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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO MESTRADO EM TEATRO PRISCILA DE AZEVEDO SOUZA MESQUITA EM BUSCA DE UM TEATRO FEMINISTA: RELATOS E REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO DE CRIAÇÃO DO TEXTO E ESPETÁCULO “JARDIM DE JOANA” FLORIANÓPOLIS - SC 2012 PRISCILA DE AZEVEDO SOUZA MESQUITA EM BUSCA DE UM TEATRO FEMINISTA: RELATOS E REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO DE CRIAÇÃO DO TEXTO E ESPETÁCULO “JARDIM DE JOANA” Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Teatro, Curso de Mestrado em Teatro, Linha de Pesquisa: Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade. Orientadora: Profa. Dra. Maria Brigida de Miranda FLORIANÓPOLIS - SC 2012 PRISCILA DE AZEVEDO SOUZA MESQUITA EM BUSCA DE UM TEATRO FEMINISTA: RELATOS E REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO DE CRIAÇÃO DO TEXTO E ESPETÁCULO “JARDIM DE JOANA” Esta dissertação foi julgada aprovada para a obtenção do título de Mestre em Teatro, na linha de pesquisa Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade, em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina, em 27 de abril de 2012. Prof. Dr. Stephan Arnulf Baumgärtel Coordenador do PPGT - UDESC Apresentada à Comissão Examinadora, integrada pelos professores: Prof.ª Dr.ª Maria Brigida de Miranda Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC Orientadora Prof. Dr. Stephan Arnulf Baumgärtel Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC Membro Prof.ª Dr.ª Lucia V. Sander Universidade de Brasília - UnB Membro Florianópolis - SC, 27 de abril de 2012. Dedico este trabalho para minha mãe Vera, admirável guerreira e incentivadora de meus sonhos, para minha querida vó Sebastiana (in memorian), que por tanto tempo dividiu seu quarto comigo, e se foi, deixando um profundo silêncio, e para a querida vó Gaby (in memorian), que mesmo distante, me ensinou a andar sempre pelo caminho do bem. AGRADECIMENTOS Agradeço antes de tudo à Vera, minha mãe, quem me ensinou os primeiros pensamentos feministas, mesmo sem chamá-los assim. Ao Beto Ribeiro, que com seu amor, me incentivou, deu broncas, carinhos, e me proporcionou muitos momentos de diversão, presença fundamental para que eu chegasse até aqui. Agradeço a cada uma do grupo (Em) Companhia de Mulheres, as belas flores desse jardim, sem as quais ele não teria existido: Maria Brigida de Miranda, minha orientadora, por confiar em meu trabalho, me guiando e estimulando neste processo; Lisa Brito, que com seu bom humor e disposição me transmitia sensações boas nos momentos mais difíceis; Julia Oliveira, pelo seu comprometimento, presença cênica e por fazer-me rir; Emanuele Mattiello, pelo seu sorriso, carinho e atenção; Rosimeire da Silva, pela troca constante de ideias, textos e traduções; Morgana Martins, pelas lindas canções que compôs para o nosso espetáculo; Marina Sell e Vanessa Civiero, que intensamente estiveram conosco no início deste processo. Agradeço àqueles que com muita boa vontade (e por amor à camisa) participaram da criação do vídeo e das músicas que fizeram parte do espetáculo Jardim de Joana: Carol Miranda, Claudia Mussi, Fábio Yokomizo, Helôisa Petry, Leonardo Brandão, Lohanny Rezende, Luana Leite, Luana Tavano Garcia, Lucas Ferraza, Lucas Heymann, Marcelo F. de Souza, Oto Henrique, Priscila Marinho, Renata Swoboda, Tuany Fagundes. Agradeço imensamente ao PPGT/ UDESC: às secretárias Emília “Mila” Leite e Sandra Siggelkow e a todos os professores que participaram desta jornada em algum momento; aos professores integrantes da banca examinadora de qualificação e defesa, Stephan Arnulf Baumgärtel, Lucia V. Sander e Fátima Costa de Lima. Agradeço às minhas amigas-irmãs, companheiras de teatro e de vida: à Karina de Paula, por sempre estar ao meu lado, e por emprestar seu computador nas duas vezes em que o meu quebrou durante a escrita dessa dissertação; à Sarah Ferreira, pelas loucas conversas sérias e Lívia Gonçalves pela tranquilidade transmitida. Agradeço às minhas amigas-irmãs, que mesmo distantes, me transmitem inspiração e motivação: à Susan Möller Ferreira, por me inspirar com as suas aventuras e à Thaís Nozaki que me motiva a mudar sempre que necessário. Agradeço à CAPES por financiar esta pesquisa, detalhe importantíssimo... “A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só me será dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.” Clarice Lispector RESUMO MESQUITA, Priscila de Azevedo Souza de. Em busca de um teatro feminista: Relatos e reflexões sobre o processo de criação do texto e espetáculo “Jardim de Joana”. 2012. Dissertação (Mestrado em Teatro – Linha: Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade). Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Teatro. Florianópolis, 2012. Considerando a lacuna de textos teatrais escritos por mulheres e/ ou que contemplem assuntos relacionados ao universo feminino, o grupo de pesquisa (Em) Companhia de Mulheres, da UDESC/ Florianópolis, formado para a execução desta pesquisa, propôs- se a criar seu próprio texto e espetáculo dentro do método devised theatre. A partir das sete demandas estabelecidas pelo women’s liberation movement, nos anos 1970, o grupo desenvolveu uma temática voltada às causas feministas, optando pela questão da legitimação da relação homo afetiva perante a lei e sua aceitação pela família e sociedade. Esta dissertação descreve como o grupo atingiu seus objetivos, desde a sua formação, passando pelas formas de organização até as estratégias de criação, que culminaram na criação do texto e espetáculo Jardim de Joana. Para refletir sobre este processo, a prática do grupo é colocada em diálogo com os procedimentos utilizados pela prática teatral feminista bem como com os conceitos que permeiam a teoria teatral feminista. Palavras-chave: Teatro Feminista. Processo criativo. Devised Theatre. ABSTRACT MESQUITA, Priscila de Azevedo Souza de. Em busca de um teatro feminista: Relatos e reflexões sobre o processo de criação do texto e espetáculo “Jardim de Joana”. 2012. Dissertação (Mestrado em Teatro – Linha: Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade). Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Teatro. Florianópolis,2012. Considering the lack of theatrical texts written by women and / or include issues related to the feminine, the research group (Em) Companhia de Mulheres, UDESC / Florianópolis, formed to carry out this research, it was proposed to create your own text and spectacle within the devised theatre method. From the seven demands set by the women's liberation movement in the 1970s, the group developed a theme dedicated to feminist causes, opting for the question the legitimacy of homosexual affection relationship before the law and its acceptance by family and society. This dissertation describes how the group achieved its objectives, since their formation, passing through the forms of organization to create strategies that culminated in the creation of text and spectacle Jardim de Joana. To reflect on this process, the group practice is placed in dialogue with the procedures used by feminist theatrical practice as well as the concepts that permeate the feminist theatrical theory. Key-words: Feminist Theatre. Creative process. Devised Theatre. SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................ 10 1 APONTAMENTOS SOBRE O TEATRO FEMINISTA E TEORIA TEATRAL FEMINISTA.................................................................................................................. 18 1.1 ‘TEATRO FEMINISTA’: UM TERMO INVISÍVEL NO BRASIL?..................... 18 1.1.1 Definindo o termo ‘teatro feminista’..................................................................... 19 1.2 A PRÁTICA TEATRAL FEMINISTA COMO UMA PRÁTICA POLÍTICA....... 23 1.3 AS VERTENTES FEMINISTAS E A INFLUÊNCIA NA PRÁTICA TEATRAL FEMINISTA................................................................................................................... 28 1.3.1 Feminismo radical/ cultural................................................................................... 28 1.3.2 Feminismo materialista....................................................................................... 30 1.4 A QUESTÃO DA DRAMATURGIA: MULHERES ESCRITORAS FORA DO CÂNONE E A NECESSIDADE DE CRIAR NOVOS TEXTOS, QUE CONTEMPLEM ASSUNTOS RELACIONADOS À MULHER ................................ 31 1.4.1 Resgatando a tradição feminina ‘perdida’ ............................................................ 35 1.4.2 Texto e contexto ................................................................................................... 39 1.4.3 O caso brasileiro.................................................................................................... 41 2 GRUPO (EM) COMPANHIA DE MULHERES: FORMAÇÃO; ORGANIZAÇÃO E “PRIMEIRA FASE” DE TRABALHO.................................. 47 2.1 FORMAÇÃO DO GRUPO...................................................................................... 47 2.1.1 “Espaço Ginocêntrico”.......................................................................................... 