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LEGALIZAÇÃO DO CANGAÇO

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A CONTRADITÓRIA LEGALIZAÇÃO E RECEPÇÃO DO “REI DO 
CANGAÇO” NA MECA NORDESTINA – 1926 
Wescley Rodrigues Dutra
*
 
No presente artigo procuramos analisar o processo discursivo de “legalização” do “Rei 
do Cangaço” e seu bando, para combater a Coluna Prestes em 1926. A partir da 
articulação de tal proposta direcionamos o nosso olhar para os jornais vendo-os como 
um campo de embate. Nessa documentação buscamos focar em como a população 
recepcionou a notícia da vinda de Lampião a Juazeiro do Norte e qual será a 
repercussão nos periódicos escritos. Esse embate de discursos levou a um processo 
mutativo representacional que propiciou a oscilação da imagem de Lampião de bandido 
sanguinário a um exímio patriota, adepto das armas para extirpar do solo nacional a 
“erva daninha” – a Coluna Prestes. Esse episódio da vida do “Rei do Cangaço”, além de 
ser um dos mais contraditórios, contribuiu na formação de uma cultura histórica em 
torno de Lampião e foi lapidar no processo de exaltação da figura do cangaceiro como 
símbolo caracterizador do Nordeste e da nordestinidade. 
 
Palavras-Chave: Cangaço; Identidade; Representação. 
______________________________________________________________________ 
 
Gostaríamos inicialmente de salientar ao leitor que, as considerações aqui 
expostas são fruto de algumas das nossas indagações que impulsionam as nossas 
pesquisas de mestrado, não sendo ainda questões fechadas e com respostas coesas. 
Trabalhamos nesse artigo com algumas hipóteses, sendo na realidade, que esse trabalho 
sintetiza um pouco do que estamos desenvolvendo no segundo capítulo da nossa 
dissertação, intitulada: “Nas Trilhas do „Rei do Cangaço‟ e de suas Representações”. 
 
1 - Lampião enquanto notícia 
 
Era madrugada de segunda-feira, dia 26 de junho de 1922, por volta das 4h da 
manhã os moradores da “pacata” cidade de Água Branca – AL, são despertados por 
gritos ensurdecedores e tiros que rompiam o calmo silêncio da aurora, o cangaceiro 
Lampião entrava na cidade, até então segura de que nunca está seria tomada por 
bandoleiros devido à sua importância para a região.
1
 
 
* Graduado em História pela Universidade Federal de Campina Grande, especialista em Geopolítica e 
História, e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal da Paraíba, 
onde desenvolve pesquisa sobre as representações construídas em torno da figura de Virgulino Ferreira da 
Silva – Lampião. Bolsista Capes. 
1 Assim descreveram os jornais alagoanos o início do ataque à cidade de Água Branca. 
2 
 
A casa da baronesa de Água Branca, Joana Vieira de Siqueira Torres, estava 
cercada pelo bando. A elite via-se diretamente ameaçada, pobres e ricos misturavam-se 
em um grupo só, todos buscando proteger-se e livrar as suas vidas das “garras” daqueles 
“bandidos”. Aos poucos passam a se questionar quem era aquele chefe cangaceiro que 
tivera a ousadia de tal feito e de atormentar a paz da baronesa octogenária. 
Com esse episódio pretendemos abrir a dissertação, com o objetivo de mostrar 
que Lampião já aparece no palco sertanejo como um bandido diferenciado, mesmo 
estando em início de carreira enquanto chefe de uma “cabroada”. Vale salientarmos que 
Lampião havia entrado para o cangaço em meados de 1918, juntando-se ao bando de 
Sinhô Pereira, ao qual estava subordinado. Foram praticamente quatro anos na 
obscuridade, sendo que o ano de 1922 e esse ataque, especificamente, servem-nos como 
marco porque ele será o primeiro registro de Lampião comandando um sub-grupo de 
cangaceiros, já como “lugar-tenente”2 
O peculiar desse ataque é que Lampião aparecerá não como um “cangaceirinho 
simplista” que atacava comboios em beira de estradas, fazendas e pessoas desarmadas 
que encontrava no caminho, mas alguém que destacou-se pela ousadia de bater logo de 
frente com a elite, ousadia que chega ao ponto de atacar a residência da baronesa, que 
mesmo não exercendo mais legalmente o poder político, já que perdera sua importância 
com o fim do Império, para a população local era uma pessoa importante, exercendo 
forte poder simbólico no imaginário desses indivíduos. 
Outra característica importante é que quase todos os jornais alagoanos irão 
noticiar esse ataque, tecendo comentários ferrenhos, destacando a ousadia da 
“bandidagem”. É a primeira vez que o nome de Lampião sairá em “letras redondas” nas 
páginas jornalísticas. Primeira de muitas que proliferarão durante todo o século XX. 
Desse momento em diante não se passou pelo menos uma semana ou um mês, em que 
não se tivesse algo relatado nos jornais nordestinos sobre o itinerário daquele grupo de 
cangaceiros. 
O importante também de nos debruçarmos sobre esse episódio é que ele permite-
nos perceber, de forma panorâmica e hipotética, como em início de carreira Lampião 
será um “bandido” que ataca a elite e as autoridades locais, fato que mais tarde mudará 
 
