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475860 (1) Os intelectuais da Idade Média

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JACQUES LE GOFl."
I
PARTE I
o SÉCULO XII: NASCIMENTO DOS INTELECTUAIS
Os Intelectuais
na Idade Média Renascim$lto urbano e nascimento do intelectual,no século XII
1984
No príncípío foram as cidades. O intelectual da Idade
Média - no Ocidente-e- nasce com elas. É com o seu desen-
volvimento, ligado à função comercial e industrial - diga-
mos, modestamente, artesanal- que ele aparece, como um
dos homens de ofício que se instalam nas cídades onde se
impõe a divisão do trabalho.
Antes disso, as classes sociais dístínguídas por Adalbéron
de Laon (a que reza - os clérigos; a que protege - os nobres;
a que trabalha - os servos) dificilmente correspondiam a
uma verdadeira especialização dos homens. O servo, que
cultivava a terra, era também artesão; O nobre, soldado, era
também proprietário, juiz, administrador. Os clérigos, sobre-
tudo os monges, eram muitas vezes tudo isto ao mesmo
tempo. O trabalho do espírito era apenas uma das suas actí-
vidades. Não era um fim em si, mas, ordenado para o resto
dos seus dias, era convertido pela Regra em serviço de Deus.
Levados pelo acaso da existência monástica, puderam assumir
momentaneamente o papel de professores, de sábios, de escri-
tores. Aspecto fugaz, sempre secundário na sua personalidade.
Mesmo aqueles que anunciam os íntelectuaís dos séculos
seguintes ainda não o são. Um Alcuino é antes de mais um
alto funcionário, ministro da cultura de Carlos Magno. Um
Tradução de
MARGARIDA SÉRVULO CORREIA
2. a edição
9rodivQ
11
.~
('
OS INTELECTUAIS NA IDADE M~DIA NASCIMENTO DOS INTELECTUAIS
Loup de Ferrieres é sobretudo um abade que se interessa
pelos livros e que gosta de citar Cícero nas suas cartas.
Um homem cuja profissão seja escrever ou ensinar - e
de preferência ambas as coisas ao mesmo tempo -, um ho-
mem que profissionalmente tenha uma actividade de pro-
fessor e de sábio, em suma, um intelectual, esse homem s6
aparece com as cidades.
S6 é possível encontrã-lo no século XII. É evidente que a
cidade medieval não surge nessa época, no Ocidente, como
um inesperado cogumelo. Alguns historiadores vêem-na mes-
mo já perfeitamente constituída. no século XI, no.x: e não há
revista especializada que nos chegue que não traga consigo
, um novo renas cimento urbano - um pouco mais longínquo
no tempo.
Houve sempre, claro está, cidades no Ocidente; mas Os
«cadáveres» das cidades romanas do Baixo Império não
encerravam dentro das suas muralhas mais do que um pu-
nhado de habitantes, em torno de um chefe militar, admi-
nistrativo ou religioso. Cidades episcopais sobretudo, não
agrupavam senão um magro laicado em redor de um clero
um pouco mais numeroso, sem outra vida económica para
além de um mercadozinho local destinado às necessidades
quotidianas.
Desenvolvem-se, claro está, embriões de cidades, os «por-
tUS)),aut6nomos ou arrimados aos flancos das cidades epis-
copais ou dos «burgos» militares, a partir do século x, talvez
do IX, como resposta ao apelo do mundo muçulmano que
reclama para as suas enormes clientelas urbanas - de Da-
masco, de Foustã.t, de Túnis, de Bagdade, de Córdova - as
matérias-primas do. Ocidente bárbaro: madeiras, espadas,
peles, escravos. Mas o fen6meno s6 atinge uma dimensão
significativa no século XII. Modificou então profundamente
as estruturas económicas e sociais do Ocidente e começou,
com o movimento comunal, a perturbar-lhe as estruturas
políticas.
A estas revoluções acrescenta-se uma outra - cultural.
A estas eclosões ou a estes renascimen,tosvem juntar-se um
outro - intelectual. É a história dos seus protagonistas, as
metamorfoses dos que lhes sucederam até ao final daquilo
a que se chama Idade Média, até um outro «Renascimento)),
que este livro se propõe esboçar.
Terá havido um renascimento carolíngio?
Se é difícil aceitar um verdadeiro renascimento urbano,
suficientemente denso, antes do século XII, poder-se-à negli-
genciar, no domínio da civilização, a época tradicionalmente
designada por renascimento carolíngío, finais do século VIII, •
primeira metade do século IX?
Sem chegar ao ponto de negá-Ia, de falar de pretenso
renascimento como certos historiadores, gostaria de lhe pre-
cisar os limites.