54 2.1.1.1 Ponto de vista sobre o treinamento psicofísico no grupo (Em) Companhia de Mulheres: entre o incômodo e o prazer.......................................................................... 56 2.1.2 Empowerment/ empoderamento............................................................................ 58 2.2 PROCESSO CRIATIVO.......................................................................................... 63 2.2.1 Treinamento, Rituais e festas: nossos meios de integração e criação................... 63 2.2.2. Trabalhando com contos....................................................................................... 69 2.2.3 “Mulher selvagem”, “Arquétipo” e “Princípio Feminino”: Estudos..................... 79 2.3 O PERCURSO.......................................................................................................... 86 2.3.1 Descrição do Percurso ou Primeira Tentativa de Dramaturgia............................. 86 2.3.2 Reflexão sobre o Percurso.................................................................................... 87 3 EM BUSCA DE UMA DRAMATURGIA FEMINISTA: “SEGUNDA FASE” DE TRABALHO E O JARDIM DE JOANA..................................................................... 97 3.1 EM BUSCA DE UM TEMA E DE UMA DIREÇÃO............................................. 97 3.1.1 Em busca de um tema............................................................................................ 97 3.1.2 Em busca de uma direção...................................................................................... 99 3.2 TEATRO “COLETIVO”, “COLABORATIVO,” “DRAMATURGIA EM PROCESSO” E “DEVISED THEATRE” ..................................................................... 104 3.2.1 Apontamentos sobre o uso dos termos................................................................ 104 3.2.2 “Criação coletiva”, “processo colaborativo” e “dramaturgia em processo”........ 105 3.2.3 “Devised Theatre”............................................................................................... 107 3.2.4 A opção pelo “devised theatre”........................................................................... 109 3.3 A IMPROVISAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DO NOSSO DEVISED THEATRE..................................................................................................................... 112 3.3.1 A criação de uma história com conflitos............................................................. 113 3.3.2 A caixa de Pandora: criação de cenas oníricas.................................................... 114 3.3.3 A criação da última cena como estímulo para a criação da primeira...................118 3.3.4 Reflexões............................................................................................................. 119 3.4 JARDIM DE JOANA: DA IMPROVISAÇÃO PARA O TEXTO E DO TEXTO PARA O ESPETÁCULO............................................................................................. 122 3.4.1 A escrita do texto dramático ............................................................................... 122 3.4.2 O texto de volta à cena........................................................................................ 128 3.4.3 O vídeo do casamento.......................................................................................... 129 3.5 JARDIM DE JOANA: O AMOR ENTRE MULHERES.........................................130 3.5.1 O espetáculo Jardim de Joana.............................................................................. 130 3.5.2 As apresentações.................................................................................................. 134 3.5.3 Algumas reflexões............................................................................................... 135 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 143 REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 148 ANEXO – JARDIM DE JOANA (TEXTO DRAMÁTICO) .................................. 153 10 INTRODUÇÃO “Não acredito na autolibertação. A libertação é um ato social.” Paulo Freire Para abrir este trabalho, partirei da minha experiência enquanto aluna de teatro dentro de uma universidade pública, brasileira, a Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Inicio com esta discussão pessoal estimulada pelo artigo The personal is political(1969), escrito pela feminista radical Carol Hanisch, enquanto acontecia a segunda onda feminista. Conforme Hanisch (2006) conta, em uma recente introdução explicativa ao referido artigo de 1969, na época em que o escreveu, os grupos de conscientização que estavam se formando e que faziam parte do Women's Liberation Movement, foram criticados por não serem nada além de “terapia pessoal”. Hanisch (2006) explica que nestes grupos de mulheres discutiam-se as opressões vividas por elas e questões de seu contexto pessoal, o que era visto como não político pelos seus oponentes. De acordo com Hanisch (2006), este posicionamento, tanto de homens quanto de mulheres, contrário aos grupos de consciência, menosprezava a tentativa de tais grupos de introduzir na esfera política, problemas enfrentados por muitas mulheres. Em resposta a essas críticas, Hanisch escreveu The personal is political, onde explica que ao discutir problemas que fazem parte do universo individual, não se procurava encontrar soluções pessoais para estes problemas, mas sim soluções coletivas. Assim, a razão de eu participar dessas reuniões não é para resolver qualquer problema pessoal. Uma das primeiras coisas que descobrimos nestes grupos é que os problemas pessoais são problemas políticos. Não há soluções pessoais neste momento. Há apenas ação coletiva para uma solução coletiva. 1 (HANISCH, 1969, p. 4, tradução nossa). 1 “So the reason I participate in these meetings is not to solve any personal problem. One of the first things we discover in these groups is that personal problems are political problems. There are no personal solutions at this time. There is only collective action for a collective solution.” 11 A autora afirma que as reuniões destes grupos eram uma forma de ação política, na medida em que as mulheres eram incentivadas a falarem de suas próprias experiências, e de suas vidas como elas realmente são, e não como foram instruídas a falar sobre. Deste modo, questões propostas eram debatidas a partir das experiências individuais, para, em seguida, serem feitas conexões a partir da generalização do que foi dito, e finalmente tentar encontrar as soluções coletivamente e que servissem ao coletivo. Apesar do slogan “O pessoal é político” ter sido criado há mais de 40 anos, em um contexto diferente dos dias de hoje, ele permanece atual. Assim, espero que ao trocar essa experiência com o leitor, possamos realizar conexões com outras histórias e pensarmos em soluções que possam servir a outrem. Formei-me na graduação no ano de 2008, após seis anos de universidade. Não me lembro de em nenhuma das disciplinas de história do teatro ou de dramaturgia ter lido algum texto teatral escrito por uma mulher. Mas, apesar dessa possível ausência de dramaturgas em nosso currículo (escrevo possível, pois poderia talvez haver alguma, mas eu realmente não consigo me lembrar), penso que deveriam ter dramaturgas tão importantes quanto os dramaturgos que nos são dados a conhecer. Aos poucos vou lembrando os autores que li: Sófocles, Goethe, Corneille, Georg Büchner, Alfred Jarry, Shakespeare, Ionesco, Beckett, foram alguns dos dramaturgos considerados “clássicos” lidos para as disciplinas. Plínio Marcos, Bertold Brecht, Karl Valentin, Nelson Rodrigues, Ivo Bender, Antonin Artaud, foram alguns autores cujos textos encenei. Mas o texto que montei , com o qual mais me aproximei, foi uma adaptação do romance A paixão 2º G.H., de Clarice Lispector (1974) 2. Será por que se tratava de um texto escrito por uma mulher? 3 2 LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G. H. Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1974. 