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3.3 Classe e lutas sociais – Celso Frederico

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Classes e lutas sociais 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Celso Frederico 
Professor da ECA-USP 
 
 
 1 
Classes e lutas sociais 
 
Introdução 
 
Há diferentes modos de definir classes sociais. 
 
Para o marxismo, elas se definem a partir do lugar que os indivíduos ocupam nas 
relações de produção, mais precisamente pela posição perante os meios de produção 
(proprietários/não-proprietários). As classes, assim, são entendidas como um 
componente estrutural da sociedade capitalista e, ao mesmo tempo, como sujeitos 
coletivos que têm suas formas de consciência e de atuação determinadas pela dinâmica 
da sociedade. 
 
Numa perspectiva oposta, a sociologia empírica prefere estratificar a sociedade, 
usando como critério o nível de renda e os padrões de consumo. Em assim fazendo, 
chamam de classes sociais o que a rigor são apenas camadas e segmentos da sociedade. 
Tal concepção, utilizada frequentemente pelas pesquisas de opinião, que, volta e meia, 
aparecem nos jornais, tem o grave inconveniente de aproximar abstratamente pessoas e 
grupos sociais cujas condições de vida e reivindicações são muitas vezes opostas. 
Abstraída da referência à produção, classe social passa a ser um conceito meramente 
descritivo, bem ao gosto dos publicitários que segmentam a sociedade em suas 
campanhas de venda. Desse modo, igualam os diferentes, transformando-os em “nichos 
do mercado” a serem devidamente seduzidos na condição de “consumidores” passivos. 
 
A definição marxista é mais objetiva e mais dinâmica, já que atenta não só às 
conformações concretas dadas pela inserção no processo produtivo e nas relações de 
propriedade como, também, ao caráter histórico em que a produção social se realiza. 
Essa última característica faz com, a rigor, só se possa falar em classes sociais, strictu 
senso, com a plena consolidação do modo de produção capitalista. O desenvolvimento do 
capitalismo, com sua lógica implacável, tende a polarizar a sociedade em duas classes 
antagônicas: a dos proprietários dos meios de produção e dos trabalhadores 
 
 
 2 
assalariados. As demais categorias de trabalhadores – seja o campesinato ou a pequena 
burguesia urbana – são vistas como resquícios de formações sociais anteriores que 
persistirão enquanto o capitalismo não se desenvolver plenamente. 
 
O lugar ocupado na produção abre horizontes distintos para a ação coletiva. O 
próprio desenvolvimento da sociedade, segundo Marx, explica-se pelo confronto 
permanente entre as duas classes. 
 
A tese da polarização da sociedade em duas classes – proprietários e não 
proprietários dos meios de produção – foi criticada por diversos autores que, ao 
contrário de Marx, previam o crescimento dos setores intermediários (a classe média). 
Esta, dizem eles, tende a se tornar majoritária e acarretará o fim do antagonismo social, 
que, nos primórdios do capitalismo, opunha os pólos extremos da pirâmide social. 
Paralelamente, a progressiva melhoria das condições de vida da classe operária irá cada 
vez mais aproximá-la desses estratos intermediários, aumentando a identificação com a 
ordem social capitalista e sepultando os sonhos da revolução social. Essa crítica à 
concepção marxista foi formulada, em registros teóricos diferentes, já a partir do século 
XIX. 
 
A discussão sobre o desenvolvimento das classes, portanto, foi um “problema” para 
as ciências humanas, que, desde a origem até os dias atuais, se debatem para tentar 
solucioná-lo. Aqui, vale a frase de Hegel: “o problema da história é a história do 
problema”. Vamos, portanto, retomar o fio da história para melhor entender a querela 
sobre esse difícil “problema”. 
 
1 Capitalismo, Estado, classes sociais 
 
Se a conformação das classes sociais depende do desenvolvimento da sociedade 
capitalista, é preciso atentar antes de qualquer outra coisa à forma como o capitalismo 
se implanta numa determinada sociedade. 
 
