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D i r e ç ã o : Pe. Fidel Garcia Rodríguez, SJ E d i ç ã o : Marcos Marcionilo P r e p a r a ç ã o : Gisele Molinari D i a g r a m a ç ã o : Telma dos Santos Custódio R e v i s ã o : Carlos Alberto Bárbaro Joseli Nunes Brito Maurício Balthazar Leal Edições Loyola Rua 1822, nQ 347 - Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP Caixa Postal 42.335 - 04218-970 - São Paulo, SP (§) (11) 6914-1922 (D (11) 6163-4275 Home page e vendas: www.loyola.com.br Editorial: loyola@loyola.com.br Vendas: vendas@loyola.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parle desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. ISBN: 978-85-15-02579-4 3- edição: fevereiro de 2007 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2002 Capítulo 4 O texto 4.1. Como se lê um texto filosófico? Existem duas perspectivas possíveis sobre um texto — leitura e produção —, sendo que uma percorre o movimento inverso da outra. A produção de um texto tem como ponto de partida uma estrutura lógica que tenta se realizar numa forma literária. Produzir um texto é proporcionar uma for mulação literária adequada a uma certa estrutura lógica; ler um texto é efetuar o movimento inverso, ou seja, partir de uma certa estrutura literária e tentar chegar a uma estrutura lógica1. Os manuais de metodologia filosófica concentram-se na primeira perspectiva. Um manual de aprendizagem e en sino da filosofia deve se concentrar na segunda ( Ia, 4, 4.3.1). Há uma interação — embora esta não signifique identi dade ou implicação necessária — entre como se lê e como se produz um texto. Bons hábitos de leitura se refletem em uma produção satisfatória de texto, assim como vícios de 1. Mais adiante teremos que corrigir esta noção de “texto" à luz da proposta de uma distinção entre texto e escrita ( I a, 6, 6.1). I 51 produção são quase sempre também de leitura. Dois deles são extremamente comuns: o “periodismo filosófico” e o “literaturicismo”. 1. Um texto filosófico não é uma narração na qual se contam coisas, porém não é nada fácil perceber que não o seja. Podemos ler a “dedução transcendental” como um pas seio pelo bosque no qual, em vez de árvores, se descrevem “estruturas transcendentais". O que está errado aqui é a “an tecipação hermenêutica”, a própria categorização do que esta mos lendo. Um texto filosófico não contém “notícias”, pois sua finalidade não é transmitir “informações”2. Conseqüente mente, a sua leitura tampouco pode consistir em informar-se ou a respeito do texto ou daquilo que ele diz, nem em infor- mar-se com o autor, nem em informar-se sobre o autor (o autor fala de..., diz que...). Ao texto lido como "fonte de informa ções” devemos opor o texto como “objeto de análise”. 2. Ler ou produzir um texto filosófico é algo essencial mente diferente de ler ou produzir um texto literário. Assim como muitas leituras não passam de uma apreensão pura m ente literária do texto, muitos textos “filosóficos” não são outra coisa que meras peças literárias. Eventualmente, eles são textos “bem escritos”, "oportunos”, ou o que se queira, mas não efetuam uma verdadeira contribuição no âmbito da pesquisa ou do aprofundamento conceituai. A formulação literária não é em filosofia a finalidade, mas apenas uma ferramenta de comunicação. Elegância de esti lo é desejável, porém não é essencial, sendo aquilo que, caso necessário, deve ser sacrificado. A elegância de estilo, não poucas vezes, se constitui em inimiga do rigor e da 2. E por isso que pode haver revistas filosóficas melhores ou piores, mas não “sensacionalistas”. 52 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS precisão. Fragilidades, saltos, carências e lacunas podem ser mascarados literariamente. Nível literário e nível lingüístico do texto não são a mes ma coisa. E provável que não exista pensamento sem lingua gem e que aquilo que temos chamado de estrutura “lógica” esteja essencialmente vinculado à estrutura lingüística. De qualquer forma, isso é diferente de dizer que a expressão literária é prioridade para o pensamento filosófico (e, muito menos, que a filosofia seja um gênero literário). E óbvio que um mesmo pensamento pode encontrar formulações literá rias diversas igualmente adequadas, assim como ordem de exposição e estilo, que são opções pessoais. Deveria ser óbvio, também, que um pensamento pode ser acabado, sutilmente elaborado e, não obstante, não lograr uma formulação literária satisfatória. Simples notas são capazes de conter idéias filo sóficas decisivas. 4.2. A compreensão do texto Ainda que seja possível diferenciar, em princípio, entre os modos de abordagem do estudo da filosofia e do texto filosófico, existe entre ambos um vínculo estreito. A idéia condutora será aqui, novamente, a de problema. O objetivo da leitura do texto filosófico deve ser, pri mordialmente, “entender”3. Isto não é óbvio, já que, de fato, há outros objetivos possíveis, como “informar-se”; “tomar conhecimento” ou “assumir posição” em relação ao escrito. O importante é que qualquer outro objetivo pressupõe com preender o texto, o que, como conseqüência, sempre é a 3. Uso os termos “entender” e “compreender” como sinônimos. O texto | 53 finalidade básica, parte analítica do próprio conceito de “lei tura de um texto filosófico”. No entanto, 1. O que é “entender” um texto? 2. O que é o "entendido”? 3. Por que às vezes não entendo e que devo fazer quan do isso acontece? 4. Quais são os critérios para saber se entendo ou não do modo correto? 