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R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 17, n. 2, p. 115-122, 2009 115 ARTIGO ESPORTE EDUCACIONAL: UMA POSSIBILIDADE DE RESTAURAÇÃO DO ESPORTE César Augusto Sadalla Pinto1 RESUMO O presente artigo trata da influência exercida pelo esporte de rendimento na prática do esporte escolar. Trata-se de um olhar de um professor de educação física preocupado com os rumos que o esporte de alto rendimento tem tomado, chegando a interferir decisivamente no transcurso do chamado esporte educacional (e de lazer) no âmbito escolar. Por isso, buscou-se ampliar as discussões sobre o tema, primando pela humanização do esporte enquanto uma produção cultural do homem e um fenômeno multidimensional2 na atualidade. Palavras-chave: esporte, esporte escolar, esporte educacional. INTRODUÇÃO O esporte de rendimento, aquele tão maciçamente veiculado pela mídia e explorado pelo mercantilismo capitalista, que expõe os seus praticantes (atletas) muitas vezes a condições inumanas de treinamento em busca de resultados, tem afetado drasticamente o chamado esporte escolar. Devido à sua grande divulgação pelos meios de comunicação, o chamado esporte performance tem sido “encucado” na mente de nossas crianças (e infelizmente de muitos professores também) como o mais adequado para ser praticado em todos os ambientes, inclusive na escola. Encaminhado para publicação em 08/2008 e aprovado em 04/2009. 1Professor de Educação Física pela Universidade do Estado do Pará no ano 2008. Professor Ensino Fundamental I em Monte Alegre. 2O esporte na atualidade constitui-se em um fenômeno multidimensional essencialmente humano, resultado de um processo histórico e cultural complexo e conflitante, tendo como princípios constitutivos a educação, o lazer e o desempenho, manifestando-se em diferentes ambientes com características variadas, e tendo no jogo sua origem e principal característica (PINTO, 2007). R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 17, n. 2, p. 115-122, 2009116 Tubino (2006, p. 23) constata a influência exercida pelo esporte de rendimento sobre o esporte escolar e alerta: “o esporte-educação não deve ser compreendido como uma extensão do esporte de desempenho para a escola”. Elenor Kunz (2006, p 63-64) aponta os meios de comunicação como principais difusores do chamado “esporte- espetáculo”: O conceito de esporte que se vincula hoje à Educação Física é um conceito restrito, pois refere apenas ao esporte que tem como conteúdo o treino, a competição, o atleta e o rendimento esportivo, este, aliás, é o conceito ‘estrito’ do esporte que aqui considero. Esse conceito fica reforçado através, especialmente, dos meios de comunicação, que colocam sempre o ‘esporte-espetáculo’ no centro de suas programações esportivas, o que acelera, também, o processo de transformação do esporte-espetáculo em mercadoria. Para o autor citado, o esporte possui um conceito amplo, que estaria relacionado a atividades prazerosas, como andar de bicicleta, caminhar, fazer ginástica, dançar, as brincadeiras e os jogos infantis, e outros. E questiona: “na escola, o esporte não poderia ser tematizado num conceito ‘amplo’?”. Ampliar o conceito de esporte no cotidiano escolar não significa extinguir definitivamente o esporte de rendimento da escola, pois seria o mesmo que negar a própria realidade, já que este existe e é conhecido pelos alunos. Ao contrário, Elenor Kunz propõe que esse esporte seja problematizado, para que temas como a mercantilização do próprio esporte e de seus atletas, o uso de doping, o treinamento especializado precoce, a discriminação da mulher no esporte, a violência nas disputas esportivas e diversas outras mazelas do esporte em sua dimensão do rendimento passem a ser um campo fértil para a ocorrência de aprendizagens significativas, de forma a levar os alunos a um esclarecimento que os liberte da “coerção auto-imposta”3 que vivenciam. O esporte é um fenômeno “multidimensional”, e suas dimensões por vezes transpõem-se umas sobre as outras. Entretanto, não podemos desconsiderar o fato de o esporte de rendimento poder estar afetando o transcurso do esporte escolar, muito menos fechar os olhos para a influência que a mídia tem exercido nesse processo. Por isso, 3 