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Introdução O trabalho é a base da atividade econômica. É através dele que se dá a produção de bens, cria- se os valores e constitui-se a riqueza social. E para compreender este processo, o presente artigo faz uma análise a cerca do tema Trabalho, sociedade e valor baseado no primeiro capítulo da obra de José Paulo Netto e Marcelo Braz, Economia Política: uma introdução crítica, no qual os autores tratam o tema trabalho além da Economia Política, indicando-o como categoria central não só para a compreensão da atividade econômica, mas para a própria compreensão do fenômeno humano-social. A princípio, a análise baseia-se na definição de trabalho dada pelos autores enquanto transformação da natureza e constituição do ser social, onde o trabalho humano é caracterizado e diferenciado das atividades dos demais animais, ao tempo em que, se estabelece a relação entre natureza e ser social. Posteriormente, seguindo a linha dos autores, discorre-se sobre a práxis como categoria teórica que explica a transcendência do ser social sobre o trabalho através do processo de objetivação e a intrínseca relação entre trabalho e valor, elementos essenciais para a compreensão da economia política. Nesta análise, estas categorias serão abordadas sobre a perspectiva dos autores em pauta, recorrendo a outros autores citados na obra ou em suas obras originais, no sentido de trazer mais elementos para a discussão. O trabalho, a natureza e a constituição do ser social Para Netto e Braz (2009), o trabalho se consolida como a interação sociedade e natureza, onde esta é transformada em produtos para atender às necessidades daquela. Sendo assim, o trabalho humano, diferentemente do dos animais cuja atividade se dá numa relação imediata e de satisfação biologicamente estabelecida, consolida-se através da apropriação e da transformação da natureza pelo homem a partir de uma ação pensada a qual exige o domínio de instrumentos, técnicas, habilidades e conhecimentos, além de criar novas e ilimitadas necessidades. Tal argumento se referencia nas reflexões de Marx: “[...] o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. [...] Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem.” (apud NETTO; BRAZ, 2009, p. 31). Ao estabelecer controle e regulação sobre a natureza e sua transformação a seu favor, o homem diferencia-se dos animais, gerando essa produção especificamente humana, o trabalho. Nesse sentido, Netto e Braz (2009) esclarecem que o trabalho se especifica por uma relação mediada entre o seu sujeito e o seu objeto. Entre o sujeito e a matéria natural há sempre um meio de trabalho, um instrumento que torna mediada a relação entre ambos. Para sua efetivação, o trabalho exige do sujeito o estabelecimento de meios e fins (finalidades) e com estes, a necessidade de escolhas dos melhores meios para se atingir os fins a que se objetiva. O fim é fruto de uma idealização antecipada, ou seja, há uma prefiguração do resultado da ação antes da efetivação da atividade do trabalho. Assim, pontuam [...] é importante ressaltar que o trabalho é uma atividade projetada, teleologicamente direcionada, ou seja: conduzida a partir do fim proposto pelo sujeito. Entretanto, se essa prefiguração (ou, no dizer de Lukács, essa prévia ideação) é indispensável à efetivação do trabalho, ela em absoluto o realiza: a realização do trabalho só se dá quando essa prefiguração ideal se objetiva, isto é, quando a matéria natural, pela ação material do sujeito, é transformada. O trabalho implica, pois, um movimento indissociável em dois planos: num plano subjetivo (pois a prefiguração se processa no âmbito do sujeito) e num plano objetivo (que resulta na transformação material da natureza); assim, a realização do trabalho constitui uma objetivação do sujeito que o efetua. (NETTO; BRAZ, 2009, p. 32, grifos dos autores). Essa teleologia, só se objetiva quando se realiza, fato que só se dar quando a realidade material favorece. Tanto os fins quanto os meios impõem ao sujeito exigências e condições que vão além das determinações naturais, tais quais conhecimento e coordenação múltiplas, conforme colocam Netto e Braz (2009). Para a feitura de instrumentos ou produtos exige-se que o sujeito conheça as propriedades da natureza. É preciso que ele também reproduza idealmente as condições objetivas e possa transmiti-las. Assim, o trabalho também requer comunicação propiciada por um tipo de linguagem articulada, condição para aprender e ser aprendida. Tal comunicação se fortalece na