4.2.1. O que é "entender” um texto? O termo “entender” possui um sentido subjetivo e um objetivo: no primeiro, ele é um sentimento de saber do que se trata, de não ter dúvidas; no segundo, uma habilidade intersub- jetivãmente acessível e controlável, que pode assumir diferen tes formas em função de sua complexidade intelectual: a) Entender é “compreensão literal”, é ser capaz de repetir o texto. b) Entender é “parafrasear”, ou seja, ser capaz de efe tuar a reprodução não-literal do texto, substituindo alguns termos dele por sinônimos e equivalentes. Isto é o que usualmente se chama de “dizer com minhas próprias palavras”. No fundo, continuamos diante de uma repetição, na qual apenas foram introduzidas, de modo aleatório, algumas mudanças puramente literárias. c) Entender é assimilação das regras que possibilitam a reprodução de estilo. Tanto na repetição textual como na paráfrase, não se produz nada novo. Existe, contu do, um terceiro sentido do entender objetivo que con serva essa característica de um modo “refinadamente perverso”. O leitor não pretende, neste caso, tão-só 54 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS reproduzir o texto enquanto peça literária, mas elabo rar um novo discurso que atinja o próprio conteúdo. A pretensa novidade, no entanto, é um engano ou uma ilusão. Muitos textos que, presumivelmente, es tão destinados a falar de um autor, na realidade, falam “como” ele. Seu resultado efetivo não é entender o texto, mas imitá-lo. Do mesmo modo que diferencia mos entre “tem a” e “problema”, temos de diferenciar também entre “problema” e "estilo”. O objetivo da análise filosófica não é falar “como”, mas falar “de” Heidegger ou “de” Hegel, entendendo o que eles di zem como resposta a seus respectivos problemas. Tam bém Heidegger ou Hegel têm um problema; também Ser e tempo ou A ciência da lógica são resposta. E simplesmente uma desculpa preguiçosa dizer que a doutrina de um autor não admite nenhuma outra formulação literária que aquela que ele efetivamente emprega. Se fosse assim, então só se poderia falar "como” Heidegger ou “como” Hegel, em alemão, que não é o que de fato se faz.d) O verdadeiro entender em sentido objetivo jamais se limita a reproduzir a literalidade do texto, senão que supõe uma independência em relação a ela, situando- se, por tal motivo, além de toda mera repetição, pa ráfrase e imitação. Entender é “traduzir”; ter enten dido um texto é ser capaz de poder oferecer uma “tradução” dele. No entanto, não é qualquer tradução que constitui um entender. Para que o seja, ela deve representar um ganho em relação ao original; deve ser mais explícita e, inclusive, se possível, mais clara e até mais precisa, que aquele. Justamente porque na tra dução se explicita o texto, todo texto tem, em prin cípio, infinitas traduções, não existindo uma que seja O TEXTO | 5 5 definitiva. Finalmente, é minha capacidade de tradu zir o texto o que me permite “explicá-lo” a outros, ou seja, fazê-lo compreensível para Maria e João. Se entender é traduzir, uma verdadeira tradução é capaz de “tornar comensurável”, dito de outro modo, de recodificar um texto escrito em uma linguagem para outra ou, eventual mente, para uma terceira linguagem comum a ambas, de forma tal a possibilitar a tematização de similitudes, identi dades, diferenças etc. Traduzir implica a possibilidade de retraduzir. Isto não quer dizer que exista algo assim como uma linguagem última, mas apenas afirmar que sempre são formuláveis linguagens comuns. Os mesmos problemas rea parecem de um lado e do outro do Rubicão, ainda que ves tidos em trajes diferentes. Fazer filosofia é poder mostrar as continuidades e identidades entre Frege e Husserl, não menos que entre Wittgenstein e Heidegger. No mundo das especia lizações é essencial não perder de vista que a filosofia foi e segue sendo uma. A razão desse fato é que a reflexão radical não pode ser "monádica” (compare-se I a, 3, 3.3.2 e 3.3.4). “O entendido” é o sentido do texto. Tal sentido nada tem a ver com intenções subjetivas do autor, senão que constitui uma unidade objetiva4. O autor ingressa no texto unicamente como “fator de finitude” que delimita a parte do universo da significação presente nele. Da perspectiva de um acesso finito a esse universo, o elemento da facticidade nunca pode ser desconhecido, porquanto é a partir dele que é possível fixar a significação “realizada”5. Entretanto, enten 4. Peço ao leitor que não confunda a distinção entre o entender e o entendido com a distinção entre um sentido objetivo e um subjetivo do “enten der’’. O entendido é sempre objetivo, o entender o é só às vezes. O conceito de “objetivo” presente em um caso e em outro não é exatamente o mesmo. 5. A historicidade é um modo básico de facticidade e está essencialmen te ligada à finitude ( I a, 5, 5.1 e 5.2). 56 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS der não é explicar (nem histórica nem psicologicamente) o texto: é explicitar o seu sentido; não o porquê, mas o que é dito. O sentido do texto nunca está oculto ou para além do texto, mas presente nele, ainda que nem sempre de um modo explícito. O que o autor “queria dizer”, ele o disse. 