 
 3 
Diversos autores aplicam a expressão “via prussiana” (ou o seu equivalente 
gramsciano “revolução passiva”) para entender o Brasil: os momentos mais importantes 
de nossa história foram marcados pela composição das elites e pela exclusão da 
participação popular. Da independência ao fim do regime militar, as transformações 
modernizadoras foram realizadas “pelo alto”. A própria industrialização não se deu num 
confronto da burguesia com o mundo agrário. Ao contrário, foi o capital da cafeicultura 
que bancou o desenvolvimento industrial. Desde o início, portanto, não tivemos uma 
oposição aberta entre uma “burguesia progressista” e os “retrógrados latifundiários”. 
 
A essa característica soma-se a forma como se deu a abolição da escravatura e o 
destino reservado aos antigos escravos. Último país a pôr fim ao escravismo nas 
colônias, o Brasil herda uma tradição de brutalidade nas relações de trabalho que irá 
persistir no capitalismo industrial. Essa tradição faz com que o trabalho manual seja 
considerado uma atividade desprezível e, em contrapartida, o trabalho intelectual, 
privilégio das classes altas, uma atividade honorífica e que, portanto, não precisa ser 
bem remunerada. Quanto aos antigos escravos e seus descendentes, não encontrando 
lugar no mercado de trabalho, ficaram desde então condenados à marginalidade e ao 
nosso racismo “cordial”. 
 
A industrialização nascente precisava de mão-de-obra e, para isso, recorreu ao 
trabalho dos imigrantes europeus que trouxeram para cá as formas de consciência e 
organização do movimento anarquista. Os primeiros jornais dos trabalhadores, escritos 
em italiano e espanhol, testemunham o isolamento dessa classe social em formação. O 
desenvolvimento da indústria e o impacto causado pela revolução russa de 1917 
propiciarão a entrada em cena dos comunistas. Uma peculiaridade sempre assinalada 
pelos historiadores é que o comunismo, no Brasil, não foi o resultado de uma cisão da 
social-democracia, como na Europa, mas um desdobramento do anarquismo. Depois, 
com a entrada dos tenentes no Partido Comunista e de seu líder, Luiz Carlos Prestes, 
outra peculiaridade irá se refletir no movimento operário e em sua organização política: 
a forte presença dos militares. 
 
 
 4 
As greves operárias nesse período eram consideradas uma “questão de polícia”. 
Para entendermos essa frase, é preciso lembrar que o liberalismo então vigente 
mantinha o Estado afastado das relações trabalhistas. Tais relações ocorriam na esfera 
do direito privado. Uma greve, assim, era interpretada como perturbação da ordem 
pública a ser reprimida pela ação policial. 
 
A ausência do Estado não se verificava apenas no mercado de compra e venda da 
mercadoria força de trabalho, mas na própria economia. O livre jogo de um mercado não 
regulamentado, como se sabe, levou à grande crise de 1929, à revolução de 1930 e à 
saída de cena dos liberais. 
 
A década de 30 foi marcada por profundas alterações na forma de atuação do 
Estado. Este não se limitou a interferir momentaneamente nos rumos da economia, mas 
a executar uma ação coesa em todas as franjas da vida social. Para o bem e para o mal, 
Vargas criou o moderno Estado brasileiro e pôs em movimento um plano que fez com 
que o Brasil se tornasse o país capitalista que mais se desenvolveu no século XX. 
 
A presença do Estado manifestou-se plenamente nas relações de trabalho, através 
de uma impressionante criação de leis e decretos que se cristalizaram, em 1943, na 
Consolidação das Leis do Trabalho. A presença do Estado nas relações de trabalho 
significa, antes de tudo, a admissão legal de que as partes envolvidas– os compradores e 
vendedores da mercadoria força de trabalho – não são sujeitos iguais. O reconhecimento 
do trabalho assalariado como a parte mais fraca da transação impôs limites legais à 
voracidade do capital. Por outro lado, a luta operária logo se encarregou de desmascarar 
esse formalismo jurídico, ao evidenciar que o que se passa no mercado de trabalho não é 
uma mera troca de equivalentes entre cidadãos livres, mas uma relação de exploração 
entre classes, dissimulada sob o manto do contratualismo. 
 
