheres? Todas são filhas de Deus! Dantes foram carmelitas... E eras só de pobres quando, Pobre, vim morar aqui. Lapa-Lapa do Desterro-, Lapa que tanto pecais! (Mas quando bate seis horas, Na primeira voz dos sinos, Como na voz que anunciava A conceição de Maria, Que graças angelicais!) Nossa Senhora do Carmo, De lá de cima do altar, Pede esmolas para os pobres, Para mulheres tão tristes, Para mulheres tão negras, Que vêm nas portas do templo De noite se agasalhar. Beco que nasceste à sombra De paredes conventuais, És como a vida, que é santa Pesar de todas as quedas. Por isso te amei constante E canto para dizer-te Adeus para nunca mais! {BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 34 "A ûltima Canção do Beco" é o melhor poema para exemplificar como em minha poesia quase tudo resulta de um jogo de intuições. Não faço poesia quando quero e sim quando ela, poesia, quer. E ela quer às vezes em horas impossíveis: no meio da noite, ou quando estou em cima da hora para ir dar uma aula na Faculdade de Filosofia ou sair para um jantar de cerimônia... "A ûltima Canção do Beco" nasceu num momento destes, só que o jantar não era de cerimônia. Na véspera de me mudar da Rua Morais e Vale, às seis e tanto da tarde, tinha eu acabado de arrumar meus troços e caíra exausto na cama. Exausto da arrumação e um pouco também da emoção de deixar aquele ambiente, onde vivera nove anos. De repente a emoção se ritmou em redondilhas, escrevi a primeira estrofe, mas era hora de despedir-me para sair, vesti-me com os versos surdindo na cabeça, desci à rua, no Beco das Carmelitas me lembrei de Raul de Leoni, e os versos vindo sempre, e eu com medo de esquecê-los, tomei um bonde, saquei do bolso um pedaço de papel e um lápis, fui tomando as minhas notas numa estenografia improvisada, senão quando lá se quebrou a ponta do lápis, os versos não paravam...Chegando ao meu destino, pedi um lápis e escrevi o que ainda guardava de cor...De volta a casa, bati os versos na máquina e fiquei espantadíssimo ao verificar que o poema se compusera, à minha revelia, em sete estrofes de sete versos de sete sílabas. {BANDEIRA, Manuel. In: Itinerário de Pasárgada. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 35 AUTO-RETRATO Provinciano que nunca soube Escolher bem uma gravata; Pernambucano a quem repugna A faca do pernambucano; Poeta ruim que na arte da prosa Envelheceu na infância da arte, E até mesmo escrevendo crônicas Ficou cronista de província; Arquiteto falhado, músico Falhado (engoliu um dia Um piano, mas o teclado Ficou de fora); sem família Religião ou filosofia; Mal tendo a inquietação de espírito Que vem do sobrenatural, E em matéria de profissão Um tísico profissional. {BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 36 INICIAÇÃO AMOROSA A rede entre duas mangueiras balançava no mundo profundo. O dia era quente, sem vento. O sol lá em cima, as folhas no meio, o dia era quente. E como eu não tinha nada que fazer vivia namorando as pernas morenas da lavadeira. Um dia ela veio para a rede, se enroscou nos meus braços, me deu um abraço, me deu as maminhas que eram só minhas. A rede virou, o mundo afundou. Depois fui para a cama febre 40 graus de febre. Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas, girava no espaço verde. {ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. In:___. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 37 Ausência Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim. Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 38 Ausência Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces. Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto. No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz. Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado. Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada. Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado. Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face. Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada. Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite. Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa. Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço. E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado. Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos. Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir. E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas. Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada. MORAES, Vinícius de. ANTOLOGIA POÉTICA.UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 39 O lutador Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. São muitas, eu pouco. Algumas, tão fortes como o javali. Não me julgo louco. Se o fosse, teria poder de encantá-las. Mas lúcido e frio, apareço e tento apanhar algumas para meu sustento num dia de vida. Deixam-se enlaçar, tontas à carícia e súbito fogem e não há ameaça e nem há sevícia que as traga de novo ao centro da praça. Insisto, solerte. Busco persuadí-las. Ser-lhes-ei escravo de rara humildade. Guardarei sigilo de nosso comércio. Na voz, nenhum travo de zanga ou desgosto. Sem me ouvir deslizam, perpassam levíssimas e viram-me o rosto. Lutar com palavras parece sem fruto. Não têm carne e sangue... Entretanto, luto. Palavra, palavra (digo exasperado), se me desafias, aceito o combate. Quisera possuir-te neste escampado, sem roteiro de unha ou marca de dente nessa pele clara. Preferes o amor de uma posse impura e que venha o gozo da maior tortura. Luto corpo a corpo, luto todo o tempo, sem maior proveito que o da caça ao vento. Não encontro vestes, não seguro formas, é fluido inimigo que me dobra os músculos e ri-se das normas da boa peleja. Iludo-me às vezes, pressinto que a entrega se consumirá. Já vejo palavras em coro submisso, esta me ofertando seu velho calor, outra sua glória feita de mistério, outra seu desdém, outra seu ciúme, e um sapiente amor me ensina a fruir de cada palavra a essência captada, o sutil queixume. Mas ai! É o instante de entreabrir os olhos: entre beijo e boca, tudo se evapora. O ciclo do dia ora se consuma e o inútil duelo jamais se resolve. O teu rosto belo, ó palavra, esplende na curva da noite que toda me envolve. Tamanha paixão e nenhum pecúlio. Cerradas as portas, a luta prossegue nas ruas do sono. UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 40 ANDRADE, Carlos Drummond de. In:___. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 41 Poema de sete faces Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos , raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode. Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo. {ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. In:___. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 42 Procura da poesia Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes. Nem me reveles teus sentimentos, que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas. Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma. O canto não é a natureza nem os homens em sociedade. Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam. A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto. Não dramatizes, não invoques, não indagues. Não percas tempo em mentir. Não te aborreças. Teu iate de marfim, teu sapato de diamante, vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável. Não recomponhas tua sepultada e merencória infância. Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação. Que se dissipou, não era poesia. Que se partiu, cristal não era. Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu. Não adules o poema. Aceita-o como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço. Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 43 e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? Repara: ermas de melodia e conceito elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda úmidas e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo. {ANDRADE, Carlos Drummond de. Rosa do povo. In:___. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 44 Poesia Gastei uma hora pensando em um verso que a pena não quer escrever. No entanto ele está cá dentro inquieto, vivo. Ele está cá dentro e não quer sair. Mas a poesia deste momento inunda minha vida inteira. {ANDRADE, Carlos Drummond de. In:___. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 45 Os poemas Os poemas são pássaros que chegam não se sabe de onde e pousam no livro que lês. Quando fechas o livro, eles alçam vôo como de um alçapão. Eles não têm pouso nem porto alimentam-se um instante em cada par de mãos e partem. E olhas, então, essas tuas mãos vazias, no maravilhoso espanto de saberes que o alimento deles já estava em ti... {QUINTANA, Mário. Esconderijos do tempo. Porto Alegre: L&PM,1980.} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 46 ANUNCIAÇÃO DO POETA Ave, ávido. Ave, fome incansável e boca enorme, come. Da parte do Altíssimo te concedo que não descansará e tudo te ferirá de morte: o lixo, a catedral e a forma das mãos. Ave, cheio de dor. {PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2004} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 47 ORFANDADE Meu Deus, me dá cinco anos. Me dá um pé de fedegoso com formiga preta, me dá um Natal e sua véspera, o ressonar das pessoas no quartinho. Me dá a negrinha Fia pra eu brincar, me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe. me dá a mão, me cura de ser grande, ó meu Deus, meu pai, meu pai. {PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2004} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ªDr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 48 AZUL SOBRE AMARELO, MARAVILHA E ROXO Desejo, como quem sente fome ou sede, um caminho de areia margeado de boninas, onde só cabem a bicicleta e seu dono. Desejo, com uma funda saudade de homem ficado órfão pequenino, um regaço e o acalanto, a amorosa tenaz de uns dedos para um forte carinho em minha nuca. Brotam os matinhos depois da chuva, brotam desejos do corpo. Na alma, o querer de um mundo tão pequeno como o que tem nas mãos o Menino Jesus de Praga. {PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2004} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 49 JANELA Janela, palavra linda. Janela é o bater das asas da borboleta amarela. Abre pra fora as duas folhas de madeira á toa pintada, janela jeca, de azul. Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você, meu pé esbarra no chão. Janela sobre o mundo aberta, por onde vi o casamento da Anita esperando neném, a mãe do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai: minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis. Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão, clarabóia na minha alma, olho no meu coração. {PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2004} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 50 COM LICENÇA POÉTICA Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir. Não sou tão feia que não possa casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora não creio em parto sem dor. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos - dor não é amargura. Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu Sou. {PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2004} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 51 Nada, Esta Espuma Por afrontamento do desejo insisto na maldade de escrever mas não sei se a deusa sobe à superfície ou apenas me castiga com seus uivos. Da amurada deste barco quero tanto os seios da sereia. {Ana Cristina César} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 52 PRIMEIRO POEMA Ao F. Paulo Mendes, amigo Por que vos espantais se eu venho sobre as ondas? Trago a paz e as distâncias que veem comigo na boca tenho mundos e nos olhos palavras. Ouvi-me. Todas as coisas são palavras minhas: a mais pura das nuvens a mais pura que veio de longe e não se dissolveu as colunas incolores além se levantando quebradas luminosas líquidas colunas colunas os cavalos que se empinam sobre a espuma e o calmo silêncio povoando o mar. Minhas palavras. Antigas porém há pouco descobertas. Lentas como o escurecer das nuvens refletidas como o tremular tranqüilo da vaga adolescente. Materiais límpidas palpáveis frias e mornas coloridas de ondas e descendentes pássaros. Resumida numa única palavra impronunciável Palavra. Mas eu não sou Senhor embora venham comigo a Música e o Poema: Por que vos ajoelhais se eu vim por sobre as ondas e só tenho palavras? Ouvi minha voz de anjo que acordou: Sou Poeta. 21.2.48 {FAUSTINO, Mário. Poesia completa; Poesia traduzida. São Paulo: Max Limonad, 1985} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 53 O capoeira - Qué apanhá sordado? - O quê? - Qué apanhá? Pernas e cabeças na calçada. {ANDRADE, Oswald. Poemas da Colonização. In:__. Pau-Brasil (Obras completas.). São Paulo: globo, 2002.} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 54 Autopsicografia O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração. {Fernando Pessoa} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 55 Psicologia da composição A Antonio Rangel Bandeira I Saio de meu poema como quem lava as mãos. Algumas conchas tornaram-se, que o sol da atenção cristalizou; alguma palavra que desabrochei, como a um pássaro. Talvez alguma concha dessas (ou pássaro) lembre, côncava, o corpo do gesto extinto que o ar já preencheu; talvez, como a camisa vazia, que despi. {MELO NETO, João Cabral de. Psicologia da composição. In:___. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 56 Psicologia da composição A Lêdo Ivo II Esta filha branca me proscreve o sonho, me incita ao verso nítido e preciso. Eu me refugio nesta praia pura onde nada existe em que a noite pouse. Como não há noite cessa toda fonte; como não há fonte cessa toda fuga; como não há fuga nada lembra o fluir de meu tempo, ao vento que nele sopra o tempo. {MELO NETO, João Cabral de. Psicologia da composição. In:___. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 57 Psicologia da composição III Neste papel pode teu sal virar cinza; pode o limão virar pedra; o sol da pele o trigo do corpo virar cinza (Teme, por isso a jovem manhã sobre as flores da véspera.) Neste papel logo fenecem as roxas, mornas flores morais; todas fluidas flores da pressa; todas as úmidas flores do sonho. (Espera, por isso, que a jovem manhã te venha revelar as flores da véspera.) {MELO NETO, João Cabral de. Psicologia da composição. In:___. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 58 Psicologia da composição IV O poema, com seus cavalos, quer explodir teu tempo claro; romper seu branco fio, seu cimento mudo e fresco. (O descuido ficara aberto de par em par; um sonho passou deixando fiapos, logo árvores instantâneas coagulando a preguiça.) {MELO NETO, João Cabral de. Psicologia da composição. In:___. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 59 Psicologia da composição V Vivo com certas palavras, abelhas domésticas. Do dia aberto (branco guarda-sol) esses lúcidos furos retiram o fio de mel (do dia que abriu também como flor) que na noite (poço onde vai tombar a aérea flor) persistirá: louro sabor, e ácido, contra o açúcar do podre {MELO NETO, João Cabral de. Psicologia da composição. In:___. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 60 Psicologia da composição VI Não a forma encontrada como uma concha, perdida nos frouxos areais como cabelos; não a forma obtida em lance santo ou raro, tiro nas lebres de vidro do invisível; mas a forma atingida como a ponta do novelo que a atenção, lenta, desenrola, aranha; como o mais extremo dessefio frágil, que se rompe ao peso, sempre, das mãos enormes. {MELO NETO, João Cabral de. Psicologia da composição. In:___. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 61 Os Objetos Os objetos permanecem claros. Habita a moldura uma mulher de faces cor-de-rosa. Sobre a mesa de mármore um cavaleiro de porcelana saúda as visitas. A caneta ainda escreve com a mesma tinta de um azul levemente melancólico. Na gaveta, dormindo sob cartas e poemas, o revólver aguarda. {FILHO, Ruy Espinheira. Heléboro (1966-1973. In:__. Canção de Beatriz e outros poemas ; Poesia Reunida – 1966/1990. São Paulo: Brasiliense, 1990} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 62 In Angello cum libello A Antonio Carlos Secchin Nunca me procurem aqui, neste canto. Pois, se aqui estou, não estou, no entanto. Na verdade, aqui há só aparência de alguém que se vai longe de sua essência. UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 63 A idade do serrote As têmporas de Antonieta. As têmporas da begônia. As têmporas da romã, as têmporas da maçã, as têmporas da hortelã. As pitangas temporãs. O tempo temporão. O tempo-será. As têmporas do tempo. O tempo da onça. As têmporas da onça. O tampão do tempo. O temporal do tempo. Os tambores do tempo. As mulheres temporãs. O tempo atual, superado por um tempo de outra dimensão, e que não é aquele tempo. Temporizemos. {Murilo Mendes} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 64 FUNERAL Assustadoramente toca o sino. A morte, com seus ternos e tapetes sensacionais, conduz, em caracóis, dolentes multidões tão carregadas de vozes que deságuam cemitérios. Exposta a dor dos que ficam suspensos, começam a florescer outros símbolos: rosas brancas ressurgem nas lembranças. Os pássaros da noite estão no vento, vozes que vibram dentro do silêncio, tumulto na frieza de uma lápide. Na agonia de viver tudo morre. E o mistério da vida desenvolve, na morte, novas vidas em instantes. JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 65 ROSA VIVA Estas rosas que vês em mim são brasas. Por isso, muito cuidado ao tocar em suas pedras – pétalas sagradas. Minhas palavras ardem a forjar estas flores que canto por prazer e que dão febre e fazem delirar. Meu coração é mesmo a rosa viva. Por isso, muito carinho ao pegar suas pétalas – pedras tão aflitas. JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 66 CÂNTICO DOS CÂNTICOS Que as tuas nádegas aventureiras estejam abertas para o poema em linha reta que te ofereço, que a minha escrita torta e avessa chegue linheira na olaria de tua carne e ardas e ardo neste morno forno das tuas nádegas tão abundantes. Das tuas nádegas tão montanhosas o horizonte é mais macio e a minha linguagem saboreia o mel do fel que trazes e de teus olhos gemem os arco-íris e teu corpo todo é um esplendor, uma assombração e quanta delícia anunciam teus arrepios e tuas nádegas aventureiras tão venturosas são uma tempestade de emoções. Que idioma mágico que tu inventas quando me aventuro por tuas nádegas e me perco profundamente e profundamente me encontro na plenitude cega que tudo enxerga e profundamente me encanto cantando uníssono neste nosso idioma o novo cântico dos