4.2.2. Por que às vezes não entendo, e o que devo fazer quando isso acontece? O não-entender é sempre superável; não há um não- entender que seja "de princípio” e remeta a uma espécie de incompetência “crônica”. Este fato, certamente, possui um aspecto encorajador: devemos confiar sempre em nossa ca pacidade de vencer as eventuais dificuldades de leitura. Ora, não se trata de promover no leitor uma espécie de “heroís mo intelectual” que não desiste diante do adverso. Trata-se de algo diferente. O não-entender sempre é superável devi do a que ele sempre tem um porquê: quando não se enten de, não se entende por alguma razão. Em geral, o que se faz quando não se entende é simples m ente voltar a ler. Este procedimento é, sem dúvida, reco mendável quando a dificuldade surgiu de uma mera falta de atenção. Não obstante, em outras situações extremamente comuns ele é cego. A atitude certa é sempre determinar com toda a precisão possível o que não entendo e, em segun do lugar, o porquê não entendo. Uma importante causa do não-entender não diz respeito à filosofia, mas à falta de conhecimentos adequados da pró pria língua. Não é esse não-entender que nos interessa agora. O não-entender de natureza propriamente filosófica é, em geral, a conseqüência de que algo não está explicitado no O T E X T O | 57 texto, ainda quando constitua sua premissa, ou, em termos mais genéricos, de que, em realidade, não possuímos os pressupostos necessários. Em tal caso é recomendável sus pender de modo provisório a leitura do texto até possuir uma formação adequada. Ninguém ousaria tentar entender um tratado matemático sobre cálculo sem conhecer as re gras elementares da aritmética. Porém, algo assim é o que muitas vezes se pretende em filosofia. E pura perda de tem po insistir na leitura de textos para a compreensão dos quais ainda não se possui os pressupostos necessários. Se, mesmo assim, por um motivo contingente qualquer, não podemos deixar de procurar entender um texto específico, então não há outro caminho que reunir, de alguma forma, o conheci mento prévio imprescindível. i r Toda compreensão é sempre “autocompreensão”. O es forço pelo entender tem uma boa dose de luta contra o egocentrismo, contra o tácito impor ao autor aquilo que, desde sempre, nos pareceu razoável. O que impede a com preensão são, não poucas vezes, nossas próprias crenças, tão óbvias para nós, que não temos consciência delas como meras opções. Estas podem ser de ordens muito diversas: ou referir-se a nossa forma mais geral de ver o mundo e a existência (sendo extrem am ente pontuais) ou referir-se àquilo que, com a maior certeza, acreditamos haver enten dido do texto em questão. Já que não só o texto, mas tam bém nós temos pressupostos, o movimento de explici tação deve atuar em dois sentidos: o explicitar o texto é sempre correlato de uma explicitação de nossos próprios pressupostos6. 6. Se considerarmos retrospectivamente o exposto em Ia, 4, 4.2, ficará evidente que estamos diante de duas manifestações diversas do mesmo fenôme no básico: a significação nunca é "em si”, senão que remete a um "horizonte". 58 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS Seria um otimismo digno de um Pangloss pedagógico acreditar que o não-entender é um tropeço casual. Na rea lidade, ele é um momento inerente ao estudo filosófico, não havendo forma de evitá-lo de princípio. A única tarefa razoá vel de uma didática e metodologia é dizer o que fazer diante dele. Entretanto , se o não-entender não é to talm ente eliminável, tampouco seria desejável que o fosse, dado que ele cumpre duas funções positivas: a) Nem sempre ele é sinal de uma limitação intelec tual, mas muitas vezes de perspicácia, constituindo um eficaz antídoto contra toda ingenuidade. Há for mas de não-entender que são mais profundas que todo entender, assim como há formas de “entender” que são apenas sintomas de superficialidade. b) O não-entender é uma fonte inesgotável de proble mas e, por tal razão, parte essencial da própria filo sofia, e não apenas de seu estudo. A única atitude filosoficamente possível diante de certas colocações confusas, vagas ou absurdas é não entendê-las. Nem tudo em um texto filosófico é compreensível. Além das dificuldades subjetivas de compreensão, como as consideradas até agora, existem outras que são de natureza “objetiva”, que estão realmente “no tex to” e não meramente "em nós”. Ainda que à primeira vista pareça paradoxal, há um não-entender “corre to ”. Um bom índice dele é que não sejamos os pri meiros a perceber a dificuldade. 4.2.3. Como sei se entendi "corretamente"? Quando não entendo, percebo que não entendo. Contu do, quando creio ter entendido, ainda resta a dúvida de se O T EXT O | 59 estou entendendobem ou mal, correta ou incorretamente. Como saber quando o que eu entendo é efetivamente aquilo que o texto diz? E uma praxe acadêmica sumamente comum o falar de “minha leitura”, como se fosse possível que várias pessoas que lêem o mesmo texto entendessem coisas diferentes e, não obstante, igualmente válidas. Isto não existe: se tivermos duas “leituras”, uma é correta e a outra não7. O que pode acontecer (e de fato muitas vezes acontece) é que, em um processo de compreensão coletivo, diferentes leitores cola borem com a visão de aspectos diferentes. Porém, se há contradição propriamente dita, um tem razão e o outro não. Ora, diante de duas leituras contraditórias, como saber qual é a verdadeira? São possíveis critérios para diferenciar leituras corretas e incorretas? Certamente sim, e, mais ain da, é mais fácil estabelecê-los do que o principiante imagine. Uma boa leitura de texto: a. toma em conta as regras gramaticais e jamais contra diz a sua literalidade; b. esgota os recursos de compreensão oferecidos pelo texto; c. concede-lhe a maior unidade possível (sem deixar arbitrariamente passagens de lado); d. não lhe atribui contradições, considerando as que julgue encontrar (até explícita prova do contrário), produtos de erros de compreensão; e. o apreende como intrinsecamente “fluido” (mesmo quando, de fato, alguns textos apresentam desconti- nuidades, estas só podem ser estabelecidas como fracasso de toda tentativa de conexão; a princípio, sempre há um vínculo entre cada frase, parágrafo ou capítulo com o seguinte e com o anterior); 7. Esta idéia será precisada mais adiante. 