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201Direitos Humanos, orientação sexual e iDentiDaDe De Gênero: O combate à discriminação e a luta por direitos1 Diego Bielinski Caíque Borges César Macêdo Lays Caceres 7 1. introdução Este artigo tem por base os princípios de igualdade, combate à discriminação, respeito à individualidade, justiça social e de pro- moção da dignidade humana, independente de orientação sexual e identidade de gênero. O leitor pode querer buscar outras fontes sobre o assunto cujas opiniões divirjam das apresentadas neste ar- tigo para adquirir conhecimento mais abrangente sobre o tema e formular a sua própria visão. Portanto, tem-se como objetivo apresentar a questão da Orien- tação Sexual e Identidade de Gênero no âmbito do cenário interna- cional, relacionando-a com a tríade: os Direitos Humanos, o com- bate à discriminação e a busca por direitos. Primeiramente, será apresentada uma breve análise da evo- lução histórica dos direitos individuais, os quais possibilitaram a ascensão dos Direitos Humanos na pauta dos foros internacionais. Assim, analisar-se-ão seus princípios de universalidade, intrans- missibilidade e a inalienabilidade. Na terceira seção iniciar-se-á, então, a conceituação dos ter- mos Orientação Sexual e Identidade de Gênero. Para isso, é preciso analisar os principais debates sobre o assunto, levando em consi- deração questões psicológicas, de escolha e de tratamento. Em seguida, far-se-á uma avaliação das origens do preconceito às minorias, ao se abordar a questão da homofobia e da discrimi- 1 Os autores gostariam de agradecer o professor Elídio Alexandre Borges Marques, do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH) – UFRJ, por seu auxílio e comentários ao texto. “Não há caminho fácil para a liberdade.” Nelson Mandela 203202 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2012 Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero nação. Não obstante, considerando tais elementos antagônicos à defesa dos Direitos Humanos, notar-se-á a perspectiva desses em relação aos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Tran- sexuais e Transgêneros (doravante LGBTTT). Partindo de uma breve análise da origem e evolução do ativis- mo LGBTTT, será possível identificar o atual estado do tratamento do tema na comunidade internacional, os principais direitos rei- vindicados e como se desenvolveu a busca por direitos e o combate à discriminação. Por último, relacionar-se-ão os elementos supracitados a fim de propor novas perspectivas para a questão. Para tal, é preciso abordar uma arquitetura de três fatores: os instrumentos de coo- peração, os princípios de Yogyakarta e o modo como tais fatos po- deriam ajudar na implementação dos Direitos LGBTTT – em níveis governamentais, regionais e internacionais. 2. Direitos Humanos “A essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos.” Hannah Arendt Ao se abordar o tema dos Direitos Humanos, a primeira associação feita, frequentemente, é com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este documento, contudo, foi criado apenas em 1948, demonstrando que o assunto não pode ser resumido a tal fato. Para a melhor compreensão dos principais pontos relaciona- dos ao tema, realizar-se-á uma breve análise histórica. Abordar-se- -ão as quatro gerações de direitos, associadas a alguns importantes eventos, que contribuíram para que se percebesse a necessidade dos Direitos Humanos. Posteriormente, decorrente da definição, serão explicitadas as características de tais direitos, de grande im- portância para a compreensão das demais seções do artigo. 2.1 Evolução histórica Para que seja possível entender os Direitos Humanos em ques- tões de conceituação e características, é necessário que antes se compreenda os marcos e causas que levaram à sua existência. Com esse objetivo, esta subseção tratará de alguns dos eventos considerados mais importantes - relacionando-os às quatro ge- rações de direitos. O primeiro episódio que pode ser estudado é a Bill of Rights inglesa, do ano de 1688, no contexto da Revolução Gloriosa2. Esta Declaração de Direitos tinha como principal objetivo limitar os po- deres do monarca frente ao Parlamento e, consequentemente, evi- tar arbitrariedades e abuso de autoridade (MAER; GAY, 2009). Cabe ressaltar, contudo, que a Bill of Rights não pode ser enten- dida sob uma acepção moderna de garantia e definição de Direitos Humanos propriamente ditos, mas tem um importante papel no que diz respeito à mudança da concepção de justiça, exemplificada pela luta contra o absolutismo monárquico (MAER; GAY, 2009). Outros movimentos também interessantes para análise foram os desencadeados pelo Iluminismo, no século XVIII, dentre os quais é possível citar a Independência dos Estados Unidos, em 1776, e a Revolução Francesa, em 1789, evidenciando o desejo por mudança do sistema que era tido anteriormente (VICENTINO, 2006, p.249). A título de esclarecimentos, pode-se citar a Declaração de In- dependência dos Estados Unidos - que já estabelece o princípio da igualdade entre os indivíduos – como essencial para o poste- rior desenvolvimento do conceito de Direitos Humanos, como observado no trecho: Consideramos como uma das verdades evidentes por si mesmas que todos os homens são criados iguais; que receberam de seu Criador certos direitos inalienáveis, entre os quais figuram a vida, a liberdade e a busca da felicidade [...] (DIEUA apud VICENTINO, 2006, p. 250). Além disso, destaca-se a Revolução Francesa, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Tal documento, apesar de não ter sido o precursor, serviu de grande inspiração na luta pelos direitos tidos como naturais civis e políticos. Evidencia-se sua im- portância no seu preâmbulo: Os representantes do povo francês constituídos em Assembleia Na- cional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o despre- zo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públi- cas e da corrupção dos governos, resolveram expor, numa declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem [...] (DDHC apud CALDEIRA, 2009). O trecho supracitado demonstra que a Assembleia sabia da neces- sidade dessa declaração e que estavam realizando um fato impor- tante, historicamente (CALDEIRA, 2009). 2 Revolução Gloriosa: ocorreu na Inglaterra, em 1688. O então rei, Jaime II, foi deposto, e em seu lugar emergiu Guilherme de Orange. Fonte: (VICENTINO, 2006, p.220) 205204 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2012 Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero Os dois exemplos colocados anteriormente correspondem à chamada primeira geração de direitos, que se referem aos indivi- duais e políticos, impondo limites ao poder estatal, baseados na idéia de liberdade (id. 2009). Incluem-se neste grupo os direitos à vida, à liberdade de pensamento, à propriedade privada, à justiça, à segurança, entre outros (MORAES, 2002). Na obra “A Era das Revoluções”, Eric Hobsbawm traz de ma- neira bastante clara os ensejos que motivaram a luta e conquistas dessa primeira geração: Libertar o indivíduo das algemas que o agrilhoavam era o seu princi- pal objetivo: do tradicionalismo ignorante da Idade Média, que ainda lançava sua sombra pelo mundo, da superstição das igrejas [...], da irracionalidade que dividia os homens em uma hierarquia de patentes mais baixas e mais altas de acordo com o nascimento ou algum outro critério irrelevante. A liberdade, a igualdade e, em seguida, a frater- nidade de todos os homens eram seus slogans (HOBSBAWM, 2004). Já a segunda geração de direitos veio à tona após a Segunda Guer- ra Mundial, com o advento do Estado Social. Também chamados direitos econômicos, sociais e culturais, deveriam ser garantidos à população pelo Estado, através de suas políticas públicas. Inclui--se, nesse sentido, a saúde, a educação, o lazer, o trabalho, entre outros (MORAES, 2002). Ainda, os direitos de terceira geração - de fraternidade ou soli- dariedade - apresentam dimensão mais voltada para a coletividade. Esses são considerados para a humanidade como um todo - o enfo- que não é mais no indivíduo em si, mas sim no fato de que devem se estender a todos os indivíduos. Estão neles inseridos os direitos ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente. A partir desta ge- ração, os Direitos Humanos apresentam-se segundo a perspectiva que conhecemos hoje (MORAES, 2002). Segundo Paulo Bonavides: [...] direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm por primeiro destinatário o gênero humano mesmo, em um momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta (BONAVIDES, 2003). Existe ainda uma quarta geração de direitos, situada no contexto da globalização, difusão de informações, descobertas científicas e tecnológicas atuais. Envolve questões de pesquisas biológicas e entra no mérito, por exemplo, da questão da defesa do patrimônio genético. Paulo Bonavides, professor que lançou as bases dessa ge- ração, coloca ainda que ela compreende o direito à democracia, à informação e ao pluralismo (SERRAGLIO, 2011). 