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SELEÇÃO DE POEMAS[1]

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UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 
 
 
1 
Dedicatória 
(A Cícero) 
 
 
 Pegue o que quiser, 
 não há direitos 
 somente deveres 
autorais 
 
godard a bertolucci, 
que solicitara imagens 
para os sonhadores 
 
se há 
um poema foi feito para se dar 
nenhum poema deveria aguardar 
no sótão na gaveta no porão 
 hangar 
todo poema se existe é dom 
nem comércio nem benção 
 doação 
mesmo não-poema, ou quase, um 
poema 
A contrapelo de cofre gaveta 
rígido disco ou escape 
grátis esvoaça entoando 
o sim mais o não 
um poema não se furta 
doa veia a veia à toa 
 
 
 
 
 
 
 
À toa como a vida 
se abre arma 
zen 
 
por isso todo poema 
se dedica mesmo 
(beltrano sicarno fulano) 
quando não porta 
nome senha indicação 
 
escrever é transferir 
sem escritura 
atestado ou posse 
certidão 
 
mesmo na dúvida 
mesmo na dívida 
salto sem proteção 
o poema escapole 
pronto se foi 
sem controle 
de si autorizado 
um mote para outros 
& mais outros 
ao infinito 
re ver ber a r 
 
(30.XII.04) 
 
{NASCIMENTO, Evando. Dedicatória. In:___. Retrato Desnatural (diários – 2004 a 2007). 
Rio de Janeiro: Record, 2008} 
 
UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 
 
 
2 
 
 
I. 
 
Por viver muitos anos dentro do mato 
moda ave 
O menino pegou um olhar de pássaro – 
Contraiu visão Fontana. 
Por forma que ele enxergava as coisas 
por igual 
como os pássaros enxergam. 
As coisas ainda inominadas. 
Água não era ainda a palavra água. 
Pedra não era ainda a palavra pedra. 
E tal. 
As palavras eram livres de gramáticas e 
podiam ficar em qualquer posição. 
Por forma que o menino podia inaugurar. 
Podia dar às pedras costumes de flor. 
Podia dar ao canto formato de sol. 
E, se quisesse caber em uma abelha, era 
só abrir a palavra abelha e entrar dentro 
dela. 
Como se fosse a infância da língua. 
 
{BARROS, Manoel de. Canção do ver. In:___. Poemas Rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004} 
 
UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 
 
 
3 
SONATA AO LUAR 
 
Sombra Boa não tinha e-mail. 
Escreveu um bilhete: 
Maria me espera debaixo do ingazeiro 
quando a lua estiver arta. 
Amarrou o bilhete no pescoço do cachorro 
e atiçou: 
Vai, Ramela, passa! 
Ramela alcançou a cozinha num átimo. 
Maria leu e sorriu. 
Quando a lua ficou arta Maria estava. 
E o amor se fez 
Sob um luar sem defeito de abril. 
 
{BARROS, Manoel de. Desenhos de uma voz. In:___. Poemas Rupestres. Rio de Janeiro: Record, 
2004} 
 
UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 
 
 
4 
VENTO 
 
Se a gente jogar uma pedra no vento 
Ele nem olha pra trás. 
Se a gente atacar o vento com uma enxada 
Ele nem sai sangue da bunda. 
Ele não dói nada. 
Vento não tem tripa. 
Se a gente enfiar uma faca no vento 
Ele nem faz ui. 
A gente estudou no Colégio que vento 
é o ar em movimento. 
E que o ar em movimento é vento. 
Eu quis uma vez implantar uma costela 
no vento. 
Depois me ensinaram que vento não tem 
organismo. 
Fiquei estudado. 
 
{BARROS, Manoel de. Desenhos de uma voz. In:___. Poemas Rupestres. Rio de Janeiro: Record, 
2004} 
 
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5 
O COPO 
 
Estava o jacaré na beira do brejo 
tomando um copo de sol. 
Foi o menino 
E tascou uma pedra 
No olho do jacaré. 
O bicho soltou três urros 
E quebrou o silêncio do lugar. 
Os cacos do silêncio ficaram espalhados 
na praia. 
O copo de sol não rachou nem. 
 
 
 
{BARROS, Manoel de. Desenhos de uma voz. In:___. Poemas Rupestres. Rio de Janeiro: Record, 
2004} 
 
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6 
NOTÍCIA DE JORNAL 
Haroldo Barbosa e Luiz Reis 
 
Tentou contra a existência num humilde barracão 
Joana de tal 
por causa de um tal João. 
 
Depois de medicada retirou-se pro seu lar 
 
Aí, a notícia carece de exatidão: 
O lar não mais existe, ninguém volta ao que acabou. 
Joana é mais uma mulata triste que errou. 
Errou na dose, errou no amor, 
Joana errou de João, 
Ninguém notou. 
Ninguém morou 
Na dor que era o seu mal 
A dor da gente não sai no jornal 
 
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7 
 
NO CORPO 
 
De que vale tentar reconstruir com palavras 
O que o verão levou 
Entre nuvens e risos 
Junto com o jornal velho pelos ares 
O sonho na boca, o incêndio na cama, 
o apelo da noite 
Agora são apenas esta 
contração (este clarão) 
do maxilar dentro do rosto. 
A poesia é o presente. 
 
{GULLAR, Ferreira. No corpo. In:___. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008} 
 
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8 
 
SUBVERSIVA 
 
 
A poesia 
Quando chega 
Não respeita nada. 
 
Nem pai nem mãe. 
Quando ela chega 
De qualquer de seus abismos 
 
Desconhece o Estado e a Sociedade Civil 
Infringe o Código de Águas 
Relincha 
 
Como puta 
Nova 
Em frente ao Palácio da Alvorada. 
 
E só depois 
Reconsidera: beija 
Nos olhos os que ganham mal 
Embala no colo 
Os que têm sede de felicidade 
E de justiça. 
 
E promete incendiar o país. 
 
 
{GULLAR, Ferreira. Subversiva. In:___. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008} 
 
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9 
POEMA BRASILEIRO 
No Piauí de cada 100 crianças que nascem 
78 morrem antes de completar 8 anos de idade 
 
No Piauí 
de cada 100 crianças que nascem 
78 morrem antes de completar 8 anos de idade 
 
No Piauí 
de cada 100 crianças que nascem 
78 morrem 
antes 
de completar 
8 anos de idade 
 
Antes de completar 8 anos de idade 
Antes de completar 8 anos de idade 
Antes de completar 8 anos de idade 
Antes de completar 8 anos de idade 
 
 
 
{GULLAR, Ferreira. Poema Brasileiro. In:___. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 
2008} 
 
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10 
 
 
UM SORRISO 
 
Quando 
com minhas mãos de labareda 
te acendo e em rosa 
embaixo 
te espetalas 
quando 
com meu facho aceso e cego 
penetro a noite de tua flor que exala 
urina 
e mel 
que busco com toda essa assassina 
fúria de macho? 
que busco eu 
em fogo 
aqui embaixo? 
senão colher com a repentina 
mão do delírio 
uma outra flor: a do sorriso 
que no alto o teu rosto ilumina? 
 
 
 
{GULLAR, Ferreira. Um sorriso. In:___. Obras Completas. Rio 
de Janeiro: Nova Aguilar, 2008} 
 
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11 
Reinvenção 
 
A vida só é possível 
reinventada. 
 
Anda o sol pelas campinas 
e passeia a mão dourada 
pelas águas, pelas folhas... 
Ah! tudo bolhas 
que vem de fundas piscinas 
de ilusionismo... — mais nada. 
 
Mas a vida, a vida, a vida, 
a vida só é possível 
reinventada. 
 
Vem a lua, vem, retira 
as algemas dos meus braços. 
Projeto-me por espaços 
cheios da tua Figura. 
Tudo mentira! Mentira 
da lua, na noite escura. 
 
 
Não te encontro, não te alcanço... 
Só — no tempo equilibrada, 
desprendo-me do balanço 
que além do tempo me leva. 
Só — na treva, 
fico: recebida e dada. 
 
