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ECONOMIA BRASILEIRA AULA 3 Prof. Walcir Soares da Silva Junior 2 CONVERSA INICIAL A década perdida Após um período de intensos investimentos e a metamorfose de um país agrário-exportador em uma das maiores economias industrializadas do mundo, o Brasil adentra a década de 1980 enfrentando desafios significativos. Uma dívida externa crescente e a inflação desenfreada emergem como as principais preocupações e obstáculos da história econômica recente do país. Esse cenário se tornou um trauma duradouro, que assombra os brasileiros até os dias atuais. A visão utópica de se tornar uma potência desenvolvida mundialmente deu lugar ao anseio por conquistar a estabilidade monetária, uma batalha que levaria uma década e meia para ser alcançada. Esse período é conhecido como a “década perdida”, marcada por desafios e frustrações. A década de 1980 foi um divisor de águas para a economia brasileira, trazendo consigo uma série de crises que afetaram profundamente o País. A crescente dívida externa gerou um peso insustentável sobre a capacidade de pagamento do Brasil, afetando seu desenvolvimento econômico e ameaçando sua soberania financeira. Além disso, a inflação descontrolada corroía o poder de compra da população, prejudicando a estabilidade social e gerando incertezas para os agentes econômicos. Nesse contexto desafiador, a busca pela estabilidade monetária se tornou uma prioridade absoluta. O Brasil empreendeu esforços para controlar a inflação e reverter o cenário de endividamento. Políticas econômicas e reformas estruturais foram implementadas, buscando restabelecer a confiança dos investidores e promover um ambiente propício para o crescimento sustentável. No entanto, esses esforços enfrentaram dificuldades e obstáculos significativos ao longo do caminho, prolongando o período de instabilidade econômica. A década perdida foi um momento de aprendizado e resiliência para o Brasil. Os desafios enfrentados nesse período deixaram marcas profundas na sociedade brasileira, moldando sua mentalidade e suas expectativas em relação à economia e ao papel do Estado. O processo de superação dessas adversidades exigiu ajustes, reformas estruturais e um repensar das políticas econômicas, visando a estabelecer bases sólidas para o crescimento sustentável. 3 Ao estudar essa época conturbada da história econômica brasileira, buscamos compreender não apenas os eventos e os fatores que levaram à crise, mas também refletir sobre as lições aprendidas e as estratégias adotadas para reconstruir a economia. Analisaremos as políticas econômicas implementadas, os desafios enfrentados e os resultados alcançados, bem como suas consequências de longo prazo. Dessa forma, poderemos traçar paralelos entre o passado e o presente, vislumbrando perspectivas para um futuro de maior estabilidade e prosperidade econômica para o Brasil. TEMA 1 – REDEMOCRATIZAÇÃO Com o aumento da taxa de juros efetiva para 8,9% ao ano em 1981 e a consecutiva queda no PIB de 4,3%, a postura desenvolvimentista perdeu importância nos objetivos da política brasileira, dando lugar às rolagens, renegociações e inevitável crescimento da dívida externa. Diferentemente dos últimos 50 anos, o endividamento não se transmutava em indústrias, rodovias e hidrelétricas, apenas acompanhava o rugir dos juros compostos, pura e simplesmente. Segundo Silveira Filho (2000, p. 90) “a década perdida não foi pior por causa dos investimentos plantados pelo II PND, colhidos decrescentemente ao longo dos anos 80. Eles fizeram com que o Brasil conquistasse saldos comerciais positivos altamente favoráveis”. Mas, a despeito dos superávits na balança comercial, os juros líquidos e amortizações da dívida absorviam qualquer excedente gerado com esforço e ainda pediam por mais empréstimos e financiamentos, que, por sua vez, eram ineficientes para tornar o balanço de pagamentos brasileiro positivo. A redemocratização brasileira, uma fase marcante da história política, passava ao largo das tentativas de resolver o problema econômico. O general João Figueiredo assumiu a presidência em 1979 como último presidente da Ditadura Militar e deu continuidade à abertura política do governo anterior. Em 1983, iniciaram-se as campanhas das Diretas Já, que, ainda que rejeitadas pelo Congresso, levaram à eleição presidencial indireta de Tancredo Neves. Com a sua morte, pouco antes de assumir o cargo, a presidência é assumida por José Sarney (vide Quadro 1). 