De renascimento, não tem nenhum dos traços quanti-
tativos que esta noção parece implicar. Se, por um lado,
melhorou a cultura dos filhos dos nobres, educados na escola
do Palãcío, dos futuros clérigos, educados em alguns grandes
centros monásticos ou episcopais, por outro lado, quase pôs
fim aos restos de ensino rudimentar que os mosteiros mero-
vingios espalhavam pelas crianças dos campos vizinhos. No
momento da grande reforma da ordem beneditina de 817,
inspirada ao imperador Luis o Piedoso por S. Bento de Aníane
e que consagra a introversão do monaquismo beneditino
primitivo, as escolas «exteriores» dos mosteiros são encer-
radas. Renascimento para uma elite restrita - numerlca~
mente muito fraca - destinado a dar à monarquia clerical
carolíngía um pequeno viveiro de administradores e de polí-
ticos. Os manuais republicanos de hist6ria francesa enga-
naram-se redondamente ao popularizarem um Carlos Magno.
aliás iletrado, sob o aspecto de protectorda juventude das
escolas e precursor de Jules Ferry.
12 13
l
OS INTELECTUAIS NA IDADE M1tDIA
Para lá do recrutamento para a direcção da monarquia
e da Igreja, o movimento intelectual da época caroUngia
não manifestava qualquer outro aspecto de apostolado ou
de altruísmo nem nos instrumentos que utilizou nem no espí-
rito que o infonnou.
Os magníficos manuscritos da época .são obras de luxo.
O tempo passado a escrevê-tos numa bela escrita - mais do
que a cacografia, a caligrafia é sinal de uma época inculta
em que a procura de livros é extremamente reduzida -, a
omamentã-los magnüicamente para o Palácio ou para algu-
mas grandes personagens laicas ou eclesiásticas, torna evi-
dente. que a velocidade de circulação dos livros é ínfima.
Mais ainda: não são reítos para serem lidos. Vão engros-
sar os tesouros das igrejas e dos particulares ricos. São um
bem económico, mais do que um bem espiritual. Alguns dos
seus autores, ao copiarem as frases dos antigos ou da Patrís-
tíca, não deixam de afirmar a superioridade do valor dos
seus conteúdos espirituais. Mas o leitor fica-se por esta afir-
mação. O que, aliás, não faz senão aumentar o valor material
do livro. Carlos Magno' vende uma parte dos belos manus-
critos que possui para distribuir esmolas. Os livros não
passam de baíxelas preciosas.
Osmonges que laboriosamente os escrevem nos scriptoria
dos mosteiros apenas secundariamente se interessam pelos
conteúdos - para eles, o essencial é a aplicação posta, o·
tempo consumido, as fadigas suportadas para os escreverem.
É obra de penitência que lhes fará merecer o céu. Aliás,
levados pelo gosto da avaliação contabílízada de mereci-
mentos e de castigos que a Igreja da Alta Idade Média foi
buscar às legislações bárbaras, medem em número de pági-
nas, de linhas, de letras, os anos de purgatório remidos ou,
pelo contrário, lamentam a falta de atenção que, ao saltarem
uma determinada letra, fará aumentar a sua estadia no purga-
tório. Deixarão aos sucessores O nome do diabrete especía-
14
NASCIMENTO DOS INTELECTUAIS
lizado em atormentã-los, o demónio Titivillus dos copístas,
que Ana.toleFrance voltará a encontrar.
Para esses cristãos, em quem dormita a barbárie, a ciên-
cia é um tesouro. É preciso guardá-lo com cuidado. CUltura
fechada, a par da economia fechada. O renascimento carolín-
gio entesoura em. vez de semear. Poderá existir um renas-
cimento avaro?
É por uma espécie de generosidade involuntária que.
apesar de tudo, a época carolíngía conserva esse titulo. Não
restam dúvidas de que o mais original e poderoso dos seus
pensadores, Jean Scot ÉrigEme,não teve qualquer audiência
no seu tempo e só veio a ser conhecido, compreendido e utili-
zadono século XII. Só então, com orenascimento do século
t~ xn, os manuscritos copiados nos scriptoria carolíngíos, a con-
\l ' cepção das sete artes liberais de Martianus Cappella, retórico
(Ij'V :)do século v, retomada por Alcuino, a ídeía por ele emitida da*:/ tronstauo studii - da substituição de Atenas e de Roma pelo
\~ ~ Ocidente, mais precisamente pela Gália, como centro de cíví-
~, lização -, todos estes tesouros acumulados serão repostos'y_ em circulação, vertidos no cadínho das escolas urbanas, absor-
~s, oomo última camada da contribuição da Antiguidade.
\:& :odernidade do século XII. Antigos e modernos;y
':-.'..) Os intelectuais do século XII terão tido o sentimento
,.'.;;r' \ .. autêntico de fazerem coisas novas, de serem homens novos?
; ...Y~~, E poderá haver renascimento sem a impressão de se renas-
(/ Y'\ cer? Pensemos nos renascentístas do século XVI, em Rabela1s.
,.1 Por isso, a designação de moderní para referirem os·
escritores da sua época é-lhes frequente, na boca ou sob a
pena. Moderno!, eis o que são e sabem ser. Mas modernos
que não discutem com os antigos; pelo contrário, imitam-nos,
deles se alimentam, trepam-lhes para os ombros.