Porque a vida, a vida, a vida, 
a vida só é possível 
reinventada. 
 
{MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} 
 
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12 
 
 
 
 
 
TRANSFORMAÇÃO DO DANÇARINO 
 
Nasce da sombra o dançarino, 
de um ovo de seda e mistério. 
E seu perfil é transparente, 
e sua carne é a de um inseto. 
 
Eu o amo como às borboletas, 
à asa das libélulas - e erro 
 
no seu mundo sem solo, reino, 
que se vai tornando sidéreo. 
 
Suas tênues mãos nadatocam, 
e olha entre verdes águas, cego. 
Cada posição de seu corpo 
é um símbolo instantâneo e hermético. 
 
Toma nos lábios o silêncio 
e é um peixe bebendo o mar, quieto. 
Gira, e súbito se divide, 
como espelho que cai de um prego. 
 
{MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} 
 
 
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13 
 
Canção 
 
 
Pus o meu sonho num navio 
e o navio em cima do mar; 
- depois, abri o mar com as mãos, 
para o meu sonho naufragar 
 
 
Minhas mãos ainda estão molhadas 
do azul das ondas entreabertas, 
e a cor que escorre de meus dedos 
colore as areias desertas. 
 
 
O vento vem vindo de longe, 
a noite se curva de frio; 
debaixo da água vai morrendo 
meu sonho, dentro de um navio... 
 
 
Chorarei quanto for preciso, 
para fazer com que o mar cresça, 
e o meu navio chegue ao fundo 
e o meu sonho desapareça. 
 
 
Depois, tudo estará perfeito; 
praia lisa, águas ordenadas, 
meus olhos secos como pedras 
e as minhas duas mãos quebradas. 
 
{MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} 
 
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14 
 
Canção 
 
 
No desequilíbrio dos mares, 
as proas giram sozinhas... 
Numa das naves que afundaram 
é que certamente tu vinhas. 
 
 
Eu te esperei todos os séculos 
sem desespero e sem desgosto, 
e morri de infinitas mortes 
guardando sempre o mesmo rosto 
 
 
Quando as ondas te carregaram 
meu olhos, entre águas e areias, 
cegaram como os das estátuas, 
a tudo quanto existe alheias. 
 
 
Minhas mãos pararam sobre o ar 
e endureceram junto ao vento, 
e perderam a cor que tinham 
e a lembrança do movimento. 
 
 
E o sorriso que eu te levava 
desprendeu-se e caiu de mim: 
e só talvez ele ainda viva 
dentro destas águas sem fim. 
 
{MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} 
 
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15 
 
Motivo 
 
Eu canto porque o instante existe 
e a minha vida está completa. 
Não sou alegre nem sou triste: 
sou poeta. 
 
 
Irmão das coisas fugidias, 
não sinto gozo nem tormento. 
Atravesso noites e dias 
no vento. 
 
 
Se desmorono ou se edifico, 
se permaneço ou me desfaço, 
— não sei, não sei. Não sei se fico 
ou passo. 
 
 
Sei que canto. E a canção é tudo. 
Tem sangue eterno a asa ritmada. 
E um dia sei que estarei mudo: 
— mais nada. 
 
{MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} 
 
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16 
 
Retrato 
 
Eu não tinha este rosto de hoje, 
assim calmo, assim triste, assim magro, 
nem estes olhos tão vazios, 
nem o lábio amargo. 
 
 
Eu não tinha estas mãos sem força, 
tão paradas e frias e mortas; 
eu não tinha este coração 
que nem se mostra. 
 
 
Eu não dei por esta mudança, 
tão simples, tão certa, tão fácil: 
— Em que espelho ficou perdida 
a minha face? 
 
{MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} 
 
UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 
 
 
17 
Marinha 
 
O barco é negro sobre o azul. 
 
Sobre o azul os peixes são negros. 
 
Desenham malhas negras as redes, sobre o azul. 
 
Sobre o azul, os peixes são negros. 
Negras são as vozes dos pescadores, 
atirando-se palavras no azul. 
 
É o último azul do mar e do céu. 
 
A noite já vem, dos lados de Burma, 
toda negra, 
molhada de azul: 
 
— a noite que chega também do mar. 
{MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} 
 
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18 
 
 
 
PRINCIPIANTE 
 
Sua mão mal se movimenta, 
custa a escorregar pela mesa, 
caracol no jardim da ciência, 
desenrolando letra a letra 
a obscura linha do seu nome. 
 
Ah, como é leve o átomo puro, 
e ágil o equilíbrio do mundo, 
e rápido, e célere, o curso 
do céu, do destino de tudo! 
 
Mas na terra o pálido aluno 
devagar escreve o seu nome. 
 
{MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} 
 
 
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19 
 
Leveza 
 
Leve é o pássaro: 
e a sua sombra voante, 
mais leve. 
 
E a cascata aérea 
de sua garganta, 
mais leve. 
E o que lembra, ouvindo-se 
deslizar seu canto, 
mais leve. 
E o desejo rápido 
desse mais antigo instante, 
mais leve. 
E a fuga invisível 
do amargo passante, 
mais leve. 
 
{MEIRELES, Cecília. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.} 
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20 
 
VERSOS ESCRITOS NÁGUA 
 
Os poucos versos que aí vão, 
Em lugar de outros é que os ponho. 
Tu que me lês, deixo ao teu sonho 
Imaginar como serão 
 
Neles porás tua tristeza 
Ou bem teu júbilo, e, talvez, 
Lhes acharás, tu que me lês, 
Alguma sombra de beleza... 
 
Quem os ouviu não os amou. 
Meus pobres versos comovidos! 
Por isso fiquem esquecidos 
Onde o mau vento os atirou. 
 
{BANDEIRA, Manuel. In:___. A cinza das horas. Obras completas. Rio de Janeiro: 
Nova Aguilar, 1993} 
 
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21 
Balõezinhos 
Na feira livre do arrabaldezinho 
Um homem loquaz apregoa balõezinhos de cor: 
- "O melhor divertimento para as crianças!" 
Em redor dele há um ajuntamento de menininhos pobres, 
Fitando com olhos muito redondos os grandes balõezinhos muito redondos. 
No entanto a feira burburinha. 
Vão chegando as burguesinhas pobres, 
E as criadas das burguesinhas ricas, 
E mulheres do povo, e as lavadeiras da redondeza. 
Nas bancas de peixe, 
Nas barraquinhas de cereais, 
Junto às cestas de hortaliças 
O tostão é regateado com acrimônia. 
Os meninos pobres não vêem as ervilhas tenras, 
Os tomatinhos vermelhos, 
Nem as frutas, 
Nem nada. 
Sente-se bem que para eles ali na feira os balõezinhos de cor são a 
[única mercadoria útil e verdadeiramente indispensável. 
O vendedor infatigável apregoa: 
- "O melhor divertimento para as crianças!" 
E em torno do homem loquaz os menininhos pobres fazem um 
[círculo inamovível de desejo e espanto. 
{BANDEIRA, Manuel. In:___. Ritmo dissoluto. Obras completas. Rio de Janeiro: 
Nova Aguilar, 1993} 
 
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22 
 
Teresa 
 
 
A primeira vez que vi Teresa 
Achei que ela tinha pernas estúpidas 
Achei também que a cara parecia uma perna 
 
Quando vi Teresa de novo 
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo 
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse) 
 
Da terceira vez não vi mais nada 
Os céus se misturaram com a terra 
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas. 
{BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} 
 
UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 
 
 
23 
 
A morte absoluta 
 
 
Morrer. 
Morrer de corpo e de alma. 
Completamente. 
 
Morrer sem deixar o triste despojo da carne, 
A exangue máscara de cera, 
Cercada de flores, 
Que apodrecerão - felizes! - num dia, 
Banhada de lágrimas 
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte. 
 
Morrer sem deixar porventura uma alma errante... 
A caminho do céu? 
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu? 
 