4 Quadro 1 – Lista de presidentes da República de 1985 a 1995 Período Presidente Denominação 1985 Tancredo Neves Sexta República 1985-1990 José Sarney 1990-1992 Fernando Collor 1992-1995 Itamar Franco Fonte: Walcir Soares da Silva Junior. Segundo Castro (2005), junto ao sonho da redemocratização, a população brasileira estava ansiosa não só por liberdades civis e políticas, mas também por crescimento econômico, redistribuição de renda e pelo fim da inflação. De fato, em 1984 e 1985, o Brasil cresceu 5,4% e 7,8%, respectivamente. Acompanhando o crescimento havia também a melhora nas contas externas e redução do desequilíbrio das contas públicas. Portanto, o maior problema a ser enfrentado pelo governo Sarney era a inflação, que, mesmo nos ambientes recessivos entre 1981 e 1983, não diminuíra, ficando acima de 100% já em 1980 e acelerando para 224% em 1984. Para resolver a inflação, na cartilha econômica ortodoxa, ao menos teoricamente, bastaria identificar o tipo de inflação e atacar diretamente as suas causas. Mas as divergências em torno do problema inflacionário já começavam na identificação do tipo de inflação que o Brasil enfrentava, se havia uma causa única ou várias e qual ou quais remédios seriam passíveis de tentativa, levando em consideração os custos que cada política anti-inflacionária poderia ter sobre a economia. Começava a saga para dominar o “dragão inflacionário”, que duraria mais de uma década. TEMA 2 – O PROBLEMA DA HIPERINFLAÇÃO Inflação é um termo que a maioria dos brasileiros, mesmo aqueles que não têm contato diário com o vocabulário econômico, reconhece. Ainda assim, nem todos estão familiarizados com suas causas e, muitas vezes, com sua definição. Inflação pode ser entendida como o aumento generalizado dos preços em uma determinada economia. Isso quer dizer que o aumento de alguns preços não necessariamente se traduz em inflação. Para entendermos como ela funciona, pensemos no seguinte exemplo: 5 Suponha que uma determinada economia seja feita apenas de duas pessoas – a Maria e o João – e que a totalidade dos bens existentes nessa economia sejam apenas duas maçãs. Isso quer dizer que não existem casas, carros, televisores ou qualquer outro produto. Todos os produtos dessa economia são essas duas maçãs, que, por sua vez, podem ser consumidas pelo João e pela Maria. Suponha que tanto o João quanto a Maria recebam 10 reais de salário. Eles vão ao mercado e cada maçã custa dez reais. Segundo esse exemplo, o Produto Interno Bruto desta economia é de 20 reais. Cada pessoa, com seu salário, é capaz de comprar uma maçã e, uma vez que João e Maria gastem seus salários, a economia entra em equilíbrio: a oferta (maçãs) se iguala à demanda de João e de Maria. Suponha agora um presidente benevolente que decida dobrar o valor do salário de 10 para 20 reais. Momentaneamente, tanto João quanto Maria terão a impressão de que estão mais ricos e podem, portanto, comprar duas maçãs com a sua renda. No entanto, como não é possível fazer surgirem maçãs instantaneamente (a economia precisaria de mais recursos, comprar sementes, plantá-las e esperá-las crescer), o que irá acontecer é um aumento imediato dos preços assim que a demanda por quatro maçãs (inexistentes) tomar o mercado. Esse exemplo ilustra uma inflação de demanda.Por mais que a economia aparentemente esteja mais rica (o PIB nominal saiu de 20 reais para 40 reais), em termos reais, tanto João quanto Maria podem comprar apenas uma maçã com seus salários. Portanto, uma inflação de demanda acontece quando um aumento inesperado da demanda faz os preços subirem por conta de uma incapacidade de aumento da oferta. Existem basicamente três tipos de inflação (Quadro 2). Além da inflação de demanda, há também a inflação de oferta e a inflação inercial. A inflação de oferta, também conhecida como inflação de custos, ocorre quando um componente básico do lado da oferta (petróleo, energia, água) se torna mais caro, aumentando os custos de maneira generalizada. Por fim, a inflação inercial é uma inflação de expectativa. 