3 Este trabalho, batizado de A P. 2º G.H., foi realizado no ano de 2005, dirigido pela então graduanda Sarah Ferreira, e com atuação minha. Foi desenvolvido na disciplina de Encenação II, na qual Ferreira estava matriculada, sob a orientação do Prof. José Ronaldo Faleiro. Nesta encenação, eu e Ferreira adaptamos o texto para a cena, em um processo colaborativo, que consistiu em grifar no texto as passagens mais significativas para cada uma de nós. Após termos realizado essa primeira seleção, retiramos as passagens do texto que foram sublinhadas por nós duas. Paralelo a esse trabalho sobre o texto, Ferreira me passou uma sequência de movimentos corporais, influenciada pelo seu trabalho com a dança e o contato improvisação, e esta sequência tornou-se a matriz sobre a qual eu criei toda a partitura de cena. Após termos iniciado este trabalho, contamos com a participação dos músicos Rafael Pesce e Juliano Pires, os quais criaram o repertório sonoro da peça em conjunto com a criação de minha partitura. Assim, a minha movimentação no espaço, contribuiu para que eles criassem as músicas, e as músicas que eles criavam, contribuía para o desenvolvimento de minha partitura corporal. Dialogando com criação da partitura de cena, fomos aos poucos incluindo o texto. Pesce foi também responsável pela minha preparação vocal, e Leandro Rodrigues de Souza trabalhou como assistente de produção. A P. 2º G.H. foi apresentado em festivais como o Isnard de Azevedo (circuito 3 em 1), de Florianópolis, Didascálico, da 12 Durante a graduação, nunca questionei onde estariam os textos teatrais escritos por mulheres. Não indaguei o porquê não as estudávamos. Mas hoje me pergunto: Será que não havia dramaturgas? Se havia e se há, por que não estudá-las? Será que seus textos não são tão bons quanto os dos “clássicos” masculinos que estudamos? Temos autoras consideradas “clássicas” na literatura para o teatro? E se temos, por que quase não se fala delas, por que não apareciam dentro do conteúdo das disciplinas do curso de teatro? Por que se privilegia o estudo de autores masculinos? Elas estão fora do cânone? Se este cânone que conhecemos é tradicionalmente masculino, podemos falar na existência de um cânone feminino? Em 2008, após me graduar, atuei em uma encenação do texto A Serpente4, última peça escrita por Nelson Rodrigues, em 1978. Neste momento comecei a sentir- me incomodada com algo, que ainda não compreendia muito bem o que era. Eu não gostava daquele texto. Eu não queria ser Lígia, a mulher traída e abandonada pelo marido, e muito menos Guida, a irmã que empresta o marido para a irmã abandonada. Fazia-me mal colocar aquela situação em cena, por meio de uma interpretação realista, pois não me identificava com a personagem e nem com a história. Sentia-me deslocada, pois sem conseguir identificar-me com a personagem, a atuação tornava-se estranha, diferente de tudo que eu havia feito até então. Eu também não sabia como questionar aquele texto em cena, pois esta poderia ser uma possível solução para meu incômodo. Talvez, no fim da cena, após a minha personagem, Lígia, ter dormido com o marido emprestado pela irmã, eu tenha conseguido transformar o meu incômodo. Fazendo daquela cena trágica, uma cena cômica, mostramos o conflito entre as irmãs devido à satisfação sexual de uma, à custa do marido da outra. Depois dessa experiência, eu queria fazer outro trabalho, utilizando um texto por meio do qual eu pudesse expressar questões relativas às minhas experiências. Mas eu não sabia qual, não conseguia lembrar-me de nenhum que eu tivesse lido e sentido vontade de encenar. Então, Clarice Lispector sempre vinha à minha mente como uma possibilidade, mas era preciso encontrar outras. Foi quando comecei a ler Mulheres que Escola Técnica Federal, em Florianópolis e Riocenacontemporânea (mostra universitária), noRio de Janeiro. 4 A peça “A Serpente” foi dirigida por Amanda Gartner e Thaís Carli, com atuação de Priscila Mesquita e Joyce Sangolete Chaimsohn, dentro da disciplina de Direção Teatral, sob coordenação do Profº José Ronaldo Faleiro, no segundo semestre de 2008, no CEART/ UDESC. O texto de Nelson Rodrigues não foi montado por completo, mas sim somente as cenas que mostravam a relação entre as irmãs Guida e Lígia. 13 correm com os lobos – Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem, de Clarissa Pínkola Estés (1994), e gostei das antigas histórias, os mitos e contos de diferentes países, que autora conta neste livro. Tive vontade de ver estas histórias em cena e de compartilhá-las com outras mulheres. Pensei em fazer um grupo só de mulheres para que juntas, lêssemos essas histórias e pensássemos em como colocá-las em cena. Ou utilizá-las apenas como estímulo, para que contássemos nossas próprias histórias. Como precisava de um espaço onde pudesse desenvolver tais ideias, cogitei que isso seria viável dentro de uma pesquisa de mestrado na UDESC, onde eu acreditava que haveria uma professora que orientasse este projeto, Maria Brígida de Miranda, a qual já coordenava o grupo de estudos Teatro e Gênero desde 2006. Assim, dessa ideia inicial, de realizar um trabalho cênico com um grupo apenas de mulheres, e apoiada pelo referido livro de Estés (1994), desenvolvi o projeto de pesquisa para ingressar no curso de mestrado. Após ser aceita no programa, e estando sob a orientação de Miranda, a partir de sua sugestão, meu projeto de pesquisa uniu-se a ao projeto de suas outras duas orientandas. Deste modo, eu, Rosimeire da Silva e Lisa Brito, que ingressamos no mestrado no mesmo ano (2010), começamos a coordenar um laboratório de pesquisa prática. Este grupo prático iniciou como um desdobramento do grupo de estudos Teatro e Gênero, tendo como integrantes mulheres que já participavam do grupo de estudos, dentre elas, as duas mestrandas acima citadas, Miranda e as estudantes do curso de graduação em teatro, Emanuele Weber Mattiello, Julia Oliveira, Marina Sell, Vanessa Civiero e a mestre em teatro Morgana Martins. Nosso trabalho iniciou em março de 2010, e o grupo foi batizado no fim do mesmo ano, recebendo o nome (Em) Companhia de Mulheres. Dito isto, o foco deste estudo é mostrar o percurso traçado pelo grupo (Em) Companhia de Mulheres, no período compreendido entre março de 2010 até dezembro de 2011, inserindo-o dentro da prática teatral feminista. A proposta é descrever e refletir sobre os procedimentos adotados por este grupo durante o processo de criação, no qual buscou construir seu próprio texto e espetáculo. Olhar para o processo a partir de uma perspectiva feminista, utilizando como apoio uma bibliografia sobre a teoria teatral feminista é a tarefa a qual me proponho nas páginas que se seguem, a fim de refletir, registrar e dar visibilidade ao trabalho desenvolvido, compartilhando esta experiência. 14 No decorrer da investigação, constatei que há poucas referências sobre a teoria teatral feminista disponível em língua portuguesa. Diante deste fato, meu limitado conhecimento em língua inglesa precisou se desenvolver ao longo da pesquisa, tornando a tarefa mais demorada e exaustiva, fator que também limitou o número de fontes primárias utilizadas. Mas, ao mesmo tempo em que fui descobrindo um novo modo de pensar o teatro, ao menos novo para mim, ampliei meu conhecimento da língua inglesa, tornando esta experiência mais rica e gratificante. Além disso, agucei meu olhar para questões políticas que abrangem lutas por diferentes causas. Isto significa que estudar o teatro feminista, me levou a conhecer não só o(s) pensamento(s) feminista(s), como também perceber que me posicionar politicamente faz com que a minha inconformidade com o mundo em que vivo me impulsiona cada vez mais para ação. Entendo com isso que a luta feminista abrange não apenas questões ligadas à mulher, mas amplia-se para questões ligadas a definição do humano. Antes de adentrarmos na descrição e reflexão do trabalho do grupo (Em) Companhia de Mulheres, o presente trabalho traz no Capítulo 1 alguns apontamentos sobre a teoria e a prática teatral feminista. Assim, refletimos sobre a invisibilidade do termo “teatro feminista” no Brasil e apresentamos uma possível definição para o termo. Utilizando como principal referência Elaine Aston (1995; 1999) e Jill Dolan (1991; 2011), mostramos como se desenvolve o teatro feminista a partir dos anos 1960, em países como Inglaterra e Estados Unidos, e como as diferentes vertentes do feminismo influenciam na criação de diferentes formas de fazer teatro feminista. Ainda no Capítulo 1, a partir do que escreve Aston (1995), Dolan (1991) e Lucia V. Sander (2007), abordamos o lugar das mulheres na história do teatro, demonstrando que não se trata tanto da inexistência de dramaturgas ou de mulheres trabalhando em outras funções no teatro, mas muito mais do que isso, isto é, a invisibilidade a qual seus trabalhos foram destinados, sendo que o resgate destes trabalhos “enterrados pela história” é uma das tarefas do feminismo. Conforme o demonstrado pelas autoras citadas, discutimos sobre como a existência de um cânone literário que exclui as mulheres, prejudicou e continua a prejudicar o desenvolvimento destas enquanto dramaturgas e consequentemente a sua colocação profissional. Se por um lado, elas são aplaudidas quando escrevem peças obedecendo aos padrões determinados por uma tradição literária, de outro lado, quando fogem deste padrão, não têm seus trabalhos reconhecidos. Assim, refletimos se é possível estabelecer um cânone 15 feminino, uma vez que o cânone é universal, e o universal, de acordo com a crítica feminista é masculino e consequentemente excludente dos assuntos relacionados à mulher. Ao trazer a discussão para o contexto brasileiro, utilizamos autores como André Luís Gomes e Laura Castro Araújo (2008), os quais fazem uma análise de 207 peças teatrais brasileiras publicadas entre 1960 e 2006, verificando que há o predomínio do discurso de autoria masculina, fator que influencia na construção da identidade feminina na dramaturgia brasileira. Por sua vez, a obra de Ana Lúcia Vieira Andrade (2006), ao examinar o trabalho das dramaturgas Leilah Assunção, Maria Adelaide Amaral e Ísis Baião, demonstra como a recepção de suas obras calcadas em aparatos críticos tradicionalmente masculinos, influencia na continuidade da carreira das autoras. Deste modo, o Capítulo 1 demonstra a necessidade de repensarmos o fazer teatral de forma que as mulheres possam construir a