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O CANDOMBLÉ NAGÔ EM MACEIÓ: INTINERÁRIO DE UMA IDENTIDADE EM CONSTRUÇÃO Clébio Correia de Araújo* Resumo: O candomblé nagô na cidade de Maceió, conhecido como Xangô, chama a atenção por uma invisibilidade social que contrasta com a sua ampla dominância em todas as regiões periféricas da cidade. A partir da produção de entrevistas realizadas com antigos praticantes dessa religião afro-brasileira, indaga-se sobre o percurso identitário dessa manifestação religiosa diante da ostensiva hostilidade das classes dominantes e da pressão uniformizante do Estado e de um camdomblé elitizado de origem baiana. Abarcando a grande massa de miseráveis da cidade, o Nagô vê-se ante o desafio de transformar-se para sobreviver sem, no entanto, perder suas especificidades, ou seja, a meio caminho entre uma marginalidade tolerada ou uma invisibilidade total. Palavras-chave: Candomblé Nagô, identidades, Maceió Abstract: The camdomblé Nagô in the city of Maceió, known as Xangô, calls the attention for a social invisibility that contrasts with its wide dominance in all the peripheral regions of the city. From the production of interviews carried through with old practitioners of this afro-Brazilian religion, it is inquired on the identitary passage of this religious manifestation over the ostensive hostility of the ruling classes and the uniforming pressure of the State and of one elitizated camdomblé of Bahia origin. Involving a great mass of poor persons of the city, the Nagô is seen before the challenge to change itself to survive without, however, to lose its specificities, that is, the half way between a tolerated marginality or a total invisibility. Key-Words: Candomblé Nagô, identities, Maceió Introdução Este artigo objetiva uma breve comunicação acerca de nossas primeiras impressões relativas ao trabalho de campo empreendido como parte do Projeto Gira da Tradição, desenvolvido pela Fundação Municipal de Ação Cultural da Cidade de Maceió em parceria com o IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Para tanto, foram selecionadas 20 casas de cultos afro-brasileiros, observando-se o critério de antiguidade de suas lideranças nessas práticas religiosas. O projeto, que envolve jovens de diversos terreiros de Maceió em pesquisa de caráter participativo, acontece com a mediação da Casa de Iemanjá, casa religiosa considerada como referência na cidade, pelas diversas atividades de estudos, pesquisas e produção cultural que vem empreendendo, visando a valorização da chamada cultura negra. No momento atual, o referido projeto encontra-se, ainda, na fase de produção de entrevistas, fato que, conforme já indicamos acima, só nos permite aventar impressões iniciais acerca da temática em foco; impressões fruto das reuniões que empreendemos com o grupo participante após cada entrevista, debatendo os conteúdos colhidos, e também nas inúmeras observações e conversas informais com participantes das religiões afro-brasileiras com os quais entramos em contato durante esse percurso. Não podemos desconsiderar também a necessidade de cotejamento de boa parte das informações colhidas em relação a outras fontes, jornais, documentos oficiais etc., a fim de estabelecermos periodicidades mais precisas, bem como informações complementares que possam possibilitar uma melhor compreensão dos eventos relatados. Todavia, conquanto se considere o caráter introdutório deste artigo, vale salientar sua importância diante da quase absoluta ausência de estudos acerca do candomblé Nagô em Maceió no tocante à sua trajetória durante o Século XX, exceto as recentes iniciativas dos pesquisadores do LACC – Laboratório da Cidade e do Contemporâneo da UFAL – Universidade Federal de Alagoas. Para além dessas iniciativas, os poucos estudos existentes centram sua atenção sobre o fenômeno do Quebra, acontecido em 1912, ocasião em que foram destruídos vários terreiros de candomblé em Maceió, e violentamente reprimidas suas lideranças. Segundo Cavalcanti e Rogério (2008, p. 9) “[...] trata-se de uma realidade que reclama por ser compreendida em suas características históricas, sociais e simbólicas, ainda a merecer a devida atenção de estudiosos tanto sobre seu passado quanto acerca do presente.” Ainda segundo esses autores, contribuiu para isso justamente o evento do Quebra, ao qual nos referimos anteriormente, na medida em que “[...] dificultou a afirmação afro-religiosa na cidade por décadas e desencorajou o envolvimento com o tema visando o seu estudo.”