Após a intervenção estatal, as relações de trabalho saíram da esfera do direito 
privado e passaram a existir no terreno conflitivo do direito público. A presença estatal 
politizou o mercado de trabalho que se transformou no campo de batalha das classes 
 
 
 5 
antagônicas e não mais na esfera privada dos litígios individuais. Assim, de “caso de 
polícia”, o movimento operário transformou-se num “caso político”, num ator 
privilegiado das lutas sociais. 
 
2 A herança getulista 
 
A “intromissão” do Estado nas relações de trabalho propiciou críticas tanto dos 
liberais quando de segmentos da esquerda. Em uníssono, essas críticas confluíram na 
constatação das óbvias semelhanças entre a nossa C.L.T. e a “Carta del Lavoro” de 
Mussolini. A presença estatal, assim, foi vista como decorrente de uma concepção 
autoritária que enquadrava o movimento sindical nas malhas do Ministério do Trabalho. 
No plano teórico, essa interpretação serviu para os primeiros trabalhos acadêmicos 
realizados na USP sobre o sindicalismo, nos quais a história do movimento operário era 
analisada tendo como chave explicativa a ação do Estado, e não a dinâmica da luta de 
classes. No plano político, serviu de base para diversas correntes políticas – do antigo 
anarquismo ao PT, passado pela Igreja Católica – levantarem a bandeira da “liberdade 
sindical” e incentivarem a luta operária fora da instituição sindical (através de 
comissões de fábrica, trabalho de bairro etc.). 
 
Não há dúvida sobre o fato de a CLT ter se inspirado nos fascismo italiano. Mas, 
esse transplante foi benéfico ou prejudicial para o movimento operário? 
 
Antes de enfrentarmos essa questão, convém esclarecer que a analogia entre 
varguismo e fascismo, tão disseminada entre nós, é um equívoco que gerou prejuízos à 
historiografia do movimento operário e à própria ação política. Coube ao crítico literário 
Alfredo Bosi1 o mérito de ter posto as coisas nos seus devidos lugares. Segundo sua 
cuidadosa pesquisa, o movimento revolucionário de 30 foi guiado pela filosofia 
positivista que chegou ao Rio Grande do Sul através do Uruguai e Argentina. Uma vez no 
poder, esse ideário serviu para guiar de modo coerente a formação do Estado brasileiro 
 
1 BOSI, Alfredo. A arqueologia do Estado-providência. In: ______: Dialética da colonização. São Paulo: 
Companhia das Letras, 1994. 
 
 
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moderno. Quem passou pelos textos de Durkheim deve se lembrar de sua concepção 
organicista, que via a sociedade como um conjunto de partes integradas, reservando ao 
Estado o papel de “cérebro”. A história pós-30 foi o desenvolvimento de uma idéia 
filosófica aplicada ao conjunto da vida social. O Estado deixa de lado o não-
intervencionismo pregado pelos liberais e promove o desenvolvimento econômico do 
país. Os sindicatos passaram a abarcar o conjunto da classe operária urbana, deixando 
de ser “sindicatos de minorias militantes”. Entendido como instrumento gerador da 
coesão social, deveria servir para fermentar a solidariedade entre os trabalhadores e ser 
um órgão de colaboração com o Estado. Paralelamente à criação dos sindicatos oficiais, 
foi implantada uma rede de proteção social, expressa nas leis trabalhistas e na 
instituição do salário mínimo (cujo patamar, até hoje, é uma reivindicação inalcançável: 
necessitaria de um aumento de aproximadamente 300%). 
 
A herança getulista foi um tema que propiciou discussões apaixonadas no 
movimento operário. O controle ministerial sobre os sindicatos durante a ditadura 
militar serviu para desarticular o movimento operário2. Essa constatação foi a principal 
referência do “novo sindicalismo”, que, em sua fase inicial, levantou as bandeiras contra 
o controle estatal, a unicidade sindical e o imposto compulsório. Bandeiras que guardam 
uma incômoda semelhança com o receituário liberal... 
 