60 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS f. é “antecipatória”, ou seja, vai sendo confirmada pelo desenvolvimento do texto e é capaz de "prever” o seu próximo movimento (se ele é inesperado, ainda que não propriamente contraditório com nossa expectati va, não estamos de posse do “fio condutor” do texto); g. dá conta do todo pela parte e da parte pelo todo (princípio do círculo hermenêutico). Os expostos até agora são, apenas, critérios secundários. O critério realmente decisivo é que toda boa leitura é “óbvia”, ainda que nem por isso seja trivial. Trivial é o que todo mundo vê com apenas olhar; óbvio, aquilo que podemos olhar sem ver, mas que nem podemos deixar de ver uma vez que nos é indicado o modo como devemos olhar. Nossa reação usual, em tais casos, é um: “Mas é isso! Como não o vi antes!” Uma leitura duvidosa é aquela que, pelo contrário, permanece não imperativa depois de indicada; ela não se impõe espontanea mente a partir do texto e, apesar de todo esclarecimento, nunca deixa de merecer “reparos”. Dificilmente uma boa lei tura é “original” ou “inédita”. Ela não vê algo diferente das demais, senão que vê o mesmo em forma definida. Por dizê- lo de algum modo, ela centra adequadamente o “foco”, fazen do de linhas confusas uma figura definida. Em tal sentido, podemos comparar a tarefa de leitura com a visão no micros cópio: o que se vê é sempre “o mesmo”, mas há um ponto de fixação da lente que nos permite ver com nitidez. O conceito de “focalização” é um conceito-chave para entender tanto o que seja a filosofia como o que seja o trabalho filosófico. E por isso que ele também constitui um princípio básico para guiar o seu ensino e estudo. A maioria dos “saberes” filosóficos são aprendidos sem ser corretamen te “focalizados”, levando consigo uma margem de desajuste “crônica”. Problema comum em filosofia é o saber muito, de modo impreciso. O estudo filosófico, porém, não deve orien O T E X T O | 61 tar-se a saber muitas coisas, senão a possuir conceitos claros e sólidos, a “situar adequadamente o foco”. Que a essência do corpo, segundo Descartes, é a extensão, todo mundo “sabe”; que isso possibilita a aplicação da geometria à física e, mais ainda, conduz à formulação de uma física estrita m ente geométrica é passado por alto. Um recurso básico para focalizar adequadamente é aten der à contraposição fundamental que orienta o texto. E uma idéia comum em certas semânticas contemporâneas que o sentido de um term o não pode ser estabelecido de modo isolado, pois remete a um sistema de oposições. Muitas perguntas hermeneuticamente improcedentes, mesmo quando legítimas em sentido lógico-abstrato, surgem deste desajuste. A determinação de uma tese só pode ser estabelecida em relação ao sistema de alternativas no qual o autor de fato trabalha (seu particular “universo do discurso”) e não com respeito à totalidade do logicamente possível. 4.3. A análise do texto O entender não é uma “intuição” e sim o produto de um esforço que passa pelo não-entender. Para entender um texto precisamos “analisá-lo”; o entender é o resultado, a análise o meio. Já oferecemos certos critérios para avaliar o resultado. Ainda não dispomos, porém, de nenhuma indica ção de como chegar a ele. Os professores pedem a seus alunos que “analisem” textos; lamentavelmente, nem sem pre dão indicações muito concretas sobre em que consiste esta tarefa. Via de regra, se supõe sem mais que se aprende a analisar observando como outros analisam. Isto não é de todo falso. Mas não poderíamos oferecer uma orientação mais explícita ou, por que não, algumas diretivas básicas do 62 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS que de fato se faz quando se analisa um texto exitosamente? Para cumprir tal tarefa temos de retomar algumas idéias já expostas ( I a, 4, 4.2.1) e situá-las em um novo contexto: a análise do texto pode ser disciplinada metodicamente como um processo de sucessivas traduções. 4.3.1. Retradução semântico-gramatical: explicitação exaustiva dos recursos puramente lingüísticos A atenção à estrutura gramatical do texto certamente não é suficiente, mas é absolutamente necessária para sua adequada leitura. Nenhuma interpretação pode contradizê- la ( I a, 4, 4.2.3). Da desatenção à estrutura gramatical deri vam erros triviais e facilmente evitáveis. A primeira tarefa é conduzir o texto a sua forma gramatical mais simples, redu- zindo-o a uma sucessão de frases sujeito-verbo-predicado. Isto implica a “desconstrução literária”8 do texto, tarefa para a qual, em princípio, basta o domínio do idioma. Alguns procedimentos simples no sentido da tarefa indicada são: a) identificar termos da própria língua que não me são conhecidos, cujo sentido não me é totalmente pre sente ou cujo uso, em casos específicos, não corres ponde ao habitual; b) identificar pronomes, em particular os relativos e de monstrativos, e explicitar sua referência efetuando em continuação a substituição sistemática dos pri meiros pelos segundos; c) eliminar em geral as orações subordinadas substituin do-as por