2 Lugar-tenente é um “título” hierárquico no cangaço, os homens que ganhavam essa “patente” 
geralmente se destacavam pela coragem e valentia, além de serem “cabras” de extrema confiança do 
chefe. Eles tinham como função comandar os vários sub-grupos que por ventura o bando maior tivesse. 
3 
 
já que ele começa a tecer a sua teia de relações com as autoridades, muitas vezes 
subordinando-se aos mandos e desmandos desses. 
Os feitos de Lampião e seu bando começavam a se avolumar em proporções 
exorbitantes, o povo o temia, os sertões são varridos sob o poder do seu rifle, as 
histórias proliferam: homicídios, assaltos, estupros, crueldades. Seu nome simbolizará 
medo e, ao mesmo tempo, admiração, eis mais uma contradição. Aterrorizava ao mesmo 
tempo em que promovia os seus famosos bailes regados a muito forró, xaxado e 
cachaça. Muitas pessoas iam pelo medo, outras eram forçadas, alguns freqüentavam por 
curiosidade, mas todos tendo em comum a certeza de não poderem negar nada ao 
“Capitão” e não poderem altear a voz ou fazer qualquer gesto que pudesse significar 
desafio. Era o medo agindo naqueles “matutos” sem regras de etiqueta estabelecidas, e 
nos “letrados” temerosos de serem desmoralizados com os seus diplomas de bacharéis 
que davam status social naquele meio.
3
 
Essa será a nossa primeira cena, que dentro da trama nos levará a cena seguinte 
que acontecerá no ano de 1926, no cenário da “Meca Nordestina”, Juazeiro do Norte – 
CE, terra do “benemérito” e “santo” padre Cícero Romão Batista, o patriarca daquele 
“povo devoto e sofredor”, a “Jerusalém celeste na terra”, “terra santa da Mãe de Deus 
das Dores”. 
 Acreditamos que nesse ano teremos uma das primeiras mutações da imagem de 
Lampião, pois em uma articulação política ele é convocado a comparecer ao Juazeiro 
onde estava sendo organizado o Batalhão Patriótico para combater a Coluna Prestes. Lá, 
em um arranjo político estratégico, o “Rei do Cangaço” recebe a patente de “capitão” do 
referido Batalhão. Temos aí à legalização de um bandido que “alia-se” ao governo para 
combater um inimigo maior (contradição profunda). De perseguido passa a ser 
perseguidor. 
Frente a uma ameaça maior há uma mutação na representação feita pelo Estado 
no referente à Lampião e seu bando no ano de 1926. Quando a Coluna Prestes adentrou 
no Nordeste pregando o seu projeto utópico e em busca de arrebanhar adeptos para seu 
ideal, Lampião e seus “meninos” são postos na legalidade em um fato que gera 
polêmica até os dias de hoje. De um lado, articula-se discursos defensores de que tal 
 
