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ENTRANDO NA “NAU DOS LOUCOS”: BREVE REVISÃO DA HISTÓRIA DA LOUCURA E SEUS DESDOBRAMENTOS Bruno Alvarenga Ribeiro Psicólogo com MBA em Liderança e Gestão de Pessoas Docente dos Cursos de Serviço Social e Engenharia Ambiental do UNIFORMG email: br.alvarenga@yahoo.com.br Viviane Aparecida Pinto Graduada em Pedagogia, Normal Superior e Serviço Social pelo UNIFORMG email: vivianess13@hotmail.com RESUMO Este breve ensaio teórico tem como objetivo percorrer o caminho trilhado por Foucault, ao estudar a loucura ao longo da história da modernidade. Ao trilhar este caminho, ele pretende evidenciar os sentidos atribuídos à loucura até que esta fosse aprisionada pelo saber médico e transformada em doença mental. Mas, sobretudo, este ensaio pretende demonstrar como os sentidos atribuídos à loucura não desapareceram quando o louco foi “promovido” à categoria de doente mental. Palavraschave: Loucura. Doença mental. Psiquiatria. ENTERING IN THE “NAU DOS LOUCOS”: A BRIEF REVIEW OF THE HISTORY OF MADNESS AND IT CONSEQUENCES ABSTRACT This brief theoretical essay aims to follow the path trodden by Foucault to study madness throughout the history of modernity. By walking the path mentioned, this article intends to address the meanings attributed to the madness. It also intends to reflect on the process by which madness was transformed into mental illness. But the main aim of this paper is to demonstrate that no significant changes happened in the way of treating the mentally ill, when the madness has been kidnapped by psychiatry. Keywords: Madness. Mental illness. Psychiatry. 1 INTRODUÇÃO Em pleno século XXI, ainda é possível identificar no imaginário coletivo os sentidos que, outrora, foram atribuídos à loucura. O louco promovido à categoria de doente mental pela psiquiatria, ainda se vê às voltas com o enclausuramento. É fato que o doente mental não mais se encontra aprisionado entre os muros dos manicômios, todavia, existem muitas ideologias que, de uma forma ou de outra, ainda rondam a doença mental e enclausuramna nas teias de um discurso formado tanto por elementos da racionalidade científica quanto por elementos do senso comum. Nenhum profissional que trabalhe no contexto da saúde mental pode ignorar que existem muitos grilhões ideológicos que precisam ser quebrados para que se possa falar de desinstitucionalização do doente mental. A desinstitucionalização só acontecerá quando os dispositivos que aprisionam a doença mental forem ressignificados, de modo a permitir que o discurso do doente assuma o seu lugar de direito. Para que isso possa acontecer, é necessário desvendar os diversos sentidos atribuídos à loucura, ao longo da história da civilização moderna. De acordo com Foucault, é na modernidade que a loucura vai ser aprisionada no interior dos grandes asilos e do discurso filosófico racional. Foucault é o autor que mais se dedicou ao estudo das significações atribuídas à loucura ao longo da modernidade, e a modernidade foi eleita como uma perspectiva dos estudos sobre a loucura e seus sentidos, porque é neste período histórico que vão ser construídas aquelas práticas sociais que criaram a base para o nascimento da psiquiatria. Falar da loucura e de seus sentidos sem fazer referência à obra de Foucault é o mesmo que querer desvendar as propriedades nutricionais do ovo estudando apenas a clara. Um estudo que se limitasse à análise da clara se mostraria periférico e ineficaz. Com a loucura, não é diferente. Qualquer estudo que deseje tratar das significações históricas da loucura, a partir apenas da história da psiquiatria, se revelaria periférico e ineficaz, pois a prática psiquiátrica é herdeira de práticas sociais anteriores ao seu nascimento como campo do saber médico. Se a psiquiatria é herdeira de práticas sociais anteriores ao seu nascimento, ela acaba por herdar também os sentidos atribuídos a estas práticas. Condicionada por esses sentidos, a psiquiatria vai repetir na essência – não necessariamente na aparência – todos os rituais instituídos como formas de se relacionar com a realidade “estranha” revelada pela loucura. E o próprio termo loucura, propositadamente utilizado