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2. O pensamento sobre a Guerra Fria Uma noção de Guerra Fria deveria ser construída pelas chancelarias, na formulação de sua política externa.A projeção diplomática é construída na consideração de motivações internas e externas: estas dão forma à identidade internacional dos países. Por um lado, uma noção de Guerra Fria deveria ser moldada pelas próprias forças em conflito. A doutrina almejando a legitimidade, num ambiente com poucos elementos reguladores como o internacional, deve ser bem equacionada, embora obedecendo a padrões de forças. Por outro lado, o conflito moldou o sistema internacional e criou linhas mestras que canalizaram comportamentos. Uma a uma, as nações foram chamadas a tomar partido. A intelectualidade aliada aos governos envolvidos encarregou-se de definir as responsabilidades pela situação internacional. Diversos institutos de pesquisa especializados na sociedade soviética, foram, assim, fundados nos Estados Unidos, nas décadas que se seguiram ao pós-guerra. Da mesma forma, do lado soviético, falava-se na agressão do imperialismo capitalista. Gerson Moura, em seu estudo sobre a historiografia das relações internacionais nos Estados Unidos, nota quatro grandes formulações na explicação das relações internacionais sob efeito do conflito bipolar. No imediato pós-Segunda Guerra Mundial, temos dois modelos: o Consensualismo e o Realismo. Nestes, o fundamento teórico recairia sobre uma pressuposta essência agressiva e expansionista, inerente à própria sociedade russa, que estaria em ação desde os tempos do Tzarismo. A esses, dois outros modelos são somados. o Revisionismo e o Pós-Revisionismo. Nestes, a participação dos Estados Unidos no conflito é destacada e criticada. O Consensualismo, aceitou as motivações e alegações do seu governo, centrando-se na necessidade da reconstrução diplomática do mundo. Na verdade, extremamente conservador, seu principal objeto seria o próprio caráter norte-americano, cujos elementos preponderantes teriam sido a continuidade e a permanência. os autores que trataram principalmente do pós-guerra foram Robert Divine, e Robert Dallek. Críticos em relação aos consensualistas, estes autores culparam o idealismo das administrações de Roosevelt e Truman e sua excessiva condescendência para com os soviéticos. A política externa norte-americana, portanto, deveria guiar-se pela construção de sua hegemonia e pelo bloqueio da ameaça soviética. Para tal propósito, toda prática é justa e legítima. Muito embora Gerson Moura circunscreva o realismo ao período do imediato pós-guerra até os anos sessenta, este paradigma tem, na verdade, uma notável resistência. Desdobramentos de seus argumentos permanecem até hoje nas considerações sobre o ambiente internacional. A contestação social da ordem de poderes entre os Estados foi a origem do paradigma Revisionista. Para Horowitz, o verdadeiro marco da descontinuidade na cooperação entre Estados Unidos e URSS teria sido o lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima, mostrando projetos de concorrência no plano internacional. Em bases muito próximas, Alperovitz argumentou que os Estados Unidos teriam ignorado as necessidades de segurança da União Soviética na região do leste europeu, precipitando o conflito. No âmbito da ação política, a crítica dos grupos pacifistas teve poder de difusão suficiente para influir na opinião pública americana. A partir da década de setenta, a necessidade da política de contenção já não era tão clara. Para os autores revisionistas, Guerra Fria seria o produto do expansionismo capitalista, mas a conjuntura não estaria determinada, apresentando ainda possibilidades e alternativas de ação. John Gaddis, George Herring, Walter La Feber e Thomas Paterson, constituíram-se no grupo que viria a ser chamado de pós-revisionistas. Eles insistiram numa responsabilidade compartilhada entre Estados Unidos e URSS, na evolução do conflito bipolar. Fred Halliday, atendo-se à própria questão da Guerra Fria, procurou classificar os estudos na matéria, dividindo-os em quatro grandes grupos, os estudos de cunho realista, que compreenderam as relações entre os Estados, como ditadas por questões estratégico-militar; os de cunho liberal, que pensaram o processo num quadro dicotômico entre democracia e totalitarismo; aqueles que tenderam a ver no conflito uma “homologia” de propósitos que atenderia a necessidades estritamente internas a cada potência; e, por último, que consideraram o