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Bucher_(1989)

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Richard Bucher
Inlernacicinais de Catalogarão na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livrei, SP, Brasill
Bucher, Richard, 1940-1997
B932n A psicolcrapia pela fala: fundamentos, princípios,
qucstiotianicnios / Richard Emil 13uolior.
São Paulo: EPU, 19S9.
Bibliografia
ISBN 85-12-60440-9
1. Psicanálise 2. Psicologia clínica 3. Psitolcrapía
4. Relações interpessoais [. Titulo.
8-2178
CDD-SIS.89H
-157.9
-616.8917
NLM-WM 420
índices paia tuialii^n sisltmálico:
1. Psicanálise: Medicina 616.S917
2. Psicologia clinica 157.9
3. Psicoterapia: Medicina 616.89
4. Relações Psicolcrápiças 616.8914
A PSICOTERAPIA
PELA FALA
icípiFundamentos, princípios
questionamentos
rapia" "todos os métodos que utilizam
meios psicológicos para combater a doença
pela intervenção do funções psíquicas".
Nesta definição se reflele tanto o enfoque
medica] ("combater as doenças") quanto a
referência à psicologia associacionista da
época ("as funções psíquicas").
10. A respeito, pode-se citar a controvérsia en-
tre Binswanger d Freud acerca dos compo-
nentes espirituais ("superiores") e pulsío-
nais {"inferiores") da natureza humana.
Binswanger, no seu trabalho comemorati-
vo do 80." aniversário de Freud, "A Con-
cepção Freudiana do Homem à Luz da
Antropologia", criticou a concepção natu-
ralista de Freud, pela qual o homem seria
"reduzido" a um esquema ou sistema con-
forme às ciências exalas. Diante das preo-
cupações espiritualistas e transcendentais
de Binswanger, Freud já anteriormente ti-
nha deixado clara a sua posição: "A hu-
manidade desde sempre sabia que tem
espírito; eu tinha que mostrar a ela que
também há pulsÕes". Quanto ao referido
trabalho, Fremi o elogia com cortesia, para
continuar: "Naturalmente apesar de tudo,
não acredito no Sr. Sempre demorei apenas
no térreo e no subsolo do prédio. O Sr.
afirma que basta mudar o ponto de vista
para enxergar lambem um andar superior
onde residem hóspedes tão distintos como
religião, arte e outros. O Sr. não c o único,
ali, a maioria dos exemplares culturais do
homo naturu pensa assim. O Sr. nisso é
conservador, eu sou revolucionário. Se ti-
vesse ainda toda uma vida de trabalho
diante de mim, me atreveria a indicar àque-
les aristocratas uma moradia em minha ca-
sinha humilde...". Percebe-se que as pre-
missas (ou os "pontos de vista") são bem
divergentes, fílosófico-transcendcntais de
um lado, empírico-clínicas de outro.
Nota-se ainda que Binswanger, num traba-
lho posterior, corrigiu sua crítica do homo
untura de Freud, percebendo outros valores
de "veracidade" na obra de Freud. Em:
BINSWANGER, L., Mein Weg zu Freud,
em: Der Memcli in der Psychialrle. Neske,
1951. Este trecho ainda é citado por Rollo
MAY, no texto "Psicologia Existencial",
em: Millon, T. Teorias da Psicologia e Per'
sotialidade, pp. 136-37.
11. BINSWANGER, L. Lebensfutútion und
innere Lebensgesehichte, (1927). Em: Aus-
gewâhlte Vorlràge und Aufsatze, vol. I.
Bem, Francke Verlag, 1961(;), pp. 50-73
(tradução nossa).
12. JASPERS, K. Psicopatoiogia geral. Z vol.
Rio de Janeiro, Athencu, 1979P). Ver 2.a
parle: As conexões compreensíveis da
vida psíquica (Psicologia compreensiva); I,
pp. 361-534. 3.a parte: As conexões causais
da vida psíquica (Psicologia explicativa);
II, pp. 551-672.
Nota-se que a noção de "conexão" ("Zu-
sammenhang") influenciou, desde Dilthey,
em alto grau as ciências humanas da época,
notadamente na Alemanha. Na própria
obra de Freud ele aparece com frequência,
sendo traduzida da maneira mais variada
(coerência, contexto, coesão, correlação,
encadeamento, ligação, trama, elo, proces-
so, aproximação, conjunto, associação, se-
quência...), de sorte que seu reconheci-
mento nas traduções é de averiguação difí-
cil (tanto cm inglês ou francês quanto em
português). Antes de qualquer estruturalis-
mo, a noção de Zusainmenhang se equipara
àquela de estrutura; em Freud, testemunha
a. sua convicção do determinismo psíquico
e da coerência de todos os fenómenos da
alma humana, antecipando a concepção es-
trutural propriamente dita.
Capítulo 3
Delineamentos teóricos do
campo psicoterápico
3.1. O problema da teoria
da prática psicoterápica
No capítulo precedente, confronta-
monos com a especificidade da relação
psicoterápica. Esta se opõe, como vimos,
à relação médico-paciente, na medida em
que não recorre a meios intermediários.
Se a ação médica opera mediante recursos
objetivos, instrumentais, apelando para
forças de oulra espécie — físicas, quími-
cas, biológicas — a psicoterapia apela
unicamente para aqucías forças que estão
presentes diretamenfe em qualquer ação
(ou melhor: interação) humana: as forças
do diálogo, da "fala", da verbalízação e
tudo aquilo que implicam afetiva e cogni-
livamente.
Não obstante, cabe, com vistas a uma
delimitação teórica do campo psicoterápi-
co, distinguir a relação psicológica da re-
lação psicoterápica propriamente dita. A
primeira sempre está presente, em qual-
quer relação humana, inclusive na relação
médica. Ela é implícita, concomitante,
automática por assim dizer e, embora
consciente, se efetua de maneira não re-
fletida, mais como um pano de fundo di-
fuso do que respondendo a uma intenção
explícita.
Sem referência a teorias ou técnicas, a
dimensão psicológica participa de tudo
que é humano, regulamentada por certas
convenções (as fórmulas de polidez, por
exemplo) e codificada (e decodificada)
segundo as necessidades de cada situação
concreta. No caso da relação médica, ela
intervém pela maneira do paciente apre-
sentar a f-ua queixa, do médico interrogar,
examinar, discutir, prescrever e, quem
sabe, prometer alivio ou mesmo cura com-
pleta do achaque — interações aparente-
mente simples, mas de fato complexas se
pensarmos nas implicações mágicas ou in-
conscientes que contêm; complexas tam-
bém no que tange à sugestão, à persuasão
que o médico pode ser tentado a usar
(prometendo alívio, por exempio).
Neste caso, situamo-nos na região limí-
trofe da relação psicológica cotidiana,
isto é, não psicoterápica, em consequên-
cia do ohjetivo consciente, mas talvez in-
42
confessado, de querer diretamente in-
fluenciar o outro, para que "acredite" nas
palavras — e no poder — daquele que
fala, que "sabe" e que ordena em con-
cordância com este seu saber.
A persuasão aproxima-se, portanto, da
relação psicoíerãpica(l), porquanto visa
produzir uma certa mudança no outro. A
relação psicológica, no entanto, não pre-
tende alcançar esta mudança de maneira
explícita ou proposital: ela pode produ-
zir-se iocidentalmente, como efeito de re-
forço ou pelo amparo que uma atenção
caritativa, por exemplo, proporciona ao
doente. O médico, no caso, não se empe-
nha em propiciar esta mudança ou cura
pela via psicológica, o que resta o apaná-
gio, precisamente, da relação psicote-
rápica.
Bem em oposição à relação psicológica,
espontânea e superveniente em qualquer
situação humana, esta é explícita, siste-
mática e relativamente padronizada. Ela
se sustenta por um arcabouço teórico que
lhe confere uma certa coerência, um certo
rigor e uma veríficabilidade que, embora
longe de ser experimental, obedece a cri-
térios de reflexão científica e contém re-
ferências a parâmetros metodológicos ave-
riguados.
A conjunção dos dois aspectos, da teo-
rização contínua e do méíodo sistemáti-
co de investigação e prática, oferece uma
garantia mínima pela não-arbitrariedade
e seriedade do empreendimento terapêu-
tico. Esta não deixa de ter a sua impor-
tância, visto as pretensões de cientificida-
de, isto c, de uma certa objetividade e
comprovação intersubjetiva da psicologia
clínica.
Voltaremos à distinção das diversas re-
lações psicológicas e psicoterápicas. Por
enquanto, traiamos em primeiro lugar da
necessidade de definir teoricamente o que
c psicolerapia, onde, em que campo ela se
situa e como cia procede. Esta necessida-de decorre precisamente da pretensão
científica mantida por aquela psicologia
clínica que se inscreve na tradição filo-
sófico-científica do ocidente. Pelas suas
exigências de reflexão metodológica, de
rigor, consistência c autocrítica, ela reage
contra as abordagens psicológicas de
cunho mais especulativo, místico, trans-
cendental ou parapsicológico. Nestas
orientações, os critérios tradicionais de
cientificidade são desleixados; outras re-
ferências são invocadas para justificar as
linhas de atuação, tais como a intuição, a
criatividade espontânea, o contato ime-
diato com o cliente, a meditação transcen-
dental, a mentali^ação, a sugestão, o êxta-
se, relações com forças ou seres extrater-
restres e assim adiante.
Não se trata aqui de criticar estas li-
ge aos critérios de verificação e de elabo-
ria oriental; basta citá-las para assinalar a
diferença radical de enfoque no que tan-
ge aos critérios de verificação e de elabo-
ração teórica, bem como para situar a
psicologia clínica à qual nós nos referi-
mos: ela não pretende fugir das exigên-
cias de coerência lógica e racional que
caracterizam a evolução da ciência no
ocidente; embora "não positiva", no sen-
tido de não referir-se a um objeío direta-
mente observável ou quantificável, ela
não abre mão da sua própria cientificida-
de. Para alcançá-la, elabora critérios pró-
prios de investigação, adaptados ao seu
objeto geral — o ser humano que luta
com dificuldades c conflitos —, tanto
quanto ao seu objeto específico — as in-
teraçôes que, a nível de terapia, possam
iniciar processos de mudança que benefi-
ciem este ou aquele portador de conflitos.