sua própria identidade na dramaturgia, em contraponto à predominância do discurso de autoria masculina. O Capítulo 2, ao descrever e analisar as estratégias de criação utilizadas pelo grupo (Em) Companhia de Mulheres, pretende mostrar o caminho encontrado pelo grupo para a construção dessa identidade no teatro. O Capítulo 2 inicia relatando desde o momento de fomentação da proposta desta pesquisa até a formação do grupo (Em) Companhia de Mulheres. Na sequência o grupo é contextualizado dentro de um “espaço ginocêntrico,” conceito abordado por Maria Brigida de Miranda (2010), como um espaço de empoderamento, conceito também tratado neste capítulo, tendo como aporte teórico Paulo Freire e Ira Shor (1986) e Rodrigo R. Horochovski e Giselle Meirelles (2007). Dando sequência ao relato sobre a formação do grupo, o Capítulo 2 mostra como as opções de trabalho do grupo, que iam além da sala de ensaio, serviram para uma maior aproximação das integrantes. Além disso, o capítulo descreve a “primeira fase” do trabalho criativo do grupo,utilizando como estímulos mitos e contos aliados ao treinamento psicofísico e aos jogos teatrais como estratégias de geração de material cênico. Para completar esta descrição, são apresentadas as leituras aproveitadas como estímulo durante o processo criativo, como os mitos e contos do livro de Estés (1994). Porém, este primeiro contato com antigas histórias despertou no grupo o interesse de compreender a dimensão arquetípica que as envolvem. Assim, Carl Jung (1964) e Jean 16 Shinoda Bolen (1990) foram referências de apoio para o entendimento do conceito de “arquétipo”, complementando a compreensão do conceito de “mulher selvagem”, abordado por Estés (1994). Junito Brandão (1984), Joseph Campbell (1990) e Beatrice Bruteau (1989) são autores que nos ajudaram a compreender a noção de “princípio feminino”, conceito que surgiu para nós também a partir da leitura de mitos. Estes estudos são posteriormente analisados em relação ao viés essencialista do feminismo cultural. Após o trabalho prático inicial, e estas leituras complementares, chegamos a um resultado cênico, que chamamos de percurso, descrito e analisado no fim deste capítulo. A análise é realizada tendo como apoio Hans-Thies Lehmann (2004; 2007), o qual discute questões ligadas às formas teatrais chamadas por ele de pós-dramáticas, e apresenta outro olhar sobre a noção de texto teatral. Também recorremos a Dolan (1991), que explica o estilo de teatro desenvolvido pelas feministas culturais, o que dialoga com o resultado obtido no percurso, contribuindo para a compreensão do mesmo. O Capítulo 3 trata da “segunda fase” do processo criativo do grupo, quando do desenvolvimento do texto e espetáculo Jardim de Joana. Para começar, contextualiza a necessidade do grupo em definir temas para a criação de um espetáculo, deixando para trás o resultado cênico obtido até então, isto é, o percurso. Da necessidade de definição de temas, seguiu-se também a necessidade de ter uma direção, pois até então o grupo trabalhara sem que alguém assumisse essa função. Aston (1999) é a referência principal para conversar com este momento vivenciado pelo grupo, ajudando-nos a problematizar as necessidades surgidas. Após comentar sobre a entrada de Miranda na direção do trabalho e sobre a delimitação de temas, o capítulo apresenta a forma de criação do texto dramático Jardim de Joana, contextualizando-o dentro da estratégia do “devised theatre”, método de trabalho recorrente em grupos teatrais feministas, e explicado por autoras como Miranda (2010), Alison Oddey (1994), Deirdre Heddon e Jane Milling (2006). Tratamos também de outros métodos, como “processo colaborativo”, “criação coletiva” e “dramaturgia em processo”, para verificar as possíveis diferenças e pontos de intersecções entre eles e, para tal, recorremos aos autores Antônio Araújo (2006), Sérgio de Carvalho (2009ª; 2009b) e Aleksandar Sasha Dundjerovic (2007) 17 Resumidamente, são descritas as improvisações realizadas que culminaram na criação do texto teatral Jardim de Joana. Em seguida contamos como foi o processo de escrita do texto, a partir da filmagem das improvisações e discutimos sobre as dúvidas que surgiram no grupo quanto a validade do texto criado. O refinamento textual que ocorreu durante os ensaios que desembocaram no espetáculo Jardim de Joana, e as apresentações do espetáculo também são relatados neste capítulo. Além de dialogar com as autoras citadas que escrevem sobre a prática teatral feminista, o capítulo aborda como o trabalho realizado na “primeira fase” influenciou na criação do Jardim de Joana. Finalmente, o capítulo faz uma reflexão sobre o espetáculo criado, a partir dos objetivos iniciais do grupo e o resultado obtido, trazendo ainda o conceito de “espectador ideal” tratado por Dolan (1991). 18 1 APONTAMENTOS SOBRE O TEATRO FEMINISTA E TEORIA TEATRAL FEMINISTA 1.1 ‘TEATRO FEMINISTA’: UM TERMO INVISÍVEL NO BRASIL? Ao iniciar a presente pesquisa averiguamos que publicações brasileiras sobre o teatro feminista são escassas, realidade apontada por duas recentes pesquisas brasileiras que abordam o tema: De quem é esse corpo? – A performatividade do feminino no teatro contemporâneo (2009), tese de Lucia Regina Vieira Romano e Teatro Feminista: uma abordagem sobre as teorias, as práticas e as experiências (2008), monografia de Luana Tavano Garcia 5 . Apesar da lacuna no estudo do teatro, no Brasil os estudos de gênero com uma visão feminista possuem um grande número de publicações em outras áreas, como por exemplo, nas ciências sociais, literatura e áreas da saúde. Além disso, Romano (2009) ressalta que nessas outras áreas existem traduções de pesquisas recentes realizadas em outros países, porém existe uma brecha no que diz respeito a traduções de pesquisas sobre teatro e gênero com vieses feministas. Devido à carência de material publicado sobre a prática teatral feminista no Brasil, a despeito dos esforços de pesquisadoras reunidas no Simpósio Temático Teatro e Gênero do Seminário Fazendo Gênero 8 e 9 6 , e das pesquisas geradas no grupo de estudo Teatro e Gênero 7 , o presente trabalho utiliza como principal aporte teórico 5 Estas duas pesquisas ainda não forma publicadas, mas encontram-se disponíveis on-line. Vide Referências. 6 O Seminário Internacional Fazendo Gênero, incorporou na 8ª edição do evento, em 2008, o Simpósio Temático Atos de violência: representações de agressão à mulher no palco, coordenado por Maria Brigida de Miranda (UDESC), Ciane Fernandes (UFBA) e Lucia Regina Vieira Romano (USP), e em 2010, na 9ª edição do evento, o Simpósio Temático Teatro e Gênero, coordenado por Miranda e Kátia Rodrigues Paranhos (UFU). Deste modo, os trabalhos compartilhados nestes Simpósios têm contribuído para ampliar a discussão na área do teatro e gênero. Para maiores informações, consulte http://www.fazendogenero.ufsc.br/, onde também se encontram disponíveis os artigos publicados nos anais deste evento. 7 O Grupo Teatro e Gênero iniciou na pesquisa Poéticas do Feminino e Masculino: A Prática Teatral nas Pesquisas de Gênero (2006-2009), no DAC/CEART/UDESC, sob coordenação de Maria Brigida de Miranda. O grupo, atualmente vinculado à pesquisa Poéticas Feministas: a reinvenção da histeria nas peças teatrais feministas da década de 1990, encontra-se aberto a quaisquer interessados na discussão. Dentre as pesquisas produzidas como fruto deste grupo, podemos listar algumas, além da monografia de Garcia, a monografia Aspectos feministas em produções teatrais: análise de três casos brasileiros 19 publicações de pesquisadoras inglesas e americanas, como Elaine Aston (1995; 1999), Jill Dolan (1991) e Lizbeth Goodman (1993), as quais discorrem sobre este tema em seus países, a partir da década de 1960. É curioso refletir sobre o fato de que os trabalhos destas autoras, indispensáveis para o entendimento do teatro feminista, não se encontram ainda disponíveis em língua portuguesa. Estas autoras, além de explicarem os contextos nos quais os teatros feministas se desenvolveram, fornecem informações sobre o modo como os grupos se organizavam, bem como suas estratégias de criação, o que dialoga com a prática teatral desenvolvida pelo grupo (Em) Companhia de Mulheres, aqui estudado. Escrevemos teatros feministas no plural, pois como demonstram as autoras, existem diversos modos de fazer teatro feminista, em decorrência das diferentes vertentes feministas. 