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RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Coleção Educação Experiência e sentido. Tradução de Lilian do Valle. Belo Horizonte - MG: Editora Autêntica 2002. A EMANCIPAÇÃO TRANSCENDE A SABEDORIA Maria Cecília Alves Santiago1 A Coleção “Educação Experiência e Sentido” têm como objetivo apresentar um novo meio de pensar o método de educar, voltando à atenção para uma nova diretriz que permite refletir sobre a liberdade intelectual de cada indivíduo. Dessa forma, a dada coleção apresenta o livro O Mestre Ignorante do filósofo francês Jacques Rancière que narra as experiências vividas por um pedagogo chamado Joseph Jacotot, o qual se vê refletindo sobre o método de ensino desenvolvido nas escolas após passar por uma experiência inovadora, chegando a levantar e questionar dois métodos de instruir que pode ser tanto a prática do embrutecimento quanto a da emancipação. Rancière dessa forma desencadeia uma bela possibilidade de reflexão pedagógica, filosófica e política, sobre a relação existente entre os institutos educacionais e a sociedade, sendo o mesmo favorável a emancipação intelectual do aprendendo. Jacques Rancière é um renomado filósofo francês, professor na European Graduate School de Saas-Fee e é professor emérito da Universidade de Paris. O livro O Mestre Ignorante narra a história de Joseph Jacotot, pedagogo francês, que passou por uma experiência quando lecionava para seus alunos. Em verdade, notícias acerca das lições do professor espalharam-se entre os estudantes holandeses, os quais se prontificaram a se beneficiar de seus ensinamentos, sendo Joseph desafiado a ensinar-lhes francês, no entanto Joseph ignorava completamente o holandês e a maior parcela dos alunos o francês, diante disso o professor teve uma solução imediata para resolver o problema desencadeado pela falha na comunicação. Lembrara-se da publicação da edição bilíngue do Telêmaco, que seria uma espécie de dicionário francês que serve para quase tudo e contando com um intérprete indicou-o aos alunos e pediu-lhes que por meio da tradução aprendessem o francês lendo e dissertando sobre o que compreenderam, a experiência inédita tem início neste exato momento. Jacotot não dera nenhuma aula sobre o francês, com isso esperava-se um resultado desastroso no processo da atividade solicitada, mas o que ele não imaginava, sendo surpreendido, foi o 1 Discente do curso de Direito da Rede Doctum de Ensino, Unidade Leopoldina, 2º período NA, Noturno. bom desenvolvimento dos alunos perante algo que ignoravam, onde sem explicações prévias os jovens sozinhos superaram o desafio imposto. Tal fato levou o mestre a refletir se seria mesmo necessária a instrução de um professor ou só bastava desenvolver a vontade para realizar algo. Assim como os professores conscienciosos, pensava que seu papel era de transmissão de seus conhecimentos para os alunos, ordenando uma evolução do simples para o complexo, contudo essa experiência fez despertar em seu pensamento uma chama, iluminando vários questionamentos e posições diante do processo de educação. De fato como é explícito no livro, os sistemas educacionais orientam seus alunos através de explicações, contudo questiona-se esse ponto de vista, já que o primeiro aprendizado adquirido por uma criança advém da observação e repetição de um ato sem a necessidade de um mestre explicador, recorrente no processo de aprendizagem da linguagem materna, fazendo apenas o uso de sua própria inteligência intrínseca. Contudo com a evolução na aprendizagem esse método de observação é insuficiente devido à progressão e aumento da complexidade dos ensinamentos. Segundo o mito pedagógico o mundo é dividido em duas inteligências, inferior e superior, a primeira diz respeito à inteligência adquirida no cotidiano, na convivência, por hábitos e necessidades e a segunda sendo adquirida por meio de razões, através de métodos que vão do simples ao complexo. A partir deste ponto, o princípio da explicação que para Jacotot é o princípio do embrutecimento, acaba limitando a capacidade intelectual perante a palavra compreender, que leva o indivíduo a se encaixar na hierarquia das inteligências, já que desperta em si a máxima de que nada aprenderá sozinho sem explicações, acabando parasitando os ensinamentos dos mestres e deixando sua capacidade de raciocinar à sombra de explicações prontas. Ressaltando que para Joseph Jacotot existe uma distinção entre o método embrutecedor e o método velho, sendo o mestre embrutecedor o inverso do mestre velho que disseminava conhecimentos indigestos e complexos aos seus alunos, enquanto o embrutecedor é culto, esclarecido e tolerante, que está sempre se questionando se seus alunos estão compreendendo o ensinado de forma a encontrar maneiras novas e cada vez melhores de transmitir as informações. Na