De fato, como vimoj nos dois capítu-
los anteriores, a psieoterapia consiste
numa interação muito particular entre
duas (ou mais) pessoas. Ela é, portanto,
uma prática, mas uma prática que não
tira sua consistência de nenhuma teoria,
de nenhuma "ciência básica" preestabele-
cida. Em sua estrutura, distingue-se essen-
cialmente da terapia comportamental.
Esta considera a si mesma como uma apli-
cação de princípios encontrados por ou-
tros métodos, ou seja, no laboratório, pela
psicologia experimental (sobretudo ani-
mal). Isto implica um procedimento cien-
tífico radicalmente diferente, o que reper-
cute inevitavelmente nos métodos de ava-
liação e de comprovação.
Por conseguinte, a relação com a teo-
ria é muito diferente: no caso da terapia
uomportamcntal, a teoria precede a apli-
cação, sendo elaborada num contexto di-
ferente — contexto que corresponde, qua-
se que totalmente, aos critérios da cien-
tificidade "positiva", aqueles de quantifi-
cação, objetivação e abstração. Com muita
lógica, a terapia comportamental conside-
ra a sua aluação como "científica", uma
vez que aplica os resultados da ciência
experimental do comportamento, obtidos
principalmente por via indutiva. Ela se re-
fere, pois, explicitamente, ao caráter "po-
sitivo" da sua fundamentação teórica, en-
raivada bem mais nas ciências exalas, em
particular na biologia, do que nas ciências
do homem.
A psieoterapia aqui conceituada, en-
quanto parte da abordagem clínica não
comportamental (nem psicométrica), de-
senvolve-se obedecendo a princípios dife-
rentes. Sendo ela prática clínica (e não
aplicação técnica), não se refere a uma
teoria constituída alhures, mas elabora a
sua teoria própria, mini movimento cir-
cular permanente: a sua elaboração teóri-
ca, embora fertilizada pelas reflexões filo-
sóficas e antropológicas milenares da hu-
manidade, procede com uma referência
imprescindível à experiência clínica. Esta,
sendo não experimental, não controlada
e não repetitiva, não pode submeter-se
aos cânones da ciência "positiva" — me-
lhor, não pode nem deve submeter-se a
eles, uma vez que obedece a outros prin-
cípios, decorrentes da sua situação especí-
fica com um objeto, não apenas alvo de
investigação e de pesquisa, mas um sujei-
to, parceiro num processo de interação
que almeja a mudança.
Não se pode pensar, pois, como na si-
tuação experimental ou de aplicação, no
controle das variáveis ou na estabilidade
do seu aetting, se no enfoque psicoterápi-
co, controle e estabilidade não fazem
parte das propriedades desejáveis — se,
pelo contrário, devem ser excluídos ou
combatidos como "sintomas" de rigidez,
de defesa e de resistência de um ou de
ambos os protagonistas desta singela rela-
ção humana.
Assim entendida, a psicologia clínica (e
com eia a psieoterapia aqui em foco) não
é "positiva" segundo o conceito tradicio-
nal (e positivista) de ciência. Levando as
coisas ao pé da letra — uma vez que as
palavras "querem dizer algo" c que a no-
ção de "positivo" faz parte de um contex-
to histórico que quis extirpar, explicita-
mente, o "obscurantismo" do não-positi-
vo, isto é, do negativo, pelas célebres
"ideias claras c distintas" (leia-se: quan-
titativas) de Descartes — a nossa psico-
logia clínica logicamente pertencerá a
uma "psicologia negativa" (2).
O que caracteriza então uma tal psi-
cologia negativa, contestada, por não ser
científica, cm seu direito de cidadania na
44 45
comunidade ideológica dos cientistas.. . ?
Sendo baseada na prálica, será ela neces-
sariamente situativa e concreta; referin-
do-se à fala, ao diálogo como meio de co-
municação e instrumento de trabalho,
será ela necessariamente dialética; focali-
zando as experiências passadas da pessoa,
do "sujeito" pedindo auxílio, será ela ne-
cessariamente histórica; enfatizando o ca-
ráter humano da problemática em ques-
tão, será ela necessariamente ligada às
ciências do homem; investigando as es-
truturas do tornar-se homem e dos trope-
ços que neste processo o acometem, será
ela universal em suas extrapolações teó-
ricas, à condição que estas sejam proces-
sadas com rigor e pertinência.
Quanto ao conteúdo desta "psicologia
negativa", a ser recriada sempre, embora
antiga como a sabedoria humana, farão
parte dela todas aquelas experiências ne-
gativas que o homem está sofrendo consi-
go mesmo e com os outros, ligadas à sua
situação existencial, ao drama de ser "jo-
gado no universo", numa derrelição sem
fim. Pertencem a estas experiências a an-
gústia, existencial ou situativa, a agressi-
vidade e destrutividade humanas, a psico-
patologia de cada um, micro ou macroscó-
pica; a mortalidade, finalmente, ou seja,
o espectro da morte, inelutável na sua
certeza objetiva e absoluta, perseguindo o
homem como única certeza não-científíca,
acerca da qual não lhe resta dúvida de
quanto quer fugir dela.
De maneira mais ampla, fazem parte
destas experiências negativas iodos os fe-
nómenos irracionais, nos quais se incluem
o amor, a sexualidade, a afcíividade, o
sonho, o desejo e a culpa — experiências
banidas dos laboratórios da ciência posi-
tiva. Elas se infiltram cm nossa consciên-
cia, fazem irrupção em nosso comporta-
mento, oriundos de um "outro lugar"
(como disse Fechner a respeito do sonho),
de uma "cena alheia", ao mesmo tempo
inquietante e familiar (isto é, subjetiva),
exercendo um efeito subversivo sobre as
nossas certezas aparentemente bem orde-
nadas . . .
Todos estes aspectos "irracionais", pre-
sentes na mais cotidiana conduta huma-
na, não são tratados pela "psicologia
geral e experimental". Porém, eles não de-
vem ser negados ou evitados pela fuga
para o laboratório e suas certezas acon-
chegantes, nem pela prioridade intransi-
gente atribuída ao estudo do "homem ge-
ral, adulto e civilizado", nem pela prima-
zia reclamada para o estudo de traços
parciais ou ultradetalhados do seu com-
portamento. Ao lado desta psicologia ge-
ral, cabe pois uma psicologia concreta e,
em particular, clínica, cuja elaboração
urge, visto a amplidão e a permanência
dos conflitos humanos — presentes inal-
teradamente apesar de todo o "progresso
da ciência".
Esta psicologia concreta, longe de pre-
tender alcançar a abstração, aceita a im-
plicação do psicólogoou do psicotera-
peuta nas interações múltiplas com o
seu objeto que, precisamente, não é um
objeto, mas um sujeito, a ser apreendido,
estudado e tratado na sua singularidade
subjetiva. Esta subjetividade, tão bem en-
fatizada por Binswangcr, não apresenta
um déficit, uma fraqueza da abordagem
psicológica aqui preconizada, mas uma
riqueza na investigação de fenómenos hu-
manos de alta relevância. Como já frisa-
mos, esta psicologia será concreta e uni-
versal ao mesmo tempo, st' conseguir
apreender c articular entre si elementos
significantes de uma tal qualidade e en-
vergadura que revelem os alicerces da es-
truturação psíquica do homem, a um
nível transindividual e propriamente an-
uo pológico.
Uma tal abordagem, sem dúvida, não
permitirá verificações empíricas diretas
ou "positivas", mas nem por isso será ne-
cessariamente incontrolável, selvagem, es-
peculativa ou não-científica. Para executar
este projeto, será preciso basear-se cm cri-
térios próprios de cientificidade, diferen-
ics daqueles das ciências exalas — o que
não quer dizer que sejam por isso menos
rigorosos, sendo que o critério de exaíidão
(isto é, de quantificação e metrificação)
não é o único critério científico. Qualquer
sistema com pretensões de cientificidade
se valida não pelo aspecto da exatidão,
mas pela coerência lógica das suas propo-
sições e hipóteses teóricas, o que é um
problema não quantitativo, mas episte-
mológico.
Esboçadas estas considerações gerais
sobre a necessidade de discutir a questão
da cientificidade também a nível da psi-
cologia clínica, bem como de proceder à
sua elaboração teórica, faz-se mister en-
contrar critérios capazes de nortear este
empreendimento. De fato, a tentação
pode ser grande — e não são poucas as
orientações ou "escolas" que sucumbem
a ela — de desistir da reflexão teórica
rigorosa, uma vez que não adianta, diante
da especificidade do objeto, a relação
psicoterápica, recorrer aos critérios tradi-
cionais da ciência. Em particular, não
adianta recorrer ao sacrossanto critério
da quantificação, se se quer apreender o
que de subjetivo, de inconsciente, de a\e-
tivo ou de irracional participa na intera-
ção entre terapeuta e paciente, ou até
mesmo a constitui estruturalmente, se nós
a considerarmos além da sua aparência
observável.
Não obstante, empenham-se muitos au-
tores hoje em dia para chegar a uma ava-
liação quantitativa daquilo que "se passa"
numa sessão de psícoterapia, ou ainda,
dos efeitos supostos que a inleração cons-
tatada produz. Não nos referimos aqui a
estes esforços em detalhe, empreendidos
sobretudo na escola rogeriana(3) e na es-
cola que se baseia na teoria da comunica-
ção(4); em pesquisas sobre a interação
psicoterápica, é sem dúvida possível obter
resultados estatísticos interessantes, mas
estes se situarão inevitavelmente a nível
da consciência e da racionalidade — onde
os elementos e processos qualitativos já
estão bastante complexos — o que nos pa-
rece insuficiente para levar em conta a
globalidade e a complexidade do psiquis-
mo humano.
Por outro lado, a insuficiência da abor-
dagem científica tradicional não deve ser-
vir de pretexto para abrir mão, simples-
mente, do esforço reflexivo: significaria
abdicar da responsabilidade ética pela
ação psicoterápica, tanto ao nível indivi-
dual quanto ao nível comunitário, e en-
tregar-se a uma perigosa fantasmatização
ideológica.