1.1.1 Definindo o termo ‘teatro feminista’ Ao longo do texto utilizaremos não somente o termo ‘feminista’,mas também o termo “feminino”, portanto, trazemos aqui uma possível diferenciação destes. Peter Barry (2002, p. 122) distingue os termos, “feminista”, “fêmea” e “feminino”, de acordo com a explicação de Toril Moi 8, para quem “feminista” refere-se a uma posição política, “fêmea” a aspectos biológicos e “feminino” a características culturais. Ao estudar questões relativas à prática teatral feminista, o que será desenvolvido ao longo do texto, percebe-se que o teatro feminista apresentado por Aston (1995; 1999), Goodman (1993) ou Dolan (1991), busca em sua prática, um modo de trabalho relacionado aos ideais feministas do Women’s Liberation Movement, movimento político que teve início nos anos 1960, durante a Segunda Onda Feminista, lutando pela igualdade de direitos para as mulheres. Ainda que as práticas apontadas pelas autoras citadas sejam comuns em grupos feministas, cabe ressaltar que não são exclusivas destes. (MATOS, 2008) e os artigos Women's experimental theatre e Monstrous regiment : duas representações de teatros feministas da década de 1970 (GARCIA; MIRANDA, 2007/ 2008); Teatro Feminista: da pesquisa à sala de aula (MIRANDA, 2007/ 2008); Teatro Feminista no Brasil: Loucas de Pedra Lilás (MATOS, MIRANDA, 2007/ 2008); As canções de Vinegar Tom: uma releitura contemporânea da música na obra de Brecht (MUSSI; MIRANDA, 2007/ 2008); Das ‘aflições femininas’; ervas, poções e sangrias: a representação de curandeiras e médicos no espetáculo Vinegar Tom (MIRANDA, 2008/ 2009). 8 MOI, Toril. Sexual/Textual Politics: Feminist Literary Theory. London: Methuen, 1985. 20 Em Contemporary Feminist Theatres, Goodman (1993), utiliza a noção de teatro feminista como definida por Susan Bassnett 9 , segundo a qual, o feminist theatre [teatro feminista], tem uma posição política específica, baseada nas sete demandas estabelecidas pelo Women’s Movement. Para especificar essas demandas, citamos Bassnett (1984) apud Goodman (1993, p. 30-31, tradução nossa): 'Teatro feminista' logicamente baseia-se nas preocupações estabelecidas pelo Women’s Movement, sobre as sete demandas: igualdade de remuneração; educação e oportunidades iguais de trabalho; creches gratuitas e 24 horas; contracepção grátis e aborto sob pedido; independência financeira e legal; um fim da discriminação contra lésbicas e o direito da mulher definir sua própria sexualidade; liberdade de violência e coerção sexual. Estas sete demandas, das quais as quatro primeiras foram estabelecidos em 1970, e o restante em 1975 e 1978 mostram uma mudança para um conceito mais radical do feminismo que afirma a homossexualidade feminina e percebe a violência como sendo proveniente de homens. A tendência, portanto, não é tanto no sentido de uma re-avaliação do papel das mulheres como nós o conhecemos, mas em direção à criação de um cenário totalmente novo de estruturas sociais em que os tradicionais papéis masculino-feminino serão redefinidos. 10 Além de explicar que o feminist theatre baseia-se nessas sete demandas, Goodman também diferencia o termo feminist theatre de women’s theatre, elucidando que este último não se encontra comprometido com as sete demandas e se trata de um termo mais genérico. Essa variedade de termos “teatro das mulheres”, “teatro de mulheres”, “teatro feminino” e “teatro feminista”, pretendem denotar práticas feitas por mulheres, mas com diferentes posicionamentos em relação à própria noção de “mulher”. Optamos por utilizar a noção de feminist theatre, pois é a que mais se adequa à proposta do grupo (Em) Companhia de Mulheres, a ser discutida nos capítulos seguintes, bem como ao teatro feminista estudado a partir das autoras já citadas para dialogar com a prática do grupo. Para auxiliar na compreensão do que significa teatro feminista, buscamos também uma explicação clara e concisa sobre tal termo no Dicionário de Teatro de 9 BASSNETT, Susan. “Towards a theory of women’s theatre”. Linguistic and Literary Studies in Eastern Europe, v.10: The Semiotics of Drama and Theatre, Herta Schimid and Aloysius Van Kesteren (Eds.), Amsterdam and Philadelphia: John Benjamins, 1984. 10 “‘Feminist theatre’ logically bases itself on the established concerns of the organized Women’s Movement, on the seven demands: equal pay; equal education and job opportunities; free 24-hours nurseries; free contraception and abortion on demand; financial and legal independence; an end to discrimination against lesbians and a woman’s right to define her own sexuality; freedom from violence and sexual coercion. These seven demands, of which the first four were established in 1970, and the remainder in 1975 and 1978 show a shift towards a more radical concept of feminism that asserts female homosexuality and perceives violence as originating from men. The tendency therefore [p. 31] is not so much towards a re-evaluation of the role of women within as we know it, but towards the creation of a totally new set of social structures in which the traditional male-female roles will be redefine.” 21 Patrice Pavis (2008), pois esta publicação fornece uma compilação de diversos aspectos do teatro. Porém, no Dicionário não encontramos o verbete teatro feminista, mas apenas o verbete teatro das mulheres, como segue: Mais do que teatro de mulheres (feito por mulheres ou para mulheres), expressão que sugere de imediato que existe um gênero específico, ou que teatro feminino, o qual remete a uma visão militante de teatro, preferimos o termo mais neutro e mais genérico teatro das mulheres: feito por mulheres e tendo uma temática e uma especificidade femininas. Este termo, aliás, convém melhor à nossa época, que passou, no espaço de trinta anos, de um movimento feminista ativo a um ‘feminismo difuso’. [...] A questão é, todavia, saber se estamos em condições de levantar os critérios de uma escritura dramática ou de uma prática cênica especificamente feminina. Toda generalização se expõe, na verdade, a um desmentido rápido ou a uma excessiva simplificação. (PAVIS, 2008, p. 377-378) Portanto, para este autor, teatro das mulheres é um termo mais genérico e neutro do que teatro de mulheres, ou seja, aquele feito por mulheres ou para mulheres e o termo teatro feminino remete a um teatro militante. As perguntas que surgem a partir desta explanação são as seguintes: por que, o Dicionário de Teatro ignora a existência do teatro feminista, sendo que há publicações que tratam sobre o tema, e que inclusive levam em seu título o termo Feminist Theatre 11 ? O que representa a inexistência de tal verbete no dicionário? Será devido ao contexto teatral no qual o autor se insere, será uma questão de tradução, ou será a complexidade do termo que não permite sua concisão em um verbete do Dicionário? Apesar de enumerar diversas formas teatrais, ou autor não menciona o teatro feminista. Pavis opta pela utilização de um termo mais neutro e mais genérico. Segundo o autor, generalizar pode levar a uma simplificação, que não corresponderia ao teatro feito por todas as mulheres. Se pensarmos que nem todo teatro feito por mulheres possui um viés feminista, a utilização do termo “teatro feminista”, excluiria o teatro feito por todas as mulheres. Contudo, por que não evidenciar a existência de um teatro especificamente feminista? Pavis evita utilizar o termo “feminista”, utilizando “feminino” para se referir a uma prática militante. Mas, se utilizasse o termo “teatro feminista”, o autor correria o risco de fazer uma generalização equivocada ou teria esta forma teatral suas especificidades?Esta é uma das questões que nos interessa e que discutiremos neste capítulo. 11 Podemos citar alguns títulos como exemplos: An Introduction to Feminism and Theatre (ASTON, 1995); Contemporary feminist theatres: To each her own (GOODMAN, 1993); A Sourcebook of Feminist Theatre and Performance: On and Beyond the Stage (MARTIN, 1996). 22 O autor questiona se é possível fazer um levantamento dos critérios que especifiquem uma prática cênica feminina, ou seja, questiona se a diferença entre os sexos define as diferenças entre as formas de pensar e agir e consequentemente se existe uma diferença entre a escritura dramática feminina e a masculina. Para ele, “existe uma diferença, mas ela é dificilmente perceptível e generalizável” (2008, p. 378). Pode ser que esta diferença seja dificilmente generalizável ou perceptível, mas seria ela inexistente a ponto de ser ignorada? Embasado no argumento de escritoras como M. Fabien e N. Sarraute, o autor considera a diferença sexual, porém, assinala que a diferença na escritura está além da diferença sexual, pois decorre também do contexto social, político e histórico no qual as artistas se inserem, sendo que estas últimas diferenças, Pavis considera mais pertinentes do que a diferença entre os sexos. Se considerarmos que o termo “feminino” refere-se a um conjunto de características culturalmente definidas, conforme aponta Barry (2002, p. 122), podemos entender que a diferença está sim além do sexo, pois, aos aspectos biológicos agrega-se ainda uma série de características que o contexto cultural determina. Portanto, as características culturalmente definidas não estariam associadas ao sexo biológico? Para completar o verbete teatro das mulheres, Pavis argumenta que a diferença sexual pode ser mais visível na prática cênica: Talvez no trabalho concreto de preparação do espetáculo, de direção de ator e de encenação é que se observará mais facilmente a maneira feminina de fazer teatro. A relação com a autoridade, com a lei e com noções metafísicas como o gênio ou a inspiração difere bastante claramente entre os sexos, por causa dos hábitos seculares da divisão de tarefas. (2008, p. 378). A partir do que Pavis escreve, percebe-se que este considera o sexo como algo que influencia na construção dos papéis sociais e, portanto, os “hábitos seculares da divisão de tarefas” (2007, p. 378) influenciam