(CAVALCANTI; ROGÉRIO, 2008, p. 9) É de conhecimento geral a existência de episódios semelhantes ao Quebra acontecido em Maceió, sobretudo no Estado vizinho, Pernambuco, com impacto direto no desenvolvimento das religiosidades afro-brasileiras. Entretanto, no caso Alagoano, as repercussões desse episódio parecem haver alcançado um nível mais profundo de repressão, provocando uma retração contínua na presença negra Maceioense, repercutindo em um quadro de invisibilidade e marginalidade cultural que se prolongará praticamente até os nossos dias. É em meio a esse processo que o Xangô maceioense irá definir suas estratégias de sobrevivência, negociando interna e externamente seus sentidos de pertencimento, suas margens, delineando os contornos de uma identidade forte, contida e de resistência, como era de se esperar em uma Alagoas de relações sociais mediadas historicamente pelo medo. Nesse sentido, para além da utilização do termo Nagô como referência de pertencimento a um maior purismo ritual, conforme constatado por Cavalcanti e Rogério (2008, p. 11), num processo de diferenciação interna aos cultos de origem alagoana, acreditamos que Nagô agregará também a marca da diferenciação em relação às tradições religiosas externas a Alagoas, em sentido cultural/territorial, marcando um contraponto à força impactante da Umbanda de origem carioca e ao candomblé Jêje de origem baiana. Por outro lado, a marca típica do Nagô será sem dúvida a sua trajetória de repressão e estigmatização pública sofrida, tendo no Quebra seu marco histórico primordial, e que o colocará na periferia das religiões afros diante do olhar do Estado. O pertencimento Nagô, em Alagoas, indicará, portanto, uma história viva de recolhimento, contenção e silenciamento, que permanecerá como resistência a essa periferização sofrida, e que nos parece ser a característica ainda predominante nos dias atuais. O que temos constatado em nossas visitas é que o sujeito Nagô é antes de tudo um desconfiado, fechado em um território de âmbito doméstico, praticante de um culto que se materializa na própria sala de visitas de sua casa. Essa postura, típica de uma tradição que sofreu as marcas da perseguição ostensiva, se por um lado mergulhou historicamente o Nagô numa quase invisibilidade social, por outro, fechado em si, possibilitou a forte demarcação de suas fronteiras identitárias, em um processo de diferenciação nítida em relação às demais tradições religiosas, que, inicialmente, parece contrariar a crença numa umbandização arraigada dessa tradição. Por hora, dadas as limitações desse artigo, nos limitaremos a esboçar uma possível etapização dessa trajetória identitária, levantando algumas possibilidades interpretativas que poderão ser aprofundadas em estudos de maior escopo. O período pós-quebra e o Xangô Rezado Baixo Baseada em afirmações de Gonçalves Fernandes (1941), difundiu-se a idéia de uma modalidade de prática do Xangô na Maceió do período pós-quebra denominada de Xangô Rezado Baixo. Para Cavalcanti e Rogério (2008, p.12), tratava-se de uma estratégia de sobrevivência através do atendimento com fins mágico-curativos, configurando-se uma prática [...] fortemente influenciada pela herança indígena, e no ambiente do Candomblé significou o trabalho de atendimento individualizado à clientela de adeptos mais que o ritual cerimonioso, público e coletivo. [...] Assim, a “ciência do índio” (cujo elementoé o emprego da fumaça nos rituais de cura) e não a crença do negro passaria então a ser correntemente incriminada. A mesa de consulta e não o salão da gira coletiva às divindades do panteão africano foi um registro constante dos anos duros do pós-quebra de 1912. (CAVALCANTI; ROGÉRIO, 2008, p. 12) Os depoimentos que colhemos nos levam a crer que esse processo de resistência haja se desenvolvido de forma diversa. Primeiramente não nos parece plausível a idéia de uma superposição ao rito Nagô, de características fortemente demarcadas, por um ritual com características típicas da denominada Jurema de origem indígena, em detrimento da gira, do culto aos Orixás. As informações levantadas, nos fazem crer que no espaço urbano a realização do culto aos orixás realmente haja assumido aspectos de discrição máxima tendo se disfarçado em mesa de