Conquanto nenhuma reflexão teórica
é capaz de eliminar a influência ideoló-
gica — presente, no seu sentido mais am-
plo, em todos os empreendimentos huma-
nos — compete, tanto ao cientista quanto
ao prático, ficarem vigilantes a este res-
peito, para diminuir ao máximo aquela
presença imponderada. Ela facilmente se
torna distorcedora dos verdadeiros obje-
tivos, minando sub-repticiamente as posi-
ções éticas declaradas e abrindo as por-
tas a situações clínicas falaciosas e irre-
flctídas, uma vez que a formação mínima
do profissional é, em psicologia, muito
lacunária e de difícil controle, apesar das
46 47
lindemos aqui, tão-somente, mostrar a
preocupação com a fundamentação cien-
tífica do novo método psicotcrapêutico,
descoberto acidentalmente por Breuer e
desenvolvido por Freud. É nesta mesma
página, aliás, que o novo procedimento
é resumido de modo singular e conciso:
trata-se simplesmente de "dar palavras ao
afeto" (reprimido) — em que consiste, su-
mariamente, todo o segredo da psicote-
rapia, mesmo se a referência concerne
ainda ao modelo da neurose traumática.
O problema, no entanto, é de saber como
chegar lá, como proceder para que isto
se produza, em benefício do paciente e
da sua libertação interna.
Sem entrar muito em detalhes, pare-
ce-nos interessante seguir um momento a
apresentação que Freud faz do seu novo
método. Como base da sua reflexão teó-
rica, Freud situa a noção de defesa e, por-
tanto, de conflito: a intervenção terapêu-
tica consiste num esforço, num "traba-
lho psíquico" que tem que opor-se à
"força psíquica" do paciente, força esta
que se opõe à rememoração e, por conf.e-
guinte, à resolução do conflito.
O modelo de Freud, de chofre, é emi-
nentemente dinâmico: o psicoterapeuta
intervém num "jogo de forças" no qual
tem que tomar posição em favor da ideia
ou representação reprimida (não se fala
ainda de recalque), contra o Eu do pa-
ciente. Este, em consequência da repro-
vação do conteúdo temático da represen-
tação, a relega a um lugar "fora" da cons-
ciência e da memória disponível. Neste
"lugar" —• que pouco depois Freud cha-
mará de inconsciente — a representação
continua ativa, exercendo um efeito palo-
gênico devido a sua pressão constante
sobre o psiquismo consciente da pessoa.
Destarte, o não-saber do histérico cor-
responde mais a um "não-querer-saber",
mas com a ressalva de que este não-que-
rer não se impõe de maneira toíalmente
consciente. A tarefa do psicoterapeuta
consiste, na formulação de Freud, em
"superar a resistência à associação pelo
trabalho psíquico", sendo que a própria
terapia corresponde au "caminho até a re-
presentação patogênica". À maneira de
um quebra-cabeça, cabe, pois, ao psico-
terapeuta, recompor a "organização su-
posta" ao material patogénico, num ver-
dadeiro "jogo de paciência" que se torna
muito demorado pela impossibilidade de
"peneirar diretameníe até o núcleo da or-
ganização patogênica".
Além da insistência sobre o aspecto di-
nâmico, percebemos, pois, através das
comparações que Freud emprega, a alu-
são a um fator lúdico: o trabalho psico-
terapéutico é uma atividade humana
comparável a um jogo (em um texto pos-
terior, Freud chega a comparar a própria
psicanálise com um jogo de xadrez) (8),
com regras complexas cuja aplicação re-
quer paciência, dosagem e perspicácia.
Ao lado do aspecto lúdico, este "jogo"
contém um outro que podemos chamar
de cognitivo: várias vezes aparecem no-
ções como "inteligência inconsciente",
"pensamento inconsciente", "fio lógico",
coerência, sistema. . ,, além da referência
contínua à importância da linguagem, ou
seja, ã Iransposição em palavras, à verba-
lização dos conteúdos mentais "reprimi-
dos". Todas estas formulações ocupam
um lugar central e demonstram um inte-
resse teórico particularmente nítido.
Quanto aos meios de que o psicotera-
peuta pode dispor para superar as tena-
zes resislências do paciente, são eles mui-
to simples: "quase todos aqueles pelos
quais um homem exerce em geral um
efeito psíquico sobre um outro". Nada
pois de artefatos, de truques, de forças
extraordinárias ou mágicas, mas um tra-
balho que se situa ao nível de interações
psíquicas que são simplesmente humanas
—- ideia que já encontramos acima, apre-
sentando a concepção de Binswanger.
O interesse pela fundamentação cien-
tífica, manifestado por Freud já neste
texto precoce, assinala-se ainda em dois
outros trechos. Num primeiro, frisa que
nem sempre é possível "encerrara ativi-
dade psicoterápica em fórmulas"; isto
tornar-se-ia particularmente difícil quan-
do se tratasse de convencer o paciente a
abandonar ou trocar os seus motivos de
defesa, depois do psicoterapeuta os ter
"adivinhado". Percebe-se, no entanto, que
a dificuldade mencionada por Freud se
deve a uma teorização insuficiente da
transferência e do seu manejo — muito
embora já a aponte, mas de modo mais
descritivo do que instrumental, usando
os termos, por exemplo, "vinculação er-
rónea" ou mésalliance; não pode conce-
ber a mudança psicoterápica sem recor-
rer ao modelo da sugestão, a atitudes ex-
plicativas ou ate paternalistas. . .
Não obstante, é nítido que Freud en-
trevê a "transformação em fórmulas"
como um ideal desejável para uma abor-
dagem científica, o que não deixa de con-
figurar um presságio de tentativas poste-
riores, notadamente estruturalistas, de
formalizar os processos psíquicos e psico-
terápicos.
Finalizando, Freud toca aí no proble-
ma da compreensão da i ale ração entre
psiquismo consciente e inconsciente, a
respeito de suposições acerca do estado
do material patogénico antes da análise.
A seu ver, é impossível dizer algo de coe-
rente ou de pertinente sobre estes esta-
dos, "antes de ter clareado, aprofunda-
danente, as c ncepçóes psicológicas de
ba;e, em particular sobre a natureza da
consciência".
Com esta colocação, parece-nos estipu-
lada a necessidade de uma teoria abran-
gente do psiquismo humano, teoria essa
que Freud se esforçava por elaborar du-
rante muitos anos, sem que chegasse,
contudo, a uma formulação definitiva.
Porém, o que nos interessa aqui é que
desde o início, vislumbrava esta necessi-
dade, e isto precisamente no que tange à
compreensão dos processos psicoterãpi-
cos: sem dispor, como base, de uma teo-
ria geral do psiquismo, não será possível
entender o que se passa numa psicotera-
pia, nem o que fundamenta e estrutura os
processos psíquicos normais e/ou palo-
Iógicos do homem.
Não existe até hoje nenhuma teoria
abrangente do psiquismo humano, na qual
seria possível basear-se para atingir o
nosso objetivo: delinear o campo psicote-
rápico. Nem Freud, nem a psicanálise
pós-freudiana, nem outras abordagens lo-
graram lançar mão de uma teoria geral,
aceitável como "provisoriamente definiti-
va" pela comunidade dos cientistas psi-
cólogos. O que existe, entrementes — e
com que podemos e devemos contar —
são os diversos modelos teóricos, surgi-
dos em determinados momentos da his-
tória da psicologia e que hoje coexistem,
embora, de fato, nem sempre pacifica-
mente. . .
Fm particular, estamos em presença de
três modelos teóricos, de concepções mui-
to diferentes e de alguma forma comple-
mentares, que respondem a exigências mí-
nimas de cientificidade, pelos seus proce-
dimentos, premissas, critérios e objetivos.
50
Todos os três foram elaborados fora do
campo médico e psiquiátrico, embora
mantendo certos vínculos com ele: o mo-
delo behaviorista, baseado no conceito
da aprendizagem e no esquema estímulo-
-resposta; o modelo da comunicação, re-
ferindo-se à teoria geral dos sistemas, e o
modelo psicanalítico, baseado no conceito
do inconsciente e na estruturação que este
impõe ao psiquismo humano.
Não cabe esmiuçar aqui estes três mo-
delos; basta citá-los para que se Lenha
uma ideia geral sobre os modelos básicos
que orientam a prática psícolcrápica ho-
dierna bera como a reflexão que esta ins-
pira. Pessoalmente, já deixamos clara
nossa preferência pelo modelo psicanalí-
tico •— ou, de maneira mais geral, "psi-
codinámíco". Trata-se aí, é óbvio, de uma
limitação arbitrária, devida a uma opção
pessoal que assumimos; porém, esta se
sustenta por uma razão simples: a (eoría
psicanalítica é a única das três teorias ci-
ladas que £i? origina diretamente na prá-
tica clínica.
Com efeilo, foi a parlir da sua expe-
riência clínica que Freud a elaborou, e é
com referência permanente àquela, que a
reformulava sem parar. Por esta razão,
ela se apresenta, ao nosso ver, como a teo-
ria mais adequada para dar conta dos
processos psicoterápicos, ou seja, daqui-
lo que se passa, concretamente, entre os
dois protagonistas da situação psicoterá-
pica. Como a psicanálise não nasceu em
laboratórios experimentais, nem toma
empresíado os seus conceitos ou esque-
mas de outros campos epistèmicos (ou se
o faz, o faz de modo metafórico, isto é,
transfigurando o seu alcance), ela não
0, portanto, uma "aplicação" de conheeí-
mentos obtidos em searas alheias; ela de-
monstra pela sua própria estruturação in-
terna, uma congenialidade com o campo
a delinear.
Neste sentido, o modelo psicanalítico
representa o nosso horizonte teórico, mas
isto apenas em termos gerais, como refe-
rência que possa nortear a nossa investi-
gação, sem que seja a nossa intenção
discutir conceitos ou concepções psícana-
líticos em detalhe, nem querer "apli-
cá-los" diretamente ao campo psicote-
rápico.
Este, como campo da atuação profis-
sional do psicolerapeuta, poderá benefi-
eíar-se da contribuição metodológica e re-
flexiva que o modelo psicanalítico ofe-
rece, em particular quando se trata de
analisá-lo com respeito às incidências an-
tropológicas e psicológicas "negativas"
que o caracterizam. É o que já iniciamos,
tanto ao nível do desenvolvimento da te-
mática dos capítulos anteriores, quanto
pela referência a Freud no que tange às
suas ideias sobre a psicoterapia da histe-
ria. Se aquele trabalho de Freud repre-
senta o início da reflexão científica (iatQ
é, teórica) sobre a atividade do psicote-
rapeuta, ele pode também ser considera-
do como base possível da nossa investi-
gação, se bem que es!a seja mais ampla e
mais concreta.