principais; d) eliminar conectivos; 8. Ainda que não-lingüística ( I a, 4, 4.1). O t e x t o | 63 e) eliminar conjunções dentro de frases; f) identificar advérbios e construções adverbiais. O resultado do aplicar os procedimentos indicados não será mais um mero “repetir”, mas uma primeira “tradução” que, com certeza, possui uma extensão muito maior que o original. O texto obtido é correto do ponto de vista grama tical, embora, talvez, literariamente insuportável. Na medida em que já não se trata de uma mera reprodução, surgem agora dificuldades hermenêuticas objetivas; por exemplo, aquilo a que um pronome relativo se refere pode ser grama ticalmente ambíguo, exigindo-se em tal caso observar crité rios semânticos etc. Excurso Quando estabelecemos a finalidade do presente livro, de claramos não nos haver proposto a escrever um manual de “metodologia científica” para filósofos. A partir do exposto no tópico anterior surge, porém, a possibilidade de algumas con siderações sobre um tema usual em tais manuais: a redação de textos técnicos e, como caso particularmente angustiante parao aluno de pós-graduação, de seu objeto de desejo: a tese. Conforme já foi dito ( I a, 4, 4.1), há uma interação entre como se lê e como se produz um texto. Contudo, não existe aqui identidade ou implicação necessária: é possível “ler bem ” e, não obstante, escrever mal. Por tal motivo, não é demais chamar a atenção para o fato de que as técnicas de leitura propostas valem também, com as devidas reformulações, para a escrita: o texto não é agora lido, senão produzido, median te tais técnicas9. 9. Não há técnica de leitura de textos filosóficos nem metodologia de produção de textos que possam sanar o desconhecimento da gramática. 64 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS O maior problema dos escritos escolares e acadêmicos em filosofia não é filosófico, mas gramatical, concentrando- se em boa medida no uso inadequado das regras de constru ção e pontuação. Corrigir tais insuficiências supõe, claro está, conhecer e aplicar a gramática da língua. Daí, três conselhos: a. Aprenda gramática! b. Produza seu escrito respeitando de modo rigoroso as regras gramaticais! Tenha claro que escrita filosófica não é literatura e que se apartar das regras gramati cais é uma liberalidade reservada aos romancistas e poetas, não aos filósofos. c. Corrija seu escrito! Considere o que você costuma chamar de “texto pronto” m eram ente um rascunho ou uma primeira versão. Leia e releia seu escrito com distância temporal e como se fosse o texto de uma outra pessoa. 4.3.2. Retradução técnica: substituição de definições O segundo passo no processo de análise do texto será identificar os “termos técnicos” e substituí-los pelas respec tivas definições. A filosofia, como a física ou a medicina, tem um vocabulário próprio no qual as palavras possuem significados específicos. Contudo, ao passo que as disciplinas m encionadas usam expressões criadas para tal fim e “incomuns” na linguagem cotidiana, os termos filosóficos, via de regra, são comumente empregados nesta. E por tal motivo que, enquanto no caso de um informe médico temos consciência de que não entendemos porque desconhecemos a terminologia, isso não acontece com os textos filosóficos. Nossa familiaridade com os termos empregados neles pro duz a ilusão de que sabemos do que se está falando. Nem O T EXT O | 65 desconfiamos que uma palavra de uso corriqueiro pode ter em filosofia um outro sentido. O termo “liberdade”, por exemplo, está associado na linguagem comum a um “poder”: ter a liberdade de fazer algo significa poder fazê-lo. Do mesmo modo, “necessidade” está vinculada ao “ser necessário que”: a algo que precisa ser feito. Estes usos predominantes ten dem a passar despercebidos ao leitor iniciante, que os pro jeta irreflexivamente no texto que pretende ler. Porém, quando em filosofia se fala de “liberdade” ou de “necessida de”, entende-se outra coisa. Suspeitemos sempre, em conse qüência, de que em um texto filosófico as palavras não estão usadas naquele sentido que nos é comum, e estejamos aten tos a nossa “associação privilegiada”. Em geral, mais do que usar os termos em um outro sentido que o usual, a filosofia os emprega de modo mais preciso ou conceitualmente ela borado. O prestar atenção ao fato de que os termos da linguagem comum muitas vezes têm sentidos múltiplos, vagos e imprecisos é um fator decisivo para entender ou não en tender um texto. A capacidade de identificar termos técnicos supõe muito mais que uma habilidade lingüística, não sendo possível redu- zi-la a um conjunto de regras que nos imunizem a todo erro possível. Porém, só o fato de superar a ingenuidade já cons titui um avanço decisivo. Um critério que pode ser útil (mas que está longe de ser infalível) é o atentar àqueles termos que se repetem no texto e que já temos observado com freqüên cia em escritos filosóficos. Uma vez que suspeitamos de que um certo termo é um termo técnico, vejamos os indícios que o próprio texto ofe rece para o seu esclarecimento e, eventualmente, verifique mos se não há em outras passagens do próprio texto defini ções (implícitas ou explícitas). O índice temático do livro pode ser de grande ajuda. Se nossa busca se frustra, pode 66 j A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS mos continuar nossa indagação fora do texto, servindo-nos para isso de bons dicionários específicos da disciplina. Imaginemos agora que sabemos que um certo termo é filosófico, e que um dicionário nos informou sobre seu sen