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A TRADIÇÃO RETÓRICA CLÁSSICA NAS MISSIVAS EPISCOPAIS DA ALTA IDADE MÉDIA: GREGÓRIO I A LEANDRO DE SEVILHA CÁSSIO PEREIRA LIMA En vérité, rien ne prédestinait Grégoire à jouer ce rôle. Marc Reydellet1 Este trabalho é fruto de algumas incursões pelo conjunto do epistolário episcopal do ocidente dos primeiros séculos da Alta Idade Média (IV a VI). A fim de caracterizar e delimitar o gênero em questão – o das missivas episcopais –, escolhemos por método a análise de um documento específico, qual seja, a carta que temos em mãos. Trata-se de um exercício pertinente ao trabalho do historiador, e conta com materiais e método compatíveis com a atividade que se pretende desenvolver. Assim, explica-se a grande quantidade de obras de referência relacionadas à análise de um texto relativamente curto, muito embora bastante denso e significativo para o período em questão – motivo que fundamenta nossa escolha por essa fonte. *** Gregório, o Grande, Papa (590-604), nasceu em Roma, por volta de 540, de ilustre família senatorial, tendo recebido uma educação aristocrática, em ambiente de sólida piedade e espírito cristão. Ingressou na carreira pública, tornando-se prefeito de Roma em 573, antes de fundar, por ocasião da morte de seu pai e graças à venda dos bens familiares, vários mosteiros na Sicília. Em Roma, fundou o monastério de Santo André. Retirado pelo Papa de sua vida ascética, foi enviado como núncio (apocrisiário) a Constantinopla, onde permaneceu por seis anos, de 579 a 585, período em que conhece e estreita amizade com o Bispo Leandro de Sevilha. Ao retornar, eleito abade de seu mosteiro romano, obteve em 590, contra a sua vontade, o cargo pontifício. Considerado doutor da Igreja, escreve Diálogos, obra hagiográfica, coletânea de histórias edificantes sobre os santos católicos. 1 REYDELLET, Marc. La Royauté dans la Littérature Latine de Sidoine Apollinaire à Isidore de Séville, Roma, École Française de Rome, 1981, p. 441. O título de “papa”, à época de Gregório I, tem ainda o sentido de Primus inter pares. Como Bispo de Roma, ainda depende de Constantinopla. Seu pontificado representa o ponto culminante da importância clerical da aristocracia romana, já antecipada pela atuação dos padres e Papas de sua própria família. Sua formação pessoal é marcada pela freqüência à biblioteca particular de seu parente, o Papa Agapito (535-536 d.C.), onde familiarizou-se com a obra de Santo Agostinho “de maneira só possível a um aristocrata”.2 O destaque conferido à influência particular de Santo Agostinho justifica-se pela importância do Bispo de Hipona na formulação das teorias do poder na Idade Média, conforme demonstrou H.-X. Arquillière em seu estudo consagrado ao “agostinismo político”3, do qual São Gregório Magno figura como um dos grandes expoentes. Ademais, ensina Christopher Dawson, “a obra de Santo Agostinho continua sendo uma parte inalienável do patrimônio espiritual do Ocidente. Foi [ele] o primeiro a dar uma orientação filosófica mais profunda ao gênio da Igreja ocidental”.4 Assim, “o caráter espiritual da Cidade de Deus é patente no pensamento de Agostinho. Não se trata aqui, contudo, de uma teologia para gerir teocraticamente a sociedade. A cidade terrestre possui a sua autonomia, [que] pode ser [...] tanto a oposição a Deus quanto o lugar onde se coloca em prática uma ordem de coisas segundo a sua vontade”.5 Por influência de Santo Agostinho, embora reconhecesse a supremacia da vida espiritual sobre o aspecto temporal da existência humana, a Igreja do Ocidente não deixou de atuar como força social no período de desordem que se seguiu à queda do Império. A própria atitude do papado, em especial a de Gregório I, reforça esta idéia de conciliação hierarquizada entre os dois âmbitos de atuação. Neste sentido, a correspondência de Gregório ajuda a esclarecer a origem do poder temporal do papado. Os escritos informam que “a Igreja possui considerável patrimônio, recursos econômicos de monta e beneficia-se de donativos. O papado é o maior proprietário da Itália. Outro fator favorável: inexiste um poder civil em Roma. É o Papa quem socorre a população menos favorecida [distribui trigo aos pobres], protege 2 BROWN, Peter. O Fim do Mundo Clássico – de Marco Aurélio a Maomé, Lisboa, Editorial Verbo, 1972, p. 140. 3 ARQUILLIÈRE, H.-X. L’Augustinisme Politique, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1972. 4 DAWSON, Christopher. Historia de la Cultura Cristiana,México, Fondo de Cultura Económica, 1997, p. 204. 