Não acreditamos, portanto, ser possí-
vel proceder à elaboração de uma doutri-
na geral da psicoterapia: as diversas
abordagens são diferentes demais, as po-
sições e posturas dos teóricos demasiada-
mente influenciadas por elementos ideo-
lógicos e subjetivos, para que seja possí-
vel chegar-se a uma unificação. Contudo,
a multiplicidade de modelos, de tipos de
terapia e de concepções do homem não
contém aspectos apenas negativos; indica
também a riqueza e a complexidade do
fenómeno humano e da sua abordagem
pela psicoterapia.
Como já frisamos acima, isto, no en-
lanlo, não quer dizer que se deva acolher
às cegas tudo aquilo que hoje em dia se
;>presenta como psicoterapêutico, nem que
as atitudes ecléticas sejam as mais apro-
priadas ou as mais prometedoras para os
pacientes: para que uma psicoterapia me-
reça este nome, ela lem que passar pelo
crivo da reflexão teórica e da avaliação
científica, obedecendo a critérios espe-
cíficos adaptados ao seu objeto. Somente
assim será possível aproveitar a riqueza
e a complementariedadc das diversas
abordagens, respeitando as diferenças e
os esforços de outros profissionais para
abrir novos caminhos.
No que diz respeito ao modelo psica-
nalítico que norteia este nosso delinea-
mento, cabe uma última afinação. Como
salientamos, Freud pode ser considerado
não somente fundador da psicanálise, mas
lambem pioneiro na investigação leórica
da psicoterapia. No decorrer da "evolu-
ção" da psicanálise, todavia, o espírito
pioneiro de Freud chegou a se perder
cada vez mais. Paralelamente às conces-
sões ao modelo médico c às necessidades
terapêuticas da sociedade — sobretudo
nítidas na vertente americana da psicaná-
lise, na ego-psychology e na "psiquiatria
dinâmica" — desenvolveu-se um dogma-
tismo oprimente que pesava muito {c con-
tinua a pesar) sobre o interesse por outras
formas de psicoterapia, bem como sobre
a própria psicanálise. Preocupadas mais
cm manter uma suposta "pureza doutri-
nal" (c com ela, quem sabe, um monopó-
lio de mercado), na qual o próprio Freud
nunca tinha pensado, as gerações poste-
riores de psicanalistas afincaram-se em
elaborar sistematizações mais abrangen-
tes, em propor novasclassificações, es-
quemas e conceitos que, de fato, alarga-
ram o campo psicanalítico, mas o priva-
ram de forças mais imaginativas e mais
criativas, que poderiam, na esteira de
Freud, ter proporcionado uma renovação
acurada da sua obra. Não é por acaso
que a obra de Lacan, visando uma tal
renovação, desenvolveu-se à margem des-
ia psicanálise "oficial". ..
Dianlc da esterilidade da psicanálise
assim institucionalizada e "adestrada",
anunciada como herdeira de Freud mas
desvirtuada da sua intenção originária e
fundadora, as reações não se fizeram es-
perar e são fáceis de compreender. Elas
vão da rejeição pura e simples, como no
caso de um Eysenck(9), por eexmplo, a
aceitação parcial ou à transformação de
determinados elementos em peças-mestres
de novas doutrinas.
Nestas, o conjunto do arcabouço teóri-
co de Freud e o seu relativo equilíbrio
são abandonados, em benefício de ele-
mentos que podem ser importantes, mus
que, na psicanálise, eram subordinados à
concepção global do funcionamento da
alma; isolados deste contexto que lhes d;i
sentido e coerência, transformam-se facil-
mente cm hipertrofias provocando visões
(e atuações) unilaterais, em detrimento
da reflexão teórica rigorosa c do respeito
à unidade psicossomática do homem c ã
complexidade da sua existência.
Isto aconteceu, ao nosso ver, com Bins-
wanger, como já indicamos, e num senti-
do semelhante com |ung, Boss c outros,
que focalizaram mais o Sado espiritual,
esquecendo-se do pulsional e da sua inci-
dência no inconsciente. Do lado oposto,
assistimos à ênfase dada por Reich e ou-
tros ao biológico, por ]anov, Pcrls, Mo-
reno c outros à reação catártica, pelos
culturalistas à influência social e aos
patterns culturais. . . Seria possível pro-
longar esta enumeração c apresentar a
longa Hsla de "novas" psicoterapias que
se referem em algum aspecto à psicaná-
lise, mas não é essa a nossa intenção. Bas-
ta esta alusão à evolução da psicanálise,
aos problemas que ela suscita cm conse-
quência da sua falta de rigor e da sua di-
fusão ideológica, bem como à sua absor-
ção filtrada por ou iras escolas de
psicoterapia, nem sempre conscientes ou
preocupadas em esclarecer as suas raízes,
empréstimos e implicações; basta ter apre-
sentado aqui esta situação geral, para po-
dermos nos situar, nos definir e proceder
agora ã investigação teórica preconizada.
3.3. A fundamentação teórica
e os manuais de
psicoterapia
Acreditamos ter insistido suficiente-
mente sobre a importância e o caráter im-
prescindível da fundamentação teórica da
prática psicoterãpica. Porém, folheando
monografias ou manuais sobre psicotera-
pia, deparamo-nos com a ausência quase
que total de uma reflexão teórica explíci-
ta. Quando muito, encontramos referên-
cias teóricas a determinados modelos ou,
mais frequentes, alusões incidentais aos
arcabouços leóricos que sustentam as di-
versas técnicas. O questionamento das in-
cidências epistcmológicas e antropológi-
cas, a serem apreendidas precisamente
através da mais rigorosa fundamentação
possível das premissas desta prática, sur-
preendentemente muitas vezes faz falta.
Ao nosso ver, temos aí um índice de
como são subestimadas a necessidade e a
importância desta reflexão teórica — B
como, simetricamente, se sobrevaloríza o
aspecto técnico da atuação profissional
do psicoterapeuta.
Vale a pena examinarmos alguns dos
grandes manuais de psicoterapia ou de
psicologia clínica que, pela suma das in-
formações e pelas contribuições dos mais
variados autores, são sem dúvida repre-
sentativos do pensamento c das tendên-
cias atuais que norteiam a clínica psíco-
terápica.
Em 1965, foi publicado o Handbook of
Clinica! Psychology, sob a coordenação
de B. B. Wolman(lO). O volume, de mais
de 1.500 páginas, conta com a colabora-
ção de 61 profissionais, especializados
nas diversas áreas psieoterápicas.
Na introdução, o coordenador apresen-
ta os diversos objetivos que regiam a ela-
boração da obra; quanto ao nosso propó-
sito, define o seguinte objetivo: "familia-
rizar os psicólogos clínicos e profissionais
afins com o vasto campo de pesquisa, ex-
perimentação, leórica e prática da psico-
logia clínica"; quanto aos objetivos mais
pragmáticos e éticos, enfatiza: "apresen-
tar a profissão do psicólogo clínico e de-
monstrar sua vitalidade, sua vigorosa e
eficiente busca da verdade científica c sua
boa vontade c capacidade de ajudar a
quem precisa de auxílio destes profis-
sionais".
Aparecem, portanto, aí noções tais
como "campo de pesquisa", "experimen-
tação", "teoria", ou ainda "busca da ver-
dade científica", que tesfemunham o inte-
resse pelos aspectes epistemológicos da
prática psicolerápica. E, com efeito, no
corpo do livro, a segunda parte é dedi-
cada aos "Fundamentos teóricos da psi-
cologia clínica". Em dez capítulos, são
tratadas as diversas disciplinas que estão
contribuindo para o entendimento das
"perturbações mentais" e suas causas. São
discutidas, sucessivamente, a genética,
a neurologia, a bioquímica, a sociologia,
a antropologia, a teoria da aprendizagem,
as teorias comportamentais e de persona-
lidade, a psicanálise c as suas diversas
escolas.
Porém, não se trata aí, realmente, de
uma reflexão epistemológica e antropoló-
gica sobre a fundamentação teórica da
prática psicoterápica; as diversas disci-
plinas "fundamentadoras" ficam justapos-
tas e não são consideradas numa perspec-
tiva integradora, ficando, portanto, "es-
Iranbas" ao campo psicoterápico. Mas
será que a fundamentação teórica de uma
determinada prática pode processar-se a
partir de outros campos epistèmicos de
investigação e de saber . . . ? Não será ne-
cessário que esta reflexão se desenvolva,
pelo menos em parte, dentro do próprio
campo de atuação, em congenialidade
com as características do seu objeto: a
intcraçâo humana. . .?
1'arecc-nos que esta preocupação, tão
fundamental, está ausente nesta obra vo-
lumosa, no resto muito bem concebida.
Talvez seja esta ausência uma consequên-
cia da linha metodológica ou científica
adotada e apresentada na primeira parte
do volume, "Métodos c pesquisa em psi-
cologia clínica", pelo que se vê que a
questão da metodologia é colocada antes
da questão da fundamentação teórica.
Mas não é que esta determina em grande
parte aquela e que é tão-somente a par-
tir do delineamento teórico de um objeto
de estudo que métodos possam ser elabo-
rados para a sua investigação? A relação
circular que existe entre definição do
objeto, método, prática e teoria fica, pois,
ao nosso ver, pouco valorizada na presen-
te obra.
Uma outra obra prestigiosa, embora
não coletiva, é The Technique of Psycho-
thempy, da autoria de L. R. Wolberg( 11).
Na segunda edição, de 1967 (l.a edição
em 1954), os dois volumes ultrapassam
1.400 páginas. O livro apresenta uma
visão —• muito bem elaborada e desenvol-
vida, por sinal — da psicoterapia, a par-
tir das premissas da psiquiatria dinâmi-
ca americana, fundada, como se sabe, a
partir de uma recepção transformadora
das principais ideias de Freud acerca do
funcionamento do psiquismo humano.
O título, no entanto, indica já clara-
mente que a obra se restringe aos aspec-
tos técnicos da psicoterapia; mesmo no
primeiro grande capítulo, de mais de 400
páginas (The scope, types and general
principies of psychotherapy), não encon-
tramos, apesar de muitas considerações
interessantes e aprofundadas, nenhuma
referência ã fundamentação teórica deita
prática — prática singela que o autor des-
creve muito bem, propondo diferenciu-
ções pertinentes quanto a outras relações
psicológicas. Mencionamos ainda que o
enfoque da obra c predominantemente
médico e psiquiátrico, embora não che-
gue a contestar a presença de psicólogos
clínicos no campo psicoterápico.