15
OS INTELECTUAIS NA IDADE M.tDIA NASCIMENTO DOS INTELECTUAIS
«Não é possível passar das trevas da ignorância
para a luz da ciência - exclama Pierre de Blois-
a não ser lendo, com wn amor sempre mais vivo,
as obras dos Antigos. Ladrem os cães, grunhem os
porcos! Nem por isso deixarei de ser um seguidor
dos Antigos. Para eles irão todos os meus cuidados
e, todos os dias, a aurora me encontrará entregue
ao seu estudo.»
sem a qual não existe filósofo sequer de nome, ultra-
passa todas as outras pela dignidade que confere à
obra. Desvenda Virgilio ou Lucano e, qualquer que
seja a filosofia que professes, neles encontrarás meio
de a integrares. Nisso consiste, segundo a capacidade
do mestre e a habilidade e zelo do aluno, o proveito
da leitura prévia dos autores antigos. Era o método
seguido por Bernardo de Chartres, a mais pujante
fonte das belas-letras na Gália dos tempos modernos.»Eis o ensinamento de base que, em Ohartres, um dos
mais famosos centros escolares do século XII, era dado pelo
mestre Bernardo, segundo a tradição recolhida por wn aluno
ilustre - Jean de Salisbury:
«Quanto mais disciplinas se conhecer, tanto mais
profundamente seremos por elas Impregnados, tanto
melhor apreenderemos a justeza dos autores [anti-
gos] e melhor ensinaremos. Foram eles que, graças
à diacrisis que significa ilustrar ou colorir, a partir
da matéria bruta de uma história, dum. terna, duma
fábula, com o auxilio de todas as disciplinas e duma
grande arte da síntese e do condimento, ·fizeram da
obra acabada como que uma imagem de todas as
artes. Gramática e poesia combinam-se intimamente
e recobrem toda a extensão do assunto. Neste campo,
a Lógica, que traz consigo as cores da demonstração,
imprime as suas provas racionais no esplendor do
ouro; a Retórica, pela persuasão e brio da eloquência,
imita o resplendor da prata.' A Matemática, arreba-
tada pelas rodas da sua quadríga, passa. sobre os
trilhos das outras artes, deixando neles a infinita
variedade das suas cores e encantos. A Física, que
sondou os segredos da natureza, traz o contributo
dó encanto dos seus matizes. Finàlmente, o maís
eminente de todos os ramos. da Filosofia, a l1:tica,
E a imitação não seria servilismo? Encontraremos mais
tarde os entraves provocados pela admissão de marcas da
Antiguidade mal digeridas e mal adaptadas pela cultura oci-
dental. Mas no século XII como tudo isso era novoI
Se estes mestres que são clérigos, que são bons cristãos,
preferem como text-book Virgilio ao EcleSiastes e Platão a
Santo Agostinho, não o fazem apenas por estarem persuadi-
dos de que Virgilio e Platão contêm ensinamentos morais
ricos e que, por dentro da casca existe o miolo (não existirá
em maior quantidade nas Escrituras e na Patrfstica?); fazem.
-no porque, para eles, a Eneida e o Timeu são antes de mais
obras ctentiticas - escritas por sábios e apropriadas para
serem objecto de ensino especializado, técnico -, enquanto
as Escrituras e fi Patrístíca, que podem ser ricas em
matéria cientifica (o Génesis não será uma obra de ciências
naturais e de cosmologia, por exemplo?), o são apenas seeun-
dariamente ..Os antigos são especialistas que cabem melhor
num ensino especializado - o das artes liberais, das discipli-
nas escolares - do que a Patristica ou as Escrituras que
devem ser reservadas, de preferência, para a Teologia. O inte-
lectual do século XII é um profissional, com os seus materiais
- os antigos -, as suas técnicas - a principal das quais é a
imitação dos antigos.
16 17
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l
OS INTELECTUAIS NA IDADE M~DIA
Mas utilizados para irem mais longe, como os navios
italianos se servem do mar para irem até às fontes orientais
da riqueza.
É esse o sentido da famosa frase de Bernardo de Char-
tres que tanto eco obteve na Idade Média:
«Somos anões que treparam aos ombros dos
gigantes. Desse modo, vemos mais e mais longe do
que eles, não porque a nossa vista seja mais aguda
ou a nossa estatura maior, mas porque eles nos
erguem no ar e nos elevam com toda a sua altura
gigantesca [ ... ]»
o sentido do progresso da cultura, eis o que exprime esta
imagem célebre. Em resumo: o sentido do progresso da his-
tória. Na Alta Idade Média a história havia parado; a Igreja,
triunfante no Ocidente, realizara-a. Othon de Freysing declara,
retomando a concepção agostiniana das duas cidades:
«Apartir do momento em que, não apenas todos
os homens, mas mesmo os imperadores [salvo raras
excepções], se tornaram católicos, parece-me ter
escrito a história não de duas cidades mas, por
assim dizer, de uma única, a que chamo a Igreja.»
Falou-se já da vontade de ignorar o tempo, por parte
dos feudais - e com eles os monges integrados nas estru-
turas feudais. Guizot julgou ter chegado ao fim da história
com a vitória política da burguesia. No cenário urbano em
construção, onde tudo circula e se altera, os intelectuais do
século XII voltam a pôr em movimento a máquina da hist6ria
e definem antes de mais a sua missão no tempo: «Veritas,
filia temporis», disse ainda Bernardo de Chartres.