6 Quadro 2 – Tipos de inflação e suas causas Tipo Causa Inflação de demanda Causada por um excesso de demanda em relação à oferta, o que faz que os preços subam pela falta de produtos no mercado. Inflação de oferta Causada por um aumento de preços em produtos específicos que representem um aumento nos custos da economia. Exemplo: salários, petróleo, energia elétrica. Inflação inercial É uma inflação psicológica causada pela expectativa dos agentes de que, se os preços subiram ontem, voltarão a subir amanhã, tornando o combate à inflação nas suas causas de demanda e oferta ineficiente. Fonte: Walcir Soares da Silva Junior. As diversas ferramentas de indexação de uma economia e os esperados aumentos de preço por conta de um longo tempo de inflação podem fazer que, mesmo que as causas de demanda e oferta sejam atacadas, a inflação permaneça. Imagine um lojista que, sempre que vai repor sua mercadoria, se depara com um aumento de preços que dissolve sua margem de lucratividade. Após um período de tempo, ele começará a repassar esse aumento esperado de preços aos seus produtos, mesmo antes de consultar seu preço junto ao seu fornecedor. Este, por sua vez, pode estar fazendo o mesmo com seus preços. Entre as diversas linhas teóricas que precederam o Plano Real no Brasil, o reconhecimento de que a hiperinflação brasileira tinha um relevante componente inercial é um dos poucos consensos na literatura que discute os planos de combate à inflação. Segundo Castro (2005), reconhecia-se que a indexação devido à correção monetária, implantada no Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) no início da Ditadura Militar, era um dos principais entraves para enfrentar o aumento de preços. A inflação inercial é uma inflação “psicológica”, e o seu combate não poderia ser feito somente pelos meios ortodoxos. De acordo com Leite (2011, p. 33): Vários textos foram escritos, trocados e debatidos na PUC. Mas, para tornar curta uma longa história, o que ficou mais famoso que todos os outros foi o Plano Larida, de André e Persio. Ele sustentava que a natureza da nossa inflação era outra. Era inercial. Todos os contratos da economia, todos os preços e tarifas eram corrigidos a intervalos regulares, o que criava a inércia. Ela se reproduzia. Mas não ficava estável. A cada inesperado — como uma quebra de safra, uma alta de preço internacional do petróleo —, a inflação pulava de patamar. 7 Quanto mais subia, mais pressão havia para que os prazos de correção se encurtassem. E, se fossem encurtados, mais subiria a inflação. Essa espiral tinha um fim previsível: a hiperinflação. Assim, de 1985 a 1995, o Brasil passou por diversos planos de estabilização, que só seriam efetivos uma década de aprendizado depois. TEMA 3 – OS PLANOS ANTI-INFLACIONÁRIOS Segundo Castro (2005, p. 116), “ao longo dos cinco anos do governo do presidente José Sarney, foram lançados nada menos de três planos de estabilização: Plano Cruzado, em 1986; Plano Bresser, em 1987; e Plano Verão, em 1989”. Alguns desses planos envolveram ainda outros subplanos. Vejamos cada um destes: • Plano Cruzado I (1986): envolveu reforma monetária e congelamento. O Cruzado ficou estabelecido como nova moeda. O plano foi um sucesso inicialmente, zerando a inflação nos primeiros meses de vigência e gerando queda na taxa de desemprego. No entanto, o plano, que levava em conta o componente inercial da inflação, ignorou a inflação de demanda prévia à sua implantação. Esses fatores, somados à expansão monetária e consequente aumento da demanda, levaram ao superaquecimento da economia. Dadas as defasagens causadas pelo congelamento de preços, produtos desapareciam das prateleiras. • Cruzadinho (1986): envolveu um pacote fiscal para o desaquecimento do consumo e financiamento de investimentos em infraestrutura e metas sociais. O plano foi um fracasso nos seus dois objetivos. • Cruzado II (1986): envolveu um pacote fiscal para aumentar a arrecadação em 4% do PIB. Aumentos de preço em produtos selecionados foram o gatilho para o descongelamento da economia, decretado no fim do plano, em 1987. Com a piora das contas externas é declarada a moratória dos juros externos, reduzindo ainda mais a entrada de capitais no Brasil. • Plano Bresser (1987): plano híbrido com elementos ortodoxos (aumento de juros e de impostos e corte de gastos) e heterodoxos (congelamento de preços e salários). Teve sucesso inicial na redução da inflação, mas com os fracassos dos planos anteriores, remarcações de preço preventivas levaram a aumentos subsequentes às reduções. 