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Nº3 Da Matta. O ofício de etnólogo ou como ter anthropological blues.

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,4 . A-vV1~;e,a- ~L:ÚJtoy/~
«;'0 cLt r~: ..z",k,e / 191 J'
1
o Ofíciode Etnólogo,ou comoTer
"AnthropologicalBlues"*
ROBERTO DA MATA
This g/ory. the sweetest, the true..
or rather the only true glory. awaits
you. encompassesyou already; you
wÜ/ know al/ its bril/iance on that
day 01 triumph and ioy on which.
returning to your country. we/comed
amid our delight. you will arrive in
our walls. loaded with the niost pre.
cious apoils. and bearers 01 happy
tidings 01 our brothers scatteredin
the uttermostconfines01 the Universe.
Degérando..
Introdução
Em EtnoIogia, como nos "ritos de passagem", existem três
fases(ou pJanos) fundamentaisquandose trata de discorrersobre
. Trablllho apresentadona Universidadede Brasfiia, junto ao Departa-
mentode CiênciasSociais.no Simpósiosobre Trabalho-de-Oampo,ali
realizado.Expressomeusagradecimentosaos Profs.RobertoCardosode
Oliveirae KennethTaylor.quena épocaeram,rc;spectivamente,Chefe
do Departamentode CiênciasSociais""Coordenadot'do Cursode..Mes-
tradode AntropologiaSocial,pelo convite.Posterionnente,o textofoi
publicadono MuseuNacionalcomoComunicaçãon.OI, Setembro,1974,
em ediçãomimeografada.Desejoagradecera GilbertoVelho, Luiz de
CastroFaria e AnthonySeegerpelassugestõese encorajamento,quando
dapreparaçãodasduasversõesdestetrabalho... loseph-MarieDegérando.The Observation01SavagePeop/es(1800).
traduzido.do francêspor F.C.T. Moore,Berkeleye Los Angeles:Uni-
versityOf CalifomiaPress.1969.
, .=.1
24 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA
as etapasde uma pesquisa,vista pelo prisma do seu cotidiano.A
primeira, é aquela caracterizadapelo uso e até abusoda cabeça,
quando ainda não temosnenhum contatocom os sereshumanos
que, vivendo em grupos, constituem-senos nossosobjetosde tra.
balho. ~ a faseou plano que denominode teórico-intelectual,mar-
cada pelo divórcio entre o futuro pesquisadore a tribo, a classe
social,o mito, o grupo, a categoriacognitiva,o ritual, o bairro, o
sistemade relaçõessociaise de parentesco,o modode produção,o
sistemapolítico e todosos outros dominios,em sua lista infindá-
vel, que certamentefazem parte daquilo que se busca ver, enca-
rar, enxergar, perceber,estudar, classificar, interpretar, explicar,
etc. .. Mas essedivórcio - e é bom que se diga isso claramente
- nãodiz respeitosomenteà ignorânciado estudante.Ao contrá.
rio, elefala precisamentede um excessode conhecimento,masde
um conhecerqueé teórico,universale mediatizadonãopelocon-
cretoe sobretudopelo específico,mas pelo abstratoe pelo não
vivenciado.Peloslivros,ensaiose artigos:pelosoutros.
Na faseteórico-intelectual,as aldeiassãodiagramas,os ma.
trimônios,se resolvemem desenhosgeométricosperfeitamentesi.
métricose'equilibrados,a patrolJ4lgeme a clientelapolíticaapa.
recemem regrasordenadas,a'própriaespoliaçãopassaa seguir
leis'~ os índiOssão de papel.Nunca ou muito raramentese
pensaemcoisasespecíficas;quedizemrespeitoà minhaexperiên.
cia, quandoo conhecimeJ;1toé permeabilizadopor cheiros,cores,
doresé amores.Perdas,ansiedadese medos,todosessesintrusos
que os livros, sob,.,tudoos famigerados"manuais"das Ciências
Sociaisteimampor ignorar. "
Umasegundafase,quevemdepoisdessaqueacabode apre-
sentar,podeserdenominadade períodoprático.Ela diz respeito;
essencialmente,_anossaantevésperade p~squisa.De fato,trata.se
daquelasemanaque toooscuja pesquisaimplicouumamudança
drásticaexperimentaram,quandoa nossapreocupaçãomudasubi-
tamentedas teoriasmais universaispara os problemasmais
banalmenteconcretos.A pergunta,então,nãoé maisseo grupoX
temou nãolinhagenssegmentadas,à modadosNuer,Tallensiou
Tiv, ou se a triboY temcorridasde torae metadescerimoniais,
comoosKrahóouApinayé,masdeplanejara quantidadedearroz
e remédiosquedevereilevarparao campocomigo.