caboclos, prática assimilada da Jurema, mas com a permanência do culto aos orixás, nesse caso, no espaço das matas ainda existentes em uma Maceió quase rural. Seu Ferreira, nascido em 1928 e iniciado ao Nagô em 1942 nos fala dessa estratégia, em entrevista que transcrevemos abaixo: - Na época em que o Sr. começou, então o culto da mesa era o mais forte dentro das casas? Sr. Ferreira: Era, era o mais forte... - Mas já cultuava Orixá... Sr. Ferreira: Já, já cultuava Orixá. É que orixá era uma parte que a gente só podia fazer quando era tempo de festa dele, né, e a mesa você escolhia um dia na semana, ou terça ou quinta sempre eram os dias principais pra fazer, e fazia as sessões de mesa... - No dia de sessão de mesa era aberto, as pessoas podiam olhar? Sr. Ferreira: podia olhar, podia entrar... - Que tipo de entidade é que trabalhava na mesa? Sr. Ferreira: Caboclo.. - E preto velho não? Sr. Ferreira: Tanto faz caboclo como preto velho, na mesa é igual...entendeu? Agora, é que muitas das casas que tinha sessões, quando terminava a mesa aí chamava Exu, parte de esquerda, de serviço, mas eu na minha casa nunca quis. Terminou a mesa, terminou a mesa. [...] - Então até o Silvestre (Governador Silvestre Péricles – 1947-1951) assinar esse documento (liberando o toque), não se podia tocar dentro da casa? Sr. Ferreira: Não se podia tocar nada. Depois disso começou a tocar, quem primeiro tocou foi Chico Possidônio e a Lucrécia... - Então até o Silvestre fazer isso, quando vocês queriam tocar... Sr. Ferreira: ... Ia pras matas, mas não tocava. Era só a cabaça...não podia bater que era pra o dono da mata não ouvir, né... pra o vigia não ouvir.... (Informação Verbal) O depoimento acima nos indica uma primeira etapa pós-quebra que se caracterizará, então, por uma dissimulação do culto aos Orixás, que convivia par e passo com os caboclos, inclusive com a possibilidade de Exu ser invocado logo após a saída dos caboclos, no mesmo ambiente. Por outro lado, na mata, o culto coletivo se mantinha, ainda que discretamente no toque do shere e do abê. Essa situação permanecerá até o governo de Silvestre Péricles, o caçula do clã dos Goes Monteiro, quando, segundo o Sr. Ferreira, tem início a organização da primeira federação de cultos afros em Alagoas, toda formada por remanescentes do Quebra, por ele denominados de negros da costa. Com base nos demais depoimentos, somos levados a crer que essa fase se configurará como de transição na reabertura dos terreiros ao toque público, onde, se por um lado, eram formalmente permitidas as cerimônias, por outro lado, a efetivação dessa permissão passava pelo crivo de uma polícia violenta, autoritária e preconceituosa que insistia em aterrorizar os praticantes do culto Nagô. Dessa fase, emergem como ícones, ou matrizes do desenvolvimento e ampliação do Nagô em Maceió, duas figuras às quais praticamente a totalidade dos entrevistados acaba se remetendo quando intentam reconstituir suas genealogias no culto. Trata-se de Tia Lucrécia e Tia Balbina que, juntas a outra famosa Ialorixá, Maria Omialê, remontam à virada do século XIX para o XX e parecem haver reinado plenamente no território da Ponta Grossa e Ouricuri, até meados desse último Século. O governo Militar e a redefinição da Federação e do Culto Nagô A primeira fase a que fizemos referência parece ser seguida de uma fase posterior caracterizada por uma maior abertura do culto, inclusive com a possibilidade de toques noturnos, que até a primeira fase aconteciam apenas no horário da tarde, indo no máximo até às 19:00 horas. Essa etapa parece ter início em plena ditadura militar, no governo de Lamenha Filho (1966-1971). Nesse período destaca-se a figura de Pai Júlio, figura de características sociais inusitadas no âmbito do candomblé Nagô, pois ao mesmo tempo em que era praticante de culto afro-brasileiro, freqüentava os círculos do poder, visto que trabalha como funcionário do Palácio dos Martírios, estando em contato direto com o Governador e seus auxiliares de primeiro escalão, tendo mesmo recebido o título de funcionário modelo dentre todos os outros do Estado. Pai Júlio narra que, de início, foi bastante discriminado por seus companheiros de serviço público em função de ser praticante da religião afro-brasileira. Essa situação parece perdurar até o ponto onde ocorrem duas transformações em sua vida. A primeira, ele migra do culto Nagô para a umbanda de