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Anais do IV Seminário Paranense de Fonoaudioloia 2013 CONTEXTO EDUCACIONAL E GAGUEIRA: UMA ABORDAGEM DO SUJEITO . Douglas Fernandes (UFSC), Lais Oliva Donida (UFSC), Vitória Pereira Gonçalves (UFSC), Ana Paula de Oliveira Santana (orientador), e-mail: anaposantana@hotmail.com Universidade Federal de Santa Catarina, Setor de Ciências da Saúde, Coordenadoria Especial de Fonoaudiologia, Florianópolis, Santa Catarina. Palavras-chave: Discurso, Gagueira, Universitário. Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar o discurso de um sujeito universitário sobre sua gagueira no contexto educacional. Foram analisadas entrevistas e os dados das avaliações fonoaudiológicas. Conclusão: Ao entrar no ambiente escolar o sujeito se oprime e não explora todo seu potencial pela vergonha e preconceito com relação à sua fala. O sistema educacional precisa se preparar para lidar com todo e qualquer processo de inclusão. Introdução: A gagueira é vista comumente como uma disfluência da fala, na qual há repetição de partes de palavras ou frases, prolongações sonoras e pausas (Carvalho, 2006). Não se sabe ainda a causa da gagueira, muitos fatores são descritos na literatura, tais como genéticos, ambientais, psicológicos (ansiedade, temperamento e relação pais-criança), (Delagracia, 2004). É importante ressaltar que descrever as características da gagueira não dá a dimensão subjetiva do que ela significa para cada sujeito. Segundo Friedman (2004), a gagueira é o apagamento do sujeito. A gagueira está no espaço discursivo, em uma relação direta com as condições de produção, a exterioridade. É nesse sentido que a gagueira se constitui como uma questão social e estigmatizada do falante. Ou seja, a gagueira é o efeito do funcionamento da imagem na subjetividade. Quem apresenta esses sintomas sofre nas suas interações sociais. A disfluência provoca no sujeito diversas dificuldades discursivas, pois ele acaba sofrendo exclusão social e também educacional. O preconceito na escola pode iniciar na educação infantil e perdurar até universidade. A partir dessas questões, torna-se relevante entender como esse sujeito se constitui enquanto falante, qual a imagem que ele tem de si mesmo e como essa imagem estigmatizada afetou e ainda afeta suas interações no contexto educacional. Metodologia: Esta pesquisa configura-se como um estudo de caso. Realizou-se uma entrevista reflexiva com um sujeito do gênero feminino, o qual chamaremos de Anais do IV Seminário Paranense de Fonoaudioloia 2013 Sujeito S. A entrevista reflexiva se torna um momento de organização de ideias e de construção de um discurso pelo interlocutor que promove um processo interativo complexo de caráter reflexivo, num intercâmbio entre significados e o sistema de crenças e valores, perpassados pelas emoções e sentimentos entre os protagonistas. A entrevista, assim, é concebida como um encontro interpessoal na qual é incluída a subjetividade dos protagonistas (Szymanski, 2011). Além da entrevista, foram recolhidos os dados para a presente pesquisa de relatórios de avaliações fonoaudiológicas. Os dados foram analisados a partir de uma perspectiva enunciativo-discursiva (Bakhtin, 1999). A entrevista foi transcritas para análise. Este trabalho faz parte do Projeto de Pesquisa “Fonoaudiologia, Linguagem e Inclusão”, aprovado pelo Comitê de Ética nº 94.411. Resultados O sujeito S. relatou que possui gagueira desde os 5 anos de idade e que sofreu na sua infância por não saber lidar com o assunto. Seus pais nunca a rotularam como gaga, tratando-a normalmente. S. não relacionou o início da gagueira com nenhum acontecimento e nem associou a permanência com alguma situação. Fez tratamento psicológico aos 8 anos de idade e fonoaudiológico apenas atualmente, aos 35 anos. Como formas para driblar a disfluência, S. fazia o uso de estratégias como: tomava o cuidado para se manter calma e trocava palavras que mais gaguejava por outras. Ao descrever sua gagueira, S. comentou que quando está com bebês, ou então cantando, não gagueja, mas quando está em um grupo maior de pessoas, sente grande dificuldade. S. disse ainda que gagueja ao falar palavras iniciadas com “s” e que não prevê quando vai gaguejar. Ela sente mais dificuldades em situações emocionantes e nas leituras em público. Também referiu que já se ouviu falando, e que não gostou da sua voz, mesmo sem ter gaguejado nenhuma vez. Com relação às questões sociais, S. isolava-se com frequência, percebendo que muitas pessoas a discriminavam. Ela acredita que isso possa ter atrapalhado sua personalidade, por estar sempre sozinha e deixar de fazer as coisas com medo da gagueira. Atualmente, aos 36 anos, isso ainda ocorre, porém com menos frequência. Sobre o contexto educacional, S. relatou que desde a pré-escola isolava-se, evitava ao máximo se expor. Ela sabia as respostas quando a professora perguntava, mas ficava sempre calada. Algumas crianças a discriminavam, ficando com um número muito reduzido de colegas que poderia chamar de amigos. Seus primeiros dias de aula, início de ano letivo, eram sempre um “tormento”, pois havia apresentação dos alunos e falar em público sempre causava um bloqueio. No discurso de S. vê-se enunciados como: “As pessoas não aceitam tu sê diferente”, “Se aliena muito a pessoa... A pessoa que sai do padrão”. S., atualmente, é aluna do curso de pedagogia. Na universidade, é bem aceita nos grupos em que convive e nunca percebeu se alguém já deixou de falar com ela por gaguejar. Mas nas apresentações de trabalho, sempre que Anais do IV Seminário Paranense de Fonoaudioloia 