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dos autores P- edição: 2005 Revisão: dos autores Capa: Rafael Marczal de Lima Projeto Gráfico: Jadeditora Ltda. Editoração: Rafael Marczal de Lima Fotolitos e Impressão: Evangraf Ltda. F762F Foucault e a psicologia / Neuza M. E Guareschi, Simone M. Hüning (org.); Heliana de B. Conde Rodrigues... [et – Porto Alegre: Abrapso Sul, 2005. 128 p. 1. Psicologia Social. 2. Foucault, Michel - Crítica e Interpretação. 3. Filosofia. I. Guareschi, Neuza M. F. II. Hüning, Simone M. III. Rodrigues, Heliana de Barros Conde. CDD: 301.1 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Ginamara Lima Jacques Pinto – CRB 10/1204) Su má r io Apresentação: Para desencaminhar o presente Psi: biografia, temporalidade e experiência em Michel Foucault Heliana de Barros Conde Rodrigues .............................................. 7 A psicanálise e a psicologia nos ditos e escritos de Michel Foucault Arthur Arruda Leal Ferreira ......................................................... 29 Para uma arquelogia da psicologia (ou: para pensar uma psicologia em outras bases) Kleber Prado Filho ........................................................................ 73 Ética e subjetivação: as técnicas de si e os jogos de verdade contemporâneos Henrique Caetano Nardi e Rosane Neves da Silva ....................... 93 Efeito Foucault: desacomodar a psicologia Simone Maria Hüning e Neuza M E Guareschi ......................... 107 ISBN 85-86472-06-9 Apresentação PARA DESENCAMINHAR O PRESENTE PSI: biografia, temporalidade e experiência em Michel Foucault Heliana de Barros Conde Rodrigues Apresentar a deliciosa ousadia deste livro, que conecta "Foucault e a Psicologia", constitui um desafio a contrariar a ordem do discurso, ou seja, a resistir às práticas logofóbicas hegemônicas que não toleram a surpresa, o aleatório e o inaudito sempre passíveis de permear ditos e escritos. Praticada, hoje, por significativo número de pesquisadores e profissionais do campo psi, a aventura de trabalhar com ferramentas foucaultianas implica, nesse sentido, um enigma que melhor seria, tal - vez, deixar sem solução - atitude que prefácios e/ou apresentações pare- cem destinados a minar, pois...como antecipar-se sem advertir? Um convite, no entanto - como o que me foi feito pelos que retomam/transformam, neste livro, a "função autor" -, é daqueles atos discursivos que conclamam à potencialização recíproca, e não à rígida fidelidade (por mais que de inspiração foucaultiana) a princípios "não- prefaciantes" - atitude radical, porém inevitavelmente solitária. Acato, pois, o convite generoso a apresentar esta publicação, embora sem o mais leve intuito de decifração ordenadora, preferindo, ao contrário, ensaiar uma experimentação compartilhada. Nesse sentido, o presente texto visa simplesmente a explorar algumas linhas de pensamento convocadas pelo quebra-cabeças "Foucault e a Psicologia", jamais a tentar privar o leitor dos desejáveis riscos a que o irão expor os artigos-discur- sos que compõem a tessitura deste volume. Professora do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); integrante do Clio-Psyché - Programa de estudos e pesquisas em História da Psicologia. Foucault e a Psicologia 7 Por inúmeras vezes, Michel Foucault afirmou que seus escritos cons- tituíam "fragmentos de autobiografia". Essa curiosa circunstância pode- ria levar a supor fundada em alguma identificação disciplinar a paixão que muitos psicólogos demonstram por suas hipóteses de trabalho. Com base nos escritos de Didier Eribon', sabe-se, por exemplo, que na juventude Michel Foucault trabalhou em hospitais psiquiátricos, teve fascínio pelo teste de Rorschach, lecionou psicologia em universidades e chegou a pensar, inclusive, em tornar-se psicólogo. A despeito da menção ao biográfico, nada mais oposto, entretanto, às perspectivas foucaultianas do que essas razões pretensamente profundas, que são ancoradas em um sujeito consti- tuinte e que nada explicam, afinal, ao se arrogarem o direito de dar conta de tudo, em todas as vidas. Se o biográfico tem singular importância, seja nos percursos de Foucault seja na alegria dançarina com que muitos psi- cólogos se apropriam de suas ferramentas conceituais (martelos, geral- mente...), cumpre, para evitar enfoques redutores (quiçá mortíferos para o pensamento), aproximar-se do modo como ele concebeu e articulou os temas da temporalidade e da experiência. Como abandonar os confortos do moderno Publicado em 1966, ano ápice do estruturalismo na França, é freqüente que As palavras e as coisas seja apresentado como típico exem- plar dessa tendência: exibe epistemes– conjuntos de regras a que obedecem os modos de ver e dizer presentes em um conjunto de territórios de saber simultâneos -, descreve-as detalhadamente, afirma o descontínuo à maneira de uma série de sistemas de longa duração. Em função de tais características, Sartre acusou o trabalho, à época, de "úl- tima muralha da burguesia" contra o marxismo, pois ele representaria uma completa negação do devir histórico'. Apaixonada que sou por Foucault - o que, diz-se, leva a supervalorizar minúcias -, encontro no livro duas passagens propícias a Eribon, D. - Michel Foucaulr: uma biografia. São Paulo: Cia das Letras, 1990. 2 Idem, p. 159. 8 Foucault e a Psicologia dar início à exploração das questões acima esboçadas. A primeira volta-se para a caracterização do descontínuo: "O descontínuo (...) dá acesso, sem dúvida, a uma erosão que vem de fora, a esse espaço que, para o pensamento, está do outro lado, mas onde, contudo, ele não cessou de pensar desde a origem. Em última análise, o problema que se formula é o das relações do pensamento com a cultura: como sucede que um pensamento tenha lugar no espaço do mundo, (...) e que não cesse, aqui e ali, de começar sempre de novo? Mas talvez não seja ainda o momento de formular o problema..." 3. A segunda passagem torna a levantar (e soluciona, em parte) o problema antes dito prematuro: "A que acontecimento ou a que lei obedecem essas mutações que fazem com que de súbito as coisas não sejam mais percebidas, descritas, caracterizadas, classificadas e sabidas do mesmo modo (...)? Se, para uma arqueologia do saber, essa abertura profunda na camada das continuidades deve ser analisada, e minuciosamente, não pode ser ela 'explicada' nem mesmo recolhida numa palavra única. É um acontecimento radical que se reparte por toda a superfície visível do saber e cujos signos, abalos, efeitos, pode-se seguir passo a passo''4. Em As palavras e as coisas, portanto, se há descontinuidades e, ao mesmo tempo, estruturas (as tão incompreendidas epistemes), as primeiras – relativas a pensamentos ou discursos - reclamam correlações (a descobrir/ inventar) com outros tipos de séries; as últimas demandam, para que se possa dar conta de sua emergência no tempo, não a lei - e como poderia a arqueologia admiti-la sem se transformar em grande narrativa te(le)ológica? -, mas o acontecimento. Conquanto o caráter desse acontecimento se mantenha problemático (e, no livro em pauta, silenciado), Foucault assevera não ser ele apreensível "numa palavra única"; ou, para usar uma expressão que preferimos, numa palavra com maiúscula (Devir, Dialética, Homem, Progresso, Evolução e mesmo História... tradicional). O livro apelidado o mais estruturalista de Foucault propõe combinar o acontecimento e a estrutura mediante um procedimento alheio Foucault, M. – As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 65. 4 Idem, p. 231-232. Foucault e a Psicologia 9 aos cânonesestabelecidos: admite que se possa dar conta da estrutura... através do acontecimento! É claro que por este último termo não se designam os feitos de grandes homens - Foucault anuncia mesmo que o homem, grande ou pequeno, está prestes a morrer... Mas como poderiam ser apreendidos os transtornos promovidos pela entrada em cena das forças, de que mais tarde falará em tons nietzscheanos5, prescindindo da singularidade dos eventos? Por ora, ainda sem dispor de jusdricativas maiores, alegremo-mos com a hipótese: a coerência apriorística do sujeito e/ou das causalidades sem elo perdido pode dar lugar à acolhida da diferença; a historicidade (com minúsculas) dessa diferença decorre de acontecimentos que não se identificam a (grandes) feitos, tampouco a fatos (consumados), mas apontam a ocorrências simultaneamente rupturais... e rompidas em mil pedaços, qual na figura do caleidoscópio a que Veyne6 assemelha a história em moldes foucaultianos. Para mergulhar nessa perturbadora invenção, sejamos infiéis a Foucault, seguindo uma das figuras-funções que ele dizia detestar (tanto quanto os prefácios ou apresentações): o comentador. Mitchell Dean, porém, constitui um comentador muito especial: sente-se insatisfeito com o recurso a categorias globalizantes — industrialização, racionalização, urbanização, secularização, burocratização... modernização, em suma - por meio das quais as ciências sociais vêm tentando entender nosso presente (em poucas e imprecisas palavras, a sociedade industrial - ou pós o capitalismo, o Estado liberal - ou neo). Ao estudioso australiano, tais categorias soam como parte do que precisa ser explicado, por mais que, ao utilizá-las, a sociologia julgue ter adquirido a dignidade de ciência nomotética e, condescendentemente, relegue a história à busca de uma vulgar dimensão idiográfica7. 