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25182769-Antiguidade-Oriental-Politica-e-Religiao

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REPENSANDO A HISTÓRIA
temporobjetivodesenvolveravisão
críticaatravésdadiscussão,análiseerefonnulação
constantedostemashistóricos.
Pretende,também,estimularaparticipaçãodetodos
noprocessodeelaboraçãodosaberhistórico,
tantoatravésdotratamentodesmistificadordevisões
consagradas,comopelaabordagemdequestões
quefazempartedodla-a-dladaspessoas"comuns",
sistematicamentepostasàmargemdahistória.
Políticaereligião.Estesdoisconceitos,claramente
distintosparanósdoséculoXX,constitufam-senumasó
realidadeparaascivilizaçõesdoAntigoOriente.Éesteo
fenômenosócio-mentalqueCiroAamarionS.Cardoso,professor
daUniversidadeFederalFluminense,estudanosegípcios,
mesopotâmios,hititasehebreus.
ANTIGUIDADEORIENTAL: POLíTICA E RELIGIÃO éobra
fundamentalparaestudanteseprofessoresdehistóriado
22grauedauniversidadeporpossibilitarcomparaçõesricase
importantescomanossaprópriasociedade,tãodiferenteeao
mesmotempotãopróximadaquelas.
o AUTOR NO CONTEXTO
Ciro Flamarion Santana Cardoso nasceu em Goiânia, em 1942. Viveu
grande partede sua vida no que é hoje o Estado do Rio de Janeiro, e também
no exterior - França, Costa Rica e México.:...entre 1967e 1978.Professor de
História Antiga na Universidade Federal Fluminense, é autor de numerosos li-
vros e artigos publicados no Brasil e no exterior,nas áreas de metodologiada
história,históriada américae históriaantiga.
Cpnsidera-se muitomais um professor do que umpesquisador.
Eis suas respostas a um conjuntode perguntasque lhefizemos:
1. Como começou o seu interessepela História Antiga?
R. Começou quando,na adolescência,ganheide meus pais três livros:História
Antiga do Oriente Próximo. <:teH. R. .Hall, numa tríidução brasileira publicada
pela Casa do Estudantedo Brasil;Deuses. Túmulose Sábios. de C. W. Ceram;
e o romance O Egípcio. de Mika Waltari. Desde então, nunca mais deixei de
ampliara minha bibliotecade históriaantiga.Ao ingressar na Faculdadede Filo-
sofia da Universidade do Brasil; onde estudei históriaentre 1962e 1965,meu
firmepropósitoera dedicar-meà egiptologia,mas as circunstânciasnãoo permi-
tiramnaquelaocasião. Ao preparar,em Paris, umdoutoradona área de história
da América, a partirde 1967,aproveiteipara, ao mesmotempo,estudar línguae
arqueologiaegípcias na École ou Louvre, com os professores Barguete Desro-
ches-Noblecourt. Mas só em 1982publiqueio meu primeirolivrode históriaan-
tiga,sobre o Egito. Desde então,venhodedicandoboa partede meutel'!1Poe de
meus esforços a este setordos estudos históricos, inclusive como professor de
pós-graduação, já que o mestradoda UFF conta,desde 1988,com um setor de
7
.
históriaantigae medieval.Em 1989pude ensinar línguaegípcia a uma primeira
turmade oitoalunos.
2. Não serão excessivamentedistantesda atualidadee da realidadebrasileiras
os temastratadosno seu livro?
R. Eu sei que vocês não pensam realmenteisto, ou não meteriamencarrega-
do de escrevê-Ia! O temado poderé atualíssimoem nosso país. Quanto a mim,
nunca aceiteia posição imediatistade que o historiador,para teralgumautilida-
de ou relevância social, devesse se dedicar de preferênciaa temas próximos
de nós no tempo, embora saiba que esta é uma tendênciaque se pode ler na
concentração crescente das teses e dissertações dos cursos de pós-gradua-
ção em história do Brasil nos temas do século XX (depois de Cristo, claro...).
Acho que a finalidadeúltimadas ciências sociais é descobrir como funcioname
mudamas sociedades humanas: por que, então, deixar de aproveitaro vastís-
simo laboratóriode milêniosde história,ou mesmoo de milhõesde anos de pré-
história?!Acontece, também,que ao escrever história,nós o fazemos - e não é
uma escolha, simplesmente não pode ser de outro jeito - como pessoas de
nossa época, cujos problemas,preocupações e prioridadesaparecemna forma
em que interrogamoso passado recenteou distante.
3. Por que, em seu livro, você escolheu referir-se somente a algumas das
muitas sociedades do antigo Oriente Próximo para a análise da relação reli-
gião/política?
R. Porque o tema era incrivelmentevasto, e as sociedades, variadíssimas. O
perigode um pequeno manualou livro didáticoé, não sabendo ou ousando es-
colher, cair na excessiva superficialidade,em lugarde tentaresclarece~o tema
a partirde certo númerode casos, depois das necessárias considerações ge-
rais. Neste livro,optei por concentrar-menas monarquias(pois tambémhouve
desde a faltade Estado até formas não-monárquicasde governona históriado
antigo Oriente: mas a monarquiafoi, de longe, a forma predominantenas re-
giões que contavamcom agriculturaestável, cidades e escrita). Egito e Meso-
potâmianão poderiamfaltar:são os carros-chefes! Quanto à escolha de anali-
sá-Ios no início de sua trajetóriaestatal, parece-me adequada,já que foram as
primeirasregiõesdo mundoa contarcom cidades e Estados organizados,e por
tal razão influírammuitosobre outras regiões (orientaisou não) - além de que
são os casos mais bem estudados e que contamcom mais documentaçãodis-
ponível. O impériohititafoi tratado porque, entreos Estados federais, além de
relativamentebem documentado, tinha governantes que manifestaram uma
preocupação obsessiva com os deuses, a religião- tão obsessiva que chega,
às vezes, a parecer neurótica!Por fim, Israel não só é um caso à partequanto
tem óbvias repercussões no mundo moderno (penso nas tradições judaica e
cristã). Teria sido ótimoincluirtambémum dos grandes impérios- o assírio ou
o persa, talvez - isto é, um dos impérios"universais" do 112milênioa.C., mas fi-
ca para outravez! Em todos os casos escolhidos, usei ao máximoos textos de
época, que permitemo único "mergulho"que nos é possível naquelassocieda-
des tão diferentesdas de hoje emdia, mas que conhecemos cadavez melhor.
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os DADOS
1
DA QUESTÃO
ANTIGÜiDADE ORIENTAL:
UMA DELIMITAÇÃO NO TEMPO E NO ESPAÇO
1
o títulodestelivroincluia expressão"AntigüidadeOriental".Se,
do pontodevistacronológico,a entendermoscomoa fasequese ini-
ciacomo surgimentodosprimeirosdocumentosescritosinteligíveise
se estendeatéas campanhasmilitaresdeAlexandre,o Grande,reida
Macedôniae daGréciae conquistadordoOriente,teremosumperíodo
enormea considerar:desdeaproximadamente3000antesde Cristo
(a.C.)até334a.C.,ouseja,uns 2700anos.
Do ponto de vista geográfico,limitar-nos-emosao chamado
OrientePróximo.Trata-sede regiãomuitovasta,a qual,no período
considerado,estendia-sedo litoralmeridionaldo marNegro,dasmon-
tanhasdo Cáucaso,da costameridionaldo marCáspioe dasmonta-
nhasa lestedeste(montesdo Gulistã,ParopamisadeseHindu-Kush),
indoemdireçãoao sul,atéa primeiracataratado rioNilo,o marVer-
melho,os desertosda Arábia,o golfoPérsicoe o marde Omã;e, de
oestepara leste,do MediterrâneoOrientale do Egitoatéo rio In.OO,.
Assimcompreendida,tal regiãoincluino essencialnovepaísesatdais
da África - o Egito - e sobretudoda Ásia: Turquia,Síria, Líbano, Israel,.
Jordânia,Iraque,Irãe Afeganistão.. .
A vastidãogeográficae a longaduraçãodo tempoimplicam,de
per si, consideráveisobstáculosa uma'abordagemresumidacomoa
quequeremosempreender.É possível,porém,quea dificuldademaior
9
~
fique porcontadasdiferençasprofundasqueseparamdonossoo
mundopróximo-orientalantigonotocanteàs concepções.
É LíCITA A SEPARAÇÃO ENTRE
POUTICA E REUGIÃO?
Estamosacostumadosa considerarcertasdimensõesousetores
dassociedadesde hoje- porexemplo,o Estadoe a atividadepolítica
a elevinculada,a economiae a religião- comocoisassemdúvidali-
gadasentresi de muitosmodos,masnemporistopassíveisdeconfu-
são ou indiferenciadas.Por tal motivo,temosdisciplinasquese ocu-
pam em separadodessasdiferentesesferas,quais sejama ciência
política,a economiàe a teologia- ou,numníveldiferente,a disciplina
chamada"ReligiõesComparadas",existenteemmuitasuniversidades
européiase norte-americanas.
Ao recuarmosno tempoatéa BaixaIdadeMédiaeuropéia(sé-
culos XI a XV depoisde Cristo),de um ladocontinuariaimpossível
descobrirentreos homensumanoçãodaexistênciadefenômenoses-
pecificamenteeconômicos,e de outroveríamosa presençadeconfli-
tosqueopunhamo imperadordo SacroImpérioRomano-Germânicoe
eventualmenteos reisao papa.Istosupõe,já então,a noçãodeuma
separaçãopercebidaentrea idéiade"Estado"e a de"Igreja".Maisper-
to de nós,no séculopassado,ao se tratardoperíodoimperialbrasilei-
ro,'apesarda uniãoentãoexistenteinstitucionalmenteentreo Estado
e a IgrejaCatólica,éválidobuscara provadequeambasas entidades
podiamser percebidascomocoisasdistintas,porexemplonachama-
da"questaoreligiosa"(1872-1875).
Ora,noantigoOrientePróximosó artificialmentepodemossepa-
rar"política","economia"e "religião".Os temploseramparteintegrante
do aparelhode Estado,tantoquantoo palácioreal;templose palácios
eramelementoscentraisnaorganizaçãodasatividadesquehojecon-
sideramos"econômicas"(as de produção,distribuiçãoe circulaçãode
bense serviços).Eis aquicomoumespecialistase referea estefato:
...no antigo Oriente existiram, certamente,um ordenamentoe uma ativi-
dade políticos. Sem eles não teria sido possível o desenvolvimentoda
cultura, já que esta deve ter como sujeitohistórico uma sociedade politi-
camente organizada. Mas não é menos certo que a políticanão formava
uma realidadeclara e distinta,isto é, não estava rigorosamentedelimitada
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diante de outras realidades nem era concebida como se estivesse. Só
com os gregos começou-se a percebê-Ia como realidadeautônoma,e só
no mundo modernoe por obra da culturaocidentalse levará a cabo sua
radical secularização: em todas as culturas restantesa política,a religião
e, em geral, os empreendimentoseconômicos aparecem como três di-
mensões de uma mesma realidade.(García Pelayo)
t
Note-sequeestaverdadenão impedequenós,pessoasdehoje,
possamospercebernoantigoOrienterealidadesespecificamentepolí-
ticas,econômicase religiosasondeos homensdaquelaépocanãoas
percebiam,para finalidadesanalíticasou de simplificaçãodidática.
Mas devemoslevaremconta,o-!empotodo,quese tratadeummodo
de vernosso,que nãoé lícitoatribuiraos homensantigos.A faltade
talprecauçãopodeimplicarerrostremendosde interpretação.
Assim,porexemplo,a historiografiadeháalgumasdécadascos-
tumavaexplicara reformareligiosaempreendidapelosoberanoegíp-
cio Akhenaten(1353-1335a.C.)comoalgoanálogoà lutaentreimpe-
radorese papasna IdadeMédia,com motivaçõesmais políticase
econômicasdoquereligiosas.O cultodeumnovodeussolar- Aten-,
surgidona cortejá antesde Akhenaten,e posteriormentesua imposi-
ção comodeus únicodo Egito,seriamformasde reaçãodos faraós
(faraóé títuloatribuídoao rei do antigoEgito)contrao incremento
exageradodo poderpolíticoe da riquezadoclerodasdivindadestradi-
cionais,emespecialo do deusAmon-Ra- incrementoqueteriaocor-
ridoemdetrimentodopodere dariquezadoprópriorei.