mais claramente na prática cênica do que na escrita. Porém, se o que o indivíduo escreve está relacionado com a sua experiência, não seria possível na escrita, tanto quanto na prática cênica, perceber a diferença entre os sexos? Lucia V. Sander, no livro Susan e Eu: ensaios críticos e autocríticos sobre o teatro de Susan Glaspell (2007), ao discutir sobre a recepção da obra da dramaturga norte-americana Susan Glaspell (1876-1948), defende que a diferença entre os sexos influencia não só na recepção de um texto como também na escritura deste. Sander utiliza este argumento para explicar o porquê de leituras equivocadas da obra de 23 Glaspell, pelos críticos de sua época. Sander, apoiada na teoria da recepção, elucubra que, se “a natureza da estrutura de conhecimento de quem lê” determina “a natureza da compreensão de um texto” é preciso, portanto, “considerar que homens e mulheres em nossa cultura são sistematicamente expostos a experiências diferentes desde a infância, e que os conhecimentos vinculados e específicos aos gêneros são extremamente ricos e diferentes” (2007, p. 41). Considerando o exposto por Sander, é possível especular que um dos motivos que levou Glaspell, enquanto dramaturga, a cair no esquecimento, foi o fato de seus textos teatrais abordarem experiências e condições especificamente femininas. De acordo com Sander, apesar da pretensa universalidade e neutralidade dos critérios utilizados na avaliação de obras literárias e teatrais, estes são pautados “pela percepção, pelo conhecimento” e “pela experiência do gênero dominante” (2007, p. 42), ou seja, o gênero masculino. Assim, por tratar da experiência feminina, e pela crítica de sua época estar composta majoritariamente por homens, os temas e formas utilizados por Glaspell podem não ter sido bem compreendidos. 1.2 A PRÁTICA TEATRAL FEMINISTA COMO UMA PRÁTICA POLÍTICA Para contextualizar o teatro feminista recorremos a Elaine Aston e seus livros Feminist Theatre Practice: A handbook (1999) e An Introduction to Feminism and Theatre (1995). No primeiro livro mencionado, Aston (1999) escreve sobre a prática do teatro feminista, como esta é ensinada e investigada no âmbito acadêmico inglês, objetivando reunir propostas práticas para que este tipo de teatro possa ser atualizado e efetivado. Neste volume, Aston explica que seu trabalho dentro de universidades inglesas tem envolvido pequenos grupos de mulheres, para experimentar uma prática teatral feminista, que desafie os modos de representação das mulheres dentro dos sistemas dominantes. Com isto, Aston espera estimular as participantes a desenvolverem uma perspectiva crítica com um viés feminista e que levem para suas vidas a experiência da prática do teatro feminista como um meio de mudar as próprias vidas e a de outras pessoas. No contexto acadêmico inglês ao qual Aston se refere, os estudos teatrais envolvem três áreas chaves: “história, teoria e prática” 12 (1999, p. 3, tradução nossa). 12 “history, theory and practice”. 24 Com referência em Goodman 13 , Aston acrescenta que o estudo do teatro feminista, dentro da academia, além destas três áreas chaves, ainda inclui “estudos da mulher, estudos políticos ou de mídia” 14(1999, p. 3, tradução nossa), e ressalta que é uma disciplina marginalizada, apesar de abranger diversas áreas de estudos, “mesmo dentro de instituições ‘liberais’.” 15 (GOODMAN, 1996 apud ASTON, 1999, p. 3, tradução nossa). Aston (1999) explica que nos anos 1970 a performance feminista era realizada por profissionais do teatro fora da academia, e por ativistas feministas fazendo teatro no contexto do Women’s Liberation Movement. Enquanto isso, no âmbito acadêmico, havia o desenvolvimento da teoria crítica feminista, principalmente nos estudo literários e fílmicos, porém, como Aston aponta, é somente no fim dos anos 1980 que o teatro feminista como prática entra na academia, por meio de palestras, workshops e performances, estimulando o desenvolvimento de teorias acerca desta prática. Deste modo, várias dramaturgas e profissionais do teatro feminista tiveram contato com a teoria feminista e isso refletiu em seus trabalhos. Ainda de acordo com Aston (1999), durante os anos 1970 o movimento feminista propiciou o início de uma transformação na vida das mulheres que tinham acesso às ideias feministas. Porém, essas mudanças ainda estavam limitadas à classe média e à população branca. Voltando o olhar para a própria condição social a qual estavam inseridas, o feminismo proporcionou às mulheres um olhar político para suas próprias vidas. Com isso, as mulheres perceberam o quanto haviam sido oprimidas e muitas vezes excluídas “da atividade social, política, cultural.” 16 (ASTON, 1999, p. 5, tradução nossa). Neste contexto, as mulheres também começaram a questionar sua representação na história, ao mesmo tempo em que descobriram “como elas tinham sido ‘escondidas da história.’” 17 (ASTON, 1999, p. 15, tradução nossa). Esta noção possibilitou que desafiassem os modelos dominantes, inclusive dos sistemas teatrais. 13 GOODMAN, Lizbeth. “Feminisms and theatres: canon fodder andcultural change”. In: CAMPBELL, P. (ed.). Analysing Performance. Manchester: Manchester University Press, 1996. Pp. 19-42. 14 “women’s studies, media studies or politics”. 15 “even within otherwise ‘liberal’ instituitions.” 16 “of social, cultural and politic activity.” 17 “[…] how they had been ‘hidden from history’.” 25 Os protestos das mulheres em prol de direitos iguais aos dos homens levaram às feministas para as ruas, onde utilizavam as técnicas do agit-prop 18 em suas manifestações. Neste período, suas reivindicações giravam em torno de “quatro questões básica”, sendo elas: “igualdade de remuneração; educação e oportunidades iguais; creches 24 horas; e contracepção gratuita e aborto sob pedido.” 19 (ASTON, 1999, p. 5, tradução nossa). Como consequência destas manifestações, e do desenvolvimento do teatro de rua e dos festivais de teatro, Aston explica que as praticantes feministas passaram a se preocupar com o fazer teatral, e as profissionais criaram grupos exclusivamente de mulheres, nos quais tiveram a liberdade de desenvolver-se profissionalmente em diferentes campos de atuação no teatro e ao mesmo tempo desenvolver formas de trabalho apropriadas aos discursos feministas. [...] elas organizaram o seu trabalho de forma democrática e não hierárquica, de acordo com o modelo de conscientização do Women’s Liberation Movement e desenvolveram estilos de atuação e estética que facilitaria o ethos de coletividade e colaboração, mais do que o culto ao individualismo burguês. 20 (ASTON, 1999, p. 6, tradução nossa). Isto significa que as artistas engajadas na luta feminista precisaram criar seu próprio espaço, uma vez que casas de espetáculos comerciais e até mesmo os grupos teatrais da esquerda socialista, eram organizados de forma hierárquica, com homens ocupando os cargos mais altos e com papéis dramáticos que não valorizavam a experiência feminina. Assim, o teatro feminista da “contra-cultura” quis deslocar para o centro do palco as questões das mulheres e apresentá-las em seu próprio direito, em oposição à representação do teatro tradicional que as colocavam como pertencentes ao homem, ou seja, em função dele. A intenção também era representar as mulheres como “realmente são” (na perspectiva das mulheres envolvidas com o processo criativo), e não como eram representadas por um imaginário calcado no patriarcado. Para tal, centraram o conflito dramático nas relações “intra-femininas”, tais como, mãe e filha, 18 Para exemplificar no que consiste o teatro de agit-prop, recorremos a Patrice Pavis, segundo o qual: “O teatro de agit-prop (termo proveniente do russo agitatsiya-propaganda: agitação e propaganda) é uma forma de animação teatral que visa sensibilizar um público para uma situação política ou social” (PAVIS, 2008, p. 379). Pavis continua explicando que esta forma teatral, com intenções claramente políticas, pode estar a favor da oposição, bem como, pode ser utilizada como instrumento para propagar a ideologia política do poder vigente, o que, para o autor, faz do agit-prop um movimento crítico contraditório. 19 “[…]four basic issues […] equal pay; equal education and opportunity; twenty-four-hours nurseries; and free contraception and abortion on demand.” 20 “they organized their work democratically and non-hierarchically, in line with the consciousness- raising model of the Women’s Libaration Movement, and developed acting styles and aesthetics that would facilitate the ethos of collectivity and collaboration, rather than the cult of bourgeois individualism.” 