2.2 Definição e Características Tendo em vista a breve análise histórica realizada na subseção anterior, sabe-se que a idéia de Direitos Humanos tal como é co- nhecida foi desenvolvida a partir da terceira geração de direitos. O que se pretende agora é analisar o que são esses direitos e quais suas as características. Segundo Donnelly, embora haja diversos debates sobre a natu- reza dos Direitos Humanos, tem-se que estes direitos são indiscutí- veis, pois simplesmente existem - são intrínsecos ao ser humano e devem ser, portanto, respeitados independente de qualquer consi- deração cultural particular. Ressalta-se, então, que a universalidade e a intransmissibili- dade são os principais elementos que identificam os Direitos Hu- manos. Com isso, o princípio da universalidade sustenta que os referidos direitos devem ser reconhecidos e respeitados em todo o mundo (MORAES, 2002). Além disso, cabe observar que eles também são: inalienáveis, não podem ser transferidos, nem negociados; imprescritíveis, que se refere à impossibilidade da ocorrência de prescrição, ou seja, não deixam de ser válidos; e irrenunciáveis, o que impossibilita o indiví- duo a abrir mão de seu direito. Eles têm seus limites definidos, basi- camente, na não invasão de um direito pelo outro (MORAES, 2002). A partir do exposto, é possível apresentar uma definição de Direi- tos Humanos. Nas palavras do jurista Alexandre de Moraes, esses são O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana (MORAES, 2002). Com o intuito de garantir os princípios e objetivos supracitados, decorrente dos atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Hu- manidade no século XX, foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, no dia 10 de dezembro de 1948, para servir [...] como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da socie- 207206 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2012 Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero dade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liber- dades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição (ONU, 1948). A partir do exposto, infere-se que a regência dos Direitos Humanos é baseada no seu reconhecimento e respeito. Destarte, levando em consideração seus princípios, será analisada neste artigo uma nova esfera para sua aplicação: a questão LGBTTT. 3. orientação sexual e identidade de Gênero Dada a universalidade dos Direitos Humanos demonstrada na seção anterior, cabe questionar por que eles frequentemente não são esten- didos a todas as parcelas da população, em particular, para este artigo, às minorias sexuais3 (RIOS, 2001, p. 391). Assim, este segmento do ar- tigo propõe-se a conceituar orientação sexual e identidade de gênero e discutir sua complexidade, a fim de que o interlocutor possa com- preender com mais clareza as associações que as seções posteriores se propõem a fazer. Concomitantemente, tenciona-se alcançar um aprofundamento em algumas questões referentes ao tema que não raramente são postas em discussão pela mídia, indo além do senso comum e desmitificando as sexualidades não-hegemônicas. A primeira preocupação ao tecer esta seção é de caráter etimo- lógico. Quando do estudo das minorias sexuais, é de crucial impor- tância atentar à nomenclatura que se usa para designá-las, uma vez que alguns vocábulos podem estar imbuídos de preconceitos e desinformação ou podem ofender o grupo de pessoas o qual eles supostamente circunscrevem. De acordo com a Associação Americana de Psicologia, em seu documento Avoiding heterossexual bias in language4 (1989), pode haver uma perpetuação de estereótipos negativos pelo mau uso de expressões referentes à homossexualidade5 , devido ao fato de que muitos dos termos utilizados atualmente foram cunhados quando esta ainda era vista como doença mental e devassidão, não refletin- do os mais recentes estudos sobre o tema. Desse modo, para a realização deste trabalho, utilizar-se-á a ex- pressão “orientação sexual”, a qual, dada a época e o contexto cientí- fico-social, é preferível às expressões “preferência sexual” ou “opção sexual”. A seleção da primeira expressão deve-se aos graus de esco- lha voluntária que as duas últimas transmitem, os quais, segundo o supracitado documento, não são necessariamente declarados por todos os indivíduos e tampouco foram demonstrados em pesquisas psicológicas, tornando essas outras expressões, pois, inapropriadas. Essa seleção de uma determinada expressão leva-nos à sua de- finição. No entanto, recordando uma máxima latina, omni definitio periculosa est6 . Dada essa natureza arriscada das definições, salien- ta-se que a adotada aqui é uma das possíveis e se encoraja o leitor a aprofundar-se no assunto a fim de contemplar outras e adotar a que lhe convier melhor. A orientação sexual pode ser entendida como a identidade atribuída a um indivíduo em função de seu desejo e con- duta sexuais, seja para com outra pessoa do mesmo gênero (homos- sexualidade), de gênero diferente7 (heterossexualidade) ou para pessoas de ambos os gêneros (bissexualidade) (RIOS, 2001, p. 388). Em uma segunda acepção, oferecida pela Human Rights Educa- tion Associates, a orientação sexual seria um continuum que se es- tende desde “homossexualidade exclusiva” até “heterossexualidade exclusiva”8, englobando diversas formas e graus de bissexualidade 3 O termo “minorias sexuais” é usado porque nem sempre os indivíduos que têm atra- ção sexual diferente da maioria adotam uma identidade gay, lésbica ou bissexual. Ele é usado, pois, para designar todos aqueles que sentem atração sexual, romântica e/ou erótica por membros adultos do mesmo gênero ou por membros adultos do mesmo gênero e de gênero diferente. (APA Task Force on Appropriate Therapeutic Responses to Sexual Orientation, 2009, p. 11) 4 Em português, “Evitando preconceitos heterossexuaisna linguagem” (tradução nossa). 5 Note o uso do termo “homossexualidade”, em detrimento de “homossexualismo”, o qual constitui possível inadequação linguística, visto que o sufixo –ismo, na esfera mé- dica, pode conotar distúrbio e, em 1975, a Associação Americana de Psicologia retirou a homossexualidade da lista de patologias (JAQUES-JEUSS, 2004, p. 72; ABROMOVAY; CASTRO; DA SILVA, 2004, p. 278; e Câmara dos Deputados, Comissão de Direitos Hu- manos, 2000). Alguns autores, como Marc Daniel e André Baudry (1977), sugerem o uso do vocábulo “homofilia” em vez do vocábulo “homossexualidade”, já que este contem- pla apenas os aspectos físicos e sexuais enquanto que aquele abrange também a atração afetiva. No entanto, como os próprios autores admitem, tal termo é significantemente desconhecido e, portanto, utiliza-se “homossexualidade” neste trabalho, embora num sentido mais amplo do que sua simples etimologia sugere. 