5 MARTINS, Antônio Henrique Campolina. A Cidade de Deus. In: Revista Política (Vol. 6, Número 2, Novembro/2003) – http://www.eticaefilosofia.ufjf.br/6_2_campolina.htm. os prisioneiros e os escravos, aprovisiona e defende a cidade contra as invasões. Torna- se a única força capaz de se opor aos lombardos. De tudo isso lhe advém grande prestígio. O Papa é o senhor da cidade e o único representante do Império. A Igreja, a herdeira da auctoritas de Roma”.6 “Daí que - explica C. Dawson -, a nova civilização que começou a surgir lenta e penosamente na primitiva Idade Média foi em um sentido muito especial uma criação religiosa, pois, de fato, estava fundada em uma unidade eclesiástica e não política”.7 Resultou do agrupamento de diferentes povos e culturas em torno de uma mesma tradição religiosa e eclesiástica. “Enquanto no Oriente a unidade imperial incluía tudo e a Igreja era essencialmente a Igreja do Império, no Ocidente, a Igreja tornou-se uma sociedade universal e o Estado era débil, bárbaro e dividido. A única efetiva cidadania que restava ao homem comum era a de seu pertencimento à Igreja, que [contava com] mais profunda e vasta fidelidade que a lealdade [dispensada] ao Estado secular”.8 A propósito, a lealdade ao Império sempre foi maior no Oriente. Nas palavras de Peter Brown, “no Oriente há mais colaboradores do Império, e colaboradores mais prósperos, do que no Ocidente. Devido a isto, o entusiasmo pelo imperador ancora-se mais profundamente no Império do Oriente”.9 Em contrapartida, “aos olhos dos ocidentais, o Império do Oriente existia para proteger militarmente o Papado”10 e agir em benefício da Igreja Católica. Conforme explica Walter Ullmann,11 Gregório I tinha plena consciência das dificuldades de se contestar a “ideologia real-sacerdotal” fortemente arraigada em Constantinopla. Antes de chegar ao Papado, havia sido embaixador da Igreja Romana na Corte Imperial e, a partir desta experiência, conhecia a impossibilidade de se modificar o estado de coisas em favor da Igreja, frente a um cenário consagrado ao sistema de governo imperial. Ante o insuperável impasse em torno do exercício da soberania, não havia acordo possível entre o Papado e o Império. Todavia, se em 6 RIBEIRO, Daniel Valle. “A Sacralização do Poder Temporal – Gregório Magno e Isidoro de Sevilha”. In: SOUZA, José Antônio de C. R. de (org). O Reino e o Sacerdócio – O Pensamento Político na Alta Idade Média, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1995, p. 94. 7 DAWSON, Christopher. Historia de la Cultura Cristiana, México, Fondo de Cultura Económica, 1997, p. 207. 8 DAWSON, Christopher. Historia de la Cultura Cristiana, México, Fondo de Cultura Económica, 1997, p. 207. 9 BROWN, Peter. O Fim do Mundo Clássico – de Marco Aurélio a Maomé, Lisboa, Editorial Verbo, 1972, p. 45. 10 BROWN, Peter. O Fim do Mundo Clássico – de Marco Aurélio a Maomé, Lisboa, Editorial Verbo, 1972, p. 142. 11 ULLMANN, Walter. Historia del Pensamiento Político em la Edad Media, Barcelona, Editorial Ariel S.A., 1983, pp. 49 e segts. direção ao Oriente não se podia vislumbrar possibilidadede êxito, São Gregório Magno percebeu com sagacidade que não havia obstáculo à implantação de uma teoria pontifícia do poder nas regiões – ocidentais - imunes à influência e jurisdição do imperador. A formulação bem-sucedida deste projeto voltado para a afirmação da primazia das funções do Papado no Ocidente, constitui o feito político mais importante do Pontificado de Gregório Magno. Com efeito, diz W. Ullmann, “o realismo de Gregório I foi o requisito prévio indispensável para tornar realidade o governo papal na Idade Média. Com toda razão lhe foi conferido o título de “Pai da Europa”. A Europa Ocidental apareceu como conseqüência desta atividade papal. O Ocidente surgiu como conjunto cultural individualizado, embora fortemente impregnado de traços romanos, ou seja, latinos. As regiões mais longínquas da Europa, para onde afluíram missionários por sua determinação, seriam mais tarde os centros a partir dos quais missonários ingleses e escoceses cristianizariam a Europa nórdica e central”.12 Michel Senellart compartilha com H. Liebeschütz a posição de que “foi Gregório o Grande, e não Santo Agostinho, que criou a forma de pensamento da literatura política medieval”.13 Todavia, os historiadores do pensamento político em geral não lhe conferem o devido reconhecimento por duas razões apontadas por Senellart: 1) sua obra consiste, essencialmente, em comentários bíblicos, meditações morais e prescrições pastorais.14 Não escreveu nenhum tratado de caráter político; 2) é considerado, sobretudo, “o inventor da concepção ministerial do poder secular, ou seja, da doutrina que subordina o poder civil à autoridade espiritual, denominada por H.-X. Arquillière de ‘agostinismo político’”. Nesta visão, seria um representante da “negação do político” e, assim, o caráter antipolítico de sua obra “teria deixado uma profunda marca na teoria governamental dos séculos posteriores”.15 Neste sentido, W. Ullmann reforça a tese predominante de que, apesar da magnitude de seu empreendimento, Gregório I não acrescentou elementos novos à teoria papal, não obstante sua maestria no uso da linguagem, o que lhe permitiu “imprimir [...] idéias (já, então, muito desgastadas) no receptivo solo virgem do 12 ULLMANN, Walter. Historia del Pensamiento Político em la Edad Media, Barcelona, Editorial Ariel S.A., 1983, pp. 49/50. 13 Mediaeval Humanism in the Life and Works of John of Salisbury, p. 35 - citado por SENELLART, Michel. As Artes de Governar, São Paulo, Editora 34, 2006, p. 89. 