Observoque a oscilaçãodo pênduloda existênciaparatais
questões- onde vou dormir, comer, viver - nãoé nadaagra.
dável.Especialmentequandoo nossotreinamentotendea serex.
cessivamenteverbale teórico,ou quandosomossocializadosnuma
culturaquenosensinasistemll'\camenteo conformismo,essefilho
A VERSÃo QUALJTA11VA 25
(
daautoridadecoma generalidade,a lei e a regra.No plonoprá-
tico,portanto,já nãose tratadecitara experiência.dealgumhe-
rói-civilizadorda disciplina,masdecolocaro problemafundamen-
tal naAntropologia,qualseja:o daespecificidadee relatividadede
sua própriaexperiência. .
A fasefinal, a terceira,é a que.chamodepessoalou emten.
cial. Aqui, não temosmais divisõesnítidasentreas etapasda
nossaformaçãocientíficaou acadêmica,maspor umaespéciede
prolongamentode tudoisso,umacertavisãodeconjuntoquecer-
tamentedevecoroartodoo nossoesforçoe trabalho.Destemodo,
enquantoo plano teórico-intelectualé medidopela competência
acadêmicae o planopráticopelaperturbaçãodeumarealidadeque
vai se tornandocadavez mais imediata,o planoexistencialda
pesquisaem Etnologiafala maisdas liçõesque devoextrairdó
meuprópriocaso.~ por causadissoqueeu a considerocomo.es-
sencialmenteglobalizadorae integradora:ela devesintetizara bio-
grafiacoma teoria,e a práticadomundocoma doofício.
Nestaetapaou,antes,nestadimensãodapesquisa,eunãome
encontromaisdialogandocomíndiosdepapel,ou com diagramas
simétricos,mascompessol!S.Encontro-menumaaldeiaconcreta:-
calorentae distantede tudoqueconheci.Acb.o-mefazendo'facea
lamparmase doença.Vejo-mediantede gente.decarne8 osso.
Genteboae antipática,gentellabidae estúpida,gentefeiae boníta.
Estou,assim,submerSonUD;1mundoquesesituava,e depoisdapes-
quisavoltaa sesituar,entrea realidadee o livro.
~ vivenciandoestafasequemedouconta(e nãosemsusto)
queestouentredoisfogos:a ~ha culturae umaoutra,o meu
mundoe um outro.De fato,tendome preparadoe mecolocado
comotradutorde um outrosistemaparaa miribapróprialingua.
gem,eisquete~o queinici~ minhatarefà.E entãoverifico"inti.
mamentesatisfeito,queo meuofício- voltadopara o'estudo,'dos
homens- éanálogoà própriacaminhadadassociedadeshllmenas:
semprena tênuelinhadivisóriaque'separaosRnimmsnadetemii.
naçãodanaturezae os deusesque,dizemoscrentes,forjamo seu
própriodestino. . . " ,,:),
Neste trabalho,procuro desenvolverestaúltima dimensão;.da,
pesquisaem Etnologia. Fase que, para mim e talvezpara outros,foi tãoimportante. . .
,.
"
i:,":
I
Durante anos, a AntropologiaSocial estevepreocupadaem
estabelecercomprecisãocadavezmaiorsuasrotinasdepesquisa
26 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA
ou. comoé tambémchamadoo exercíciodo ofíciona suaprática
maisimediata,do trabalhode campo.Nos cursosde Antropologia
os professoresmencionavamsemprea necessidadeabsolutada co-
letade um bommaterial,istoé, dadosetnográficosque permitis.
semum diálogomaisintensoe maisprofícuocomas teoriasc0-
nhecidas,.poisdaí,certamente,nasceriamnovasteorias- segundo
a velhae, porquenão diZer,batidadialéticado Prof. Robert
Merton.
Desseesforçonasceramalgunslivros- na Américae fora
dela -- ensinandoa realizarmelhor'taisrotinas.Os dois maisfa.
mosossãoo notórioNo'esandQueriesin An'hropoloB)'.produzido
pelosinglesese, diga.sede passagem,britanicamente.produzido
. comzelomissionário,coloniale vitoriano,e o nãomenosfamoso
Guiode InvestigaçãodeDadosCul'urais,livro inspiradopeloHu.
manRelationsAreaFiles,soba égidedosestudos"cross-culturais"
do Prof. GeorgePeterMurdock.