3
 Ver: ASSUNÇÃO, Moacir. Os homens que mataram o facínora. 2. ed.Rio de Janeiro: Record, 2007. 
ARAÚJO, Antônio Amaury Corrêa; FERREIRA, Vera. De Virgolino a Lampião. São Paulo: Idéia 
Visual, 1999. SOUZA, Anildomá Willans. Lampião: nem herói nem bandido… a história. Serra 
Talhada: GDM Gráfica, 2006. 
4 
 
idéia tenha vindo da esfera do governo federal, em contra-partida há os que afirmam 
categoricamente que essa tenha sido uma jogada política do deputado Floro Bartolomeu 
e do Padre Cícero.
4
 
Fato é que aqui encontramos uma contradição latente. De bandido a Capitão do 
Batalhão Patriótico, um “exímio” defensor da “pátria mãe gentil”. Essa patente 
recebida, mas que oficialmente não tinha validade, passa a ter validade a partir do 
momento que Lampião impõe a todos que o cerca a obrigação de o tratarem até o fim da 
vida como “Capitão”. Nas inúmeras invasões cometidas por Lampião e seu bando o seu 
nome o antecedia, entre os gritos de terror sua chegada era anunciada com o alarme de 
algum paisano afirmando que a cidade, vila ou comunidade tinha o capitão à porta. 
Ele apropriando-se do código ético sertanejo, fez com que sua palavra tivesse 
mais valor que a lei: se não o respeitavam pela coragem, o considerariam pelo medo. 
 Esse episodia da vida de Lampião quando ele é convocado a ir para o Juazeiro 
do Norte – CE, é um dos mais inusitados da sua vida, pois ele possibilita refletirmos e 
tirarmos conclusões interessantíssimas sobre a ambigüidade que cerca a sua vida. A 
cidade de Juazeiro parou frente àqueles “seres exóticos”; multidões arrastam-se entre as 
ruelas da cidade para ver os cangaceiros e, se possível, o próprio Lampião que 
hospedado em um sobrado da cidade é tratado como uma estrela. 
Acreditamos que apesar do temor muitos querem vê-lo, o medo passa então pela 
necessidade de experimentar, de contemplar com os próprios olhos aquele homem 
cercado de narrativas tão ferozes, admiração e espanto. É o momento de tirar a prova se 
ele existe realmente.
5
 Poderíamos de forma hipotética dizer que durante a sua estadia 
em Juazeiro Lampião e seu bando serão tratados como autoridades, cidadãos ilustres, 
sendo respeitados e saindo da cidade sem dispararem um único tiro. Claro, que há 
 
4 Usaremos como referências para essa discussão: ARAÚJO, Antônio Amaury Corrêa; FERREIRA, Vera. 
De Virgolino a Lampião. São Paulo: Idéia Visual, 1999. BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. A 
Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no sertão. 2.ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2007. 
BRAGA, Antônio Mendes da Costa. Padre Cícero: sociologia de um Padre, antropologia de um Santo. 
Bauru, SP: Edusc, 2008. CHANDLER, B. J. Lampião, O Rei dos Cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e 
Terra, 1980. MACÊDO, Nertan. Capitão Virgolino Ferreira: Lampião. 4. ed. Rio de Janeiro: Artenova, 
1972. MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol: violência e banditismo no Nordeste do 
Brasil. 4. ed. São Paulo: A Girafa Editora, 2004. MOTA, Leonardo. No Tempo de Lampião. 3. ed. 
Fortaleza: ABC Editora, 2002. Também será de grande valia a obra do memorialista: NEVES, Napoleão 
Tavares. Cariri: cangaço, coiteiros e adjacências. Brasília: Thesaurus, 2009. 
5 A entrevista feita com Lampião, publicada no Jornal “O Ceará” em 12 de março de 1926, deixa claro 
que havia um aglomerado de pessoas diante do prédio onde os cangaceiros estavam hospedados: 
“Naquela ocasião, como dissemos anteriormente, Lampião estava hospedado no sobrado de João Mendes 
de Oliveira e, durante a entrevista, foi várias vezes à janela, atirando moedas para o povo que se 
aglomerava na rua”. 
5 
 