6 Em português, “toda definição é perigosa” (tradução nossa). 7 Apesar de possível estranhamento por parte do leitor, evitamos aqui a polarização sexual através da expressão “gêneros opostos”, optando-se, no lugar, pelo vocábulo “diferentes”. 8Alfred Kinsey e seus colaboradores demonstraram que tendências homo e heterossexu- ais existem em quase todos os seres humanos e que suas proporções se inserem em uma escala que vai de homossexualidade exclusiva (grau 6 da Escala Kinsey) até heterossexu- alidade exclusiva (grau 0). Cada grau intermediário representaria uma proporção mais ou menos forte de inclinação homo ou heterossexual. Por exemplo, o grau 3 correspon- deria a um equilíbrio absoluto entre as duas tendências, isto é, a bissexualidade. Um dos maiores méritos dessa escala está em evitar o maniqueísmo de muitos que se propõem a estudar a homossexualidade (DANIEL; BAUDRY, 1973, p. 50). 209208 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2012 Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero (COMAN, 2003). Diferenciar-se-ia de comportamento sexual, já que diz respeito a sentimentos e autoconceito. Desse modo, pela segun- da definição, o comportamento sexual pode refletir ou não a orien- tação sexual, consoante às intenções do indivíduo e de sua visão de mundo. O preconceito que tem imperado em muitas sociedades (RIOS, 2001, p. 384; e ABROMOVAY; CASTRO; DA SILVA, 2004, p. 278) pode colaborar para a assimetria desses dois conceitos. Dois debates dominam a esfera das discussões acerca das orientações sexuais: “É uma escolha?” e “É ‘curável’?”. A seleção da expressão “orientação sexual” em detrimento de “opção” torna pos- sível inferir-se que aqui não se tem as orientações necessariamente como uma escolha. Explica-se, assim: Segundo Andrew Sullivan (1995, p. 22), as origens da homossexualidade se dariam provavel- mente com uma mescla de fatores genéticos com o desenvolvimen- to durante a primeira infância. Além disso, Sullivan afirma que para a esmagadora maioria dos adultos, “a condição homossexual é tão involuntária quanto a heterossexualidade o é para os heterossexu- ais”, reafirmando posteriormente que os homossexuais se desco- brem atraídos por alguém do mesmo sexo, não tendo uma opção, de fato, a esse respeito (ibid., p. 23). Quanto à segunda questão, Marc Daniel e André Baudry (1977, p. 70) afirmam em seu livro Os homossexuais que, pelo fato de a homossexualidade não ser mais considerada uma doença no meio médico, eles nem sequer trariam sua “cura” em discussão se não se tratasse de um dos temas favoritos da grande imprensa sobre a condição homossexual. Ainda de acordo com esses autores, quando das tentativas de “cura” da homossexualidade, visto que técnicas fisiológicas, como a administração de hormônios masculinos, traziam tão-somente resultados comportamentais e não de mudança de orientação se- xual, os “terapeutas” decidiram recorrer a tentativas psicoterápicas, como a terapia de aversão. No entanto, esse método se trata de “uma verdadeira violação da personalidade e de uma terapêutica geradora de neuroses e mesmo de psicoses graves, de crises cardíacas e de depressões nervosas”. As- sim, segundo esses autores, a única “cura” que poderia ser proporcio- nada a um homossexual seria a de ajudá-lo a adaptar-se, a aceitar-se e a desdramatizar a sua homossexualidade. Sua convicção se sustenta no que disseram dois psiquiatras: Dr. Desmond Curran, “o psiquiatra não deve tentar converter o homossexual à heterossexualidade; o seu papel é de fazer dele um homossexual bem adaptado”; e Dr. Stanley- -Jones, “pretender alterar a personalidade profunda de um homosse- xual é moralmente injustificável” (ibid., p. 73). Os autores concordam também com o pensador francês Henry de Motherlant, que escreveu: “fala-se de curar os homossexuais; precisaria antes curar o cérebro daqueles que pensam que há motivos para curar os homossexuais”. Ainda em relação à possibilidade de cura da homossexualidade - e tendo em vista a provável impossibilidade de consegui-lo proposta por Daniel e Baudry - cabe ainda questionar se ela, ainda se possível, seria desejável e até que ponto a mera tentativa, exitosa ou não, pode ser danosa ao indivíduo. Nesse sentido, é pertinente o relatório Ap- propriate Therapeutic Responses to Sexual Orientation9 (2009), enco- mendado pela Associação Americana de Psicologia, que traz que os próprios “esforços para a mudança de orientação sexual podem cau- sar ou exacerbar estresse ou saúde mental fraca em alguns indivíduos, inclusive depressão e pensamentos suicidas” (tradução nossa, p. 42). Dada a importância do conceito de orientação sexual expli- citado anteriormente, cabe lembrar que ele não abrange todos os desdobramentos da sexualidade humana, não categorizando, por exemplo, os transgêneros. Embora esses possuam uma orientação sexual (podendo essa ser homo, hétero ou bissexual), sua transexu- alidade remete a uma identidade de gênero. Essa difere da orien- tação sexual, mas elas não se excluem: na verdade, elas coexistem. Segundo o relatório Human Rights and Sexual Orientation and Gender Identity10 da Anistia Internacional (2004, p. 1), toda pessoa tem uma orientação sexual e uma identidade de gênero e esta úl- tima refere-se à “experiência, de uma pessoa, de expressão pessoal em relação às construções sociais de masculino e feminino”11. Por- tanto, um indivíduo pode ter uma identidade de gênero que divirja de suas características fisiológicas12. Por exemplo, um indivíduo 9 Em português, “Respostas terapêuticas apropriadas à orientação sexual” (tradução nossa). 10 Em português, “Direitos Humanos e Orientação Sexual e Identidade de Gênero” (tradução nossa). 11 Tradução nossa. No original, em inglês: “Gender identity refers to a person’s experience of self-expression in relation to social constructions of masculinity or femininity (gender). A person may have a male or female gender identity, with the physiological characteristics of the opposite sex”. 12 Shuvo Ghosh (2009) tem uma visão interessante acerca da definição de identidade de gênero. Consoante a suas ideias, no universo científico é importante diferenciar os termos “sexo” e “gênero”. “Gênero” deriva da palavra latina genus, que significa tipo ou raça, sendo influenciado pelas interações sociais, pela história de vida de cada indiví- duo e por sua própria identificação como homem, mulher ou intersexo. “Sexo”, por sua vez, vem de sexus, latim para gônadas (as quais são interpretadas pela aparência genital externa). Assim, haveria uma discrepância entre os dois, e, de um modo bem simplifica- do, identidade sexual relacionar-se-ia com a genitália e identidade de gênero com o cé- rebro. Neste trabalho, no entanto, a fim de alcançar maior simplicidade e objetividade, por diversas vezes trata-se os termos como se fossem intercambiáveis. 211210 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2012 DireitosHumanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero que possua exclusivamente genitália masculina, todo o aparelho reprodutivo masculino etc. pode se identificar como um membro do sexo feminino (HEINZE, 1995, p. 48). Alguns procuram procedimentos médicos para alcançar uma conformidade entre o seu gênero biológico e o psicológico, sendo conhecidos como transexuais. Outros, por sua vez, não desejam passar por esse tipo de intervenção cirúrgica, mas ainda assim sen- tem, e podem desejar expressar, uma identificação com um gênero diferente, sendo esses muitas vezes conhecidos como travestis (id.). É pertinente lembrar que, além dessas, existem outras minorias se- xuais, como os hermafroditas e os intersexuados. Tendo apresentado autores que defendem a ideia de que as orientações sexuais são intrínsecas às pessoas, proceder-se-á à dis- cussão das evidências da discriminação às minorias sexuais e suas manifestações. Também serão discutidas nas próximas seções so- bre como a agenda internacional pode agir no sentindo de comba- ter essa discriminação que faz com que haja um desencontro entre os Direitos Humanos universais e inalienáveis e as minorias sexu- ais conceituadas nesta seção. 