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1 VISITA DOMICILIAR: A EXPERIÊNCIA DO SERVIÇO SOCIAL DO IPEC/FIOCRUZ Texto publicado em fevereiro de 2005 Denise B. Sá Carvalho (autora - mestranda em Saúde Pública) Nilza O. Pereira (co-autora - Especialista em Doenças Infecciosas), Bianca M. Patacho (colaboradora - estagiária de graduação em Serviço Social/UERJ),Fabíola C. Soares (colaboradora - especialista em Serviço Social em Oncologia), Carmem L. Mosso (colaboradora - assistente social) A FIOCRUZ singulariza-se por seus trabalhos de pesquisa e ensino decorrentes da assistência aos portadores de doenças infecciosas e parasitárias, endêmicas e de natureza crônica. Constituem suas principais linhas de investigação: atenção à AIDS e as infecções oportunistas a ela associadas, o HTLV, a tuberculose, a Doença de Chagas, as leishmanioses, a esquistossomose, a paracoccidioidomicose, a criptoccocose, a histoplasmose e outras micoses, além de outras infecções com manifestações neurológicas, endocrinológicas, cardiológicas, oftalmológicas, otorrinolaringológicas, dermatológicas e pulmonares. Como resultado de sua atuação nessa área, a FIOCRUZ atende ao maior número de casos de HTLV- 1 das Américas. O Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas IPEC/FIOCRUZ, uma unidade da Fundação Oswaldo Cruz, tem como missão principal a Pesquisa em Doenças Infecciosas, aliando atividades de pesquisa, assistência e ensino. Os serviços oferecidos incluem: Atendimento médico especializado em doenças infecciosas, Farmácia Clínica; Serviço Social; Nutrição; Fisioterapia; Enfermagem; Psicologia Médica e Serviço de Vigilância em Saúde. São ofertados quatro tipos de atendimento: consultas clínicas (Centro de Clínicas Adrelírio Rios Gonçalves), serviços de internação (Centro de Internação), atendimentos medicamentosos intravenosos (Hospital Dia Herbert de Souza) e laboratoriais. O Serviço Social, integrante do Departamento Clínico Complementar do IPEC, tem como meta identificar os aspectos sociais, econômicos e culturais relacionados ao processo saúde-doença com os portadores de doenças infecciosas, buscando formas de enfrentamento individuais e coletivas. Tem como proposta o exercício de uma escuta diferenciada, visando incentivar a reflexão acerca do processo saúde/doença e a relação deste com a qualidade de vida, além de contribuir para o esclarecimento junto aos usuários quanto aos seus direitos de cidadania. Na trajetória profissional do Serviço Social, a visita domiciliar tem se constituído em história longa, que no seu percurso já estabeleceu propósitos dos mais variados. Hoje, esta atividade do Serviço Social voltada para Visita Domiciliar no IPEC foi elaborada preconizando a idéia de humanização do atendimento, com o intuito de valorizar e conhecer a dinâmica do binômio usuário/família no tratamento, numa tentativa de transformação do 2 modelo biologicista de olhar a saúde como uma questão reducionista, mas considerando também o contexto sócio econômico e cultural e as transversalidades com as quais o cidadão convive. Percebemos que longe do ambiente hospitalar os usuários sentem-se fortalecidos a desvelar seus questionamentos e anseios, permitindo assim que o profissional possa ter uma visão real das dificuldades que se encontram, possibilitando, ao final, uma sistematização de ações mais efetivas. O presente estudo retrospectivo representa a análise principalmente quantitativa dos dados obtidos em treze entrevistas semi-estruturadas aplicadas nas residências dos usuários, pelos componentes do Programa de Visita Domiciliar no Serviço Social, abrangendo o período março/junho de 2004. Neste recorte, constatamos que 92% dos usuários são portadores de HTLV1 - Human T-cell Lymptropic Virus , sendo este o nosso universo central de investigação. Vale destacar a presença de 8% de portadores de HTLV/HIV, fator agravante das discussões abaixo colocadas. O HTLV, pertencente à família dos retrovírus (a mesma do HIV), infecta os linfócitos T e pode causar uma série de doenças. A principal delas é conhecida como leucemia das células T do adulto, que é normalmente fatal, podendo causar ainda uma síndrome de desmilienização crônica, conhecida como paraparesia espástica tropical ou mielopatia associada ao HTLV-1. “Os distúrbios de marcha, a fraqueza, e o enrijecimento dos membros inferiores e o comprometimento do equilíbrio dinâmico constituem os principais sinais e sintomas de apresentação da doença. Todos os grupos musculares podem ser acometidos, de maneira a tornar a marcha espástica, produzir diminuição da velocidade e resultar em grande dispêndio energético. O grau de estasticidade torna-se, portanto, o principal fator