18
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NASCIMENTO DOS INTELECTUAIS
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o contributo greco-ãrabe
~ \Ij Filha do tempo, a verdade é-o também do-espaço geogrã-
, ríco.' As cidades são placas giratórias da circulação dos
homens, carregados de ideias como de mercadorias, local de
trocas, mercados e encruzilhadas do comércio intelectual.
Nesse século XII em que o Ocidente não faz mais do que
exportar matérias-primas - embora comece a despertar o
desenvolvimento textil- os produtos raros, os objectos de
valor vêm do Oriente, de 'Bizâncio: de "Damasco; de Bagdade,
de Córdova: Com as especiarias e a seda, os manuscritos
trazem para o Ocidente a cultura greco-ãrabe.
'.o árabe, de facto, é sobretudo um intermediário. As
obras deArístóteles, Euclides, Ptolomeu, Hip6crates, Galiano
haviam seguido para o Oriente os cristãos heréticos - mono-
fisitas e nestoríanos - e os judeus perseguidos por Bizâncio
e tinham sido legadas às bibliotecas e às escolas muçulmanas
que as receberam abertamente. Ei-Ias agora, num péríplo- de
retorno, que desembarcam nas praias da cristandade oci-
dental. É muito reduzido o papel dá.franja de estados latinos
do Oriente. Essa frente de recontros entre o Ocidente e o
Islão é sobretudo uma frente militar, de oposição armada,
a frente das cruzadas. Troca de golpes, não de ideias nem:
de livros. Raras são as obras que se infiltram através dessa
fronteira de combates. Acolhemos manuscritos orientais duas
zonas primordiais de cantacto: a Itália e sobretudo a Espa-
nha. Aqui,nem as permanências esporádicas dos muçulmanos
na Sicília e Calábria, nem as vagas da Reconquista cristã
conseguiram impedir as trocas pacificas.
Oscaçadores cristãos de manuscritos gregos e árabes
desíraldam as velas até Palermo, onde os reis normandos da
Sicília e depois Frederica II com a sua chancelaria trilingue
- grega, latina e árabe - animam a primeira corte italiana
renascentista; precipitam-se sobre Toledo, reconquistada aos
Infiéis em 1087,onde os tradutores cristãos já puseram mãos
à obra, sob a protecção do arcebispo Raimundo (1125-1151).
19
r
OS INTELECTUAIS NA IDADE MgDIA NASCIMENTO DOS INTELECTUAIS
Os tradutores a minha meditação. Indignei-me ao ver os Latinos
ignorarem a causa de uma tal perdição e a sua igno-
rância retírar-lhes o poder de a ela resistirem; porque
ninguém respondia, porque ninguém sabia. Fui então
à procura de especialistas da língua árabe, queper-
mitiu que esse veneno mortal inf.estasse mais de
metade do globo. Persuadi-os, à força de súplicas e
. de dinheiro, a traduzirem do árabe para o latím a
história e a doutrina desse infeliz e a sua lei a que
se dá o nome de Corão. E para que a fidelidade da
tradução seja inteira e nenhum erro venha falsear a
plenitude da nossa compreensão, juntei aos traduto-
res cristãos um sarraceno. Eis os nomes dos cristãos:
Robert de Chester, Hermann o Dálmata, Pedra de
Toledo; o sarraceno chamava-se Mohammed. Depois
de consultar a fundo as bibliotecas desse povo bár-
baro, esta equipa recolheu delas um grande livro que
publicou para os leitores latinos. Este trabalho foi
feito no ano em que fui a Espanha e em que tive
uma entrevista com o senhor Afonso, imperador vito-
rioso das Espanhas, ou seja, no ano do Senhor de
1141.»
Os tradutores, eis os pioneiros deste renascimento. O Oci-
dente já não entende o grego; Abelardo lamenta-o e exorta
as religiosas do Paracleto a preencherem essa lacuna, ultra-
passando dessa forma os hdmens no domínio da cultura.
A língua científica é o latim. Originais árabes, versões árabes
de textos gregos, originais gregos, são portanto traduzidos
quer por indivíduos isolados quer, mais frequentemente, por
equipas. Os cristãos do Ocidente fazem-se acompanhar de
cristãos espanhóis que viveram sob a dominação muçulmana
- os moçárabes: e também por judeus ou até por muçul-
manos. Assim se encontram reunidas todas as competências.
Uma dessas equipas ficou célebre: a formada pelo ilustre
abade de Cluny,Pedro o Venerável, para a tradução do Corão.
Tendo vindo a Espanha para uma visita de ínspecção aos
mosteiros da ordem de Cluny fundados à medida que avan-
çava a Reconquista, Pedro o Venerável foi o primeiro a con-
ceber a ideia de combater os muçulmanos, não no terreno
militar, mas no terreno intelectual. Para recusar a sua dou-
trina, é necessário conhecê-Ia- e esta reflexão, que nos pa-
rece de uma evidência total, é uma audácia nesse tempo de
Cruzada.