14 Comentário sobre o Primeiro Livro dos Reis; Diálogos; Homilias sobre os evangelhos; Homilias sobre Ezequiel; Morais sobre Jó; Regra Pastoral. Cf. referências in Règle Pastorale, t. 1, p. 9 – cit. por SENELLART, Michel. As Artes de Governar, São Paulo, Editora 34, 2006, p. 90 15 SENELLART, Michel. As Artes de Governar, São Paulo, Editora 34, 2006, p. 90. Ocidente”.16 Na formulação de Gregório I, “a Igreja romana era a representação de todo “o Corpo de Cristo, que constitui a Igreja Universal”, e este corpo era formado por nações e reinos que reconheciam a Igreja romana por mãe e o Papa como pai”.17 Nas palavras de Georges Gusdorf, “se a mão assegura ao homem uma apreensão sobre as coisas, a escrita eleva esta apreensão a uma potência superior; ela abre à iniciativa humana o domínio das significações, multiplicando a eficácia do pensamento e tornando possível a ação à distância no espaço e no tempo”.18 Neste sentido, Ullmann assinala a conservação de praticamente todos os escritos de São Gregório Magno como uma das razões de sua enorme influência sobre a Europa Ocidental, não apenas em sua época, como também perante seus sucessores na Cátedra de São Pedro. Durante seu pontificado, aprofundou-se a separação entre Oriente e Ocidente e surgiu “uma civilização tão romano-latina quanto germânica, que demonstrava pouco apreço pela [...] cultura do Oriente. Enquanto o latim se convertia em língua [corrente na porção ocidental], o grego se conservou como idioma oficial e ordinário no Oriente”.19 Durante o pontificado gregoriano, o exercício da auctoritas papal se manifestava no recurso próprio à linguagem de governo. O descumprimento dos decretos e medidas papais acarretava a excomunhão, norma penal aplicável a reis e a clérigos. A estes últimos, cabia a transmissão dos decretos papais, numa clara afirmação da distinção hierárquica dentro da Igreja universal, com a correspondente desigualdade de funções. “Este princípio iria adquirir grande importância na alta Idade Média. [...] Gregório I denominou a corporação de todos os cristãos “Sociedade da Comunidade Cristã” (societas reipublicas christianae), a qual tinha que ser dirigida pelo sucessor de São Pedro através de funcionários intermediários idôneos”.20 S. Gregório Magno tem sido visto mais como um Papa da Idade Média ou como um soberano do que propriamente como bispo de Roma. Entretanto, na opinião do prof. Daniel Valle Ribeiro, “ele ainda está preso à Antiguidade; é o último Papa do período. 16 ULLMANN, Walter. Historia del Pensamiento Político em la Edad Media, Barcelona, Editorial Ariel S.A., 1983, p. 50. 17 ULLMANN, Walter. Historia del Pensamiento Político em la Edad Media, Barcelona, Editorial Ariel S.A., 1983, p. 50. 18 GUSDORF, Georges. Ciência e Poder, São Paulo, Editora Convívio, 1983, pp. 6/7. 19 ULLMANN, Walter. Historia del Pensamiento Político em la Edad Media, Barcelona, Editorial Ariel S.A., 1983, p. 51. 20 ULLMANN, Walter. Historia del Pensamiento Político em la Edad Media, Barcelona, Editorial Ariel S.A., 1983, p. 51. Sofre a nostalgia de Roma. Permanece ligado ao Império, política e sentimentalmente. Há em Gregório, porém, uma nova concepção de poder. Para ele, o poder é uma missão, não um atributo pessoal, um privilégio, e deve ser exercido em benefício da coletividade. Surge aqui a idéia de serviço. Essa idéia é nova e com ela Gregório rompe com a Antiguidade e torna-se um Papa medieval. Marc Reydellet percebeu muito bem que Gregório adquire a estatura de soberano espiritual do Ocidente porque emprega sua autoridade episcopal sobre toda a Europa, promove a reconquista espiritual dos anglos e se corresponde com monarcas para o benefício das igrejas locais”.21 Além disso, o pontificado de Gregório I reveste-se de importância especial para a Igreja devido à sua habilidade no trato com os novos reinos que se estabeleceram sobre as ruínas do Império Romano ocidental. Em fins do século VI, é notável o progresso de tais reinos em favor do cristianismo, porém, o período compreendido entre São Leão Magno (440-461) e Gregório I (590-604) é caracterizado pela instabilidade política e religiosa, não obstante a tendência de estabilização já verificada com Pelágio II (578-590). Na formulação gregoriana, em harmonia com a doutrina antiga, cabe ao Bispo de Roma zelar pelo depósito da fé e pela ortodoxia doutrinária. Sustenta, nos termos de Leão I (440-461), a universalidade como um atributo da Igreja e o primado papal como fundamento dogmático inscrito na Sagrada Escritura (“Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja...” Mt 16, 18-19). Em consonância com São Leão Magno, Gregório I afirma que o poder das chaves foi conferido apenas a Pedro. Com efeito, Leão Magno “reconhece a dignidade de todos os bispos, mas lembra a diferença de poder existente entre os apóstolos. Admite a unidade na dignidade, mas não na posição (ordo), de vez que os apóstolos tinham a mesma honra, mas não a mesma potestas. Na semelhança de honra existe uma distinção de poder. Ao elaborar uma concepção monárquica em que o Papa é o legítimo sucessor de Pedro [...] Leão Magno traça com firmeza os contornos do poder pontifício. Não se esquece,contudo, de suas obrigações de pastor, de sua sollicitudo, que, por sua qualidade, estende-se a toda a Igreja. O 21 RIBEIRO, Daniel Valle. “A Sacralização do Poder Temporal – Gregório Magno e Isidoro de Sevilha”. In: SOUZA, José Antônio de C. R. de (org). O Reino e o Sacerdócio – O Pensamento Político na Alta Idade Média, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1995, p. 96. primado fundamenta-se, portanto, na reunião da sollicitudo e potestas, dois atributos que se firmam nos três primeiros séculos da história do papado”.22 No mesmo sentido, o Papa Gelásio I (492-496 d.C.) defende que “o sumo pontífice recebeu