limitante. Há restrição de deambulação comunitária e o paciente necessitará de auxílio progressivo – cajados, bengalas e andadores – para realizá-la. A cadeira de rodas representa o estágio final da evolução (...) salienta-se o caráter crônico, progressivo e sem remissões da mielopatia”. (Melo, 2002: 378) Após a identificação do HIV, em 1983, e depois de uma série de estudos sobre o HTLV-1, concluiu-se que ambos, além das mesmas formas de transmissão (sexual, sangüínea e vertical) tinham também como característica comum: o tropismo pelos linfócitos T, causando destruição dessas células, linfopenia e inversão da relação CD4/CD8 (cargas virais). A larga distribuição de HTLV no mundo, e o fato da infecção pelo HTLV estar difundida em populações que aparentemente não têm nenhuma inter-relação, fez com que alguns epidemiologistas concluíssem que este vírus está infectando seres humanos há muito mais tempo que o HIV. 3 Desta amostra estudada, 85% são mulheres na faixa etária de 41 a 60 anos. As pesquisas sobre HTLV-I, apontam que, segundo Ribas e Melo, “as primeiras manifestações da doença ocorrem geralmente na quarta década de vida, e observa-se relação homem/mulher de 2:1”, compatíveis com o quadro encontrado neste recorte. Ao observamos a escolaridade, verificamos que 70% apresentam registro de até primeiro grau incompleto, revelando no tocante às profissões um quadro equivalente a trabalhos de caráter não técnico, voltados para serviços gerais, tais como domésticas e ambulantes. Estas ocupações são, como veremos a seguir, não só incompatíveis de serem exercidas pelas seqüelas físicas do adoecimento, como também muitas vezes executadas como atividade informal, visto que 31% informaram não possuir qualquer vinculação empregatícia/previdenciária, gerando enorme precariedade financeira não só para a continuidade do tratamento hospitalar, mas para o sustento de suas vidas diárias. Verificamos que 92% dos entrevistados apresentaram dificuldades de deambulação, sendo que 54% são dependentes permanentes de cadeiras de rodas e 30% fazem uso de muletas e/ou andador, fator preponderante, que interfere em todas as categorias analisadas. Com relação ainda à fonte de renda, 38% dos entrevistados são aposentados por incapacidade permanente, 23% estão em benefício temporário e 8% recebem benefício de prestação continuada (LOAS). Ademais, 61% dos entrevistados apresentaram renda familiar de 1 a 3 salários mínimos e deste universo, 77% dos entrevistados relatam receber suporte financeiro familiar. Além disso, apenas 23% dos entrevistados informaram receber como único suporte social cestas básicas de alguma instituição de apoio. Neste contexto vale ressaltar que 46% residem com filhos adultos para serem auxiliados nos seus cuidados básicos de vida diária (higiene pessoal, alimentação) e esta dependência interfere diretamente na organização familiar, inclusive para o tempo despendido pela família no trabalho fora do domicílio. 15% destes usuários residem com o marido ou companheiro sendo auxiliados por estes nas atividades domésticas. Verificamos que 23% dos entrevistados residem sozinhos, tendo como apoio social, familiarese/ou vizinhos que se revezam em prestar estes cuidados de forma eventual. Ao verificarmos os dados coletados, percebemos ser esta a população em particular mais desprovida de estruturas e condições sócio econômicas de manter-se em tratamento de forma adequada, endossando a questão de classe social como fator que interfere diretamente no acesso à assistência. Confirmando a característica do IPEC em não atender por área programática e a inexistência de serviços de saúde na rede do SUS nestas áreas, que supram as especificidades dos portadores de HTLV, constamos que 38% dos visitados residem na Baixada Fluminense (Nova Iguaçu, Duque de Caxias e Queimados), fator agravante no deslocamento residência/IPEC/residência. 4 Registramos que 46% destes usuários moram em residências alugadas ou cedidas e que 62% do total têm até 4 cômodos. Constatamos que 31% dessas moradias foram declaradas como sendo barracos pelos próprios entrevistados, por estarem localizadas em áreas de favelas. Observarmos que 48% desses barracos segundo a visão dos moradores possuem saneamento básico, embora tenhamos verificado que este saneamento chega no máximo ao manilhamento até a valas a céu aberto. Desse grupo 69% das residências possuem acesso à água encanada. Levando-se em conta as informações declaradas sobre o saneamento básico e as condições de moradia, há que se questionar a qualidade da água a que essa população tem acesso. Ainda no tocante à infra-estrutura, 92% afirmam que residem em área com infra-estrutura urbana, o que nos permite