Sãosuaspeçasimpressionantes,comosãoimpressionantesas
monografiasdosetnólogos,livrosqueatualizamde modocorreto
e impecávelessasrotinasde "comocomeceifazendoum mapada
aldeia,colhe~doduramenteas genealogiasdosnativos,assistindo
aos ritos funerários,procurandodelimitaro tamanhode cada
roça"e "termineidescobrindoum sistemade parentescodo tipo
CnJw.Omaha,etc... ". Na realidade,livrosque ensinama fazer
pesquisasãovelhosna nossadisciplina,e pode-semesmodizer-
sem medode incorrer em exagero- que elesnasceramcom a sua
~dação, já' que foi Henry Morgan, ele próprio, o primeiro a des-
cobrir.B.utilidade de tais rotinas, quandopreparouuma série de
qUestionáriosde campoqueforam enviadosaos distantesmissioná-
rios e.'agentesdiplomáticosnorte-americanospara escrevero seu
supercláSsicoSys'ems01 Consanguini&yanil Alfinity 01the Humon
Family. (1871)1. Tal tradição é obviamentenecessáriae não é
meu propósitoaqui tentar denegri-Ia.Não sou D. Quixotee reco-
nheço.muito bem os frutos que dela nascerame poderãoainda
nascer..E mesmose estivessecontraela, o máximo qUe o bom
sensome permitiria acrescentaré que essasrotinas são comoum
mal, necessário.
.! . Desejo, porém, neste trabalho. trazer à luz todo um "out~
lado" desta mesma tradição oficial e explicitamentereconhecida
pelos antropólogos,qual seja: os aspectosque aparecemnas ane.
dotas e nas reuniõesde antropologia,nos coquetéise nos momen-
1 Republicadoem 1970,AnthropologiçalPublications:OosterhoutN.B.
:..:..:Holanda.Veja-se,em relaçãoao quefoi mencionadoacima,pp. viii e
ix'do Prefácioe o Apêndice'àParteIlI, 'pp.'SlS e 55.
A VERSÃO QUALITATIVA 27
','o.
tosmenosformais.Nascstóriasqueelaboramdemodotragicômico
um mal-entendidoentreo pesquisadore o seumelhorinformante,
de comofoi durochegaratéa aldeia,dasdiarréias,dasdificulda.
desde conseguircomidae - muitomaisimportante- de como
foi difícil comer naquela aldeia do Brasil Central.
Esses são os chamadosaspectos"românticos" da disciplina,
quando o pesquisadorse vê obrigadoa atuar como médico, cozi.
nheiro, contador de histórias. mediadorentre Índios e funcioná-
rios da FUNAI, viajante solitário e até palhaço, lançl;lndomão
destesvários e insuspeitadospapéis para poder bem realizar as
rotinas que infalivelmenteaprendeuna escolagraduada.~ curioso
e significativo que tais aspectossejam cunbados de "anedóticos"
e, como já disse, de "românticos", desdeque se está consciente
- e nãoé precisoser filósofoparatanto- que a Antropologia
Social é uma disciplina da comutaçãoe da mediação.E com isso
quero simplesmentedizer que talvez mais do que qualquer outra
matériadevotadaao estudo do Homem, a Antropologia é aquela
onde necessariamentese estabeleceuma ponteentre dois universos
(ou subuniversos)de significação,e tal ponteou mediaçãoé reali.
zada com um mínimo de aparatoinstitucional ou de instrumen-
tos de mediação.Vale dizer, de modo artesanale paciente,depen-
dendo essencialmentede humores,temperamentos,fobias e todos
os outros ingredientesdas pessoase do contatohumano.
. . Se é possívele permitidouma interpretação,não há dúvida
de que todoo anedotárioreferenteàs pesquisasde campoé um
modomuitopoucoimaginativode depositarnum ladoobscurodo
oficioos seuspontostalvezmaisimportantese maissignificativos.
~ umamaneirae - quemsabe?- um modomuitoenvergonhado
denãoassumiro ladohumanoe fenomenológicodadisciplina,com
um temorinfantilderevelaro quantovaidesubjetivonaspesqui.
sasde campo,temoressequeé tantomaiorquantomaisvoltado
estáo etnólogoparauma idealizaçãodo rigor nas disciplinass0-
ciais.Numapalavra,é um mododenãoassumiro ofíciodeetnó-
logo.integralmente,é o medodesentiro quea Dra. Jean Carter
Lave denominou,com rara felicidade,numa cartado campo,o
anthropologicalblues.