diretamente de Cristo, na pessoa de São Pedro, a autoridade para dirigir a Igreja, depositária da Revelação salvífica. O imperador [...] exerce um poder cuja origem é divina [lembremos a Epístola de São Paulo aos Romanos, fundamento da teologia do poder durante toda a Idade Média: “Toda a alma esteja sujeita aos poderes superiores, porque não há poder que não venha de Deus e os que existem foram instituídos por Deus” (13, 1) – grifo nosso], mas que lhe foi concedido mediatamente pelo desígnio da Providência, de modo que, em razão da origem, o poder imperial [secular] é inferior espiritualmente em dignidade à autoridade pontifícia. O mesmo acontece quanto à finalidade. Os sacerdotes, em especial o santo Padre, são responsáveis pela salvação de todas as almas, mesmo a dos potentados do universo, e por esse motivo têm a obrigação moral de orientá-los e adverti-los a respeito do que é certo, segundo os ensinamentos do Cristianismo, e ainda de combater e denunciar o que é ilícito e injusto, de acordo com os princípios religiosos”.23 Ao governante secular, por sua vez, cabe cuidar dos aspectos materiais da vida terrena, manter a paz, a ordem e observar o cumprimento da lei e da justiça. Como conseqüência do projeto gregoriano voltado para o Ocidente, vale notar a diferença de tratamento dispensado aos reis ocidentais e ao imperador de Constantinopla. Aos primeiros chamava “filhos muito queridos”, enquanto o vocativo dirigido ao segundo era um lacônico “Senhor Imperador”... Observa-se, assim, um modo de tratamento em relação aos poderes seculares marcado pelo “respeito tradicional com relação ao Império e [pela] ascendência religiosa sobre as jovens realezas bárbaras”24. A propósito, vale destacar as palavras de Arquillière de que esta “ascendência religiosa [de Gregório I] foi um maravilhoso instrumento diplomático, às vezes mais eficiente que um exército, para deter os bárbaros.”25 22 RIBEIRO, Daniel Valle. “Leão I: A Cátedra de Pedro e o Primado de Roma”. In: SOUZA, José Antônio de C. R. de (org). O Reino e o Sacerdócio – O Pensamento Político na Alta Idade Média, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1995, p. 55. 23 SOUZA, José Antônio de C. R. de. “O Pensamento Gelasiano a Respeito das Relações entre a Igreja e o Império Romano-Cristão”. In: SOUZA, José Antônio de C. R. de (org). O Reino e o Sacerdócio – O Pensamento Político na Alta Idade Média, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1995, pp. 87/88. 24 ARQUILLIÈRE, H.-X. L’Augustinisme Politique, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1972, p. 121. 25 ARQUILLIÈRE, H.-X. L’Augustinisme Politique, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1972, p. 122. A observância da ortodoxia rendeu aos francos da Gália um apreço especial por parte de Gregório I. Entretanto, nesta oportunidade, nosso enfoque volta-se para a Espanha visigoda, em particular, para a análise de uma missiva escrita por São Gregório Magno a seu amigo Leandro, Bispo de Sevilha (também canonizado pela Igreja e irmão de Santo Isidoro, seu sucessor como metropolitano naquela cidade). Na Península Hispânica, mantém-se nos séculos VI e VII a tendência já verificada no século V, de exercício das atividades eclesiásticas primordialmente por membros da aristocracia local, com destaque para cidades importantes situadas ao sul, como Sevilha, Córdoba, Écija, Mérida, Calahorra, Lérida e também em Lugo e Toledo, principais centros administrativos da Península. “A despeito das perseguições pontuais realizadas por suevos e visigodos, antes da conversão de ambos, o prestígio do cristianismo junto às populações urbanas e a estabilidade das estruturas eclesiásticas garantiram, a médio prazo, sua vitalidade e a influência dos religiosos, de um modo geral, e do episcopado, em especial, sobre a sociedade [...] O âmbito eclesiástico permaneceu como esfera de atuação das elites autóctones”.26 Entre os fatores que contribuíram para a ampliação do poder episcopal nas cidades visigodas destacam-se “o controle dos núcleos de saber e o favorecimento monárquico”, sob a forma de “assistência material e [...] jurídica”.27 Na carta enviada a Leandro, Bispo de Sevilha, juntamente com uma cópia das Morais sobre Jó (Moralia in Job), Gregório I revela suas preocupações, narra as dificuldades que o afligem à frente do governo da Igreja, sem, no entanto, eximir-se do aconselhamento condizente à sua responsabilidade pastoral e direção espiritual. DOCUMENTO (Carta de Gregório I a Leandro, Bispo de Sevilha)28 Gregório a Leandro, bispo de Espanha (591) (título surpreendente, e não se sabe se foi escolhido pelo papa ou se se trata de junção posterior; Leandro metropolitano de Sevilha, sede maior de bispado; observa topoi literários antigos-medievais). 26 SILVA, Leila Rodrigues da. “Algumas considerações acerca do poder episcopal nos centros urbanos hispânicos – século V ao VII. In: Revista História – Questões e Debates n° 37 - “Instituições e Poder no Medievo”, Curitiba, Editora UFPR, 2003, p. 75. 27 SILVA, Leila Rodrigues da. “Algumas considerações acerca do poder episcopal nos centros urbanos hispânicos – século V ao VII. In: Revista História – Questões e Debates n° 37 - “Instituições e Poder no Medievo”, Curitiba, Editora UFPR, 2003, p. 76. 