«Mesmo que se dê ao erro maometano o nome
vergonhoso de heresia ou o nome infame de paga-
nismo, de qualquer modo é necessário agir contra
ele, isto é, escrever. Mas os Latinos e sobretudo os
modernos, com o desaparecimento da cultura antiga,
seguiram o exemplo dos judeus que, no entanto,
admiraram outrora os apóstolos poliglotas e já não
sabem senão a lingua do seu país de origem. Por essa
razão lhes foi impossível conhecer a enormidade
desse erro e barrar-lhe o caminho. Por isso se infla-
mou o meu coração e me queimou um fogo durante
Referido a título de exemplo, o empreendimento de Pedra
o Venerável situa-se na orla do movimento de tradução de
que me ocupo. Não é ao encontro do Islão que caminham
os tradutores cristãos de Espanha, mas em direcção aos tra-
tados científicos gregos e árabes. S6 pela oferta de uma larga
contribuição, sublinha o abade de Cluny, foi possivel garantir·
os serviços de especialistas. Foi preciso pagar-lhes caro o
abandono momentâneo do trabalho profissional.
Que trouxe de novo ao Ocidente este primeiro tipo de
investigadores, de intelectuais especializados que são os tra-
dutores do século XII: um Tiago de Veneza, um Burgundio
20 21
l
OS INTELECTUAIS NA IDADE M~DIA
de Pisa, um Moisés de Bérgamo, um Leão Tuscus em Bizâncio
e no Norte de Itália, um Aristipo de Palermo na Sicilia, um
Adelardo de Bath, um Platão de Tivoli, um Hermann o DaI-
mata, um Robert de Chester, um Hugo de Santalla, um Gon-
disalvi, um Gérard de Cremona em Espanha? Preenche as
lacunas que a herança latina havia deixado na cultura oci-
dental: a filosofia e sobretudo as ciências. A matemática com
Euclides, a astronomia com Ptolomeu, a medicina com Hípó-
crates e Galiano, a física, a lógica e a ética com Arístóteles,
eis o imenso contributo destes operários. E talvez ainda mais
do que a matéria, o método. A curiosidade, o raciocinio e
toda a Logica Nova de Aristóteles: a dos dois Analiticos
(priora et posteriora), dos Tópicos, dos Elenchi (Sophistici
Elenchi) que vem juntar-se à Logica Vetus - a Lógica
Velha - conhecida através de Boécio, também ele em fase
de plena recuperação. Foi este o choque, o estimulante, a
lição que, ao cabo deste longo périplo pelo Oriente e por
Africa, o helenismo antigo comunicou ao Ocidente.
Acrescentemos-lhe o contributo propriamente árabe. A
aritmética com a álgebra de Al-Kharizmi - até que, nos
primeiros anos do século XIlI, Leonardo de Pisa faça conhecer
os algarismos ditos árabes, mas trazidos da índia pelos ára-
bes. A medicina com Rhazi - a quem os cristãos chamam
Rhazes: e sobretudo Ibn Sinà ou Avicena, cuja enciclopédia
médica ou Canon viria a ser o livro de cabeceira dos médicos
ocidentais. Astrónomos, botânicos, agrónomos - e mais do
que tudo isto, alquimistas que transmitirão aos latinos a
procura febril do elixir. E, finalmente, a filosofia que, a partir
de Arist6teles, constrói sínteses poderosas com Al Farabi e
Avicena. Com as obras, palavras como «algarismo», «zero»,
«álgebra», «logarítmo» são doadas pelos árabes aos cristãos.
ao mesmo tempo que lhes ensinam o vocabulário do comércio:
alfândega, bazar, totuiouk: (fondacco), gabela, cheque, etc ...
Assim se explica a partida de tantos sedentos de oonhe-
cimentos para a Itália e a Espanha, como esse inglês, Daníel
22
NASCIMENTO DOS INTELECTUAIS
de Morley, que conta ao bispo de Norwich o seu itinerário
intelectual:
•
«A paixão do estudo aíastou-me de Inglaterra.
Fiquei algum tempo em París. Aí, apenas vi selva-
gens instalados nas suas cátedras escolares com uma
grave autoridade; na frente, doís ou três escabelos
carregados de enormes obras que reproduziam as
lições de Ulpiano em letras de ouro; tinham penas
de chumbo na mão, com as quaís desenhavam nos
seus livros asteriscos e obelos. 1 A sua ignorância
obrigava-os a uma posição de estátua, mas fingiam
mostrar a sua sabedoria através do silêncio. Assim
que experimentavam abrir a boca, não se ouvia mais
do que um balbuciar de criança. Tendo compreendidO
a situação, reflecti nos meios de escapar a tais riscos
e de me entregar às «artes» que iluminam as Escri-
turas de maneira a não as saudar de passagem ou
a evitá-Ias por meio de atalhos. Por isso, como é em
Toledo que, nos nossos dias, o ensino dos Árabes,
que é constituído quase inteiramente pelas artes do
quadrivium, 2 é dispensado às multidões, apressei-me
a partir para lá a fim de escutar as lições dos mais
sábios filósofos do mundo. Chamado por alguns ami-
gos e convidado a regressar de Espanha, vim para
Inglaterra com uma preciosa quantidade de livros.
Dizem-me que nestas regiões se desconhece o ensino.
das artes liberais, que Aristóteles e PIamo estão vota-
dos ao mais profundo esquecimento em proveito de
Tito e de Seio. Foi grande a minha dor e, para não
ficar como um grego sozinho entre romanos, pus-me
a caminho em busca de um lugar onde pudesse
I Sinais transversais de que se serviam para marcar os erros.