Segundo Kunz (2006), a maioria dos alunos não vivencia o esporte de rendimento em sua plenitude, devido a suas elevadas exigências técnicas; no entanto, ainda o consideram como melhor para eles. R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 17, n. 2, p. 115-122, 2009 117 através do presente trabalho buscou-se uma maior compreensão sobre a temática, sem pretensões de formular uma solução pronta e acabada. A multiplicação de mais indagações já será uma grande conquista. Devemos questionar: Ao reproduzir os moldes do esporte de rendimento, o esporte escolar tem servido a finalidades realmente educacionais? Quais os determinantes que desqualificam o esporte de rendimento para ser reproduzido pela escola? Como as aulas de educação física têm contribuído para a ampliação do conceito de esportes na escola? UMA ABORDAGEM CONCEITUAL Tubino (2006) conceitua o esporte de acordo com a sua abrangência em: esporte-educação, esporte-lazer e esporte de desempenho. Segundo ele, o primeiro é aquele que possui um caráter formativo. O esporte-lazer, como o próprio nome infere, é aquele que se apoia no próprio lazer em busca do bem-estar de seus praticantes. Por fim, o esporte de desempenho é aquele disputado obedecendo rigidamente às regras existentes - por isso diz-se que ele é institucionalizado. A dimensão do esporte-educação, na concepção de Tubino (2006), ainda é subdividida em esporte educacional e esporte escolar. O esporte educacional é aquele baseado em princípios educacionais, como participação, cooperação, coeducação, cor-responsabilidade e inclusão. Essa conceituação aproxima-se da apresentada por Barbieri (2001, p. 144), segundo o qual o esporte educacional é: (...) um dos sentidos atribuídos ao esporte que, como uma atividade humana – mediante o desenvolvimento integral do ser humano, de sua individualidade e de sua socialização, da preservação de sua saúde, do desenvolvimento da auto-estima, do auto- conhecimento e do fazer-se no mundo – se manifesta nos sistemas formais de ensino como fora deles, tendo como seus princípios constitutivos a totalidade, a cooperação, a participação, a co- educação, o regionalismo e a emancipação, e como última finalidade a formação do homem e da cidadania. O esporte escolar, segundo o primeiro autor, “é aquele que permite uma aproximação com o esporte de desempenho, ao compreender as competições entre escolares”. Entretanto, apesar de R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 17, n. 2, p. 115-122, 2009118 compreendermos que o esporte escolar tem se aproximado e até reproduzido as práticas do esporte de desempenho (o que justificaria o conceito apresentado), não o conceituaremos unicamente a partir dessa constatação. No presente trabalho o termo esporte escolar será utilizado para designar todas as manifestações de esportes, com ou sem finalidades educacionais, existentes na realidade cotidiana dos sistemas formais de ensino. Essa análise conceitual é relevante, principalmente por questões didáticas, porém as concepções apresentadas não devem afunilar a abrangência do fenômeno esportivo, muito menos limitar a sua atuação nas diferentes áreas. É fato que as três dimensões do esporte (e quantas mais existirem) entrelaçam-se de tal forma que separá-las torna-se muitas vezes tarefa impossível. No entanto, a excessiva influência de uma sobre a outra pode, em outras situações, confundir as finalidades do esporte em seus respectivos contextos, como é o caso do esporte em sua dimensão do rendimento, que tem alterado o transcurso do esporte com finalidades educacionais no ambiente escolar. Segundo Sadi (2004, p. 23), o esporte na escola não tem servido a interesses educacionais, ao contrário, tem reforçado exclusões e desigualdadesjá tão presentes na sociedade atual, e afirma: O Esporte Escolar é ainda restrito a crianças e adolescentes considerados talentos esportivos, sendo dominantemente compreendido como base para o esporte de rendimento e desenvolvido a partir dessa compreensão. Essa é uma realidade que distancia a prática do Esporte da perspectiva educacional, gerando exclusão nas práticas escolares e desigualdades de oportunidades, pois é um processo que já se inicia sendo oferecido a poucos. Para compreendermos com mais clareza os transtornos que a