28 O conteúdo da carta encontra-se sublinhado e os comentários a ela estão inseridos entre parênteses. Carta endereçada ao bispo de Sevilha, Leandro (579-600), que Gregório conheceu durante uma estada em Constantinopla. Reveladora da relação entre o papa e a Igreja espanhola. A conversão de Recaredo ao catolicismo remonta a 586/7, e o papa não interfere muito nos negócios de uma Igreja tão independente (Concílios de Toledo). Espera que o rei seja reconhecido pelo imperador para endereçar-se diretamente a ele. (fórmula de introdução da carta: caput = cabeçalho; primeiro, vem o destinatário, seguido do cargo: “Leandro, bispo”; em seguida, o remetente: “Gregório, papa”: servus servorum Dei, que remete à idéia de serviço (o Papa visto como o primeiro entre os servidores de Deus; também aquele que serve aos servidores de Deus, ou seja a comunidade dos fiéis cristãos), é utilizado aqui já como sinônimo de papa (pensar na consolidação do primado de Roma: Gregório já é chamado papa entre seus pares) Ao reverendíssimo e santíssimo irmão, o bispo Leandro, Gregório, servidor dos servidores de Deus (servus servorum Dei). Com toda vontade, desejaria responder vossas missivas (comunicação relativamente escassa, devido à independência relativa da igreja espanhola; neste sentido, explica Fortunato de Almeida, “prevaleceu nas monarquias neo-cristãs da Espanha a disciplina que entre os visigodos se estabelecera, quanto à nomeação dos bispos pelo rei, contanto que o bispo de Toledo julgasse o eleito digno do episcopado”.29 ), se o trabalho do cuidado pastoral (expressão comum para designar sacerdote: pastor; remete a serviço/simbologia do bom pastor) não me esmagasse a ponto de que eu prefira verter lágrimas a dizer alguma coisa. (tragicidade típica do estilo clássico, do qual os pais da Igreja são herdeiros e também referênciaà “pesada responsabilidade de governar”, comum aos rectores (pastores e doutores da epístola de São Paulo30), nos termos expostos por Gregório I em sua Regra Pastoral, escrita em 591 d.C., que constitui um guia de conduta pastoral destinado igualmente a reis e a clérigos.31) Igualmente, vossa reverência compreendeu, atentamente, meu texto, quando negligentemente falo a quem amo veementemente (recursos retóricos para expressão da amizade característicos dos tratados clássicos; carta entre amigos em estilo superlativo, de louvor constante ao outro). Estou, com efeito, agitado pelas vagas do século (metáfora comum: mundo como mar, agitado, no qual está colocada a Igreja, a nau, que caminha para o porto seguro da salvação. No mesmo sentido, inserem-se as palavras de 29 ALMEIDA, Fortunato de. História da Igreja em Portugal – tomo l, Coimbra, Imprensa Acadêmica, 1910, p. 197. 30 Cf. 1 Co. 12, 4-11. 31 RIBEIRO, Daniel Valle. A Sacralização do Poder Temporal – Gregório Magno e Isidoro de Sevilha. In: SOUZA, José Antônio de C. R. de (org). O Reino e o Sacerdócio – O Pensamento Político na Alta Idade Média, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1995, p. 101. D. Antonio Marto, novo Bispo de Leiria-Fátima, proferidas em cerimônia celebrada na Sé de Leiria em 25 de junho de 2006, por ocasião de sua investidura nas funções episcopais daquela Diocese: “a barca é uma grande metáfora não só da condição humana, mas também da Igreja de todos os tempos que atravessa o mar tempestuoso da história, muitas vezes exposta à fúria dos ventos e das ondas. Ao sabor de forças externas e obscuras, a pequena barca mais se parece a uma casca de noz temerária, destinada a ser engolida”.32) tão fortemente que não vejo como conduzir ao porto a velha e perecida (vetustantem et putrescentem = envelhecente e apodrecente; mundus senescit; antigos/medievais = idéia de ruína sempre inerente, diferentemente do progresso iluminista. Aufklärung – noção de “devir” associada a progresso. Assim, explica Karl Löwith, “a interpretação da história é, em última análise, a tentativa de compreender o sentido do agir e do sofrer dos homens dentro dela”.33 Entretanto, ao contrário do Cristianismo, “a teoria pagã [antiga] é destituída de esperança, porque esperança e fé, por essência, estão ligadas ao futuro e não pode existir verdadeiro futuro se os tempos passados e vindouros são concebidos como fases equivalentes, dentro de retorno cíclico sem princípio nem fim. Baseados na contínua repetição de ciclos determinados, só podemos esperar a cega rotatividade de desgraça e felicidade – felicidade ilusória e desgraça real – mas de maneira alguma a eterna bem-aventurança; uma infinita repetição do idêntico, mas nada de novo, de decisivo e final”34. Além disso, “o conceito cíclico do tempo e da história é substituído [com Santo Agostinho] por uma concepção “aberta”, linear: a esperança toma o lugar da nostalgia; o valor do ato, a dignidade da decisão individual ativa e responsável anulam a primazia da repetição [...] a boa nova, característica do cristianismo, é a salvação da história, não a salvação pela história”35. Para o Cristianismo, portanto, “a história não é cíclica, como os Gregos a concebem, mas é bíblica e, portanto, linear. Agostinho parte de um acontecimento que ocorreu uma única vez na história, a Encarnação do Cristo. Este evento quebra a síntese do eterno retorno e inaugura um fim para a história. Não caminhamos para trás, sonhando com o paraíso perdido, mas para a frente, vivendo um tempo cheio de sentido 32 Site: http://www.zenit.org/ - edição de 26/06/2006. 