Em 1971, foi publicado o Handbook
of Psychotherapy and Behavior Change,
coordenado por Bergin Sc Garfield(12).
Contando com acolaboração de 32 auto-
res, a obra apresenta (apesar do sub-
título An Empirical Anaíysis) uma pri-
meira parte sobre Theory, Methodology
and Experimentation. Contudo, nos seis
capítulos desta parte introdutória não en-
contramos, novamente, nenhuma elabora-
ção teórica criteriosa; o primeiro capitu--
lo, Some Historical and Conceptual Pers-
pectives on Psychotherapy and Behavior
54 55
Changt, introduz considerações gerais
•obra a evolução da psícoterapia cm nos-
so século, mas limita-se, em seguida, a
discutir táticas e técnicas de procedimen-
to. .. Como o título deixa supor, o en-
foque é mais psicológico do que psiquiá-
trico, mas aqui ainda, as preocupações de
operacionalização e de aplicação pragmá-
tica tampouco deixam espaço para ques-
Lionamenío epis temo lógicos.
No âmbito do idioma alemão, cabe
mencionar a sistematização tentada em
Klinische Psychologie, coordenado por
Schraml & Baumann( 13). O primei-
ro volume, "Teoria e Prática", foi reedi-
tado, ampliado, em 1975 (1.* ed. em
1970) e conta com 30 colaboradores; o
segundo volume, intitulado "Métodos,
Resultados e Problemas de Pesquisa"
data de 1974, com 26 autores. Apesar da
promessa contida no título do primeiro
volume, encontramos alusões apenas oca-
sionais à problemática da fundamentação
teórica. Na introdução dos editores, en-
contramos uma preocupação cm definir
o campo da psicologia clinica, mas eia é
considerada simplesmente como uma
aplicação de "conhecimentos, técnicas e
métodos das disciplinas básicas da psico-
logia e das suas disciplinas vizinhas",
tais como psicologia profunda, sociologia
e pedagogia social.
Não se questiona pois, como estes co-
nhecimentos, técnicas e métodos são
adquiridos e o que eles implicam quanto
à imagem do ser humano a ser tratado; o
enfoque é predominantemeníe dinâmico
e social, mas não antropológico — lacuna
importante, ao nosso ver, desta obra que,
de resto, se destaca pela sua linha mais
psicossocial do que psiquiátrica.
Cabe mencionar em seguida o Hand-
buch der I'sychohgie(l4), obra monu-
mental elaborada segundo as melhores
tradições da psicologia alemã, O volume
8, editado em dois livros (1977 e 1978),
totaliza mais de 3.300 páginas c conta
com contribuições de mais de 100 auto-
res, o que nos dá uma ideia do seu al-
cance. Sendo muito bem concebida e
muito complexa, não nos é possível ofe-
recer aqui uma visão global da obra; po-
rém, encontramos enfim algo que corres-
ponde às nossas preocupações de funda-
mentação: na introdução ("História,
Objcto, Fundamentos da Psicologia Clí-
nica"), de autoria do coordenador geral
L. J, Pongratz, confrontamo-nos, em 50
páginas, não somente com uma visão de-
talhada da história da psicologia clínica
desde Rousscau, Darwin e Kracpelin,
mas ainda com um esforço de definir o
que é a psicologia clínica c qual o objeto
específico sobre o qual age ou intervém.
Na última parte desta introdução, en-
contramos mesmo "Prolegômcnos antro-
pológicos" da psicologia clínica, onde se
discutem as diversas imagens do homem,
implícitas nos diversos modelos que nor-
teiam as atividades do psicólogo clínico.
Referência se faz à célebre controvérsia
entre Skinner e Rogers acerca do homem
como sendo controlado ou autónomo, a
uma comparação realizada por Ford &
Urhan entre as concepções do "homem-
-robô" e do "homem-piloto", e a questão
de saber se o ser humano é essencialmen-
te ativo ou reativo (o que implica em
pressupostos cosmológicos e epistcmoló-
gicos e propriamente numa "cosmo-
visão").
Citamos um trecho da conclusão do
autor deste capítulo: "Conceitos antropo-
lógicos significam muito para a ciência;
eles determinam de modo definitivo teo-
ria, terminologia e metodologia. Do pon-
Io de vista da psicologia clínica, eles têm
consequências para o objetivo de uma te-
rapia e para a técnica do tratamento. Os
modelos do homem robô, reativo e con-
trolado se adaptam mais ao objetivo tera-
pêutico de eliminação de sintomas e a
uma intervenção terapêutica preponderan-
temente ativa. Ao contrário, os modelos
do homem 'piloto', ativo e autónomo,
evocam uma atitude terapêutica visando
descobrir a estruturação própria ao in-
divíduo e leva ao objetivo da auto-
rcalização".
Seguem-se as diversas partes da
obra, a primeira dedicada a sintomatolo-
gia, a segunda aos "Fundamentos teó-
ricos gerais" c a terceira, aos "Funda-
mentos teóricos específicos". Percebe-se,
pois, que a questão da fundamentação
teórica recebe a devida atenção: desen-
volvida em mais de 500 páginas, ela con-
tém, entre muitas outras contribuições,
um capítulo específico sobre "Fundamen-
tos epistemológicos", onde são discutidas
as relações entre teoria, pesquisa e prá-
tica, os problemas de validação, de for-
mação dos conceitos, do planejamento,
bem como questões ét icas. . . Se todos
estes aspectos não são tratados de manei-
ra aprofundada, eles pelo menos são men-
cionados no devido contexto, de sorte
que a sensibilização aos "prolegómenos
antropológicos, filosóficos e epistemoló-
gicos" da prática clínica se torna pos-
sível.
No âmbito da cultura francesa, men-
cionamos uma única obra, a Propédeuti-
que d'une Psychothémpte (1976), de au-
toria de P. B. Schncidcr(15), com uma
série de colaboradores. Obra sucinta, de
apenas 350 páginas, ela, não obstante,
loca às questões fundamentais não mais
da psicologia clínica em geral, mas da
psicoterapia. "Propedêutica", no sentido
de introdução, de conhecimentos prelimi-
nares ao exercício da disciplina em pauta,
ela corresponde em muito às nossas preo-
cupações de fundamentar a prática psico-
terápica — com uma ressalva importante:
não podemos concordar com o enfoque
exclusivamente médico ou psiquiátrico do
autor principal; este enfoque nos parece
por demais antiquado, visto a evolução
da psicologia clínica desde a introdução
da psicanálise c as aplicações da psicolo-
gia comportamental; cabe, hoje em dia,
ressaltar, em primeiro lugar, as diferen-
ças fundamentais entre o discurso médico
e o discurso psicanalítico, bem como as
repercussões deste último sabre a prática
psicoterápica em geral.
Voltaremos, abaixo, a esta diferença
capital. Por enquanto, mencionamos que
a primeira parte desta "Propedêutica",
"Alguns problemas teóricos", contém de-
senvolvimentos interessantes e aprofun-
dados, sobretudo no primeiro capítulo,
"Esboço de uma teoria geral da psicote-
rapia", e no capítulo sobre a "Relação
psicoterápica". dos quais veremos algu-
mas ideias adiante.
Finalizando esta revisão de grandes
manuais de psicolerapia ou de psicologia
clínica, cabe salientar que não temos co-
nhecimento da existência de tais obras no
âmbito brasileiro. Convém referir-se, no
entanto, ao livro de H. J. Fiorini, Teoria
e Técnica de Psicoterapias (1976 trad.
do espanhol) (16). O título, porem, pela
sua generalidade engana: trata-se essen-
cialmente de um trabalho sobre a psico-
terapia breve, com algumas considera-
ções mais amplas. Estas se desenvolvem
segundo um enfoque que procura consti-
tuir "uma teoria das técnicas de psicote-
56 57
rapia em que esteja incluída uma conside-
ração crítica de algumas de suas bases
ideológicas" — projeto bem concebido
pelas suas intenções, mas cuja execução
não faz justiça à pretensão anunciada.
3.4. A definição do campo
psicoterápico
Pretender definir o campo da atuação
psicoterápica corresponde a definir (ou a
tentar definir) o que é e onde atua a psi-
coterapia. No segundo capítulo, confron-
tamo-nos com a análise fcnomenológica
que Binswanger fez da palavra psicotera-
pia. Reencontraremos os princípios desta
análise mais adiante (3.7.), procedendo
primeiro ao exame de algumas defini-
ções propostas por diversos autores. Há,
no entanto, autores que omitem definir o
campo e a atuação do psicolerapeuta. As-
sim, por exemplo, ouve-se que "psicote-
rapia é tudo aquilo que um psicotera-
peuta profissionalfaz" (em Strotzka,
H.) (17), o que, obviamente, não corres-
ponde a uma definição, mas a unia saída
pela tangente diante de uma dificuldade
que caberia enfrentar.
Bem é verdade que nenhuma ciência
começa por uma definição clara do seu
campo ou do seu objeto, e que a elabo-
ração teórica se processa ao longo de
todo um percurso de pesquisa e de re-
flexão; não obstante, quando se trata de
uma prática que envolve outrem, a exi-
gência de pensar sobre esta atividade e as
suas implicações se faz, por razões tanto
éticas quanto científicas, particularmente
premente.
Wolberg (1967) (11) define psicotera-
pia como "o tratamento de problemas de
natureza emocional mediante meios psi-
cológicos"; insiste em que, nela, "uma
pessoa formada estabelece cieliberada-
mente uma relação profissional com o pa-
ciente", com os objetivos " 1 . " de elimi-
nar, modificar ou retardar os sintomas
existentes, 2." de influenciar modos per-
turbados de comportamento e 3." de pro-
mover um crescimento e uma evolução
positiva da personalidade".
Percebemos que o autor, embora psi-
quiatra, se situa numa linha mais psico-
lógica do que médica: não há, em sua
definição, referência à noção de doença;
o psicoterapeuta não é um médico, mas
"'uma pessoa formada" (ou "treinada") e
os objetivos aludem, além da eliminação
de sintomas, às noções de comportamen-
to e de personalidade, como noções e
objelívos claramente não médicos. Em re-
lação a estes três objetivos, o autor dis-
tingue, de fato, em seguida, entre três
tipos de psicoterapia: aqueles que visam
influenciar os sintomas, o comportamen-
to ou as atitudes, e a personalidade pro-
funda.