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\ 11
Por omhropologicalblues se quer cobrir e descobrir,de um
~ocJomaissistemático,osaspectosinterpretativosdoofíciodeetnÓo
logo.Trata.sede incorporarno campomesmodasrotinasoficiais,
já legitimadascomopartedo treinamentodo antropólogo,aqueles
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28 A BUSCA DA REALIDADE OBJE11VA
.1
~:
aspectoSextraordinários,sempreprontosa emergiremtodoo rela.
cionamentohumano.De fato,só setemAntropolop Social'qwm..
dosetemdealgummodoo exótico,e o exóticodependeint'ár,iavel-
mentedadistânciasocial,e a distânciasocialtemcomocompOnen-
tea marginalidade(relativaou absoluta),e amarginalidadeseali~
mentade um sentimentode segregaçãoe a segregaçãó'.unpUca
estarsó e tudo desemboca- paracomutarrapidamenteessa-longa
cadeia- na liminaridadee no estranhamento.
De tal modoquevestira capadeetnólogoé aprendera'reali-
zar umaduplatarefaquepodesergrosseiramente~ontidanasse-
guintesfórmulas:(a) transformaro exóticono familiaro(ou (b)
transformaro familiaremexótico.E, emambosos casOs,é'neces-
sáriaa presençadosdoistermos(q~erepresentamdoisuniversoil
designificação)e, maisbasicamente,'wiui vivênciadosdóiSdomí-
niospor ummesmosujeitodispostoa situá-lose apanhá.lo~;Numa'
certaperspectiva,essasduastransforl,Daçõesparecemse~' ~eper-
to os momentoscríticosda históriada própriadisciplina-ASSiDié
quea primeiratransformação- do exóti~emfamiliar-.-:.corres:.
pondeaomovimentooriginaldaAntropoiogiaquandoos e~~logos
conjugaramo seuesforçona buscadelibe~adadosenigm~~iaíS
situadosem universosde significaçãosabidamenteincQ~~~ncji-
dospelosmeiossociaiSdoseutempo.E foi assim.que~ redpZlu.:e
transformou- paracitarapenasumcasoelássico-9 k.u.({arinS
dosmelanésiosnum sistema.compreensívelde trocas,8UJnentadas
por práticasrituais,políticas,jurídicas,econômicase . religiosas,
descobertaque veio,entreoutras,permitira criação,por MareeI
Mauss,da noçãobasilardefatosocialtotal,desenvolvida,logo,.apói
as pesquisasde B. Malinowsk.i."2 .. .. :
A segundatransformaçãoparece.corresponderao momento
presente,quandoa disciplinasevoltaparaa nossaprópria.socieda-
de,nummovimentosemelhantea um'auto-exorcismo,Poisjá não
se tratamaiSde depositarno selvagemafricanoou melalÍésico'o
mundodepráticasprimitivasquesedesejaobjetificare inventariar,
masdedescobri-Iasemnós,nasnossasinstituições,na nossapráti-
ca políticae religiosa.O problemaé, então,o de tirar.à 'capa'de
membrodeumaclassee deum gruposocialespecüicoparapoder
- como etnólogo- estranharalguma regra social familiar e as-
sim descobrir(ou recolocar,como fazem as criançasquando per-
~'
"
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I
12 Permito-melembrar ao leitor que Malinowski publicou o se';;,Argc:in,-
auts 01 the WesternPacijic em 1922e que a primeira ediçio (ranccsa..do
Essai sur le Don 6 de 1925. . ; :::~.
A VERSÃO QUALITATIVA 29
guntamOS"porquês")o exóticono queestápetrüicadodentrode
nÓSpelareHicaçãoe pelosmecanismosde legitimação.a
Essasduastransformaçõesfundamentaisdo ofíciodeetnólogo
parecemguardarentresi umaestreitarelaçãodehomologia.'Como
o desenrolarde uma sonata,.ondeum temaé apresentadoclara-
menteno seuinício,desenvolvidorebuscadamenteno seucursoe,
finalmente,retomadono seuepílogo.No casodas transformações
antropológicas,os movimentossempreconduzema um encontro.
Destemodo,a primeiratransformaçãolevaaoencontrodaquiloque
a culturado pesquisadorrevesteinicialmenteno envelopedo bi-
zarro,detalmaneiraquea viagemdoetnólogoé comoa viagemdo
heróiclássico,partidaemtrêsmomentosdistintose interdependen.
tes:a saídadesuasociedade,o encontrocomo outronosconfins
do seumundosociale, finalmente,o "retornotriunfal" (como
colocaDegérando)ao seuprópriogrupocomos seustroféus.De
fato,o etnólogoé, na maíoriadoscasos,o últimoagenteda socie-
dadecolonialjá queapósa rapinadosbens,daforçadetrabalhoe
da terrasegueo pesquisadorparacompletaro inventáriocaniba-
lístico:ele,portanto,buscaasregras,osvalores,asidéias- numa
palavra,os imponderáveisda vidasocialquefoi colonizada.