por Foucault, é prenhe de significações e sua elevação à categoria de doença mental não foi suficiente para romper com estas significações e desfazer o fardo que elas representam sobre os ombros daquele que, depois de reconhecido como doente, ganhou o direito a tratamento, mas perdeu o direito à liberdade. Então, este breve ensaio teórico tem como objetivo percorrer o caminho trilhado por Foucault, ao estudar a loucura ao longo da história da modernidade. Ao trilhar este caminho, ele pretende evidenciar os sentidos atribuídos à loucura até que esta fosse aprisionada pelo saber médico e transformada em doença mental. Mas, sobretudo, este ensaio pretende demonstrar como os sentidos atribuídos à loucura não desapareceram quando o louco foi “promovido” à categoria de doente mental. 2 METODOLOGIA Para a construção deste artigo, que pretende lançar luz sobre as sombras que envolvem a história da loucura, foi utilizado o método da revisão bibliográfica. Como as luzes que se pretende lançar sobre estas sombras contam com a valiosa contribuição de Michel Foucault, inevitavelmente, sua obra teve que ser consultada. Esta consulta se deteve, principalmente, sobre a obra em que Foucault realiza um extenso e profundo estudo sobre as significações atribuídas à loucura ao longo do período que vai desde o fim da Idade Média até o nascimento da Psiquiatria, no final do século XVIII e início do século XIX. Tratase de sua tese de doutoramento publicada com o título: “A história da loucura na idade clássica”. O livro consultado, publicação da obra de doutoramento de Foucault, foi editado em São Paulo, no ano de 2005, pela Editora Perspectiva. Mas, com o objetivo deste artigo é apresentar uma breve reflexão sobre a história da loucura e de seus desdobramentos, é bom ressaltar que ele não pretende mergulhar na densa obra de Foucault e dela extrair todas as contribuições, que possivelmente, pode oferecer para discussão do tema, mas apenas aquelas que venham reforçar a argumentação apresentada ao longo do ensaio. Como é extremamente profundo a obra de Foucault sobre a loucura, para facilitar o diálogo como o autor, outros autores que com ele já dialogaram foram consultados. Estes autores conseguem apresentar Foucault de forma didática e bastante compreensível, evidenciando , assim, aqueles aspectos mais importantes de sua obra. Dito isso, fica evidente que a revisão bibliográfica foi um método que se mostrou eficaz para se alcançar os objetivos pretendidos com este trabalho. 3 ENTRANDO NA “NAU DOS LOUCOS”: A LOUCURA NA IDADE MÉDIA E RENASCIMENTO O conceito de loucura sofreu inúmeras mudanças ao longo da história. No intuito de desvendar o percurso feito pela loucura durante os tempos, desde a Idade Média até os dias atuais, podese iniciar tal exposição com as palavras do autor do livro “O que é loucura”, FraysePereira: Ao final da Idade Média, o homem europeu estabelece relação com alguma coisa que confusamente designa Loucura, Demência, Desrazão. Mas essa relação é experienciada em estado livre, isto é, a loucura circula, faz parte da vida cotidiana e é uma experiência possível para cada um, antes exaltada do que dominada. (FRAYSEPEREIRA, 1984, p. 49). Ao iniciar a Idade Média, até o final das Cruzadas, o que se abate sobrea Europa é a lepra. Banidos das cidades, os leprosos encontramse envolvidos por um círculo sagrado. Personagens sacros e temidos, eles expressam a cólera e a bondade de Deus. A lepra, que é sofrimento, purifica e castiga o pecador. A segregação ritual do leproso abrelhe as portas da salvação. Isto é, sua exclusão compreende outra forma de comunhão. (FRAYSE–PEREIRA, 1984, p. 50). Chega o final das Cruzadas e também da lepra. Dois foram os fatores que determinaram a erradicação desta doença: o primeiro deles é a segregação. Com a segregação dos leprosos no interior dos grandes leprosários, evitouse o contágio. O segundo fator foi a ruptura com o Oriente. Com o fim das cruzadas, o Ocidente rompe seu contato com os focos de contaminação no Oriente, desta forma, a disseminação da lepra caiu vertiginosamente. No entanto, as significações associadas aos leprosos permaneceram. O espaço deixado pelo leproso é ocupado pelos pobres, vagabundos