origem carioca, recém chegada a Maceió através de sua mãe de santo, conhecida por Mãe Jurema. Aparentemente, a transferência para a umbanda implicará numa maior aceitação social em relação a Pai Júlio, uma vez que a própria Mãe Jurema, esposa de um capitão do Exército, parecia gozar de certo prestígio social possivelmente advindo do cargo ocupado por seu esposo e da proximidade com o culto Kardecista que, na época, era frequentado por militares de alta patente como certo coronel do Exército conhecido por Esmeraldino. Essa nova filiação, portanto, resultará numa redução do preconceito sofrido por Pai Júlio no interior do serviço público - e aí entramos na segunda transformação acima anunciada – culminando com sua transferência da Assembléia Legislativa para o poder executivo, no Palácio dos Martírios. Essa aproximação com o poder resulta na obtenção de certa proteção por parte dos militares à casa religiosa de Pai Júlio, situada no bairro do Trapiche. Nesse período se destaca a figura do coronel Adauto, do Exército Brasileiro, nomeado pelo governo militar como secretário de segurança pública e, ao mesmo tempo, comandante da Polícia Militar de Alagoas. Nossas primeiras impressões indicam que o referido coronel irá desenvolver função mediadora entre as casas de culto afro-brasileiro e o poder instituído, possibilitando uma maior abertura dos cultos, inclusive com a ampliação dos toques no horário noturno. Obviamente, não podemos deixar de considerar que esses fatos ocorrem em plena ditadura militar, podendo a aproximação de um coronel de patente com os cultos afros indicar necessidade de controle e acompanhamento do Estado àquelas associações religiosas, o que de fato parece ter confirmação se considerarmos o modo como Pai Júlio, nesse mesmo período, chega a presidente da Federação dos Cultos Afro-Umbandistas do Estado de Alagoas: - Essa foi a primeira Federação daqui? Pai Júlio: É, foi a primeira Federação. Federação dos Cultos Afro-Umbandistas do Estado de Alagoas. - Então o Sr. foi o fundador? Pai Júlio: Não, eu não fui fundador. Já existia, era o Amaro (Mestre Amaro). Quem botou lá... Era como se fosse uma ditadura ali. Era o Amaro, o Celestino.... Aí o coronel (Adauto), ele era Secretário de Segurança Pública e comandante da polícia no período revolucionário, que tinha poder, tinha muita força. Aí derrubou e me botou como presidente. Todos os diretores da Federação eram da polícia. - Então o coronel Adauto, nessa época, a influência dele foi que possibilitou essa mudança lá? Pai Júlio: Foi [...] - E esse interesse do Coronel Adauto em se envolver com os assuntos da Federação, era por quê? PaiJúlio: Porque o Coronel Esmeraldino explicou a ele, “que tinha que mudar, não tem eleição, não tem nada. Ele (Mestre Amaro) vive da Federação, comendo da Federação...” Aí ele disse “ta, vou mudar”, e me botou como presidente. (Informação ver bal) Como podemos observar a chegada de Pai Júlio à presidência da federação resultou de um verdadeiro ato de Estado que, não se limitou a isso, mas também nomeou toda a diretoria, que passou a ser composta por militares. Nesse sentido, a Federação, conduzida por Pai Júlio, passa a atuar na perspectiva do interesse ordenador do Estado e, mesmo, conjuntamente com este, obtendo um certo distensionamento do aparato repressor, em contraponto a um maior empoderamento da Federação/Estado no controle dos cultos e suas práticas: - E aí o fato da Federação ter se renovado com um corpo de militares na diretoria, em que sentido beneficiou a religião na cidade? Pai Júlio: Ah, melhorou muito, porque eu fui um presidente que tive força, eu tava com a polícia. - Então isso repercutiu na diminuição da perseguição aos terreiros, na época? Pai Júlio: Diminuiu - Aí as casas tinham que seguir que processo, tinha que pegar autorização na delegacia, como acontecia? Pai Júlio: Nas festas, por exemplo, “você vem, eu dava a autorização, você vai na delegacia e o delegado dava o visto.” Pronto, tocava tranqüilo. (Informação Verbal) Essa “nova” federação distinguia-se basicamente por se legitimar no próprio poder de Estado, enquanto a anterior, a da “ditadura”, obtinha sua legitimação com base no poder da tradição. Assim, eram tomadas medidas de disciplinamento de aspectos litúrgicos que não passavam pelo crivo da autoridade sacerdotal, mas pelo olhar reprovador externo ao culto, da sociedade em geral e do Estado, conforme constamos abaixo: Pai Julio: Naquela época havia despachos nos terreiros, nas encruzilhadas, nas ruas e tudo... eu baixei uma portaria, falei com o Coronel Adauto, eu baixei uma portaria e ele assinou uma portaria também, publicou no jornal, e eu proibi todos. Hoje você não vê mais na rua, como era antigamente, né..... - Então foi abolido. O Sr. acha que isso era negativo, era? Pai Júlio: É porque o povo reclamava, né. Iam reclamar na Federação. Aí eu disse ta, eu vou resolver esse problema.