conflito como intersistêmico, ou seja, aqueles que entenderam a Guerra Fria como expressão da rivalidade entre dois sistemas sociais, econômica e politicamente diferentes e dicotômicos. Edward Thompson15, que na visão de Halliday pertenceria à escola “homológica”, defendeu a idéia de que o conflito guarda uma relativa independência de seus suportes ideológicos, estruturando-se em ambas as sociedades conflitantes, com as mesmas formas e funções. A Guerra Fria teria sido um jogo de opostos na origem, que acabou por criar um único sistema: uma dinâmica auto-reprodutora com regras próprias. Fred Halliday propõe, como princípio de análise, a consideração do conflito como intersistêmico. De seu ponto de vista, Thompson subestima as rivalidades entre os sistemas. Ele insiste na visão de que as duas sociedades são inconciliáveis, enquanto formas distintas de economia e política. Para Halliday, a prova cabal deste princípio é o fim das rivalidades, com o termo do Socialismo Real na Europa, em fins da década de oitenta e início da de noventa. O objetivo e o fim da Guerra Fria, que no caso se confundem, seriam o de acabar com a heterogeneidade, integrando ambas as sociedades sob um só sistema prevalecente. É o que explicaria o fato de as instituições de um lado se fortalecerem em detrimento das do outro. Não obstante, como considera Thompson, ambas as posições, separadas na classificação de Halliday, podem estar estreitamente relacionadas. A Guerra Fria teria sido um jogo de opostos na origem, que acabou por criar um único sistema: uma dinâmica auto-reprodutora com regras próprias. A idéia de origem comum remete à reciprocidade de intenções, em ambas as potências no conflito. Quanto ao pretendido fechamento da Guerra Fria, Thompson responde: “Em uma lógica de interação recíproca, a retirada de um lado pode afetar profundamente o outro, assim como pode cair o lutador que repentinamente se vê sem seu antagonista.” Mais do que defender um ponto de vista diante de seu oposto, a insistência de Halliday em negar a reciprocidade do processo das nações em conflito revela, uma classificação espúria da historiografia. O debate entre Thompson e Halliday, abre perspectivas para a importância dos fatores alheios ao conflito intersistêmico, no seu próprio desenvolvimento: questões de cunho cultural e político, que concernem muito mais a aspectos internos aos Estados envolvidos e a seus coligados. 3. Os fatores internos e o anticomunismo Para Eric Hobsbawm, a consideração destes fatores, na análise do período, parece ser mesmo uma necessidade. Em verdade, este conflito bilateral surge como um embate de forças ideológicas, mas acaba por gerar outras forças e regras próprias independentes daquelas. De acordo com Hobsbawm, o quadro internacional tendia à estabilidade após o confronto da Segunda Guerra Mundial. As nações européias estavam esgotadas e as disputas que existiam entre elas foram abafadas. As novas potências emergentes no fim da Guerra respeitavam as áreas de influência de seus respectivos oponentes, de acordo com os tratados de Yalta. Moscou não apresentava sinais de expansionismo22, mesmo porque tinha sua economia de tempos de paz em frangalhos e temia uma populaçãopouco comprometida com o seu regime. Ainda que a situação fora da Europa fosse menos definida, onde as linhas de influência eram mais ambíguas e, conseqüentemente, abrissem espaço a uma maior concorrência entre as potências, estas respeitavam a divisão do mundo e tentavam resolver os conflitos sem maiores choques. A questão dos mísseis cubanos de 1962 foi resolvida com a preocupação, de ambos os lados, de que as ações tomadas não fossem interpretadas como atos de guerra. Se o sistema internacional tenderia a ser estável, a questão, segundo Hobsbawm, seria: como explicar 40 anos de conflitos? Moscou preocupava-se com a sua segurança e situação precária frente à incontestável hegemonia internacional americana. Para sua defesa como potência, apenas restava não fazer qualquer concessão ou acordo diante de pressões externas. De outro lado, o poderio americano evidentemente tinha limites, assim como o seu poder de comando mundial. Temia-se um possível futuro avanço da URSS. Como conseqüência, instalou-se uma política de intransigência mútua e rivalidades que transcendiam a relativa solidez das áreas de influência. Para além da política de potências, a Guerra Fria baseava-se na crença infundada dos governos de que a situação internacional permaneceria tensa e competitiva, e que os países estariam