5. Foucault, M. — "Nietzsche, a genealogia e a história". Em: Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 6 Veyne, P. — "Foucault revoluciona a história". Em: Como se escreve a história Brasília: Editora da UNB, 1992. 7 Dean, M. - Critica! and efective histories: Foucault's methods and historical sociology. London and New York: Routledge, 1994, p.7. Dean es t á c i en t e d e qu e a d i sc ip l in a so c io ló g ica se i n s t i tu i exa t amen te po r es sa demarca ção : a t r avés d e an á l i ses s in c rôn icas d as to t a l id ades so c i a i s , e l a p ro c l ama se r u ma c i ên c i a d a h i s tó r i a q u e, pa rado xa lmen te , e s t á d i sp en sad a d a n ecess id ad e d e r eal i za r an á l i ses h i s tó r i cas con cre t as . Não o bs t an te t a l p ret ensão t enh a s id o vár i as vezes co ntes t ad a ao lon go do sécu lo XX , a so c io lo g ia p e rman ece apo iad a n as ca t ego r i as g lo b al i zan tes men c io n ad as , qu e se i n tegram a d u as fo rmas ap en as ap aren temen te co nt ras t an t es d e t eo r i a : a p ro gress iv i s t a (p ro gress ivi s t ) e a c r í t i ca . A p r imei ra d e fen d e u m es q u ema d e p ro gresso so c i a l an dado em u ma t e l eo lo g ia — d a r azão , d a t ecno lo gia o u da p rod u ção . Tra t a - se d o mo d e lo d eno min ado a l to mod ern i smo, exemp l i f i cad o p e l as na r ra t ivas do I lu min i smo , p elo p os i t i v i smo co mteano e , in c lu s ive, po r a lgu n s e l emen to s da t eo r i a marx i s t a d a h i s tó r i a ou even tu a is in t erpre taçõ es d a co n cep ção web er i an a d a rac ion a l i zação . Em qu a lq uer d essas va r i an t es , con si s t e n u ma e l abo ração qu e "bu sca ad qui r i r o p res t íg io d as c i ên c i as n atu ra i s , a t r ibu ind o f r eqü entemen te a su as a f i rmaçõ es a fo rma d e exp l i caçõ es ge ra i s e cau sa i s , co m cará t e r semelh ante ao d a l e i " . J á a t eo r i a c r í t i ca p ropõe u ma d i a l é t i ca em q u e as fo rmas p resen tes d a r azão e da so c i ed ad e são s imu l t an eamen te n egad as e p rese rvad as . Faz severas r es t r i çõ es às n a r ra t ivas d o a l to mo d ern i smo , d enu n cia n do a r azão in s t ru men ta l que ce l eb ram, ao mesmo t emp o qu e o fe rece u ma ver são a l t e rn a t iva ( e supo s t amente mai s e l evad a) d e r acion a l id ad e, a t r avés d e n ar ra t ivas d e " reco n ci l i ação do su j e i to con s igo mes mo , co m a n a tu reza , co m a fo rma d e su a p rópr i a r azão ( . . . ) [qu e] p ro metem e man c ip ação e sa lvação secu la r "9 . V ar i an t es d essa p e r sp ect iva p e rmeiam to do o marx i s mo o c id en ta l , s end o id en t i f i cáve i s , d e mo do mai s esp ec í f i co , na Teo r i a d a Rac ion a l id ad e Co mu nica t iva d e Hab ermas e n a Dia l é t i ca d o I lu min i smo d e Ado rno e H orkh e imer , amb as fo rmas d e mo d ern i smo c r í t i co . P ara Dean , con tu do , j amai s sab emo s se fo mo s , so mo s ou se remo s mo d erno s . P r in cip almen te , n un ca n os d ever í amo s co ns id era r ex - Id em, p . 3 . Id em, Id em. 10 Foucault e a Psicologia 11 Foucault e a Psicologia plicáveis pela modernização, um termo-processo que é termo-armadi- lha, pois, aderindo a ele ou contestando -o, promovemos des- historicização: o presente será caminho – para os modernistas - ou descaminho - para os modernistas críticos -, mas em nenhuma das duas teorias se verá des-encaminhado. Nessas circunstâncias, o sociólogo australiano entrevê um terceiro tipo de prática intelectual para o pesquisador social: a problematizante. Ela estabelece "uma análise da trajetória das formas de verdade e conhecimento sem origem ou finalidade", tendo por efeito "a perturbação das narrativas seja de progresso seja de reconciliação, descobrindo questões onde as outras viam respostas"10. Para tanto, mantém-se receptiva à dispersão das transfor- mações históricas, à rápida mutação dos eventos, à multiplicidade das temporalidades e, primordialmente, à possibilidade de reversão de trilhas históricas. O problematizador é também um crítico, embora adote estraté- gia distinta da dos modernistas críticos: "recusa-se a aceitar os componen- tes dados-por-óbvios (taken-for-granted) de nossa realidade e as explicações oficiais acerca do como vieram a ser o que são"". Esse singular caráter remete a um inquérito em princípio ilimitado acerca do presente: quando nele diagnostica limites, está disposto a atribuí-los a constrangimentos con- tingentes. Com isso, faculta-se a entrada em cena daquilo que Foucault, seguindo Nietzsche, chamou de "história efetiva"12– a que rejeita a coloni- zação, quer do conhecimento quer da ação política, por sínteses filosóficas que prescrevam significados primeiros, últimos e/ou globais. Em um passo arriscado – palavras são perigos! -, Dean acata uma polêmica denominação: "se o amplamente usado termo 'pós-modernis- mo' for definido como a teimosa problematização do dado, ficaria feliz em ver este tipo de história como um exercício de pós-modernidade"13. O prefixo pós, conforme aqui manejado, designa menos um depois da modernidade do que uma ilimitada possibilidade de interrogá-la. 1° Idem, p. 4. " Idem, idem. 1 2 Foucau l t , M . - op. c i t , 1979. Dean, M. - op. cit., p. 4. Não obstanteseja sempre um exagero de linguagem falar de méto- do em se tratando de Foucault - o que ele apresenta nesse sentido descre- ve investigações anteriores ou antecipa experimentações futuras, sem ser jamais prescritivo -, a prática problematizante ganha nuances metodológicas em Arqueologia do saber para Dean (e para nós), o livro ultrapassa o debate continuidade versus descontinuidade, situando sua própria novidade no estatuto singular atribuído ao documento histórico. A monumentalização documental nele proposta tanto significa a inclu- são do documento em séries (e séries de séries) quanto, especialmente, uma ênfase nos nexos entre documentação e problema; de forma mais precisa, aliás, uma ênfase no caráter polêmico da definição de qual deve ser o problema – em síntese, encaminhar... ou desencaminhar o presente? São, porém, os textos foucault ianos dos anos 1970 que potencializam politicamente essa ênfase e o fazem por meio da definição precisa de um adversário para uma história que, além de crítica –cônscia de seus limites (os arquivos que nos foram legados) -, se quer efetiva - capaz de intervir no presente. Tal adversário é toda a gama de supra-histórico que nos rodeia, condicionando modos de ser, pensar e atuar por meio de permanentes reasseguramentos identitários - não sendo a modernizaçao o menor deles.... Apelando a Nietzsche, Foucault diagnostica, então, a presença do supra-histórico em alguns dos usos da própria história-disciplina: uso mo- numental (grandes vultos e feitos), antiquário (acentuação da continuida- de-tradição) e crítico (julgamento-condenação do passado em nome do presente, tornando o primeiro algo fixo, paralisado e menor). Ainda com Nietzsche, projeta, como alternativa, um uso paródico (contrário ao realis- mo de uma reminiscência-reconhecimento), dissociativo (contraposto à identidade) e sacrificial (renúncia à vontade de verdade, à história "orgu- lhosa" de ser conhecimento). Esses exercícios aspiram a "fazer da história um uso que a liberte para sempre do modelo, ao mesmo tempo metafísico e antropológico, da memória. Trata-se de fazer da história uma contramemória e de descobrir conseqüentemente toda uma outra forma do tempo"14. Foucault, - op.cit., 1979, p. 33, grifos nossos. 12 Foucault e a Psicologia Foucault e a Psicologia 13 A proposta foucaultiana, por conseguinte, é a de uma história singularmente crítica e efetiva: a arqueologia dispensa toda arché ou fundamento, construindo/analisando arquivos a partir da massa do- cumental que nos foi legada – ela orienta teoricamente nossos procedi- mentos; mas somente combinada com a genealogia pode afastar o ran- ço positivista que a assedia, colocando igual importância nos usos do conhecimento histórico. Daí ressaltar Dean ainda um terceiro termo, presentismo ou história do presente: história feita no presente, sim; histó- ria que tenta dar conta do que presentemente somos como sujeitos de conhecimento, ação e moral, decerto; fundamentalmente, porém, his- tória que luta contra compreensões anacronísticas – aquelas que fazem do presente o resultado necessário de um passado aprisionado em sig- nificações - e assim nos liberta, parcialmente que seja, para o exercício de formas de pensar, agir e ser...que ainda não existem. O futuro do pretérito Nos comentários de Dean, obtivemos argumentos para sustentar que eventos e história (com minúscula, não metafísica) são perfeita- mente compatíveis: só há dissonância quando os primeiros são atribu- ídos a esquemas fixos do tipo causa-e-efeito ou remetidos a unidades de significação preestabelecidas (caminho do progresso ou descaminho ins- trumental, pouco importa). Esse mesmo ponto é diretamente aborda- do no debate entre Foucault e alguns historiadores, ocorrido em 1978, quando o pr imeiro ch ega a de fender a n ecess id ade de u ma événementialisation (eventualização) da disciplina historiográfica: "Onde nos sentimos tentados a fazer referência a uma constante histórica ou a um traço antropológico imediato (...), trata-se de fazer surgir uma 'sin- gularidade'. Mostrar que não era 'assim tão necessário'. (...) Ruptura das evidências, destas evidências sobre as quais se apóiam nosso