Na segundatransformação,a viagemé comoa do xamã:um
movimentodrásticoonde,paradoxalmente,nãosesai do lugar.E,
de fato,asviagensxamanisticassãoviagensverticais(paradentro.
ou paracima) muitomaisdo quehorizontais,comoaeontecena
viagemclássicados heróishoméricos.~E nãoé por outrarazão
quetodosaquelesquerealizamtaisviagensparadentroe paracima
sãoxamãs,curadores,profetas,santose loucos;ou seja,osquede
algummodusedispuserama chegarno fundodopoçodesuapró-
pria cultura.Comoconseqüência,a segundatransformaçãoconduz
igualmentea um encontrocomo outroe ao estranhamento.
As duastransformaçõesestão,pois,intimamenterelacionadas
e ambassujeitasa wna sériederesíduos,nuncasendorealmente
perfeitas.De fato,o .exóticonuncapodepassara serfamiliar;e o
familiarnuncadeixadeserexótico.
Mas, deixandoos paradoxospara os mais bem preparados,
essastransformaçõesindicam,numcaso,umpontodechegada(de
fato,quandoo etnólog~conseguesefamiliarizarcomUID8culturadiferenteda sua,eleadquirecompetêncianestacultura)e, no ou-
3 Estouusandoas noçõesde reificaçãoe de legitimaçiocomoBerger
e Luckmannno seu A ConstruçãoSocial da Realidade(Petrópolis:
Vozes,1973).
4 Foi PeterRiviêrede Oxrordquemme sugeriuestaidéiada viagem
xamanística.
: -~................---
30 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA
tro,Opontodepartida,já queo únicomododeestudarum ritual
brasileiroé o de tomartal rito comoexótico.Issosignificaquea.
apreensãono primeiroprocessoé realizadaprimordialmentepor
umavia intelectual(a transformaçãodoexóticoemfamiliaré rea-.
lizadafundamentalmentepor meiode apreensõescognitivas),ao
passoque,no segundocaso,é necessárioum desligamentoemocio-.
nal,já quea familiaridadedocostumenãofoi obtidavia intelecto,
mlls via coerção.socializadorae, assim,veio do estômagoparaa
c~a. Em ambososcasos,porém,a mediaçãoé realizadaporum
corpode princípiosguias(as chamadasteoriasantropológicas)e
conduzidanumlabirintode conflitosdramáticosqueservemcomo
panode fundoparaas anedotasantropológicase paraacentuaro
toqueromânticodanossadisciplina.Destemodo,seo meuinsight
estácorreto,é no processode .transformaçãomesmoquedevemos
cuidardebuscara definiçãocadavezmaisprecisadosanthropolo-
gicalblues.
Seria,então,possíveliniciar a demarcaçãoda áreabásicado
anthropologicalbluescomoaquelado elementoqueseinsinuana
práticaetnológica,masque nãoestavasendoesperado.Comoum
blues,cuja melodiaganbaforçapelarepetiçãodassuasfrasesde
modoa cadavezmaissetomarperceptível.Da mesmamaneiraque
a tristezae a saudade(tambémblues)seinsinuamno processodo
trabalhode campo,causàndosurpresaao etnólogo.g quandoele
sepergunta,comofezClaudeLévi-Strauss,"queviemosfazeraqui?
Com que esperança?Com quefim?" e, a partirdessemomento,
pôdeouvir claramenteas intromissõesde um rotineiroestudode
Chopin, ficar por ele obsecadoe se abrir à terríveldescoberta
dequea viagemapenasdespertavasuaprópriasubjetividade:"Por
umsingularparadoxo,diz Lévi-Strauss,emlugardemeabrira um
novouniverso,minhavidaaventurosaantesmerestituíao antigo,
enquantoaquelequeeupretenderasedissolviaentreosmeusdedos.
Quantomaisos homense aspaisagensa cuja conquistaeu partira
perdiam,ao possuí-los,a significaçãoqueeu delesesperava,mais
essasimagensdecepcionantesaindaque presenteseramsubstituí-
dasporoutras,postasemreservapormeupassadoeàsquaiseunão
deranenhumvalorquandoaindapertenciamà realidadequeme
rodeava."(TristesTrópicos,SãoPaulo:Anhembi,1956,402ss.).