2013 possível, é a primeira a apresentar, para evitar a ansiedade. Ela procurou atendimento fonaudiológico por indicação de uma professora do curso. Discussão A imagem do falante se constitui nas interações sociais. É na relação de alteridade que os indivíduos se constituem (Bakhtin, 1999). Se nos constituímos e nos construímos através do outro, o sujeito gago acaba por constituir-se como um mau falante se suas interações são repletas de preconceitos. No caso acima, vimos que a família parece não ter exercido grande influência na constituição da imagem de mau falante de S. Contudo, ao entrar na escola, na relação com os colegas, o discurso produzido sobre a fala de S. fez com que ela se legitimasse enquanto incapaz de ter uma fala fluente. O lugar que S. ocupava na escola era de incompetência. Utilizando a palavra usada por ela: “alienação de si mesmo”. Se eu “existo a partir do outro”, o outro também constitui a minha fala e minha subjetividade, no caso acima, S. se constituiu fora dos padrões de normalidade aceitos socialmente. A fala de S. não era aceita, não tinha responsividade, era um dizer que não tinha um auditório social para ser ouvido. Calar-se e afastar-se de situações de fala foi constituindo toda a vida escolar de S. Embora na universidade ela refira que foi mais aceita, pois conseguia driblar e ressignificar algumas de suas dificuldades, foi nesse mesmo lugar que ela procurou atendimento fonoaudiológico. Ou seja, a sua fala ainda a incomodava. A clínica constituiu-se como uma possibilidade de ressignificação da fala e de modificação da visão de falante. Já na clínica psicológica S. refere que fora a duas ou três sessões, e que “já que a psicóloga relatou que não tinha nada”, parou. Evidencia-se aqui que o sintoma é subjetivo e que deve ser escutado na dimensão da sua queixa. Essa queixa que é interacional, depende do contexto de produção e dos sujeitos envolvidos nesse contexto: “Até eu falava com algumas pessoas, mas não... Não... Outras eu não... não tinha muito coisa. E era uma coisa que eu ficava muito nervosa assim, né, quando...”,“Pra mim, hoje em dia, em si, eu já consigo é... Já... Me acostumar, entendeu? Já não não não fico tanto assim [...]”. As estratégias utilizadas ao sentir que não vai conseguir falar, demonstram parte de um ritual para desencadear as palavras e evitar a gagueira: “Quando o professor já vem para falar isso, eu: ‘professor tu vai perguntar o nome eu já vou já responder para senhor para depois não ficar nervosa, não ter que gaguejar...’ Eu já começo já comigo." “Até bater o pé ajuda a sair”. “Tudo que é /s/, [...] eu gaguejo..” Nesse ponto, nos contando sobre como está lidando com isso, buscando a aceitação do outro em relação às suas diferenças, S. chora relatando: “ Às vezes as pessoas acham estranho porque eu brinco com isso, porque eu já sofri tanto preconceito e hoje eu aproveito bastante”. O choro evidencia o sofrimento de S. diante de sua fala. Essa análise demonstra, assim, que o contexto educacional é fortemente marcado pela exclusão social, exclusão daquele que é diferente, que fala diferente. Anais do IV Seminário Paranense de Fonoaudioloia 2013 Conclusões: A partir dessas discussões evidencia-se que, ao entrar na meio escolar, a criança com gagueira se isola deixando de participar efetivamente das interações escolares por causa da vergonha e do preconceito. Ou seja, há uma necessidade emergencial de que essas reflexões possam ser feitas no contexto educacional. Se a criança recebesse um auxílio desde o início e ainda, se o professor tivesse formação para lidar com alunos que apresentam essa dificuldade, essas situações poderiam ser ressignificadas. Ao chegar no meio universitário, o sujeito já se constituiu como mau falante, é estigmatizado. A gagueira tem, assim, implicações para as relações familiares, sociais, profissionais e escolares. O sistema educacional não está preparado para lidar com o diferente. Seja qual for a diferença, há uma exclusão de quem não segue um padrão de normalidade socialmente estabelecido. O processo educacional exige um preparo dos docentes que vai além dos conteúdos didáticos. É emergente a necessidade de uma formação para os docentes relacionada a questões de inclusão e exclusão social e escolar. A mudança nas políticas públicas relacionadas à inclusão ainda não se efetivou na prática. Há muitas questões voltadas aos deficientes, mas os diferentes também sofrem exclusão. Isso ocorre tanto na educação básica quanto na educação regular. Se a constituição do sujeito falante se faz a partir de suas interações é importante proporcionar interações com interlocutores que valorizem o sujeito e sua fala, mesmo que diferente. Essa posição de valorização ajuda ao sujeito gago a poder ressignificar a sua visão de “mau falante”. Logo, o modo como esse su jeito interage nas várias esferas de sua vida tem, também, implicações diretas para a sua subjetividade. Referências Bakthin, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999. Carvalho, A. P. G. de; Galvão, V. S. Concepções e atitudes de sujeitos gagos sobre a gagueira. Revista de Iniciação Científica da FFC, 2006, v. 5, n.1/2/3, p. 15-24. Delagracia, J. D; Galvão, V. S. O conhecimento de mães e professores das séries iniciais sobre a gagueira de crianças em fase inicial de escolarização. Revista de Iniciação Científica da FFC, 2004, v. 4, n. 2. Friedman, S. Gagueira: Origem E Tratamento. 4ª Edição, São Paulo: Plexus, 2004. Szymanski, H. A Entrevista na Pesquisa em Educação: A Prática Reflexiva. Brasília: Plano, 2002.
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