4. o Preconceito às minorias sexuais Nesta seção, discutir-se-ão alguns dos elementos sociais que moti- vam o preconceito contra as minorias sexuais e como eles violam os Direitos Humanos. Além disso, antes de se pensar sobre o combate à discriminação, estudado na sexta seção, é necessária a apresenta- ção de evidências da existência desta, tendo em vista o ceticismo de alguns setores sociais quanto a ela. A proposta dessa seção, portan- to, consiste em esclarecer duas questões principais: a existência ou não da homofobia – o preconceito contra homossexuais – e, se ela de fato existe, qual sua relação com os Direitos Humanos. Os efeitos da homofobia podem ser percebidos desde a in- fância, sendo essa a razão pela qual iniciaremos com os estudos de preconceito dentro do ambiente escolar. Segundo a Pesquisa Nacional Violência, AIDS e Drogas na Escola (2001) da UNESCO, que consistiu em questionários a alunos do ensino fundamental e médio das principais capitais do Brasil, aproximadamente 25% dos alunos indicam que não gostariam de ter um colega homossexual. Esses números variam de 22,6% em Belém a 30,6% em Fortaleza (ABROMOVAY; CASTRO; DA SILVA, 2004, p. 280). Em qualquer das capitais analisadas, verificou-se também que os jovens do sexo masculino rechaçam a homossexualida- de com maior intensidade do que as meninas o fazem. Uma das causas dessa homofobia pode ser uma espécie de “terror em re- lação à perda de gênero”, isto é, o medo de não ser mais conside- rado um homem ou uma mulher “reais” ou “autênticos” (LOURO, 1997, p. 29). Desse modo, a intensidade maior de preconceito re- latada por homens pode se dar por esses se sentirem ameaçados em sua masculinidade. No ambiente escolar essa discriminação contra alunos homos- sexuais (ou que são considerados homossexuais) se dá principal- mente de forma velada, por meio de referências preconceituosas (ABROMOVAY; CASTRO; DA SILVA, 2004, p. 303). Esse uso de lin- guagem pejorativa ocorre pelo intuito de humilhar, ofender, isolar, tiranizar, ameaçar etc., e alguns professores, ao invés de agir contra essa prática, desempenham uma não-assumida conivência com essas discriminações, banalizando-as e naturalizando-as (id.). No entanto, não sendo os números da discriminação escolar apresentados os mais entusiasmantes, vários professores acre- ditam que a escola deve ter um papel de também combater o preconceito. Há depoimentos desses que sugerem que a discri- minação pode ser desconstruída pela escola, junto com ações planejadas que fomentem a inclusão e incentivem o respeito à di- versidade, ressaltando qualidades dos alunos e alimentando sua auto-estima (ibid., p. 304). Abromovay et alii (2004, p. 278) enfatizam que a homofobia e outros preconceitos sexuais são muitas vezes legitimados por pa- drões culturais que cultivam hierarquias e moralismos da masculi- nidade e que “muitas expressões de preconceitos e discriminações em torno do sexual tendem a ser naturalizadas, até prestigiadas e não entendidas necessariamente como violência”. Esses padrões podem advir de um preconceito “patrocinado” pelo Estado. Segun- do Jaques-Jeuss (2004, p. 13), a discriminação contra homossexu- ais é um fenômeno decorrente da conivência das autoridades, que promovem uma legislação omissa e que tomam ações públicas que afetam negativamente a comunidade LGBTTT. Jaques-Jeuss (2004, p. 21) diz ainda que o crime homofóbico pode ser definido como toda espécie de agressão – física, verbal ou psicológica – que se comete contra a pessoa em função da suposta orientação sexual homoerótica da vítima. A expressão “em função” tem grande importância, para que se evite o frequente equívoco de que os homossexuais lutam por uma legislação que os privilegie, dando-lhes especial proteção contra agressões. A luta contra a discriminação consiste principalmente na bata- lha pela adoção de uma legislação que puna as discriminações por orientação sexual (seja ela qual for, inclusive a heterossexualidade) 213212 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2012 Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero e que rechace a proibição de manifestações de afeto homossexuais quando as heterossexuais são permitidas. Como exemplo, pode-se citar uma situação que ocorreu no Brasil, na qual a má ou parcial leitura da PLC 122 de 2006 – também conhecida como lei anti-homofobia e alvo de grande polêmica – contribuiu para a interpretação errônea do que querem as mino- rias sexuais. Os benefícios de uma aprovação de uma lei como essa seriam mais sentidos pela comunidade LGBTTT, isso é certo. No entanto, esses benefícios apenas serviriam para trazê-la mais per- to do bem-estar do qual os heterossexuais já desfrutam, não lhes dando nenhum privilégio ou bem-estar adicional (COMAN, 2003). Um dos motivos de os homossexuais reivindicarem uma le- gislação que os proteja de agressões deve-se ao fato de que muitas vezes eles são vítimas de crimes homofóbicos, que se encontram dentro da categoria de crimes de ódio (MOTT, 2000, p. 15). Os cri- mes de ódio são atos ilícitos, ou tentativas de tais atos, que incluam insultos, danos morais e materiais, agressão física, às vezes chegan- do ao assassinato, praticados em razão da raça, sexo, religião, orien- tação sexual ou etnia da vítima (id.). Os crimes de ódio são também marcados principalmente pela crueldade do modus operandi verificada neles. Os crimes homofó- bicos, portanto, seriam os crimes de ódio que são motivados uni- camente pela orientação sexual da vítima, tendo como inspiração a ideologia machista predominante na sociedade heteronormativa (id.). Ou seja: em um crime homofóbico, os homossexuais seriam agredidos pelo simples fato de serem homossexuais. Como dito aci- ma, em função de sua orientação sexual não-hegemônica. Por exem- plo: roubar os pertences de um homossexual pode não estar ligado à sua orientação sexual não-hegemônica, o que não constituiria ne- cessariamente crime de ódio. Embora seja possível que heterosse- xuais também sofram agressões devido à sua orientação sexual, isso é muito mais relatado na comunidade LGBTTT, devido ao fato de que suas orientações sexuais, diferentemente da dos heterossexuais, não correspondem à convencional e socialmente esperada. Uma evidência da discriminação contra homossexuais está numa pesquisa no Brasil, na região do Distrito Federal e Entorno (JAQUES-JEUSS, 2004, p. 79), na qual encontrou que quase metade dos homossexuais entrevistados ou estudados já havia sido alvo de crimes de ódio (em especial a agressão verbal). Mott e Cerqueira (2000, p. 11) fazem algumas atribuições desse tipo de crimeà vul- nerabilidade da comunidade LGBTTT. Segundo esses autores, as minorias sexuais sofrem de uma fragilidade que tem origem na falta de apoio dentro do próprio lar: enquanto crianças e adolescentes negros, judeus, deficientes físicos etc. são ensinados por seus pais e familiares a como enfrentar o pre- conceito e a hostilidade da sociedade, desenvolvendo seu orgulho étnico ou racial e sua auto-estima, para jovens homossexuais ocorre exatamente o contrário (id.). Assim, seria dentro da casa de cada ho- mossexual e por parte das pessoas mais próximas a ele que a discri- minação e o preconceito seriam experimentados pela primeira vez. 5. Direitos lGBttt: uma Perspectiva de Direitos Humanos Tendo explorado algumas das evidências da homofobia e alguns de seus principais motivos, cabe perguntar em que sentido ela fere os Direitos Humanos apresentados na segunda seção. A preocupação com a discriminação contra homossexuais em relação aos Direitos Humanos se deve parcialmente pelo fato de que ela quebra o prin- cípio da não-discriminação, isto