perspectiva de que o trabalho é sempre uma atividade coletiva, pois seu sujeito nunca é um sujeito isolado. Isso se dá na coletivização de conhecimentos que se concretiza na realização de atividades, organização e distribuição de tarefas, etc. Esse caráter coletivo é aquilo que se denominará de social. O trabalho não só transforma a matéria natural. De fato, implica mais que a mera relação sociedade e natureza, posto que ele também transforma o seu sujeito. Sendo assim, o trabalho só deve ser pensado como atividade humana, atividade através da qual se cria a riqueza social. Além disso, ele é também o processo histórico pelo qual surgiu o ser social. Foi através do trabalho que a humanidade se constituiu como tal. Nessa lógica, Lukács (1979) afirma que a sociabilidade humana baseia-se no trabalho, ou seja, a condição objetiva da existência do homem é o trabalho, atividade criadora e idealizada antes mesmo da sua plena execução, fator que o diferencia dos outros animais e o caracteriza como um ser social. É importante ressaltar que a sociedade não pode existir sem a natureza. É ela que transformada pelo trabalho, propicia as condições da manutenção da vida em sociedade. Lessa (2007) corrobora que é impossível pensar numa sociedade sem natureza posto que é ela que garante a reprodução da sociedade. Mesmo para a sociedade capitalista nos moldes atuais mais avançados, a transformação da natureza é imprescindível para valorizar e produzir o capital através da exploração do trabalho abstrato. No entanto, esclarece que o fato de a natureza ser a base indispensável da vida social não há relação de continuidade ou de autonomia entre ela e o ser social. Há uma relação articulada de rupturas que enfatizam as diferenças ontológicas que as separam. O que significa que “enquanto, na natureza, a mera reprodução biológica determina o desenvolvimento dos seres vivos, a reprodução das sociedades é um processo que inclui condições que sequer existem na natureza como lutas de classe, ideologia, trabalho etc.”(LESSA, 2007, p. 133). Assim a sociedade não se identifica da natureza e não pode ser explicada pelas leis naturais. Por natureza, Netto e Braz (2009) apontam ser “o conjunto de seres que conhecemos no nosso universo, seres que precederam o surgimento dos primeiros grupos humanos e continuaram a existir e a se desenvolver depois desse surgimento”(p. 35). A natureza se agrupa em inorgânica e orgânica. E no seu longo caminho evolutivo, surge a vida, processo sobre a base da matéria inorgânica, que fez emergir um novo tipo de ser: o ser vivo, orgânico resultado de um grande salto qualitativo. Nesse largo processo evolutivo, num outro extraordinário salto surge uma estrutura de complexidade maior e superior na escala natural, a espécie humana, a qual se desenvolveu como um outro novo tipo de ser: o ser social. É, portanto, o trabalho que funda o ser social. Mediante o trabalho os membros da espécie se tornaram seres que, a partir de uma base natural, desenvolveram características e traços que os difere da natureza. Atravésdo trabalho os homens se produzem a si mesmos, tornando-se seres sociais, caracterizando o processo de formação da humanidade, ou seja, o desenvolvimento histórico do ser social. Tal desenvolvimento pode ser descrito como o processo de humanização, onde as determinações naturais, sem deixar de existir, se tornam cada vez menos relevantes. Conforme Netto e Braz “ quanto mais o homem se humaniza, quanto mais se torna ser social, tanto menos o ser natural é determinante em sua vida”.(2009, p. 38). Daí afirmarem que o homem é natureza historicamente transformada. Quanto mais se desenvolve o ser social, tanto mais diversificadas são as suas objetivações. Nesse sentido, “o trabalho aparece como a objetivação primária e ineliminável do ser social”.(NETTO; BRAZ, 2009, p. 41). Na mesma perspectiva, Lessa (2007) coloca que o trabalho é a categoria fundante do mundo dos homens. A partir do trabalho produzem-se os meios de produção e os meios de subsistência, num processo que resulta na transformação do mundo natural e na própria transformação da natureza humana, produzindo assim “novas possibilidades e necessidades históricas, tanto sociais como individuais, tanto objetivas quanto subjetivas”. (LESSA, 2007, p. 142). Sendo assim, a transformação da natureza e do indivíduo provocada pelo trabalho possibilita a “construção de novas situações, de novas relações sociais, de novos conhecimentos e habilidades, num processo de acumulação constante (e contraditório)”(LESSA, 2007, p. 