Porém, o portador dos "problemas de
natureza emocional" estranhamente está
ausente, mas reaparece depois sob a for-
ma do "paciente" com o qual se institui
uma "relação profissional"... Com a
omissão ou até eliminação da pessoa afe-
tada de "problemas emocionais", cabe in-
dagar, no entanto, se não se elimina tam-
bém o aspecto da subjetividade, do "su-
jeito" que carrega estes problemas, com a
sua conseguinte transformação em "pa-
ciente", isto é, em alguém que, passiva-
mente, se submete ao tratamento. . .
Voltaremos mais adiante a estas impli-
cações. Por enquanto, citamos uma se-
gunda definição de psicoterapia, desta
vez de Meltzoff & Kornreich (1970) (18).
Segundo eles, psicoterapia consiste "na
aplicação informada e planejada de téc-
nicas que são derivadas de princípios
psicoiógicos estabelecidos". Estas técni-
cas seriam aplicadas "por pessoas que,
pela formação e experiência, se qualifica-
ram para isto". Como objetivo da psico-
lerapia, os autores estipulam: "apoiar os
indivíduos para modificar aquelas carac-
terísticas pessoais, como sentimentos, va-
lores, atitudes e modos de comportamen-
to, que O terapeuta avalia como desa-
juste".
Aqui também, os autores se situam, de
maneira resoluta, numa linha psicológi-
ca e, mais precisamente, compor-lamentai.
Não é questão da pessoa, nem dos seus
desejos, nem da sua motivação para mo-
dificar-se: os objetivos a atingir serão fi-
xados pelo terapeuta, que determinará o
que deve ser considerado como "desajus-
tamento" ou "desadaptação". A atitude
normativa c direliva deste terapeuta se
destaca, pois, com nitidez.
Mencionamos uma terceira definição,
bem diferente das anteriores. Strotzka
(1978) (17) expressa-se assim: "Psicote-
rapia é um processo interacional cons-
ciente c planejado que visa influenciar,
mediante meios psicológicos verbais e
averbais, distúrbios de comportamento e
estados patológicos que são consensual-
mente considerados como necessitando
de um tratamento". O autor insiste em
que este consenso deverá ocorrer "se
possível entre paciente, terapeuta e gru-
po de referência"; como meta, estipula
que o processo se direciona "para um
objetivo definido e elaborado, se possível,
em comum (minimização dos sintomas
e/ou mudança estrutural da persona-
lidade)".
Finalmente, estes objetivos seriam al-
cançados graças a "técnicas ensináveis e
baseadas numa teoria do comportamento
normal e patológico", sendo que se preci-
sa uma "ligação emocional sólida" para
a consecução destas metas.
A orientação que se reflete nesta com-
plexa definição é psicológica e médica.
E nofadamente a ideia de doença que, se
não aparece explicitamente no texto, pre-
domina nas expressões empregadas: "es-
tados patológicos" (ou "mórbidos"), "teo-
ria do comportamento normal e patoló-
gico". De fato, o autor defende a preser-
vação da noção de doença, em oposição
a noções psicológicas, como desajusta-
mento, para não correr o risco de "re-
cair num estádio pré-cicntífíco da psi-
quiatria".
A posição médica e a insistência sobre
as virtudes do "discurso médico" caracte-
rizam, pois, esta definição, mesmo se elas
se coadunam com uma perspectiva social
apreciável, se pensarmos na noção de
consenso entre terapeuta, paciente e o gru-
po de referencia, como a família ou a
comunidade.
As três definições analisadas nos pa-
recem reflelir três orientações teóricas e
clínicas bem diferentes; poderíamos citar
outras, mas elas sempre vão correspon-
der, de perto ou de longe, a uma destas
três linhas de atuação psicoterápica, se-
guindo quer uma psicologia de vaga ins-
piração psicanalítica, quer uma psicolo-
gia comportamcntal ou uma abordagem
medico-psiquiátrica.
Diante da multiplicidade dos aspectos
enfocados nestas definições, percebe-se
mais uma vez a complexidade do fenóme-
no psicoterapia, a influência das atitudes
e opções pessoais dos seus autores (que
podemos chamar de ordem ideológica:
não há definição neutra.. .) , bem como a
necessidade de chegar-se a uma visão
58 59
mais integrada da aluação psicoterápica
— no interesse daqueles que a procuram
e no interesse, novamente, da sua cienti-
ficidade e ética.
Em nosso entender, pois a psicolera-
pia consiste numa ativiáade clínica, que
se desenvolve no campo clínico e traía de
problemas clínicos.
Isto já decorre da palavra terapia, con-
siderada tradicionalmente como aquela
parle da medicina que "estuda c aplica
os meios adequados para aliviar ou curar
os doentes". No enlanlo, pela evolução
das disciplinas psicológicas e sociais,
bem como pela dificuldade da psiquiatria
cUíssica em definir positivamente etiolo-
gia, patogênese e nosologia das "entida-
des mórbidas", é óbvio, hoje em dia, que
não se pode restringir o campo psicote-
rápico à aplicação médica.
A esse respeito, já vimos acima que os
três modelos teóricos predominantes na
psic o terapia moderna foram elaborados
fora do âmbito psiquiátrico, se não em
oposição a ele. Os seus integrantes, na
verdade, mais se interessaram em erigir
sistemas e classificações nosológicas cor-
respondendo ao enfoque orgânico e
"científico" da "doença mental" c em de-
fender a hegemonia sobre a área, do que
em preocupar-se com a investigação da
dimensão psíquica do ser humano.
Esta foi e continua sendo o apanágio
das ciências do homem. È a partir destas
que foram desenvolvidos instrumentos de
intervenção e de tratamento psicológico.
Porém, se destarte elas se afastaram e se
diferenciaram cada vez mais do campo
médico, quer isto dizer que as suas apli-
cações se tornaram necessariamente
"não-clínicas". . . ?
A resposta a esta quentão dependerá de
como nós definimos "clínico". Durante
séculos, clínico (significando, etimologi-
camente, leito, ao leito, acamado) foi
considerado como sinónimo de atuação
médica, um pouco como — não pode-
mos resistir à tentação de fazer o cotejo
— a psique foi considerada sinónimo de
consciência e de racionalidade. A partir
da psicanálise, no entanto, a noção de
psique foi ampliada, incluindo a dimen-
são do inconsciente, para grande escân-
dalo dos filósofos e outros profissionais
do pensamento cartesiano; pela psicaná-
lise c pelas teorias de aprendizagem e de
comunicação, foi ampliada a noção declínico, acrescentando às "doenças men-
tais" os conflitos, desajustes, transtornos
de personalidade, desadaptações e outras
dificuldades de ordem psíquica ou social.
Mas nem por serem não-médicas, estas
dificuldades deixam de ser "clínicas", no
sentido de — mesmo sem referência a
uma doença ou a um quadro mórbido or-
gânico —• implicar um sofrimento que,
quando suscita um desejo de mudança e
um pedido de ajuda, contém uma neces-
sidade de tratamento.
Definir assim o clínico como uma di-
mensão humana que ultrapassa a medi-
cina, englobando o pathos, a interação
"pática" entre psiquismo, organismo e
ambiente, como sendo aquilo que deter-
mina antropologícamente a existência do
homem, não quer dizer, em absoluto, que
se deva abrir mão de critérios rigorosos
para definir esta dimensão. £ noladamen-
te o estudo da psicopatologia que se tor-
na imprescindível para quem quer, futu-
ramente, aluar neste campo clínico hu-
mano. Contudo, a psicopatologia não se
refere apenas à nosografia psiquiátrica,
mas é essencialmente uma disciplina psi-
cológica, que estuda e classifica as ííís-
junções psíquicas, do mesmo modo que a
psicologia geral estuda as suas funções.
O campo clínico no qual atua o psíco-
terapeuta se define, pois, pelos proble-
mas psicopatológicos que nele se en-
contram. Esles problemas podem ser
entendidos e classificados segundo os
critérios mais diversos, inclusive não-
-científicos. Mas nisto, um clemenlo-
-chave não pode faltar: que eles sejam
abordados como problemáticas humanas,
necessitando portanto de uma compreen-
são antropológica, no sentido mais amplo
do termo, e de uma referência à imagem
do homem (bem como à eosmovisão) que
inevitavelmente implicam.
Cabe pergunfar-se se a psicopatologia,
entendida destarte como uma disciplina
básica para a psicoterapía, pode dispen-
sar a noção de "doença", e em particular
aquela de "doença mental", sem que se
caia num empirismo claudicante ou até
pragmático, mas sem princípios. Esíe pe-
rigo, ao nosso ver, realmente existe, mas
acreditamos que ele possa ser contorna-
do por uma reflexão rigorosa (v. 3.5).
Ademais, o perigo contrário parece-nos
pesar ainda mais sobre a prática psicote-
rápica, a baber, aquele de "coisificar" a
pessoa doente em favor da sua suposta
doença (mental) e de levar assim a uma
rotulação do paciente, com toda aquela
esligmatização social bem conhecida
(labeling ejject).
Devemos e podemos, portanto, abrir
mão, em psicopalologia e psicoterapia, da
noção médica cie doença e de doente, em
benefício desta pessoa que luta com difi-
culdades de ordem psíquica, e sem que
isto implique perder rigor e eficácia no
seu atendimento.
Por conseguinte, não falaremos mais,
daqui por diante, de "doentes". Mas co-
mo designar então a pessoa que, no cam-
po clínico acima definido, está à procura
de uma psicoterapia? A palavra ' cliente"
é muito comum, hoje em dia, sob a in-
fluência da psicologia americana. Ela tem,
sem dúvida, uma conotação de consumo
ou de marketlng, aproximando-se de
"freguês", devido à ênfase implícita ao
intercâmbio comercial, obedecendo às leis
da demanda e da oferta; no entanto, im-
plica também uma opção, uma ação cons-
ciente de busca de alguma mudança: se
chega a consultar e depois a entrar numa
relação psicoterápica qualquer, 6 que o
cliente o quer pessoalmente, uma vez
que poderia dizer "não" a este seu enga-
jamento.
O voluntariado deste engajamento,
pois — ou ainda, o seu aspecto "liberal"
— se destaca bem pelo termo "cliente".
Mas vejamos nele mais dois inconvenien-
tes. Em primeiro lugar, a referência a
uma certa passividade. Apesar da pro-
cura deliberada, incluindo uma ação, é o
"cliente" que "recebe" algo, em maior
ou menor grau de dependência e passivi-
dade, do "outro" que "está dando". Im-
plica portanto uma prestação de serviço
que o cliente "compra" do terapeuta,
submetendo-se ao saber e às técnicas
deste. . .(19).