tido. Ainda assim resta saber qual é seu sentido para esse autor em particular. Se, por exemplo, sabemos que “subs tância” é um termo filosófico e o aprendemos no contexto do estudo da filosofia de Aristóteles, é possível, não obstan te, que em um outro filósofo tenha um sentido diferente. Isso não acontece por mero capricho: as alterações termino lógicas denunciam, em geral, mudanças na forma com que pensamos o mundo. Uma vez identificados os termos técnicos e de posse de definições adequadas, vamos retraduzir o texto analisado substituindo nele os termos técnicos por seu sentido espe cífico. Obviamente a nova versão será ainda mais extensa que a anterior, mas será também mais explícita. Ao focalizar a terminologia, passamos da análise sintáti- co-gramatical para a semântica. No entanto, ainda não in gressamos no conteúdo do texto propriamente dito. Este será nosso próximo passo. 4.3.3. Taxonomia semântica: tipologia dos conteúdos presentes no texto Sabemos que há três momentos primordiais do estudo filosófico: problema, tese e argumento ( I a, 2, 2.2 ss.). Mas estes também são os três momentos primordiais que devem orientar a leitura de textos filosóficos. Porém, nem todos os tipos de conteúdo presentes em tais textos podem ser redu zidos a uma dessas três categorias. Em conseqüência, é ne cessário completá-las com outras. A lista que vamos oferecer O TEXT O | 67 talvez não seja completa, mas isso só pode ser provado na medida em que se afirme a utilidade para a análise de intro duzir uma nova categoria. São elas: a) tese (hipótese); b) argumento; c) conseqüência; d) objeção — contra-argumento; e) respostas à objeção e ao contra-argumento; f) exemplo; g) definição (explícita ou implícita); h) aplicação a caso ou casos particulares; i) explicitação de supostos10. Contudo, dando por concedido que a lista oferecida anteriormente é completa, a idéia básica que desejo propor é que, embora não seja necessário que em todo texto se encontrem presentes cada um dos elementos indicados, toda passagem de um texto pode ser classificada em uma e só uma das categorias citadas. Do categorizar um texto com base em critérios semân ticos não resulta uma nova retradução, mas um texto “subli nhado” de modo heterogêneo na forma da taxonomia se mântica descrita. A tipologia dos conteúdos cumpre quatro funções: a. Quando entendemos um texto, a identificação dos tipos de conteúdo se efetua “automaticamente”. O texto é compreensível porque, entre outras coisas, 10. Pode chamar a atenção algumas ausências ilustres, já que, se o “exem plo” aparece entre as categorias citadas, por que não a metáfora? A metáfora é um recurso de linguagem e não um tipo de conteúdo; em realidade todo tipo de conteúdo pode ter expressão literal ou metafórica. Em princípio é óbvio que, se entender é traduzir, temos que desmontar a metáfora para chegar à literalidade. Porém, aqui se encontra um problema complexo, pois poderia acontecer que a literalidade absoluta fosse propriamente “tarefa” (Aufgabe). 68 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS percebemos o exemplo como exemplo, a tese como tese etc. A não-compreensão de um texto, pelo con trário, pode depender de uma errônea categorização implícita. b. Até agora o texto se apresentava como um bloco uniforme; a partir de agora, começam a delinear-se nele momentos diferenciadose, sobre tal base, cer tas passagens se deslocam ao primeiro plano, estabe lecendo-se uma hierarquia entre elas. c. Um entender que aponte a uma tradução explicita- dora tem de ser seletivo, fixando diferenças de im portância. d. Finalmente, é por meio da categorização semântica que se dá a primeira aproximação ao conteúdo do texto com base em critérios que exercem um con trole metódico, evitando assim que o próximo passo seja um salto no vazio. 4.3.4. Retradução lógica Tendo fixado o tipo de conteúdo de cada momento do texto e estabelecido uma hierarquização entre eles, estamos em condições de efetuar um decisivo avanço no processo de compreendê-lo mediante sucessivas retraduções. Deno minamos retradução lógica o procedimento pelo qual trans formamos o texto em uma seqüência estritam ente lógica, começando (caso possível) com o problema, fixando a tese principal e eventuais subordinadas, desenvolvendo a sua es tru tura de relações com os seus argumentos, contra-argu- m entos e conseqüências. Característico dessa nova retradu ção é que: O T E X T O | 69 a. O texto é liberado de tudo o que lhe era logicamen te inessencial, purificando-se dos elementos literá rios e recursos psicológicos que ainda subsistiam nele. Sem estes, ele sem dúvida seria ininteligível; porém, uma vez alcançada a sua compreensibilidade primá ria, podemos prescindir daquilo que eram apenas meios auxiliares. b. Com o desaparecimento de tais recursos, altera-se de forma radical a aparência e, em particular, a or dem do texto. Do ponto de vista literário, ele perde sua fluidez; do ponto de vista lógico, contudo, torna- se “ordenado”. c. Pela primeira vez obtemos uma versão do texto mais breve que o original, podendo nos centrar naquilo que é prioritário do ponto de vista filosófico. Justa mente por tal motivo, saltos argumentativos e/ou temáticos são agora identificados com facilidade. A simplificação do texto pode às vezes eliminar pará grafos inteiros; outras, tão-só “colocá-los entre pa rênteses”. Assim, “colocamos entre parênteses” os exemplos e outras derivações da linha principal, que ocupam comumente boa parte do texto, e os usamos apenas quando chega