8 • Plano “feijão com arroz” (1988): envolveu uma política ortodoxa gradualista, com o objetivo de estabilizar a inflação e reduzir o déficit público. No entanto, aumentos de preços públicos e os megassuperávits na balança comercial (que não permitiram uma política monetária mais apertada) levaram à aceleração da inflação. • Plano Verão (1989): o fracasso do gradualismo do plano anterior e o reconhecimento do componente inercial da inflação levaram a um plano de desindexação mais radical. O Plano Verão continha também elementos ortodoxos (corte de gastos e restrição de crédito) e heterodoxos (congelamento de preços e salários). O Cruzado foi substituído pelo Cruzado Novo. Dado o ano eleitoral, o ajuste fiscal não aconteceu. Como resultado, a inflação acelerou para mais de 80% ao mês no início de 1990. A década de 1980 teve seu fim sem que o problema da inflação fosse corretamente diagnosticado, quiçá, resolvido. Mas o aprendizado dos planos implementados durante a década fori de extrema relevância para o sucesso do que viria a ser o Plano Real. Ainda que este não tenha sido, como não foram os outros, um consenso, o aprendizado, somado ao cenário internacional e ambiente político favoráveis, foram variáveis importantes no que viria a ser o fim da hiperinflação brasileira. TEMA 4 – DESENVOLVIMENTO E NEOLIBERALISMO Simultaneamente ao fracasso no controle da inflação durante a década de 1980 e início dos anos 1990, o Brasil passou por várias transformações influenciadas pelo ambiente político internacional. O modelo de crescimento baseado em substituição de importações foi responsável pelo desenvolvimento da indústria brasileira e foi, por muito tempo, a base da política nacional desenvolvimentista adotada no país. Segundo Castro (2005, p. 143), as três principais características do modelo de industrialização brasileiro durante o período foram: (1) A participação direta do Estado no suprimento da infraestrutura econômica (energia e transportes) e em alguns setores considerados prioritários (siderurgia, mineração e petroquímica); (2) a elevada proteção à indústria nacional, mediante tarifas e diversos tipos de barreiras não-tarifárias; e (3) o fornecimento de crédito em condições favorecidas para a implantação de novos projetos. 9 Durante esse período, o Brasil teve muita influência dos estudos da Cepal – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe e sua teoria estruturalista, que questionava a teoria econômica tradicional emum dos seus núcleos: a teoria das vantagens comparativas. Desenvolvida por David Ricardo (1772-1823) no século XIX, a tese diz respeito à necessidade de especialização das economias para serem capazes de participar do comércio internacional. De acordo com Krugman (2015), ainda que um país apresente uma desvantagem absoluta na produção de dadas mercadorias em relação a outro país, o comércio será vantajoso se ele se especializar na produção e exportação do bem em que sua vantagem absoluta seja maior. Ou seja, o país deve especializar-se na produção do bem em que tem vantagem comparativa (ou relativa). O desdobramento da adoção desse tipo de abordagem levaria um país como o Brasil a especializar-se na produção de bens agrícolas, uma vez que há vantagem comparativa – e muitos vezes absoluta – em detrimento de bens com maior valor agregado. No entanto, a prática de exportar bens de baixo valor agregado e importar bens de alto valor agregado, segundo a Cepal, levaria a uma deterioração dos termos de troca, tornando os países periféricos (em desenvolvimento) sempre dependentes dos países do centro (desenvolvidos). No entanto, ainda que tenha tido relativo sucesso na industrialização brasileira por muitos anos, as consequências inevitáveis desse modelo, definidas por Castro (2005, p. 144) como “estrutura de incentivos distorcida em certos setores”, “certo viés antiexportador” e “endividamento do Estado”, foram os argumentos utilizados pelas vertentes neoliberais que se instauraram nos países latino-americanos nos anos 1980. A promessa de que, apenas seguindo a cartilha neoliberal de corte de gastos e aumento de impostos, esses países poderiam receber o financiamento de órgãos multilaterais como o FMI, levaram à assinatura do chamado Consenso de Washington. De fato, a reformulação do estruturalismo por autores como Fajnzylber, French Davis, N. Lusting, J. Ros, L. Taylor e outros, consolidada no documento Transformação produtiva com equidade, publicado pela CEPAL em 1990, demonstra que o estruturalismo apresentou falhas importantes e deveria ser aprimorado. Segundo os neoestruturalistas, depois de ultrapassada a “etapa fácil” de substituição de importações, o país deveria partir para a “substituição das exportações”, focando nas exportações de bens com maior valor agregado. 