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra, 
A lembrança de uma sombra 
Em nenhum coração, em nenhum pensamento, 
Em nenhuma epiderme. 
 
Morrer tão completamente 
Que um dia ao lerem o teu nome num papelPerguntem: "Quem foi?..." 
 
Morrer mais completamente ainda, 
- Sem deixar sequer esse nome. 
 
{BANDEIRA, Manuel. In:___. Lira dos cinquent’anos. Obras completas. Rio de 
Janeiro: Nova Aguilar, 1993} 
 
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24 
 
Meninos carvoeiros 
 
Os meninos carvoeiros 
Passam a caminho da cidade. 
— Eh, carvoero! 
E vão tocando os animais com um relho enorme. 
 
Os burros são magrinhos e velhos. 
Cada um leva seis sacos de carvão de lenha. 
A aniagem é toda remendada. 
Os carvões caem. 
(Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe, dobrando-se com um 
gemido.) 
 
— Eh, carvoero! 
Só mesmo estas crianças raquíticas 
Vão bem com estes burrinhos descadeirados. 
A madrugada ingênua parece feita para eles... 
Pequenina, ingênua miséria! 
Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis! 
—Eh, carvoero! 
 
 
Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado, 
Encarapitados nas alimárias, 
Apostando corrida, 
Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos desamparados. 
 
Petrópolis, 1921 
 
{BANDEIRA, Manuel. In: ___. Ritmo dissoluto. Obras completas. Rio de Janeiro: 
Nova Aguilar, 1993} 
 
UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 
 
 
25 
 
Pneumotórax 
 
 
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. 
A vida inteira que podia ter sido e que não foi. 
Tosse, tosse, tosse. 
 
 
Mandou chamar o médico: 
— Diga trinta e três. 
— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . . 
— Respire. 
 
............................................................................................................... 
 
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. 
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? 
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. 
 
 
{BANDEIRA, Manuel. In:___. Libertinagem. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova 
Aguilar, 1993} 
 
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26 
 
Profundamente 
 
Quando ontem adormeci 
Na noite de São João 
Havia alegria e rumor 
Vozes cantigas e risos 
Ao pé das fogueiras acesas. 
 
No meio da noite despertei 
Não ouvi mais vozes nem risos 
Apenas balões 
Passavam errantes 
Silenciosamente 
Apenas de vez em quando 
O ruído de um bonde 
Cortava o silêncio 
Como um túnel. 
Onde estavam os que há pouco 
Dançavam 
Cantavam 
E riam 
Ao pé das fogueiras acesas? 
 
— Estavam todos dormindo 
Estavam todos deitados 
Dormindo 
Profundamente. 
 
 * 
 
Quando eu tinha seis anos 
Não pude ver o fim da festa de São 
João 
Porque adormeci. 
 
Hoje não ouço mais as vozes daquele 
tempo 
Minha avó 
Meu avô 
Totônio Rodrigues 
Tomásia 
Rosa 
Onde estão todos eles? 
— Estão todos dormindo 
Estão todos deitados 
Dormindo 
Profundamente. 
 
 
{BANDEIRA, Manuel. In:___. Libertinagem. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova 
Aguilar, 1993} 
 
UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 
 
 
27 
Vou-me embora pra Pasárgada 
 
Vou-me embora pra Pasárgada 
Lá sou amigo do rei 
Lá tenho a mulher que eu quero 
Na cama que escolherei 
Vou-me embora pra Pasárgada 
 
 
Vou-me embora pra Pasárgada 
Aqui eu não sou feliz 
Lá a existência é uma aventura 
De tal modo inconseqüente 
Que Joana a Louca de Espanha 
Rainha e falsa demente 
Vem a ser contraparente 
Da nora que eu nunca tive 
 
 
E como farei ginástica 
Andarei de bicicleta 
Montarei em burro brabo 
Subirei no pau-de-sebo 
Tomarei banhos de mar! 
E quando estiver cansado 
Deito na beira do rio 
Mando chamar a mãe-d'água 
Pra me contar as histórias 
Que no tempo de eu menino 
Rosa vinha me contar 
Vou-me embora pra Pasárgada 
 
 
Em Pasárgada tem tudo 
É outra civilização 
Tem um processo seguro 
De impedir a concepção 
Tem telefone automático 
Tem alcalóide à vontade 
Tem prostitutas bonitas 
Para a gente namorar 
 
 
 
E quando eu estiver mais triste 
Mas triste de não ter jeito 
Quando de noite me der 
Vontade de me matar 
— Lá sou amigo do rei — 
Terei a mulher que eu quero 
Na cama que escolherei 
Vou-me embora pra Pasárgada 
 
{BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} 
 
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28 
Evocação do Recife 
 
Recife 
Não a Veneza americana 
Não a Mauritsstad dos armadores das 
Índias Ocidentais 
Não o Recife dos Mascates 
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar 
depois 
— Recife das revoluções libertárias 
Mas o Recife sem história nem literatura 
Recife sem mais nada 
Recife da minha infância 
A rua da União onde eu brincava de 
chicote-queimado 
e partia as vidraças da casa de dona 
Aninha Viegas 
Totônio Rodrigues era muito velho e 
botava o pincenê 
na ponta do nariz 
Depois do jantar as famílias tomavam a 
calçada com cadeiras 
mexericos namoros risadas 
A gente brincava no meio da rua 
Os meninos gritavam: 
Coelho sai! 
Não sai! 
 
A distância as vozes macias das meninas 
politonavam: 
Roseira dá-me uma rosa 
Craveiro dá-me um botão 
 
(Dessas rosas muita rosa 
Terá morrido em botão...) 
De repente 
nos longos da noite 
um sino 
Uma pessoa grande dizia: 
Fogo em Santo Antônio! 
Outra contrariava: São José! 
Totônio Rodrigues achava sempre que 
era são José. 
Os homens punham o chapéu saíam 
fumando 
E eu tinha raiva de ser menino porque 
não podia ir ver o fogo. 
 
Rua da União... 
Como eram lindos os montes das ruas da 
minha infância 
Rua do Sol 
(Tenho medo que hoje se chame de dr. 
Fulano de Tal) 
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade... 
...onde se ia fumar escondido 
Do lado de lá era o cais da Rua da 
Aurora... 
...onde se ia pescar escondido 
Capiberibe 
— Capiberibe 
Lá longe o sertãozinho de Caxangá 
Banheiros de palha 
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho 
Fiquei parado o coração batendo 
Ela se riu 
Foi o meu primeiro alumbramento 
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores 
destroços redemoinho sumiu 
E nos pegões da ponte do trem de ferro 
os caboclos destemidos em jangadas de 
bananeiras 
 
Novenas 
Cavalhadas 
E eu me deitei no colo da menina e ela 
começou 
a passar a mão nos meus cabelos 
Capiberibe 
— Capiberibe 
Rua da União onde todas as tardes 
passava a preta das bananas 
Com o xale vistoso de pano da Costa 
E o vendedor de roletes de cana 
O de amendoim 
que se chamava midubim e não era 
torrado era cozido 
Me lembro de todos os pregões: 
Ovos frescos e baratos 
Dez ovos por uma pataca 
Foi há muito tempo... 
A vida não me chegava pelos jornais nem 
pelos livros 
Vinha da boca do povo na língua errada 
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29 
do povo 
Língua certa do povo 
Porque ele é que fala gostoso o português 
do Brasil 
Ao passo que nós 
O que fazemos 
É macaquear 
A sintaxe lusíada 
A vida com uma porção de coisas que eu 
não entendia bem 
Terras que não sabia onde ficavam 
Recife... 
Rua da União... 
A casa de meu avô... 
Nunca pensei que ela acabasse! 
Tudo lá parecia impregnado de 
eternidade 
Recife... 
Meu avô morto. 
Recife morto, Recife bom, Recife 
brasileiro 
como a casa de meu avô. 
 