saber, nossos consentimentos, nossas práticas. (...) Ao mesmo tempo, a événementialisation consiste em descobrir as conexões, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de força, as estratégias etc. que, em dado 14 Foucault e a Psicologia momento, formaram o que a seguir vai funcionar como evidência, uni- versalidade, necessidade''15. Reler esse fragmento induz a pensar em possíveis construções do que propomos denominar futuro do pretérito. Na pena de um historia- dor, em grandes linhas, o evento histórico pode redundar seja em destino (fato consumado, funcionalizado, estruturalizado) seja em contingência (raridade, singularidade, desencaminhamento). No caso de um evento se tornar explicável por regras - acentuadas, inegavelmente, por Foucault -, também estas são passíveis de entendimentos alternativos: apriorismos sintáticos e/ou semânticos (estruturas significantes imutáveis, edifícios sociais com determinações em última instância, dialéticas universalizantes) ou repetição/reforço de práticas determinadas - por mais que este segundo caso exija imaginar um caleidoscópio manejado por mãos preguiçosas ou pouco curiosas... É em decorrência do realce dado por Foucault ao segundo termo dessas díades que Rajchman1 6 o chama de "filósofo da liberdade" – nada nos determina a não ser o que nos acontece atualmente -, embora nunca da "libertação" - inexistem causa, princípio ou finalidade preestabelecidos, últimos, universais. Para apreciar melhor tal circunstância, cumpre recorrer a Genealogia e poder, aula de um curso no Collège de France datado de 1976. No início da exposição, Foucault se refere às pesquisas por ele levadas a efeito nos anos 1970 como "dispersas e fragmentárias", "saber inútil e suntuoso" cujo lugar mais adequado seriam as notas de rodapé; uma "maçonaria da erudição inútil"", em suma, feita de escritos empoeirados e textos nunca antes lidos. Sem renegar seu idiossincrático apreço pela minúcia, Foucault assinala a seguir que este se coaduna muito bem com uma característica presente no panorama cultural, político e intelectual de então: a "eficá- "Foucault, M. "Table ronde du mai 1978". Em: Dits et Écrits, vol. IV. Paris: Gallimard, 1994, p.23. 16 Rajchman, J. - Foucault: a liberdade da filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. Foucault, M. – "Genealogia e Poder". Em: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979a, p. 168. Foucault e a Psicologia 15 cia das ofensivas dispersas e descontínuas"18 A expressão condensa uma série de ocorrências: entraves ao funcionamento da instituição psiquiá- trica provocados pelos discursos e práticas, bastante localizados, da antipsiquiatria; eficácia dos ataques contra o aparelho judiciário e pe- nal, apenas vagamente ligados ao argumento da luta de classes, ou longinqüamente anarquistas; perturbação causada por livros como o Anti- Édipo, praticamente auto-referente, sem tradição teórica, institucional e/ou filosófica. Foucault se refere, assim, a uma experiência – a eficácia das críti- cas particulares e locais - que faculta o acesso a algo não previsto. Re- gressaremos, um pouco mais tarde, ao sentido do termo experiência. Por enquanto, concentremo-nos na explicitação da descoberta impre- vista: a apreensão do "efeito inibidor próprio às teorias totalitárias, glo- bais", dentre as quais se destacam a psicanálise e o marxismo. Na verda- de, não importa tanto a especificação das teorias globais a que se fazemrestrições; cumpre estar primordialmente atento ao "efeito de refrea- mento" que qualquer uma delas provoca quando retorna sem cessar a sua própria totalidade, em lugar de ser "recortada, despedaçada, deslocada, invertida, caricaturada, teatralizada"19. Reativando, quanto a quaisquer disciplinas, o que, com Nietzsche, sugerira em favor de uma história efetiva – uso paródico, dissociativo e sacrificial Foucault passa a ver suas pesquisas como portadoras de uma primeira (e, agora, desejável) característica: o caráter local da críti ca, "espécie de produção teórica autônoma, não centralizada, (...) que não tem necessidade, para estabelecer sua validade, da concordância com um sistema comum"". Essa crítica local se dá através de um retor- no de saber; melhor dizendo, de uma insurreição dos saberes dominados. Pela expressão se devem entender: (1) "conteúdos históricos que foram sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistemas for- mais", reveladores da "clivagem dos confrontos, das lutas que as orga- Idem, idem. 19 Idem, idem. " Idem, idem. nizações formais ou sistemáticas têm por objetivo mascarar"; (2) "uma série de saberes que tinham sido desqualificados como não competen- tes ou insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do conhecimento ou da cientificidade"21. A insurreição dos saberes dominados, por conseguinte, tanto com- porta blocos de saber histórico – até então dessingularizados no interior de sistemas - quanto revaloriza o saber das pessoas - saber "particular, regio- nal, local, um saber diferencial incapaz de unanimidade e que (...) deve sua força à dimensão que o opõe a todos aqueles que o circundam". Ao contrário das classificações hegemonicamente aplicadas, esse saber das pessoas não é bom senso nem senso comum: é saber deixado de lado, quando não explicitamente subordinado. Consoante Foucault, a crítica local deve seu impacto exatamente a essa junção entre "o saber sem vida da erudição e o saber desqualificado pela hierarquia dos conhecimentos e das ciências; em última análise, ao saber histórico da luta"22. É muito ampla a gama de associações que essas frases podem des- pertar. Limito-me, todavia, a evocar uma antiga afirmação de Barthes –"a história é um sonho porque conjuga, sem assombro e sem convicção, a morte e a vida"" -, assim como a pergunta-réplica com que Arlette Farge, em artigo dedicado ao événement (evento), nos convida a contradizê-la: "Como conjugá-las [a morte e a vida] com assombro e com convicção, a fim de que a história não seja um sonho, mas, ao contrário, um meio de estar no passado a fim de decidir quanto ao presente e, quem sabe, quanto ao futuro?"". O futuro do presente se vê, assim, implicado no futuro do pretérito. Antes mesmo que Lyotard viesse a conceituar a condição pós- moderna como "fim da grande narrativa", Foucault, no texto que ora privilegiamos, chama atenção para o quanto a história comporta de 21 Idem, p. 170. " Idem: idem; grifos nossos. " Apud Farge, A - "L'instance de I'événement". Em: France, D.; Prokhoris, S.; Roussel, Y. (eds.) - Au risque de Foucault. Paris: Editions du Centre Pompidou, 1997, p. 27. 24 Farge, A - op. cir., p. 27. 16 Foucault e a Psicologia Foucault e a Psicologia 17 estratégico. Nesse sentido, a elaboração de certas narrativas (ou a luta pelo encerramento das grandes) tem a possibilidade de se constituir em algo muito distinto de uma atitude blasée, desencantada ou quietista. Representa, ao contrário, valiosa inquietação em face do que é conside- rado dado, coerente, óbvio, lógico, previsível, evidente, funcional ou nobremente científico, inquirindo o quanto comporta de "emparia com os vencedores" - para usar uma expressão de Walter Benjamin que, tal como Foucault, desejava "escovar a história a contrapelo"'25. Foucault não acena com cientificidade: blocos de saber histórico até então mascarados (uma erudição, arquivos, séries documentais) e saberes pessoais incapazes de unanimidade (um vozerio, falas contrastantes, narrativas-memória) combinam-se para gerar genealogias, e, o que é mais importante, as genealogias são ditas "anti-ciências" por- que desenvolvidas "contra a tirania dos discursos englobantes com suas hierarquias e com os privilégios da vanguarda teórica"26. Elas montam contrariedades àquilo que é tomado por garantido. Das lições da história às experiências e experimentações: o abalo do presente Em um artigo cujo andamento nos servirá de guia, D'Amaral e Pedro`' põem em discussão as formas de temporalidade que os historiadores cons- troem e narram. O primeiro modo identificado pelos autores é o da história universal de tipo positivista, já suficientemente pisado e repisado, em que o historiador-narrador atua como se estivesse situado no fim dos tempos. Melhor dizendo, como se ocupasse a extremidade de uma linha reta, orien- tada, extremidade esta em cuja direção o passado se encaminharia como que naturalmente justificado por uma cadeia causal de fatos consumados:25 Benjamin, W. — "Sobre o conceito de história". Em: Obras escolhidas - magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. Foucault, M. - op. cit., 1979a, p. 171. D'Amaral, M.T. e Pedro, R.M.L.R. - "O tempo: entre a ciência, a cultura e a história". Documenta, ano IV, n". 