Uma tal visãose esquecede que os temploseramparteinte-
grantee inseparáveldo aparelhode Estado.Ao entregarterras,reba-
nhos, barcos,homense outroselementosprodutivosà gestãodos
templose suas burocracias,o rei tomavauma.medidaadministrativa,
umadecisãoou escolhaacercado que lhe pareciasera melhorma-
neira,na ocasião,de gerirtaisriquezas:nãorenunciavanemumpou-
co,porém,a usufruirdessesbens.
É verdadequedelessairiamoferendasaosdeusese pagamen-
tosaos sacerdotese aostrabalhadoresligadosaos santuários.No en-
tanto,numregimeemqueos templosintegravamo Estado,a alterna-
tiva seriaque taisdesembolsos- com todaa atividadecontábilqlJe
envolviam- fossemfeitosem formadiretapelopalácioreal.Outros-
sim,os templosestavamobrigadosa contribuirmuitosubstancialmen-
te paraa manutençãoda famíliareale dacorte,e o produtode suas
terrasera usadopelogovernotambémparacobrirdespesasestatais
quenadatinhamde religiosas.A administraçãodosbensdostemplos
com freqüênciaera confiadapelo rei a funcionáriosque não eram
11
~
sacerdotes;aliás,no Estadoegípcioinexistiambarreirasentreempre-
gos de diversostipos:o generalde hojepodiaseramanhãburocrata,
ousacerdote.
O faraóAkhenaten,comosenhorsupremodos bensdo Estado,
fechouos templose confiscouos seusbens,emseupróprioproveitoe
no dossantuáriosdo seudeusAten,semencontrarqualquerresistên-
cia, já quea concepçãoe a tradiçãoda monarquiaegípcialhedavam
plenodireitode o fazer.Mais tarde,mortoAkhenaten,outrorei rever-
. .teutaismedidase restaurouos deusese suaspropriedades:masnão
como efeito de uma lutaou resistênciado "clerode Amon",ou de
qualqueroutrocorposacerdotal.A impopularidadeda reformatentada
deveter influídona decisão'de encerrara experiência;masfoi só de-
pois deencerradaquese geraram,pordeterminaçãomonárquica,tex-
tose outrasreaçõesdesfavoráveisà mesmae ao reijá falecidoquea
a empreendera.
MONARQUIA ORIENTAL E RELIGIÃO:
A TEORIA DE HENRI FRANKFORT
Já se pretendeudemonstrarque a históriapolíticado Oriente
Próximoantigoestevecaracterizada,emsuaslinhasmaisgerais,pelo
surgimento,primeiro,e depoispelaconsolidaçãodoconceitode"impé-
rio universal".O domíniode um únicomonarcaestendidoà totalidade
daquelaregiãodomundoseria,então,umobjetivosempreperseguido,
emborasó atingido,já no primeiromilênioa.C.,peloImpérioAssírioe
sobretudopelo ImpérioPersa.Este últimoteriarealizadoa ambição
expressa,já noterceiromilênioa.C.,peloreimesopotâmioNaram-Sin
de Akkad(2254-2218a.C.)ao denominar-se"reidasquatroregiõesdo
universo".
Temos aí, na verdade,umavisãoem queo resultadofinal- o
enormeImpérioPersa- é arbitrariamenteprojetadosobreo 'passado,
colorindoa' interpretaçãode realidadesmuitodiferentes.Assim,por
exemplo,nãohádúvidadeque,paraNaram-Sin,as "quatroregiõesdo
universo"se limitavamao sulda Mesopotâmia(ospaísesdeSumere
Akkad),bemcomoao norteda mesmaregiãoe à S,iriasetentrional
(paí~esde Subarru- a futuraAssíria- e Amurru)- zonassobreas
quaiseleexerceuumefetivodomínio.
Se o "impériouniversal"nãoé conceitorealmenteútilparatodos
os períodos,nãohádúvida,noentanto,dequea monarquia- o gover-
12
r
no chefiadoporumreiemcujapessoase encamae sintetizao Estado
- foi encarada, durante toda a longa fase cronológica que considera-
mos,comoo regimepolíticonormaldospovoscivilizados,istoé,dota-
dosde escrita,cidadese templos.É igualmenteindubitávelque,dada
a presençacentralda religiãono pensamentoorientalantigo,todasas
monarquiasdo OrientePróximonelativeramseufundamentoe justifi-
caçãoideológica,emboraem escalavariávele segundomodalidades
tambémdiferentes.
No tocanteà relaçãoentremonarquiae religião,umateoriafor-
mou-sehá meioséculo,propondointerpretaçãode grandeinfluência.
Retomandocertasidéiasjá presentesdesdefins do séculopassado
e iníciosdeste,em obrasde autorescomoJames G. Frazere E. A.
WallisBudge,quese basearamna comparaçãodassociedadespróxi-.
mo-orientaiscom outras,incluindo,proeminentemente,povostribais
africanose de outraspartesdo mundo,HenriFrankforte sua escola
quiseramvernasprincipaismonarquiasorientaisumelementomedia-
dorentrea esferahumanae a divina,entrea sociedade,a naturezae
o sobrenatural.Propuseram,ainda,que se distinguissem,no antigo
Oriente,duasgrandesmodalidadesde soberanos.A primeiraseriaca-
racterizada,precisamente,pelopapelmediadordos reis,e se localiza-
ria nasduasregiõesnuclearesdacivilizaçãopróximo-oriental:Mesopo-
tâmiae Egito.Entreas monarquiasdestasduasregiõeshaveria,no
entanto,uma diferençaessencialquantoàs concepções:Os reis do
Egito, ou faraós,eramconsideradoscomodeusesencarnados,en-
quantoos monarcasmesopotâmicosnãopassavamdeservosourepre-
sentantesdos deuses,por estesescolhidos.A segundamodalidade
monárquica, típica das partes periféricas do Oriente Próximo - Ásia
Ménor,Síria-Palestina,Irã-, seriaa do reiqueé somenteumlíderhe-
reditário,deorigemtribal,formapolíticaqueFrankfortconsideracomo
bastanteprimitiva:umamonarquiafundamentadana consangüinidade
maisdo que em determinadaconcepçãodo lugarocupadopelo ho-
memnocosmo.
Uma tal dicotomianãose sustentabemnos termosemquefoi
proposta,já quetambémnaÁsia Menor,naSíria-Palestinae no Irão
vínculoentremonarquiae religiãoera.patente,assimcomoa função
de mediadorentreo humanoe o divinotambémali se atribuíaaos
reis.Entreos hititasdaÁsia Menor,porexemplo,talcomonaMesopo-
tâmiade maisde um milênioantes,o reierasumosacerdoteconsa-
gradoao cultodos deusesmasculinos,e sua esposa,a sacerdotisa
principaldasdeusas.NumhinodarainhaPuduhepa,esposadeHattu-
shilish 11I(1289-1265a.C.),dirigidoàdeusasolardeArinna,estaúltima
é chamadade "soberanadopaís dos hititas,rainhados céus e da
13
I
terra,rainhade todosos países",ao passoquea soberanaqualificaa
si mesmade "novilhado estábulo"da deusa.Umadoençaqueafligia
o rei e as dificuldadesdo reinohititasão atribuídasà negligenciados
monarcasprecedentesnoserviçoaosdeuses:
QIVERSIDADE NO ESPAÇO
Como os reis de outrora o desatenderam,é coisa que tu conheces, ó
deusa solar de Arinna, minha senhora. Os reis de outrora deixaram,
mesmo, que se arruinassem as regiõe~que tu, Ó deusa solar de Arinna,
minhasenhora, Ihes deste.
Para que o rei e o país prosperem,eis o queprometea rainha,
emseunomee nodomarido:
V0SS0S festivais, ó deuses, que deixaramde celebrar-se,os anuais e os
mensais, celebrar-se-ão em honra vossa, ó deuses. Vossos festivais, Ó
deuses, meus senhores, nunca voltarãoa deixar de celebrar-se. Em to-
dos os dias de nossa vida nós, teu servo e tua serva, vos honraremos.
(AlbertoBernabé,org.)
Apesardo que afirmamoshá pouco,parece-nospossívele útil
opor,quantoao nossotema,deumlado,Egitoe Mesopotâmia,doou-
tro,Irã,Síria-Palestina,Ásia Menor.Mas,parao fazer,é precisocom-
plicarum poucoo quadro,saindodo terrenorestritodasconcepções
político-religiosasparaaquele,maisamplo,das realidades.Pareceób-
vio queas concepç~ssão parteintegrantede tais realidades;longe
estão,porém,deesgotá-Ias.O contrastemencionadosó podeserefe-
tuadoem formaadequadase introduzirmosdois aspectosqueainda
nãoforamtratados:as diferençaseconômico-sociais,quetinhamtam-
bém basesecológicas,entreas diversasregiõesdo OrientePróximo
antigo;e a realizaçãodiferencialdaquiloquese podeexpressarcomo
conceitodeetnia.
Figura 1 (ao lado):Estemapado antigoOrientePróximopermiteverificarcertascaracterísticas
básicas da região; as maioreselevaçõesse encontramao nortee a leste,enquantoa metade
meridionalcontéma maiorpartedas te"as baixas(valesfluviais,desertos).
FONTE: McNeill, William H. e Sedlar, Jean W., compiladores.The ancientNear East. Nova
10rquelLondres,OxtordUniversityPress, 1968.pp. X-Xl.
14
o Egitoantigo,em suapartehabitadadensamente,correspondia
à planíciealuvionalformadapelorioNiloemse,ubaixocurso,ao longo
de quasemilquilômetros.Nela podemosdistinguirao sulo Vale,es-
treitafaixade terrafértilapertadaentredesertos,e ao norteo Delta,
maisvasto,abrindo-seem lequeparao Mediterrâneo.A BaixaMeso-
potâmia,imediatamenteao nortedo golfoPérsico,é tambémumaex-
tensaplaníciealuvional,formadapordois rios:o Eufratesa oeste,o
Tigrea leste.Em ambosos casos,ocorreanualmenteumafertiiizaçâo
naturaldos terrenosribeirinhos.A partirde um longoinvestimentoco-
letivode trabalho,adaptandoe modificandoos dado~naturaisatravés
da construçãodediques,barragens,canais,reservatórios,formaralTl-se
nos valesfluviaisem questão,sociedadescomplexase urbanizadas,
baseadasna irrigação.A agriculturairrigadaé muitoprodutiva,e poris-
to o Egitoe a Mesopotâmiatinhampopulaçõesmuitomaisdensasdo
queas de regiõescomoa Ásia Menor,a Síria-Palestinae o Irã,ondea
irrigação,pelascondiçõesnaturais,só podiaterumpapelmuitolimita-
do,e ondea agricultura- quasesempredependenteda águadechu-
va, às vezesretidaem cisternas- era no conjuntomenosprodutiva.
Este contrasteajudaa entendercertasdiferençasimportantesna or-
ganizaçãopolíticae econômica.