pessoas que acharam absurdo um “bandido” ser tratado como estrela, mas essas muitas 
vezes são abafadas pelas várias narrativas e histórias que são contadas pela grande 
maioria. Lampião sai da “Meca Nordestina” como um herói. 
Pelo menos dois pilares documentais nos servirão de alicerce na construção 
desse capítulo: a entrevista concedida por Lampião ao médico Otacílio Macedo
6
 e os 
jornais – principalmente O Ceará do referido ano – que encontra-se no Arquivo Público 
do Estado do Ceará e na Biblioteca Pública de Fortaleza. A citada entrevista é um 
documento de cabal importância porque ela é um dos únicos registros que se tem de 
Lampião sendo entrevistado, permitindo-nos identificar uma série de fatores que 
contribuem para que percorramos um pouco a forma de pensar do cangaceiro. Assim, 
não temos um sujeito “morto”, calado, que nunca manifestou-se, mas alguém que 
buscou certas táticas para destacar-se e driblar as estratégias maiores que sobre ele se 
impunham. 
Os jornais nos permitirão pensar como alguns setores da sociedade encararam a 
vinda do “facínora” Lampião ao Juazeiro e qual a repercussão/ligação desse fato à 
figura do Padre Cícero. Acreditamos ter, de início, pelo menos dois grupos que usarão 
os jornais para difundirem suas concepções: os que apoiaram a idéia de legalizar aquela 
“gesta de bandidos”, e os que foram ferrenhos opositores criticando com veemência a 
atitude das autoridades em convocar e legalizar os cangaceiros perdoando os seus 
crimes. 
Confrontando esses dois corpos documentais/discursivos teremos uma 
concepção de como o Juazeiro estava um verdadeiro “caldeirão” nesse ano e 
perceberemos o desespero das autoridades locais em combater a Coluna Prestes, 
chegando a tomar atitudes muitas vezes esdrúxulas do ponto de vista ético. Essa trama 
possibilitará enxergarmos qual papel Lampião representará nesse momento e como esse 
episódio de “legalização” e do recebimento da “patente de capitão” terá uma forte 
ressonância em toda a vida de Lampião até a sua morte. 
No roteiro dessa trama nos ancoraremos em alguns teóricos que nos ajudarão a 
costurar a trama cênica. Convidaremos a subir ao palco, em uma discussão rápida, Eric 
Hobsbawm com as suas duas obras “Rebeldes Primitivos” (1970) e “Bandidos” (1975). 
Fazendo uma ligação com as atitudes representadas por Lampião no transcorrer da 
 
6 Publicada no Jornal “O Ceará” em 12 de março de 1926. 
6 
 
entrevista concedida a Otacílio Macedo, buscaremos discutir a visão de “bandido 
social” tão viva quando se trabalha com o cangaço. 
Para Hobsbawm esse tipo de movimento (cangaço) que aconteceu no Nordeste 
brasileiro era “arcaico e primitivo”, mas não deixava de ser social, mesmo 
diferenciando-se do movimento operário que cresceu na sociedade moderna. Assim, ele 
inseriu o cangaço em uma sociedade que tem Estado, distinções de classe e exploração 
de latifundiários e comerciantes, vendo nessa sociedade a persistência de laços de 
parentesco e solidariedade tribais, o que o levou a pensar esse movimento dotado de 
traços da “sociedade primitiva”. 
É a partir desse contexto social que surgirá o “bandido social”, aquele que 
ambiciona um mundo justo e igualitário. Para chegar a tal sociedade utópica esses 
indivíduos se levantam contra a estrutura social exploradora vigente. No entanto, 
segundo o autor, esse movimento ao contrário do movimento operário, não tem uma 
organização homogênea e uma ideologia de luta. É nesse ponto que a obra de 
Hobsbawm se difere da idéia de Movimento Social clássica, pois, segundo alguns 
estudiosos, para que um determinado levante seja tratado como movimento social ele 
tem que ter objetivo, consciência de classe, organização e uma ideologia em comum. 
 