concepção de Jacotot o raciocínio deve originar dos fatos e ceder diante deles como ocorreu com os estudantes, ele os deixara sozinhos com o texto de Fénelon e com a vontade de aprender tal língua, eliminando assim a distância imaginária que é o princípio do embrutecimento pedagógico chegando à conclusão de que a compreensão é a tradução, a mesma inteligência empregada para aprender a língua francesa é equiparada à usada para aprender a linguagem materna, por meio da adivinhação. Assim nasce a questão, não seria o método de adivinhação o despertador da inteligência intelectiva? O homem é um ser de palavra, o indivíduo então não se guia pelo acaso, mas a partir do que lhe for colocado empenhando-se para responder o que o mestre propor, não na qualidade de alunos ou sábios, mas na simples posição de homens iguais. No meio das experiências da criança, do sábio, do revolucionário, o método do acaso é praticado com sucesso, esse método de igualdade era antes de qualquer coisa inerente da vontade individual, contudo alunos aprenderam sem mestre explicador, mas não sem um mestre. Existem duas faculdades no ato de aprender sendo a inteligência e a vontade, quando a vontade não é suficiente surge à necessidade de um mestre desde que a sujeição seja apenas de vontades e não de subordinação de inteligências como ocorre no embrutecimento. Via-se então a rapidez do método de Jacotot e a lentidão do método tradicional no processo de educar, porém a via rápida não era necessariamente equivalente a melhor, mas despertava a confiança na capacidade intelectual própria de cada aluno, constatando que não era o saber do mestre que ensinava, mas a inteligência individual que permitia a compreensão. Logo Jacotot passou a lecionar aulas de piano e pintura as quais não tinha capacitação, ressaltando aos alunos a máxima “é preciso que eu lhes ensine que nada tenho a ensinar-lhes” (p.27), mostrando que se pode ensinar o que se ignora desde que se emancipe o aluno, sendo o próprio mestre emancipado. Esse método de emancipação usado por Joseph Jacotot era simplesmente o usado desde o surgimento do mundo, conhecido como conhecimento universal que se refere a aprender por si próprio sem um mestre explicador, para ele um meio de se beneficiar desse método universal é aprender algo e utilizá-lo relacionando-o com todo o resto, seguindo o princípio de igualdade de inteligências, diferente do método velho onde primeiro tem-se que adquirir um conhecimento e logo após tantos outros fazendo surgir sempre uma distância do mestre para o aluno. Ressaltando que há etapas de desenvolvimento das inteligências, não havendo hierarquia de capacidades intelectuais, mas sim desigualdades decorrentes dasdiferentes manifestações da inteligência oriundas da energia que conduz a vontade de descobrir novas relações e comunicações que podem variar. A consciência dessa igualdade de natureza que se chama emancipação, ter a ousadia de se aventurar no desconhecido, de certo o método de Joseph não é o melhor, mas independente do procedimento utilizado o método dele sempre será emancipador, por outro lado o princípio da desigualdade aclamado pelo método velho sempre será embrutecedor. O ato de emancipação exige que se ensine ao outro a maneira dos homens e não dos sábios, quem tem capacidade de executar bem esse método é o mestre ignorante que não se coloca a frente ou acima dos alunos, mas sim em um mesmo patamar. Ensinar o que se ignora é estar sempre a levantar questionamentos exercitando a própria inteligência e apresentar os alunos matérias para que o mesmo desenvolva e verifique com seus próprios sentidos. Quando se busca informações sempre se encontra algo, talvez não o completamente necessário, contudo se encontra algo para ser posteriormente utilizado em outras questões relacionando-a com outras coisas já conhecidas. Jacques Rancière deixa claro em seu livro que a inteligência é um atributo intrínseco da pessoa humana, sendo o ensino universal simplesmente o ato de questionar, atentando sempre ao ponto, „o que pensas sobre isto?‟ Um emancipador disponibiliza a consciência do que é capaz uma inteligência, sendo a emancipação o reconhecimento da igualdade dessas inteligências. A fé cega que o ser humano tem na hierarquia de inteligência, na divisão de superiores e inferiores, que torna ativo o embrutecimento. Só é possível verificar uma inteligência quando se fala com um semelhante de forma igualitária, a própria sociedade disfarça essa crença na inferioridade e menospreza sua própria inteligência através da afirmação de humildade sempre se negando a novas experiências devido à recusa a instrução, mas em verdade todos são capazes. Sendo assim, um exercício essencial do método universal é aprender a falar sobre qualquer assunto de improviso, não precisando necessariamente dominá-lo, mas superando as próprias