e também pelos “loucos”. Simbolicamente, esta prática social significa exclusão e reintegração espiritual. Tanto a pobreza quanto a loucura são entendidos como desígnios de Deus e aqueles que aceitassem estes desígnios estariam, na verdade, assumindo o seu fardo e, em troca, receberiam a tão almejada purificação espiritual. Neste momento histórico, pobreza e loucura são entendidos como uma espécie de purgatório terreno. Embora num momento posterior ao fim das cruzadas, o louco, junto com outros excluídos, tenha ocupado o lugar dos leprosos, durante toda a Idade Média, foi a lepra que assombrou o imaginário coletivo. Com a erradicação da lepra surge a possibilidade de nascimento de um novo mal, que, aos poucos, irá ocupar o seu lugar no interior das representações coletivas. Foucault explica que na Idade Média a lepra domina o imaginário coletivo quanto às representações da morte e da punição divina. Quando essa doença finalmente desaparece, em função do isolamento dos doentes e da ausência de contato com focos da doença no Oriente, após o fim das Cruzadas, sobram centenas de leprosários, lugares de exclusão e isolamento social. O imaginário coletivo elege, então, outra figura de punição e exclusão: a doença venérea. Esta, apesar de ocupar, por um curto espaço de tempo, o mesmo lugar social e institucional do leproso, não pôde assumir o seu lugar como representação da punição divina, porque desde o início era vista como doença médica, apesar das ressonâncias religiosas e moral que suscitava. Assim, do século XIV ao XVII o leprosário terá que esperar uma “nova representação do mal” capaz de ocupálo. É, portanto, essa representação de um poder maléfico, ou melhor, esse signo da Queda do Homem, permanentemente presente no horizonte da experiência humana, onde Foucault identifica essa estrutura que será ocupada por conteúdos imaginários diversos, sucessivamente. (GAMA, 2008, p. 21). Com o Renascimento, o hábito passa ser o de embarcar os loucos em navios. Surge a chamada “Nau dos Loucos”, barco estranho que flutua sobre vários rios. Mas de todas essas naves romanescas ou satíricas, a Narrenschiff é a única que teve existência real, pois eles existiram, esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçamnos de seus muros; deixavase que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos. (FOUCAULT, 2005, p. 9). Sobre a “Nau do Loucos”, que, para Foucault, encerra um sentido simbólico e, ao mesmo tempo, descreve uma prática social real, Passos e Barboza relatam que: as cidades querendo se ver livres de seus loucos, embarcavamnos, fazendoos percorrer principalmente os rios do norte e leste europeus, e, em cada localidade que aportavam, eram reembarcados. Focault lê nesse gesto, que impige ao louco uma condição de prisioneiro da passagem – isto é, de passageiro eterno, sem destino e de origem ignorada –, uma metáfora do modo ambíguo e prenhe de significações como a loucura é percebida na Renascença. (PASSOS; BARBOZA, 2009, p. 48). Tentando sintetizar as significações atribuídas à loucura no Renascimento, mais adiante as autoras acrescentam: No Renascimento, o mundo está povoado pelo Diabo, por seres imaginários tenebrosos. Nessa barca louca, o louco parte para um destino incerto. Simbolicamente ele parte para o outro mundo (“todo embarque é potencialmente o último”), e é do outro mundo que chega o louco que desembarca na cidade. (PASSOS; BARBOZA, 2009, p. 48). No entanto, fazendo referência à obra de Foucault, Passos e Barboza advertem: Isto não significa que os loucos fossem corridos das cidades de modo sistemático. Existiram, durante toda a Idade Média e a Renascença, casas de detenção para os insanos, as quais não tinham qualquer objetivo de tratamento e só aceitavam os loucos da própria cidade. Eram principalmente os estrangeiros escorraçados. Foucault ressalta essa prática porque parece corresponder ou metaforizar certas significações sobre a loucura dominantes na época. Assim, predomina uma visão da loucura muito próxima da morte, do inumano, do sobrenatural. (PASSOS; BARBOZA, 2009, p. 48). Então, por toda a Europa, circulavam os navios abarrotados de pessoas indesejadas, e, entre elas, estavam os loucos. Portanto, embarcados