levantar uma severa indagação sobre o entendimento que se tem em torno de infra-estrutura no imaginário popular. Se considerarmos as informações relatadas sobre as condições de moradia e saneamento, verificamos que a realidade é incompatível com o conceito de infra-estrutura e saneamento básico apregoadas pelos serviços de saúde pública. Em relação ao conhecimento sobre a patologia, 77% dos entrevistados têm mais de um ano de tratamento no IPEC e em seus depoimentos demonstram possuir um bom entendimento sobre o HTLV. Verificamos que a utilização do material informativo impresso, formulado pelo IPEC denominado HTLV- Perguntas e Respostas, tem surtido efeito esclarecedor favorável não só entre os usuários, mas apresentando repercussões do mesmo nível entre seus pares. Quando questionados em relação à adesão ao tratamento, verificamos dados contraditórios na medida em que 62% afirmam assiduidade às consultas e conseqüentemente 31% relatam faltas, embora 50% deles tenham mencionado motivos para ausências eventuais. Quando indagados sobre os principais empecilhos de comparecimento às consultas, 85% do total de entrevistados (nova contradição), afirmaram como primeiro quesito impeditivo a impossibilidade de utilização dos meios de transportes convencionais, com ênfase nos ônibus dos quais 31% utilizam como único meio de deslocamento. E ainda desse grupo, 23% fizeram uso eventual de táxi e não puderam manter e, por fim, 38% são completamente dependentes do transporte institucional do IPEC. Vale destacar que 31% afirmaram não fazer uso regular da medicação prescrita, visto que os medicamentos distribuídos pelo IPEC são fornecidos em quantidade restrita ao intervalo entre as consultas agendadas. A segunda maior dificuldade revelada foi a questão da necessidade de um acompanhante no deslocamento residência/IPEC que, como vimos anteriormente, nem sempre é possível, principalmente pelos compromissos destes familiares em relação aos seus horários de trabalho. Além de nem sempre a legislação trabalhista reconhecer estes vínculos, sabemos que eles inexistem no trabalho informal. 5 O decreto n° 3298, de 20/12/1999, que regulamenta a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, dispõe sobre um conjunto de orientações normativas que objetivam assegurar o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiências, reconhecendo este direito de integração no contexto sócio-econômico e cultural. Além do acima exposto, constatamos nesta abordagem as enormes barreiras ao exercício pleno da cidadania, de que alguns relatam ter conhecimento, mas que pelos diversos fatores ligados ao próprio adoecimento, sentem-se incapazes de reivindicar. No quesito direito ao passe-livre no sistema de transporte coletivo, ouvimos depoimentos enfatizando a questão dos entraves burocráticos para o consentimento ao deficiente e seu acompanhante, a insegurança de sua manutenção (atualmente em tramitação judicial) e a inadequação absoluta dos veículos para acolhimento de aparelhos ortopédicos. Atualmente, em um único veículo direcionado não só ao transporte dos usuários, o IPEC conduz 30 pessoas cadastradas neste programa, as consultas ambulatoriais dos serviços clínicos especializados, havendo ainda uma longa fila de espera. Entendemos que a questão do transporte institucional é um facilitador da adesão ao tratamento clínico, mas também um paliativo na questão mais ampla de real consolidação dos direitos de cidadania, na medida de que, como apregoa a Constituição, saúde engloba outras esferas como lazer, educação e habitação digna, profissionalização e cultura. Referências bibliográficas BRASIL, Constituição Federal de 1988. Brasil, 1988. Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas/FIOCRUZ, CARTILHA DO USUÁRIO. Rio de Janeiro, 2002. Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas/FIOCRUZ, Cartilha de HTLV – Perguntas e respostas.Rio de Janeiro, 2004. CRESS – 7ª Região. Assistente Social: Ética e Direitos – Coletânea de leis e resoluções. 4ª edição. Rio de Janeiro: 2002. MARZOCHI, K. B. F. A Pesquisa em Doenças Infecciosas na FIOCRUZ hoje – Visão e Prática. In: Considerações sobre a Pesquisa Clínica na FIOCRUZ. Rio de Janeiro, IPEC, 2001. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Manual de DTS. Site Oficial do Ministério da Saúde - Disponível em: www.aids.gov.br/assistencia/mandst99/man_virus_t.htm Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas/FIOCRUZ, 2002. 6 RIBAS, João G. R. e MELO, Gustavo C. N. Mielopatia associada ao vírus linfócito humano de células T do tipo 1 (HTLV-1). In: Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Jul-ago, 2002.
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