33 K. Löwith, Significato e fine della storia, Milão, 1989, p. 23, apud FORTE, Bruno. Teologia da História – Ensaio sobre a Revelação, o Início e a Consumação, São Paulo, Editora Paulus, 1995, p. 19 34 K. Löwith, Significato e fine della storia, Milão, 1989, p. 189, apud FORTE, Bruno. Teologia da História – Ensaio sobre a Revelação, o Início e a Consumação, São Paulo, Editora Paulus, 1995, p. 13. 35 FORTE, Bruno. Teologia da História – Ensaio sobre a Revelação, o Início e a Consumação, São Paulo, Editora Paulus, 1995, p. 17. [...] o tempo da graça. A história não é encontro sem significado, mas o tempo da salvação”.36 Outras referências: Antigos – devir ligado à corrupção, declínio, ruína (phtôra) - depois da origem, idéia de declínio inevitável - Hesíodo: idade do ouro, prata, bronze, ferro (homens) - Políbio, historiador: regimes políticos, assimilados a organismos humanos, devem passar por 3 etapas que se repetem ciclicamente: crescimento, maturidade e declínio (anaciclose) - grandes historiadores romanos: Salústio, Tito Lívio, Tácito: olhar melancólico sobre seu tempo, exprimindo tristeza diante do declínio que começa - cristãos: desastres sobre o mundo romano anunciavam última hora - São Cipriano: crise do III - Santo Ambrósio: Batalha de Andrinopla (378) – morte do imperador Valente diante dos godos – Lc 10, 10;14: constata que desgraças anunciadas por Jesus se realizam sob seus olhos: guerra, peste, fome. “Nós somos testemunhas, é o fim do mundo... Eis o fim dos tempos... Nós assistimos ao fim do mundo” - São Jerônimo/Santo Agostinho: tomada/pilhagem de Roma pelos visigodos de Alarico (410): “Talvez as pessoas digam a si mesmas: ‘É chegado o dia do Julgamento’, tanto se produzem as desgraças, tanto se multiplicam as tribulações: eis que se cumpre tudo o que haviam anunciado os profetas; sim, é esse o dia do Julgamento” - Völkerwanderung: multiplicação das ocasiões para antever fim do mundo - desenvolvimento do pensamento de Agostinho ao longo dos 15 anos da escrita da Cidade de Deus: 415: “Certamente, o Império Romano sofreu golpes, mas não foi transformado; sofreu provas análogas em outros tempos, e levantou-se. Nós não devemos, portanto, desesperar; talvez ele se levante das provas de hoje: quem conhece, nesse ponto, a vontade de Deus?”) nave (metáfora comum para a Igreja/cristandade, ao longo de toda a Idade Média) que Deus, pelas vias ocultas de seu governo, deu-me a comandar (Gregório I e o primado de Roma: bispo de Roma comandando a nave; Pedro comanda a nave). Eis que as águas precipitam-se à frente, eis que os montes de águas espumantes inundam a lateral (o presente é sempre crítico; tragicidade; fatalismo; além 36 MARTINS, Antônio Henrique Campolina. A Cidade de Deus. In: Revista Política (Vol. 6, Número 2, Novembro/2003) – http://www.eticaefilosofia.ufjf.br/6_2_campolina.htm. das dificuldades do momento, trata-se também do estilo de expressão), eis que a tempestade golpeia-me. Em todas essas tribulações (noção comum), eu devo, ora manter o governo nesta adversidade (demonstrar firmeza; aqui também está presente a idéia de governo como condução, direção, numa referência à “velha imagem, usual desde Platão, do rei piloto que governa a nave do Estado, segue uma rota e busca chegar a um porto”37. O povo é visto como “um rebanho a apascentar ou uma família a dirigir”38. Em oposição a esta idéia tem-se a inovação do pensamento moderno que converte o governo em dominação. Agora, “o príncipe maquiaveliano não dirige mais, ele domina. Ele reina num mundo sem objetivos, entregue às relações de força; o governo perde sua função diretiva para se concentrar inteiramente sobre o poder”39. Está instaurada a “hostilidade entre o príncipe e seu povo”40. Importa apenas mantenere lo Stato, conforme o aforisma consagrado por Maquiavel), ora curvar a nave para esquivar-me das ameaças das águas (idéia de flexibilidade). Murmuro, sentindo que minha negligência faz crescer a sentina de vícios (auto-culpa; fórmula comum, mas não no papa; supõe grande relação de amizade, afeto), e que uma tempestadetalvez se aproxime (fatalismo), e que desde já o assoalho podre anuncia o naufrágio. Começo a gemer (ação incoativa = ingemisco), lembrando que perdi minha plácida costa onde eu me encontrava tranqüilo (referência a seu passado monástico, condizente com um temperamento místico e contemplativo, avesso às “agitações do mundo e [às] obrigações do governo”. Por força destas características pessoais, Gregório I enviara uma carta ao Imperador - a quem cabia, segundo o costume, ratificar a escolha do pontífice -, visando a declinar de sua eleição ao Papado. Entretanto, não obteve êxito e foi mantido como pontífice.41), suspirando observo a terra que os ventos contrários dos acontecimentos impedem-me de tocar (melancolia, saudosismo; outrora era sempre melhor). Se, portanto, tu (tratamento que faz alusão à amizade, e não a relação de hierarquia, como se poderia supor, já que Gregório é superior na hierarquia da jurisdição) me amas (relação de amicitia, que ocorre entre os pares nas sociedades clássicas, e entre pessoas da aristocracia; sentimento que faz alusão ao amor = diligentia, que pressupões escolha consciente; amizade entre iguais, como dois cônsules 37 SENELLART, Michel. As Artes de Governar, São Paulo, Editora 34, 2006, p. 21. 