em navios, os loucos navegavam sem destino. Com efeito, embarcar os loucos é assegurarse de que partirão para longe e serão prisioneiros de sua própria partida. É uma purificação e uma passagem para a incerteza da sorte. A água e a navegação asseguram essa posição altamente simbólica da loucura: encerrado no navio de onde não escapa, o louco é entregue à correnteza infinita do rio, à fluidez instável e misteriosa do mar. É o prisioneiro da mais livre das rotas. (FRAYSE–PEREIRA, 1984, p. 51). Se, por um lado, durante a Renascença, a loucura significou uma experiência sobrenatural, desígnio de Deus e, por vezes, chegou a significar algo inumano, símbolo do anúncio da morte, por outro lado, foi muitas vezes comparada à sabedoria. Por trás da genialidade de grandes pensadores, como Erasmo de Roterdã (14661536) e Montaigne (15331592), pesava a dúvida da loucura. Não se sabia se a genialidade destes e de outros autores era algo próximo à loucura ou se eles eram realmente sábios. FraysePereira se refere a este momento da seguinte maneira: [....] até o final do século XVI não havia fundamento para a certeza de não estar sonhando, de não ser louco. Sabedoria e loucura estavam muito próximas. E a grande via de expressão dessa proximidade era a linguagem das artes: a pintura, a literatura, sobretudo o teatro que, no final do século, vai desenvolver a sua verdade, isto é, a de ser ilusão: “algo que a loucura é, em sentido estrito”. (FRAYSEPEREIRA, 1984, p. 59). Portanto, até que o racionalismo moderno lance seus tentáculos sobre a loucura, esta permanecerá muito próxima da sabedoria. 4 ATRACANDO A “NAU DOS LOUCOS”: DA “GRANDE INTERNAÇÃO” AO NASCIMENTO DA PSIQUIATRIA Com o início do século XVII, não mais são utilizados os barcos. A loucura se depara com o hospital, ou seja, na Europa, surgem as chamadas casas de internamento, locais para onde são destinados os “alienados”. No mais, a loucura é aprisionada pelo discurso filosófico, saber que se estruturou no interior de uma nascente sociedade burguesa. Nessa época, todavia, a exclusão não se deu apenas ao nívelde uma experiência filosófica. Cria se um conjunto de instituições, através do qual a dominação e o silenciamento da loucura se efetivam. Adiante, será demonstrada a função social destas instituições. Por ora, é interessante debruçar sobre a relação da loucura com a filosofia moderna, relação que se dá pela via da exclusão, do não ser. Desta forma, será possível captar o sentido atribuído à loucura na Idade Clássica, momento que, segundo Foucault, acontece “A Grande Internação” A Grande Internação é o período que compreende o século XVII até o final do século XVIII, momento em que houve uma vertiginosa expansão das casas de internação. O período da “Grande Internação” se encerra com o nascimento da Psiquiatria (final do século XVIII e início do século XIX), o que não quer dizer que as internações deixaram de acontecer, mas apenas que elas passaram a adquirir um status científico conferido pela incipiente psiquiatria. Após o fim do período da Grande Internação, iniciase o período da clínica psiquiátrica. Foucault trata desta clínica de uma forma mais detida em seu livro “O Nascimento da Clínica. Neste momento, [...] a loucura se vê privada do direito a alguma relação com a verdade. Sendo o “sujeito que duvida” ponto de partida do conhecimento verdadeiro (como é rigorosamente demonstrado pelo filósofo), a loucura jamais poderá atingilo, pois o ato de duvidar implica o pensamento e aquele que pensa e, por princípio, anula essa possibilidade. (FRAYSEPEREIRA, 1984, p. 61). Com o pensamento moderno, a loucura é equiparada a nãorazão. Como a verdade só poderia ser conhecida, segundo o cartesianismo, mediante o exercício da razão, o louco se vê privado da possibilidade de apreendêla. Na idade moderna, mais especificamente no século XVI, a loucura irá ser confiscada por uma razão dominadora. Baseada na máxima “Penso logo existo”, de Descartes, a humanidade passa a entender e ver a loucura “em relação” à sanidade e, ao louco, como alguém desprovido de razão e, portanto, distante da verdade. O racionalismo moderno irá separar a sabedoria da loucura. Se for sábio, não pode ser