7, 1996. a história caminharia... em nossa direção. Por estranho que pareça, con- quanto alardeiem repúdio às histórias filosóficas, os positivistas são os pri- meiros a admitir um fim da história: o lugar que eles próprios ocupam é idealizado como objetivo ou meta da mesma; em última instância, como a grande lição - a finalidade, o objetivo - da história. O segundo modo apresentado por D'Amaral e Pedro aponta à microhistória italiana, mais precisamente ao paradigma indiciário descrito por Carlo Ginzburg, porém podemos estendê-lo a inúmeras outras formas de prática historiográfica especializada, elaboradas sob a égide das críticas à história positivista empreendidas pela Escola dos Annales desde a década de 1920. Recorrendo a uma frase inspirada - "É do presente que o passado faz questão" -, os autores fazem ver que esses historiadores estão perfeitamente cônscios de que se encontram em um momento par- ticular, o presente, a partir do qual constroem objetos relativos ao passa- do. Dir-se-ia que se sabem presos em uma espécie de jaula temporal, reconhecendo que o que nela penetra está obrigatoriamente filtrado; em decorrência, aquilo que o estudioso é capaz de narrar também o está. Apesar disso, tanto os microhistoriadores, como Ginzburg, quanto os annalistas de variadas estirpes, ao defenderem o que o primeiro apelida rigor flexível, acabam por colocar ênfase maior no rigor de uma história- verdade do que nos limites (históricos) impostos a esse rigor. Nos termos de D'Amaral e Pedro, "o objeto, mesmo construído, ainda porta em si uma verdade oculta, invisível, a qual se deve buscar com rigor"29. O terceiro modo de relacionar tempo e narrativa histórica exposto pelos autores é o foucaultiano. Parte das inquietações que ele nos poderia trazer já foram antecipadas: com Foucault, nada de lições de uma história-passado que no presente encontra seu objetivo; tampouco segredos ocultos de um passado-totalidade inferidos com flexível rigor a partir de um presente qualquer. Algo, porém, ainda surpreende: con- soante Foucault, para apreender o vínculo entre o presente e o passado estabelecido na narrativa histórica, é preciso estar atento à relação do " Idem, p. 83. 29 Idem, p. 84. Foucault e a Psicologia Foucault e a Psicologia presente... com ele mesmo! Melhordizendo, para que o passado se tor- ne objeto de investigação, demanda-se que "o presente se perceba num movimento de separação de si mesmo (...); no momento em que o presente está deixando de ser o que é, a história se torna possível"30. Essas proposições reafirmam que, tratando-se de Foucault, a ex- pressão história do presente faz bem mais do que designar o caráter cons- trutivo do trabalho do historiador. É claro que fazemos história hoje, motivados por problemas formulados hoje, aspirando a que as soluções encontradas não sejam anacrônicas - estes são nossos limites. Mais do que limitada pelo presente, todavia, a genealogia foucaultiana é desencadeada por ele; em outras palavras, promovida por um movimen- to, mínimo que seja, de desprendimento, que, por isso mesmo, torna o presente historicizável. História do presente é história feita no presente sobre um presente... que já não somos mais. Chamemos em nosso auxílio, para explorar essa perspectiva, um artigo de Gilles Deleuze, cujo título indaga Qu'est-ce qu'un dispositif?. Após a caracterização do trabalho de Foucault como uma filosofia dos dispositivos - repúdio aos universais, afastamento do eterno em favor da criação -, ali se propõe: "Nós pertencemos aos dispositivos e agimos neles. À novidade de um dispositivo em relação aos precedentes chamamos sua atualidade, nossa atualidade. (...) O atual não é o que nós somos, mas o que nos tornamos (...) o outro, nosso devir-outro. Em todo dispositivo, é necessário diferenciar o que nós somos (o que já não somos mais) e o que estamos em vias de nos tornar: a parte da história e a parte do atuar'. Há três termos em jogo nesse fragmento: o ontem, o hoje e o passado. O ontem é uma dimensão do presente: é o que somos, mas, igualmente, o que estamos deixando de ser. O hoje - designado, por Deleuze, como o atual - é o que estamos nos tornando. Finalmente, o passado é o que se constitui, na forma de história, a partir da distância instaurada entre o ontem (o presente) e o hoje (o atual). 30 Idem: idem. Deleuze, G. - "Qu'est-ce qu'um dispositif?" Em Association pour le Centre Michel Foucault - Michel Foucault philosophe. Paris: Seuil, 1989, p. I90-191. Nessa perspectiva, o passado não é o que nos fundamenta. Longe de ser fonte de nossa identidade, ele é faccionado a partir de nossa dis- persão - a diferença presente/atual -, facultando uma reflexão sobre ela e alimentando experimentações com o novo, com o que está em vias de ser. Porque o atual não é esboço de um futuro livre e desalienado, mas o agora de nosso devir, desejável como tempo outro, nunca como completude, realização ou reconciliação. Embora grande parte dessas considerações emerja de maneira mais explícita na pena de Deleuze e seja costumeiramente associada aos últi- mos trabalhos de Foucault, a problematização é muito mais remota, podendo ser conectada aos temas do biográfico, da experiência e dos usos estratégicos da história. Radical anti-humanista, Michel Foucault foi, surpreendentemente, um dos pensadores contemporâneos que mais batalhou para que a experiência fosse incorporada à reflexão filosófica e historiográfica. Co- nhecendo as restrições foucaultianas à fenomenologia, o leitor poderia objetar estar eu, agora, tentando transformar Foucault em uma espécie de Sartre, que tão feliz ficava em dispor de uma ferramenta que lhe permitia fazer filosofia, inclusive, acerca do cocktail saboreado nas me- sas do Café de Flore. É claro que não se trata disso. Foucault integra a experiência à reflexão historiográfica na qualidade de uma inquietação que se torna ponto de partida para um trabalho teórico, ético e político. Manter a experiência em nível pessoal, sem desdobrar suas conseqüên- cias, é que seria limitar-se, qual Sartre, ao plano de um subjetivo cons- tituinte, atenuando virtuais poderes de perturbação. A esse respeito, Eribon ressalta as repetidas referências de Foucault a "experiências transformadoras"32 envolvendo relações com os outros, inserções na vida cultural, engajamentos políticos, confrontos com normas institucionais, etc. Em uma entrevista concedida em 1981 a Libération, por exemplo, Foucault declara: "Cada vez que tentei fazer um trabalho teórico, foi a partir de elementos de minha própria experi- ência: sempre em relação com processos que eu via se desenvolverem Eribon, D. - Michel Foucault e seus contemporâneos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1996, p.36. 20 Foucault e a Psicologia Foucault e a Psicologia 21 em torno de mim. Foi porque acreditei reconhecer nas coisas que via, nas instituições com que me ocupava, em minhas relações com os ou- tros, fissuras, abalos surdos, disfunções, que empreendi esse trabalho - algum fragmento de autobiografia"". Se isso dá a impressão de ser mais uma das reconstruções de tra- jetória tão ao gosto de Foucault, pode-se recorrer a um texto bem mais antigo, a apresentação de autor que figurava na capa de História da loucura quando de seu lançamento, em 1961: "Este é o livro de alguém que se surpreendeu (...), freqüentou os hospitais psiquiátricos (do lado em que as portas se abrem), conheceu na Suécia a felicidade socializada (do lado em que as portas não se abrem mais), na Polônia, a miséria socialista e a coragem necessária, na Alemanha, não muito longe de Altona, as novas fortalezas da riqueza alemã (...). Tudo isso o fez refletir, com seriedade, sobre o que é um asilo..."34 Sob forma mais abstrata, é aproximadamente a mesma idéia - a da experiência transformadora, a da experiência ético-política de um devir-outro - que emerge em Arqueologia do saber "A análise do arquivo comporta, pois, uma região privilegiada: ao mesmo tempo próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da orla do tempo que cerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade; é aquilo que fora de nós nos delimita. A descrição do arquivo desenvolve suas possibilidades (...) a partir de discursos que começam justamente a deixar de ser os nossos (...). Nesse sentido, vale para nosso diagnóstico (...) porque nos desprende de nossas continuidades (...), faz com que o outro e o externo se manifestem com evidência". A despeito desses indícios remotos, não há como negar que um maior destaque da experiência transformadora, incluindo os nexos que esta mantém com a vida-biografia e a construção da narrativa 33Foucault, M.- "Est-iI donc important de penser?" Em Dits et Écrits, vol. IV. Paris: Gallimard, 1994, p. 182, grifos nossos. 3 ° Apud Eribon, op. cit., 1996, p. 41.35 Foucault, M. - Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 150-151. 22 Foucault e a Psicologia historiográfica, data do final dos anos 1970 e da década de 1980 - momento em que a produção foucaultiana tem por foco os modos de subjetivação, a ética, a governamentalidade. Em uma entrevista concedida nos Estados Unidos em 1979, após denunciar como um perigo a compreensão de identidade e subjetividade sob a forma de componentes profundos e naturais - conclamando a uma liberação de nossa relação a nós mesmos -, Foucault situa o lugar de suas pesquisas (e a eventual verdade nelas contida) nesse processo: "Eu não sou propriamente um historiador. E não sou romancista. Pratico uma espécie de ficção histórica. De certa maneira, sei muito bem que o que digo não é verdade (...). Sei muito bem que o que fiz é, de um ponto de vista histórico, parcial, exagerado (...). Tento provocar uma interferência entre nossa realidade e o que sabemos de nossa história passada. Se sou bem sucedido, essa interferência produzirá efeitos reais sobre nossa história presente. Minha esperança é que meus livros ganhem sua verdade uma vezescritos - e não antes (...). Espero que a verdade de meus livros esteja no futuro"36. Quanto a isso, vale lembrar que Nietzsche, filósofo que Foucault muito admirava, tanto via utilidade quanto, principalmente, desvanta- gem para a vida na história - como sugere o título da Segunda Conside- ração Intempestiva. Para inverter o balanço, a temporalidade instituída precisaria ser alterada a marteladas, pois "cessa de viver tudo que é dis- secado até o fim" e, em todos os domínios, "apenas algo surge e já se explica o itinerário passado, a evolução futura, (...) se o decompõe, se o corrige ou admoesta - se faz de tudo para evitar precisamente o que mais importa, que a obra tenha seu efeito sobre a vida e sobre a ação"37. Nesse sentido, de acordo com Nietzsche, não caberia relacionar os ho- mens a seu tempo; ao contrário, seria desejável pensá-los, a cada momento, em luta contra seu tempo. Disso, justamente, nos fala Foucault Foucault, M. – "Foucault étudie la raison d'État". Em Dits et Écrits, vol. III. Paris: Gallimard, 1994, p. 805. 