38 SENELLART, Michel. As Artes de Governar, São Paulo, Editora 34, 2006, p. 20. 39 SENELLART, Michel. As Artes de Governar, São Paulo, Editora 34, 2006, p. 21 40 SENELLART, Michel. As Artes de Governar, São Paulo, Editora 34, 2006, p. 20. 41 RIBEIRO, Daniel Valle. A Sacralização do Poder Temporal – Gregório Magno e Isidoro de Sevilha. In: SOUZA, José Antônio de C. R. de (org). O Reino e o Sacerdócio – O Pensamento Político na Alta Idade Média, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1995, p. 94. na república romana; ver Cícero, De amicitia), caríssimo irmão, estende a mim sobre estas águas a mão de tua oração; e a ajuda que tu me traze em minhas penas tornar-te-á, em recompensa, mais forte em tuas próprias penas (a vida são penas, sofrimento). Mas a palavra não é suficiente para exprimir-te a alegria que eu tive ao saber que nosso filho em comum (governantes seculares são filhos dos sacerdotes, que a eles se dirigem com autoridade paterna; metropolitano numa escala inferior e papa numa escala superior são pais de Recaredo; Gregório I, identificado com a realidade de seu tempo, assume a direção espiritual dos monarcas do Ocidente; “teve o mérito de elevar-se “acima das contingências e de propor aos seus contemporâneos uma concepção cristã do homem e do mundo na qual a reflexão sobre o poder ocupa lugar especial”42. A exegese prática de S. Gregório Magno transparece na sua teoria da realeza cristã”43 e remete à idéia do rex ideal, com fundamento na concepção moral do governante), o gloriosíssimo rei Recaredo, converteu-se, numa puríssima devoção (gloriosíssimo; puríssimo = fórmula superlativa sempre presente; reconhecimento superlativo da importância da conversão do rei, como forma de impulsionar a irradiação da fé católica mediante a conjunção de esforços de ambos os poderes com vistas à salvação das almas, nos moldes do agostinismo político. Vale lembrar que, na Espanha, os suevos se converteram ao cristianismo, em sua versão ortodoxa, em torno de 550 d.C e os visgodos, em 589 d.C., por ocasião da conversão de Recaredo), à fé católica (catolicismo romano x arianismo). Ao descrever-me seus costumes em vossa missiva (referência a carta anterior de Leandro), vós me fizestes amá-lo sem que eu o conhecesse. Mas conheceis as armadilhas do antigo inimigo (demônio, serpens = serpente), que conduz uma guerra mais dura contra seus vencedores: é necessário, portanto, que vossa santidade vele com uma atenção redobrada sobre o rei (necessidade da perseverança no cuidado pastoral dispensado ao rei, pois “os reis têm vocação à santidade [e] ... à realeza metafórica dos santos corresponde, em Gregório, a santidade prometida aos reis justos”44, que devem cultivar a humildade (humilitas) no exercício do regimen, tendo como aspiração a mais alta virtude), para que ele complete aquilo que começou e, completadas as boas obras, não de subtraia, sem cessar, pelos méritos de sua 42 REYDELLET, Marc. Gregoire le Grand: la royauté et l’ordre du monde. In: La royauté dans la litterature latine de Sidoine Apollinaire à Isidore de Séville. Roma: École Française de Rome – Palais Farnése, 1981, p. 442 – cit. por RIBEIRO, Daniel Valle. op. cit., p. 95. 43 RIBEIRO, Daniel Valle. A Sacralização do Poder Temporal – Gregório Magno e Isidoro de Sevilha. In: SOUZA, José Antônio de C. R. de (org). O Reino e o Sacerdócio – O Pensamento Político na Alta Idade Média, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1995, p. 95. 44 SENELLART, Michel. As Artes de Governar, São Paulo, Editora 34, 2006, p. 97. vida (vida privada do rei diz respeito aos destinos do reino; rei como primeiro católico do reino; rei e reino como indissolúveis), de respeitar a fé que ele reconheceu; e que, por suas obras, ele mostre ser súdito do reino eterno (submissão do poder temporal ao espiritual, “campos distintos que se completam para a plena realização de um objetivo comum, isto é, o de empreender o projeto divino da salvação. Desse modo, cabe [aos clérigos] conduzir o rebanho e [ao poder temporal: Imperador e reis] assegurar a paz à Igreja para que o “reino celeste esteja a serviço do reino dos céus”, o que seria, segundo a fórmula de Arquillière, “a concepção ministerial do Império cristão””45), a fim de poder passar, após muitos anos (vida longa ao rei), de um reino a outro (ênfase na categoria reino, e não império: na terra, prevalecem os reinos). Quanto à tripla imersão do batismo, não se pode dar mais verdadeira resposta do que aquela que vós mesmos percebestes (Leandro já escrevera para ele a respeito disso; concorda, mas ressalva), pois, no interior de uma mesma fé, nada contraria usos diferentes da santa Igreja. De nossa parte, a tripla imersão é um sinal dos três dias de sepultamento e, quando a criança sai pela terceira vez da água, exprime-se a ressurreição do terceiro dia. E pode- se também praticá-la para veneração da altíssima Trindade, mas nada se pode opor a que o batizado seja imerso apenas uma vez: já que há uma substância nas três substâncias, nada há de repreensível em imergir a criança na água do batismo ou três vezes ou uma só vez (unidade da Trindade), já que a tripla imersão pode designar a trindade das pessoas, a imersão única, a unidade da divindade. Mas se até agora