louco. Se for louco, não pode ser sábio. (HEIDRICH, 2007, p. 2526). Segundo Passos e Barboza (2007, p. 49), a separação da loucura e sabedoria serviu à visão críticomoral e ao projeto de saneamento das cidades. Essa visão fez desaparecer as significações da loucura que, no Renascimento, era pensada como uma experiência ao mesmo tempo mística e trágica. Como consequência a loucura é inscrita na lógica da desordem. Se é desordem deve ser contida ou reprimida. Em 1656, por meio de um decreto, é fundado, em Paris, o Hospital Geral. A fundação desta instituição é, segundo Foulcaut (1984), um marco para o século. O Hospital Geral reúne sob uma única administração vários estabelecimentos que não têm como objetivo o tratamento do louco, mas sim o recolhimento dos pobres da cidade, pois estes representavam um grande incômodo para o planejamento urbano. Ou seja, o Hospital Geral não possui caráter médico, mas sim um caráter de albergamento. A designação “hospital” foi utilizada como sinônimo de hospedaria. O Hospital Geral era uma forma do Estado exercer controle sobre a população. Sendo uma medida assistencial, cuidava daqueles que a sociedade não queria ou, simplesmente, não podia. Como instância jurídica decidia, julgava e executava. Era administrado pelo rei, em conjunto com os poderes da polícia e da justiça. Como diz FraysePereira (1984, p. 63), “é uma estrutura da ordem monárquica e burguesa (acatada pela Igreja) junto ao mundo da miséria e que se alastra por toda a Europa”. A partir do ano de 1676, na França, todas as cidades possuíam, pelo menos, um departamento do que se convencionou chamar de Hospital Geral, instituição foi criada com o objetivo de suprimir a mendicância e a ociosidade, vistas como fontes das desordens. Na verdade, as casas de internamento também serviam como casas de trabalho forçado. O internamento, além de ser uma prática de exclusão social, servia como medida de estímulo à economia. No século XVII, a economia européia atravessa períodos de crise que geram queda dos salários e desemprego. Nesse contexto, o sentido do internamento oscila. Nos períodos de crise, quando a mendicância aumenta vertiginosamente, prendemse os ociosos e a vida social é protegida contra possíveis revoltas. Buscase controlar a tensão social. Mas fora dos tempos de crise, quando há emprego e altos salários, as casas de internamento oferecem mãodeobra barata. (FRAYSE PEREIRA, 1984, p. 65). Gama (2008, p. 24) diz que “as oscilações do capitalismo marcam uma maior ou menor quantidade de pessoas internadas”. “Constituíamse, os internos, de indivíduos com problemas diversos, mas unidos pela exclusão social e econômica.” (GAMA, 2008, p. 25). “Portanto, os loucos passam a ser internados no século XVII, independente de qualquer concepção de tratamento ou cura. Eles fazem parte de uma parcela discernível da sociedade, aqueles que não trabalhavam ou perturbavam a ordem pública.” (GAMA, 2008, p. 25). Diante de tantos significados que orbitam em torno da prática do internamento ao longo da Idade Clássica, é bom questionar: o que é o internamento? Na concepção de Foucault, o internamento (2005, p.55) é um “amálgama abusivo de elementos heterogêneos”, ou seja, é uma prática social que dá origem a uma população misturada e confusa, definida pelos valores morais da razão que tentava negar a miséria e a ociosidade. Estranha superfície, a que comporta as medidas de internamento. Doentes venéreos, devassos, dissipadores, homossexuais, blasfemadores, alquimistas, libertinos: toda uma população matizada se vê repentinamente, na segunda metade do século XVII, rejeitada para além de uma linha de divisão, e reclusa em asilos que se tornarão, em um ou dois séculos, os campos fechados da loucura. (FOUCAULT, 2005, p. 102). Durante a era clássica, após surgir o internamento, os loucos tiveram a mesma sorte de todos os “imorais”. Na segunda metade do século XVIII, começam a surgir protestos contra essa situação, feitos pelos próprios internos (prisioneiros políticos que aumentaram de número devido à revolução burguesa) que não estavam satisfeitos com o fato de serem confundidos com os loucos. Assim, a loucura representava o papel de uma injustiça no interior