igualmente envolvidos em instabilidade econômica, como no entreguerras. Para Hobsbawm, a Guerra Fria parece um conflito inócuo que surgiu como um espantalho, utilizado pelos políticos ocidentais para consumo de seus eleitores. A URSS, como regime forte, não teria tido necessidade deste recurso. Sua visão do sistema internacional bipolar está comprometida com a percepção das potências. O conflito se remeteria mais às questões de segurança mundial, as preocupações das populações ocidentais sobre um possível perigo comunista não podem ser negligenciadas. No período de entreguerras, a economia planificada soviética apresentava-se funcional e eficiente, num mundo entregue a contínuas crises econômicas. Todas as economias nacionais preocupavam-se em se preservar das ameaças externas, a poupança interna se esvaía, o desemprego atingia escala sem precedentes e surgiam diversos regimes de caráter autoritário no mundo. O New Deal americano, inspirava-se nas economias planificadas. A planificação ganhava prestígio: a estratégia do New Deal era preservar estas populações frente às crises, com políticas de pleno emprego e de previdência social. O Keynesianismo associou capital e trabalho, sob a assistência do Governo. Os movimentos trabalhistas organizados tornavam-se a alternativa democrática para assegurar a lealdade da classe operária. Portanto, sem a crise do entreguerras, é provável que o socialismo não fosse encarado como um adversário sério no cenário internacional. Após a Segunda Guerra, ocorreu um surto econômico ocidental. Estava eliminada a possibilidade da revolução social na Europa, graças especialmente à ajuda financeira de Washington. A União Soviética deixou a Segunda Grande Guerra arrasada, tendo que passar por um período de crise e de recuperação da economia civil. Assim, sendo o conflito entre potências inevitável, a este veio somar-se a luta contra “a escalada do comunismo no mundo”, em princípio, este era muito mais um problema interno e nem tanto uma política de Estado. O anticomunismo era popular nos Estados Unidos. Embora estivesse presente em todos os Estados Ocidentais, nos EUA pertencia à pauta de discussão dos governos, e presidentes eram eleitos com o objetivo de combater o avanço comunista em suas plataformas. Hobsbawm também acredita que o medo do confronto entre as potências seja a força geradora da Guerra Fria, porém destaca o fato de que a inserção do conflito ideológico nas relações internacionais, que logo a seguir tomou o caráter de uma cruzada contra o comunismo. Luciano Bonet28, ao analisar a história do anticomunismo, vê uma complementaridade nas políticas internas e externas dos Estados. Tanto a “política de contenção” quanto a “coexistência pacifica” pertenceriam a este tipo específico de cultura política que, integra o sistema e a sociedade. No Ocidente, este tipo de conduta preveniu e isolou a ação dos grupos comunistas nos Estados. Na perspectiva de muitos historiadores da Guerra Fria, o anticomunismo norte-americano é apenas uma justificativa interna para a expansão da sua hegemonia no mundo. Uma explicação viável para a Guerra Fria é a de que ela parte de um complexo de razões, nas quais se inserem, principalmente, o conflito entre dois blocos políticos e econômicos antagônicos. A contribuição dos aspectos culturais que ajudaram a alimentar e a dar forma ao conflito, muito raramente é considerada no estudo do fenômeno. Os norte-americanos acreditavam-se, tal qual os soviéticos, detentores de uma utopia para o mundo. Para estes, o comunismo encarnado no Estado Soviético representava a negação de sua utopia. Em certo sentido, a história da inserção da URSS no quadro internacional, desde o seu início, deu-se num contexto de uma guerra religiosa. Togliatti, na contingência de definir o anticomunista, afirmou que significava: “Dividir categorialmente a humanidade em dois campos e considerar ... a dos comunistas ... como o campo daqueles que já não são homens por haverem renegado e postergado os valores fundamentais da civilização humana.” É o sinal de impureza que contamina o ser humano, retirando-lhe o que lhe é próprio. Somente a total aniquilação do inimigo, poderia ser considerada.O motivo disto não é gerado pelo conflito intersistemas, mas, antes, pelo fato de que as forças inseridas no confronto permaneceriam ainda em atuação por inércia, como é próprio dos comportamentos culturais que persistem pretéritos, apesar das transformações sociais.
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