 
{BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} 
 
 
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30 
 
Poema do beco 
 
 
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? 
— O que eu vejo é o beco. 
{BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} 
 
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31 
 
Poema tirado de uma notíciade jornal 
 
João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num 
barracão sem número 
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro 
Bebeu 
Cantou 
Dançou 
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado. 
 
{BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} 
 
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32 
Trem de ferro 
 
Café com pão 
Café com pão 
Café com pão 
 
Virge Maria que foi isso maquinista? 
 
Agora sim 
Café com pão 
Agora sim 
Voa, fumaça 
Corre, cerca 
Ai seu foguista 
Bota fogo 
Na fornalha 
Que eu preciso 
Muita força 
Muita força 
Muita força 
(trem de ferro, trem de ferro) 
 
 
Oô... 
Foge, bicho 
Foge, povo 
Passa ponte 
Passa poste 
Passa pasto 
Passa boi 
Passa boiada 
Passa galho 
Da ingazeira 
Debruçada 
No riacho 
Que vontade 
De cantar! 
Oô... 
(café com pão é muito bom) 
 
 
Quando me prendero 
No canaviá 
Cada pé de cana 
Era um oficiá 
Oô... 
Menina bonita 
Do vestido verde 
Me dá tua boca 
Pra matar minha sede 
Oô... 
Vou mimbora vou mimbora 
Não gosto daqui 
Nasci no sertão 
Sou de Ouricuri 
Oô... 
 
 
Vou depressa 
Vou correndo 
Vou na toda 
Que só levo 
Pouca gente 
Pouca gente 
Pouca gente... 
(trem de ferro, trem de ferro) 
 
 
{BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} 
 
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33 
Última Canção do Beco 
Beco que cantei num dístico 
Cheio de elipses mentais, 
Beco das minhas tristezas, 
Das minhas perplexidades 
(Mas também dos meus amores, 
Dos meus beijos, dos meus sonhos), 
Adeus para nunca mais! 
Vão demolir esta casa. 
Mas meu quarto vai ficar, 
Não como forma imperfeita 
Neste mundo de aparências: 
Vai ficar na eternidade, 
Com seus livros, com seus quadros, 
Intacto, suspenso no ar! 
Beco de sarças de fogo, 
De paixões sem amanhãs, 
Quanta luz mediterrânea 
No esplendor da adolescência 
Não recolheu nestas pedras 
O orvalho das madrugadas, 
A pureza das manhãs! 
Beco das minhas tristezas. 
Não me envergonhei de ti! 
Foste rua de mulheres? 
Todas são filhas de Deus! 
Dantes foram carmelitas... 
E eras só de pobres quando, 
Pobre, vim morar aqui. 
Lapa-Lapa do Desterro-, 
Lapa que tanto pecais! 
(Mas quando bate seis horas, 
Na primeira voz dos sinos, 
Como na voz que anunciava 
A conceição de Maria, 
Que graças angelicais!) 
Nossa Senhora do Carmo, 
De lá de cima do altar, 
Pede esmolas para os pobres, 
Para mulheres tão tristes, 
Para mulheres tão negras, 
Que vêm nas portas do templo 
De noite se agasalhar. 
Beco que nasceste à sombra 
De paredes conventuais, 
És como a vida, que é santa 
Pesar de todas as quedas. 
Por isso te amei constante 
E canto para dizer-te 
Adeus para nunca mais! 
 
 
{BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} 
 
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34 
 
"A ûltima Canção do Beco" é o melhor poema para exemplificar como em minha 
poesia quase tudo resulta de um jogo de intuições. Não faço poesia quando quero e 
sim quando ela, poesia, quer. E ela quer às vezes em horas impossíveis: no meio da 
noite, ou quando estou em cima da hora para ir dar uma aula na Faculdade de 
Filosofia ou sair para um jantar de cerimônia... "A ûltima Canção do Beco" nasceu 
num momento destes, só que o jantar não era de cerimônia. Na véspera de me 
mudar da Rua Morais e Vale, às seis e tanto da tarde, tinha eu acabado de arrumar 
meus troços e caíra exausto na cama. Exausto da arrumação e um pouco também 
da emoção de deixar aquele ambiente, onde vivera nove anos. De repente a emoção 
se ritmou em redondilhas, escrevi a primeira estrofe, mas era hora de despedir-me 
para sair, vesti-me com os versos surdindo na cabeça, desci à rua, no Beco das 
Carmelitas me lembrei de Raul de Leoni, e os versos vindo sempre, e eu com medo 
de esquecê-los, tomei um bonde, saquei do bolso um pedaço de papel e um lápis, 
fui tomando as minhas notas numa estenografia improvisada, senão quando lá se 
quebrou a ponta do lápis, os versos não paravam...Chegando ao meu destino, pedi 
um lápis e escrevi o que ainda guardava de cor...De volta a casa, bati os versos na 
máquina e 
fiquei espantadíssimo ao verificar que o poema se compusera, à minha revelia, em 
sete estrofes de sete versos de sete sílabas. 
{BANDEIRA, Manuel. In: Itinerário de Pasárgada. Obras completas. Rio de Janeiro: 
Nova Aguilar, 1993} 
 
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35 
 
AUTO-RETRATO 
 
Provinciano que nunca soube 
Escolher bem uma gravata; 
Pernambucano a quem repugna 
A faca do pernambucano; 
Poeta ruim que na arte da prosa 
Envelheceu na infância da arte, 
E até mesmo escrevendo crônicas 
Ficou cronista de província; 
Arquiteto falhado, músico 
Falhado (engoliu um dia 
Um piano, mas o teclado 
Ficou de fora); sem família 
Religião ou filosofia; 
Mal tendo a inquietação de espírito 
Que vem do sobrenatural, 
E em matéria de profissão 
Um tísico profissional. 
{BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993} 
 
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36 
INICIAÇÃO AMOROSA 
 
A rede entre duas mangueiras 
balançava no mundo profundo. 
O dia era quente, sem vento. 
O sol lá em cima, 
as folhas no meio, 
o dia era quente. 
E como eu não tinha nada que fazer vivia namorando as pernas morenas da 
lavadeira. 
 
Um dia ela veio para a rede, 
se enroscou nos meus braços, 
me deu um abraço, 
me deu as maminhas 
que eram só minhas. 
A rede virou, 
o mundo afundou. 
 
Depois fui para a cama 
febre 40 graus de febre. 
Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas, girava no espaço verde. 
 
{ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. In:___. Poesia completa. Rio de 
Janeiro: Nova Aguilar, 2002.} 
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37 
Ausência 
 
Por muito tempo achei que a ausência é falta. 
E lastimava, ignorante, a falta. 
Hoje não a lastimo. 
Não há falta na ausência. 
A ausência é um estar em mim. 
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, 
que rio e danço e invento exclamações alegres, 
porque a ausência, essa ausência assimilada, 
ninguém a rouba mais de mim. 
 
Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond 
 
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38 
Ausência 
 
 
Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces. 
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto. 
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida 
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz. 
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado. 
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados 
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada. 
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado. 
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face. 
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada. 
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite. 
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa. 
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço. 
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado. 
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos. 
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir. 
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas. 
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada. 
 