O sistemapredominanteutilizadonoar:]tigoOrientePróximopara
garantira sobrevivênciadas cidades- muitoshabitantesnãoplanta-
vam nemcolhiam- e, nelas,dos gruposdominantese seusdepen-
dentes(famíliareal,burocratas,chefesmilitarese depoisumexército
profissional,sacerdotes,artesãosaltamentequalificados)foi baseado
na imposiçãode tributosemtrabalho(a "corvéiareal")e emprodutos
às aldeias,ondeviviamcamponesesqueconstituíama maioriaabsolu-
ta da população.No Egito e na Mesopotâmia,a grandedensidade
demográficae a fantásticaprodutividadeagrícolapermitiramque,atra-
vés de um tal sistema,'se formassemenormese estáveiscomplexos
político-econômicosem torno,por um lado,do palácioreal,e, porou-
tro,dos templos.O palácioe os templosdevemserentendidoscomo
vastasorganizaçõesque cobriamo conjuntodo território,cadauma
delascontrolandoterras,rebanhos,barcos,oficinasartesanais,depósi-
tos de bensdiversos,trabalhadoresdependentes(escravos,campone-
ses cuja situaçãoera'variada,grupostemporariamentechamadosa
prestara "corvéiareal").Nas duasgrandesplaníciesaluvionais,tais
organizaçõesse mantiverampormilênios,mesmoconhecendoperío-
dosde relativodeclínioe mudançasnopesorelativodo palácioe dos
templos- todosdependentesdo rei e compreendidosno Estado-
quantoaoéontroleeconpmico.
o Sistema
O sistema,em si, não era, no essencial,diferentenas outras
áreasurbanizadasdo OrientePróximo.Mas haviaalgumasdiferenças
básicas.A menordensidadedemográficae agrícolanãopermitiu,ali,o
surgimentode complexostemplários.Haviatemplos:diversamentedo
que ocorriano Egitoe no sulda Mesopotâmia,noentanto,raramente
chegarama controlarvastasriquezasemhomens,terrase rebanhos.A
tributaçãofuncionavasobretudoem proveitodo palácioreal,compará-
velemsuanaturezae organizaçãoaoscomplexospalaciaispresentes
nos valesdo Nilo e do Tigree Eufrates,se bemquemuitomenor.O
paláciodevia,entremuitasoutrasatribuiçõessuas,garantiremforma
diretaa sobrevivênciados cultose dos sacerdotes.Isto levavaa for-
mularemtermosdiferentesa relaçãoentrepoderpolíticoe religião,-ao
comparara Ásia Menoroua Síria-Palestina,porexemplo,ao Egitoe à
Mesopotâmia.Outrossim,nasáreaspróximo-orientaisperiféricas,me-
nospovoadase produtivas,o complexopalaciale os gastosqueimpli-
cava- paragarantira burocracia,o luxodacorte,o culto,as guerras,o
artesanatode alta qualidadereservadoaos gruposdominantes-,
mesmofunéionandoemescalamenordo quea egípciaou mesopotâ-
mica,pesavamproporcionalmentemuitomais,exaurindoporvezesos
recursossociaisdisponíveis.Por isto mesmo,os complexospalaciais
foram,nas regiõesnão-nuclearesdo OrientePróximo,maisinstáveis,
menosduráveisdo que nos valesfluviaisirrigados:a suaduraçãose
conta,emcadacaso,emalgumascentenasdeanos,nãoemmilênios.
Note-seque,numaanálisegeralcomoa nossa,estamosapon-
tandosomenteos fatoresmaiores,em formasimplificada.Na rea-
lidade,outrosdados podiamvir a modificara questão:por exem-
plo os relativosa migrações,invasões,rebeliões,guerras.No en-
tanto,o panode fundoapresentadoajudaa entenderporquedados
comoos mencionados,ao incidiremem certasregiões,destruíamos
sistemaspalacianoslocais- emboraeventualmentesurgissemoutros,
diferentes,depois-, enquantonoEgitoe naMesopotâmiaelesresisti-
ram,reconhecivelmenteos mesmos,à sua incidência,permanecendo
por milharesde anos e transformando-sesobretudopor sua própria
dinâmicainterna.
O outrofatorquequeremosabordar,no tocanteà diferenciação
espacialdas questõesque nos interessam,é o dasetnias.No início
desteséculo,muitosespecialistasachavamquepodiamcorrelacionar
emformasimplesa "raça"- conjuntoestáveldetraçosfísicostransmi-
tidosgeneticamente- e a cultura.A cadaraçacorresponderiam,por-
16 17
tanto,característicasespecífica~'-Ie tipo IIngUlstlco,religioso,inte-
lectuale mesmoquantoaos estilosartísticos.Afastadaa noçãodera-
ça, termoimpossívelde definirsériae cientificamente,e ao qualnão
correspondequalquerrealidade.palpável,prefere-setrabalharagora
com a noçãode "etnia".Uma etniase identificacomoumgrupode
pessoasqueapresentaas seguintescaracterísticas:
1. estar estabelecidoem caráterdurávelnum territóriodeter-
minado;
2. ter 'im comumespecificidadesrelativamenteestáveisde lín-
guae cultura;
3. reconhecera diferençacomrelaçãoa outrasetniasougrupos,
bemcomosuaprópriaunidade(autoconsciência);
4. expressartal unidadereconhecidapor meiode umaautode-
signaçãoou"etnônimo".
Aplicandoesta noçãoao antigoOrientePróximo,achamosque,
apesarde estardivididoemdiversascidades-Estadose deapresentar,
de início,duaslínguasdiferentes(o sumérioe o acádio),os habitantes
sedentáriosda BaixaMesopotâmia,regiãourbanizadadesdefins do
quartomilênioa.C., perceberam-seno conjunto,desdemuitocedo,
comoumaúnicacoletividadeétnicadelimitada,porcontraste,comos
povos nômadespastoresdos desertose montanhascircunvizinhos.
Sublinhavamparasi mesmoso fatode teremescrita,templos,reise
cidades,queosvizinhosimediatosnãotinham.Analogamente,o Egito
tambémmuitocedose percebeucomocoletividadeà parte:emforma
aindamaisexcludentequeos mesopotâmicos(cujosreisse viamco-
m.o"irmãos"ou iguaisdos reisde outrasregiõescivilizadas),os egíp-
ciosse consideravamcomoa únicahumanidadecabal,e os outrosp0-
vos subumanos,naturalmenteinferiorese destinadosà subjugação
pelofaraódivino.
diferente,teorizadaem bases religiosase amplamentedifundida,às
monarquiaslocais,independentementedo territóriovariávelque con-
seguissemcontrolar.Em contraste,as regiõesperiféricaspróximo-
orientaissó conheceramEstadosmeramenteterritoriais- baseados
em federaçõesfrouxase relativamenteefêmerasde cidades,conse-
guidaspelaguerra,portratadose juramentos- ao longodoterceiroe
do segundomilêniosa.C.O surgimentodeEstadosnosquaisse mani-
festasseumaautoconsciênciaétnicafoi,nessasáreasperiféricas,um
fato tardio,quese manifestousomentena Idadedo Ferro,iniciadana
Ásia Ocidentalporvoltade 1200a.C. Daí umafragilidademaiordas
monarquiasem tais áreasnosdois milêniosiniciaisda históriaantiga
do OrientePróximo,apesarde quetambémseusreisbuscassema.le-
gitimaçãoreligiosa.
DIVERSIDADE NO TEMPO
A Formaçãodas Etnias
Em meadosdo terceiromilênioa.C.,quandocomeçamosa con-
tarcomfontesmaisnumerosasdoqueas procedentesdosséculosan-
teriores,tantonoEgitoquantona Mesopotâmiajá aparecemcomcla-
rezao complexopalaciale os complexostemplárioscomobasede um
sistemaeconômico-social,político'ereligioso.
Localizadosno interiordoEstado,palácioe templosrepartemen-
tresi as atividadesbásicas.Veremosnocapítuloseguintequetal sis-
temafoi alcançadoporcaminhosdiferentese mesmoinversose teve,
por muitotempo,evoluçõesdivergentesnasduasregiõesnucleares.
Seja comofor,o sistemaemquestãodominoutodoo conjuntopróxi-
mo-orientalduranteum longo período,até pelo menos 1200a.C.
aproximadamente,adotadoque foi - pelomenosno seuaspectopa-
lacial - em outrasregiõesdaquelapartedo mundo.Em ambasas
zonas nucleares,segundojá foi mencionado,e em outrasmais tar-
de,ele fundamentavao regimequepodeserchamadogenericamente
de "monarquiateocrática"(isto é, de base divinaou religiosa),se
bemquesuasmodalidadesfossembastantedistintasnocasoegípcio
e nomesopotâmico.Na partefinaldoterceiromilênioa.C.tambémna
Mesopotâmiaassistimosà divinizaçãodosgovernantessupremos.In-
dependentementedas diferenças,porém,naquelaszonase emtodas
as outraso monarcaerasempreresponsávelpelaconstruçãoe manu-
tençãodos santuários,e pelobomandamentodos cultosdivinosem
seuterritório.
Em contraste,verdadeirasetniasdemorarammuitomaisa for-
mar-sena Síria-Palestina,na Ásia Menor,no Irã,ondeas condições
ecológicas,a baixadensidadedemográfica,as comunicaçõesdifíceis,
impuseramsérioslimitesa umacentralizaçãoefetivae duráveldopo-
der- presente,pelocontrário,noEgitodesdeo iníciodavidacivilizada
e tentadacomsucessovariáveldesdecedona Mesopotâmia.Embora
os impériosmesopotâmicostenhamsidoefêmerospormuitotempo,
mantinha-sea noçãode uma unidadeétnica,dandouma natureza
18 19
Se o embasamentoreligiosodo poderfoi umatendênciauniver-
sal desdeo iníciono OrientePróximo,tambémo foi o aspectomi-
litardo podermonárquico.Na prática,nemtodosos reisforamguerrei-
ros,mas semprese mantevea noçãodo monarcaidealcomochefe
militarvitorioso,nãosomentecoma finalidadededefendero seurei-
no, mastambémde ampliar-lheas riquezaspormeiodasarmasatra-
vés do saque,do tributoimpostoaos vencidos,dos prisioneirosde
guerraescravizados.
Por fim,a imagemrealformadanoprimeiromilênioda longahis-
tória próximo-oriental,e mantidadepois nos seus traços básicos,
incluíaainda,entreas atribuiçõescentraisdo rei, a administração
e a justiçaemseunívelmaisalto.Comoadministradore juiz,erafun-
ção do monarcafazerreinarno mundodos homensumaordem(que
antesde serhumana,eradivinae natural- já queos deusescoman-
davamo cosmo),que se opunhaàs forçassempreameaçadorasda
desordem,docaos.
No terceiromilênioa.C., alémdo Egitoe da Mesopotâmia,so-
menteduasoutrasáreasaparecemiluminadaspelasfontesescritas
emsuasestruturassociaise políticas:o reinoconstituídoemtornoda
cidadede Ebla (cujosarquivoscomeçarama ser descobertose deci-
fradosem 1975),na Síria setentrional,e o Elam,regiãode transição
entreo suldaMesopotâmiae o planaltoiraniano.
No milênioseguinte,porém,os documentosdisponíveisnosper-
mitemconhecerumpanoramabemmaisamploe diversificado.A Asia
Menore a Síria-Palestinapassamentãoa integraro quadro,de início
divididasnumamultidãodecidades-Estadosindependentes.Daunião
dinástica(istoé, sob uma mesmafamíliareinante)ou da unificação
pelaforçadas armasde diversascidades-Estados,nasceuumanova
estruturaçãopolítica:a dos Estadosmonárquicosfederais.Também
eles tinhamà frenteumsoberanoque,de algummodo,buscavalegi-
timaçãodivinaparao seupoder.No entanto,tratava-sedeum"reidos
reis",já que sob sua suseraniareinavamnumerososreisou príncipes
menosimportantes,os quais,porsuavez,subordinavamcidadesme-
nores.Tais Estadosfederaisapresentavamumaspectomuitomovedi-
ço, ao sabordasguerrase dosjogosdinásticos.Outrossim,eramEs-
tadosexclusivamenteterritoriaise nãoentidadesdefundoétnicoclaro.
O apogeudosistemapalaciaJtradicional(eporvezestambémdo
templário),nas maisantigasregiõesurbanizadascomoaindano caso
dos dois maisimportantesEstadosfederais- o reinohitita,centrado
na Ásia Menor,e o reinodo Mitanni,naSíriasetentrionale nonorteda
Mesopotâmia- foi alcançadoa partirde meadosdosegundomilênio
a.C.,quandose difundiuno OrientePróximoumanovaformadeguer-
rear,baseadaemcarroslevespuxadosporcavalos.Nãosomentesur-
giramgrandesexércitosprofissionais,comotambémse constituiuuma
burocraciaestatalbemmaisnumerosae complexadoquenopassado.
Em funçãodas guerrase alianças,o OrientePróximoviu-sedividido
em grandesblocospolítico::;- sendo-osmaisimportantesos impérios
egípcioe hitita-, comandadospormonarcasque,semprejuízode re-
soiveremos seusconflitosno campode batalhaemcertasocasiões,
trocavamhabitualmenteentresi embaixadas,cartase presentes.Cada
umdestesreiscontrolavaemgraumaioroumenordiversospequenos
reinosou principadosdependentes.Tantoideologicamentequantode
fato, as atividadesprivadas,mesmo quando muito importantes- como
na Mesopotâmia-, viam-sesubordinadasaoEstado,ouseja,aossis-
temaspalaciais(emcertoscasostambémaoscomplexostemplários).