das casas de força, uma injustiça contra os outros. Com o tempo, o internamento mostrase como um erro econômico e um financiamento arriscado. Contudo, ao mesmo tempo em que o internamento sofre essa crítica política que questiona sua função de repressão, crises econômicas chegam a abalar a sua própria existência. Isto é, o internamento acaba revelandose uma medida incapaz de agir sobre os preços e resolver o desemprego. Do ponto de vista econômico, sua eficácia é posta em questão. (FRAYSE PEREIRA, 1984, p. 77). Dessa forma, recolocase a população internada no circuito da produção, oferecemse mais braços para a indústria que emergia, bem como se reformulam as medidas de assistência. Há aí toda uma reabilitação moral do Pobre, que designa, mais profundamente, uma reintegração econômica e social de sua personagem. Na economia mercantilista, não sendo nem produtor nem consumidor, o Pobre não tinha lugar: ocioso, vagabundo, desempregado, sua esfera era a do internamento, medida com a qual era exilado e como que abstraído da sociedade. (FOUCAULT, 2005, p. 405). Se, na Idade Média, a loucura foi “santificada”, no século XVII, ela foi apreendidano interior de um tecido moral. Já no século XVIII, a loucura tornouse parte da economia, de modo que os loucos e os pobres tornaramse importantes para a riqueza e retornaram à comunidade da qual haviam sido excluídos pelo internamento. No entanto, o retorno do louco à comunidade é marcado por um novo confinamento: o confinamento familiar. O louco visto como um perigo foi confinado à família. Cada família mantinha em casa o seu louco, enquanto aquele que nada possuía restava vagar pelo campo ou cidade, sobrevivendo da caridade ou da realização de pequenos trabalhos. Então, como medida de proteção para maior segurança da sociedade, articulouse a mesma ação utilizada contra os animais daninhos. Decretouse uma sanção penal que incidia sobre aquelas famílias que deixassem seus loucos vagarem livremente pela cidade, perturbando a ordem. Obviamente que o confinamento do louco no interior da família não demorou a ser reconsiderado e, aos poucos, a idéia da criação de casas reservadas apenas para os insensatos foi se configurando. Isso aconteceu porque a sociedade burguesa sentiuse obrigada a proteger do louco os interesses do homem privado. No fim do século XVIII, acreditavase na loucura como um erro que se enraizava na imaginação e que, quanto mais o louco fosse corporalmente coagido, mais a sua imaginação seria afetada. Isto é, quanto menos ficasse livre, mais louco se tornaria o louco. Persistem, portanto, duas visões sobre o internamento. Numa primeira visão, ele era concebido como uma medida assistencial, um dever para com aqueles que não podiam prover a si mesmos, e como uma medida de segurança contra os perigos da loucura. Numa segunda visão, o internamento era entendido como um meio de organização da liberdade. Sendo um meio de organização da tão sonhada liberdade, que restituiria ao louco a sua sanidade, este ganha novo sentido e passa a ser visto como tratamento. Estão lançadas as bases para o surgimento do modelo de tratamento asilar, proposto pela Psiquiatria de Pinel no século XIX. E é graças aos espaços das casas de internamento que a medicina pôde se apropriar da loucura como objeto de conhecimento. Dito de outra forma, os asilos se transformaram no laboratório da incipiente psiquiatria e o louco numa cobaia de um saber que exerce sobre a loucura o seu poder. É neste momento (século XIX) que o internamento passa a ter valor terapêutico e a loucura é elevada à categoria de doença mental. Com a elevação da loucura à categoria de doença mental, forjase uma relação entre asilo e doença. Ligados ao surgimento do asilo figuram os nomes de S. Tuke, na Inglaterra, e de Ph. Pinel, na França. Tuke não era médico, mas membro de uma associação protestante (Quacre). Pinel não era psiquiatra. Os asilos montados por ambos distinguemse sob vários aspectos importantes, sobretudo no que diz respeito aos valores religiosos, presentes em um e ausentes no outro. No entanto, é possível aproximálos esquematicamente, apenas para destacar o sentido e algumas implicações gerais do mundo asilar. Mas, antes de