Não por acaso, em seu discurso de despedida do senado, Fernando Henrique 
Cardoso anunciou que seu governo iria marcar o fim da era Vargas. De fato, a ofensiva 
neoliberal fez o que pôde para desmanchar a antiga ordem, começando pela privatização 
das companhias estatais. E o primeiro governo Lula, para surpresa geral, fez uma 
reforma da previdência cortando os “privilégios” dos funcionários públicos, sem que a 
CUT, que muitos analistas consideravam uma central majoritariamente formada por 
aquela categoria, “abrisse a boca”. Mas, afinal, como explicar essa nova forma de 
assujeitamento do sindicalismo ao Estado? 
 
2 As divergências táticas no interior do movimento operário, durante a ditadura militar, tiveram como 
referência básica a interpretação sobre a estrutura sindical. Veja-se, a propósito, a documentação 
reproduzida em Celso Frederico, A esquerda e o movimento operário, 3 volumes (o primeiro volume 
publicado pela Ed. Novos Rumos, 1987; e os demais pela Oficina de Livros, 1990 e 1991). 
 
 
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Quando se olha para o passado do “novo sindicalismo”, vem a lembrança das 
grandes greves operárias e o sentimento, por todos compartilhados, de que o 
movimento operário vivia o seu momento de redenção. Passados mais de 20 anos, pode-
se dizer, sem demérito do heroísmo daqueles militantes, que as greves não anunciavam 
a nova era, mas, ao contrário, fechavam um ciclo histórico. Elas foram o último suspiro 
do sindicalismo da era fordista. 
 
3 Tempos modernos 
 
Durante as décadas de 1970 e 80, o Brasil viveu um descompasso em relação ao 
que se passava nos países desenvolvidos. Nestes, o processo de reestruturação 
produtiva produziu um enfraquecimento progressivo do sindicalismo, que viu desabar o 
número de associados e seu poder de barganha. Enquanto isso, no Brasil, com a agonia 
da ditadura militar, assistíamos a uma retomada da atividade associativa. Pouco a pouco, 
os antigos dirigentes pelegos foram substituídos pela aguerrida militância. O número de 
sindicatos e associações profissionais teve um notável crescimento. Formaram-se as 
centrais sindicais. No campo, o MST surgiu com inesperada força. As greves pipocaram 
em todo o país. 
 
Entretanto, a parte não pode ficar indiferente à movimentação da totalidade: 
participante do sistema mundial de produção de mercadorias, o Brasil conheceu 
tardiamente a reestruturação produtiva. Os efeitos foram devastadores, pois ocorridos 
numa economia que atravessara duas décadas de recessão. O berço do “novo 
sindicalismo”, São Bernardo, foi atingido diretamente pelo “enxugamento” das 
montadoras e pela diminuição do número de trabalhadores. A ação sindical, até então 
viabilizada pela concentração operária em algumas poucas fábricas, viu ruir esse 
“exército” pronto para ser mobilizado. A tática do confronto cedeu lugar ao sindicalismo 
de negociação – tarefa facilitada pela chamada “crise das utopias” e pela cristalização de 
uma pesada burocracia sindical que manipulava cifras milionárias, inimagináveis para 
os antigos pelegos. 
 
 
 
 8 
O “enquadramento” do sindicalismo na nova ordem realizou-se em nome do 
pragmatismo “realista”. Mas, afinal, o que é essa “realidade” em nome da qual se 
arquivouo processo de emancipação? 
 
Não por acaso, um dos temas mais importantes da atualidade diz respeito ao 
trabalho: ele deixou de ser a fonte geradora do valor das mercadorias? Estamos 
assistindo ao “fim do trabalho” e à decomposição final das classes sociais? 
 