Seriapossíveldizerqueo elementoqueseinsinuanotrabalho
decampoéo sentimentoe a emoção.Estesseriam,paraparafrasear
Lévi-Strauss,oshóspedesnãoconvidadosdasituaçãoetnográfica.E
tudoindicaquetal introsãodasubjetividadee dacargaafetivaque
veJp.comela,dentrodarotinaintelectualizadadapesquisaantropo-
lógica,é um dadosistemáticoda situação.Suamanifestaçãoassu-
A VERSÃO QUALITATIVA 31
me váriasformas,indo da anedotainfamecontadapelo falecido
Evaos.Pritchard,quandodissequeestudandoos Nuer pode-sefa-
cilmenteadquirirsintomasde"Nuerosis"li,atéasreaçõesmaisvis-
cerais,comoaquelasde Lévi-Strauss,Chagnone Maybury-Lewis6
quandosereferemà solidão,à faltadeprivacidadee à sujeiradosíndios.
Tais relatosparecemsugerir,dentreos muitostemasqueela-
boram,a fantásticasurpresado antropólogodiantede um verda-
deiroassaltopelasemoções.Assimé que Chagnondescrevesua
perplendadedianteda sujeiradosYanomanoe, por issomesmo,
do terrívelsentimentode.penetraçãonum mundocaóticoe sem
sentidode quefoi acometidonosseusprimeu'ostemposde traba-
lho de campo.E Maybury-Lewisguardaparao últimoparágralo
doseulivro a surpresadesesaberdealgummodoenvolvidoe ca-
pazde envolverseuinformante.Assim,é no último instantedo
seu relato que ficamos sabendo que Apowen - ao se despedir do
antropólogo - tinha lágrimasnos olhos.g comose na escolagra.
duadativessemnos ensinadotudo: espereum sistemamatrimonial
prescritivo,um sistemapolítico segmentado,um sistemadualista,
etc.,e jamais nos tivessemprevenidoque a situaçãoetnográficanão
é realizadanum vazioe que tantolá, quantoaqui, se podeouvir os
anthropologicalblues!
Mas junto a essesmomentoscruciais (a chegadae o último
dia), há- dentreasinúmerassituaçõesdestacáveis- um outro
instantequeaomenosparamimseconfiguroucomocrítico:o mo.
mentoda descobertaetnográfica.Quandoo etnólogoconseguedes-
cobriro funcionamentodeumainstituição,compreendefinalmente
aoperaçãodeumaregraantesobscura.No casodaminhapesquisa,
nodiaemquedescobricomooperavaa regrada amizadeformali.
zadaentreos Apinayé,escrevino meudiárioem 18 de setembro
de 1970:
"Entãoali estavao segredode umarelaçãosocialmui.
to importante(a relaçãoentreamigosformais),dada
por acaso,enquantodescobriaoutrascoisas.Ele mos-
travade modoiniludívela fragilidadedo meutraba-
lho e daminhacapacidadedeexercero meuofíciocor-
$ CI. Bvans-P~ard, The Nuer, Oxford: at the ClarendonPress,)940:J3.
6 Pura Lévi-Strauss,vejao já citadoTristesTrópicos;paraChagnone
Nfaybury-Lewisconfira,respectivamente,Yanomanu:The FlercePeople.
NovaYork: Rolt,Rineharte Winston,1968,e The SavageandThe Inno-
cenl,Boston:BeaconPress,1965.
,..
32 A BUSCADA REALIDADE OBJE11VA
retamente.Por outro lado, ela revelavaa contingência
do ofício de etnóIogo,pois os dados,por assim dizer,
caemdo céu comopingos de 'chuva.Cabe ao etnóIogo
não só apará-los,como conduzi-Iosem enxurradapara
o oceanodas teoriascorrentes.De modo muito nítido
verifiquei que uma cultura e um informantesãocomo
cartolasde mágico: tira-se alguma coisa (uma regra)
que faz sentidonum dia; no outro, só conseguimosfi-
tas coloridasde baixo valor. . .
Do mesmo modo que estavapreocupado,pois havia
mandadodois artigos erradospara publicaçãoe tinha
que corrigi-los imediatamente,fiquei tambémeufórico.
Mas minha euforia teria que ser guardadapara o meu
diário, pois não havia ninguém na aldeia que comigo
pudessecompartilhar de minha descoberta.Foi assim
que escreviuma cartapara um amigoe visitei o encar-
regadodo Posto no auge da euforia. Mas ele não es.
tava absolutamenteinteressadono meu trabalho. E,
mesmoseestivesse,não o entenderia.Num dia, à noite,
quandoele perguntoupor que,afinal, estavaeu ali estu-
dando índios, eu mesmoduvidei da minha resposta,
pois procurava dar sentido prático a uma atividade
que, ao menospara mim, tem muito de artesanato,de
confusãoe é, assim, totalmentedesligadade uma rea-
lidade instrumental.