Tomados em conjunto, representam pouco mais do que sintomas de crise e 
tensão na sociedade em que vivem – de fome, peste, guerra ou qualquer outra 
coisa que abale essa sociedade. Portanto, o banditismo, em si, não constitui 
um programa para a sociedade camponesa, e sim uma forma de auto-ajuda, 
visando a escapar dela, emdadas circunstâncias. Exceção feita à sua 
disposição ou capacidade de rejeitar a submissão individual, os bandidos não 
têm outras idéias senão as do campesinato (ou da parte do campesinato) de 
que fazem parte. São ativistas, e não ideólogos ou profetas dos quais se deve 
esperar novas visões ou novos planos de organização política. São líderes, na 
medida em que homens vigorosos e dotados de autoconfiança, tendem a 
desempenhar tal papel; mesmo enquanto líderes, porém, cabe-lhes abrir 
caminho a facão, e não descobrir a trilha mais conveniente (HOBSBAWM, 
1976: 18 – 19). 
 
Problematizando esse conceito de Hobsbawm nos perguntaríamos: Seria 
Lampião realmente um bandido social? O que leva Hobsbawm a enxergar elementos na 
vida do cangaceiro nordestino que vão de encontro a sua tese lapidar de que esse seria 
um Hobim Hood nordestino? Não houve uma má interpretação e leitura na obra 
“Bandidos”? Até que ponto seria coerente enquadrar o “Rei do Cangaço” nessa 
“categoria conceitual”? 
7 
 
Na complexa teia da trama que estamos montando, as vozes discordantes são 
necessárias e elementares. Maria Isaura Pereira de Queiroz, que desenvolve suas 
pesquisas na década de 1960, será uma ferrenha discordante da concepção de bandido 
social pensada por Hobsbawm, acreditando que nem movimento social o cangaço seria 
por faltar a consciência de classe, um objetivo em comum para se lutar e uma ideologia. 
Interrogada se os bandos independentes e errantes de cangaceiros foram uma 
simples resposta à miséria ou se configuraram como movimento social, Queiroz 
responderá categoricamente: 
 
Na medida em que os termos “movimentos sociais” pressupõem consciência 
dos problemas vividos numa estrutura sócio-econômica e política injusta – a 
consciência sendo constituída justamente da percepção e do conhecimento 
dessa estrutura e de seus efeitos, mesmo que sob um modo de percepção 
religioso – não é possível admitir que o “cangaço” se configure como um 
movimento social. Foi, realmente, uma resposta à miséria, o que se evidencia 
no fato de que desapareciam, quando a chegada das chuvas reinstalava o 
modo de vida habitual (QUEIROZ, 1997: 13). 
 
 Daí problematizaríamos a questão: “Seria o cangaço um movimento social ou 
ele seria um movimento que está inserido no sistema instituído, sendo parte desse, não 
buscando uma mudança social como se espera de um movimento social?” A partir dessa 
indagação seria necessário distinguir os tipos de cangaço, e por que o “cangaço de 
Lampião” se configura como diferenciado dos demais que o antecederam, estando o 
grupo de Lampião mais voltado para os interesses particulares do que coletivo. 
Na obra “Cangaceiros e Fanáticos” (1983), Rui Facó relaciona esse movimento 
nordestino a uma questão agrária e de luta por terra, entendendo o cangaço como um 
espaço de resistência, de contraposição à ordem social. Sua obra publicada em 1963 
buscou responder a questões que vinham sendo elaboradas desde a década de 1950: “O 
que é o Brasil? Qual a origem das diferenças entre o Nordeste e o Sul do país? O que 
leva o Nordeste a ser atrasado e socialmente tenso, frente a um Sul “adiantado”? A obra 
foi escrita em um momento no qual o país se sensibilizava com a realidade nordestina e 
buscava soluções. 
Ele vem, através de sua produção, reafirmar a necessidade de mudança na 
estrutura da terra, pois aí estavam as raízes da maior parte dos problemas sociais do 
Nordeste e a semente de toda a desigualdade social que levava a um aumento 
substancial da pobreza, miserabilidade e o agravamento da situação dos camponeses 
8 
 
sem terra. Esses fatores seriam os responsáveis pelo florescimento do banditismo e do 
fanatismo. Segundo o autor, os bandidos e fanáticos não eram “simples criminosos”, 
mas frutos do atraso econômico da região, do latifúndio e do regime de trabalho “semi-
feudal”. 
 