145). Assim, o movimento do ser social é ontologicamente distinto do natural. É no desenvolvimento humano, através das relações humanas, que se dá a reprodução social e as formações sociais. A reprodução social se distingue da reprodução biológica, por ser um processo fundado pelo trabalho, constituindo-se como uma atividade na qual o homem faz a prévia ideação para posteriormente objetivar o que é de sua necessidade, diferentemente dos animais. Nessa lógica, Netto e Braz (2009) discorrem que “o avanço do processo de humanização pode ser compreendido, pois, como a diferenciação e a complexificação das objetivações do ser social”. (p. 40). Este contitui-se como um ser que se particulariza porque é capaz de realizar atividades teleológicas, objetivar-se material e idealmente, comunicar-se e expressar-se, colocar-se como reflexivo, consciente e autoconsciente, escolher alternativas concretas, universalizar-se e socializar-se. Essas características só podem ser apreendidas pelo alto nível de desenvolvimento ao qual chegou o ser social. Tal ponto deveu-se ao surgimento do trabalho, cuja evolução é marcada pela diferenciação e complexidade que caracterizam o fenômeno humano destacado como produto da história de longuíssimo curso. Práxis: transcendência do ser social sobre o trabalho Netto e Braz (2009) reafirmam “o trabalho é constituído do ser social, mas o ser social não se reduz ou esgota no trabalho” (p. 43). O que significa que o ser social cria objetivações que transcendem o universo do trabalho, através da práxis. Esta possibilita ao ser social se projetar e se realizar nas ciências, na filosofia, na arte, “construindo um mundo de produtos, obras e valores - um mundo social, humano enfim, em que a espécie humana se converte inteiramente em gênero humano”.(p. 44). Por outro lado, a práxis também pode provocar entre os homens e suas obras, a inversão na relação entre criador e criatura, ou seja, a criatura passa a dominar o criador. Conforme as estruturas sociais em que se realiza a atividade humana, a criação – o produto das objetivações humanas – passa a ser estranha ao criador, ele não se reconhece em suas obras, o que caracteriza o fenômeno da alienação. Esta é fruto das sociedades onde vigora a divisão social do trabalho e da propriedade privada dos meios de produção fundamentais, onde se dá a exploração do homem pelo homem. Netto e Braz (2009) afirmam que “as objetivações humanas, alienadas, deixam de promover a humanização do homem e passam a estimular regressões do ser social”(p. 45), provocando um desenvolvimento do ser social de uma humanização extremamente desigual, superada apenas por um novo modelo de sociedade sem exploração nem alienação. Só numa sociedade onde não mais exista divisão social do trabalho nem propriedade privada é possível que todos os homens possam dispor das mesmas condições de sociabilidade e, portanto, possam desenvolver diferencialmente sua personalidade. Só nesse tipo de sociedade – “em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”(MARX- ENGELS apud NETTO e BRAZ, 2009, p. 47) é possível a superação do individualismo e posto a oportunidade de todos se constituírem como indivíduos sociais. Trabalho, valor e “fim da sociedade do trabalho” Neste ponto, os autores retomam a questão da economia política que, como categoria essencialmente fundante de uma teoria social, na qual se estudam as relações sociais entre os homens na produção, só é possível de ser compreendida a partir das análises anteriores, ou seja, do que são a sociedade e os homens e sua relação com a natureza e com a especificidade do ser social. E para complementar a compreensão, tratam, de forma abreviada, da relação entre trabalho e valor, compreendido como constitutivo da riqueza social. Assim sendo, o valor é teorizado como o resultado exclusivo do trabalho. Os autores recorrem a Marx para estabelecer as bases teóricas para a compreensão adequada do valor. Marx em seus estudos sobre a produção das mercadorias observa que o valor destas depende da quantidade de trabalho necessário que ela demanda. Daí o valor resultar exclusivamente do trabalho, ou seja, do tempo de trabalho socialmente necessário para a sua produção. Marx define: “tempo de trabalho socialmente necessário é aquele requerido para produzir um valor de uso qualquer, nas condições dadas de produção socialmente normais, e com o grau social médio de habilidades e de intensidade de trabalho.”