E foi assim que tive que guardar segredoda minha
descoberta.E, à noite, depoisdo jantar na casado en-
carregado,quandoretomeià.minha casa,lá sópude di.
zer do meu feito a dois meninosApinayé que vieram
para comer comigoalgumas bolachas.Foi com eles e
com uma lua amarelaque subiu muito tarde naquela
noitequeeu compartilheia minha solidãoe o segredoda
minha minúsculavitória."
Esta passagemme pareceinstrutiva porqueela revelaque, no
momentomesmoque o intelectoavança- na ocasiãoda descober-
ta - as emoçõesestãoigualmentepresentes,já que é precisocom-
partilhar o gostoda vitória e legitimar com os outros uma desco-
berta. Mas o etnólogo,nessemomentoestásó e, destemodo, terá
que guardar para si próprio o que foi capazde desvendar.
E aqui se coloca novamenteo paradoxoda situaçãoetnográ.
fica: para descobriré precisorelacionar-see, no momentomesmo
da descoberta,o etnólogoé remetidopara o seu mundo e, deste
A VERSÃO QUALITATIVA 33
. modo,isola-senovamente.O opostoocorrecommuitaf~eqüência:
.envolvidopor um chefepolíticoquedesejaseusfavorese suaopi-
nião numa disputa,o etnólogotemquecalare isolar-se.Emocionado
pelo pedidode apoioe temerosopor sua participaçãonum conflito,
ele se vê obrigadoa chamara razãopara neutralizaros seussenti-
mentose, assim,continuarde fora. Da minha experiência,guardo
commuito cuidadoa lembrançade uma destassituaçõese de outra.
muito mais emocionante,quandoum indiozinho que era um misto
de secretário,guia e filho adotivo, ofereceu-meum colar. Trans-
crevonovamenteum longo trecho do meu diário de 1970:
{,
"Pengi entrouna minha casacom uma cabacillhapresaa uma linha de tucum. Estavana minha mesaremoen-
do dadose coisas.Olhei paraele como desdémdo~cano
sadose explorados,pois que diariamentec a todoo mo-
mentominha casase enchede índios com colarespara
trocaspelasminhas missangas.Cada uma dessastrocas
é um pesadelopara mim. Socializado numa cultura
onde a troca sempre implica uma tentativa de tirar
o melhorpartido do parceiro,eu sempretenhouma re-
beldia contra o abuso das trocaspropostaspelos Api-
nayé':um colar velho e mal feito por um punhadosem-
pre crescentede ~as. Mas o meu ofício (emdes-
ses logros,pois missangasnada valem para mim e, no
entanto, aqui estou zelando pelas minhas pCqUlHUlS
bolas coloridascomose fosseum guarda de um lmllco.
Tenho ciúme delas,estouapegadoao seu valor..- (!ue
eu mesmoestabeleci... Os índios chegam,ofen~ccmos
colares,s~m que eles são mal feitos, mas sabemque
eu vou trocar. E assim fazemosas trocas. São ('e7e-
nas de colarespor milharesde missangas.Até 'Lu"das
acabeme a notícia corra por todaa aldeia. E, então,fi.
carei livre desseincômodopapel de comerciante.Te-
rei os colarese o trabalho cristalizadode quasetodas
as mulhf'resApinayé. E eles terãoH1issarl~!ls!Jara ou-
tros colares.
Pois bem, a chegadade Pengy era sinal de mais uma
troca."Masele estendeua mãorapidamente:- Esseé
para o teu ikrá (filho), para ele brincar. . .
E, ato contínuo, saiu de casasem olhar para trás. O
objeto estavanas minhas mãose a saída rápida do in-
diozinho não me dava tempopara propor uma recom.
pensa.Só pude pensar no gestocomo uma gentileza.
"'0.
34 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA
mas ainda duvidei de tantabondade.Pois ela não exis-
te nestasociedadeonde os homenssão de mesmoV8-
lor."7
Que o leitor não deixe de observaro meu último parágrafo.
Duvidei de tanta bondadeporque tive que racionalizar imediata.
menteaqueladádiva,casocontrárionão estariamais solitário.Mas
será que o etnólogoestá realmentesozinho?