3- Apud Pélbart, P.D. – "Deleuze, um pensador intempestivo". Em Lins, D. et al. – Nietzsche e Deleuze. Intensidade e paixão. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 67. Foucault e a Psicologia 23 com sua história-ficção - história do presente construída contra o pre- sente, a partir daquilo que este já carrega de devir-outro, de intempestivo. Trata-se igualmente, conforme assinalamos, de uma relação extre- mamente singular entre tempo e narrativa historiográfica. Pois se essa narrativa pode "agir sobre" (transformar) a dimensão presente-futuro - fazendo-se verdadeira a partir do momento em que é escrita -, sua elabora- ção está, ao mesmo tempo, condicionada pelas experiências que, de al- gum modo, já nos desprenderam do que somos. É nessa linha que, em uma entrevista concedida em 1978 a Ducio Trombadori, Foucault abor- da a relação entre experiência pessoal e escrita da história. Desde o come- ço da interlocução, afirma-se um experimentador mais do que um teóri- co: diz que seus livros foram provocados por experiências; que os próprios livros são experiências; que uma experiência é aquilo de que se sai transformado; que escreve para mudar a si mesmo e aos outros. Intrigado com o uso repetido do termo experiência, o entrevistador levanta a hipó- tese de um possível nexo com a fenomenologia. Foucault retruca que o problema principal não está em trazer à luz "a significação da experiência quotidiana para reencontrar, no que sou, o sujeito fundador", como acon- tece no projeto fenomenológico; a experiência, ao contrário, tem por função "arrancar o sujeito de si mesmo, fazer com que ele não seja mais ele mesmo", em um empreendimento de "des-subjetivação"". Atuando como uma espécie de "advogado do diabo", Trombadori lhe pergunta de que forma, em meio a tanta experimentação, poderiam ser atendidos os critérios de verdade histórica, credibilidade e objetivi- dade. Foucault não se faz de rogado: cônscio de estar imerso nas lutas entre programas de verdade, admite trabalhar com os métodos clássicos (documentos, esquemas, citações, formas de explicação), o que faz de seus livros objetos tão passíveis de confirmação e/ou refutação quanto quaisquer outros. No entanto, não se importa de que eles possam ser, igualmente, considerados ficções: "...meu problema não é satisfazer os historiadores profissionais. Meu problema é o de fazer, e de convidar os 38 Foucault, M. - "Entretien avec Michel Foucault". Em: Dits et Écrits, vol. IV. Paris: Gallimard, 1994, p. 43. 24 Foucault e a Psicologia outros a fazerem comigo, através de um conteúdo histórico determina- do, uma experiência daquilo que nós somos, daquilo que não é apenas nosso passado mas também nosso presente, uma experiência de nossa modernidade da qual saiamos transformados. O que significa que ao fim do livro possamos estabelecer relações novas com o que está em pauta". Em uma referência específica à questão da loucura, adenda: "...que eu, que escrevi o livro, e que aqueles que o leram tenham com relação à loucura, a seu estatuto contemporâneo e à sua história no mundo moderno, uma outra relação"". Logo, por mais que Foucault fale em autobiografia e em experi- ência pessoal, a questão não está em transpô-las diretamente para o saber, à maneira de confissões. A experiência e o biográfico se situam, simultaneamente, no começo e no fim de um processo: a construção do objeto é deflagrada por uma perturbação do taken for granted do presente (o atual o designa como o que já não somos mais); a narrativa histórica, por sua vez, faculta o acesso a uma experiência nova, transfor- mação ou metamorfose que, eventualmente, se liga a uma prática cole- tiva - pensemos nos vínculos dos livros de Foucault com a antipsiquiatria, os movimentos de liberação sexual, os movimentos de detentos, etc. Quanto a este último aspecto, Trombadori expressa novas dúvidas, con- siderando difícil que práticas coletivas possam ser conectadas a experi- ências individuais, o que redunda em novo esclarecimento por parte de Foucault: "Uma experiência é qualquer coisa que se faz realmente sozi- nho, mas que não se pode fazer plenamente senão na medida em que escape à pura subjetividade e que os outros possam, não diria retomá-la exatamente, mas ao menos cruzá-la e atravessá-la"". Vigiar e punir lhe serve, a seguir, de mote decisivo. Afirma que, quando o livro saiu, muitos trabalhadores do sistema penitenciário lhe diziam que era paralisante: depois de lê-lo, não conseguiam atuar do mesmo modo que antes. Além de recordar ter sido o texto escrito a partir da experiência do GIP (Grupo de Informações sobre as Prisões), 39 Idem, p. 44. Idem, p. 47. Foucault e a Psicologia 25 Foucault identifica nesses efeitos o sucesso do empreendimento historiográfico: "Ele se lê, portanto, como uma experiência que muda, que impede (...) de ter com as coisas, com os outros, o mesmo tipo de relação que se tinha antes da leitura. Isto mostra que, no livro, se expri- me uma experiência bem mais ampla que a minha. Ela nada fez senão inscrever-se em alguma coisa que estava efetivamente em curso; na trans- formação do homem contemporâneo quanto a si mesmo, poderíamos dizer. Por outro lado, o livro também trabalhou por esta transformação (...). Eis o que é para mim um livro-experiência, por oposição a um livro- verdade e a um livro-demonstração"41. Um pouco de possível, senão.... Um livro-experiência, afinal, em contraste com tantos e tantos livros- verdade, livros-demonstração, que nos intoxicam de saberes psicológicos pretensamente nobres, orgânicos, maiores, os quais, como que distraidamente, ignoram as condições de produção da dita "ciência" que veiculam - eis a provocação primeira da aproximação entre "Foucault e a Psicologia", aventura da presente publicação. Impossível, e mesmo desaconselhável, apresentar-prefaciar uma experiência; mais vale seguir, atento, seus destinos, quando se vir atra- vessada pelas experiências de seus leitores. Posso apenas focalizar minha própria travessia, a de primeira leitora (ao menos oficialmente); nada mais fiz até aqui, aliás, do que dela falar. Porque se optei em trazer, de meus descaminhos junto a Foucault, algumas articulações entre bio- grafia, temporalidade e experiência, foi em função do impacto que me provocaram as experiências biográficas transformadoras que, sinto e par- tilho, conduziram Kleber Prado Filho, Arthur Ferreira, Simone Hüning, Neuza Guareschi, Henrique Nardi e Rosane Neves da Silva à elabora- ção de suas ficções transgressivas - discursos e práticas que recusam, para o campo psi , a temporalidade inevitávelde um destino... funesto. 41 Idem, idem. Para tanto, esses companheiros discursivos imiscuíram-se naque- las zonas cinzentas de que é feita a genealogia - circunstância que os levou a parar de mentir, ou melhor, a negar-se a construir/praticar uma psicologia das manhãs modernistas, tingida do azul da verdade revela- da através das grandes narrativas. Cumpre frisar, contudo, que, em meio aos tons cinzentos, espaços de luminosidade se esgueiram - eles os in- ventam, qual obras de arte, na forma de arqueologias, histórias, problematizações auto-reflexivas e interferências em jogos de verdade, em lugar de lamentar-se por algum ilusório descaminho do qual estari- am desimplicados. Com isso, nos facultam vislumbrar aquela parcela de possível que nos livra da sufocação, que impede a asfixia. Virando a página, novos leitores poderão conspirar - termo que, como bem disse Guattari, sugere "respirar junto"". E também eu sigo, agradecida por este convite a apresentar dotado da liberdade de jamais policiar, respirando (junto) com eles.42 Guattari, E - "Três milhões de perversos nos bancos dos réus". Em: Revolução Molecular. São Paulo: Brasiliense, 1987. Foucault e a Psicologia 27 Foucault e a Psicologia 26 A PSICANÁLISE E A PSICOLOGIA NOS DITOS E ESCRITOS DE MICHEL FOUCAULT Arthur Arruda Leal Ferreira' Introdução: Michel Foucault e o nomadismo no pensamento A crítica foucaultiana à pretensão de unidade do discurso em fun- ção da noção de autor estabelecida em O que é uma autor (1968-B) talvez não encontre maior pertinência que na reunião de enunciados cunhados pela assinatura do próprio Michel Foucault. Quase impossível detectar um traço qualquer de permanência, que não seja o constante ultrapassagem de um pensamento, que sempre apaga suas próprias pistas e produz novas evidências. Como se a essência do pensar pudesse ser constantemente se dis-pensar se re-pensar. Impossível falar em nome de Foucault, impossível Ser foucaultiano. Antes de se perguntar "Quem-Foucault?", necessário se perguntar "Qual-Foucault?", na instantaneidade de um certo texto, no conjunto de forças momentâneas que