mais nada, é preciso saber que Pinel, Tuke e seus contemporâneos, ao contrário do que se costuma dizer quando se faz a história da Psiquiatria, não romperam com as práticas do internamento. (FRAYSEPEREIRA, 1984, p. 83). Passos e Barboza (2009), tomando como base a obra de Focault e de outros autores que sobre essa obra refletiram, resumem em três grandes eixos as características do modelo de tratamento asilar adotado pela incipiente psiquiatria do século XIX: Primeiro, a associação da noção de periculosidade social – que há mais de um século vinha fundamentando a prática da exclusão social e confinamento do louco junto com todo tipo de desviante social, nos grandes hospitais gerais europeus do século XVII – ao conceito de doença mental. Decorre desta associação a perpetuação da ligação entre loucura e periculosidade social, bem como a superposição de punição e tratamento. Um segundo eixo, decorrente do primeiro, é a instauração da relação de tutela com o louco, com restrição de direitos e deveres. E o terceiro é a disputa com a Justiça pelo poder de sequestro do louco como alguém mentalmente irresponsável, portanto juridicamente inimputável. Nessa disputa, a instituição psiquiátrica irá consolidarse como aquela que regulará, em consonância com o poder administrativo público, mas com métodosrepressivos próprios, a população constituída por esse tipo de indivíduo, doente e perigoso. (PASSOS; BARBOZA, 2009, p. 50.). Segundo Frayse Pereira (1984), a tarefa do asilo era homogenizar todas as diferenças, ou seja, reprimir os vícios, extinguir as irregularidades, denunciar aquilo que se opõe aos desejos impostos pela sociedade. Portanto, a única diferença possível no interior desta instituição é a distinção entre o normal e o patológico. Com a segregação social, o asilo reproduz em seu interior a racionalidade burguesa, transformandose em um espaço de alienação, espaço onde o doente é julgado e condenado como num tribunal. […] isso acabou produzindo no louco o remorso, o sentimento de sua própria culpa. E se, com o tempo, até os castigos morais acabarão por ser dispensados, é porque os juízes da loucura estão certos de que aquele sentimento está definitivamente inscrito no espírito do alienado. (FRAYSE PEREIRA, 1984, p. 87). Então, inicialmente, o médico é instituído como o juiz do louco, por isso, a relação entre paciente e profissional vai ser perpassada pelos dispositivos de dominação. Dessa forma, o médico é revestido de muitos poderes e passa a falar em nome do louco. Com isso a loucura é silenciada, pois o discurso científico assume o lugar do discurso do doente. É a razão se impondo sobre a desrazão, agora de outra forma. Só posteriormente, num momento pósreforma psiquiátrica (década de 1960), que o discurso médico vai recuar ao seu lugar de direito e o doente será visto como o portador de uma fala, de uma linguagem que fala de si e das relações que estabelece com o mundo e, sobretudo, das relações que o mundo estabelece com ele, geralmente, relações marcadas pela exclusão, exclusão edificada em nome da ciência, ou melhor dizendo, exclusão edificada em nome da razão. A partir de então, surge a figura do especialista, figura proeminente, dotada de muito poder, figura que se coloca entre o homem e a loucura, pois, sendo detentor de um discurso neutro e impessoal, de um discurso fundado na racionalidade dos fatos, o especialista está credenciado a ocupar este lugar. Seu discurso é instituído, ou seja, é um discurso que encontra legitimidade na vida social. É um discurso que pretende livrar o homem de seus medos e aflições, mas acaba encerrandoo entre os muros da exclusão. E o que o discurso competente (científico/racional) faz é dizer ao doente aquilo que ele é: um histérico, um depressivo, um esquizofrênico, cuja linguagem é o delírio, a visão alucinada, o comportamento obsceno e o mundo irreal e fantasmagórico dos devaneios. Dessa forma, o discurso da Psiquiatria do século XX – e porque não dizer de algumas modalidades de Psiquiatria do século XXI – repete na essência o discurso da Psiquiatria do século XIX, discurso que, em nome da ciência enclausurou o doente. Mas, na contemporaneidade, tal discurso encontrase blindado pelos