limitações, sendo a improvisação uma virtude poética que prova capacidades. Rancière ainda ressalta que jamais se pode dizer que todas as inteligências são iguais, já que individualidade é a lei do mundo e na natureza não há dois seres idênticos, além do meio social e a educação interferirem fazendo com que a desigualdade das inteligências explique a desigualdade das manifestações intelectuais. A inteligência advém da atenção na busca do desconhecido antes mesmo de ser uma escolha, sendo assim servida pela vontade, caso não exista essa vontade não se pode ocorrer um ato intelectual de ver e comparar, sendo assim, a repetição é o método do ensino universal frequentemente usado, mesmo que a preguiça seja o obstáculo que impeça de prosseguir adiante causando certa impotência. Destacando que o princípio da veracidade é o núcleo da experiência da emancipação, a relação de cada indivíduo com a verdade, ou seja, a verdade existe por si própria, independente da língua, sendo expressa através do pensamento. É notável que cada indivíduo seja um artista quando torna todo trabalho em um meio de expressão e compartilha aquilo que sente e busca, sendo a sociedade emancipadora uma sociedade de artistas, já que a dignidade do homem independe de sua posição, a igualdade de inteligência é um gênero comum aos homens sendo necessária para a existência da sociedade. Rancière ainda faz uma ligação com o caráter político, já que a existência de uma possível sociedade implica a natureza não razoável, arbitrária do cidadão, visto que os homens não são totalmente razoáveis, por isso existe a necessidade da implantação e efetividade das leis que irão controlar a irracionabilidade do mesmo e sua vontade libertadora servida pela emancipação. A natureza do homem é cruel, volúvel, vingativa, lidar com os homens é lidar com afetos, paixões e irracionabilidade, assim prevalece à posição daquele político ou cidadão que souber melhor reconhecer a falta de razoabilidade dos demais. O cidadão não pode ser razoável, pois não existe discurso político razoável, o poder da retórica visa anular a razão, aniquilar a vontade adversa, desprezando a compreensão. A emancipação busca equiparar as inteligências, no entanto abala a ordem social, visto que para a autoridade impor ordem depende de sua superioridade intelectual, para que o cidadão não compartilhe da desobediência, mesmo que a soberania resida no povo. A igualdade de natureza implica a desigualdade perante as circunstâncias, desse modo o povo se aliena em seu governante assim como o governante se aliena em seu povo, sendo essa reciprocidade o princípio da ficção política oriunda da paixão pela desigualdade, porém o homem razoável sabe que a política não é verdadeira e plena, restando apenas à opção de se submeter à loucura cidadã e não perder sua razão alienando-a parcialmente. Assim a lição do razoável desrazoante consiste na ideia de manter ativa a razão mesmo em meio da loucura social, nunca cessando o exercício de seu poder, sendo a instrução das massas uma ameaça aos governos absolutos, por outro lado, a ignorância coloca em perigo os governos republicanos que enfrentariam dificuldades de se comunicar com o povo, tornando-se necessário nesse caso instruí-los, tendo o governo republicano que criar um vasto sistema educacional para esse fim. Sendo assim o método de Joseph Jacotot consistente em emancipar indivíduos visando ensinar aquilo que se ignora segundo o princípio da igualdade das inteligências, levando aqueles que se julgam inferiores a desenvolver sua inteligência, tornando os homens emancipados e emancipadores. Contudo, nesta breve exposição acerca da obra de Rancière percebe-se que ainda hoje é predominante a ideologia de hierarquização das inteligências onde os supostos superiores comandam os inferiores, embora essa cultura de superioridade intelectual seja meramente fruto de um ideário irracional e de dominação visto que todos os indivíduos já nascem portando inteligência, sendo esta inerente ao homem. Desse modo o fator de diferenciação pode ocorrer exclusivamente no que tange o desenvolvimento intelectual de cada indivíduo não podendo assim ser afirmado que A é mais inteligente que B, mas simplesmente que B tenha desenvolvido mais sua capacidade intelectual que A, ressaltando que esse desenvolvimento pode sofrer interferências dado as condições sociais e financeiras. Segundo o artigo A Evolução do Conceito de Inteligência2 de Felipe Veronezzi3, o psicólogo Howard Gardner4, em sua teoria Inteligências Múltiplas, defende a existência de sete tipos de inteligências e todos os indivíduos nascem portando as mesmas, contudo um desses tipos é mais desenvolvido e se sobrepõem as outras. São elas: inteligência linguística, lógica, motora, espacial, musical, interpessoal e intrapessoal, desse modo não é coerente determinar a