Os manuais de pesquisasocial quasesemprecolocamo pro-
. blemademodoa fazercrerqueé precisamenteesseo caso.Deste
modo, é o pesquisadoraquele que devese orientar para o grupo
estuaadoe tentaridentificar-secomele. Não se colocaa contrapar-
tida destemesmoprocesso:a identificaçãodos nativoscom o siste.
ma que o pesquisadorcarregacom ele, um sistemaformadoentre
o etnólogoe aquelesnativosque conseguealiciar - pelasimpatia,
amizade,dinheiro, presentese Deus sabemais comoI - para que
lhe digam segredos,rompamcom lealdades,forneçam.lhelampejos
novos sobre a cultura e a sociedadeem estudo.
Afinal, tudo é fundado na alterilidadeem Antropologia:pois
só existe antropólogoquando há um nativo transformadoem in-
formante.E só há dadosquando há um processode empatiacor-
rendode lado a lado.'É issoquepermiteao informantecontarmais
um mito, elaborarcom novos dadosuma relaçãosocial e discutir
os motivosde um líder político de sua aldeia.São justamenteesses
nativos (transformadosem informantese em etnólogos)que sal-
vam o pesquisadordo marasmodo dia-a.diada aldeia: do nascere
pôr.do-sol,do gado, da mandioca,do milho e das fossassanitá-
rias.
Tudo isso pareceindicar que o etnólogonunca estásó. Real-
mente,no meio de um sistemade regrasainda exóticoe que é seu
objetivo tomar familiar, ele está relacionado- e mais do que
nunca ligado- a sua própria cultura. E quandoo familiar come-
ça a se desenharna sua consciência,quandoo trabalhotermina,o
antropólogoretoma com aquelespedaçosde imagense de pessoas
que conheceumelhor do que ninguém. Mas situadasfora do aI.
cance imediatodo seu próprio mundo, elas apenasinstigame tra.
zem à luz uma ligaçãonostálgica,aqueladosanthropologicalblues.
., Para um estudoda organizaçãosocialdestasociedade,veja-seRober.
to Da MaUa,Um Mundo Dividido:A EstruturaSocial dos ApinaY'.
Petr6DOIis:Vozes,1976.
-.
"1,
:.: A VERSÃO QUALITATIVA
35
111
'Mas o que se pode deduzir de todas essasobservaçõese de to-
t.das essasimpressõesque formam o processoque denominei ano
.thropologicalblues?
. Uma deduçãopossível,entre muitas outras, é a de que, em
Antropologia,é-precisorecuperaresselado extraordináriodas rela-
ções pesquisador/nativo.Se este é o lado menos rotineiro e o
mais difícil de ser apanhadoda situaçãoantropológica,é certamen-
te porqueele se constituino aspectomais humanoda nossarotina.
É o que realmentepermiteescrevera boa etnografia.Porque sem
ele, como colocaGeertz,manipulandohabilmenteum exemplodo
filósofoinglêsRyle, não sedistingueum piscardeolhosde uma piso
cadelamarota. E é isso, precisamente,que distingue a "descrição
densa"- tipicamenteantropológica- da descriçãoinversa, fo-
. tográficaou mecânica,do viajanteou do missionário.8Mas para
distinguir o piscar mecânicoe fisiológicode uma piscadelasutil e
comunicativa,é precisosentir a marginalidade,a solidiío e a sau-
dade.É precisocruzar os caminhosda empatiae da humildade..
Essa descobertada AntropologiaSocial comomateriainterpre-
tativa segue,por outro lado, uma tendênciada disciplina. Tendên-
cia que modernamenteparecemarcar sua passagemde uma ciên-
cia natural da sociedade,como queriam os empiricistasinglesese
americanos,para uma ciência interpretativa,destinada antes de
tudo a confrontarsubjetividadese delas tratar. De fato, nestepIa.
no não seria exageroafirmar que a Antropologiaé um mecanismo
dos mais importantes para deslocar nossa própria subjetividade. E
o problema,como assumeLouis Dumont, entre outros, não pilre-
ce propriamenteser o de estudaras castasda lndia para 'conhece-
Ias integralmente,tarefa impossívele que exigiria muito mais do
que o intelecto,mas - isso sim - permitir dialogarcom as for-
mas hierárquicasque convivemconosco.É a admissão- roman-
tismoe anthropologicalbluesaparte- de que o homemnão seen.
xergasozinho.E que ele precisado outro como seu espelhoe seu
guia. .
.: ~
'o;.---
" Cf. CliffordGeertz,The Interpretationof Cultures.NovaYorki.Basie
Books, 1973.[A ser publicadobrevementepor Zahar EditQres.}
. .~
~~.

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