10 De acordo com a Cepal (1990), a América Latina deveria focar em aumentar suas relações comerciais externas e o papel do Estado deveria ser fomentar uma competição baseada em ganhos de produtividade. Essas políticas divergem de maneira fundamental do estruturalismo tradicional, principalmente por incorporar “virtudes” pró-mercado. Era a percepção de que o estruturalismo não estava necessariamente equivocado ou era um plano de desenvolvimento inadequado, mas era sim, incompleto. Países em desenvolvimento não poderiam adotar uma política “liberal” quando as vantagens competitivas dos países hoje desenvolvidos vieram em grande parte de uma política protecionista e colonial. Não é mera coincidência que, anos mais tarde, economistas do MIT – Massachusetts Institute of Technology e da Kennedy School de Harvard, Haussman e Hidalgo et al. (2011), criaram um método para medir sofisticação produtiva e complexidade econômica e chegaram à conclusão de que o desenvolvimento está intimamente relacionado à capacidade dos países de produzir e exportar bens complexos. Segundo os autores, a complexidade está relacionada à quantidade de conhecimento necessário para a produção de um determinado produto. Criadores do Índice de Complexidade Econômica1, os autores analisaram a pauta exportadora e a sofisticação de uma infinidade de produtos e países, e chegaram a importantes correlações entre níveis de renda per capita e complexidade econômica, corroborando as teorias estruturalistas elaboradas pela Cepal mais de quarenta anos antes. Ainda assim, nos anos 1990, foram as políticas neoliberais que dominaram a política dos países em desenvolvimento, com resultados desastrosos em termos de desigualdade, concentração e estagnação. Segundo Castro (2005), o Consenso de Washington foi uma série de recomendações feitas em Washington, D. C., em 1989, que os países em desenvolvimento deveriam adotar, como disciplina fiscal, liberalização comercial e financeira e redução do papel do Estado na economia. O consenso diz respeito aos economistas presentes, não aos países envolvidos, principalmente os latino- americanos. Adicionalmente a essas recomendações, o Plano Brady, anunciado 1 Atlas da Complexidade Econômica. Disponível em: . Acesso em 3 jul. 2023. 11 em 1989, reestruturou a dívida de 32 países, condicionando essas renegociações à realização de reformas e ajustes fiscais. No Brasil, com a eleição de Fernando Collor de Mello em 1990, novos planos de estabilização (denominados Collor I e II) foram não só fracassados como minaram a confiança e credibilidade das instituições de poupança – o famoso bloqueio das poupanças. No entanto, transformações importantes, como a renegociação da dívida e a intensificação da abertura comercial e privatizações (denominadas Política Industrial e de Comércio Exterior – Pice) foram muito importantes para o plano que, finalmente, seria bem-sucedido no combate à inflação: O Plano Real. TEMA 5 – AJUSTE ESTRUTURAL E O PLANO REAL A prioridade agora não era mais fomentar a industrialização, ainda que as políticas pudessem, indiretamente, cumprir esse objetivo. Sob a justificativa de atingir o grande objetivo da estabilização, o PND – Programa Nacional de Desestatização visou a reduzir a dívida pública e o papel do Estado na economia brasileira. Segundo Castro (2005), entre 1990 e 1994 (governos Collor e Itamar Franco), foram privatizadas 33 empresas federais dos setores de siderurgia, petroquímica e fertilizantes, com um total de US$ 8,6 bilhões de receitas e uma transferência da dívida para o setor privado de US$ 3,3 bilhões. No que concerne ao comércio exterior, o governo Collor foi responsável pela grande abertura comercial, com a adoção do câmbio flutuante e liberalização da política de importações. Os controles quantitativos de importação foram substituídos por controle tarifário com alíquotas em queda gradual, de modo a preparar os produtos nacionais para essa transição. A sucessão de escândalos políticos e o processo de impeachment do presidente Collor, segundo Castro (2005, p. 150), “inviabilizou toda e qualquer