capacidade intelectual de uma determinada pessoa frente a outrem ou a qualquer situação. Os institutos educacionais não buscam emancipar seus alunos, transformando- os em meros reprodutores das ideias e opiniões de seus mestres causando uma grande dependência e hierarquia na relação do aluno para com o professor. As aulas ministradas não instigam a participação do aprendendo para o mesmo expor seus questionamentos gerando um parasitismo do ideário do mestre e não desenvolvendo efetivamente a capacidade intelectual dos alunos, deve haver práticas de incentivo para que os mesmos busquem sua própria fonte, resolvendo porsi só seus trabalhos não dependendo somente das explicações de seu professor, deve-se saber e buscar para além da sala de aula, no entanto o que se vê nas escolas é a construção de alunos como máquinas reprodutoras de conhecimentos alheios, que não criam apenas reproduzem. Lembrando apenas que os homens não são todos iguais, mas portadores de uma inteligência que ao ser desenvolvida pode gerar resultados divergentes. No livro O Mundo de Sofia de Jostein Gaarder5, há uma passagem que diz: “Porque é que as peças de lego são o brinquedo mais genial do mundo?” 6, e logo após vinha uma explicação: “é fácil construir com o lego, pensou. Apesar de as mesmas serem de tamanho e forma diferentes, todas podem ser montadas umas sobre as outras”. Na verdade a inteligência é parecida com as peças de lego, a inteligência intelectual de um indivíduo comparada com a de outrem pode ser diferente, não transmissível, pode ter „tamanho diferente‟ no que diz respeito ao seu desenvolvimento, mas elas podem se complementar e formar algo maior, assim como o lego, quando se unem mesmo perante a diferença ocorre à formação de algo novo. Sendo assim não deve existir uma hierarquia entre as inteligências e sim respeito à diversidade que acaba 2 Artigo A Evolução do Conceito de Inteligência de Felipe Veronezzi, publicado no site Guia da Carreira. 3 Felipe Veronezzi, atualmente é consultor independente de educação, focado em carreiras e mercado de trabalho e colaborador ativo no Guia da Carreira. 4 Howard Gardner (Scranton, Pennsylvania, 11 de julho de 1943) é um psicólogo cognitivo e educacional estado-unidense, ligado à Universidade de Harvard e conhecido em especial pela sua teoria das inteligências múltiplas. 5 O Mundo De Sofia (Sofies verden em norueguês) é um romance escrito por Jostein Gaarder, publicado em 1991. Jostein Gaarder (Oslo, 8 de agosto de 1952) é um escritor e professor de filosofia, filho de um casal de professores, e intelectual norueguês. É autor de romances filosóficos, contos, e histórias. 6 Livro O Mundo De Sofia, escrito por Jostein Gaarder e publicado em 1991, p.70/71. surgindo já que somos diferentes por natureza sendo impossível a existência de dois seres idênticos, mas apenas semelhantes. No atual mundo capitalista cercado por tecnologias cada vez mais avançadas é necessário a emancipação intelectual para que se acompanhe o ritmo de desenvolvimento e das mudanças sociais, é extremamente necessária a formação de opinião e conhecimento sobre os mais diversos assuntos que surgem a todo o momento. Devido à disseminação desta cultura de divisão entre inferiores e superiores o mundo foi palco da grande tragédia causada pelo regime nazi-fascista no século XX, onde julgavam a raça ariana superior as demais raças desencadeando o cometimento de diversos crimes contra a humanidade como o extermínio de milhares de judeus assim como a dominação do povo que se julgava inferior. O atual processo da vida política é cercado por atos de corrupção, desprezo dos anseios da população, mau uso do dinheiro público, onde os representantes do povo se esquecem do real sentido de representação popular visando apenas à aquisição de poder, frente a essa situação é extremamente importante que o povo seja bem instruído, emancipado, para que assim consiga construir diálogos críticos, buscando a efetivação de seus direitos e deixando de ser alienado, de forma a evitar a dominação política. As escolas têm sim que incentivar a emancipação intelectual para que se construa uma sociedade cada vez mais democrática e desenvolvida. O método de Jacotot pode ser o início dessa emancipação, deixando os alunos superarem seus desafios, buscarem meios alternativos para solucionarem questões impostas e assim desenvolver sua própria capacidade intelectual. Como dizia o grande filosofo francês Montesquieu7 “para se tornar verdadeiramente grande, é preciso estar ao lado das pessoas e não acima delas.” 7 Charles-Louis Secondat, conhecido como Montesquieu, ou barão de Montesquieu, foi um filósofo, cientista político e escritor francês, nasceu em 18 de Janeiro de 1689 em La Brède, na França, e foi um dos grandes precursores do pensamento iluminista.
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