Por voltade 1200a.C.- quando,naÁsiaOcidentalmasnãoain-
da no Egito,teve inícioa Idadedo Ferro.-, abriu-seum períodode
transformaçõesessenciais.Esse períodofoi marcadopormuitosmo-
vimentosde povos,mudançasna tecnologiados transportes(expan-
são do usodo dromedário,permitindoatravessarhabitualmenteos de-
sertosem lugarde contomá-Ios,e especializaçãode povosnômades
no comérciode caravanas;alémda ampliaçãodanavegaçãode longo
cursoe de alto mar,em contrastecom a tímidacabotagemanterior),
generalizaçãodas ferramentasde metal,novastécnicasde combate,
mudançasna distribuiçãodosassentamentoshumanose às vezesem
sua forma.Na novafase,muitosdoscomplexospalaciaisdesaparece-
ram;mas, mesmonos casosem que se mantiveram,já nãopodiam
monopolizar,comono passado,umaparcelatão importantedasativi-
dadessociais.O comércioprivadose tomoumaispresentee variado,
alémde maisautônomo;suas rotase seu raiode operaçõesse fize-
ram maisextensospor terrae por mar.As relaçõesentrepalácioe
templosforamemcertoscasos(o ImpérioNeobabilônico,porexemplo)
radicalmenteredefinidas.
Numprimeiromomento,o vaziode poderdeixadopelaretração
(é o casodo Egito)ou o desaparecimento(é o casodoreinohitita)de
Estadosquemantinhamantesgrandesimpériosconduziuà multiplica-
çãoe a umbreveflorescim~ntodeEstadosindependentesdepequeno
ou médioporte.Exemplodissoforamas cidades-Estadofeniciase fi-
listéias,Israel,os reinosaramaicosda Siria (emespecialo deDamas-
co),que já nãoerammerasexpressõesterritoriais,e simalgoetnica-
menteconsistente.Passadosalgunsséculos,noentanto,a crescente
integraçãopróximo-orientalfoi sancionadapelaformaçãode impérios
bem mais extensosmas,ao mesmotempo,bem mais sofisticados,
sistemáticose coerentesem sua organizaçãodo que os que haviam
20 21
I
.
marcadoa Idadedo Bronze- mesmose suaformaconti.nuavare-
cordandoa dos velhosEstadosfederais,comumGrandeReisu-
bordinandosoberanose potentadosmenores.A legitimaçãodo p0-
der monárquicocontinuavaa passar,comoantes,pela religião,
masemalgunscasos- comonoreinodeIsraele nosdoisEstados
menoresemque.depoisveioa dividir-se- segundoformasinéditas.
O surgimentodeimensosimpérioslevou,ainda,ànecessidadedede-
finira atitudedosGrandesReisemrelaçãoaosdeusese cultosdas
diversaspartesde seusterritórios.Porestasé outrasrazões,o pri-
meiromilênioa.C.apresentaforteoriginalidadequandoo comparamos
àsépocasprecedentes.
2
BAIXA MESOPOTÂMIA
NO MilÊNIO INICIAL DA VIDA
E EGITO
CIViliZADA
o NOSSO TEMA
Não é nosso objetivodescrevera históriapolíticado anti-
go OrientePróximo,e aindamenosa suahistóriareligiosa.Este livro
se destinaa esclareceras relaçõesentrepolíticae religião,noâmbito
da teoria,das concepções,mas tambémnaquele,maisconcreto,de
comolidavamos reiscom os santuáriose seussacerdotes.É óbvio,
entretanto,que não o poderemosfazersem forneceralgumesboço
dasestruturaspolítico-institucionaise religiosasvistasemseucontex-
tohistórico.
- Acabamosde focalizara grandediversidadequemarcaa nossa
temática no espaçoe no tempo. Ela nos força, sob pena de excessiva
superficialidade, a algum tipo de escolha, não sendo possível que
abordemostodosos casosde todosos períodos.Sendoassim,os pró-
ximoscapítulosse ocuparão- notocanteàs relaçõesentreo poderpo-
líticoe a religião- do Egitoe da BaixaMesopotâmianoterceiromilê-
nio a.C.,tomandoportantoas regiõesnuclearesdo antigoOrienteem
sua primeirafase urbanae estatal;do reino hitita,que serviráde
exemplodosEstadosfederaisdosegundomilênioa.C.,de Israel,caso
muitoespecialno quese refereao nossotema,exemplificandoainda
os pequenose médiosEstadosindependentesda faseinicialda Idade
doFerro(passagemdosegundoparao primeiromilênioa.C.).
Postoquetodasas datasde quefalaremossão anterioresà era
cristã,eliminaremosdoravantea expressão"antesdeCristo"(a.C.).
O lONGO CAMINHO EM DIREÇÃO À
URBANIZAÇÃO NA ÁSIA OCIDENTAL
O OrientePróximoasiáticojá conhecia,por voltade 7000,al-
deias neolíticasplenamentesedentárias,ou seja, comunidadesque
baseavamsuasubsistêncianumaagropecuáriaestávele nãomaisna
caça,na pesca e na coleta de plantas selvagens.Quatro mil anos de-
pois,porvoltade.3100-2900,a BaixaMesopotâmiaestavajá urbani-
zada,apresentandoquatorzecidadesmaisimportantesquesubordina-
vamoutrasmenores.e numerosasaldeias.Trata-se,de fato,da mais
artiga regiãodo planetaa urbanizar-se.Por isto mesmo,no Velho
Mundo,constituiu-sena únicaáreaqueefetuouporsi só talprocesso,
semdisporde modelosexternosa quese pudessereferir.Foi preciso,
ao longode quatromilênios,ir ,achandosoluçõesparaos problemas
novosque fossemsurgindo,enquantoo modode vida urbanoiase
consolidando.Por essa'razãoo processofoi tão longo.No Egito,do
Neolíticoplenoàs cidades,passaram-sedois milêniose meio,bem
menostempodo que na Mesopotâmia.No entanto,supõe-seq~eos
egípciospuderamaprendercomo processomesopotâmicode criação
decidades,iniciadoantes.
Note-sequeasprimeirasetapasdo longocaminhoqueconduziu
ao modourbanodevidaestãoapresentadasnaAltamasnãonaBaixa
Mesopotâmia.Esta últimaregião,planíciealuvialdoTigree do Eufra-
tes,só foi ocupadapermanentemen.tea partirdoquintomilênio.Entre
5000e 3500,conheceuumafase,a de Ubaid,emqueo mododevida
22 23
.
era neolítico;a partirde 4500já se fabricavamobjetosde cobre.Os
iníciosda urbanizaçãoe da escritacaracterizarama etapaseguinte,a
de Uruk,de3500a 3100,completando-sea transiçãoà civilizaçãour-
banano períodode Jemdet-Nasr- 3100a 2900-, como qualcome-
çoua ÉpocaInicialdo Bronze.
As cidadesnascentesda BaixaMesopotãmiativeramde enfren-
tardificuldadesconsideráveis.A agriculturade chuvanãoé praticável
na região,cujopovoamentodependedosrios.Tais riosse achamem
vazantenapartedo anoemqueé precisosemear.A cheiatemefeito
fertilizador;masdá-senumaépocaemqueos cereaiscultivadosestão
já crescidose, emsuaviolência,ameaçalevá-Iosderoldãojuntamente
comrebanhose casas.Devia-se,portanto,disporde reservasdeágua
parairrigaçãonosmesesmaissecos,e deobrasdeproteçãocontraos
pioresefeitosdas enchentesfluviais.Estas necessidadeslevarama
um sistemacomplexode barragens,diques,canaisde irrigaçãoe ca-
nais de drenagem,cuja manutençãoe extensãoexigiramenormee
constanteesforço.
A Mesopotãmiatinhaà suavoltaestepeshabitadaspornômades
criadoresa oeste,e a lestemontanhas,povoadasanalogamentepor
pastoresnômades.A planíciefértildo Eufratese do Tigre tinhade
ser-Ihesdisputadacomarmasnamão,já queemmuitasocasiõesten-
tavamnelaestabelecer-seou,simplesmente,pilharos assentamentos
sedentários.Estesúltimos,aliás,tambémcompetiamentresi pelosre-
cursosnaturais:águas,campos,bosq'uesde tamareiras.A metalurgia
nascentenão seria possívelsem a organizaçãode trocasregulares
com o exterior,sendoa BaixaMesopotãmiadesprovidade minérios.
Outrasmatérias-primasainda- pedra,madeira- só poderiamserob-
tidas fora da região.As escavaçõesarqueológicascomprovamque,
desdea Pré-História,tais trocasforamefetuadas,às vezesa distân-
ciasmuitoconsideráveis.
A perguntapertinenteparaa históriapolítico-institucionalda re-
gião é: quemtinhaa responsabilidadede procurarsoluçõesparaos
problemasqueacabamosde resumir?Umarespostacomplenacom-
provaçãodocumentalé impossível,postoque a escritasó apareceu
quandoa urbanizaçãose estavacompletando,e a arqueologianão
iluminafacilmenteos aspectosinstitucionais.Assim, o que vamos
apresentaragoranãopassadeumahipótese.
É nossaopiniãoque três instituições,sucessivamentemaisre-
centes,encarregaram-sede enfrentaras dificuldadesqueapareceram
ao longodo processode urbanizaçãoe, depois,no períodoinicialda
vidajá totalmenteurbana:órgãoscolegiadosderivadosinicialmenteda
organização tribal, mas que sobreviveramà destribalização- já com-
pletana Baixa Mesopotãmiado terceiromilênio,emboradevessem
reapareceras tribosno futuro,em funçãode imigraçõescomoa dos
amoritase a dosca/deus;os templos,entendidostambémcomocom-
plexoseconômicose administrativos,além de teremfunçõesreligio-
sas;e o palácioreal,igualmenteumcomplexocommúltiplasfunções.
O fatode que,no quartomilênio,os edifíciosmaioresemcada
aglomeraçãobaixo-mesopotãmicafosseminvariavelmentetemplosin-
duziua que diversosespecialistaspensassemser aqueles,desdeo
começodo processode urbanização,os órgãosinstitucionaisencarre-
gadosde administraras comunidadesquese urbanizavam.Sãocoisas
distintas,porém,o temploconsideradocomoedifíciodecultoe como
complexoeconômicoe político-administrativo.A primeiracoisa não
implicanecessariamentea outra.Achamosque,emboranasaglome-
raçõesquese transformavamem cidadesaos poucoshouvessesan-
tuários,não existiamaindaos complexostemplários;e que naquela
faseas decisõesmaisimportanteseramtomadaspordoisórgãosque
são atestadosem épocasposteriores,emboracom funçõesdiminuí-
das:o conselhode anciãos(notáveislocaismaisdo quenecessaria-
mentepessoasidosas)e a assembléiados homenslivres(nãosabe-
mosse de todoseles,já que as cidadesemformaçãocertamentejá
nãoeramigualitárias).De início,é possívelquetambémmulheresfos-
sem admitidasa essesórgãoscolegiados,emboratal nãoocorresse
em períodosposteriores.O surgimentodos temploscomocomplexos
político-econômicoscomcontrolesobrea administraçãoocorreuainda
no quartomilênio,comose depreendedas primeirasfontesescritas
decifráveis.Mas o paláciorealcomoentidadediferentedos templos,
delesseparadanoespaço,só apareceu,segundodadosarqueológicos,
emplenoterceiromilênio.
Parece-nosnecessáriopostulara seqüênciaacimaparaexplicar
doisfatosquediferenciama BaixaMesopotãmiado iníciodostempos
históricos- isto é, dos primeirosséculossuficientementeiluminados
por fontes escritas - do Egito da mesma época. Primeiro, estar o sul
da Mesopotãmiadividido,então,em umadúziade cidades-Estados
bemconsolidadase ciosasdesua independência,emcontrastecoma
emergênciado Egitohistóricojá comoum reinocentralizado.Em se-
gundolugar,existia,ao longode milêniosem cadacidadebaixo-me-
sopotãmica,privilégiosfiscais,legaise de jurisdiçãoreconhecidosaos
homenslivresproprietários,vistoscomoumcorpode cidadãosdota-
dos de direitosbem estabelecidos- coisa desconhecidano Egito.