seu momento como exemplo ou como derivação, conforme o caso. Cumprido seu papel, voltamos a passá-los para um segundo plano. Para traduzir logicamente o texto é imprescindível a identificação prévia do problema e da tese principal. Eles constituem uma unidade da qual dependem todos os mo mentos restantes. Se são fixados corretamente, estes have rão de configurar-se em uma totalidade única. Os cuidados que devemos levar em conta (e que já foram apontados por outros motivos e em outros momentos) são: 70 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS a. o problema nem sempre está presente de modo ex plícito no texto ( Ia, 5, 5.1 e 5.3); b. nem toda proposição afirmada no texto é uma tese ( I a, 2, 2.4); c. nem toda tese é tese principal; d. a tese principal só pode ser fixada em relação ao problema ( I a, 2, 2.4); e. o argumento é sempre argumento de uma tese; o contra-argumento, contra-argumento de um argumen to; o exemplo, exemplo de uma tese, de um argu m ento ou de um contra-argumento etc. 4.3.5. Modalização veritativa da tradução alcançada Neste novo passo não vamos obter como resultado uma nova tradução, e sim uma “modalização veritativa” da tra dução anterior. Vejamos por quê. Todo aluno novato quer começar por discutir a verdade da tese do texto, por “dar sua opinião”, a qual, entretanto, só é legítima depois do entender o texto, nunca antes. Se ela for precipitada não só será ingênua, como se tornará um obstáculo para a correta compreensão. Há um certo momento, contudo, em que a “tomada de posição” passa a ser um valioso recurso no pro cesso do entender. Esta segunda tomada de posição, claro está, só em aparência assemelha-se à anterior: se aquela era essencialmente espontânea, esta é dirigida. De modo algum se trata de abrir espaço agora para o jogo da “minha opi nião”, mas sim de um posicionar-se “m etódico” (em um sentido de “m etódico” tal qual a dúvida cartesiana o é) com uma finalidade não propriamente filosófica, mas pedagógica. Se, do ponto de vista lógico, o sentido de uma propo sição é independente de seu valor de verdade, do ponto de O T E X T O | 7 1 vista psicológico nem sempre é assim. Só entendo realmente quando tomo consciência que o entendido pretende ser verdadeiro e isso acontece, por regra geral1!, quando percebo que se opõe a uma de minhas crenças ( I a, 4, 4.2.2). O movimento do entender só é possível se, ao mesmo tempo, é acompanhado de um movimento de explicitação de mi nhas crenças. Se essas permanecem sem ser tematizadas, atuam como larvas que “apodrecem” a compreensão. Toda compreensão está ameaçada por uma certa “esquizofrenia”. O leitor não vincula, mas mantém o que ele crê e o que o filósofo afirma em compartimentos estanques. Ele “com preende” que, segundo Kant, a física supõe princípios a priori. Não obstante essa compreensão, ele não situa a tese crítica em relação a sua crença (que se mantém incólume) de que a física é uma ciência “empírica” e que, como tal, se baseia unicamente na “percepção”. Só quando deixamos por um instante Kant de lado e “obrigamos” o nosso leitor a tomar consciência do que ele crê, é que ele percebe que propria mente não havia entendido o ponto de vista crítico sobre a questão. Entendê-lo não implica abandonar a própria crença e sim tornar-se consciente de que ela é incompatível com a tese kantiana (e quiçá tão problemática quanto ela). E muito comum deformar para entender, fazer dizer ao autor algo que possa ser aceito por nós sem maiores conflitos. O apa recimento da questão da verdade “em concreto”, como re ferida às minhas crenças mais firmes, me “desperta” de minha “tolerância monadológica” (a qual, em realidade, não é fruto da benevolência, mas do egocentrismo). E aqui que deixo de ler o filósofo como um delirante e tomo consciência de que o que ele afirma contradiz algo que considero verdadeiro. E 11. Observe-se que o momento essencial não radica aqui no reconhecê- lo como verdadeiro ou falso, senão no reconhecê-lo como contradizendo uma de minhas crenças. 72 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS agora que o discordar já não é um obstáculo incômodo à compreensão, mas um momento dela. Em princípio, a análise não tem como objetivo decidir se o que o texto diz é verdadeiro ou falso, mas explicitar seu sentido. No entanto, em um plano radicalmente diferente do considerado até agora, podemos dizer que, já que a verdade do texto depende da forma em que o lemos, discutir tal forma pode ser um poderoso instrumento para nos aprofun darmos na sua compreensão. O fato de que algumas afirma ções se tornem verdadeiras se entendidas em um certo sen tido e falsas se entendidas em outro pode ser decisivo para privilegiar um modo de compreensão em relação aos demais. 