métodos e técnicas da ciência e pelo marketing da indústria farmacêutica. Por isso, pode se dizer que: o discurso psiquiátrico como discurso do especialista sobre a loucura não é uma prática meramente médica [...] ela é umaintervenção política, mediadora da sutil violência repressiva que caracteriza as sociedades contemporâneas. A razão pela qual a loucura sofre um processo de exclusão, processo este que já tem início na simples percepção do indivíduo como “doente” ou como “desviante” (lembrando: a noção de “desvio” pressupõe um “dever ser” contrariado pelo desvio), não é médica, mas política. (FRAYSEPEREIRA, 1984, p. 100). De tudo que foi dito é possível concluir que, diante de uma sociedade incapaz de aceitar o “diferente”, que reprime a diversidade humana, a loucura é uma ameaça constante, uma evasão à realidade, uma força poderosa, que precisa ser silenciada pelo poder opressor burguês. O que a história da loucura nos revela, pondo em questão toda a cultura ocidental moderna, é que o louco é excluído porque insiste no direito à singularidade e portanto, à interioridade. E, com efeito, se a loucura é nesse mundo patologia ou anormalidade é porque a coexistência de seres diferenciados se tornou uma impossibilidade. (FRAYSEPEREIRA, 1984, p. 102). 5 CONCLUSÃO Embora todo o texto tenha focado a discussão sobre os sentidos atribuídos à loucura, desde a Idade Média até a contemporaneidade, seria interessante fazer menção a um tema que mantém relação com as reflexões desenvolvidas ao longo deste ensaio, mas que não ganhou nada mais que umas poucas linhas na introdução. O tema em questão é a desinstitucionalização do doente mental. Se, atualmente, falase tanto de desinstitucionalização, é porque se reconhece que, apesar de todas as mudanças produzidas pelos diversos movimentos reformistas que surgiram no seio da psiquiatria, ainda há muito que ser feito em termos de libertar a doença mental de seus grilhões ideológicos. Talvez, seja pertinente indagar se a “Nau dos Loucos” atracou ou continua a flutuar pelos rios incertos das palavras, das ideologias. Palavras que amarram, prendem e limitam. Palavras que matam, que lançam na correnteza das incertezas o destino da luta pela desinstitucionalização do doente mental. Enquanto os profissionais da saúde não conhecerem a origem das práticas sociais e dos discursos que repetem, dificilmente, criarão condições propícias para que o doente assuma o leme da nau de sua vida. Não cabe ao Psiquiatra, ao Psicólogo, ao Enfermeiro, ao Assistente Social ou a qualquer outro profissional escolher o destino em que esta nave vai aportar. Podem, no máximo, garantir ao sofredor e à sua família que existe um porto seguro. Atracar a nave não significa silenciar o sofrimento ou mesmo negálo. Atracar a nave é dar ao portador de sofrimento mental a oportunidade de construir, ao seu modo, o porto seguro em que deseja lançar sua âncora, seja ela a âncora do delírio, das perturbações do humor ou dos desajustamentos de conduta. Em última instância, atracar a nave é restituir ao portador de sofrimento mental a liberdade subtraída por séculos de uma história marcada pela exclusão. REFERÊNCIAS FRAYZEPEREIRA, J. A. O que é loucura. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. FOCAULT. M. História da loucura na Idade Clássica. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1977. GAMA, J. R. de A. Um estudo histórico e conceitual sobre a clínica da reforma psiquiátrica no Brasil. 2008. 237 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva)UERJ, Rio de Janeiro, 2008. HEIDRICH, A. V. Reforma psiquiátrica à brasileira: análise sob a perspectiva da desinstitucionalização. 2007. 205 f. Tese (Doutorado em Serviço Social)PUC Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007. PASSOS; I. C. F.; BARBOZA, M. A. G. Tempos e espaços da loucura: uma leitura foucaultiana. In: PASSOS; I. C. F. Loucura e sociedade: discursos, práticas e significações sociais. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009. p. 4357. Bruno Alvarenga Ribeiro Viviane Aparecida Pinto 2 METODOLOGIA 3 ENTRANDO NA “NAU DOS LOUCOS”: A LOUCURA NA IDADE MÉDIA E RENASCIMENTO
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