Ambosos traçosdistintivosdosul mesopotãmicose tornamcompre-
ensíveisse se admitira origemtribal- e portantolocale dispersa_
dos primeirosórgãoscolegiadosde poderqueexistiramnas cidades
24 25
~
t
DAS CIDADES-ESTADOS AOS
PRIMEIROS IMPÉRIOS MESOPOTÂMICOS
viviam mercadoresestrangeiros,proibidosde instalar-sena cida-
de amuralhada.O setorurbanoserviade núcleoa um territóriode
extensãovariável,masnuncamuitogrande,quecontinhacidadesme-
nores,povoados,aldeiasnumerosas,campos,pastagens,bosquesde
tamareiras.
Antesde meadosdo terceiromilênio,as instituiçõespolíticasp0-
demser imperfeitamentevislumbradasatravésdepoemasépicos,tex-
tos religiosose algunsoutrostiposde escritos;as fontesliteráriassão
quasesempretardiasmasreferidasàqueleremotopassado.Emcertos
casostambémsão utilizáveisdadosarqueológicos.Estesúltimasde-
monstramqueno inícioda vidaurbananãoexistiampaláciosreaisse-
paradosdos templos.Era no interiordestesque,numaparteespecial
do santuário,residiaumfuncionáriochamadoen ("senhor'),espéciede
sumosacerdotee, nos casosem que fossedo sexomasculino(pois
emcertascidadestratava-sede umamulher),ao mesmotempoencar-
regadoda chefiamilitare de tarefasadministrativas,comoacontecia
especialmenteemUruk.
Algunsautoresachamqueo en era eleitopelaassembléiados
homenslivresda cidade-Estado,queemcertasocasiõestambémp0-
dia eleger- temporariamente,em situaçõesde graveperigoexterno
paraa cidade- univerdadeiromonarca.A monarquiateriasido,então,
ocasional,e eletivaemseusprimeirostempos.Outrossim,o ~eidevia
consultaro conselhoe a assembléiaantesdeempreendercampanhas
militares.Há, poucoantesda metadedo terceiromilênio,sinaisque
alguns interpretamcomoindicadoresda existênciade uma "realeza
sagrada".Nas tumbasreaisda cidademeridionalde Ur, indivíduos,
emcertoscasosidentificadospositivamentecomoreis,foramnaquela
épocaenterradoscom ricadotaçãofunerária,acompanhadosde con-
cubinase serviçaismortosritualmente,costumequenãose manteve
em fases posteriores.Estas diversasindicaçõesesparsassobre as
modalidadesde governantes.supremosna BaixaMesopotâmiasãodi-
fíceis de conciliare parecematé certo ponto contraditórias.Não
está excluídoque houvesseentãoconsiderávelheterogeneidadede
umacidade-Estadoa outra,alémde evoluçõesnotempoquemalp0-
demosadivinhar.
Na segundametadedo terceiromilênio,o títuloen tomara-se
somentesacerdotal.O rei,desdehaviaalgunsséculos,passaraa resi-
dir em um paláciocompletamenteseparadodo temploe já não era
sumosacerdote,emboradesempenhasseaindafunçõesreligiosasim-
portantes,comodepoisveremos.Os títulosquecomumenteaparecem
na documentaçãoda épocasão:ensi,"governador',atribuídoao chefe
de uma únicacidade-Estado;e fugaf,"rei"(literalmente:"grandeho-
nascentes,bemcomoo surgimentorelativamentetardiode instituições
centralizadorase subordinadorascomoos complexostemporáriose a
monarquia.
Do pontode vista lingüístico,a BaixaMesopotâmiado terceiro
milêniodividia-seemduaspartes:a Suméria,aosul,ondepredomina-
vao sumério,línguasemvínculosconhecidosquedeixariadeserfala-
da porvoltade 1900;e o paísde Ak~ad,ao norte,ondese concentra-
vam na sua maioriaos quefalavamo acádio,línguapertencenteao
gruposemitae queviriaa prevalecerem todaa região.No passado,
acreditava-seterem"sumério"e "acádio"conotaçõesnãoapenaslin-
güísticas:taiscategoriaseramvistascomoreunindocaracterísticasra-
ciais,lingüísticase culturaisao mesmotempo.Assim,opunha-seuma
propensão(supostamentesemítica)à propriedadeprivadaà propensão
(queseriasuméria)à economiadominadapelopaláciorealou pelos
templos;ou se pretendiaque os sumériosadoravampersonificações
locaisdeforçasda natureza,enquantoos semitastendiama relacionar
os deusescomo direito,a morale a ordemsocial.Tudoistonãopas-
sa de rematadatolice.As eventuaisvariaçõesculturaisquevenhama
ser percebidasno tempoe noespaço,no tocanteà civilizaçãomeso-
potâmica,deverãoexplicar-sehistoricamentee nãoatravésdopseudo-
conceitode "raça".E, na verdade,o quechamaa atençãona época
queabordamosé sobretudoa homogeneidadeculturalmesopotâmica,
apesar dos dois domínios lingüísticosexistentes- aliás, difíceis de cir-
cunscrever.
Em todaa BaixaMesopotâmia,quando,porvoltade meadosdo
terceiromilênio,as fontesmais abundantespermitem-nosenxergar
com maiorçlarezaa situação,encontramoscidades-Estadosindepen-
dentes.Cada umadelas,em seusetorurbano,compreendiatrêspar-
tes:a cidadestrictosensu,amuralhada;o queos sumérioschamavam
de "cidadeexterna",situadaforadosmuros,queentremeavazonasre-
sidenciais,terrascultivadase estábulosque,ao que parece,perten-
ciamaos residentesdascidades(o queexplicariao aparecimentotar-
dio, nestasúltimas,dos mercadosde víveres);e o porto-fluvialquase
sempre,aindaquefreqüentadoporbarcosquetambémnavegavamno
golpo Pérsico -, onde se concentravao comércioexteriore onde
26 27
mem"),reservadoao líderqueconseguisseestendersuaautoridadea
váriascidades-Estados,cujosens;passavama sersubordinadosseus.
A verdadeiramonarquia(nam-Iugal)exigiao controleda cidadede
Nippur,cujo santuárioera o centroreligiosoda Suméria,e erasacra-
mentadapelo títulode "rei de Kish" (cidadeque, segundoparece,
exerceraa hegemoniano períodoiniciadoporvoltade 2900ou,como
diriam,os sumérios,"depoisdo dilúvio").O comandomilitar,necessá-
rioà defesado territórioe dasrotascomerciaisbemcomoà conquista
e ao saque,foi fatoressencialno surgimento.de umamonarquiaper-
manentehereditáriae separadados templos.As funçõespolítico-ad-
ministrativasdestesúltimos,comotambém.as do conselhoe da as-
sembléia,diminuíramà medidaquese consolidavao podermonárqui-
co. O títulodeens; ligava-seestreitamenteàs atividadesadministrati-
vase especialmenteà supervisãodasobrasde irrigação.
A partirde meadosdo terceiromilênio,o particularismodascida-
des-Estadosdá a impressãodechocar-secomumaconsciênciaétnica
unitáriana BaixaMesopotâmia,servindoestade basea hegemonias
cadavez mais extensas,que acabaramdesembocandoem impérios
efêmeros,mascrescentementecoerentesem suaorganização.O pri-
meirode tais impériosfoi criadoporSargãoI, de Akkad(2334-2279),
que unificoua Mesopotâmiae seus arredoresimediatos,fundando
umacapital,AkkadouAgadé.Exerceuumdomíniomenosdiretosobre
regiõesmaisdistantes,sobretudoparamantere ampliaras rotasque
abasteciama BaixaMesopotâmiaemminérios,pedrae madeira,além
de artigosde luxo.A nomeação- aindaquenãoemtodasas cidades
dominadas_de govemadoresacadianos,em muitoscasosparentes
do rei,pretendiadiminuira autonomiadascidades-Estados.O exército
foi ampliado,assimcomoo palácioreal como máquinaburocrática:
Sargãose gabavadequemaisde cincomilhomenscomessemà sua
mesatodosos dias.Mesmoassim,o impérioacádionãoduroumuito,
emfunçãodas revoltasinternase dosataquesexternos,desaparecen-
dodevez,depoisdeumlongodeclínio,em2154.
. Outro impérioefêmerosucedeua um períodode descentraliza-
ção e de domínio de estrangeiros- os gútios provenientesdo leste,
dos montesZagros- sobreparteda BaixaMesopotâmia.O novoim-
pério,tendoà frentea terceiradinastiada cidadede Ur,existiuentre
2112e 2004.Foi notávelporseumarcantecontroleeconômico.De iní-
cio compreendeua Mesopotâmiainteirae algumasregiõesexteriores.
Cedo, porém,começoua desintegrar-se.Isto ocorreuapesarde pre-
cauçõescomoa separaçãoentreo podercivile o militarnascidades
dominadas,um sistemade guamiçõespossibilitadopor um grande
exército(caracterizado,em especial,pornumerososmercenáriospro-
venientesdo Elam,regiãoquefaza transiçãogeográficaentrea planí-
cie baixo-mesopotâmicae o montanhosoIrã),umbemorganizadocor-
reio real,um sistemade remuneraçãodos burocratasatravésde ra-
çõese de terrasdadasem usufruto,esforçosemdireçãoa certaunifi-
caçãoda legislaçãoqueincluírama promulgaçãodaprimeiracompila-
ção importantede precedentesjudiciáriosou "julgamentostípicos"fei-
ta na Mesopotâmia:as leis de Urnammu,fundadordo império.Tam-
bémnestecaso,o impériosucumbiuàs rebeliõesinternase aos ata-
ques vindosdo exterior.as campanhase imigraçõesdos amoritas
(nômadessemitasprovenientesdo oeste)e os ataquesdoselamitas,
quedestruírame saquearama cidadede Urem2004.
Não obstanteo caráterefêmerodestesimpérios,ao terminaro
terceiromilênioo regimemonárquico,centradonopalácioreal,estavabemconsolidadoe apresentavacontornosinstitucionaisnítidosnaMe-
sopotâmia.No interiordo Estado,o paláciose tornaraeconômicae
politicamentemuitomaisimportantedo queos templos.No entanto,
aindaduranteos períodosde apogeuimperial,o podermonárquico
nuncase aproximoudo modeloautocráticoegípcio.Mesmoreisque
ousaramintitular-se"deuses"reconheciamsuadependênciaparacom
as grandesdivindadessumero-acadianas.E os homenslivresmais
importantesconstituíam,em cadacidade,umcorpode cidadãoscom
direitosreconhecidos.O papellegisladordoreimesopotâmico,inaugu-
radoem escalamaiorpor Urnammu,supunha,aliás,comodestinatá-
riosdos códigoslegaispromulgados(ou,maisexatamente,dascole-
çõesde jurisprudência),cidadãosquetivessemexistênciaprópria,não
sendoexclusivamentesúditose dependentesdo rei.O objetoda pro-
mulgaçãoera,de fato,tentarregularas relaçõesdoscidadãosentresi
e como Estado,alémde demonstrarqueo monarcacumpriasuafun-
ção de promovera justiçanos territóriossobsua administração.Um
dos sinaisde quea autonomiadoscidadãoserareconhecidafoia ma-
nutençãoda assembléiae do conselhonasdiversascidades,mesmo'
quandoseuspoderesforamdrasticamentereduzidos.
OS DEUSES E O CULTO
Algunselementosda evoluçãodas crençasmesopotâmicasno
tempopodemserdetectados.Enquantoalgunsdeusesestãocompro-
vados desde 'muitocedo - Anu, Enlil, Enki... -, outros foram adotados
maistardiamentenaregião,comoDaganouAnnunítum.Há exemplos,
28
29
r-
'ainda,de personagenshoje consideradashistóricasdivinizadaspos-
tumamente,comoo en Gilgameshde Uruk.E podemserpercebidas
mudançasna formade encarare conceberas divindades.Inanna,de
iníciomuitopróximadaGrandeMãepré-históricaemsuaqualidadede
deusado amore da fertilidade,adquiriuposteriormentetambémum
marcadocarátermilitar.O surgimentoda monarquiaestávele heredi-
tária,de hegemoniase impérios,foi projetadono mundodosdeuses,
imaginadosa partirde meadosdoterceiromilêniocomomembrosde
um Estado organizado e hierárquicoem que Anu - ou,emcertosca-
sos,Ehlil- presidiao conselhoe a assembléiadivinos.Emespecial,as
transformaçõespolfticashumanasinfluenciaramo mitododeusNinur-
ta,guerreirodescritocomocomandantedeumexércitopermanente.