I Ou seja, as ciências (N. do T.).
7-.
OS INTELECTUAIS NA IDADE MSDIA
ensinar e promover o desenvolvimento desse género
de estudos[ ... ] Que ninguém se impressione se, ao
tratar da criação do mundo,eu invocar o testemunho
dos fil6sofos pagãos e não dos Padres da Igreja,
porque, embora não figurem entre os fiéis, algumas
das suas palavras devem ser incorporadas no nosso
ensino, dado que estão impregnadas de fé. Também
a nós, misticamente libertados do Egipto, o Senhor
ordenou que despojássemos os egípcios dos seus
tesouros para com eles enriquecermos os hebreus.
Despojemos pois, conformes aos mandamentos do
Senhor e com a sua ajuda, os fil6sofos pagãos da
sua sabedoria e eloquêncía, despojemos esses infiéis
de maneira a enriquecermo-nos com os seus despó-
jos, adentro da fé.»
Daniel de Morley viu de Paris apenas à aspecto tradi-
cional, decadente, ultrapassado. Havia coisas diferentes em
Paris, no século XII.
A Espanha e a Itália não praticavam senão um primeiro
tratamento do material greco-árabe, esse trabalho de tradução
que vai permitir a sua assimilação por parte dos intelectuais
do Ocidente.
Os centros de incorporação do contributo oriental na
cultura cristã situavam-se noutros lugares. Os mais impor-
tantes, Chartres e Paris, rodeados pelos mais tradicionalistas
Laon, Reims, Orléans, estão numa outra zona, a de troca e
elaboração de produtos acabados, onde confluem o mundo
do Norte e o mundo do Sul. Entre o Loire e o Reno, na mesma
região em que o comércio e a banca se fixaram nas feiras
da Champagne, elabora-se essa cultura que vai fazer da França
a principal herdeira da Grécia e de Roma, como previra
Alcuino, como cantara Chrétien de Troyes.
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NASCIMENTO DOS. INTELECTUAIS
Paris: BabllóDia ou Jerusalém?
De todos esses centros, Paris, favorecida pelo crescente
prestígio da monarquia capetingia, é o mais brilhante. Mes·
tres e estudantes comprimem-se na Cité com a sua escola
catedral ou cada vez em maior número, na Margem Esquerda
onde gozam duma maior independência. Em redor de Saint-
-Julíen-le-Pauvre, entre a rua de Ia Boucherie e a rua de Gar-
lande; mais para leste, em redor da escola de c6negos de
Saínt-Víctor; a sul, pela encosta da montanha que, com a sua
outra grande escola, o mosteiro de Sainte-Geneviàve vem
coroar. A par dos professores regulares do Capitulo de Notre-
-Dame,c6negos de Saint-Victor e de Sainte-Genevieve, mestres
mais independentes, professores agregados que receberam do
Mestre de Teologia,em nome do' bispo, a licentia docendi
- o direito de ensinar - atraem alunos e estudantes em
número crescente para as suas casas particulares ou para
os claustros de Saint-Victor e de Saínte-Genevíeve que lhes
são abertos. Paris começa por dever a fama ao brilho do
ensino teol6gico, situado no vértice das disciplinas escolares,
mas rapidamente e sobretudo a esse ramo da filosofia que,
utilizando a fundo o contributo aristotélico e o recurso ao
racíocínío faz triunfar as capacidades racionais do espírito:,
a dialéctica.
- Assim, Paris é, na; realídade e simbolicamente, para uns
a cídade-tarol, fonte de todo o gozo intelectual, e, para os
outros o antro do diabo onde se misturam a perversidade
dos espírttos conquistados pela depravação filosófica e as
dissipações de uma vida entregue ao jogo, ao vinho, às mulhe-
res. A grande cidade é o lugar de perdição, Paris é a Babilónia
moderna. S. Bernardo grita a mestres e estudantes de Paris:
«Fugi do meio de Bab1l6nia, fugi esalvai as
vossas almas. Correi todos para as cidades do refú·
gio, onde podereis arrepender-vos do passado, viver
25
'I
em graça no presente e esperar com confiança o
futuro [quer dizer, nos mosteiros]. Encontrarás bem
mais coisas nas florestas que nos livros. Os bosques
e as pedras ensínar-te-ão melhor que qualquer mes-
tre.»
NASCIMENTO DOS INTELECTU.ATS
( Assim, por um curioso paradoxo, no momento em que
r os intelectuais urbanos retiram da cultura greco-árabe o fer-
i mento do espírito e os métodos de pensamento que virão a
\ caracterizar o Ocidente e a permitir a sua força intelectual
- a clareza do racíocínío, a preocupação do rigor científico,
a fé e a inteligência apoiando-se mutuamente - reclama o
espiritualismo monástico, no coração do Ocidente, o regresso
ao misticismo do Oriente. Mas, momento capital: os intelec-
tuais das cidades vão afastar o Ocidente dessas miragens
de uma outra Asia e duma outra Africa, as da floresta e do
deserto místicos.
E o próprio movimento de recolhimento monástico li-
berta o caminho ao desenvolvimento das novas escolas. O
concllio de Reims de 1131 proibe aos monges o exercício
da medicina fora dos conventos: Hip6crates tem o terreno
livre.