(1985, p. 48). Com essa base, Marx formula a lei do valor: Mercadorias que contém as mesmas quantidades de trabalho ou que podem ser produzidas no mesmo tempo de trabalho, têm, portanto, a mesma grandeza de seu valor. O valor de uma mercadoria está para o valor de cada uma das outras mercadorias, assim como o tempo de trabalho necessário para a produção de uma está para o tempo de trabalho necessário para a produção de outra.(MARX, 1985, p. 48). É evidente que a lei do valor não se resume a isso. Expôs-se aqui apenas a título de ilustração. Os próprios Netto e Braz só tratarão da temática com mais profundidade em outro capítulo. No entanto, destacam que “há uma estreita relação entre trabalho e valor: o primeiro constitui, no caso da riqueza social, a fonte primária do segundo.”(NETTO; BRAZ, 2009, p. 50). Os autores trazem ainda uma crítica aos discursos associados às várias ideologias consideradas pós-modernas que vem pondo em questão a centralidade do trabalho como não sendo mais o eixo a partir do qual se organiza a vida social. Discursos estes que pregam o “fim do trabalho” o “fim da sociedade do trabalho”, acentuando a “sociedade (ou economia) do conhecimento”. Para os autores os problemas decorrentes dessa nova ordem “são perfeitamente compreensíveis quando se considera a dinâmica essencial da sociedade capitalista e, devidamente analisados, não autorizam a desconsideração da centralidade do trabalho.”(idem, p. 50). Por conseguinte, foi o desenvolvimento das forças produtivas na sociedade contemporânea que potencializaram a produtividade e o acúmulo de excedente e apenas demonstram o quanto essa sociedade não mais responde aos problemas por ela mesma gerados.Considerações Finais Diante do exposto, pode-se apreender que o trabalho se constitui como categoria fundante do ser social. E através dele, se dá toda a produção de bens e a constituição da riqueza social. O trabalho é resultante da transformação da natureza pelo homem para atender as necessidades humanas e nesse sentido essa atividade se diferencia dos demais animais que realizam atividades meramente biológicas e imediatas. A ação humana sobre a natureza, distintamente, é teleológica, fruto de ideações e objetivações o que dá ao trabalho uma característica excepcionalmente humana. Através do trabalho os homens satisfazem as suas necessidades e se produzem a si mesmos, tornando-se seres sociais, fomentando o processo da história, ou seja, o desenvolvimento histórico do ser social, compreendido como o avanço do processo de humanização o qual é caracterizado pela diferenciação e complexificação das objetivações do ser social. Este, por sua vez, constitui-se como um ser que se particulariza porque é capaz de realizar atividades teleológicas, objetivar-se material e idealmente, comunicar-se e expressar-se, colocar-se como reflexivo, consciente e autoconsciente, escolher alternativas concretas, além de universalizar- se e socializar-se. De outro modo, o ser social além das objetivações primárias, se projeta e se realiza nas objetivações materiais e ideais que cria, compondo um universo de produtos, valores e obras que se convertem num mundo social, caracterizando assim, o gênero humano. Essa transcendência além do universo do trabalho, dá-se através da práxis. Embora esta, por outro lado, também possa provocar entre os homens e suas obras, uma inversão na relação criador- criatura, onde a criação passa a dominar o criador que não mais se reconhecer em sua obra, passando a estranhá-la, fenômeno denominado de alienação do trabalho. Dessas proposições, subentende-se que as objetivações humanas ao se tornarem alienadas, ao invés de garantir a humanização do homem, passam a produzir um desenvolvimento do ser social extremamente desigual, o que é típico das sociedades onde existe a divisão social do trabalho e a propriedade privada dos meios de produção, mas precisamente em qualquer modo de produção onde exista a exploração do homem pelo homem. Sendo assim, o desenvolvimento do ser social com condições sociais de igualdade de humanização para todos, só pode se concretizar num novo modelo de sociedade sem exploração nem alienação, onde se garanta a todos iguais condições de sociabilização e que as diferenças se justifiquem apenas como aspectos de suas personalidades. Por fim, é fundamental enfatizar que a clara concepção desse processo é imprescindível para a compreensão da economia política e de todas as relações e inter-relações que permeiam e caracterizam o desenvolvimento das sociedades humanas. O trabalho como categoria central é o que fundamenta essa compreensão.
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