Umahistóriasuficientementecompletada religiãomesopotâmica
no terceiromilênio,sobretudoem sua primeirametade,nãopoderia,
porém,serescrita,dadoo estadofragmentáriodas fontes,muitasdas
quais,aliás,foram-nostransmitidasem versõesbemtardias.Tratare-
mosde fazerumacurtadescriçãoquese aplicaespecialmenteà parte
finaldo milênio,quandoos cultoslocaisjá haviamsidoreunidosnuma
visão de conjunto- não de todo coerente,porém,paranosso modomo-
demode ver,poisa religiãosumero-acadiana,comotodasas religiões
não-reveladas,evoluíaemformamaislivree complexado queas reli-
giõesreveladasposteriorescomoo cristianismo,o islamismo,etc.:
Desenvolvimentos locais sob pressão polftica.crescimentos inacabados
e mutações de origem incerta fornecem,em qualquermomentodado do
tempo,o que pode ser considerado um conglomeradoelástico,para usar
um termo geológico. Numa visão diacrõnica, tais transformações são de
complexidade multiforme,nunca vista, desafiando a análise e mesmo a
identificaçãode seus componentes.(A. Leó 'Oppenheim)
Umadasexplicaçõesde tamanha complexidadeé que, mais do
que de "religião",deveríamosfalarde "religiões".Por umlado,o cará-
ter localmentevariáveldascrençase cultosnuncase perdeude todo.
Por outrolado,há três níveisa considerar:a religiãosacerdotaldos
templos,centradano serviçoà imagemdivinaem seu santuário,es-
tandoeste fechado,na sua maiorparte,à imensamaioriadas pes-
soas;a religiãomonárquica,quese referiaàs funçõesreligiosasreser-
vadasao soberanoe dependiatambémdas preferênciasde cadarei
em matériade cultos;e a religiãodoshomenscomuns,quesó partici-
pavamde longeou comoespectadoresda maioriadas grandesceri-
môniasreligiosasoficiaise freqüentavamusualmentepequenasca-
pelassituadasemzonasresidenciais.Quasenadase sabedareligião
30
-
popular,bastantemaisacercada religiãodos templos,aindamaisda
religiãomonárquica,bemservidadefontes.
As maioresdentreas numerosasdivindadessumero-acadianas
eramAnu {emacádioAn),senhordaabóbadaceleste,Enlil,senhordo
ar queseparao céudaterra,Enki(emacádioEa),senhordaságuase
umaespéciede heróiculturalencarregadodeordenara naturezae o
mundodos homens,a deusaNinhursagou Nintu,mãecósmica,além
de trêsdeusesidentificadoscomastros:o deusdaLua,NannaouSin;
o Sol, Utu (emacádioShamash),filhode Enlil;e a deusado planeta
Vênus,Inanna(emacádioIShtar),senhorada fertilidadequese tomou
esposadeAnu mastambémestavaassociadaa DumuziouTammuz,
que algunscrêemser um mortaldivinizadoe que,comodeus,repre-
sentavaa m'ortee ressurreiçãoanuaisda natureza.Estassetedivin-
dades(nãoincluídoDumuzi)constituíamo equivalentedivinodo con-
selho de anciãose presidiama assembléiados cinqüentadeuses
maiores,ouAnunnaki("filhosdeAnu").
Cada grandedeusou deusa,emborafosseobjetode cultoem
todaa Mesopotâmia,"residia"no seu santuárioprincipal,situadoem
uma só das cidades-Estados:assim,o Eannaeraa casa de Inanna,
em Uruk;o Ekur,a de Enlil,emNippur;o Ekishnugal,a de Nannaem
Ur,etc.Habitualmentecomseucônjuge,filhose outrasdivindadesas-
sociadas,o deusou deusaprincipalda cidadetinhanograndetemplo
localo seupalácio,e ali a sua imagem- sendo os deuses mesopotâ-
micos sempre representadosem forma humana - recebia duas refei-
ções diárias,roupas,adereçose outrasoferendas,juntamentecomas
imagensdosmembrosdivinosdesuafamíliae desuacorte.
Os cidadãoscomunsnão tinhamacessoàs parteslTIaisíntimas
dos templos,consideradas,comoos aposentosdodeusda cidade.As
estátuasdivinaseramvisíveisparaa massado.povounicamentenas
festasemquesaíamemprocissão.O fiel pOdiaserautorizado,entre-
tanto,a.dedicarsuaprópriaestátuanaposturade alguémquereza,a
qualeraentãopostanapresençadivina.
Os melhoresanimaissacrificados,as melhorescomidase bebi-
das encaminhadasao templo,destinavam-seà mesa portátilpos-
ta diantedas imagensdivinasduasvezespordia;masumaquantida-
de muitomaiorde vitualhasganhavadiariamenteos santuários,para
alimentaçãodos sacerdotese outrosdependentesdos deuses(arte-
sãos,músicos,trabalhadorese serviçaisdiversos,etc.).O cultodiário,
com seu acompanhamentode orações,não esgotavaas obrigações
sacerdotaismaiores:havianumerososfestivaisreligiososao longodo
ano;em algunsdos quaiso reideviaparticiparpessoalmente.Os sa-
cerdotesorganizavam-sehierarquicamentee segundoumaestritadivi-sãodotrabalho. '
31
Ao ladodosaspectoscentraisdareligião- cultodiário,festivais-,
outrosexistiam.O domíniodos mortos,vistopeloshabitantesda Me-
sopotãmiacomo lugaratroz,era governadopelo deus Nergale sua
esposaEreshkigal,tambémassociados,ao ladode numerososdem~
niose de almasnãoapaziguadasporoferendasdosparentessobrevi-
ventes,às pestese doenças.Aplacá-Ios,afastando-osdosafligidospor
enfermidadesou possessões,propiciaro bomandamentoda natureza
e da vidasocialou individualapelandoaosdeuses,procurarauscultar
a vontadedivina,eramtarefasque os sacerdotesexecutavamtanto
parareisquantoparaplebeusatravésdamagia,deexorcismos,desa-
crifíciospropiciatórios,de técnicasdiversasde adivinhaçãoe de inter-
pretaçãodossonhos.
A virtude,a justiçae a ética,comumenteassociadasa Utu ou
Shamash,o deussolar,nãopodiamgarantirumavidafeliz no além-
túmulo.A noçãode umjulgamentodosmortosdesenvolveu-sepouco.
Era sobretudonestavidae nestemundoquea religiãobuscavafun-
damentaros princípiosde justiça,eqüidadee piedade.As doençastra-
zidaspor demõnioseramvistascomopuniçãode algumaofensavo-
luntáriaou involuntáriacontraos deuses,ou contracertasregrasdo
convíviosocial.Mas a ofensaao deustantopodiasermoralquantori-
tual.Eis aqui algumasdas perguntasque constamde um textoque
deveriaserlidopeloexorcista:
Pecou ele contraumdeus?
É a sua culpa contrauma deusa?
Trata-se de uma má ação para com seu senhor,
ou de ódio para com seu irmãomais velho?
Desprezou ele o paiou a mãe? (...)
Usou ele pesos falsificados?
Fixou ele umfalso limite[nos campos] ? (...)
Apoderou-se ele da esposa de um vizinho?
Derramouele o sangue de um vizinho? (...)
(Jacquetta Hawkes)
Emépocasposteriores,doismilanosdepoisdoperíodoqueaquiexaminamos,houve,semdúvida,umdesenvolvimentomaiordaética
mesopotâmicadebasereligiosa.Nosmitossumero-acadianos,noen-
tanto,os própriosdeusescometiamatosdeestupro,adultério,ciúme,
engano,roubo,assassinato,embriaguez,etc.,semqueaparentemente
istoescandalizasseosfiéis.Afinal,dalistadeumacentenademes-
elementosouleiscriadospelosdeusese julgadosnecessáriosparaa
boaordeme a continuidadedouniverso- constavamaprostituição,a
inimizade,a destruiçãodecidades,a falsidade,o terror,o combate,
tantoquantoo sacerdócio,a bondade,a justiça,a pazouasabedoria...
32
A MONARQUIA E OS DEUSES NA
BAIXA MESOPOTÂMIA DO TERCEIRO MILÊNIO
Na concepçãomesopotâmicadouniverso,nãoháqualquerdes-
continuidadeentremundohumano,mundonaturale mundodivino.
Nãohá,ainda,oposiçãoentreentesanimadose coisas inanimadas,
poistudoé animado,dotadodevontade,portantosuscetívelderes-
ponderaoshomensdepessoaa pessoa.Istoporqueosdeusescria-
ramo homeme o universocomtudoquecontém,incluindotodasas
regrasdefuncionamentodocosmoe dacivilização,econtinuamadi-
rigire darcoerênciaàsuacriação.Inexistemcortesoufraturasasepa-
raro social,o naturale o divino,havendopelocontráriototalhomoge-
neidadedeprincípiose funcionamentoentretais níveisdarealidade.
Tambéma monarquiaé umacriaçãodivina.Trata-sedoprimeiro
e maisimportantedoselementosouleisuniversais(mes)."Arealeza
desceudocéu",diz-nosa ListaReal Suméfla;nao uma,mas duas
vezes.Com efeito,a primeirahumanidadeirritaraosdeuses,cuja
assembléiadecidiu.eliminá-Iapormeiododilúvio,umainundaçãode
que escapou,poraçãodo deusEnki,o reiZiusudra(maistarde,cha-
madoUtinapishtim)de Shuruppak,juntamentecomsuaesposa_
constituindoambosasementedeumanovahumanidade.Apóso dilú-
vio,"a realezadesceude novodocéu",instalando-se,primeiro,naci-
dadedeKish.
Os homensforamcriadosparao serviçodosdeuses.Já antesdo
dilúvio, o deus supremo- o textosumérioquese refereao dilúviodei-
xanasombrasesetratadeAnuoudeEnlil- fundoupessoalmenteas
cinco primeirascidades-Estados,deu-Ihesos seus nomes,e atribuiu
cadaumaa umadivindadecomocentrodeseuculto:
A primeiradestas cidades, Eridu, ele deu a Nudimmud[Le.,EnkiJ, o Ifder;
a segunda, Badtibira,ele deu a Latarak;
a terceira, Larak, ele deu a Endurbilhursag;
a quarta,Sippar,ele deu ao heróiUtu;
a quinta,Shuruppak,ele deu a Sud [Le. Ninlil,esposa de Enlil].
(James. B. Pritchard)
33
1
DivindadesLocais
Analogamente,no mundo pós-diluviano,cadacidade-Estado
"pertencia"aodeusoudeusaqueali ocupavao temploprincipal.Os
seushabitantes- e em primeirolugaro principaldentreelesporsua
posição,fosseo seutítuloen,ensiou fugal- existiamparaservirà di-
vindadelocal.Os governantessupremossão representadosàs vezes
carregandoà cabeçamateriaisdeconstruçãoparaelevarou repararb
templomaiordesuacidade:umexemploantigoé o do fugafUrnanshe
deLagash(2494-2465).
Em troca,a divindadeconcediaao reio ofíciomonárquico.Mes-
moos conquistadores.efundadoresde impériosreconheciama origem
divinado seu poder.SargãodeAkkad(2334-2279)declarou,emuma
inscriçãode Nippurde quetemosa cópiaemumatabuinhade barro,
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~UI:'''J>ÚM;';~/~'~~N~";';,""'~;~1.~~~~~~
Figura 2: RELEVO DE ANUBANlNI: Este bai)(()-relevovemdos limitesorientaisda Mesopotâ-
mia (montesZagros),mas está dentroda tradiçãomesopotâmica:o monarcavitoriosodo povo
montanhêsdos lullubiatribuiuà deusa da fertilidadeInanna(de cujo corpobrotamplantas)a
sua vitóriasobre inimigosaprisionados.Note-sea diferençade escalana representaçãodo rei
e da deusa,por umlado, e dos vencidos.por outro.