cânticos. JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO Poema do livro Roseiral UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 67 SETE IRMÃS Para Remedios Varo Essas sete musas mal-assombradas de cabeleiras ruivas, encardidas, são santas de bocetas encarnadas, trazem entre as mãos minhas sete vidas. As cabeleiras ruivas dessas musas são trepadeiras místicas em rito, um anelo claro como um oráculo a escalar as formas breves do mito. São sete noites vividas por Borges, são sete fadas da ilha de Lesbos, são sete acordes de Joaquin Rodrigo, são sete facas de Aderaldo, o Cego. Ah minhas sete irmãs, filhas de Safo, lamber vossos cus é meu paraíso! A plenitude de vossas entranhas é o aconchego destes meus delírios. Sete musas grávidas, musas graves, a gravidade não pesa no abrigo. A minha voz é um caminho cego como Borges, Aderaldo e Rodrigo. Ah minhas sete irmãzinhas serenas, vamos jogar enquanto há tabuleiro, sete damas-rainhas, sete Helenas, sou vosso servo, vosso cavaleiro. Musas oblongas, ventres salientes, em vossas carnes quentes eu reparo, de fora a fora, com prazer e encanto, as sete faces de Remedios Varo. JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 68 A costureira para Danielle Jensen Ela ouve o tecido, ela pousa o ouvido, ela ouve com os olhos. À fibra e ao feixe interroga sobre o que se entrelaçara, distinguindo a linha, o intervalo, o vão, o entreato, atenta para o que na fala geométrica e repetida dos fios é um outro vazio: o de antes da trama, ato anterior ao enredo; óculos postos para a escuta, a escuta desfia-se no vento, o olho flutua, folha, flor, agulha; fecha os olhos; ouve com as pontas dos dedos; indaga do tecido o modo, os limites, a função, a oficina, a forma que ele quer ter, a coisa, a casa que ele quer ser; e costura como quem à mão e à máquina descosturasse o dicionário, rasgando em moles móbiles seus hábitos, o vinco de sua farda. {FERRAZ, Eucanaã. In:___. Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.} {FERRAZ, Eucanaã. In:___. Cinemateca. Lisboa: Quasi Edições, 2009.} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 69 Non sense 1. Fila: arranjo linear do caos 2. Reunião: tudo que é vivo está lá fora 3. Papel de seda: pele das coisas inesperadas 4. Pedra: águas mal criadas 5. Vida: distrações antes da morte 6. Estética: jejum diante da mesa de iguarias 7. Insistência: plissado regular do tecido 8. Diamante: susto de cristal 9. Gota: mundo em miniatura 10. Amor eterno: você nunca vai saber o que eu jamais esquecerei 11. O camafeu é a casa do segredo 12. Flores: quando a natureza dá gritos de êxtase 13. Traição: mesmo filtrada, a água é um suco de vidro {Eliana Mara – http://inscricoessempreabertas.blogspot.com/} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 70 Comoção Segunda-feira, 23 de Abril de 2010 Tenho verdadeira comoção pelo ser humano. Sua arrogância, seu apelo, sua solidão. Todos são doces, até aqueles que te ignoram ou te odeiam. Todos, em algum momento do dia, se curvam, flexíveis, diante da dor. E todos, inexplicavelmente todos, estão definitivamente perdidos. É isso que causa essa minha enorme comoção, a ponto de eu chorar forte por alguém que vi uma única vez na vida. Ou de vibrar, feliz, ao conhecer olhos adolescentes sem qualquer mácula, completamente abertos ao que virá. Sentir pele macia de bebê derreter-se em minhas mãos também é comoção, ternura se espalhando, vontade de reter o curso do mundo, guardando o bebê no fundo das mãos. E quantos olhos verdes, pretos, castanhos, azuis andando por aí, meu Deus. Para que tanta gente nas ruas, nos apartamentos, nas casas, nas varandas? Para que essa povoação sem fim,se tudo um dia envelhece e sofre e desaparece? Oh, como não amar quem me odeia se seremos, juntos, passageiros de Caronte; e possivelmente contaremos uma anedota enquanto atravessarmos o rio, para assim quebrarmos o tédio de uma existência fleumática e solene, distante e perdida... Diga-me, como não me comover com o império dos homens, se fotografias de pessoas bailando sempre desaparecem no porão do castelo? {Angela Vilma – wwwaeronauta.blogspot.com} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 71 Da Calma e do Silêncio Quando eu morder a palavra, por favor, não me apressem, quero mascar, rasgar entre os dentes, a pele, os ossos, o tutano do verbo, para assim versejar o âmago das coisas. Quando meu olhar se perder no nada, por favor, não me despertem, quero reter, no adentro da íris, a menor sombra, do ínfimo movimento. Quando meus pés abrandarem a marcha, por favor, não me forcem. Caminhar para quê? Deixem-me quedar, deixem-me quieta, na aparente inércia. Nem todo viandante anda estradas, há