Euclídes da Cunha já compreendera que „o homem do sertão [...] está em 
função direta da terra‟. Se a terra é para ele inacessível, ou quando possui 
uma nesga de chão vê-se atenazado pelo domínio do latifúndio oceânico, 
devorador de todas as energias, monopolizador de todos os privilégios, ditador 
das piores torpezas, que fazer, senão revoltar-se? Pega em armas, sem 
objetivos claros, sem rumos certos, apenas para sobreviver no meio que é o 
seu (FACÓ, 1983: 30). 
 
 Essa seria a sua justificativa para o surgimento dos grupos de cangaceiros. A 
questão da terra seria o grande causador da problemática cangaceira no Nordeste; o 
sistema seria responsável por não dar condições de sobrevivência digna a esses sujeitos, 
empurrando-os para a criminalidade: 
 
Naquela sociedade primitiva, com aspectos quase medievais, semibárbaros, 
em que o poder do grande proprietário era incontrastável, até mesmo uma 
forma de rebelião primária, como era o cangaceirismo, representava um passo 
à frente para a emancipação dos pobres do campo. Constituía um exemplo de 
insubmissão. Era um estímulo às lutas (FACÓ, 1983: 38) (grifos nossos). 
 
Tentando concluir o ciclo dos principais teóricos a problematizarem o cangaço 
nas décadas de 1960 a 1970 nos debruçaremos sobre a obra de Billy J. Chandler, 
“Lampião, O Rei dos Cangaceiros” (1980). O olhar de Chandler7 ao trabalhar o 
banditismo no Nordeste é o de um americano que olha de cima para baixo, percebendo 
– no seu ponto de vista – que na escala evolutiva social, o Brasil estaria em um patamar 
de inferioridade se comparado aos Estados Unidos, tanto é que, quando no início dos 
seus escritos ele vai situar Lampião ao espaço do qual ele é fruto, ele salienta que o 
cangaceiro havia “nascido no sertão decadente e empobrecido do Nordeste brasileiro” 
(CHANDLER, 1980: 14).
8
 
 
7 Chandler desenvolve suas pesquisas para escrever o livro na década de 1970, período onde a discussão 
do conceito de Eric Hobsbawm estava começando a ser travada no mundo acadêmico. 
8 Para um aprofundamento dessa discussão de ser a região um determinante do surgimento do banditismo, 
ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. 3. ed. São 
Paulo: Cortez, 2006. ANDRADE, Manoel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste. Recife: UFPE, 
1998. CASTRO, Josué de. Geografia da Fome. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. RIBEIRO, 
Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 
9 
 
No trecho da obra citado acima, podemos perceber três dimensões de 
inferioridade ao analisarmos: 1) um bandido que floresce em um país de Terceiro 
Mundo (conceito usado na época para caracterizar os países pobres); 2) além de ser 
fruto desse país pobre, ainda nasceu na periferia do seu território: o Nordeste, ambiente 
propício a despertar no homem toda a sua animalidade primitiva, como por muito tempo 
no imaginário social a região foi vista; 3) e por fim, tendo o seu campo de ação nos mais 
remotos rincões do sertão, aquele deserto de calmaria e terror, fonte de vida e de morte, 
espaço da “barbárie”. 
Para Chandler, a sociedade sertaneja do período de 1900 a 1940, estava 
passando por uma grave crise econômica, política, cultural e social, possibilitando, 
assim, o surgimento do banditismo, do messianismo e do fanatismo religioso, esses 
seriam as manifestações mais cabais dessa crise. Para justificar o advento do 
messianismo, usando uma carga preconceituosa e pejorativa, e não entendendo esse 
fator como um produto cultural de uma sociedade ainda não impregnada pela 
modernidade capitalista, e sim, ainda mantenedora das velhas tradições agrárias, ele 
afirmará que esse messianismo se baseia na superstição, ignorância e pobreza dos 
sertanejos.Ao trabalhar o conceito de Bandido Social de Hobsbawm, Chandler esclarecerá 
que ao lapidar esse termo o autor não estava categoricamente afirmando que os seus 
dados sobre Lampião, fossem imagens verdadeiras do personagem histórico, pois, o seu 
trabalho se balizou em lendas e mitos para pensar a relação entre Lampião e o 
banditismo social. Assim, ele dá um parecer que busca encerrar a discussão iniciada 
com a publicação das obras de Hobsbawm nas décadas de 1960 e 1970: 
 