FONTE: Wiesner,Joseph. Orienteantigo.Lisboa, Verbo,1968,p. 48.
ser "reide Akkad,capatazdeIshtar,reideKish,sacerdoteungidode
Anu, reido país,grandeenside Enlil",alémde afirmarque Enlil lhe
concederatodosos territóriosentreo Mediterrâneoe o golfoPérsico.
Por suavez,o primeiroreida terceiradinastiadeUr,Urnammu(2112-
2095),disseno prólogode suasleisqueerareideUr,deSumere Ak-
kad"pelopoderde Nanna",o deuslunarde Ur,e que"deacordocom
a verdadeirapalavrade Utu"(o deussolar)é queele"estabeleceua
eqüidadenaterrae baniua maldição,a violênciae a luta".O monarca
é um agenteda ordem,masa ordemeacimade tudocósmica,ela
vemdosdeuses. .
Vínculos Estreitos
Os vínculosentreo'rei e a esferadodivinoeramestreitos.O so-
beranodeclarava-seàs vezesfilhodiletode umadeusa,e queestao
amamentara,sem que isto representasseverdadeiradivinizaçãoda
pessoareal.Urnammu,porexemplo,dizia-se"filhonascidodeNinsun,
suaqueridamãequeo levouno ventre".Outrossim,o reitinhadireito
às "sobras"do deus,ou seja,eram-lhedestinadasas refeiçõespostas
dLiasvezespordiadiantedaprincipaldivindadedacidade,depoisque
estaas consumiamisticamente.SargãodeAkkadinaugurouumoutro
traçode uniãocomo mundodivino,a tradição(queduroumeiomilê-
nio) de que a filhado governantesupremose tornassesacerdotisa
principaldodeusNannaouSindacidadedeUr.
Vimos anteriormenteque as transformaçõespolíticashumanas,
emespeciala consolidaçãoda monarquiae a formaçãodosprimeiros
impérios,tiveraminfluênciana concepçãodo mundodivinocomoum
Estadocósmico.No entanto,estamaneirade ver,umavez formada,
porsua vez se refletena teoriaao mesmotemporeligiosae política
acercados poderesterrestres.Cadadeusmaisimportantefoiencara-
do comouma espéciede cidadãodo Estadocósmicopresididopor
Anu e Enlil;a "sua"cidade-Estadoera,nestemundoterrestre,o domí-
nio de onderetiravacomida,roupae alojamento.Os cidadãoslocais,
seusservidores,participavamde sua riqueza,ou seja,a prosperidade
humanaapareciacomoumsubprodutodaab.undãnciaqueo deuspro-
piciavaà sua cidadeparaseusprópriosfins pessoais.O Estadohu-
manofuncionavacomoprolongamentoou setordo Estadocósmico,
divino. Em nome do deus da sua cidade - ou, nos períodos imperiais,
do deusda cidadecapital- o monarcagovernava,julgava,agia,com-
batia.Em outraspalavras,teoricamenteo reinãopassavadecapataz,
mordomoou representanteda divindade,e assimo reconheciaem
34 35
1
seustextos.· Isto implicavaa necessidadede consultapermanente
dosdesigniossupremosdo deus.Antesde decidir-see agir,o reime-
sopotâmicoconsultavae interpretava,por meio dos sacerdotes,as
mensagensdivinasque lhe chegavamnos seusprópriossonhos,na
formade acontecimentosportentosos,inscritasnas entranhasdos
animaissacrificados.Com o tempo,verdadeiroscatálogosde interpre-
taçõesdessessignosda vontadedivinaforamcompiladosparaservir
debaseàs consultas.
Note-seque podeser perigosoestenderem formaexcessivaa
teoria,confundindo-ade todocoma realidadesocial.Pretendeu-sehá
algumasdécadas,porexemplo,queemmeadosdoterceiromilênioos
templos- e portantoosdeuses- fossemosproprietáriosefetivosde
todasas terrascultivadasde cadacidade-Estado:foia teoriada"cida-
de-templo".Istodemonstrouser falso,e aliás nãoé algo necessário
paraquese cumpraa concepçãoideológicade umapropriedadeemi-
nentesupremada divindadesobrea cidade.Domesmomodo,o avan-
ço progressivodo paláciorealsobreas terrase rendastributáriasdos
templos,mesmose emcertasocasiõesfoi vistocomoumabusoa ser
corrigido- por exemploe sobretudonos textosacercadas reformas
passageirasdoensiUrukaginadeLagash(2351-2342)- acabouporse
cumpririrrevogavelmentesem,no entanto,afetara teoriadeseremos
deusesos "donos"do mundodos homens.Estanãopassavade uma
concepçãoteórica,cujocoroláriopráticoera,simplesmente,queos go-
vemantessupremostivessemsempreo cuidado(comodefatotinham)de agiremnomedosdeusese degarantiradequadae generosamente
os seussantuáriose o seuculto.
A continuidadequese pressentiaentreos níveishumano,natural
e divinoda realidadeconduziua queo rei- como intermediáriodesig-
nadopelosdeusesentreeles mesmose os homens- participassede
umfestival,estranhoe curiosoparanósmodemos,destinadoa liberar
os poderescósmicosda fertilidade,'isto é, a garantiranualmentea
cheiados rios,a germinaçãodoscereais,a multiplicaçãodos homens
e dos rebanhos.Referimo-nosao matrimôniosagrado,cerimôniaem
queo monarca,encarnandoumdeus,unia-se,umavezporano,a uma
sacerdotisaquerepresentavaa deusada fertilidade,Inannaou Ishtar.
O festivalem questãosó está solidamenteatestadoa partirdo início
do segundomilênio,masa maioriadosespecialistaso consideramui-
to antigo,ligando-semesmo,talvez,aocultopré-históricodadeusada
Terra,a GrandeMãe. Os textosacercade tal cerimônianãodeixam
dúvidassobreas finalidadesda mesma.Numdeles,diza oraçãodiri-
gidaà deusa,referindo-seao reia quemelase vaiunirritualmente:
36
Possa eletornaros camposprodutivoscomoo cultivador,
Possaelemultiplicaros rebanhoscomoumpastordeconfiança.
Sobseureinado,quehajaplantase grãos,
Que,norio,hajaáguadesobra,
Que no campopossa haveruma segundacolheita[literalmente:grão
tardio),
Quenopântanohajapeixese os pássarosfaçammuitoruído,
Quenoscaniçaiscresçam,altos,os juncosvelhose novos,
Quenaestepecresçam,altas,as árvores,
Quenasflorestasos cervose cabrasselvagenssemultipliquem,
Queojardimirrigadoproduzamele vinho,
Quenossulcosas alfacese verdurascresçamaltas,
Quenopaláciohajalongavida,
QueaoTigree aoEufratesa águadacheiasejatrazida,
Que em suas margensa erva cresça alta,e possamos pradosser
cobertos,
Que a sagradarainhada vegetaçãoacumuleo grãoem altosmontes
e pilhas,
Ó minharainha,rainhadouniverso,a rainhaqueabarcao universo,
Queeledesfrutedelongosdiasemteuregaçosagrado!
(Pritchard)
Num tal contexto, que significou a divinização do próprio rei,
qcorridanos séculos finais do terceiromilênio? Com efeito, Naram-Sin
(2254-2218),neto de Sargão de Akkad, assumiu em suas inscrições o
título de "deus de Akkad" e o de "espOso de Ishtar-Annunítum".Mais
tarde, o segundo rei da terceira dinastia de Ur, Shulgi (2094-2047),
também se divinizou em vida, no que foi imitadopor seus sucessores,
sendo que, neste caso, organizou-se um verdadeiroculto em que a
imagem real recebia oferendas em templos e capelas como qualquer
outra divindade.É possível que a divinizaçãodo rei - aliás passageira
em termos do conjunto da história da Mesopotâmia - não manifestas-
se a intençãode apontaruma mudançade naturezado monarca,mas
sim de função: com a construção imperial,o rei passava a desempe-
nhar um papel no mundo muito mais amplo e exaltadodo que no pas-
sado, e por tal razão comparávelao dos deuses. É também razoável
pensar que se visse numa tal decisão a apropriaçãodireta, pelo rei,
das funções judiciárias e legislativas divinas, encarregando-se o
soberano, pessoalmente, do conjunto de compromissose oprigações
que dava forma à vida social (assim, por ocasião da celebração de
contratos,as partes e testemunhasdeviam jurar pelos deuses e pelo
rei divinizado).
Por fim, não se exclui a tentativade criar um laço diretode leal-
dade entre o monarca e os súditos de impérios heterogêneos,nos
37
1
quaiseramfortesos elementosdispersivos.Seja comofor,mesmoos
reis divinizadosem vida proclamaramsua submissãoe serviçoaos
grandesdeusessumero-acadianos,aosquaisnãobuscaramequiparar-
se e quecertamentenãoqueriamsubstituir.
Sistemas Locais de Poder
o SURGIMENTO DO ESTADO FARAÔNICO NO EGITO
Existemprovasindiretasda presençade sistemaslocaisde p0-
derjá consideráveisalgumascentenasdeanosantesdaunificaçãodo
país:existênciade artesãosde alta qualificaçãoproduzindograndes
quantidadesdeobjetoscerimoniaise de vasosde pedrasdurasou de
alabastro;presençade celeirosde grandecapacidade;passagemdo
cobremarteladoa frio à metalurgia,o que supunhaa exploraçãode
minas,o transportee armazenagemdo minério;construçõescomoas
de Hieracômpolis,queexigiramparasuaereçãoalgumsistemadedis-
tribuiçãode raçõesaos trabalhadorese, portanto,algumsistemade
tributosquepermitissearmazenarexcedentesdecereais.
As obrasde irrigação,entãoincipientes,eramda alçadalocale
regional,nãopodendoser consideradascomocausadiretada forma-
ção do Estadocentralizado.Elas parecemmuitoligadas,porém,à
formaçãode cercade quatrodezenas(umpoucomenosno início)de
entidadesterritoriaisregionais,os spatOunomos,quemaistardefun-
cionariamcomoprovínciasdo reinounificado.É possívelimaginarpri-
meironosnomoso aparecimentodasrelaçõesurbano-ruraisnascentes
e o surgimentoemcaráterpioneirode núcleospolítico-territoriaisdefi-
nidos,cujo,conflitodeveterdesembocadoemconfederaçõescrescen-
tes e, porfim,no reinodo Egito,duplomasunidosobumúnicomo-
narca.SegundoJean Vercoutter,desdeo Neolíticofoi tomandoforma
a separaçãoentredoisblocosculturais:umdelesse situavaemvolta
do Fayum(baciado lagoatualmentechamadoBirketKarun,a oeste
do pontoem queo Valee o Deltado Nilose unem)e nos limitesdo
Deltaa noroeste,massemchegaratéo Mediterrâneo;o outro,noVale
do Nilo entreAssiut e Tebas.A diferenciaçãoculturalcedeulugara
umafusão,formando-seumacivilizaçãoúnicapoucoantesdaunifica-
ção.Objetosquese estendemnotempodofinaldoperíodoPré-Dinás-
ticoatéa primeiradinastiahistóricaparecemindicarligaçõesdoEgito
com a Baixa Mesopotâmiana fase de aproximadamente3100até
2900.Algunsautores,comoWalterEmery,nãohesitaramembasear-
se em tal fato arqueológicoparafalarem uma"raçadiná~tica"que,
vindado paísdo Eufratese doTigre,invadirao Egito,trazendoa civili-
zaçãoe mesmoa unidadepolítica.Esta teoriaestáhojedesacredita-
da:a civilizaçãoegípciatemprofundasraízesafricanas,emborasem
dúvidatambémrecebesseinfluênciasasiáticasemgerale mesopotâ-
micasemparticularatravésdastrocasde longadistância.