Responder de modo positivo a essas questões leva automaticamente a constatar a 
fase terminal da classe operária e de suas lutas, já que não haveria mais a identificação 
dos indivíduos com esse ator coletivo. A antiga “comunidade de destinos” teria cedido 
lugar ao “salve-se quem puder” dos indivíduos atomizados, precarizados etc., em suas 
relações individuais com o onipresente mercado. Curiosamente, essa posição encontrou 
abrigo não só em concepções teóricas refinadas que partem da ideia de que o valor 
(portanto: o trabalho socialmente necessário) deixou de ser o estruturador da vida 
social, como também no neoanarquismo que pretende fazer a “crítica do trabalho”. 
 
Responder de modo negativo, contudo, significa fechar os olhos perante as 
transformações históricas em curso. É preciso, pois, entendermos o que se passa na 
realidade. 
 
O antropólogo Lévi-Strauss, referindo-se a uma das especificidades do Brasil, 
afirmou que nós passamos da barbárie à decadência sem termos conhecido a civilização. 
Esse descompasso da periferia atualiza-se nas questões que envolvem o mundo do 
trabalho: a globalização impõe-se na periferia após essa ter padecido de décadas de crise 
prolongada em suas frágeis economias; os direitos do trabalho estão ameaçados antes 
de sua plena efetivação; a burocratização do sindicalismo e a corrupção dos sindicalistas 
realizaram-se com uma rapidez espantosa e com uma desfaçatez de fazer corar os 
antigos pelegos; a legislação social de Vargas ameaça a chegar ao fim antes de ter 
estabelecido os direitos de trabalho no campo; a formação do agrobusiness impôs-se ao 
campo tendo como pano de fundo a ausência da reforma agrária, o que explica o inchaço 
 
 
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das cidades e a marginalidade; a participação política, tão promissora nos primeiros 
anos do restabelecimento da democracia, sofreu um refluxo já a partir das discussões 
sobre a constituinte, quando a ação dos lobbies sobrepôs-se à ação dos sujeitos coletivos; 
as campanhas políticas, antes que pudessem se tornar um instrumento de 
esclarecimento, foram capturadas pela despolitizadora estratégia mercadológica; os 
partidos políticos, rapidamente, aderiram em uníssono às teorias sobre o “fim das 
ideologias”; a discussão sobre a urgência do desenvolvimento econômico para 
tornarmo-nos contemporâneos do primeiro mundo e da “sociedade do conhecimento” 
(seja lá o que essa expressão queira dizer) esbarra na nova forma assumida pelo valor: 
aquela realizada pela “força objetivada do conhecimento”, transformado em “força 
produtiva imediata”, como havia previsto Marx3, e que hoje se materializa nas patentes. 
 
A nossa, digamos assim, “modernidade à brasileira” contém o pior dos dois 
mundos: as desvantagens do subdesenvolvimento, que não chegou a conhecer o Welfare 
State, acrescidas da selvageria do capitalismo financeirizado. A crise de acumulação, 
vivida pelo sistema mundial de mercadorias, acena para um longo período de barbárie 
na periferia, cuja face mais visível é o desemprego e suas sequelas: a marginalidade e a 
violência urbana. A nova etapa vivida pelo capitalismo tardio produziu uma alteração na 
estrutura da sociedade e, portanto, nas classes sociais, e exige, com lógica implacável, a 
total submissão dos antigos Estados-Nacionais. 
 
Nesse momento, vale a frase: “o velho já morreu, o novo ainda não nasceu”. 
Períodos de transição costumam produzir reflexos deformados na consciência das 
pessoas. Aqueles que só veem o lado subjetivo celebram a “crise das identidades”. Os 
outros, que querem ser objetivos, mas confundem a realidade com os dados empíricos 
dispersos, constatam que a “crise do emprego” é o mesmo que a “crise do trabalho”. Para 
esses, que ainda permanecem no discurso racional, vale a pena contra-argumentar: 
nunca, em toda a história da humanidade, se trabalhou tanto como nos dias atuais. O 
economista Richard Freeman calcula que “com a entrada de China, Índia e antigos 
 
3 Cf. Karl Marx. Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (borrador). 1987-1858. 
Buenos Aires: Ed. Siglo XXI, 1972. p. 230. v. II. 
 