é, o princípio que rege a obrigato- riedade de se dispensar a todos igual tratamento (PASSOS, 2007). Segundo Coman (2003), o direito à não-discriminação é fre- quentemente negado aos homossexuais através da omissão de “orientação sexual” em leis anti-discriminação. O autor ainda diz que, dentre os direitos negados aos homossexuais e garantidos ao restante da população, figuram: a) o direito à vida, em Estados onde há pena de morte aos homossexuais; b) o direito de ir e vir, negado a casais homossexuais binacionais por não reconhecer sua relação; c) direito à privacidade, onde a prática homossexual é proibida mesmo entre adultos com consentimento; d) o direito de formar uma família, pelo direito muitas vezes negado aos homos- sexuais de adoção de uma criança e de casamento. No entanto, como apontado por Dr. Henry Schermers (HEIN- ZE, 1995, p. vii), membro da Comissão Europeia de Direitos Hu- manos, um dos maiores problemas para assegurar os direitos dos homossexuais no cenário internacional é o de que muitos países evocam a proibição de intervenção em matérias que estão dentro da jurisdição doméstica do Estado, proibição derivada do artigo 2°. §7 da Carta das Nações Unidas. No entanto, Schermers continua, felizmente esse “beco sem sa- ída” doutrinário está começando a enfraquecer: antigamente as ale- gações de violações dos Direitos Humanos eram contra-argumenta- das com afirmações legais, enquanto que atualmente a resposta se dá com protestos de uma ordem puramente empírica. Schermers (ibid., p. viii) defende a intervenção internacional em matérias do- mésticas quando os Direitos Humanos estão em risco pelo fato de que o propósito do Direito é promover o bem-estar dos seres huma- 215214 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2012 Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero nos e o Direito Internacional falha em seu objetivo mais essencial quando tolera violações dos Direitos Humanos fundamentais. Desse modo, embora os Direitos Humanos, como apresenta- do, sejam feridos pela discriminação contra homossexuais, ainda não há resposta definitiva para até onde a sociedade internacional pode interferir em discriminações domésticas, devido à soberania de cada Estado (ou seja, o poder político e a autoridade suprema de cada Estado de exercer o comando dentro de seu território sem submissão aos interesses de outros Estados). A intervenção, por mais bem-intencionada que fosse, incorreria em protestos de im- perialismo cultural (ibid., p. 66). No entanto, como o Direito In- ternacional tem em seu cerne o objetivo de promover o bem-estar mundialmente com isonomia, como apresentado por Dr. Scher- mers, o conflito se intensifica e a soberania de cada país em ques- tões de Direitos Humanos tem sua importância questionada. Cabe ressaltar, contudo, que os Direitos Humanos se caracteri- zam pelo princípio da universalidade, como abordado na segunda seção. Uma vez que os direitos LGBTTT são Direitos Humanos, são também universais (SANTOS, 2004). Assim, deveriam ser defendi- dos internacionalmente, por todos os países que são vinculados à ONU, comprometendo-se com a defesa destes direitos, tendo por referência a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Os princípios da universalidade e da não discriminação urgem aos países, portanto, a não admitir que ocorram violações aos Di- reitos Humanos e liberdades fundamentais baseadas na orientação sexual ou identidade de gênero. 6. a Busca por Direitos e o Combate à Discriminação Como abordado anteriormente, decorrente da definição e das ca- racterísticas dos Direitos Humanos, pode-se concluir que a popu- lação LGBTTT está, assim como todas as outras pessoas, protegidas por esses direitos (SANTOS, 2004). Contudo, à população LGBTTT ainda são negados diversos direitos, sociais, políticos, civis e econômicos, através de costu- mes difundidos ou até mesmo, em alguns dos casos, pela própria lei (COMAN, 2003). Assim, com o objetivo de estimular a reflexão sobre a forma como a questão LGBTTT vem sendo tratada, esta seção abordará a questão da luta por direitos, reportando a origem e a evolução do ativismo da comunidade LGBTTT. Por último, reportar-se-á o atual tratamento do tema na comunidade internacional. 6.1. Origem e evolução do ativismo político na busca por direitos na comunidade LGBTTT Ainda que uma maior expressividade dos movimentos relaciona- dos à causa seja relativamente recente, datando da década de 1970, ela é produto de uma evolução histórica na consciência de gênero que data de processos bem anteriores. Como não é possível tratar sobre todos eles, esta subseção trata dos acontecimentos historica- mente reconhecidos como tendo sido mais marcantes na evolução da reivindicação por direitos. A primeira organização que se tem conhecimento e que defen- dia os direitos LGBTTT se chamava Society for Human Rights13, e foi fundada em 1924 com o objetivo de reunir homossexuais e educar autoridades e legisladores (NASH, 2004). Tal organização, no entanto, dissolveu-se após a invasão da polícia e consequente prisão de alguns de seus membros. Pos- sivelmente em decorrência desse fato, verificou-se a estagnação dos movimentos de direitos LGBTTT até o final da década de 1950, quando movimentos de combate à discriminação racial mostraram a eficácia das ações diretas contra atitudes discriminatórias (id.). Ao final da década de 1960, portanto, surgiu uma nova cultura de protesto, originando uma reformulação do movimento LGBTTT no mundo (D’EMILIO, 1983, p.223). Pode-se considerar, então, o ano de 1969 como o marco no movimento. No dia 28 de junho daquele ano, o bar Stonewall Inn, na cida- de de Nova York, foi alvo de mais uma investida da polícia estadu- nidense contra estabelecimentos frequentado pela comunidade LGBTTT (SILVA, 2005). Tal episódio ficou conhecido como a Rebe- lião de Stonewall, na qual os cidadãos se rebelaram contra os poli- ciais e resistiram às sumárias prisões. Afirma-se que A comunidade homossexual, constituída no final do século XIX, ad- quiriu maior visibilidade [...], inaugurando novos estilos de vida, par- ticularmente, com os eventos de Stonewall [...]. Era a nova “tradição” do confronto em vez da fuga (BARBOSA DA SILVA, 2005, p. 234) Assim, este acontecimento é interpretado como o início da luta pelos direitos LGBTTT, pois, pela primeira vez, um grande público 21 Tradução: Sociedade para Direitos Humanos. A Sociedade foi inspirada em organiza- ções alemãs. Henry Gerber serviu o exército americano durante a I Guerra Mundial e ob- servou a relativa liberdade dos gays na Alemanha de Weimar. A Sociedade publicou duas edições de seu periódico informativo Friendship and Freedom (Amizade e Liberdade). 217216 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas– 2012 Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero mostrou capacidade de organização e de vontade na luta contra medidas discriminatórias contra homossexuais, tornando o dia da Rebelião - 28 de junho - o dia internacional do Orgulho Gay e Lésbico (ILGA, 2003). Com a evolução e crescimento do movimento, foi possível identificar e associar os direitos reivindicados na luta LGBTTT aos Direitos Humanos. Com isso, esta fonte poderosa de legitimidade e inspiração estratégica conferiu e aproximou a cidadania sexual de outras formas de cidadania que também foram historicamen- te discriminadas, principalmente minorias étnicas e mulheres (SANTOS, 2004, p. 2): Tudo isso se compagina internacionalmente por referência ao regi- me internacional de Direitos Humanos, cujos documentos basilares e respectivos protocolos e adendas têm vindo progressivamente a considerar os direitos LGBTTT como Direitos Humanos (SANTOS, 2004). Nos anos 90, a experiência do combate à AIDS permitiu ao movi- mento desenvolver suas capacidades organizativas, como em cam- panhas de massa, permitindo a criação de diversas associações LGBTTT. Além de tais temas, a comunidade atualmente se foca no combate a homofobia e reivindicação de direitos – pelos princípios de igualdade e liberdade. Ademais de buscar proteção jurídica contra a discriminação baseadas na orientação sexual, o movimento tem sido um aliado contra a violência doméstica e pela igualdade de oportunidades entre mulheres e homens. Desta forma, trata-se de uma luta coleti- va a favor da diversidade (id. 2004, p.3). 