atravessam os enunciados assinados com o seu nome. Daí que sob a máscara foucaultiana podemos encontrar o zumbido de um coletivo. Fica difícil portanto avaliar o conjunto de textos foucaultianos conforme um bloco, ou segundo um conjunto de princípios. Não é possível jamais reconhecer um sistema filosófico delineando os seus textos. Contudo, segundo Márcio Goldman (1998), persistiria ao longo dos trabalhos de Foucault: a) um modo de constituição de objetos, b) um procedimento de exame e c) um conjunto de objetivos. Quanto à constituição de objetos, Foucault, segundo Goldman, escreveria ' Professor adjunto do Instituto de Psicologia da UFRJ, pesquisador apoiado pela FAPERJ e FUJB, e doutor em Psicologia Clínica pela PUC/SP. Foucault e a Psicologia 29 conforme Carmelo Bene em seu manifesto do menos, extraindo os perso- nagens maiores da cena, e dando vida aos menores e coadjuvantes. É deste modo que este pensador procederia, retirando de foco, por exem- plo, ciência e ideologia como eternos protagonistas, e introduzindo saber e poder. No que tange ao procedimento de exame, o ponto de partida se encontra numa questão, ou numa luta presente. A partir daí, toma-se um determinado objeto em questão como a clínica, a prisão, ou a sexualida- de, e dissolve-o em suas condições de possibilidade históricas, acontecimentalizando-o e lançando-o na singularidade de suas múltiplas causas. É deste modo que tudo que se apresenta como universal e neces- sário remontaria a uma contingência objetivada e rarificada ao longo da história. Por fim, o seu objetivo, como se pode entrever, é político. Mas não no sentido de fornecer diretrizes, e sim instrumentalizando lutas. E isto seria realizado de três modos: 1) tornando crítico o que escapava à crítica, através da historicização; 2) problematizando a própria luta, esta- belecendo-a tão local e histórica quanto os seus alvos; 3) participando nas próprias lutas através da passagem pela alteridade e pela diferença. Contudo, esta constante proposição de objetos, modos de exame e lutas faz entrever a existência de alguns períodos no pensamento foucaultiano baseado em alguns critérios como: 1) A trama conceitual expressa nos principais objetos postulados: saberes e discursos (arqueologias), poderes e governamentalidade (genealogias), cuidados de si ou éticas (subjetivações). 2) Os seus alvos crí t icos: o posit ivismo, o humanismo - fenomenológico, o estruturalismo, o marxismo (a comunistologia), e a psicanálise. 3) O que afirma em cada período como alternativa: a literatura e o ser da linguagem, a revolução e os contrapoderes, a liberdade e a possibi- lidade de estranhamento de nossas formas de subjetivação. Através destes critérios é possível mapear cerca de dez períodos no pensamento foucaultiano, sendo a atribuição dos cinco primeiros inspirada no texto de Roberto Machado, Ciência e Saber (1982-A). A tarefa deste artigo será tentar captar o sentido das transformações que seescondem sob a assinatura de Michel Foucault ao longo destes dez perí- odos, e tentar delinear os possíveis diálogos desses personagens que aí espreitam com a psicanálise e a psicologia. Esta multiplicidade de autores se verá refletida nas seguidas reavaliações feitas em torno destes temas. Jacques Derrida (1994) se referirá à relação com a psicanálise utilizando a imagem de uma dobradiça de porta (em que Freud seria o porteiro), de um pêndulo ou de um balancim, que "sucessivamente abre e fecha, apro- xima e afasta, repudia ou aceita, exclui ou inclui, desqualifica ou legiti - ma, domina ou liberta" (op.cit., pp.62-63). É deste modo que a psicaná- lise, de contraciência humana em As Palavras e as Coisas, torna-se mero efeito do dispositivo confessional da sexualidade, ou hermenêutica de si cristã, ao longo dos três volumes da História da Sexualidade (1976-C, 1984-A e B). A psicologia, apesar de alguma consideração positiva em seus primeiros artigos (década de cinqüenta), gozará de uma avaliação mais unânime em torno da crítica, apesar das razões se modificarem. Avaliemos esta relação de Foucault com estes saberes período a período. 1- O Jovem Foucault (década de cinqüenta) Neste momento seminal, temos a rara oportunidade de ver um Foucault psicólogo, buscando delinear a positividade deste saber. Para este autor (1957-B, p.148), a verdadeira pesquisa psicológica seria pro- duzida à margem da ciência institucional (como por exemplo a psicanálise e a noção de inconsciente, gerada fora dos cânones de uma psicologia oficial da consciência). A relação entre pesquisa e prática só seria inteiramente positiva em uma sociedade marcada pelo pleno emprego e com uma técnica industrial exigente, sem, pois, qualquer contradição. Como esta condição não se cumpre em nossa sociedade, a pesquisa psicológica só pode nascer dos obstáculos das práticas sociais (que seriam disciplinados pela psicologia oficial): Sem forçar a exatidão, pode-se dizer que a psicologia em sua origem é uma análise do anormal, do patológico, do conflitual, uma reflexão sobre as contradições do homem com ele mesmo. E se ela se transforma em uma 30 Foucault e a Psicologia Foucault e a Psicologia 31 psicologia do normal, do adaptativo e do ordenado, é de um modo secun- dário, como por um esforço de dominar as contradições (Foucault, 1957A, pp. 121,122). O objeto de exame por excelência neste período será o homem concreto na negatividade e na contradição de sua existência social ao longo da história. Este homem concreto é deslindadono cruzamento de várias referências, como o marxismo (a alienação do doente mental como produto de contradições históricas), o existencialismo' (a existência au- têntica expressa no sonho e na angústia, na qual a loucura seria uma forma inautêntica, uma vez que desprovida de liberdade histórica) e a psicanálise (a importância do significado e da interpretação na apreensão da negatividade do homem). Buscando uma positividade para esta psicologia do homem concreto, ela será recusada nas suas vertentes positivistas, uma vez que estas buscam apagar as contradições históricas, como a existente entre um método positivo e o seu objeto, marcado por uma negatividade essencial (Foucault, 1957-A). Daí que se possa dizer que a positividade da psicologia só pode vir da negação de sua objetividade e da afirmação da negatividade do homem: "A psicologia só se salvará através de uma volta aos Infernos" (op. cit., p.158). Neste quadro, a psi- canálise seria a única das psicologias verdadeiramente positiva, pois daria conta do negativo do homem: "Esse sentido originário é ainda um dos paradoxos e uma das riquezas de Freud, de ter percebido melhor que qualquer outro, contribuindo para recobri-lo e escondê-lo" (op. cit., p.158). E, deve-se acrescentar, com a metodologia adequada, qual seja, a busca de significações objetivas (Foucault, 1957-A). Contudo, a contradição mais notável no seio da psicologia estaria em seu estatuto como saber crítico, posto que estaria num regime entre a tomada de consciência de nossa constante produção de ilusões, própria da história, e a denúncia dos erros, inerente às ciências natu - rais. A psicologia teria pois um estatuto híbrido: crítica como a histó-2 Notadamente o de Ludwig Biswanger, autor ao qual Foucault prefaciou no texto Le rêve et le existênce (1954). 32 Foucault e a Psicologia ria, mas realista como a ciência. Contudo, este saber não atingiria nem a positividade das ciências (a objetividade) nem a da história (do reco- nhecimento das ilusões), restando apenas o constante ultrapassamento crítico de si que a caracteriza (Foucault, 1957-B., p.144-145). É deste modo que este "jovem Foucault" explica a pluralidade da psicologia: ela ocorre porque cada orientação sua (behaviorismo, gestaltismo, psi- cologia dinâmica, etc.) se ergue nesta missão de uma críitca híbrida contra as demais, sempre denunciando-as entre a ilusão e o erro. 2- Foucault arqueólogo (década de sessenta) O sentido do trabalho arqueologico de Foucault é a ampliação do alvo de suas investigações, passando do exame das condições de surgimento da psiquiatria (História da Loucura), às da clinica (Nasci- mento da Clínica), e até ao círculo antropológico que as constitui (As Palavras e as Coisas). A literatura será tomada nesta fase como uma al- ternativa a este círculo antropológico, afirmado-se neste período de diversos modos, conforme cada subfase, e em contraste com os objetos examinados ao longo dos deslocamentos arqueológicos (loucura, clíni- ca, ciências humanas)3. Neste bojo, a psicanálise e a psicologia serão avaliadas de modo diferenciado conforme as subfases4 deste período. 