Hobsbawm reconhece que Lampião podia ser terrível, e, por esta razão, o 
coloca entre os vingadores. Declara também que Lampião não pode se 
classificar como um verdadeiro bandido social haja vista a sua aliança com 
proprietários. Acrescenta também – erradamente, acho eu – que o chefe dos 
cangaceiros defendia os pobres. Hobsbawm justifica a violência de Lampião, 
sob o argumento de que, num certo modo, era involuntária, pois resulta das 
severas tensões que marcaram a ruptura social entre o nordeste tradicional e a 
nova ordem capitalista, e, portanto, era inevitável (1980: 311). 
 
 Ele encerra o seu trabalho sendo categórico: 
 
As teorias de Hobsbawm sobre o banditismo, embora extensas e abrangedoras, 
não são, nem racionalmente, nem adequadamente, apoiadas em evidências 
10 
 
dignas de confiança. A confusão principal resulta do fato de que trata dos 
bandidos como mito e realidade, sem, em muitos casos, fazer distribuição entre 
os dois. Por essas inexatidões, suas idéias não conduzem à análise, e, 
portanto, são melhores se tomadas como sugestões empíricas (1980: 311). 
 
Chandler afirma haver a apropriação por parte de Hobsbawm de algumas lendas 
sobre Lampião para a legitimação do seu conceito, no entanto, achamos absurda a sua 
concepção preconceituosa em tratar as falas populares, que construíram essas lendas e 
foram trabalhadas por Hobsbawm, como “ordinárias” por fugirem da “verdade”, 
fabricando casos. Ao tratar as narrativas populares como “Elucubrações de um povo 
ignorante” (1980, p. 28) há a tentativa, de sua parte, de reforçar o tripé montado por ele 
para justificar a constituição da identidade sertaneja: a superstição, a ignorância e a 
pobreza; juntos esses fatores contribuem para a formação desse povo e da sua “mente 
fantasiosa”. 
 
Considerações Finais 
 
Sabemos como é complexo o caminho percorrido por um pesquisador em busca 
das respostas para os seus questionamentos, esse tem que ao longo do percurso se 
acercar de toda a documentação possível e tomando a função de um detetive esmiuçar 
os fatos, “violar” identidades, interpretar documentos, construir “verdades”, frente a um 
passado que não tem mais como ser revivido a não ser pela documentação e vestígios 
deixados. 
 Buscamos ao longo da feitura desse artigo, trazer para o nosso leitor algumas das 
trilhas as quais estamos seguindo para construir a nossa pesquisa de mestrado, 
acreditando ser esse texto importante não pelas conclusões fechadas sobre os fatos 
analisados, mas por possibilitar uma reflexão de como é feito metodologicamente o 
oficio do historiador nessa relação Historiador/Passado, Presente/Passado. 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
 
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. 
3. ed. São Paulo: Cortez, 2006. 
ANDRADE, Manoel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste. Recife: UFPE, 
1998. 
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ARAÚJO, Antônio Amaury Corrêa; FERREIRA, Vera. De Virgolino a Lampião. São 
Paulo: Idéia Visual, 1999. 
ASSUNÇÃO, Moacir. Os homens que mataram o facínora. 2. ed. Rio de Janeiro: 
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BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos 
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