ação de política econômica que dependesse da credibilidade do governo”. Com a posse de seu vice, Itamar Franco, em outubro de 1992, entre trocas e substituições, assume, de maio de 1993 a março de 1994, como ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso (FHC). Este foi o político que coordenou a equipe econômica que concebeu o Plano Real. Segundo Castro (2005), o Plano Real foi implementado em três diferentes fases que podem ser resumidamente nominadas como i) ajuste fiscal; ii) 12 implantação da URV – Unidade Real de Valor e; iii) nova moeda. Vejamos cada uma delas: • Fase 1 – Ajuste fiscal: composta pelo PAI – Plano de Ação Imediata e pelo FSE – Fundo Social de Emergência. O primeiro tinha como objetivo reestruturar a relação da União com os estados e municípios, renegociar a dívida externa com o FMI e promover o combate à sonegação. O segundo, na prática, tratou-se da desvinculação de receitas do governo federal a determinados tipos de gastos, previstos pela Constituição de 1988, ainda que, publicamente, fosse divulgado apenas como um fundo para financiamento de gastos sociais. Foi o componente específico do Plano Real pensado para combater a inflação de demanda. • Fase 2 – Implantação da URV: Enquanto a primeira fase foi responsável por considerar o desajuste das contas públicas como uma das causas da inflação brasileira, a implantação daURV foi o eixo do Plano Real responsável por considerar o problema da indexação da economia. É considerada a fase fundamental no combate à inflação. A URV tinha como objetivo “zerar a memória inflacionária” de maneira voluntária, sem congelamentos de preços e salários, através de uma quase moeda que, diferentemente da moeda em curso, não seria contaminada pela inflação. A URV foi uma espécie de moeda virtual, e tinha seu valor atualizado diariamente para refletir as mudanças nos preços. Durante essa fase, os preços dos produtos e serviços ainda eram marcados em Cruzeiros Reais, mas as pessoas tinham a noção de que o valor da URV era mais estável e confiável. Essa fase preparou a população e a economia para a transição para a nova moeda. A URV vigorou de março a julho de 1994. • Fase 3 – Nova moeda: Em conjunto com uma política monetária restritiva (aumento das taxas de juros e depósitos compulsórios) e uma política de bandas cambiais (câmbio livre para oscilar para baixo, mas teto fixo em 1 real = 1 dólar), implantava-se no dia 1º de julho de 1994 a nova moeda, o Real. A nova moeda substituiu o Cruzeiro Real e tinha um valor fixo em URV. Com a nova moeda, os preços passaram a ser marcados em Reais, com valores não contaminados pela inflação inercial. 13 Figura 1 – IPCA – taxa de variação (% a. a.) Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Sistema Nacional de Índices de Preços ao Consumidor (IBGE/SNIPC). É importante notar que, por trás da estruturação do plano, muita incerteza rondava aqueles anos. Havia o medo de que, ao final de cada fase, a inflação retornasse ainda mais forte, a exemplo dos planos implementados nos anos 1980. No entanto, a inflação havia cedido, permanentemente. Ainda que em alguns momentos ela tenha dado sinais de que fugiria ao controle, a inflação nunca mais alcançou os patamares da hiperinflação da década de 1980 e início de 1990. Segundo dados do IPCA – Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, a inflação de 1994 fechou em 914,46% (vide figura 1). Em 1995 foi de 22,41%. A partir de 1996 (que registrou uma inflação de 9,56%) até o ano de 2022, a inflação oficial só alcançou dois dígitos em 2002 (12,53%), 2015 (10,67%) e 2021 (10,06%). Segundo Leitão (2011), nos 15 anos anteriores ao Plano Real, a inflação acumulada foi de 13 trilhões e 342 bilhões por cento. Nos 15 anos seguintes, foi de 196,87%. Esses números impressionantes revelam o impacto positivo do Plano Real na economia brasileira. Ao reduzir drasticamente a inflação, o Plano Real permitiu que os brasileiros pudessem planejar seus gastos, investir e empreender com maior segurança. Era o início do caminho para a volta do desenvolvimento brasileiro. NA PRÁTICA 1. Por que o abandono do modelo de substituição de importações no desenvolvimento brasileiro representou uma guinada fundamental na 0,00 500,00 1.000,00 1.500,00 2.000,00 2.500,00 3.000,00 19 80 19 82 1 9 8 4 1 9 8 6 1 9 8 8 1 9 9 0 1 9 9 2 1 9 9 4 1 9 9 6 1 9 9 8 2 0 0 0 2 0 0 2 2 0 0 4 2 0 0 6 2 0 0 8 2 0 1 0 2 0 1 2 2 0 1 4 2 0 1 6 2 0 1 8 2 0 2 0 2 0 2 2 14 política econômica do país? Analise os principais fatores econômicos, sociais e políticos que levaram a essa mudança de paradigma, bem como as consequências e os desafios enfrentados nesse processo de transição. 