Os clérigos parisienses não escutaram S. Bernardo. Jean
de Salisbury escreve a Thomas Becket em 1164:
OS INTELECTUAIS NA IDADE MltDIA
E esse outro cisterciense, Pierre de Celles:
«Oh Paris, como sabes fascinar e desencantar as
almas! Dentro de ti, as redes dos vicios, as arma-
dilhas dos males e as flechas do inferno perdem os
corações inocentes [... ] Pelo contrário, feliz a escola
onde é Cristo que ensina aos nossos corações a pala-
vra da sabedoria, onde sem trabalho nem lições
aprendemos o método da vida eterna! Nela, não se
compram livros, não se paga aos professores de cali-
grafia, não existe a confusão das disputas nem a
complicação dos sofismas, é simples a solução de
todos os problemas e aprendem-se as razões de todas
as coísas.» «Fiz um desvio por Paris. Quando vi a abun-
dância de víveres, a alegria das pessoas, a conside-
ração de que gozam os clérigos, a majestade e glória
de toda a igreja, as diversas actividades dos filósofos,
julguei ver, cheio de admiração, a escada de Jacob
cujo topo chegava ao céu, percorrida por anjos que
subiam e desciam. Entusiasmado por esta peregri-
nação feliz, tive de confessar: .o Senhor está aqui
e eu não sabia. E veio-me ao espírito a palavra do
poeta: Feliz exílio, o que tem por morada este lugar.»
O partido da santa ignorância. opõe assim a escola da
solidão à escola do ruído, a escola do claustro à escola da
cidade, a escola de Cristo à de Arist6teles e de Hip6crates.
A oposição fundamental entre os novos clérigos das cida-
des e os meios monásticos - cula renovação, no século XII,
conduz, para lá da evolução do movimento beneditino oci-
dental, às tendências extremistas do monaquismo primi-
tivo - transparece na exclamação do cisterciense Guilherme
de Saint-Thierry, amigo íntimo de S. Bernardo:
«Os irmãos do Mont-Dieu! Trazem às trevas do
Ocidente a luz do Oriente e às frialdades das Gálias
o fervor religioso do antigo Egipto, a saber, a vida
solitária, espelho do tipo de vida celestíal.»
E o abade Philippe de Harvengt, cônscio do enriqueci-
mento trazido pelo ensino urbano, escreve a um jovem dis-
cípulo:
«Levado pelo amor da ciência eis-te em Paris e
encontraste essa Jerusalém que tantos desejam. É a
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c
OS INTELECTUAIS NA IDADE M~DIA NASCIMENTO DOS INTELEcTUAIS
morada de David ... do sábio Salomão. Uma tal afluên-
cia, multidão de clérigos se comprime ai que estão
em vias de ultrapassar a numerosa população dos
leigos. Cidade feliz, onde os santos livros são lidos
com tanto zelo, onde são resolvidos os seus compli-
cados mistérios graças aos dons do Espírito Santo,
onde há tantos professores eminentes, onde a ciência
teológica é tal que se podería chamar-lhe a cidade das
Belas Letras!»
Se ignoramos a ordem do próprio termo Goliardo, afas-
tadas as etímologtas fantasístas que o fazem derivar de 00·
liath,. íncarnação do diabo, inimigo de Deus, ou de gula, a
goela para fazer dos seus discípulos fanfarrões ou glutões»,
reconhecida a impossibilidade de identificação de um Golias,
fundador histórico de uma ordem de que os Goliardos teriam
sido os membros, restam-nos alguns pormenores biográficos
de determinados Goliardos, colectê.neas de poemas por eles
assinados individual ou colectivamente - Carmina Burana-
e os textos contemporâneos que .os condenam ou critica.r; ,".
C\; '. (.. "0\ ê.J
J ~ ,'.' . .I."t, {, ( ,( .; .•~,ç '~-f '- ..,,-
f:t·t!;: ,/:. ~;'.'!:A vagabundagemintelectual V-·! .:
Os Goliardos
Deste concerto de louvores a Paris ergue-se uma voz de
vigor singular: a de um estranho grupo de intelectuais, os
Goliardos. Para eles, Paris é o Paraíso sobre a terra, a rosa
do mundo, o bálsamo do Universo.
Paradisius mundi Parisius, mundi rosa, balsamun orbis.
Quem são estes Goliardos? Tudo concorre para esconder de
nós o seu rosto. O anonimato que recobre a maior parte, as
lendas que propositadamente puseram a correr sobre si mes-
mos, as que - entre muitas calúnias e maledicências - os
seus inimigos espalharam, e ainda as que foram forjadas por
eruditos e historiadores modernos, iludidos por falsas seme-
lhanças, tornados cegos por preconceitos. Alguns retomam as
condenações dos concüíos e dos sínodos e as de certos escri-
tores eclesiásticos dos séculos xn e XlII. Esses clérigos golíár-
dicos ou errantes são tratados de vagabundos, desavergonha-
dos, charlatães e bobos. Imaginam-nos boémios, pseudo-estu-
dantes, e ora são olhados com um olhar enternecido - é
preciso desculpar a juventude -, ora com receio e desprezo:
agitadores, preversores da Ordem, não seriam gente perigosa?