 
MORAES, Vinícius de. ANTOLOGIA POÉTICA.UFBA – Instituto de Letras :: Prof.ª Dr.ª Lívia Mª Natália SSantos :: Seleção de textos 
 
 
39 
 
O lutador 
Lutar com palavras 
é a luta mais vã. 
Entanto lutamos 
mal rompe a manhã. 
São muitas, eu pouco. 
Algumas, tão fortes 
como o javali. 
Não me julgo louco. 
Se o fosse, teria 
poder de encantá-las. 
Mas lúcido e frio, 
apareço e tento 
apanhar algumas 
para meu sustento 
num dia de vida. 
Deixam-se enlaçar, 
tontas à carícia 
e súbito fogem 
e não há ameaça 
e nem há sevícia 
que as traga de novo 
ao centro da praça. 
Insisto, solerte. 
Busco persuadí-las. 
Ser-lhes-ei escravo 
de rara humildade. 
Guardarei sigilo 
de nosso comércio. 
Na voz, nenhum travo 
de zanga ou desgosto. 
Sem me ouvir deslizam, 
perpassam levíssimas 
e viram-me o rosto. 
Lutar com palavras 
parece sem fruto. 
Não têm carne e sangue... 
Entretanto, luto. 
Palavra, palavra 
(digo exasperado), 
se me desafias, 
aceito o combate. 
Quisera possuir-te 
neste escampado, 
sem roteiro de unha 
 
 
ou marca de dente 
nessa pele clara. 
Preferes o amor 
de uma posse impura 
e que venha o gozo 
da maior tortura. 
Luto corpo a corpo, 
luto todo o tempo, 
sem maior proveito 
que o da caça ao vento. 
Não encontro vestes, 
não seguro formas, 
é fluido inimigo 
que me dobra os músculos 
e ri-se das normas 
da boa peleja. 
Iludo-me às vezes, 
pressinto que a entrega 
se consumirá. 
Já vejo palavras 
em coro submisso, 
esta me ofertando 
seu velho calor, 
outra sua glória 
feita de mistério, 
outra seu desdém, 
outra seu ciúme, 
e um sapiente amor 
me ensina a fruir 
de cada palavra 
a essência captada, 
o sutil queixume. 
Mas ai! É o instante 
de entreabrir os olhos: 
entre beijo e boca, 
tudo se evapora. 
O ciclo do dia 
ora se consuma 
e o inútil duelo 
jamais se resolve. 
O teu rosto belo, 
ó palavra, esplende 
na curva da noite 
que toda me envolve. 
Tamanha paixão 
e nenhum pecúlio. 
Cerradas as portas, 
a luta prossegue 
nas ruas do sono. 
 
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40 
ANDRADE, Carlos Drummond de. In:___. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.}
 
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41 
 
Poema de sete faces 
 
Quando nasci, um anjo torto 
desses que vivem na sombra 
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. 
 
As casas espiam os homens 
que correm atrás de mulheres. 
A tarde talvez fosse azul, 
não houvesse tantos desejos. 
 
O bonde passa cheio de pernas: 
pernas brancas pretas amarelas. 
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. 
Porém meus olhos 
não perguntam nada. 
 
O homem atrás do bigode 
é sério, simples e forte. 
Quase não conversa. 
Tem poucos , raros amigos 
o homem atrás dos óculos e do bigode. 
 
Meu Deus, por que me abandonaste 
se sabias que eu não era Deus 
se sabias que eu era fraco. 
 
Mundo mundo vasto mundo 
se eu me chamasse Raimundo, 
seria uma rima, não seria uma solução. 
Mundo mundo vasto mundo, 
mais vasto é meu coração. 
 
Eu não devia te dizer 
mas essa lua 
mas esse conhaque 
botam a gente comovido como o diabo. 
 
 
{ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. In:___. Poesia completa. Rio de 
Janeiro: Nova Aguilar, 2002.} 
 
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42 
Procura da poesia 
 
Não faças versos sobre 
acontecimentos. 
Não há criação nem morte perante a 
poesia. 
Diante dela, a vida é um sol estático, 
não aquece nem ilumina. 
As afinidades, os aniversários, os 
incidentes pessoais não contam. 
Não faças poesia com o corpo, 
esse excelente, completo e 
confortável corpo, tão infenso à 
efusão lírica. 
Tua gota de bile, tua careta de gozo 
ou de dor no escuro 
são indiferentes. 
Nem me reveles teus sentimentos, 
que se prevalecem do equívoco e 
tentam a longa viagem. 
O que pensas e sentes, isso ainda não 
é poesia. 
 
Não cantes tua cidade, deixa-a em 
paz. 
O canto não é o movimento das 
máquinas nem o segredo das casas. 
Não é música ouvida de passagem, 
rumor do mar nas ruas junto à linha 
de espuma. 
 
O canto não é a natureza 
nem os homens em sociedade. 
Para ele, chuva e noite, fadiga e 
esperança nada significam. 
A poesia (não tires poesia das coisas) 
elide sujeito e objeto. 
 
Não dramatizes, não invoques, 
não indagues. Não percas tempo em 
mentir. 
Não te aborreças. 
Teu iate de marfim, teu sapato de 
diamante, 
vossas mazurcas e abusões, vossos 
esqueletos de família 
desaparecem na curva do tempo, é 
algo imprestável. 
 
Não recomponhas 
tua sepultada e merencória infância. 
Não osciles entre o espelho e a 
memória em dissipação. 
Que se dissipou, não era poesia. 
Que se partiu, cristal não era. 
Penetra surdamente no reino das 
palavras. 
Lá estão os poemas que esperam ser 
escritos. 
Estão paralisados, mas não há 
desespero, 
há calma e frescura na superfície 
intata. 
Ei-los sós e mudos, em estado de 
dicionário. 
Convive com teus poemas, antes de 
escrevê-los. 
Tem paciência se obscuros. Calma, se 
te provocam. 
Espera que cada um se realize e 
consume 
com seu poder de palavra 
e seu poder de silêncio. 
Não forces o poema a desprender-se 
do limbo. 
Não colhas no chão o poema que se 
perdeu. 
Não adules o poema. Aceita-o 
como ele aceitará sua forma definitiva 
e concentrada 
no espaço. 
 
Chega mais perto e contempla as 
palavras. 
Cada uma 
tem mil faces secretas sob a face 
neutra 
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43 
e te pergunta, sem interesse pela 
resposta, 
pobre ou terrível, que lhe deres: 
Trouxeste a chave? 
 
Repara: 
ermas de melodia e conceito 
elas se refugiaram na noite, as 
palavras. 
Ainda úmidas e impregnadas de sono, 
rolam num rio difícil e se 
transformam em desprezo. 
 
 
 
{ANDRADE, Carlos Drummond de. 
Rosa do povo. In:___. Poesia 
completa. Rio de Janeiro: Nova 
Aguilar, 2002.} 
 
 
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44 
 
 
Poesia 
 
 
Gastei uma hora pensando em um verso 
que a pena não quer escrever. 
No entanto ele está cá dentro 
inquieto, vivo. 
Ele está cá dentro 
e não quer sair. 
Mas a poesia deste momento 
inunda minha vida inteira. 
 
{ANDRADE, Carlos Drummond de. In:___. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova 
Aguilar, 2002.} 
 
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45 
 
 
Os poemas 
 
 
Os poemas são pássaros que chegam 
não se sabe de onde e pousam 
no livro que lês. 
Quando fechas o livro, eles alçam vôo 
como de um alçapão. 
Eles não têm pouso 
nem porto 
alimentam-se um instante em cada par de mãos 
e partem. 
E olhas, então, essas tuas mãos vazias, 
no maravilhoso espanto de saberes 
que o alimento deles já estava em ti... 
 
 
 
{QUINTANA, Mário. Esconderijos do tempo. Porto Alegre: L&PM,1980.} 
 
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46 
 
 
ANUNCIAÇÃO DO POETA 
 
 
Ave, ávido. 
Ave, fome incansável e boca enorme, 
come. 
Da parte do Altíssimo te concedo 
que não descansará e tudo te ferirá de morte: 
o lixo, a catedral e a forma das mãos. 
Ave, cheio de dor. 
 
 
 
 
{PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2004} 
 
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47 
 
 
ORFANDADE 
 
Meu Deus, 
me dá cinco anos. 
Me dá um pé de fedegoso com formiga preta, 
me dá um Natal e sua véspera, 
o ressonar das pessoas no quartinho. 
 
Me dá a negrinha Fia pra eu brincar, 
me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe. 
me dá a mão, me cura de ser grande, 
ó meu Deus, meu pai, 
meu pai. 
 
{PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2004} 
 
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48 
 
 
AZUL SOBRE AMARELO, MARAVILHA E ROXO 
Desejo, como quem sente fome ou sede, 
um caminho de areia margeado de boninas, 
onde só cabem a bicicleta e seu dono. 
Desejo, com uma funda saudade 
de homem ficado órfão pequenino, 
um regaço e o acalanto, a amorosa tenaz de uns dedos 
para um forte carinho em minha nuca. 
Brotam os matinhos depois da chuva, 
brotam desejos do corpo. 
Na alma, o querer de um mundo tão pequeno 
como o que tem nas mãos o Menino Jesus de Praga. 
 
{PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2004} 
 
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49 
 
JANELA 
Janela, palavra linda. 
Janela é o bater das asas da borboleta amarela. 
Abre pra fora as duas folhas de madeira á toa pintada, 
janela jeca, de azul. 
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você, 
 
meu pé esbarra no chão. 
Janela sobre o mundo aberta, por onde vi 
o casamento da Anita esperando neném, a mãe 
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi 
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai: 
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis. 
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão, 
clarabóia na minha alma, 
olho no meu coração. 
 
{PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2004} 
 
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50 
COM LICENÇA POÉTICA 
Quando nasci um anjo esbelto, 
desses que tocam trombeta, anunciou: 
vai carregar bandeira. 
Cargo muito pesado pra mulher, 
esta espécie ainda envergonhada. 
Aceito os subterfúgios que me cabem, 
sem precisar mentir. 
Não sou tão feia que não possa casar, 
acho o Rio de Janeiro uma beleza e 
ora sim, ora não creio em parto sem dor. 
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. 
Inauguro linhagens, fundo reinos 
- dor não é amargura. 
Minha tristeza não tem pedigree, 
já a minha vontade de alegria, 
sua raiz vai ao meu mil avô. 
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. 
Mulher é desdobrável. Eu Sou. 
 
{PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2004} 
 
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51 
 
 
 
 
 
 
Nada, Esta Espuma 
Por afrontamento do desejo 
insisto na maldade de escrever 
mas não sei se a deusa sobe à superfície 
ou apenas me castiga com seus uivos. 
Da amurada deste barco 
quero tanto os seios da sereia. 
{Ana Cristina César} 
 
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52 
 
PRIMEIRO POEMA 
 
Ao F. Paulo Mendes, amigo 
 
 
Por que vos espantais se eu venho sobre as ondas? 
Trago a paz e as distâncias que veem comigo 
na boca tenho mundos e nos olhos palavras. 
Ouvi-me. 
 
Todas as coisas são palavras minhas: 
a mais pura das nuvens 
a mais pura que veio de longe e não se dissolveu 
as colunas incolores além se levantando 
quebradas luminosas líquidas colunas colunas 
os cavalos que se empinam sobre a espuma 
e o calmo silêncio povoando o mar. 
Minhas palavras. 
Antigas porém há pouco descobertas. 
Lentas como o escurecer das nuvens refletidas 
como o tremular tranqüilo da vaga adolescente. 
Materiais límpidas palpáveis 
frias e mornas coloridas de ondas e descendentes pássaros. 
Resumida numa única palavra 
impronunciável Palavra. 
 
Mas eu não sou Senhor 
embora venham comigo a Música e o Poema: 
Por que vos ajoelhais se eu vim por sobre as ondas 
e só tenho palavras? 
Ouvi minha voz de anjo que acordou: 
 
Sou Poeta. 
 
 
 
21.2.48 
 
{FAUSTINO, Mário. Poesia completa; Poesia traduzida. São Paulo: Max Limonad, 
1985} 
 
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53 
O capoeira 
 
- Qué apanhá sordado? 
- O quê? 
- Qué apanhá? 
Pernas e cabeças na calçada. 
 
{ANDRADE, Oswald. Poemas da Colonização. In:__. Pau-Brasil (Obras completas.). 
São Paulo: globo, 2002.} 
 
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54 
Autopsicografia 
 
O poeta é um fingidor. 
Finge tão completamente 
Que chega a fingir que é dor 
A dor que deveras sente. 
 
E os que lêem o que escreve, 
Na dor lida sentem bem, 
Não as duas que ele teve, 
Mas só a que eles não têm. 
 
E assim nas calhas de roda 
Gira, a entreter a razão, 
Esse comboio de corda 
Que se chama coração. 
 
{Fernando Pessoa} 
 
 
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55 
 
Psicologia da composição 
A Antonio Rangel Bandeira 
 
I 
 
Saio de meu poema 
como quem lava as mãos. 
 
Algumas conchas tornaram-se, 
que o sol da atenção 
cristalizou; alguma palavra 
que desabrochei, como a um pássaro. 
 
Talvez alguma concha 
dessas (ou pássaro) lembre, 
côncava, o corpo do gesto 
extinto que o ar já preencheu; 
 
talvez, como a camisa 
vazia, que despi. 
 
{MELO NETO, João Cabral de. Psicologia da composição. In:___. Obra completa. Rio 
de Janeiro: Nova Aguilar, 1994} 
 
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56 
 
Psicologia da composição 
A Lêdo Ivo 
 
II 
 
Esta filha branca 
me proscreve o sonho, 
me incita ao verso 
nítido e preciso. 
 
Eu me refugio 
nesta praia pura 
onde nada existe 
em que a noite pouse. 
 
Como não há noite 
cessa toda fonte; 
como não há fonte 
cessa toda fuga; 
como não há fuga 
nada lembra o fluir 
de meu tempo, ao vento 
que nele sopra o tempo. 
 
{MELO NETO, João Cabral de. Psicologia da composição. In:___. Obra completa. Rio 
de Janeiro: Nova Aguilar, 1994} 
 
 
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57 
Psicologia da composição 
 
III 
 
Neste papel 
pode teu sal 
virar cinza; 
 
pode o limão 
virar pedra; 
o sol da pele 
o trigo do corpo 
virar cinza 
 
(Teme, por isso 
a jovem manhã 
sobre as flores 
da véspera.) 
 
Neste papel 
logo fenecem 
as roxas, mornas 
flores morais; 
todas fluidas 
flores da pressa; 
todas as úmidas 
flores do sonho. 
 
(Espera, por isso, 
que a jovem manhã 
te venha revelar 
as flores da véspera.) 
 
{MELO NETO, João Cabral de. Psicologia da composição. In:___. Obra completa. Rio 
de Janeiro: Nova Aguilar, 1994} 
 
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58 
Psicologia da composição 
 
IV 
 
O poema, com seus cavalos, 
quer explodir 
teu tempo claro; romper 
seu branco fio, seu cimento 
mudo e fresco. 
 
(O descuido ficara aberto 
de par em par; 
um sonho passou deixando 
fiapos, logo árvores instantâneas 
coagulando a preguiça.) 
 
{MELO NETO, João Cabral de. Psicologia da composição. In:___. Obra completa. Rio 
de Janeiro: Nova Aguilar, 1994} 
 
 
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59 
Psicologia da composição 
 
V 
 
Vivo com certas palavras, 
abelhas domésticas. 
 
Do dia aberto 
(branco guarda-sol) 
esses lúcidos furos retiram 
o fio de mel 
(do dia que abriu 
também como flor) 
 
que na noite 
(poço onde vai tombar 
a aérea flor) 
persistirá: louro 
sabor, e ácido, 
contra o açúcar do podre 
 
{MELO NETO, João Cabral de. Psicologia da composição. In:___. Obra completa. Rio 
de Janeiro: Nova Aguilar, 1994} 
 
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60 
Psicologia da composição 
 
VI 
Não a forma encontrada 
como uma concha, perdida 
nos frouxos areais 
como cabelos; 
 
não a forma obtida 
em lance santo ou raro, 
tiro nas lebres de vidro 
do invisível; 
 
mas a forma atingida 
como a ponta do novelo 
que a atenção, lenta, 
desenrola, 
aranha; como o mais extremo 
dessefio frágil, que se rompe 
ao peso, sempre, das mãos 
enormes. 
 