Em segundo lugar, o recurso a esse ter-
mo deve ser considerado, pelo menos im-
plicitamente, como uma tentativa de
contornar os problemas da patologia psí-
quica e os tabus a esta associados. Falan-
do-se de cliente, os seus problemas psico-
patológicos são negados ou, ao menos,
minimizados.
De fato, não há dúvida de que,
até hoje, o patológico assusta e discrimi-
na, tanto mais quanto se trata de "pro-
blemas mentais". Sofrer de tais proble-
61
mas é extremamente mal visto, em nossa
sociedade, seja tão-som ente sob forma de
um "desajuste" ou de uma "desadapta-
ção"; falar de "cliente", então, ao invés
de "paciente", equivale a contornar este
tabu — mas instaura e reafirma, pelo
mesmo fato, a bem conhecida segregação
entre normal e patológico. Como se o pa-
tológico não fizesse parte da existência
humana, como se ele pudesse ser evitado,
e como se a pessoa que sofre de dificul-
dades de ordem psicopatológica, fosse
um "menos", um marginal, um excluído
da sociedade...
Diante deste exorcismo, reafirmamos
pois o valor plenamente humano do pa-
tológico, conforme o "princípio de cris-
tal" acima mencionado, e não tememos a
palavra "paciente". Conotações de pas-
sividade marcam, aliás, tanto o termo
"paciente" quanto o termo "cliente".
Com ambos os apelidos, a ação, o agir
terapêutico é relegado às mãos do outro,
do terapeuta, investido, destarte, de um
grande poder e de uma grande responsa-
bilidade.
No extremo, isto pode significar
que o paciente ou cliente se desrespon-
sabiliza da sua problemática e da con-
duta terapêutica a adotar, e se reme-
te inteiramente ao poder terapêutico (ou
mágico. . .) do "agente". Deste, ele "re-
cebe" ou "sofre" a intervenção, destina-
da a pôr fim ou a aliviar os seus acha-
ques, sem que tenha que assumir ou, no
mínimo, participar no trabalho tera-
pêutico.
Faz falta portanto um vocábulo mais
ativo, como nós o temos cm psicanálise.
O parceiro do psicanalista deveras não é
o psicanalisado, mas o "analisante", uma
vez que ninguém é analisado pelo analis-
ta (imagem errónea muito difundida!),
mas se analisa, na transferência com e pe-
rante este parceiro singular, "diretor" do
processo analítico, mas não o seu agente.
No que tange ao parceiro do psicotera-
peuta, o mais correto então seria falar em
"terapeutizante", neologismo, é preciso
convir, que não faz sentido.
Na falta de um termo mais adequado
que traduza a atividade e a responsabili-
dade que, em nosso entender, deve fazer
parte do processo psicolerápico, damos
preferência à palavra "sujeito", que ao
menos implica uma participação subjeti-
va daquele que se "submete" ao trata-
mento. Quanto a cliente ou paciente, pre-
ferimos ainda esla última palavra, por-
que conota algum sofrimento e se refere
mais diretamenle ao campo clínico que
tentamos aqui cercear como sendo o cam-
po da atuação psicoterápica.
Não obstante a nossa recusa em reter
as noções de doença e de doente para de-
finir este campo, é certo que o sentimen-
to de um mal-estar, psíquico ou físico,
deve estar presente para que determina-
do sujeito se decida a consultar. Este sen-
timento pode ate referir-se a uma doen-
ça, pode incluir uma convicção de "estar
doente" — no caso do paciente psicos-
somático, por exemplo. Mas cabe a nós,
ao clínico, investigar se se trata de uma
doença, isto é, de um achaque orgânico,
ou se atrás deste sentimento de "estar
doente" se situam problemas não orgâni-
cos, isto é, problemas de ordem psíquica
ou psicossocial. Ao proceder a esta inves-
tigação, poderá ser necessário recorrer a
exames complementares, onde o trabalho
em equipes interdisciplinares será evi-
denlemente de grande valia.
Seja como for: sentir-se doente, sen-
tir-se mal consigo mesmo ou no relacio-
namento com os outros, algum sofrimen-
to humano deve estar presente (e deve
estar percebido) para que o sujeito, reco-
nhecendo-se "paciente" sofrendo de al-
gum mal, se decida a recorrer a um tra-balho psicoterápico. Desta forma, ele in-
gressará no campo clínico, situar-se-á
nele como necessitando de uma ajuda ou
de uma intervenção "clínica", isto é, psi-
coterápica — e, pelo fato mesmo, distin-
guil-Be-á de pessoas que estão à procura
de uma ajuda ou intervenção psicológica
não-clínica.
Com efeito: a psicoterapia, enquanto
terapia situada no campo clínico acima
definido, dislingue-se da ampla gama de
práticas psicológicas não-clínicas. Insistir
sobre esta diferença não é desvalorizar ou
criticar outras práticas psicológicas, mas
simplesmente delinear a atuação das di-
versas práticas, uma vez que a confusão
das atribuições, competências e objetivos
sempre só faz prejudicar o desempenho
sério e responsável do profissional.
Portanto, há muitas práticas ou técni-
cas psicológicas que não são clínicas e
que não fazem parte do campo psicote-
rápico. Pensamos nos grupos de sensibi-
lização ou de encontro, na dinâmica de
grupo, nas sessões espíritas, sugestivas ou
hipnóticas, nas consultas a cartomantes
ou clarividentes, na orientação espiritual,
pastoral ou moral, nos objetivos de trei-
namento, de aprendizagem, de cresci-
mento pessoal, de iniciação religiosa, eso-
térica ou mística — todas ações psicoló-
gicas interpessoais, onde um agente quer
transmitir algo que influencie e modifi-
que o outro. Este, à procura de mudança,
submete-se aos procedimentos encenados
pelo agente e aceita, pelo menos implicita-
mente, as premissas de sua atuação, bem
como os objetivos almejados ou prome-
tidos.
Pode até acontecer que estas premis-
sas sejam fundamentadas mais ou menos
sistematicamente — mas isto não quer di-
zer que elas sejam, por isso, psicoterápi-
cas, ou se disponham para uma atuação no
campo clínico. Assim sendo, a ação psico-
lógica do pedagogo, a ação psicológica do
assistente social, do conselheiro conjugal
ou do sacerdote, pode basear-se em todo
um programa de formação e cm amplos
conhecimentos científicos ou pré-científi-
cos, mas nem por isso corresponderá a
uma ação psicoterápica. Para esla, a refe-
rência psicopatológica será decisiva.
Com isto, não queremos dizer que um
efeito psicoterápico não possa advir por
métodos e intervenções que não sejam psi-
coterápicos, no sentido próprio da pala-
vra. Uma dinâmica de grupo, um grupo
de encontro ou uma sessão espirita po-
dem perfeitamente alcançar uma mudança
comparável a um efeito psicoterápico,
mas este efeito será por assim dizer aci-
dental, pois não decorre de uma ação
executada ad hoc e nem sempre foi pro-
curado propositadamente.
Este propósito nos parece essencial
para definir uma atuação psicolerápica:
se a psicoterapia pretende ser reconheci-
da como disciplina científica, ela tem que
esforçar-se em elaborar uma base teórica,
a partir da qual possa justificar os seus
conceitos, os seus métodos, objetivos,
propósitos e intervenções. Portanto, como
já frisamos acima, ela tem que saber o
que está fazendo, como e por que o está
fazendo. A seriedade científica, a trans-
missibilidade e a responsabilidade ética
dependerão destes critérios, sem os quais
corre-se o perigo de deslizar para o im-
62 63
proviso ou o eclctismo, senão a charla-
tanice.
Voltaremos abaixo às diversas relações
psicológicas e às suas diferenças, distân-
cias ou proximidades para com a relação
psicoterápica. Esta, repetimos, merece ser
considerada num sentido próprio c estri-
to, aquele de intervenção planejada e teo-
ricamente fundamentada no campo hu-
mano das difieuldades psicopatológicas
(a serem definidas no próximo capítulo).
Neste sentido próprio, pois, pode-se dizer
que a psicolerapia, como disciplina cien-
tífica, corresponde a uma tentativa de
compreender, sistematizar e articular as
práticas psicológicas ou psicoterápicas
pré-científieas: práticas xamanísticas, es-
piritistas, intuitivas, mágicas c outras,
com o intento de elaborar teorias e técni-
cas metodologicamente verificáveis, per-
mitindo uma avaliação criteriosa a partir
de práticas milenares.
Nesta perspectiva, não se trata de cor-
tar os vínculos com as práticas antigas,
em favor, por exemplo, de resultados ex-
perimentais obtidos em laboratórios;
aquelas são reconsideradas à luz de no-
vos conceitos e metodologias, com vistas
ao seu aprimoramento e a sua operacíona-
lização refletida.
Ocorre, no entanto, que a distinção
entre psicoterapia e outras intervenções
psicológicas encontra dificuldades, não
somente por causa de efeitos terapêuticos
ocasionais, mas em função de definições
e delineamentos insuficientes.
Isto vaie em particular para o "acon-
selhamento", definido em geral de ma-
neira bastante nebulosa. Cabe pergun-
tar-se até que ponto esta disciplina não
foi introduzida no Brasil (por importação
do counseling americano) precisamente
para contornar as implicações clínicas da
prática psicoterápica e para evitar, deste
modo, o confronto com o corpo medico
— confronto que não deve ser evitado ou
contornado artificialmente, mas enfren-
tado a partir de um embasamento teóri-
co sólido e de uma reflexão rigorosa
sobre a prática clínica humana.
Neste esforço reflexivo, vale lembrar,
será de suma importância lançar mão das
diversas contribuições das ciências do ho-
mem, referências indispensáveis para che-
gar-se a uma compreensão aprofundada
do homem "pálico" que todos somos, tra-
vando luta sem trégua com dificuldades
físicas e psíquicas de todas as espécies,
bem como para superar os relentos de se-
gregação entre normal e patológico, sem-
pre prestes a levantar a cabeça e a infil-
trar-se ideologicamente em nossos afos e
debates.
Neste sentido, a introdução do "acon-
selhamento", a cavaío sobre a psicotera-
pia e a orientação psicológica(20), cor-
responde mais a uma resposta ideológica
do que científica, equivalendo ainda,
quem sabe, a uma tentativa de apro-
priar-se (pscudocícntificameiite) de uma
determinada fatia do mercado " p s i " . . .