influência do esporte de rendimento poderá trazer ao esporte escolar com finalidades educacionais, é necessária uma abordagem mais aprofundada de alguns problemas que assolam a primeira dimensão esportiva. O ESPORTE DE RENDIMENTO: MAZELAS E DESAFIOS Segundo o Minidicionário Soares Amora da Língua Portuguesa (2001), a palavra “mazela” é “tudo o que aflige”, o mesmo que “ferida”, R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 17, n. 2, p. 115-122, 2009 119 “enfermidade”. O esporte, como qualquer área de atuação humana, possui problemas que o afligem principalmente em sua dimensão do rendimento, os quais contradizem radicalmente a prática do esporte com finalidades educacionais. Sadi al. (2004, p. 21) identificam dois princípios que norteiam o esporte de rendimento e que podem se manifestar no esporte com finalidades educacionais, os quais precisam ser constantemente combatidos, pois, segundo os autores, “são expressões máximas e esdrúxulas que se deseja negar numa sociedade efetivamente fraterna e democrática”; trata-se do individualismo e da hipercompetitividade. A hipercompetitividade não deve ser confundida com competição, já que esta última pode ser pedagogicamente utilizada com finalidades educacionais. O individualismo, por sua vez, deve ser substituído por manifestações coletivas e cooperativas. A competição e a cooperação devem ser incentivadas e promovidas na escola, de forma educacional, permitindo maior aproximação do fenômeno esportivo com a educação. Elenor Kunz (2006) também apresenta dois “problemas graves” que afetam o esporte de alto rendimento, os quais, segundo o autor, “podem levá-lo a sua autodestruição, ao fim, bem como ao de seus praticantes” (p. 48). Os problemas apresentados pelo autor em forma de excurso são: o treinamento especializado precoce e o dopping. Segundo Kunz, o treinamento especializado precoce acontece quando crianças são introduzidas, antes da fase pubertária, em um processo sistemático de treinamento, com o objetivo do aumento paulatino do rendimento, além da participação periódica em competições esportivas. As consequências para a criança podem ser as mais diversas, entre as quais identificamos na leitura: a) a formação escolar deficiente; b) a unilateralização do desenvolvimento; e c) a reduzida participação em atividades do mundo infantil, como jogos e brincadeiras. Sobre o doping (dopagem), o autor afirma que, apesar de não ser um problema recente, mantém íntima relação com as ambições capitalistas da atualidade. Considerado por muitos estudiosos como o flagelo do esporte moderno, o doping promove o desempenho esportivo em detrimento das questões éticas e da saúde dos atletas, além de submeter os resultados das competições diretamente à capacidade financeira de melhor dopar os competidores. R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 17, n. 2, p. 115-122, 2009120 Tubino (2006) também traça importantes contribuições sobre as problemáticas em torno da prática do esporte de rendimento. Entre elas, destacamos o aspecto comercial exacerbado, a violência nas disputas esportivas e a discriminação da mulher. O autor então desafia: A busca de um novo espírito esportivo, que contribua para o desenvolvimento da ética no esporte da atualidade, a necessidade de um controle do aspecto comercial exacerbado do esporte de desempenho, a substituição das características do esporte de rendimento nos eventos de esporte-educação, o combate ao doping e a procura de uma fórmula para romper os “feudos” instalados nas entidades dirigentes do esporte são apenas alguns dos grandes desafios do mundo esportivo contemporâneo (p. 48). Os problemas e desafios que ora são apresentados e outorgados a todos que se preocupam de fato com o esporte e veem nele uma possibilidade de desenvolvimento integral do homem são evidências de que o esporte de rendimento não deve influenciar o esporte com finalidades educacionais. Melhor seria se o esporte escolar com finalidades realmente educacionais pudesse contribuir para uma maior humanização do esporte em sua dimensão de rendimento. ESPORTE EDUCACIONAL: UMA POSSIBILIDADE DE RESTAURAÇÃO DO PRÓPRIO ESPORTE Barbieri (2001) apresenta o esporte educacional como uma possibilidade de restauração do humano no homem. A partir de uma