 
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componentes do bloco soviético na economia mundial resultou, por volta de 2000, na 
duplicação do número de trabalhadores integrados à economia globalizada, para um 
total próximo de 3 bilhões” 4. A competição desenfreada pelos postos de trabalho, como 
era de se esperar, gerou um achatamento generalizado dos salários. Trabalha-se mais e 
se ganha menos: os aposentados voltam ao mercado de trabalho e o trabalho infantil é 
uma benção para a subsistência das famílias pobres. 
 
Por outro lado, a informática permite ampliar o trabalho para fora da unidade 
produtiva. Assim, quando acionamos nossa conta bancária no computador e realizamos 
transações, estamos trabalhando de graça para o capital. A mesma coisa tende a se 
multiplicar fazendo do cyberespaço não mais a esfera da “reinvenção das identidades”, 
segundo os apologistas das maravilhas da esfera virtual, mas um prolongamento da 
jornada de trabalho. Numa universidade particular de S. Paulo, o endereço eletrônico 
dos professores foi posto pela direção à disposição dos alunos que, a qualquer momento, 
podem escrever solicitando esclarecimentos. O professor on-line, assim, fica 24 horas à 
disposição, sendo para isso controlado pela direção do estabelecimento 5. 
 
A proletarização geral – a subordinação de todos ao capital – atesta a inevitável 
polarização das classes sociais, e não o mundo afluente da “classe média” triunfante, 
como imaginavam os teóricos da sociedade pós-industrial. O que está acontecendo, hoje, 
não é a “crise do trabalho”, mas a subordinação completa do “processo de trabalho” ao 
“processo de produção”. A crise não é do trabalho, como parece à primeira vista, e sim 
do emprego – aquela relação jurídica garantida pela mediação estatal. Por isso mesmo, 
as palavras antigas ganharam novos significados: reforma, nos tempos do governo 
Goulart, significava principalmente reforma agrária. Hoje, em tempos de “pirataria 
semântica”, a palavra é empregada para justificar o desmonte da rede social montada 
 
4 Samuel Brittan. Globalização reduz salário de trabalhador do Ocidente. O Estado de São Paulo, p. B12, 5 
de novembro de 2006. 
5 Francisco José Soares Teixeira, num estudo pioneiro e ainda inédito, chama essa nova forma de extração 
da mais-valia de “cooperação complexa”. Essa forma de produção desterritorializada graças à internet 
situa-se, historicamente, na sequência das antigas formas estudadas por Marx: a cooperação simples, a 
manufatura e a grande indústria. O capital revela-se como uma força social totalmente impessoal (o 
mercado) e os trabalhadores ficam relegados à condição de “clientes”. Cf. Cooperação complexa. Fronteira 
limite do capital. 
 
 
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após a revolução de 30. Ora, todo esse processo de reestruturação produtiva e sua 
expressão ideológica – o neoliberalismo – são manifestações da luta de classes. Esta 
expressão é sempre plural: não fala de uma única classe, subentendendo-se sempre a 
classe operária, mas de uma relação entre as duas classes fundamentais da sociedade 
capitalista. A classe dominante, hegemonizada pelo capital financeiro, está na ofensiva. 
Os seus interesses estratégicos levaram à progressiva substituição da mais-valia 
absoluta pela relativa. Se todo o segredo da economia,como ensinava Marx, resume-se à 
economia de tempo, a substituição do trabalho vivo (capital variável) pelas máquinas 
(capital constante) é um processo inexorável – reside aí a crise do emprego e o 
desmonte das leis de proteção ao trabalho. E, contra elas, não há programas de 
“requalificação profissional” capaz de inserir a totalidade dos desempregados, mas 
apenas uma minoria escapará da condição de “material descartável”. 
 