26 irmãs e amantes lésbicas e, nas relações inter-sexuais, colocando em evidência as relações prejudiciais às mulheres por meio da representação de papéis formais, como marido e esposa, pai e filha, irmão e irmã. “Para desenvolver práticas contra-culturais, as feministas precisaram estar aptas a compreender as propriedades formais e conteúdos ideológicos das formas culturais dominantes.”21 (ASTON, 1999, p. 6, tradução nossa). Um exemplo desta compreensão é o conceito de Laura Mulvey 22 sobre o olhar no contexto do cinema, principalmente o Hollywoodiano. Aston (1999) explica que a teoria de Mulvey considera o olhar masculino como ativo e o feminino como passivo, ou seja, o homem como o portador do olhar e a mulher como imagem a ser vista. Transferindo esta compreensão para o contexto do teatro, Aston explica que a estrutura narrativa do teatro realista, segue a forma do sujeito masculino como ativo e o feminino como passivo. Este tipo de construção apresenta-se tanto na relação entre personagens, quanto entre personagens e atores e entre estes últimos e o público. Na tradição realista, o Método de atuação herdado de Constantin Stanislavski, convida a atriz a se identificar com as personagens femininas que se encontram em situação de submissão e opressão. Citando Sue-Ellen Case 23 , Aston esclarece que essas personagens femininas raramente representam mulheres que vivem em seu próprio direito, mas são determinadas em relação ao outro, ao personagem masculino, geralmente mais importante, e, assumindo o papel de mãe, amante ou esposa. Aston (1999) esclarece que para as praticantes do teatro feminista que passaram a se sentir alienadas pela estrutura realista, a qual colocava as personagens femininas em função dos personagens masculinos, a intenção era trabalhar com temas e experiências que dissessem respeito à mulher. Mais do que inventar novos estilos de atuação e formas teatrais, as artistas feministas buscaram desconstruir as velhas formas e estilos, retrabalhando-as e explorando outros modelos, contribuindo para a busca de diferentes formas de atuação. A respeito desta busca em descontruir velhas formas de atuação, escreve a atriz Lauren Love (2002), em seu artigo que critica, sob o ponto de vista de 21 “To develop counter-cultural practices, feminists needed to be able to understand the formal properties and ideological content/s of dominant cultural forms.” 22 MULVEY, Laura. Visual and Other Pleasures. Houndmills, Basingstoke, Hampshire and London: Macmillan, 1989. MULVEY, Laura. “Visual pleasure and narrative cinema”. In: Screen, pp. 22-34, 1992 (1975). 23 CASE, Sue-Ellen. Feminism and Theatre. London: Macmillan, 1988. 27 teorias feministas, a abordagem orgânica de atuação. Para a autora, além do modo de atuação naturalista/ realista convidar a atriz a representar personagens femininas que perpetuam a ideologia dominante, o método não permite a abertura para a crítica e a reflexão dos conteúdos imbuídos em um texto. Assim, cegamente, a atriz treinada neste sistema de atuação, produz sentidos que correspondem a ideologia que procura resistir. A partir deste problema, Love questiona a possibilidade de resistir a esta ideologia por meio da atuação, e mostra a complexidade do problema: Eu continuo a me perguntar se eu posso aplicar os conhecimentos que adquiri enquanto estudante de atuação às estratégias feministas de resistência, ou se eles estão muito enredados em um sistema ideológico opressivo para ser utilizado com êxito. 24 (LOVE, 2002, p. 278, tradução nossa). Ao procurar uma identificação com os personagens e suas ações, o palco naturalista não dá espaço para a reflexão. De acordo com Love, quando a plateia identifica-se com os personagens, se reafirma no público a moralidade inculcada na peça, perpetuando de modo circular o sistema de valores da ideologia dominante. Na busca por uma atuação resistente, Love (2002) cita sua experiência como atriz trabalhando com um texto de Oscar Wilde, The Importance of Being Earnest25 . De acordo com a autora, a estética não realista do texto, que critica as práticas sociais Vitorianas, já permitia uma abertura crítica e resistente. Segundo Love, sua forma de criar uma atuação resistente foi misturar diferentes técnicas aprendidas, como a consciência física adquirida com as artes marciais asiáticas, técnica de distanciamento brechtiano e técnicas psicológicas, sem que sua atuação interrompesse totalmente a encenação. Buscando utilizar as “ferramentas potencialmente opressivas” 26 (2002, p. 285, tradução nossa) da interpretação pisicologizada contra elas mesmas, a atriz encontrou uma possibilidade por meio da manipulação do subtexto. Isto significa, como explica Love, que por meio de nuances na interpretação, a atriz pode inserir o significado que quiser no texto enunciado. Mas, ao mesmo tempo em que a atriz está produzindo seus próprios significados por meio de sua atuação, todos os outros elementos da encenação estão produzindo sentidos concorrentes. Assim, segundo Love, ter consciência dos agentes semióticos que estavam em torno dela durante a sua atuação, 24 “I continue to wonder whether I can apply the skills I acquired as an acting student to feminist strategies of resistance, or whether they are too mired in oppressive ideological systems to use successfully.” 25 WILDE, Oscar. “The Importance of Being Ernst”. In: Penguin Plays. New York: Penguin Books, 1979. 26 “potentially oppressive tools.” 28 contribuiu para que ela pudesse encontrar meios de “perturbar a sua transmissão.” 27 (2002, p. 286). 1.3 AS VERTENTES FEMINISTAS E A INFLUÊNCIA NA PRÁTICA TEATRAL FEMINISTA O pensamento feminista influenciou de distintos modos na prática, na história e na teoria teatral, sendo este fato uma decorrência das diferentes vertentes feministas. De acordo com Dolan (1991), o feminismo americano pode ser dividido em três segmentos principais, sendo eles, o feminismo liberal, feminismo radical ou cultural e feminismo materialista. Enquanto o feminismo liberal reivindicava uma posição de igualdade para as mulheres, aceitando que as mulheres se encaixassem no genérico e universal masculino, o feminismo cultural (ou radical) propôs considerar as diferenças de gênero e valorizar as características biológicas específicas da mulher, como por exemplo, a capacidade de ser mãe (DOLAN, 1991, p. 5-6). Na recente introdução da próxima edição de seu livro The Feminist Spectator as Critic, Dolan (2011) 28 explica que as feministas liberais, no lugar de tentar derrubar os sistemas sociais vigentes, tentaram fazer mudanças dentro deste próprio sistema. Além disso, as “feministas liberais também não têm nenhuma desavença com o realismo e se sentem confortáveis trabalhando nas formas do teatro convencional” 29 (DOLAN, 2011, p. 4, tradução nossa). 1.3.1 Feminismo radical/ cultural Como aponta Aston (1995), a maioria dos textos dramáticos “canônicos” foram escritos por homens e, portanto, a mulher representada nestes textos corresponde a uma visão masculina. Do mesmo modo, em palcos de determinadas épocas e lugares, as personagens femininas eram interpretadas por eles, uma vez que mulheres não podiam atuar. Assim, uma das preocupações das feministas radicais (ou culturais), segundo Aston (1999), é a re-apropriação do próprio corpo, o qual fora confiscado pela cultura patriarcal. Para este viés do feminismo, o patriarcado é o ponto crucial “da desigualdade entre homens e mulheres e fala da opressão priorizando as experiências peculiares às 27 “disrupt their transmission.” 28 Esta recente introdução, ainda não publicada, foi gentilmente cedida pela autora, durante o desenvolvimento desta pesquisa. 29 “Liberal feminists also hold no quarrel with realism and feel comfortable working in conventional theatre forms.” 29 mulheres: o parto, maternidade, menstruação, e assim por diante.” 30 (ASTON, 1999, p. 8-9, tradução nossa). Embasada em Dolan (1991), Aston esclarece que para o pensamento feminista radical/ cultural, levar as experiências femininas para o palco seria um meio de tornar o teatro um lugar onde as mulheres pudessem olhar para e refletir sobre suas próprias experiências. 31 Aston (1999) ainda nos apresenta as teóricas feministas francesas, Hélène Cixous 32 , Luce Irigarary e Julia Kristeva 33 , as quais representam o modelo do feminismo cultural. A partir de uma exploração lacaniana, para estas teóricas a mulher é identificada como o ‘outro’, em relação ao sistema dominante. O trabalho dessas mulheres [Cixous, Irigarary e Kristeva] é geralmente identificado com uma exploração psicanalítica lacaniana das mulheres como "outro" em relação à ordenação simbólica de representação social e cultural e de comunicação. Neste modelo, a subjetividade é reconhecida como problemáticas para as mulheres, que são obrigadas a participar lingüística, social, culturalmente, etc, em um sistema que as constrói como marginais e alienígenas. 34 (ASTON, 1999, p. 9, tradução nossa). A partir da percepção desta construção sócio-simbólica das mulheres como o “outro” em relação ao homem, a questão levantada por Julia Kristeva (1982 [1979]), de acordo com Aston (1999), é como a mulher pode mostrar o lugar em que está inserida e então tranformar os papéis herdados por tradição. O teatro feminista cultural teve influência do pensamento de Hélène Cixous 35 , a qual, em The Laugh of the Medusa (1976), sugere um caminho de resistência e 30 “This position sees patriarchy at the heart of inequality between men and women, and addresses oppression by prioritizing experiences peculiar to women: birthing, mothering, menstruating, and so on”. 31 Cf. DOLAN, 1991, p. 83-97. 