{MELO NETO, João Cabral de. Psicologia da composição. In:___. Obra completa. Rio 
de Janeiro: Nova Aguilar, 1994} 
 
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61 
Os Objetos 
 
Os objetos 
permanecem claros. 
 
Habita a moldura 
uma mulher de faces 
cor-de-rosa. 
 
Sobre a mesa de mármore 
um cavaleiro de porcelana 
saúda as visitas. 
 
A caneta ainda escreve 
com a mesma tinta 
de um azul levemente melancólico. 
 
Na gaveta, dormindo 
sob cartas e poemas, 
o revólver aguarda. 
 
{FILHO, Ruy Espinheira. Heléboro (1966-1973. In:__. Canção de Beatriz e outros 
poemas ; Poesia Reunida – 1966/1990. São Paulo: Brasiliense, 1990} 
 
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62 
In Angello cum libello 
A Antonio Carlos Secchin 
 
Nunca me procurem 
aqui, neste canto. 
Pois, se aqui estou, 
não estou, no entanto. 
 
Na verdade, aqui 
há só aparência 
de alguém que se vai 
longe de sua essência. 
 
 
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63 
 
A idade do serrote 
 
As têmporas de Antonieta. As têmporas da begônia. 
 
As têmporas da romã, as têmporas da maçã, as têmporas 
da hortelã. 
 
As pitangas temporãs. O tempo temporão. O tempo-será. 
As têmporas do tempo. O tempo da onça. 
 
As têmporas da onça. O tampão do tempo. 
 
O temporal do tempo. Os tambores do tempo. As mulheres 
temporãs. 
 
O tempo atual, superado por um tempo de outra dimensão, 
e que não é aquele tempo. Temporizemos. 
 
{Murilo Mendes} 
 
 
 
 
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64 
 
FUNERAL 
 
 
Assustadoramente toca o sino. 
A morte, com seus ternos e tapetes 
sensacionais, conduz, em caracóis, 
dolentes multidões tão carregadas 
 
de vozes que deságuam cemitérios. 
Exposta a dor dos que ficam suspensos, 
começam a florescer outros símbolos: 
rosas brancas ressurgem nas lembranças. 
 
Os pássaros da noite estão no vento, 
vozes que vibram dentro do silêncio, 
tumulto na frieza de uma lápide. 
 
Na agonia de viver tudo morre. 
E o mistério da vida desenvolve, 
na morte, novas vidas em instantes. 
 
 
JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO 
 
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65 
ROSA VIVA 
 
 
Estas rosas que vês em mim são brasas. 
Por isso, muito cuidado ao tocar 
em suas pedras – pétalas sagradas. 
 
Minhas palavras ardem a forjar 
estas flores que canto por prazer 
e que dão febre e fazem delirar. 
 
Meu coração é mesmo a rosa viva. 
Por isso, muito carinho ao pegar 
suas pétalas – pedras tão aflitas. 
 
 
JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO 
 
 
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66 
CÂNTICO DOS CÂNTICOS 
 
 
Que as tuas nádegas aventureiras estejam abertas 
para o poema em linha reta que te ofereço, 
que a minha escrita torta e avessa 
chegue linheira na olaria de tua carne 
e ardas e ardo neste morno forno 
das tuas nádegas tão abundantes. 
 
Das tuas nádegas tão montanhosas 
o horizonte é mais macio e a minha linguagem 
saboreia o mel do fel que trazes 
e de teus olhos gemem os arco-íris 
e teu corpo todo é um esplendor, uma assombração 
e quanta delícia anunciam teus arrepios 
e tuas nádegas aventureiras tão venturosas 
são uma tempestade de emoções. 
 
Que idioma mágico que tu inventas 
quando me aventuro por tuas nádegas 
e me perco profundamente e profundamente 
me encontro na plenitude cega que tudo enxerga 
e profundamente me encanto cantando uníssono 
neste nosso idioma o novo cântico dos cânticos. 
 
 
JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO 
 
Poema do livro Roseiral 
 
 
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67 
SETE IRMÃS 
Para Remedios Varo 
 
 
Essas sete musas mal-assombradas 
de cabeleiras ruivas, encardidas, 
são santas de bocetas encarnadas, 
trazem entre as mãos minhas sete vidas. 
 
As cabeleiras ruivas dessas musas 
são trepadeiras místicas em rito, 
um anelo claro como um oráculo 
a escalar as formas breves do mito. 
 
São sete noites vividas por Borges, 
são sete fadas da ilha de Lesbos, 
são sete acordes de Joaquin Rodrigo, 
são sete facas de Aderaldo, o Cego. 
 
Ah minhas sete irmãs, filhas de Safo, 
lamber vossos cus é meu paraíso! 
A plenitude de vossas entranhas 
é o aconchego destes meus delírios. 
 
Sete musas grávidas, musas graves, 
a gravidade não pesa no abrigo. 
A minha voz é um caminho cego 
como Borges, Aderaldo e Rodrigo. 
 
Ah minhas sete irmãzinhas serenas, 
vamos jogar enquanto há tabuleiro, 
sete damas-rainhas, sete Helenas, 
sou vosso servo, vosso cavaleiro. 
 
Musas oblongas, ventres salientes, 
em vossas carnes quentes eu reparo, 
de fora a fora, com prazer e encanto, 
as sete faces de Remedios Varo. 
 
 
JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO 
 
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68 
 
 
A costureira 
para Danielle Jensen 
 
Ela ouve o tecido, ela pousa 
o ouvido, ela ouve com os olhos. 
À fibra e ao feixe interroga 
 
sobre o que se entrelaçara, 
distinguindo a linha, o intervalo, 
o vão, o entreato, atenta 
 
para o que na fala geométrica 
e repetida dos fios é um outro 
vazio: o de antes da trama, ato 
 
anterior ao enredo; óculos 
postos para a escuta, a escuta 
desfia-se no vento, o olho 
 
flutua, folha, flor, agulha; 
fecha os olhos; ouve 
com as pontas dos dedos; 
 
indaga do tecido o modo, 
os limites, a função, a oficina, 
a forma que ele quer ter, 
 
a coisa, a casa que ele quer ser; 
e costura como quem à mão 
e à máquina descosturasse 
 
o dicionário, rasgando em moles 
móbiles seus hábitos, o vinco 
de sua farda. 
 
 
{FERRAZ, Eucanaã. In:___. Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.} 
{FERRAZ, Eucanaã. In:___. Cinemateca. Lisboa: Quasi Edições, 2009.} 
 
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69 
 
Non sense 
 
 
1. Fila: arranjo linear do caos 
2. Reunião: tudo que é vivo está lá fora 
3. Papel de seda: pele das coisas inesperadas 
4. Pedra: águas mal criadas 
5. Vida: distrações antes da morte 
6. Estética: jejum diante da mesa de iguarias 
7. Insistência: plissado regular do tecido 
8. Diamante: susto de cristal 
9. Gota: mundo em miniatura 
10. Amor eterno: você nunca vai saber o que eu jamais esquecerei 
11. O camafeu é a casa do segredo 
12. Flores: quando a natureza dá gritos de êxtase 
13. Traição: mesmo filtrada, a água é um suco de vidro 
 
{Eliana Mara – http://inscricoessempreabertas.blogspot.com/} 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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70 
 
 
Comoção 
 
Segunda-feira, 23 de Abril de 2010 
 
 
Tenho verdadeira comoção pelo ser humano. Sua arrogância, seu apelo, sua 
solidão. Todos são doces, até aqueles que te ignoram ou te odeiam. Todos, em 
algum momento do dia, se curvam, flexíveis, diante da dor. E todos, 
inexplicavelmente todos, estão definitivamente perdidos. É isso que causa essa 
minha enorme comoção, a ponto de eu chorar forte por alguém que vi uma única 
vez na vida. Ou de vibrar, feliz, ao conhecer olhos adolescentes sem qualquer 
mácula, completamente abertos ao que virá. Sentir pele macia de bebê derreter-se 
em minhas mãos também é comoção, ternura se espalhando, vontade de reter o 
curso do mundo, guardando o bebê no fundo das mãos. E quantos olhos verdes, 
pretos, castanhos, azuis andando por aí, meu Deus. Para que tanta gente nas ruas, 
nos apartamentos, nas casas, nas varandas? Para que essa povoação sem fim,se 
tudo um dia envelhece e sofre e desaparece? Oh, como não amar quem me odeia se 
seremos, juntos, passageiros de Caronte; e possivelmente contaremos uma 
anedota enquanto atravessarmos o rio, para assim quebrarmos o tédio de uma 
existência fleumática e solene, distante e perdida... Diga-me, como não me comover 
com o império dos homens, se fotografias de pessoas bailando sempre 
desaparecem no porão do castelo? 
 