2. Estabeleça a relação entre os diferentes tipos de inflação e os planos econômicos implementados nos anos 1980, avaliando em que medida essas políticas foram eficazes na contenção da hiperinflação. 3. Discorra sobre as semelhanças entre a teoria cepalina estruturalista e a teoria da complexidade econômica, explorando como ambas abordam e explicam o fenômeno do subdesenvolvimento nos países periféricos. Destaque os conceitos-chave e as perspectivas teóricas dessas abordagens, enfatizando a importância das estruturas econômicas, das relações de poder, das assimetrias internacionais e das capacidades produtivas na compreensão dos desafios enfrentados pelos países em desenvolvimento. 4. Explique as três fases do Plano Real, abordando suas características distintas, objetivos e estratégias adotadas para combater a inflação no Brasil. Relacione cada fase com as diferentes causas teóricas da inflação que foram abordadas e enfrentadas em cada etapa do plano, como indexação, expansão monetária, desequilíbrios fiscais e questões estruturais da economia. Avalie o sucesso e os desafios encontrados em cada fase, bem como o impacto do Plano Real na estabilização econômica e nas perspectivas de desenvolvimento do país. FINALIZANDO A década de 1980 foi marcada por uma série de desafios e transformações significativas no cenário econômico brasileiro. Conhecida como a “década perdida”, esse período foi caracterizado por estagnação econômica, o aumento vertiginoso da dívida externa e a ocorrência de uma hiperinflação que abalou a economia do país. Esses eventos representaram uma ruptura drástica no caminho do desenvolvimento brasileiro, levando-o a um estado de desfiguração em relação às características que antes o definiam, como o papel 15 do Estado como impulsionador do crescimento e o foco em políticas de cunho mais nacionalista. A estagnação dos investimentos e a crise da dívida externa desencadearam uma série de consequências negativas para a economia brasileira. O país enfrentou um período de baixo crescimento, desemprego em ascensão e a perda de importantes conquistas sociais que haviam sido estabelecidas na Constituição recentemente promulgada. Além disso, o advento do neoliberalismo, que se disseminou em muitos países em desenvolvimento, impôs desafios adicionais ao Brasil, com políticas de abertura comercial, privatizações e redução do papel do Estado na economia. No entanto, o panorama começou a mudar com a implementação do Plano Real. Esse plano econômico representou uma virada de jogo e possibilitou ao país uma trajetória de recuperação gradual. No entanto, os custos foram elevados e mais uma vez recaíram sobre a sociedade brasileira. A desigualdade social aumentou, o desemprego persistiu e muitas conquistas sociais foram sacrificadas. Parecia que finalmente o país estava preparando o terreno para uma distribuição mais equitativa dos benefícios do crescimento econômico, mas a história mostrou que aqueles que têm poder e influência tendem a ser os maiores beneficiários dessa transformação. Assim, o Brasil enfrentou uma montanha-russa de desafios e transformações ao longo dessas décadas, passando por momentos de estagnação e crises, mas também experimentando momentos de recuperação e avanço. A busca por um desenvolvimento econômico sustentável e inclusivo continua sendo um objetivo fundamental para o país, no qual é necessário conciliar o crescimento econômico com a redução das desigualdades sociais, garantindo que as conquistas sejam compartilhadas por toda a população. 16 REFERÊNCIAS CASTRO, L. B. de. Esperança, frustração e aprendizado: a história da Nova República. In: GIAMBIAGI, F. et. al. Economia brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. HAUSMANN, R; HIDALGO, C. A. The Atlas of Economic Complexity: Mapping Paths to Prosperity. 2011. KRUGMAN, P. R. Economia internacional: teoria e política. São Paulo: Pearson Addison Wesley, 2015. LEITÃO, M. Saga brasileira: a longa luta de um povo por sua moeda. Rio de Janeiro: Record, 2011. SILVEIRA FILHO, J. da. Aquarela brasileira: um perfil econômico do país. Curitiba: Ed. do Autor, 2000.