6.2. O atual tratamento do tema na sociedade internacional Ao analisarmos a atual situação dos Direitos LGBTTT no cenário internacional, há de se observar os instrumentos de proteção in- ternacionais e regionais. Desta forma, tal conjuntura se baseia em tratados e atos unilaterais, além de diversas declarações e resolu- ções de Organizações e Organismos Internacionais que enfatizam a necessidade de se abordar tais temáticas na pauta de seus foros. Tendo como premissa a evolução participativa dos movimen- tos LGBTTT e a grande visibilidade dos temas de Direitos Huma- nos na agenda internacional, esta subseção tem o objetivo de re- alizar uma análise das ações e atos das principais Organizações Internacionais em relação ao tema de Orientação Sexual e Iden- tidade de Gênero. 6.2.1 Instrumentos Regionais Fundado em 1949 sobre os destroços da Segunda Guerra Mundial, o Conselho da Europa14 foi a primeira organização política regional europeia (COMAN, 2003). Desta forma, o anseio de seus Estados criadores de realizar uma união mais estreita entre os membros, conforme explicitado no artigo 1.º de seu Estatuto15, cristalizou-se em volta de um objetivo: [...] salvaguardar e promover os ideais e os princípios que são o seu patrimônio comum e de favorecer o seu progresso econômico e social. [...] por meio dos órgãos do Conselho, através do exame de questões de interesse comum, pela conclusão de acordos e pela adoção de uma ação comum nos domínios econômico, social, cultu- ral, científico, jurídico e administrativo, bem como pela salvaguarda e desenvolvimento dos direitos do homem e das liberdades funda- mentais (Conselho da Europa, 1949). Nota-se, então, que o Estatuto do Conselho fundamenta-se no res- peito aos Direitos Humanos e na proteção e promoção das liberda- des fundamentais. Além disso, o documento prevê em seu artigo 8º que qualquer Estado membro que atente gravemente contra os direitos humanos poderá ter suspenso seu direito de representação ou ser expulso da Organização. Destarte, com o objetivo de honrar e respeitar tais compro- missos, foi adotada Convenção para a proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais16 em 1950. Cabe ressaltar, no entanto, que não são explicitamente mencionadas em nenhum dos dispositivos da Convenção as questões de orientação sexual e identidade de gênero. Não obstante, a Convenção possui um órgão para assegurar os princípios e objetivos de seu aparato jurídico (HEYNS; PADILLA; ZWAAK, 2006, p.167). Instituiu-se, então, a Corte Europeia de Direi- tos do Homem no seu artigo 19. Deste modo, a Corte tem a função 14 Estabelecido em 5 de Maio de 1949, o Conselho da Europa possui atualmente 47 membros. Sua sede fica na França, na cidade de Estrasburgo. 15 Texto integral disponível em:<http://conventions.coe.int/treaty/en/Treaties/Html/001. htm>. Acesso em: 9 out 2011. 16 Também é conhecida como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Sua rati- ficação se tornou uma condição de adesão à Organização. Texto disponível em: http:// www.echr.coe.int/NR/rdonlyres/7510566B-AE54-44B9-A163-912EF12B8BA4/0/POR_ CONV.pdf. Acesso em: 9 out 2011. 219218 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2012 Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero de verificar se houve ou não violação das disposições da Conven- ção, sendo as suas decisões de caráter vinculante para os Estados. Assim, utilizando-se dos fins da Convenção, a Corte foi o pri- meiro órgão internacional a julgar que leis criminais em torno da orientação sexual violam os Direitos Humanos e a possuir a maior e vasta jurisprudência no encaminhamento de casos sobre orienta- ção sexual (COMAN, 2003). Observam-se, a partir disso, diversos avanços no status jurídi- co dos direitos LGBTTT. Como por exemplo, no caso relacionado à discriminação por orientação sexual nos serviços militares, a Corte sustentou em 2000, no caso Lustig-Prean e Beckett vs. Reino Uni- do17, que a interdição de homossexuais ao militarismo era ofensiva ao Artigo 8.º da Convenção (MARÇAL, 2011, passim; COMAN, 2003, p. 4; BENVENUTO, 2007, p. 38), que aborda o direito ao respeito pela vida privada e familiar: 1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar econômico do país, a defesa da ordem e a pre- venção das infrações penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros (Conselho da Europa, 1950). Além disso, a Corte julgou - no caso Salgueiro da Silva Mouta vs. Portugal18 - que ao pai homossexual não pode ser negada a guar- da da criança com base em sua orientação sexual, pois a matéria infringe o direito do pai à vida familiar estabelecida no Artigo 8.º supracitado (COMAN, 2003, p. 3; TEDH, 1999, p. 8 et seq.). Ainda, a Corte confirmou que o Artigo 14 da Convenção, que abrange a proi- bição da discriminação, deve ser interpretado incluindo a questão da orientação sexual: O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Con- venção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação (Con- selho da Europa, 1950). Entretanto, na visão da Corte, a Convenção nem sempre é aplicada em questões da orientação sexual e identidade de gênero. Como no caso X, Y e Z vs. Reino Unido19 de 1997, no qual estabeleceu que o direito ao respeito à privacidade e à vida em família não se aplica no caso de uma relação entre transgêneros. Confirmando, assim, que somente o homem biológico e não um transgênero feminino para o masculino pode ser reconhecido como pai (id.). Ainda no contexto do palco europeu, a União Europeia20 (do- ravante UE) também se destaca nos seus mecanismos de prote- ção contra a discriminação com base na orientação sexual e iden- tidade de gênero.Por emenda do Tratado de Amsterdam21 de 1999, modificou- -se o Artigo 13 do Tratado Institutivo da União Europeia22, (HEYNS; PADILLA; ZWAAK, 2006, p.167) tendo pela primeira vez um trata- do internacional em vigor mencionando explicitamente a proteção aos indivíduos LGBTTT: Sem prejuízo das demais disposições do presente Tratado e dentro dos limites das competências que este confere à Comunidade, o Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão e após consulta ao Parlamento Europeu, pode tomar as medidas necessárias para combater a discriminação em razão do sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou orientação sexual (União Europeia, 1999). 17 MARÇAL, Silvia. O caso Lustig-Prean e Beckett contra o Reino Unido*: uma análise da contribuição das teorias e lutas feministas na implementação dos direitos humanos. In: Revista Direito e Humanidades. Disponível em: <http://seer.uscs.edu.br/index.php/ revista_direito>. Acesso em: 19 Out. 2011. 18 Caso disponível no Gabinete de Documentação e Direito Comparado de Portugal: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/portugal-dh/acordaos/traducoes/Trad_ Q33290_96.pdf>. Acesso em: 8 out 2011. 19 Caso disponível em: <http://www.bioethics.gr/media/pdf/biolaw/nomologia/XYAFULL. pdf>. Acesso em: 2 nov. 2001. 20 A UE foi consolidada em 7 de fevereiro de 1992, sucedendo a Comunidade Economica Europeia, pelo Tratado de Maastricht. 21 O Tratado de Amsterdam foi firmado em 2 de outubro de 1997. Contudo, somente entrou em vigor em 1 de maio de 1999. Texto integral disponível em: < http://www. eurotreaties.com/amsterdamtreaty.pdf>. Acesso em: 8 out. 2011. 22 Texto integral disponível em: < http://eur-lex.europa.eu/pt/treaties/dat/12002E/ pdf/12002E_PT.pdf>. Acesso em: 8 out 2011. 