 
{Angela Vilma – wwwaeronauta.blogspot.com} 
 
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71 
 
Da Calma e do Silêncio 
 
Quando eu morder 
a palavra, 
por favor, 
não me apressem, 
quero mascar, 
rasgar entre os dentes, 
a pele, os ossos, o tutano 
do verbo, 
para assim versejar 
o âmago das coisas. 
 
Quando meu olhar 
se perder no nada, 
por favor, 
não me despertem, 
quero reter, 
no adentro da íris, 
a menor sombra, 
do ínfimo movimento. 
 
Quando meus pés 
abrandarem a marcha, 
por favor, 
não me forcem. 
Caminhar para quê? 
Deixem-me quedar, 
deixem-me quieta, 
na aparente inércia. 
Nem todo viandante 
anda estradas, 
há mundos submersos, 
que só o silêncio 
da poesia penetra. 
 
 
 
EVARISTO, Conceição. Da calma e do Silêncio. In:___. Poemas de recordação e 
outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008. 
 
 
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72 
 
 
EU-MULHER 
 
Uma gota de leite 
me escorre entre os seios. 
Uma mancha de sangue 
me enfeita entre as pernas 
Meia palavra mordida 
me foge da boca. 
Vagos desejos insinuam esperanças. 
Eu-mulher em rios vermelhos 
inauguro a vida. 
Em baixa voz 
violento os tímpanos do mundo. 
Antevejo. 
Antecipo. 
Antes-vivo 
Antes - agora - o que há de vir. 
Eu fêmea-matriz. 
Eu força-motriz. 
Eu-mulher 
abrigo da semente 
moto-contínuo 
do mundo. 
 
 
{Conceição Evaristo} 
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73 
 
ESTAÇÕES INTERNAS 
 
Estou contando 
com a primavera. 
Ultimamente 
não tem havido flores 
Dentro de mim; 
Tenho andado 
meio chuvoso, 
Horizontes nublados, 
embora tempestuosos 
São frios, frios. 
Hoje de manhã 
não abri a janela 
Saí de surpresa, 
E de surpresa vi o dia 
Estava lindo. 
E fiquei sem vontade 
De mudar minha 
meteorologia interior 
Decididamente 
vou romper 
com este inverno, 
Estou muito úmido 
por dentro. 
E para tanto, 
receita simples, 
Vou com o vento 
comer, devorar, 
Um raio, 
um raio de sol. 
 
José Carlos Limeira 
 
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74 
Aniversário 
 
No tempo em que festejavam o dia 
dos meus anos, 
Eu era feliz e ninguém estava morto. 
Na casa antiga, até eu fazer anos era 
uma tradição de há séculos, 
E a alegria de todos, e a minha, estava 
certa com uma religião qualquer. 
No tempo em que festejavam o dia 
dos meus anos, 
Eu tinha a grande saúde de não 
perceber coisa nenhuma, 
De ser inteligente para entre a 
família, 
E de não ter as esperanças que os 
outros tinham por mim. 
Quando vim a ter esperanças, já não 
sabia ter esperanças. 
Quando vim a.olhar para a vida, 
perdera o sentido da vida. 
Sim, o que fui de suposto a mim-
mesmo, 
O que fui de coração e parentesco. 
O que fui de serões de meia-
província, 
O que fui de amarem-me e eu ser 
menino, 
O que fui — ai, meu Deus!, o que só 
hoje sei que fui... 
A que distância!... 
(Nem o acho... ) 
O tempo em que festejavam o dia dos 
meus anos! 
O que eu sou hoje é como a umidade 
no corredor do fim da casa, 
Pondo grelado nas paredes... 
O que eu sou hoje (e a casa dos que 
me amaram treme através das 
minhas lágrimas), 
O que eu sou hoje é terem vendido a 
casa, 
É terem morrido todos, 
É estar eu sobrevivente a mim-
mesmo como um fósforo frio... 
No tempo em que festejavam o dia 
dos meus anos ... 
Que meu amor, como uma pessoa, 
esse tempo! 
Desejo físico da alma de se encontrar 
ali outra vez, 
Por uma viagem metafísica e carnal, 
Com uma dualidade de eu para mim... 
Comer o passado como pão de fome, 
sem tempo de manteiga nos dentes! 
Vejo tudo outra vez com uma nitidez 
que me cega para o que há aqui... 
A mesa posta com mais lugares, com 
melhores desenhos na loiça, com mais 
copos, 
O aparador com muitas coisas — 
doces, frutas, o resto na sombra 
debaixo do alçado, 
As tias velhas, os primos diferentes, e 
tudo era por minha causa, 
No tempo em que festejavam o dia 
dos meus anos. . . 
 
Pára, meu coração! 
Não penses! Deixa o pensar na 
cabeça! 
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! 
Hoje já não faço anos. 
Duro. 
Somam-se-me dias. 
Serei velho quando o for. 
Mais nada. 
Raiva de não ter trazido o passado 
roubado na algibeira! ... 
O tempo em que festejavam o dia dos 
meus anos!... 
{Álvaro de Campos} 
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75 
O Louco 
Para Altamirando Camacam 
Enlouqueci, um girassol nasceu na minha boca. 
Os pássaros já estão fazendo ninho 
Atrás da minha orelha. 
Enlouqueci, o azul explodiu em fevereiro. 
Vou conhecer Londres no meu bergantim de pirata. 
As ruas são-me passarela para bailar. 
Não me conheceis, transeuntes? 
Não me conheceis, moça de olhos calmos 
Do último andar do edifício? 
Sou o Louco. 
Prometi as chuvas do mês passado. 
Prometi as árvores. 
Prometi os vinhos. 
Prometi este intenso azul de fevereiro. 
Faço promessas maravilhosas. 
E vede que se cumprem. 
Abram as portas. 
Chamem vossos filhos. 
Chamem vossas noivas. 
Os garotos vão rir de mim. 
Por acaso, não quereis que as vossas noivas se divirtam? 
Não há quem não ache graça 
Do meu aspecto excessivo de profeta. 
Convidem todo mundo. 
Trago uma flor no bolso de dentro do paletó 
Para ofertar ao sorriso mais inocente da cidade. 
Não tenham medo. 
Não faço mal a ninguém. 
Sou o Louco. 
 
 
Affonso Manta 
[O Retrato de um Poeta] 
 
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76 
 
O Buraco do Espelho 
 
Arnaldo Antunes 
 
o buraco do espelho está fechado 
agora eu tenho que ficar aqui 
com um olho aberto, outro acordado 
no lado de lá onde eu caí 
 
pro lado de cá não tem acesso 
mesmo que me chamem pelo nome 
mesmo que admitam meu regresso 
toda vez que eu vou a porta some 
 
a janela some na parede 
a palavra de água se dissolve 
na palavra sede, a boca cede 
antes de falar, e não se ouve 
 
já tentei dormir a noite inteira 
quatro, cinco, seis da madrugada 
vou ficar ali nessa cadeira 
uma orelha alerta, outra ligada 
 
o buraco do espelho está fechado 
agora eu tenho que ficar agora 
fui pelo abandono abandonado 
aqui dentro do lado de fora 
 
 
 
(in o carioca - revista de arte e cultura nº 2/ julho e agosto 1996)

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