Nessa nova configuração, a luta de classes ganha tons dramáticos e um novo campo 
de batalha. Ela não se trava apenas nas “plantas industriais”, no “chão da fábrica”, como 
gostam de dizer os sociólogos do trabalho, mas principalmente na completa captura dos 
aparatos estatais. Por isso, o que está em jogo hoje é o controle do fundo público, que 
compreende as verbas milionárias do PIS/PASEP, o Fundo de Amparo ao Trabalhador, o 
FGTS e o Sistema S. Segundo os cálculos de Salvadori Dedecca, esses fundos 
“correspondem a 3% do PIB brasileiro. Isto é, nós temos uma arrecadação anual de 3% 
para realizarmos políticas de emprego e proteção do emprego” 6. 
 
Resta saber se essa montanha de dinheiro será empregada para financiar a 
expansão do capital e socorrer bancos quebrados ou para minorar as condições de vida 
da população carente. O controle do fundo público, portanto, tornou-se uma esfera 
explosiva a separar interesses contraditórios. De um lado, a nossa burguesia, 
acostumada a usar o Estado em benefício de seus interesses, fala na necessidade de 
desenvolvimento de olho no fundo público; de outro, os interesses da massa de 
assalariados coincidem com os da burguesia sobre a necessidade de desenvolvimento, 
 
6 Claudio Salvadori Dedecca. Sistema público de emprego no Brasil. CONGRESSO NACIONAL. SISTEMA 
PÚBLICO DE EMPREGO. TRABALHO E RENDA, 1., 2004, Guarulhos. Anais... Guarulhos, 2004. p. 35. 
 
 
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mas exigem a combinação do desenvolvimento econômico com distribuição de renda e – 
mesmo tendo consciência de seus limites – a criação de empregos. Essas exigências 
redefinem o papel do serviço social, com bem observou o economista Francisco José 
Soares Teixeira: “faz-se mister integrar as políticas de geração de emprego e renda com 
as de assistência social. Para tanto, é preciso mudar o seu caráter assistencialista e 
transformá-las em políticas voltadas para a construção dos direitos fundamentais da 
pessoa humana” 7. 
 
Os dados estão lançados, e o momento decisivo da disputa será o segundo mandato 
de Lula em que a disputa do fundo público se dará juntamente com a nova reforma da 
previdência e as reformas trabalhista e sindical. Com “o pessimismo da inteligência e o 
otimismo da prática”, convém ir à luta lembrando o ensinamento dialético de Brecht: “as 
contradições são as esperanças”. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
7 Francisco Teixeira. Sistema público de emprego. Prefeitura Municipal de Fortaleza, 2005. p. 44. 
 
 
 
 13 
Referências 
 
BOSI, Alfredo. A arqueologia do Estado-providência. In: ______: Dialética da colonização. 
São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 
 
BRITTAN, Samuel. Globalização reduz salário de trabalhador do Ocidente. O Estado de 
São Paulo, p. B12, 5 de novembro de 2006. 
 
DEDECCA, Claudio Salvadori. Sistema público de emprego no Brasil. CONGRESSO 
NACIONAL. SISTEMA PÚBLICO DE EMPREGO. TRABALHO E RENDA, 1., 2004, Guarulhos. 
Anais... Guarulhos, 2004. p. 35. 
 
FREDERICO, Celso. A esquerda e o movimento operário, 3 volumes (o primeiro volume 
publicado pela Ed. Novos Rumos, 1987; e os demais pela Oficina de Livros, 1990 e 1991). 
 
MARX, Karl. Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (borrador). 
1987-1858. Buenos Aires: Ed. Siglo XXI, 1972. p. 230. v. II. 
 
TEIXEIRA, Francisco. Sistema público de emprego: Caminhos, Descaminhos... Novas 
Esperanças? In: RABELO, Jackline; FELISMINO, Sandra Cordeiro (Org.). Trabalho, 
Educação e a Crítica Marxista. Fortaleza: Editora Universidade Federal do Ceará - UFC, 
2006. p. 167-184. 
 
______. Cooperação complexa. Fronteira limite do capital. Disponível no blog do autor: 
http://fcojoseteixeira.blogspot.com/2007/04/cooperao-complexa-fronteira-limite-
do.html. Acesso em: 30 mar. 2009.

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