mundos submersos, que só o silêncio da poesia penetra. EVARISTO, Conceição. Da calma e do Silêncio. In:___. Poemas de recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008. UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 72 EU-MULHER Uma gota de leite me escorre entre os seios. Uma mancha de sangue me enfeita entre as pernas Meia palavra mordida me foge da boca. Vagos desejos insinuam esperanças. Eu-mulher em rios vermelhos inauguro a vida. Em baixa voz violento os tímpanos do mundo. Antevejo. Antecipo. Antes-vivo Antes - agora - o que há de vir. Eu fêmea-matriz. Eu força-motriz. Eu-mulher abrigo da semente moto-contínuo do mundo. {Conceição Evaristo} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 73 ESTAÇÕES INTERNAS Estou contando com a primavera. Ultimamente não tem havido flores Dentro de mim; Tenho andado meio chuvoso, Horizontes nublados, embora tempestuosos São frios, frios. Hoje de manhã não abri a janela Saí de surpresa, E de surpresa vi o dia Estava lindo. E fiquei sem vontade De mudar minha meteorologia interior Decididamente vou romper com este inverno, Estou muito úmido por dentro. E para tanto, receita simples, Vou com o vento comer, devorar, Um raio, um raio de sol. José Carlos Limeira UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 74 Aniversário No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto. Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, De ser inteligente para entre a família, E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida. Sim, o que fui de suposto a mim- mesmo, O que fui de coração e parentesco. O que fui de serões de meia- província, O que fui de amarem-me e eu ser menino, O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui... A que distância!... (Nem o acho... ) O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa, Pondo grelado nas paredes... O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), O que eu sou hoje é terem vendido a casa, É terem morrido todos, É estar eu sobrevivente a mim- mesmo como um fósforo frio... No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ... Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, Por uma viagem metafísica e carnal, Com uma dualidade de eu para mim... Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes! Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui... A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos, O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado, As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . . Pára, meu coração! Não penses! Deixa o pensar na cabeça! Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! Hoje já não faço anos. Duro. Somam-se-me dias. Serei velho quando o for. Mais nada. Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ... O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!... {Álvaro de Campos} UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 75 O Louco Para Altamirando Camacam Enlouqueci, um girassol nasceu na minha boca. Os pássaros já estão fazendo ninho Atrás da minha orelha. Enlouqueci, o azul explodiu em fevereiro. Vou conhecer Londres no meu bergantim de pirata. As ruas são-me passarela para bailar. Não me conheceis, transeuntes? Não me conheceis, moça de olhos calmos Do último andar do edifício? Sou o Louco. Prometi as chuvas do mês passado. Prometi as árvores. Prometi os vinhos. Prometi este intenso azul de fevereiro. Faço promessas maravilhosas. E vede que se cumprem. Abram as portas. Chamem vossos filhos. Chamem vossas noivas. Os garotos vão rir de mim. Por acaso, não quereis que as vossas noivas se divirtam? Não há quem não ache graça Do meu aspecto excessivo de profeta. Convidem todo mundo. Trago uma flor no bolso de dentro do paletó Para ofertar ao sorriso mais inocente da cidade. Não tenham medo. Não faço mal a ninguém. Sou o Louco. Affonso Manta [O Retrato de um Poeta] UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 76 O Buraco do Espelho Arnaldo Antunes o buraco do espelho está fechado agora eu tenho que ficar aqui com um olho aberto, outro acordado no lado de lá onde eu caí pro lado de cá não tem acesso mesmo que me chamem pelo nome mesmo que admitam meu regresso toda vez que eu vou a porta some a janela some na parede a palavra de água se dissolve na palavra sede, a boca cede antes de falar, e não se ouve já tentei dormir a noite inteira quatro, cinco, seis da madrugada vou ficar ali nessa cadeira uma orelha alerta, outra ligada o buraco do espelho está fechado agora eu tenho que ficar agora fui pelo abandono abandonado aqui dentro do lado de fora (in o carioca - revista de arte e cultura nº 2/ julho e agosto 1996)
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