/
Entreo Neolíticoplenoe o surgimentodoreinounificadose pas-
saramno Egitodoismilêniqse meioou mesmo,segundocertosauto-
res,doismilêniossomente,entre5000e 3000.A partirda fasede el-
Badari(4500-4000,mastaisdatassão muitoinseguras),que inaugura
o chamadoPeríodoPré-DiQástico,já surgemno registroarqueológico
algunsobjetosde cobremartelado,peloqualfala-seàs vezesde Pe-
ríodoEneolítico:a verdadeé, porém,quepormuitotempoo modod~
vidadas aldeiasneolíticaspermaneceuinalteradoportal inovação.E
sobretudonosúltimosséculosdo Pré-Dinástico- os quaiscorrespon-
demao finaldo quartomilênio- quemudançassociaismaiorespas-
sam a ser perceptíveisa partirda arqueologia,caracterizandoa fase
gerzeenseou de Nagada 11. /
O sítio arqueológicode Hieracômpolis,bemao sul do Vale do
Niloegípcio,ti,nhano finaldo Pré-Dinásticoumapopulaçãoimportante
que se estavaconcentrandoem aglomeraçõesfortificadas,numare-
gião que contavatom um temploprestigiosoe comboascondições
paraa irrigaçãobaseadanostanquesoubaciasformadase fertilizadas
naturalmentepelorio. Istoatraíatal população,numaépocade dete-
rioraçãoclimáticaque fez abandonarcadavez maisas antigaseste-
pes saarianasque atravessavamradicaldesertificação.A diversifica-
ção dos grausde riquezadas tumbasmostra,nasegundametadedo
quartomilênio,umapopulaçãosocialmenteestratificadae já nãoigua-
litária.Há sinais,também,deconflitoscoma Núbia(quenãopassada
continuaçãodo Vale do Nilo ao sul do Egito),quepodemterfavoreci-
do localmentea passagemde formasmaisdifusasde podera grupos
militaresdefinidoscomnumerososdependentes.
Não é somenteem Hieracômpolisquea arqueologiademonstra
a existênciade umadiferenciaçãosocialnaquelaépoca.Deummodo
geral,enquantoanteriormenteas tumbasmaiorese mais ricas se
apresentavamespalhadasnoscemitérios,nosúltimosséculosdoquar-
to milênioelastenderam,pelocontrário,a seremagrupadasalémde
se tornaremaindam~isricas.
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de pedraparaconstruçãoe outrosrecursos,emterritóriosquedomina-
ramdesdemuitocedo.
As coisaseram,então,maisfáceisno Egito:masistopareceter
resultadoem podereslocaisdébeis,muitodistintosdascidades-Esta-
dosdotadasde cidadãoscomdireitosreconhecidosdosuldaMesopo-
tãmia.O Estadoegípciopareceter precedidoa plem~urbanização,o
desenvolvimentoemescalamaiordocomércioexterior,oflorescimen-
to completoda divisãodo trabalho.Estascoisasse deram,comtodas
as suas características,depoisda formaçãode umamonarquiaunifi-
cada.Comoconseqüência,enquantona Mesopotâmiaos frutosda ci-
vilizaçãoforamaproveitadospor maiornúmerode pessoas,no Egito
eles tenderama uma extremaconcentração- acima de tudo na corte
reale, aindamaisvisivelmente,napessoadorei-deus.
O antropólogoRobertCameirodesenvolveuumateoriaacercada
origemdo Estadoem que concedeumpapelprimordialao conflito,à
guerra.Acreditatambémqueteriasidoo crescimentodemográficosob
condiçõesemquea terradisponíveleralimitada(levandoa umapres-
são causadorade conflitos)o fatorque favoreceraa formação,por
conquista,do Estado.Não existemindicaçõesde escassezde terras
no Egitode finsdo quartomilênio.Mas a guerranãoprecisadecorrer
de invasão,nemde competiçãopelosrecursosagrícolas.A arqueolo-
giacomprovasua importãncianasorigensdo Estadoegípcioporvolta
de3000,masao quepareceporrazõesdiferentes:
Sugiro que o conflitoarmadoocorreu, duranteo fimdos tempospré.histó-
ricos e o iníciodos históricos,devido,em boa parte,às ações de chefes e
reis locais, que estavam tentandomonopolizaros bens armazenados,os
serviços de clientelas crescentes e os símbolos de poder pelos quais
eram definidoso seu própriostatus e o de seus seguidores. Se a agres-
são armada foi um dos instrumentosda extensão do Estado no fim do
Pré-Dinástico e no Proto-Dinástico, então foi simplesmenteum aumento
das ambições e da busca do poder pelas elites - suas tentativas no sen-
tido de dominar.sistemas de trocas locais e de longo curso, e de serem
enterradasem tumbas maiores e melhores - que causou, em últimaaná-
lise,o conflito.(Michael A. Hoffman)
o ESTADO EGíPCIO NO TERCEIRO MilÊNIO
Emboratambémfosseumacivilizaçãobaseadana irrigaçãoflu.
vial,as característicase circunstânciasdo Egitoprimitivodiferemmui-
to das que mencionamosparaa BaixaMesopotâmia.O Nilo,conve-
nientemente,sobe no auge do verão,e ao baixaremas águasé o
momentoadequadoparaa semeadura;salvoexceções,suas cheias,
altamentefertilizadorascomoas do Eufratese do Tigre,são,porém,
muitomenosdestruidoras.Istosignificaqueo sistemaartificialde irri-
gaçãodemoroua se desenvolvere nuncafoi tão complexoquantoo
mesopotâmico.No Egito,o homemsó tevede modificare regularizar
umsistemanaturaldebaciasautodrenáveis.Cadagrupodebaciasera
independentedosoutros,o quequerdizerqueinexistiamconflitospelo
controlede águaentrediferentesregiões.Os desertosprotegiamo
paísdeameaçasextemasimportantes- pelomenosatéfinsdotercei-
ro milênio.Por fim,os egípciosdependiam.menosdo queos habitan-
tes da BaixaMesopotâmiado comércioexteriorparaa obtençãode
matérias-primas:dispunhamdeminasdecobre,ouroe algumestanho,
Na teoriapolítico-religiosada monarquiaegípcia,formadamuito
cedoe mantidaporquasetrêsmilênioscompoucasalterações(e s0-
mentealgumasnuances),o reise defineliteralmentecomoo centrode
todasas coisas,incluindomesmoos paísesestrangeiros,destinadosà
subordinaçãopor ele. Vamoscitaruma passagemlonga,masmuito
esclarecedora,emqueumatalconcepçãoderealezaabsolutaaparece
definidana maisantigaliteraturareligiosa(funerária)da humanidade,
os Textosdas pirâmides.Note-seque,nestapassagemcomoemal-
gumas outras, o "olho de Hórus" - divindadedequeo reié a encarna-
ção- é símbolodaterradoEgito:
Eu sou Hórus, que restaurouo seu olho com ambas as mãos:
Eu vos restauro,vós que devíeis ser restaurados;
Eu vos ponho emordem,ó estabelecimentosmeus;
Eu te construo, ó minhacidade!
Vós fareis para mimtodas as boas coisas que eu desejar;
Vós agireis em meu proveitoonde quer que eu for.
Vós não obedecereis aos ocidentais,vós não obedecereis aos orientais,
vós não obedecereis aos setentrionais,vós não ob~decereisaos meri-
dionais, vós não obedecereis àqueles que estão no meio da terra - mas
vós obedecereis a mim.
Eu é que vos restaurei,
Eu é que vos construí,
Eu é que vos pus emordem,
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J
E vós fareis pormimtudoo que eu vos disser, ondequer que eu vá.
Alcançar-me-eis todas as águas que estão em vós;
Alcançar-me-eis todas as águas que estarão em vós;
Alcançar-me-eis todas as árvores que estão em vós;
Alcançar-me-eis todas as árvores que estarãoem vós;
Alcançar-me-eis todoo pão e cerveja queestão em vós;
Alcançar-me-eis todoo pão e cerveja qu~estarão em vós;
Alcançar-me-eis as oferendas que estão em vós;
Alcançar-me-eis as oferendas que estarão em vós;
Alcançar-me-eis tudoo que está em vós,
O qual vós me trareisa qualquerlugarque meu coração deseje.
(The ancientEgyptianpyramidtexts)
(Doravante citaremos somente a. abreviatura Pir., seguida da indi-
cação de parágrafos e páginas, embora em certos casos modificarer:nos
a tradução de Faulkner a partirdo exame do originalegípciopublicadopor
Kurt Sethe).
Este texto divide-seem três partes.Nas quatroprimeirasli-'
nhas,o reideclaraas razõesda legitimidadedo seupoder.Comores-
tauradordo Egito(ouseja,unificadordo Vale e do Delta),pacificador,
construtor,o monarca- que é o deus Hórus encarnado- tem direitos
indiscutíveis.Na seçãoseguintedo texto,o,reidiz sero únicoquede-
ve serobedecido(o "vós"deveentender-secomodesignandoos "dois
Egitos"- o Valee o Delta- mastambémos súditoscomopessoas).
No final,estabeleceo seudireitoa todosos bensdopaís:sendoseuo
Egito,os súditoslhedevementregar,em formade tributose oferen-
das,as riquezasdo país,semprequeo rei assimo exigir,estejaele
ondeestiver.
Na prática,o terceiromilênio,a partirdasdinastiasemquetradi-
cionalmenteé divididaa históriamonárquicado Egito,.podeserconsi-
deradoem trêsetapas:o períodoformativoda realezafaraônica(di-
nastiasI a 111,2920-2694);o apogeudo ReinoAntigo,ápicedo poder
real(dinastiasIV a VI, 2575-2150);a decadênciado ReinoAntigoe o
chamado Primeiro Período Intermediário(dinastias VIII a XI - já quea
VII nãopareceter existidode fato- 2150-2040).Em seguida,a partir
de2040,teveinícioo ReinoMédio,dequenãotrataremos.
Rei-Deus
~I Duranteas trêsprimeirasdinastias,aparecee consolida-seuma
tradiçãoculturalcentradano rei-deus.As instituiçõesdegovernoainda
estãosendoformadas,comoé demonstradopelofatodequeos títulos
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-~
dos funcionáriossurgemumae outravez,mas sem continuidadee
hierarquiaexplícita.O paláciorealé já o centrodaadministração.O rei
designaem muitoscasosparentesseusparaas funçõesmaisaltas,
entreelas a chefiados nomosou províncias.A cobrançados tributos
se fazsobsupervisãodiretadosoberano,queparaistonaveganoNilo
emcompanhiadesuacorte- os "seguidoresde Hórus".Apareceates-
tadaumaimportantecerimôniade renovaçãodos poderesmonárqui-
cos e retomadade possedo Egito:a festased,emqueo rei"morre"e
"renasce"simbolicamente,voltandoa sercoroado,a qualemprincípio
era realizadapela primeiravez ao se completaremtrêsdécadasde
reinado.Expediçõesmilitaresexternassão enviadasao nordeste(Si-
nai),a oeste(Líbia),ao sul(Núbia),paragarantiras rotascomerciais,o.
fluxode matérias-primase a obtençãode mão-de-obraadicionalna
formadeprisioneirosdeguerra.
A meadosdo terceiromilênioabre-se,coma quartadinastia- a
dosconstrutoresdasgrandespirâmides- umapog~umonárquicoque
duraquatroséculos:o augedo ReinoAntigo.O aparelhodeEstadojá
está totalmenteorganizado,comoé indicadopelasistematizaçãohie-
rárquicadas titulaturasdefuncionáriose cortesãos.Se ao iniciareste
períodoa tendênciaaindaeradeentregaros altoscargosaosparentes
do rei, istoem seguidase modificou,e formou-seumaverdadeirabu-
rocraciadeEstado.
Datadessaépocao augeda monarquia,nomilênioe talvezem
todaa históriaegípcia.O rei,comodeus,é a origemdetodosos pode-
res. Os funcionáriosnão passamde delegadosseus.O aperfeiçoa-
mentoda máquinaestatalenfeixaemsuasmãosos meiosdecontrole
necessários:
O rei concede poderes e retirapoderes, ele impõe um obstáculo e remo-
ve umobstáculo (...) (Pir., § 311, p. 68).
...cuidadocom o Hórus cujo olho é vermelho,violentoem seu poder, CLljo
poderio ninguémpode resistir!Os seus mensageiros vão, os seus cor-
reios se apressam, eles lhe trazemas noticias (...) (Pir., § 253,p. 59).
Os Textosdas pirâmides tambémresumemas funções reais:
O rei dá ordens,o rei concededignidades,o rei distribuias funções,
o reidá

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