23 Tem sede em Nice, na França. Texto integral disponível em: <http://www.europarl. europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf>. Acesso em: 8 out 2011. 221220 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2012 Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero Além do artigo supracitado, a UE proclamou em 2000 a Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia23. Este documento pode ser considerado como o código dos direitos fundamentais da Orga- nização, além de expressar o ponto de vista da UE sobre os Direitos Humanos (HREA, 2003). Ainda, a Carta também aborda o princípio da não discriminação em seu Artigo 21, reafirmando os princípios expostos no Tratado que a constitui. Por fim, o Parlamento Europeu24 também contribui para a in- corporação dos Direitos LGBTTT. Desde sua criação, o Parlamento conclamou a luta pelo fim da discriminação com base na orienta- ção sexual e adotou a recomendação sobre a abolição de todas as formas de discriminação por orientação sexual (COMAN, 2003). Destarte, tal órgão também solicitou ao Conselho Europeu para que levantasse a questão da discriminação contra homosse- xuais durante as negociações para a associação de novos membros (HREA, 2003). Assim, adotou uma resolução, em 1998, afirmando que não consentirá a associação de nenhum país que por meio de sua legislação ou política, viole os direitos humanos de lésbicas e homens gays (id. 2003). No que tange à Organização dos Estados Americanos, pode-se analisar as diversas resoluções sobre o tema LGBTTT. Para garan- tir a implementação e o respeito aos Direitos Humanos nos seus Estados-membros – proclamados na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem25 e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos26 - criou-se a Comissão Interamericana de Di- reitos Humanos27 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos28 (HEYNS; PADILLA; ZWAAK, 2006, p.164). O caso Marta Alvarez29 de 1998 foi o primeiro caso levado à Co- missão sobre orientação sexual no sistema interamericano, contra a Colômbia (HREA, 2003). Havia-se negado à solicitante o trata- mento igualitário pelas autoridades prisionais colombianas – ao não permitirem que tivesse visitas conjugais de sua companheira por causa de sua orientação sexual. Analisando-se, então, que as leis colombianas consideram que as visitas conjugais são um direito para todos os cidadãos - inde- pendente da orientação sexual – a Comissão decidiu pelo trata- mento igualitário (id.). Além disso, a mais recente resolução sobre o assunto no âmbi- to da OEA é a Resolução 2653, de 7 de junho de 2011, que condena a discriminação, os atos de violência e as violações de direitos huma- nos por motivo de orientação sexual e identidade de gênero. Observa-se, então, que a Resolução representa um avanço para a inserção da orientação sexual e identidade de gênero na esfera protetiva da Organização. Ainda, o documento considera a inclusão do tema no projeto da Convenção Interamericana Contra o Racis- mo e Toda Forma de Discriminação e Intolerância (COMAN, 2003). No que tange à questão da União Africana30, pode-se notar a importância da Carta Africana Sobre os Direitos Humanos e dos Povos31 de 1981, por ter sido ratificada por de 53 países32 – o que denota sua imensa aceitação (BRANT; PEREIRA; BARROS, p. 2). No artigo 28 do tratado, afirma-se que Cada indivíduo tem o dever de respeitar e de considerar os seus semelhantes sem nenhuma discriminação e de manter com eles re- lações que permitam promover, salvaguardar e reforçar o respeito e a tolerância recíprocos (União Africana, 1981). Observa-se, portanto, que a Carta abrange o princípio da não dis- criminação, da tolerância e do respeito mútuo para o verdadeiro acesso aos Direitos Humanos. Ainda, cria a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos no seu artigo 30, para servir como o mecanismo de execução e promoção dos objetivos da Carta de Banjul (BRANT; PEREIRA; BARROS, p. 3) e uma Corte de adesão facultativa e com funcionamento ainda muito inicial. Legitima-se, por conseguinte, um corpo de implementação e monitoramento para lidar com os temas no domínio dos Direitos Humanos e dos Povos no âmbito da região africana. De fato, tais apa- 24 Possui sede em Estrasburgo, França. Mais informações em: < http://www.europarl. europa.eu/>. Acesso em 7 out 2011. 25 A Declaração foi aprovada em abril de 1948, em Bogotá, na Colômbia. Foi o primeiro documento internacional de Direitos Humanos de caráter geral. 26 Aprovada pela CIDH em 1969. 27 Foi criada em 1959. Possui sede em Washington, nos Estados Unidos. 28 Com sede em São José, na Costa Rica. 29 Caso disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_07_esp. pdf>. Acesso em: 11 nov. 2011. 30 Criada em 2002, a União Africana sucedeu a antiga Organização de Unidade Africana (OUA). Atualmente, a organização possui 53 membros. 31 A Carta Africana Sobre os Direitos Humanos e dos Povos também é conhecida como a Carta de Banjul, cidade na qual o documento foi aprovado - em 1981 - pela Conferência Ministerial da Organização da Unidade Africana e adotada pela XVIII Assembléia dos Chefes de Estado e Governo da Organização da Unidade Africana em Nairóbi, Quênia, no mesmo ano. Contudo, somente entrou em vigor em 1986. 32 O único país africano que não aderiu a Carta e também da UA foi o Marrocos, tal medida foi justificada devido às questões políticas relacionadas ao reconhecimento do Saara Ocidental como membro da União Africana. 223222 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2012 Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero ratos representam uma fonte de cooperação entre os países e de au- tenticação do respeito aos princípios incorporados na Carta (id. p. 6). Cabe ressaltar, no entanto, que a União Africana tem como membros países que prevêem pena de morte para homossexuais (OTTOSSON, 2008, p.8). Percebe-se, então, que até mesmo as ga- rantias mais fundamentais como a vida são violadas ao se constatar que, em determinados Estados33, a pena de morte é prevista para a relação homoafetiva.(PRETES; VIANNA, p. 322). Ainda, a Carta e a Comissão ainda não trataram – oficialmente – do tema sobre Orientação Sexual e Identidade de Gênero. Desta forma, a União Africana diferencia-se das demais Organizações aqui abordadas. 6.2.2 Instrumentos Internacionais No âmbito internacional, a Organização das Nações Unidas pode ser reconhecida como a principal organização que debate sobre o assunto, tendo o Conselho de Direitos Humanos como fundamen- tal na execução desta tarefa. Uma medida notória do Conselho foi o lançamento dos Prin- cípios de Yogyakarta34, que se destinam prioritariamente aos Esta- dos. Tais princípios são recomendações para implementação dos Direitos Humanos e sua aplicação a questões de orientação sexual e identidade de gênero (OTTOSSON, 2008, p.5). Por isso, o documento foi concebido para guiar e estruturar a padronização internacional de mecanismos de combate às vio- lações de Direitos Humanos com base na orientação sexual e de identidade de gênero. De fato, suas diretrizes traduzem compro- misso com a promoção dos valores de igualdade e respeito à pessoa humana (MELLO NETO; AGNOLETI, 2008, p.7; HREA, 2003, p.3). A partir disso, foi exibida na Assembleia Geral das Nações Uni- das a primeira declaração acerca de orientação sexual e identidade de gênero, em 20 de dezembro de 2008 – o que denotou um grande avanço no status internacional do tema (id. p. 8 et seq.). A Organização Internacional do Trabalho (OIT) também pode ser mencionada como primordial no que tange o tema da Orienta- ção Sexual e Identidade de Gênero. Assim, cita-se a Convenção so- bre a Discriminação em matéria de Emprego e Profissão35 de 1958, que no seu artigo 1°, define-se o termo discriminação como a) Toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão. b) Qualquer outra distinção; exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamen- to