análise histórica, o autor contextualiza a questão educacional nos dias atuais, enquadrando-a na visão “emergente-emancipadora”. Segundo ele, essa concepção de educação dá suporte ao conceito de esporte educacional apresentado no seu estudo, por valorizar os significados de participação, de totalidade, de coeducação, de emancipação, de cooperação, de solidariedade, de integração, de liberdade, de autonomia e de preservação da identidade cultural. Como vimos anteriormente, na leitura de Tubino e Barbieri, o esporte educacional embasa-se em princípios similares aos defendidos pela visão “emergente-emancipadora”. O esporte escolar, contrariamente, tem reforçado valores próprios do esporte de rendimento, como a competição, o individualismo, a exclusão, a hipercompetitividade. R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 17, n. 2, p. 115-122, 2009 121 Consolidar o esporte educacional na prática cotidiana dos professores de educação física e como realidade da escola significa contribuir na construção de um esporte mais humano, já que irá afrontar os princípios desumanos do esporte de rendimento. Entretanto, essa intervenção deve ser acompanhada por uma “didática comunicativa” problematizadora, de forma a esclarecer os contras da prática de um esporte privilegiador do rendimento, e os prós de um esporte focado no indivíduo. Essa não é uma tarefa fácil, nem somente dos professores de educação física, mas certamente restaurará a prática do esporte escolar e ainda contribuirá para humanizar também o esporte. CONCLUSÃO O esporte escolar tem sido alvo de inúmeras críticas por reproduzir práticas próprias do esporte de rendimento. Este último, por sua vez, é alvo de preocupações por parte daqueles que veem os rumos inumanos que ele tem tomado. O presente artigo enquadra-se nas duas correntes apresentadas anteriormente e propõe o esporte educacional como uma possibilidade de restauração do próprio esporte, já que poderá contestar a exclusão provocada pelo esporte de rendimento na escola. Os professores de educação física, a despeito da formação tecnicista a que muitos foram submetidos, são os principais protagonistas das mudanças no esporte escolar, mas não os únicos; afinal, os problemas que assolam o esporte de rendimento e têm afetado o esporte escolar vão muito além das aulas de educação física e chegam a afetar até os pilares da escola. Por isso, torna-se indispensável a atuação de professores, pedagogos, psicólogos, técnicos e pais de alunos que percebam os benefícios do esporte em sua dimensão social. ABSTRACT Sport Education: a possibility of restoring the sport. This article deals with the influence of high performance sport over the scholar sport practice. It is about the physical education teacher’s R. Min. Educ. Fís., Viçosa, v. 17, n. 2, p. 115-122, 2009122 concern about the direction that high performance sport has taken, up to interfere decisively the course of so-called educational sport (and of leisure) in the school. Therefore, it has been searched to increase discussions about the theme, striving for the humanization of the sport as a men’scultural production and a nowadays’ multidisciplinary phenomenon. Keywords: sport, scholar sport, sport education. REFERÊNCIAS AMORA, Antônio Soares. Minidicionário Soares Amora da língua portuguesa. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. BARBIERI, César Augustus Santos. Esporte educacional: uma possibilidade de restauração do humano no homem. Canoas: Ed. ULBRA, 2001. PINTO, César Augusto Sadalla. O conceito de esporte: da pré- história aos dias atuais. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Universidade do Estado do Pará, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Santarém, 2007. KUNZ, Elenor. Transformação didático-pedagógica do esporte. 7 ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006. SADI, Renato Sampaio [et al.]. Esporte, política e sociedade./Brasília: Universidade de Brasília, Centro de Educação a Distância, 2004 (Esporte escolar: v. 1). TUBINO, Manuel José Gomes. O que é o esporte. São Paulo: Brasiliense, 2006. Endereço para correspondência: Av, Pres. Vargas, 908 - Bairro Cidade Baixa 68220-000 Monte Alegre PA E-mail: cesarsad@hotmail.com
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