2.a) Arqueologia da Precepção5 (História da Loucura, 1961-1962) O tema da história da loucura poderia sugerir a presença de uma história progressiva da psiquiatria, ao modo das histórias da ciência. Esta é a principal tese de Roberto Machado desenvolvida em seu livro Foucault, a filosofia e a literatura (1999). A designação das subfases arqueológicas seguirá a classificação apresentada por Machado em seu livro Ciência e Saber (1982-A). Devo ressaltar que uma grande parte das idéias aqui expostas sobre o período arqueológico foram desenvolvidas ao longo dos seus cur sos de pós-graduação em filosofia na UFRJ. ' O uso do conceito de percepção remete a Maurice Merleau-Ponty, uma vez que esta, sendo social e pré-racional, daria conta das práticas operadas ao longo da história em torno da loucura. Foucault e a Psicologia 3 3 Mas segundo Machado (1982-A, pp.93-95), se é possível vislumbrar um sentido histórico para a psiquiatria, ele é negativo, pois o suposto progresso desta implica o distanciamento daquilo que é tomado como referência para Foucault nesta época: a experiência trágica da loucura. Não se trata de uma essência imutável da loucura, mesmo ao "confron- tar as dialéticas da história e as estruturas imóveis do trágico" (1961-A, p.162). Trata-se de uma experiência (portanto sem qualquer caráter universal como promete a pesquisa de uma essência), e trágica (sem a menor possibilidade de síntese ou pacificação). Neste referencial nietzscheano6, o homem concreto deixa de ser a medida da negatividade que lhe atravessa. Torna-se mais uma das figuras aptas a silenciar a lou- cura: "Se (Pinel) libertou o louco da desumanidade de suas correntes, acorrentou ao louco o homem e a sua verdade" (Foucault, 1961-B, p.522). A recusa ao homem concreto remete a um abandono do referencial marxista, presente na mudança do conceito de alienação'. Deste modo, este é retirado de seu viés trans-histórico, e associado a uma das formas em que a loucura foi capturada pela razão moderna, como verdade do homem, na qual o louco se encontra imerso: "a alie- nação será depositada como verdade secreta no coração de todo conhe- cimento objetivo do homem" (Foucault, 1961-B, p.457). O que se mostrará consonante com esta experiência trágica da loucura será a literatura' enquanto ausência de obra. Segundo Machado (1999, capítulo 1), esta relação passa por três aspectos: 1) ambas seriam linguagens; 2) a loucura seria a verdade da obra literária; 3) verdade essa que se daria na ausência de obra. O conceito de ausência de obra seria 6 Segundo Machado (1999), há um enorme paralelo entre este primeiro livro de Foucault com o primeiro livro de Nietzsche, O Nascimento da tragédia Um bom guia para esta análise é o texto de Macherey: Nas origens da história da loucura: retificação e limite (1985) 'Exemplos deste espírito trágico na literatura seriam Hólderlin, Nerval, Sade e Nietzsche. Mas haveriam representantes em outras artes, especialmente no período renascentista (quando a distância entre razão e desrazão se fazia menor), como Bosch e Bruegel (pin- tura) e Sheakspeare (teatro). Cabe ainda uma referência à pintura de Goya , mesmo que própria do período moderno. 34 Foucault e a Psicologia proveniente de Artaud, apontando para uma escrita no limiar entre a loucura (ausência de sentido) e a obra (produção de uma ordem deter- minad a) . De todo modo, a l ingu agem do lou co , dad a nu ma autoimplicação que não apontaria para nada mais além dela (o vazio da linguagem), serve de modelo para a compreensão da literatura, e medi- da para julgar o suposto progresso da psiquiatria. Agindo num sentido excludente, a constituição do dispositivo psi- quiátrico revelará em seu desenrolar o silenciamento, a distância e a ten- tativa de domínio da experiência trágica da loucura. Esta história será contada na partição entre dois níveis, o da Percepção (que virá mais tarde a configurar o que Foucault nos anos setenta designa por poder) e o do Conhecimento (que virá a se transformar em saber em As Palavras e as Coisas), distribuídos em três grandes períodos: Renascimento (do fim da Idade Média até 1650, data inicial do Grande Internamento), Idade Clás- sica (de 1650 até 1789, e a suposta libertação dos loucos por Pinel) e Modernidade (que engloba a atualidade). Somente a experiência trágica da loucura permaneceria imóvel ao longo dos tempos. Ainda que ao lon- go da fase arqueológica mudem os alvos de pesquisa para a clínica e para as ciências do homem, estes períodospermanecerão os mesmos. Mesmo sendo mudados os referenciais da pesquisa foucaultiana, persevera a hipótese do primeiro período, da psicologia gerada através dos avessos da prática, ou, conforme fórmula de Frederic Gros (1997, p.80), da luz das empiricidades nascendo na escuridão. No presente caso, a escuridão refere-se às baixas origens da psicologia ligadas ao movimento de internação massiva da loucura (período clássico) e à fi- xação de uma natureza humana como verdade da loucura a partir da paralisia geral, loucura moral e da monomania: "o homo psychologicus é descendente do homo mente captus" (Foucault, 1961-B, p.522). Para utilizar novamente uma imagem de Gros (1997, p.79), o homem e a psicologia "apóiam sua positividade no vazio furioso do insensato". Quanto ao homem, este "só se torna natureza para si na medida em que é capaz de loucura [...] forma principal e primeira do movimento com o qual a verdade do homem passa para o lado do objeto e se torna Foucault e a Psicologia 35 acessível a uma percepção científica" (Foucault, 1961 -B, p.518). No que diz respeito à psicologia: O paradoxo da psicologia "positiva" do século XIX é o de só ter sido possível a partir do momento da negatividade: psicologia da personalida - de por uma análise do desdobramento; psicologia da memória pelas am- nésias; da linguagem pelas afarias, da inteligência pela debilidade mental. (op. cit., p. 518). A loucura moderna sob a qual repousa o honro psychologicus seria marcada por uma série de aporias, que se veriam refletidas no campo do conhecimento. É deste modo que a loucura reflete ora a verdade mais primitiva, ora a verdade mais terminal do homem; ora a loucura repre- senta o triunfo do orgânico (materialismo), ora a maldade em estado selvagem (espiritualismo); ora o acúmulo de razões que se desdobra na irresponsabilidade (determinismo), ora a ausência de qualquer razão plau- sível; ora uma contradição na própria razão em vigor, ora a necessidade da razão do outro, como no tratamento moral (op.cit., pp. 512-514). Em suma, é neste sentido que se pode dizer que a psicologia é tribu- tária da loucura, mas não vice-versa. De modo que é possível afirmar que Foucault pretende tomar a desmedida como medida da psicologia: Ela [a psicologia] está sempre na encruzilhada entre dois caminhos: aprofundar a negatividade do homem ao ponto extremo onde amor e morte pertencem um ao outro indissoluvelmente, bem como o dia e a noite, a repetição atemporal das coisas e a pressa das estações que se sucedem - e acaba por filosofar a marteladas. Ou então exercer-se através de retomadas incessantes, os ajustamentos do sujeito e do objeto, do interior e do exterior, do vivido e do conhecimento (op. cit., p.522). A psicanálise é desbancada por Nietzsche como via de acesso ao negativo do homem. Nesse início dos anos sessenta, passa a ter estatuto ambíguo, pois se Freud teve a vantagem de se opor à estrutura asilar, por outro lado, ele está incluído na linhagem médica inaugurada por Pinel: Freud fez deslizar na direção do médico todas as estruturas que Pinel e Tuke haviam organizado no internamento. Ele de fato libertou o doente dessa existência asilar na qual tinham alienado seus "libertadores". Mas não o libertou daquilo que havia de essencial nessa existência; agrupou os poderes dela, ampliou-os ao máximo, ligando-os nas mãos do médico... (Foucault, op.cit, p. 503). Contudo, como lembra Derrida (1994), História da Loucura é um dos textos mais ambíguos de Foucault, onde seu pêndulo oscila mais, pois em várias outras passagens a psicanálise é vista como próxima à ex- periência da desrazão clássica abafada pela psicologia moderna (posição presente em todo o livro, com exceção dos dois últimos capítulos): Freud retomava a loucura ao nível de sua linguagem, reconstituía um dos elementos essenciais de uma experiência reduzida ao silêncio pelo positivismo. Ele não acrescentava à lista dos tratamentos psicológi- cos da loucura uma adição maior; reconstituía, no pensamento médico, a possibilidade de diálogo com o desatino... (Foucault, 1961-B, p.338). 2. b) A Arqueologia do olhar (Nascimento da Clínica, 1963-1964) Do mesmo modo que opera em relação à história da psiquiatria, Foucault, no exame da clínica, pretende pôr à prova o seu estatuto atemporal, através de um suposto olhar que se apuraria progressiva- mente. Pelo contrário, ela se constituiria através de diversas articula- ções entre o visível e o dizível. Para tal, o par estrutural Ver-Dizer (ou olhar loquaz, olhar-linguagem, espacialização-verbalização, etc.) se im- põe como conceito fundamental. Aqui, cada termo pertence ao outro numa relação intrínseca, de resto bem diversa da distância do par Per- cepção-Conhecimento. É também em O Nascimento da Clínica (1963-B) que Foucault faz a primeira referência ao termo arqueologia, presente no subtítulo. As fases desta história são as mesmas de História da Loucura: haveria uma protoclínica clássica (com o predomínio do dizer sobre o ver, marcada por uma taxonomia dos sintomas, relacionando-os 36 Foucault e a Psicologia Foucault e a Psicologia 3 7 como signos dentro de uma botânica das espécies patológicas ideais) e uma anátomo-clínica moderna (com o privilégio do visível no par estru- tural, remetendo a patologia não mais a um conjunto de signos ideais, mas ao volume corporal dos tecidos), intermediadas por uma clínica na passagem do século XVIII para o XIX (com equilíbrio entre visão e discurso, onde sintoma e sentido se equivalem). A referência às práticas sociais, ou como Foucault chama neste li- vro, estruturas terciárias da medicina, dão-se na primeira metade do livro, numa abordagem próxima da que será retomada no período genealógico, ainda que se sustente aqui uma concepção repressiva do poder. A tese de Foucault sobre as estruturas terciárias da medicina