Da definição do campo psícoterápieo
como acima esboçada, decorre uma últi-
ma consequência: a prática psicoterápica
corresponde a uma pratica profissional
especializada. Esta será exercida a um ní-
vel não somente técnico, assistencial, edu-
cacional ou de treinamento, mas clínico,
lendo para isso que assumir a contradi-
ções do ser humano e as repercussões
psicopaíológicas que estas provocam.
Necessariamente, uma tal prática exige
uma formação profissional aprofundada e
contínua, ultrapassando de longe a defi-
ciente formação académica de graduação
que oferecem as nossas faculdades de psi-
cologia. Neste sentido, implica uma for
mação de pós-graduação, no sentido
amplo; o candidato a psicoterapeuta a
realizará segundo a opção teórica ou a li-
nha que lhe convém, mas que deveria
sempre abarcar toda a gama das ciências
do homem, em particular das ciências hu-
manas clínicas.
3.5. A definição do material
psícoterápieo
Depois de ter definido o campo de
atuação do psicoterapeuta como sendo o
campo clínico, cabe agora perguntar-se
qual o material com que se trabalha nes-
te campo. Como já frisamos acima, não
pode aí tratar-se de "doenças", uma vez
que o campo clínico, em nosso enten-
der, não se confunde com o campo mé-
dico; o maferial, portanto, tem que ser
outro — embora é claro que se possa
questionar a própria noção de "material",
uma vez que em psieoterapia, o ser hu-
mano conta como unidade integrada, e
não como um "material" qualquer.
Vimos no capítulo 2 que Binswanger,
criticando a própria palavra psieoterapia,
rejeita a ideia de uma "psique" que se-
ria consertada mecanicamente, como por
um ato de cirurgião: a psieoterapia não
se aplica a uma "máquina", mas envol-
ve duas pessoas numa interação muito
especifica. Nesta interação, a pessoa do
"paciente" está presente em sua totali-
dade, como um corpo animado, como
uma alma encarnada, a serem "tratados"
em conjunto, em suas repercussões "psi-
cossomáticas"recíprocas. . .
Não obstante, parece-nos pertinente fa-
lar, especificamente, de um material que
é trabalhado, o que, devidamente defi-
nido, não implica prejuízo para o sujeito
que se engaja na relação psicoterápica.
Este material nos é apresentado pelos
conflitos que o ser humano vive, inevi-
tavelmente, e que, em certas condições,
adolam uma dimensão patológica, a sa-
ber, quando não chegam a uma resolu-
ção "fisiológica".
A ideia de conflito merece alguns
comentários. A "Psicologia do Confli-
to"{2!) corresponde a uma visão do
psiquismo humano como essencialmente
conflituoso, islo é, dividido. Segundo es-
ta visão, o ser humano não dispõe de
uma totalidade harmoniosa: dividido,
ele c não-idêntico a si mesmo, mas se
desenvolve através de oposições dialéti-
cas.
De fato, a noção de conflito implica
um antagonismo entre duas ou mais ins-
tâncias ou partes, opondo-se em função
de interesses divergentes. Ora, falando-
-se de "interesses", torna-se óbvio que
nós nos situamos num campo humano
que ultrapassa o aspecto meramente so-
mático ou orgânico, fazendo intervir os
seus componentes psíquicos ou psicosso-
ciais. De fato, à luz de dados antropo-
lógicos universais, a evolução humana
caracteriza-se por crises e por conflitos
não somente inevitáveis, mas ainda ne-
cessários e estruturanles para o homem.
Estas crises c conflitos não representam
cm si nada de patológico — pelo con-
trário, assinalam as etapas de sua ma-
turação e as diferenças que marcam o
seu desenvolvimento singular, tanto quan-
to a convivência humana.
Exemplificaremos brevemente a que di-
ferenças e conflitos psíquicos ou psicos-
sociais — em suma, antropológicos —,
estamos nos referindo. Universalmente,
os homens têm de se confrontar, em sua
64
vida, com duas diferenças fundamentais,
independentes de qualquer cultura ou
época — confronto, aliás, cujas vicissi-
tudes transformam esta vida num per-
curso histórico, vivido e experimentado
subjetivamente. Trata-se das duas dife-
renças de geração e de sexo.
Com efeito, não há como não encon-
trar estas duas diferenças, naturais e
inevitáveis não somente no homem, mas
em todo ser vivo: nós todos descende-
mos de genitores que existiam antes de
nós, inserindo-nos num dos dois grupos
sexuais que diferenciara os seres vivos.
Ao dizer, no entanto, que se trata aí
de duas diferenças "naturais" não abar-
camos a totalidade, nem o essencial da-
quilo que diferencia os seres humanos.
Se estas diferenças se limitassem aos as-
pectos biológicos da descendência de de-
terminados reprodutores e da matrícula
sexual anatómica, elas não suscitariam
aqueles conflitos que, psicológica e cul-
turalmente, deixam marcas "páticas" no
ser humano. Mas eis a incidência cultu-
ral no desenvolvimento psicossocial do
homem: pela interdição do incesto, prin-
cípio organizador fundamental da socie-
dade humana, as diferenças de geração
e de sexo se transformam em problemá-
ticas psicológicas, em encruzilhadas con-
flitantes que temos que atravessar e re-
solver.
Esta travessia, pode-se dizer, represen-
ta o processo de humanização da crian-
ça, tarefa complicada cuja resolução
compete a cada um de nós — resolu-
ção, no entanto, que está longe de se
passar tranquilamente e sem conflitos,
e que sempre deixa traços na persona-
lidade que aos poucos se forma.
Percebe-se que é o próprio "Complexo
de Édipo" que nesta encruzilhada se es-
boça c se cristaliza: a "resolução do
Édipo" dependerá da maneira pela qual
a criança consegue situar-se em sua linha
genealógica, explicar-se com os seus pais,
assumir a sua posição de filho ou de
filha, identificar-se com seu corpo se-
xuado e integrar-se em seu papel se-
xual(22).
Neste sentido, pois, ninguém nasce co-
mo homem ou como mulher, mas tem
que tornar-se homem ou mulher, atra-
vés de todo um processo de identifica-
ção consigo mesmo e com o outro, pelo
qual a bissexualidade inata chega pau-
latinamente a definir o seu rumo, a crian-
ça a definir sua identidade.
Nesta complexa evolução, múltiplos
deslizes podem ocorrer, deslizes que for-
marão as diversas manifestações psico-
patológicas. A grosso modo, é possível
considerar as desordens psicóticas co-
mo decorrentes de conflitos de geração
(problemas ligados à identidade e á filia-
ção), atribuindo-as (não exclusiva mas
preferencialmente) ao eixo das diferen-
ças entre gerações; por outro lado, as
desordens neuróticas vinculam-se nitida-
mente a conflitos da áTea sexua! (ou ain-
da, do Édipo propriamente dito), dizen-
do respeito à aceitação da diferença de
sexo. Parece-nos que esta distinção, aqui
tão-somente mencionada, tem um valor
tanto didático quanto clínico.
Segundo estas considerações, pois, a
estrutura fundamental do psiquismo hu-
mano é conflituosa, sendo tais confli-
tos responsáveis, quando não ou insufi-
cientemente resolvidos, por perturbações
psieopatológicas e pela formação de sin-
tomas. Se é com estas perturbações que
lida o psicoterapeuta em sua prática (e
se é por causa deias que o paciente o
procura), elas, não obstante, não são o
material sobre o qual se trabalha, uma
vez que somente representam a manifes-
tação externa e não as "causas" das di-
ficuldades deste ou daquele paciente. As
"causas", nós as vemos precisamente nos
conflitos (não resolvidos) que, embora
não-patológicos em si, referem-se às ar-
ticulações da estruturação humana on-
de, em conseqiiência de particular vulne-
rabilidade, processos patológicos podem
iniciar-se.
Os conflitos que aí temos em men-
te são, portanto, conflitos interiorizados,
dispondo de um alto potencial patogêni-
co e podendo produzir tanto micro quan-
to macropsicopatologias: micro no senti-
do de "psicopaíologias da vida cotidia-
na" (para falar com Freud), macro no
sentido de disfunções e desordens afeti-
vas que afetam o sujeito de modo glo-
bal ou parcial, provocando sintomas,
transtornos de personalidade ou desvios
de caráter — enfim, que o fazem so-
frer em uma área qualquer (ou em to-
das) da sua vida pessoal.
Contudo, este sofrimento, para nós, não
se constitui em "doença". Discordamos,
portanto, de Schneider (op. cit.) (15),
quando formula que os conflitos interio-
rizados "se desenrolam no interior mes-
mo do psiquismo do sujeito doente": di-
ficuldades de ordem psicológica, sejam
elas "macropatoiógicas" no sentido de
produzir sintomas neuróticos ou psicóti-
cos, não são "doenças". Uma perspec-
tiva mais ampla, mais antropológica do
que medica, será aqui de rigor.
A insistência sobre a qualidade inter-
na destes conflitos não é supérflua. Com
efeito, 6 condição sine qua non para a
possibilidade de um trabalho psicoterá-
pico que o paciente reconheça que o seu
sofrimento pessoal seja condicionado por
uma problemática que se situa nele, e
não fora dele. Neste último caso, aliás,
de achar que se sofre em função de cau-
sas ou razões externas, a pessoa rara-
mente se constitui "paciente" disposto a
consultar, mas tenta atuar sobre estes
problemas externos, ou, ainda, apresen-
ta-se como vítima destes, proclamando-
-se atingida, por exemplo, pela injustiça
social.
É indispensável, pois, que o sujeito te-
nha aíguma consciência da origem das
suas dificuldades e não tente impufá-las
a situações externas, a serem invocadas
como bodes expiatórios; somente reco-
nhecendo que há algo de errado nele, é
que o sujeito se sentirá motivado a ini-
ciar uma psicoterapia ou a procurar uma
ajuda psicológica qualquer. Sem esta mo-
tivação, não terá a paciência de ser "pa-
ciente" e de submeíer-se a um trabalho
de psicoterapia, na maioria das vezes
bastante longo, sofrido e oneroso.
Em determinadas pessoas e em deter-
minadas categorias de dificuldades psieo-
patológicas, esta consciência faz falta,
ao ponto de nem existir, às vezes, sen-
sibilidade para a dimensão psíquica in-
terna. De fato, há muitas pessoas que
negam a importância

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