em matéria de emprego ou profissão, que poderá ser especificada pelo Membro interessado depois de consultadas as organizações re- presentativas de empregadores e trabalhadores, quando estas exis- tam, e outros organismos adequados (OIT, 1958). Nota-se, então, que o tratado não proíbe por si só a discriminação com base na orientação sexual, mas possibilita aos Estados o acrés- cimo de fundamentos adicionais. Como exemplo, na Austrália, a implementação da Convenção em sua legislação doméstica con- tribuiu para coibir a expulsão de LGBTTTs de suas forças armadas, em 1992 (COMAN, 2003). Outro tratado que também engloba o assunto é o Pacto Inter- nacional Sobre Direitos Civis e Políticos de 1966. Para as questões de orientação sexual, o Pacto se tornou relevante após o caso Too- nen vs. Austrália36. A Comissão de Direitos Humanos37 estabeleceu que a referência ao “sexo”, no artigo 2°. (id.), que aborda o tema da não-discriminação, deveria ser entendida pela inclusão da questão da orientação sexual: Os Estados-partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar e a garantir a todos os indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeito a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, religião, opinião política ou outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra condição (ONU, 1966). Como resultado desse caso, a Austrália revogou a lei de criminali- zação do ato sexual entre homens em seu Estado da Tasmânia (OT- TOSON, 2008, p.47; COMAN, 2003;). Ainda, o Conselho reiterou 33 Estados africanos que prevêem pena de morte em casos de práticas homossexuais: Mauritânia, Sudão, bem como algumas partes da Nigéria e da Somália (ILGA, 2011). 34 Os princípios estão disponíveis em: <http://www.clam.org.br/pdf/principios_de_ yogyakarta.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2011. 35 Adotada pela Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em sua 42.ª sessão, em 25º de junho de 1958. 36 Comunicação n.º 4888/1992, de 31.03.1994, § 8.7. 37 Era vinculada ao ECOSOC, mas foi substituída pelo Conselho de Direitos Humanos em 2006. 225224 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2012 Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero que tal característica deveria ser interpretada também no artigo 26 do Pacto, sobre a igualdade perante a lei, no qual Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem dis- criminação alguma, a igual proteção da lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação (ONU, 1996). Com esse caso, o Conselho de Direitos Humanos criou o preceden- te dentro do sistema de Direitos Humanos da ONU referente à ação visando combater a discriminação contra LGBTTTs. Outro organis- mo que também trata do tema é o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Desde 1993, o ACNUR tem reconhecido em Opiniões Consulti- vas que LGBTTTs se qualificam como membros de um grupo social particular (COMAN, 2003; BUDD, 2008, p.17 et seq). Tal fato se dá para os propósitos da Convenção de 1951 e do Protocolo relativo ao Status de Refugiados de 1967 (id.). Afirma-se que: Homossexuais podem ser considerados elegíveis para o status de re- fugiados com base em perseguição em razão de seu pertencimento a um grupo social particular. É política da ACNUR que pessoas as quais enfrentam ataques, tratamento desumano, ou grave discriminação por causa de sua homossexualidade, e seus respectivos governos são incapazes ou imotivados para protegê-los, devem ser reconheci- das como refugiadas38 (ACNUR, 1996, p. 19-20 apud BUDD, 2008, p.19). 7. Perspectivas para a questão: a cooperação internacional como forma de promoção dos direitos lGBttt “A cooperação é a convicção plena de que ninguém pode chegar à meta se não chegarem todos.” Virginia Burden A partir do exposto, nota-se que há uma arquitetura de instrumen- tos regionais e internacionais com o intuito de promover o respei- to e a tolerância para com a comunidade LGBTTT. Contudo, cabe ressaltar que o direito a não discriminação e à proteção contra o abuso e a violência não são plenamente garantidos. Assim, há ain- da certa omissão no que diz respeito à questão da orientação sexu- al nas leis antidiscriminação. Ainda, os direitos à livre expressão e associação, bem como o direito de formar uma família, seriam, ao menos teoricamente, também relativos a todos. O que se observa, contudo, é que apenas dez países permitem, de fato, o casamento entre pessoas do mesmo sexo; treze permitem a adoção por parte de casais homossexuais; e quatorze ainda colocam idades diferentes para consentimento en- tre relações homossexuais e heterossexuais39 (ILGA, 2011). Além disso, são poucos os países40 que proíbem o incitamento ao ódio, ou que consideram agravantes os casos de crimes basea- dos exclusivamente na orientação sexual e identidade de gênero da vítima (ILGA, 2011). Isso evidencia o vasto caminho a se percorrer quando se fala, por exemplo, da garantia do direito de estar livre de tortura ou tratamento cruel. Não se pode dizer que haja, também, o pleno direito à seguri- dade, assistência e benefícios sociais, já que, devido ao não reco- nhecimento das relações homossexuais em vários países, inúmeras dificuldades ainda são enfrentadas como, por exemplo, a impossi- bilidade de se declarar o cônjuge (COMAN, 2003). Coloca-se tambéma homofobia e a falta de preparo no que diz respeito ao trato com questões de orientação sexual de muitos pro- fissionais de saúde como um dos principais fatores que dificultam a plena garantia à saúde física e também mental. Nem mesmo o direito à educação é plenamente garantido, afi- nal, a escola não se mostra um ambiente seguro sendo que alunos homossexuais são vítimas frequentemente de bullying (id.). Diante do colocado, é possível observar que, ao contrário do que deveria ser, em muitos países a igualdade de direitos perante a lei ainda não é assegurada à população LGBTTT e, nesse sentido, a luta pela garantia dos Direitos Humanos é ainda grande. A luta do movimento LGBTTT pela garantia de Direitos Huma- nos não representa, portanto, uma tentativa de garantia de privi- légios, mas sim pela garantia de direitos já assegurados, ao menos teoricamente, à população como um todo (id. 2003). 38 Tradução nossa. 39 Para a consulta da lista dos países citada, acesse: <http://old.ilga.org/Statehomophobia/ ILGA_State_Sponsored_Homophobia_2011.pdf>. Acesso em 19 nov. 2011. 40 Apenas sete países possuem proibição constitucional de discriminação baseada na orientação sexual (ILGA, 2011). 227226 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2012 Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero Por conseguinte, a Carta das Nações Unidas em seu artigo 1º traz como propósito da Organização: conseguir uma cooperação internacional para promover e estimular o respeito aos Direitos Humanos e às liberdades fundamentais para todos. Assim, apesar de a luta por direitos iguais mostrar resultados re- levantes, exemplificadas pelas diversas conquistas explicitadas em seções anteriores deste artigo, esta ainda não está completa. É neces- sário, ainda, fazer que os Direitos Humanos sejam realmente trata- dos como tais, ou seja, universais e, consequentemente, respeitados por todos e válidos para todos. A resposta para isso, então, está na cooperação – em níveis governamentais, regionais e internacionais. referências bibliográficas ABROMOVAY, Miriam; CASTRO, Mary Garcia; DA SILVA, Lorena Bernadete. Juventudes e sexualidade. UNESCO Brasil, 2004. AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION. Appropriate Therapeutic Responses to Sexual Orientation. 2009. Disponível em: <www.apa.org/pi/lgbc/publications/>. Acesso em: 3 out. 2011. ____________. Avoiding heterosexual bias in language. Disponível em: <www.colby. edu/psychology/APA/Gender.pdf>. Acesso em: 3 out. 2011. ANISTIA INTERNACIONAL. 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