remete à solução de compromisso entre as forças presentes no período da Revolução francesa: entre o corporativismo dos médicos, buscando codificar o ensino profis- sional para controle dos charlatães; o liberalismo empírico, associado ao fim dos privilégios, associando qualquer conhecimento ao olhar livre; e o assistencialismo, presente na instituição hospitalar, enquanto depósito de doentes pobres, com o fim de isolá-los do convívio com outras classes. A clínica costura estas demandas enquanto ensino empírico-prático que distingue os médicos dos oficiais de saúde em sua formação, os primeiros atuando sobre os pobres depositados nos hospitais, que pagariam a sua assistência com a exposição para uma pedagogia clínica a ser revertida mais tarde em tratamento seguro para as classes mais altas. Mantém-se aqui a mesma lógica de gênese pelo avesso das práticas inaugurada pelo primeiro Foucault e prosseguida na História da Loucura, conforme atesta Frederic Gros (1997, pp. 75-82). Da mesma maneira que se devem buscar as origens da psicologia na loucura, a da clínica deve ser buscada na morte': "Isto que estabelece a rigidez de um cadáver é o frio rigor das leis que comandam a vida"(op. cit., p. 80). De toda manei- ra, é esta lógica que permite que pela primeira vez se estabeleça no oci- A questão da linguagem e da literatura, é associada agora ao tema da morte da linguagem (Maurice Blanchot) e da transgressão (Georges Bataille). Esta é a tese defendida no segun- do capítulo (A Morte) do livro Foucault, a filosofia e a literatura de Machado (1999). Conferir também Pélbart (1989, p.80) e O prefácio à transgressão (Foucault, 1963-A). 38 Foucault e a Psicologia ente uma ciência do indivíduo, tomando o homem como objeto: "A velha lei aristotélica que interditava sobre o indivíduoo discurso científi- co foi levantada quando, na linguagem, a morte encontrou o lugar de seu conceito" (Foucault, 1963-B, pp. 195-196). Na década seguinte, genealógica, caberá à prática do exame e não mais à morte ou à loucura a gênese do indivíduo. Ainda que o entorno de seu pensamento se modifi- que, as palavras do jovem Foucault ainda ecoam: O homem ocidental não pôde se constituir a seus próprios olhos como objeto da ciência, ele não se toma no interior de sua linguagem, nem se dá a si senão na abertura de sua própria supressão: da experiência da Desrazão, nascem todas as psicologias e a possibilidade mesma da psico- logia; da integração da morte no pensamento médico nasce uma medici - na que se constitui como ciência do indivíduo (Foucault, op. cit., p.227). Outra passagem relevante as dá quando Foucault relaciona o surgimento das Ciências Humanas à passagem de uma medicina regu- lada pela noção de saúde para uma mais recente regida pelo conceito de normalidade: Se as ciências do homem apareceram no prolongamento das ciências da vida, é talvez porque estavam biologicamente fundadas, mas é também porque o estavam medicamente; sem dúvida por transferência, importação e, muitas vezes metáfora, as ciências do homem utilizaram conceitos formados pelos biólogos; mas o objeto que eles se davam (o homem, suas condutas, suas realizações individuais e sociais) constituía, portanto, um campo dividido segundo o princípio do normal e do patológico. (op. cit., p.40). Por outro lado, inaugura-se a fase de aproximação com a psicaná- lise, que segue até As Palavras e as Coisas. No texto A loucura, ausência de obra (1964-A), Foucault considera quatro desvios da linguagem, remetidos a quatro modos de loucura: as palavras sem sentido (própria dos insensatos, imbecis e dementes), as blasfematórias (dos violentos e furiosos), as palavras com sentido proibido (dos libertinos e teimosos) e a Foucault e a Psicologia 3 9 l inguagem esotérica (para onde a loucura migra no início da modernidade). Esta quarta modalidade apontaria para uma forma da linguagem e da loucura que somente a psicanálise daria conta, na me- dida em que toma-a não como uma ordem oculta, "mas como retenção e suspensão do sentido, como criação de um vazio onde possa se alojar não um, mas vários e diferentes sentidos" (Pélbart, 1989, p.115). Tal concepção faz eco com a tese exposta em Nietzsche, Marx e Freud (Foucault, 1964-B), em que a interpretação é vista não como uma esca- vação de sentidos, mas como uma sobreposição destes por sua força, sem que haja um primeiro termo de origem. 2.c) A Arqueologia do Saber (As Palavras e as Coisas, 1965-1967). Neste livro Foucault irá também se posicionar no interior da contenda mais marcante do pensamento francês da época: a que opunha estruturalistas e fenomenólogos. Ainda que o privilégio concedido à his- tória distancie-o do perfil de um estruturalista clássico, e que a sua idéia de estrutura se aproxime mais da de Georges Dumézil do que da de Claude Lévi-Strauss e Jacques Lacan, é do lado destes que Foucault irá se perfilar. Irmana-se a estes ao negar o privilégio do conceito de homem ("apenas um rosto a se desvanecer na areia") e de sujeito em prol de um sistema de linguagem pura (1966-B, p.32), ou ser da liguagem. As dife- renças com relação ao entendimento do que seja esta linguagem pura, e o privilégio da história se tornarão mais latentes no proximo subperíodo, e o estruturalismo inicial de Foucault cederá à sua negação, como ocorre com várias de suas alianças ao longo de seus trabalhos. Neste texto será proposta uma nova trama conceitual. Teríamos de um lado os saberes, ou os conjuntos de enunciados que são possíveis dentro de uma época (anteriores a qualquer legitimação científica), e por outro, aquilo que subjaz arqueologicamente a estes, a épistémè, que fornece uma lógica ou uma estrutura congruente a todo este conjunto de saberes. A épistémè, com suas características de profundidade e globalização (cf. Machado, 1982-A, pp. 149-150), refere-se à condiçãode possibilidade histórica de um conjunto de saberes aparentemente dispersos num período, nutrindo-os como o seu "húmus" (Canguilhem, 1970). Esta "experiência pura da ordem e de seus modos de ser" (Foucault, 1966-A, p.10) é o que permite se pensar numa estrutura histórica (por mais contraditório que seja este termo) dos saberes, como, por exemplo, a representação, enquanto épistérnè do período clássico, dada na tomada dos objetos através da relação de signos, analisando-os, ordenando-os e classificando-os, como é próprio da história natural, análise das riquezas e gramática geral dos século XVII e XVIII. Em oposição a esta lógica taxonômica com fundamento divino, a modernidade através das ciências empíricas (biologia, economia e filologia) penetraria mais além das superfícies semióticas, se aprofundando no volume dos corpos, escavando um objeto até então inusitado: o homem enquanto ser histórico e finito, uma vez que vivo, falante e produtor de valores. Este mesmo homem que, de objeto empírico, é reduplicado em fundamento transcendental pela filosofia, desbancando Deus e fechando em torno de si um círculo, que Foucault denominará antropológico. Círculo em que o homem ganha duplo es- tatuto de ser transcendental e empírico, fonte do cogito e limite impen- sado deste, retorno e recuo de toda origem. Neste círculo, a filosofia crítica de Kant, que buscava separar entre um nível empírico e outro transcendental, será esquecida. É deste modo que o círculo antropoló- gico, de efeito da negatividade das práticas nas fases anteriores do pen- samento foucaultiano, torna-se épisténiè, condição de possibilidade dos saberes modernos, como a psicologia e as demais ciências humanas10. Com as mudanças na análise da modernidade, muda também o a priori histórico da psicologia, estabelecendo-se em Foucault uma segun- da hipótese quanto à gênese deste saber. É deste modo que a psicologia, como as ciências humanas, reduplica o homem como objeto empírico no homem como ser transcendental, através da representação (ressuscita- " Lebrun (1985) vislumbra uma continuidade entre estas duas possibilidades, em que a alteridade continua a se manifestar pelo impensado, que passa a ser transformado de positivo em negativo pela filosofia. 40 Foucault e a Psicologia Foucault e a Psicologia 41 da da idade clássica) numa consciência. Reduplicação, uma vez que o homem como fundamento já seria, por sua vez, uma duplicação filosófica do homem escavado como objeto empírico pelas ciências empíricas (biologia, economia e filologia). Este quadro reduplicado das Ciências Humanas é configurado através de um triedro (incluindo aqui também os modelos formais das matemáticas). Assim, na psicologia, o que se encontra reduplicado é o transcendental positivista da norma, que por si já é a duplicação da análise empírica da função em biologia. Mas é perfeitamente possível se pensar uma psicologia nos duplos da economia (conflito e regra) ou da lingüística (significação e sistema). Ciências empíricas (ou do homem), filosofias antropológicas e sistemas formais constituem os eixos do triedro moderno em que a psicologia, junto com as ciências humanas, ocupará o volume interno (Foucault, 1966-A, pp. 450-451). Em função desta minuciosa descrição da epistémè moderna, é que Canguilhem (1970, pp.146-147) comparará analogicamente o que foi a Crítica da Razão Pura para as Ciências Naturais, com o que pôde ser As Palavras e as Coisas para as Ciências Humanas. Além destas considerações presentes em As Palavras e as Coisas, Foucault, numa curiosa entrevista a Alain Badiou
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