4.3.6. Entender e interpretar: para uma nova versão do texto Com o exposto até agora finalizamos o que bem poderia ser chamado o nível “escolar” de leitura. A análise de texto por um principiante deve terminar aqui. Isto não significa, contudo, que tenhamos esgotado seus momentos possíveis. Podemos ainda avançar a um nível “crítico” enquanto dife renciamos o "entender” (ou "compreender”) ( I a, 4, 4.2, nota 3) do “interpretar” um texto. Entender é explicitar o sen tido de um texto; interpretar é completar tal sentido em alguma direção. E necessário ir além do texto para compreendê-lo, e isso em vários sentidos e de várias formas. E óbvio que toda boa leitura o respeita, pretendendo explicitar o seu sentido sem deformá-lo, sem lhe acrescentar nem subtrair nada. Uma boa leitura, no entanto, não é jamais um mero espelho do texto. Existem diferentesmaneiras de “estar no texto”. Há muitas coisas que “estão” nele ainda que não sejam propriamente O T E X T O | 73 "ditas” (e, em conseqüência, não possam ser, em sentido lite ral, lidas). Elas só são acessíveis na medida em que, distan ciando-nos do texto, assumimos uma posição ativa diante dele. E o desenvolvimento natural do próprio explicitar o texto o que obriga a assumir tal posição. Esta nova atitude “sus pende” sua mera leitura para possibilitar, assim, refletir so bre ele. A reflexão sobre o texto e a sua leitura não são sinônimos. A primeira supõe atividades que não são strictu sensu de leitura: deixamos de "ler” para passar a “dialogar” com ele. Este diálogo, justamente porque é diálogo com o texto, não o abandona, porém o transcende. Já observamos, em um outro momento (Introdução, “Estrutura temática”), que nenhum filósofo é “fácil” e que a diferença entre eles está no modo em que não o são: existem aqueles que são difíceis de ler e aqueles que são difíceis depois de lidos. Pois bem, podemos agora acrescen tar que aqueles que são difíceis “depois”, são aqueles com os quais é difícil “dialogar”. E no diálogo com o texto que aparece a necessidade de desenvolver e precisar suas idéias. Todo texto é incompleto e suscetível de ser precisado e desenvolvido. A interpretação não é uma violência que se faz com ele, mas parte de sua própria natureza. A aparência de arbitrariedade que ela possui é mera aparência. “Interpretação” só é possível a partir de uma significação “dada” e como complemento que esta exige. Em um poema, a forma literária é essencial; se algo nele é mudado, perde-se “esse” poema. O texto filosófico, ao contrário de um poema (ou de uma obra de arte em geral), rem ete a algo fora de si (e não apenas a algo anterior, mas inclusive a algo posterior). Ele remete, obviamente, a suas referências explícitas e implícitas, a seus supostos lógicos e, além de tudo isso, a um horizonte de significação. Todo texto filosófico, ao mesmo tempo em que fixa uma totali 74 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS dade hermenêutica, abre perspectivas sobre um universo que ele mesmo não desenvolve. Por tal motivo, ele é e permanece tão-só “fragmento”, pois sua explicitação jamais será finalizada. Há, portanto, uma indeterminação objetiva do sentido de um texto que tem a ver com a natureza do significado e com nossa finitude. O homem, como ser finito, produz (ou aspira a produzir) sen tido infinito. Assim como, dado um conjunto de axiomas, ninguém pode apreender, a partir de uma simples intuição, a série total de seus teoremas, do mesmo modo, dada uma unidade de sentido, ninguém consegue captar ao mesmo tem po todas as unidades de sentido da qual essa pode fazer parte. A interpretação continua o trabalho da compreensão, conside rando não apenas as alternativas que o texto desenvolve, mas também aquelas que ele omite. A exigência de uma leitura direta dos textos não pode levar ao exagero de desconhecer os comentadores clássicos, sob pena de voltar a redescobrir eternam ente as mesmas dificuldades hermenêuticas básicas. Quanto mais se conhece a bibliografia secundária de um autor, mais se percebe que o sentido é sempre aberto e que há várias formas de precisá- lo e/ou completá-lo. A opção por uma ou outra gera as polêmicas entre os intérpretes. Muitas vezes, no entanto, é o próprio texto que não é concludente com respeito a certas questões. Limitar-se a indicar a impossibilidade de resolvê- las com base nos materiais dos quais se dispõe pode, em certas ocasiões, ser a única posição justa. Os problemas objetivos de interpretação são uma verda deira ponte pela qual se passa, de um modo quase impercep tível, do comentário à reflexão autônoma. Em certas oca siões existe uma continuidade tal entre o escrito do filósofo e o de seu crítico, que a linha divisória entre texto e comen tário pode chegar a ser muito tênue. A Idade Média em seu O T E X T O | 75 conjunto oferece um grandioso exemplo no sentido da pas sagem gradual do comentário ao trabalho sistemático-criati- vo. Nesse contexto, um autor como Suárez oferece uma si tuação extremamente interessante. Se grandes comentado res efetuaram contribuições decisivas para o avanço da filo sofia, grandes filósofos são, não poucas vezes, grandes co mentadores. Não é incomum, também, que um filósofo inter prete outro (Heidegger a Kant, Habermas a Heidegger)12, ou que um novo desenvolvimento se origine em uma inter pretação ou, inclusive, que uma polêmica surja a partir de uma interpretação (Arnauld-Malebranche). Um texto compreendido nunca é apenas lido; ele é interlocucionado ativamente e, em certo sentido, até "produ zido”. O intérprete é sempre um co-autor. Seria irresponsa bilidade dizer a um aluno de primeiro ano que quando inter pretamos um texto na realidade o estamos “produzindo”13. Com certeza, o efeito imediato seria abrir as portas para qual quer arbitrariedade. Contudo, creio que isso é essencialmente certo e que quem refletir sobre a própria experiência nessas questões não se escandalizará com o que foi dito. 12. Como veremos, a razão deste fato não é outra que a interação entre "recepção” e “criação". 13. A "produção do texto”, no sentido em que a consideramos agora, supõe a reconstrução lógica e histórica, parte fundamental da qual é a recons trução do problema ( Ia, 5,5.3). 76 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS
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