Outros, pelo contrário, vêem neles uma espécie de intelZi-
gentzia urbana, um meio revolucionário, aberto a todas as')
formas de oposição declarada ao feudalismo. Onde está ai
a verdade? , <,.
Que tenham constituído um meio onde a critica à socie-
dade estabelecida se desenvolvia com complacência não res-
tam dúvidas, De origem urbana, camponesa ou até nobre,
são antes de mais seres errantes, representantes típicos duma
época em que o surto demográfico, o despertar dó comércio,
a construção das cidades, fazem dar de si as estruturas
\ feudais, atiram para os caminhos e reunem nas encruzílhadas
\
que são as cidades, os marginais, os audaciosos, os infelizes.
~'~;iiii:~!~J9m~:i~::i~~::d:~:~~r~~~:~::~~~~:
tradicionais, essa fuga às estruturas estabelecídas. A Alta
1 Idade Média esforçara-se por vincular cada qual ao lugar que
lhe pertencia, à sua tarefa, à sua ordem, ao seu estado. Os
I Goliardos são evadidos. Evadidos, sem recursos, vão formar
i nas escolas urbanas esses bandos de estudantes pobres que
jvivem de expedientes, se fazem criados dos condíscípulosendinheirados, vivem da mendicidade, porque como dizEvrard o Alemão: «Se Paris é um Paraíso para os ricos, é para
i os pobres um pântano ávido de presa» e lamenta a «Paristana
I [ames», a fome dos estudantes parisienses pobres.
"'-- Por' vezes, para ganharem a vida, tornam-se jograisou
bobos, e dai, sem dúvida, o nome por que são frequentemente
28 29
..•• ~ •..• "' __ W_, ~
......~
OS INTELECTUAIS NA IDADE MJ!:DIA
tratados. Lembremo-nos, no entanto, de que a palavra joeu-
lator, de jogral, é o epiteto lançado, na época, à cara de todo
o individuo considerado perigoso, que se pretende afastar
da sociedade. Um joculator é um «vermelho», um rebelde ...
Esses estudantes pobres, que nenhum domicilio fixo
prende, nenhuma renda eclesiástica ou beneficio amarra,
partem portanto à aventura intelectual, seguindo o mestre
que lhes agradou, acorrendo em direcção àquele de quem
se fala, respigando de cidade em cidade os ensinamentos nelas
ministrados. ~~ vagabundage~JUltil
Uo c~:rac~~~:~, ~~~m, d~século ~ Contribuem-para
lhe dar .um aspecto aventureiro, espontaneísta, ousado. Mas
não constituem uma classe. De origem diversa, têm ambições
diversas. Escolherám, evidentemente, o estudo e não a guerra.
Mas os seus familiares foram engrossar as fileiras dos exér-
citos, as tropas das Cruzadas, vão pilhando pelas estradas
da Europa e da Asia, vão saquear Constantinopla. Se todos
os criticam, alguns, talvez muitos, sonham identificar-se com
os criticados. Se Hugo d'Orléans, dito o Primaz, que ensinou
com sucesso em Orléans e Paris onde adquiriu uma repu-
tação de cara-de-sonso que ínspírou o Primasso do Decâmc-
ron, parece ter levado sempre uma vida desprovida de dínheí-
ro, conservando ainda assim um sentido de humor sempre
pronto, o Arquipoeta de Col6nia vive a expensas de Reinald
von Dassel, prelado alemão que foi arquí-chanceler de Fre-
derico Barba Roxa, a quem cumula de lisonjas. Serlon de
Wilton lígou-se ao partido da rainha Matilde de Inglaterra e,
arrependido, ingressou em Cister. Gautier de Lllle vive na
corte de Renrique II Plantageneta, depois na de um arcebispo
de Reims e morre c6nego. Sonham com um mecenas generoso,
uma renda eclesiástica gorda, uma vida larga e feliz. Parecem
'\ ;~erer, sobretudo, tornar-se os novos beneficiados da ordem
L:cial; mais do que alterá-la. .
o imoralismo
E contudo os assuntos dos seus poemas atacam aspera-
mente essa sociedade. É difícil recusar a' muitos deles o
carácter revolucionário que lhes tem sido atribuído. O jogo,
o vinho, o amor: eis a tríología que preferem cantar - o que
provocou a indignação das almas piedosas do tempo, mas
inclinou à benevolência os historiadores modernos.
Sou coisa ligeira
Como a tolha que é joguete da tempestade.
Como o bateZ vogando sem piloto,
Como uma ave errante pelos caminhos do ar,
Não estou amarrado .nem por âncora, nem por cordas.
A beleza das raparigas feriu o meu peito,
As que não posso tocar, possuo-as com o coração.
Censuram-me, depois, pelo jogo. Mas assim que o
[iogo
Me deixa nu, com o c~rpo trio, o meu espirito aquece.
É então que a minha musa compõe as suas melhores
[canções.
Em terceiro lugar, falemos da taberna.
Quero morrer na taberna
Onde os vinhos estiverem perto da boca do
[moribundo,
Depois os corpos dos anjos descerão cantando:
«Que Deus seja clemente para com este .bom
[ apreciador»
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