os heréticos tiveram o costume de praticar o batismo pela tripla imersão (ressalta três pessoas em detrimento da unidade, com base na diferença de substâncias), eu não aconselho praticá-lo entre vós (pode mas não deve; tom de desaconselhamento, e não proibitivo; mas, em carta de amizade, podemos supor que assume força de proibição, pois o outro deverá, em nome da amizade, entender e acatar), a fim de evitar que, contando as imersões, eles dividam a divindade, e, conservando sua prática, não se vangloriem de ter vencido vossos costumes (necessidade de diferenciar-se dos arianos). Eu enderecei à vossa fraternidade, dulcíssima a mim (fórmulas p/ cartas de amizade: extremos louvores), os manuscritos cuja lista inseri abaixo (parte não conservada da carta). Aquilo que eu pude dizer sobre o comentário do bem-aventurado Jó, e que vós me pedistes para que enviasse, sob forma de homilia, com as palavras e as explicações apaixonadas, eu fiz o possível para confiá-lo à escrita, nesses livros que agora estão 45 RIBEIRO, Daniel Valle. A Sacralização do Poder Temporal – Gregório Magno e Isidoro de Sevilha. In: SOUZA, José Antônio de C. R. de (org). O Reino e o Sacerdócio – O Pensamento Político na Alta Idadecopiados nas bibliotecas (encomendou cópias a copistas). (...) (sabe-se, de fato, que em julho de 595 o papa endereçou a Leandro o manuscrito de seus famosos Moralia in Job, obra que começou a escrever durante sua permanência em Constantinopla) Que Deus te conserve em bom estado, reverendíssimo irmão dulcíssimo a mim. [Sancti Gregorii magni registrum epistularum, 1.I, ep. 41, ed. D. Norberg, t.I, Turnholt, 1982 (Corpus christianorum, Series Latina, 140), pp. 47-49.] Ainda que se afirme que Gregório I não foi um inovador e sim um “homem prático”, como diz G. R. Evans46, “o cristianismo lhe deve, após séculos de espera, a oportunidade de inspirar a vida política. Apoiado nas Sagradas Escrituras, e tendo por mestre Santo Agostinho, elabora a teoria sobre as atribuições do poder. De fato, suas idéias resultam de sua grande experiência como pastor e administrador. Antes dele a doutrina política estava “implícita”, refletia a observação que se fazia da realidade social. Era uma espécie de adaptação ou de transfiguração. Com ele, ao contrário, existe uma forma teórica de abordagem política. Vivendo no Ocidente e voltado para o Ocidente, a monarquia aparece em torno dele como a única forma de governo existente”.47 Prestou enorme contribuição à história do conceito de governo. Nas palavras de Michel Senellart, “Gregório foi o primeiro, desde a queda do Império do Ocidente, ocorrida em 476, a elaborar uma teoria cristã do regimen. Sua experiência de pastor e de administrador o levou a redefinir, com grande sagacidade, as regras da bona administratio regiminis. Doutrina que não pretendia a novidade, mas que constitui, sob muitos aspectos, um verdadeiro começo”.48 Em resumo, pode-se dizer que, “no pensamento gregoriano, o poder é uma missão, um dever, não um privilégio pessoal. Funda-se na noção de serviço”.49 Seu empenho em favor da afirmação da primazia papal busca “relacionar os acontecimentos Média, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1995, p. 97. 46 EVANS, G. R. The Thought of Gregory The Great, Cambridge, Cambridge University Press, 1986, p. vii (Preface). 47 RIBEIRO, Daniel Valle. A Sacralização do Poder Temporal – Gregório Magno e Isidoro de Sevilha. In: SOUZA, José Antônio de C. R. de (org). O Reino e o Sacerdócio – O Pensamento Político na Alta Idade Média, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1995, p. 99. 48 SENELLART, Michel. Op. cit., pp. 90/91. 49 RIBEIRO, Daniel Valle. A Sacralização do Poder Temporal – Gregório Magno e Isidoro de Sevilha. In: SOUZA, José Antônio de C. R. de (org). O Reino e o Sacerdócio – O Pensamento Político na Alta Idade Média, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1995, p. 99 das Igrejas locais ao Corpo Místico da Igreja Universal”.50 Sua personalidade é marcada pela “ austeridade, sem prejuízo da sensibilidade à devoção popular (como mostram as histórias milagrosas dos seus Diálogos) [e] o austero sentido da missão de bispo (revelado na sua Regra), fazem dele a imagem latina dos piedosos homens de Deus”.51 Não por acaso, em seu epitáfio foi chamado “Cônsul de Deus”52. O vocativo, para além de lisojeiro, designa, simultaneamente e sem contradição, o duplo aspecto de uma personalidade complexa: por um lado, enaltece a extração aristocrática do homem; por outro, ressalta a concepção ministerial do Papa, “servum servorum Dei”... 50 MOMIGLIANO, Arnaldo. As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna, Bauru, EDUSC, 2004, p. 194. 51 BROWN, Peter. O Fim do Mundo Clássico – de Marco Aurélio a Maomé, Lisboa, Editorial Verbo, 1972, p. 142. 52 BROWN, Peter. O Fim do Mundo Clássico – de Marco Aurélio a Maomé, Lisboa, Editorial Verbo, 1972, p. 142. BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, Fortunato de. História da Igreja em Portugal – tomo l, Coimbra, Imprensa Acadêmica, 1910. ARQUILLIÈRE, H.-X. L’Augustinisme Politique, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1972. BROWN, Peter. O Fim do Mundo Clássico – de Marco Aurélio a Maomé, Lisboa, Editorial Verbo, 1972. CANTOR, Norman F. 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