32 CIXOUS, Hélène. Portrait of Dora. In: Benmussa Directs. London: John Calder, 1979. Pp. 28-67. _____________. “The laugh og the medusa”. In: MARKS, E; COURTIVRON, I. (eds.). New French Feminisms. Brighton: Harvester Press, 1981 (1975). Pp. 245-264. Trad.: K. Cohen e P. Cohen. ____________. “Aller a la mer”. In: Modern Drama, v. 4, pp. 546-548. Trad.: B. Kerslake. 33 KRISTEVA, Julia. “Women’s time”. In: KEOHANE, N. O.; ROSALDO, M. Z.; GELPI, B. C. (eds.). Feminist Theory: A Critique of Ideology. Brighton: Harvester Press, 1982 (1979). Pp. 31-53. 34 “the work of these women is generally identified with a psychoanalytic, Lacanian exploration of women as ‘other’ in relation to the symbolic ordering of social and cultural representation and communication. In this model, subjectivity is recognized as problematic for women, who are required to participate linguistically, socially, culturally, etc., in a system that constructs them as marginal and alien.” 35 Hélène Cixous nasceu na França em 5 de junho de 1937. Além de professora universitária, Cixous é uma escritora feminista, poeta, dramaturga, filósofa, crítica literária e retoricista. Em 1974 fundou na Universidade de Paris VIII o Centre de Recherches en Etudes Féminines [Centro de Pesquisa em Estudos da Mulher], o primeiro deste tipo na Europa. Disponível em <http://www.egs.edu/faculty/helene- cixous/biography/>, acesso em 26 ago. 2012. A partir de 1985, Cixous começou a trabalhar em colaboração com Ariane Mnouchkine, diretora do Théâtre du Soleil. Cixous escreveu para a companhia peças inéditas e acompanhou o trabalho coletivo. 30 transformação, para que as mulheres possam ter seu corpo de volta: a escrita. Para Cixous, as mulheres devem escrever sobre elas mesmas e para elas. A écriture féminine de Cixous propõe que, a mulher escrevendo individualmente,sobre ela mesma, poderá ter seu corpo de volta, este corpo que até então foi construído como o ‘outro’ estranho e misterioso, o local e a causa de inibições; pois, ao censurar o corpo, censura-se também a respiração e a fala. Deste modo, a écriture féminine sugere que a mulher, ao escrever sobre a mulher e para a mulher, incentivará que outras mulheres também escrevam e assim entrem na história da qual foram excluídas. Embasada em Dolan (1991), Aston esclarece que para o pensamento feminista radical/ cultural, levar as experiências femininas para o palco seria um meio de tornar o teatro um lugar onde as mulheres pudessem olhar para e refletir sobre suas próprias experiências. 36 Dolan (2011, p. 4, tradução nossa) explica que “tais inclinações ideológicas produziria peças menos realistas e formas de atuação estruturadas mais como rituais coletivos do que narrativas lineares que valorizam as façanhas de heróis individuais.”37 No Capítulo 2 voltaremos a refletir sobre o teatro feminista cultural, procurando demonstrar como esta prática dialoga com a “primeira fase” de criação do grupo (Em) Companhia de Mulheres. 1.3.2 Feminismo materialista Conforme Aston (1999), para a prática feminista materialista não era suficiente rever a experiência feminina como determinada somente no corpo e através dele, necessitando, portanto, de uma revisão sustentada pelas condições materiais que definem gênero, sexualidade, classe e raça. O feminismo materialista é o que propõe uma intervenção mais radical no sistema de representação, “através da alienação do sistema de signo de gênero.” 38 (ASTON, 1999, p. 11, tradução nossa). Esta vertente feminista realiza uma análise crítica mais apurada das estruturas ideológicas “das formas, conteúdos e modos de produção” apoiando-se no materialismo marxista e nas “teorias do construcionismo social derivada de Foucault e da filósofa feminista americana Judith Butler,” 39 desmitificando assim, o essencialismo de gênero e a noção 36 Cf. DOLAN, 1991, p. 83-97. 37 “such ideological leanings would produce less realist plays and performance forms structured more like collective rituals than linear narratives that valorize the exploits of individual heroes.” 38 “through the alienation of the gender sign-system.” 39 “of forms, contents, and modes of production […] theories of social constructionism derived from Foucault and American feminist philosopher Judith Butler.” 31 de “cultura das mulheres” que se apresentava no pensamento do feminismo cultural (DOLAN, 2011, p. 4, tradução nossa). No campo teatral, este viés é o mais expressivo no que diz respeito aos objetivos políticos e a colaboração com a teoria, combinando a prática com uma revisão feminista-materialista da teoria de Bertolt Brecht (ASTON, 1999). Enquanto no modelo brechtiniano a preocupação é demonstrar as opressões de classe, na prática teatral feminista materialista a preocupação ampliou-se para a demonstração de gênero, o que significa demonstrar por meio do distanciamento como o gênero é construído culturalmente. De acordo com Elin Diamond 40 apud Aston (1999, p. 13, tradução nossa), no lugar de convidar a atriz a se identificar com esta construção, tal como no modelo realista, a utilização do efeito de distanciamento “busca expor ou ironizar as restrições de gênero, para revelar o gênero como aparência, como o efeito, não a pré- condição, das práticas de regulação.” 41 Isto significa, segundo Dolan (2011, p. 4, tradução nossa), que a tendência das produções teatrais que seguem esta linha de pensamento, é serem “desconstrutivas, seguindo o pós-estruturalismo, ao invés de montar estruturas, narrativas realistas ou rituais.” 42 1.4 A QUESTÃO DA DRAMATURGIA: MULHERES ESCRITORAS FORA DO CÂNONE E A NECESSIDADE DE CRIAR NOVOS TEXTOS, QUE CONTEMPLEM ASSUNTOS RELACIONADOS À MULHER Além de não termos herdado uma quantidade de textos dramáticos escritos por mulheres equivalente à quantidade de textos escritos por homens, a dramaturgia canônica, quando fala da mulher, a apresenta sob o ponto de vista masculino. Decorrente destes fatores existe uma prática recorrente nos grupos teatrais feministas para criarem suas próprias dramaturgias de modo colaborativo, como uma forma de produzir textos que tratem de assuntos de interesse das mulheres e sob o ponto de vista delas. O modo de escrita em cena que resulta em espetáculos criados coletivamente, muitas vezes produz uma dramaturgia que não existe independentemente da cena, enquanto texto literário. Este fator pode ser uma das causas de não termos herdado 40 DIAMOND, Elin. Unmaking Mimesis. London and New York: Routledge, 1997. 41 “seeks to expose or mock the strictures of gender, to reveal gender-as-appearance, as the effect, not the precondition, of regulatory practices.” 42 “to be deconstructive, following post-structuralism, rather than assembling realist or ritual narratives or structures.” 32 muitos textos teatrais escritos por mulheres e que apresentem uma temática com viés feminista. Outra causa é apontada por Aston (1995), ao apresentar o conceito feminista de mulheres ‘escondidas da história.’ Este conceito “motivou críticas feministas a entender como e por que mulheres [...] foram enterradas pela história feita pelos homens”, dando início a “recuperação de suas ancestrais femininas ‘perdidas’” 43 (ASTON, 1995, p. 15). Tentar entender como e por que os trabalhos de mulheres não sobreviveram até os dias de hoje levou a crítica literária a rever a representação feminina na literatura e a resgatar o trabalho de mulheres escritoras na prosa e na poesia, porém, tardiamente e com maior dificuldade, esta tarefa foi realizada na área da dramaturgia. De acordo com Aston, a dramaturga Honor Moore, a qual escreveu uma antologia americana dedicada à obra de dramaturgas contemporâneas 44 , defende que a falta de uma tradição feminina na dramaturgia está vinculada ao impedimento por parte dos homens das mulheres fazerem parte do teatro. Aston amplia a noção explicando que o problema não é que não tenha existido uma tradição feminina, mas sim que os trabalhos de mulheres foram “enterrados” pela história - escrita por homens - tornando o seu resgate mais difícil. A partir disto, Aston (1995) analisa como o feminismo re-mapeou a história do teatro, por meio da crítica à exclusão das mulheres da história do teatro, e da busca por uma tradição de escrita feminina. De acordo com Aston, (1995) na história do teatro ocidental, durante os períodos ‘clássicos’, tais como o grego e o elisabetano, as mulheres foram excluídas do teatro. Esta exclusão dava-se tanto no impedimento de sua atuação no palco, quanto por meio da atribuição ao que seria considerada “boa” literatura, com valores calcados no “universal,” vinculado ao sistema patriarcal. Tais valores automaticamente excluíam a expressão da experiência feminina, pois esta não estava incluída no que era considerado “universal.” Este fator impulsionou a crítica literária feminista a entender as mulheres como um signo construído pelos homens durante os períodos acima citados, uma vez que, elas próprias encontravam-se ausentes dos palcos. Também estavam ausentes da dramaturgia, pois o aparato crítico embasava-se em valores patriarcais, os quais 43 “it motivated feminist critics to understand how and why women […] had been buried by man-made history, and, second, it initiated the recovery of their ‘lost’ female ancestors.” (Tradução de Daniel Soares Duarte. Não publicada). 44
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