(Informação Verbal) Enfim, identificamos que essa fase estende-se até o início dos anos oitenta do século passado, quando se dá a redemocratização do país e a saída dos militares do poder. Nossas percepções iniciais dão conta de que nela foram “domesticados” os traços considerados mais primitivos do candomblé Nagô, como forma de possibilitar sua maior aceitação social. Esse processo parece haver sido reforçado numa terceira fase, da qual apenas daremos aqui uma breve notícia, que corresponde a uma ascensão do candomblé baiano denominado Jêje, mais atrativo por seus aspectos litúrgicos e estéticos e com maior capacidade de agregamento de membros da classe média em seus quadros. Introduzido em Alagoas nos anos 1970, o candomblé Jêje , inicialmente, ocupa uma posição periférica no conjunto dos cultos afros Maceioenses. Supomos que sua ascendência atual, pelo menos no plano político, se deva a sua defesa de um culto afro visto como religião e não como “seita”, como normalmente se auto-designam os Nagôs, sobretudo os mais antigos. Essa tensão parece se evidenciar num episódio ocorrido nos anos 1970, quando, por motivo de saúde, o babalorixá baiano Manuel Falefá vem a Maceió visitar os primeiros Jêjes em Alagoas, todos iniciados por ele na cidade de Salvador. Falefá critica arduamente as práticas Nagôs de seus iniciados, acusando-os ora de renegarem sua religião em função da adoração a santos católicos, ora de praticarem feitiçaria pela utilização de práticas como o banho de sangue, a exposição pública de caveiras de animais sacrificados, etc. Segundo Mãe Mirian, fora realizada uma reunião com sacerdotes da cidade de Maceió na Federação dos Cultos Afro-Umbandistas do Estado de Alagoas, para que fosse proferida palestra por Manuel Falefá. Nessa ocasião o embate foi inevitável, inclusive com troca de farpas e desconsiderações. O fato é que, incorporada essa visão pelos praticantes do Jêje em Maceió, vai ganhando força o discurso de uma religiosidade mais fiel ao patrimônio cultural dito africano, com grande ênfase em sua mitologia e demais saberes. Essa visão adquire dominância nos tempos atuais, reforçada pelo crescente movimento de valorização nacional da cultura negra, empreendido a partir da redemocratização do país, com forte poder apelativo às pessoas com maior nível educacional e econômico. A maior aceitação e penetração social do culto e das lideranças Jêjes em Maceió, parece haver repercutido enquanto contraponto à identidade Nagô, mais uma vez periferizada – agora no âmbito das próprias religiões -, como uma modalidade afro-religiosa mais simplória, como de fato são considerados os seus próprios sujeitos. Apresenta-se então o Jêje como um contraponto à simplicidade do culto Nagô - basicamente domiciliar e despojado de maiores requintes - face à sua suntuosidade litúrgica e sua capacidade de maior diálogo com a opinião pública em torno de um discurso religioso apresentado como expressão cultural componente da cultura negra. Considerações finais Decerto, muito há ainda para ser pesquisado e analisado acerca da força dessas falas emergentes em torno dos temas negritude e religião-afro, sobre a identidade Nagô em Maceió. O que observamos introdutoriamente, é que no passado ou no presente, o culto Nagô, a despeito dessas negociações simbólicas, em busca de condições que possibilitem um culto que goze de alguma tranqüilidade social para sua prática, tem mantido historicamente um núcleo identitário que lhe permite coerência e coesão, em meio a uma pluralidade cada vez maior de discursos sobre negritude alagoana. Esse patrimônio identitário, materializado em sua estética toda particular, no seu modo de cantar em yorubá, na sua relação toda específica com os santos católicos, na peculiaridade de sua forma de ocupação do espaço físico para a prática religiosa, na forma como seus membros mediam suas próprias relações sociais, continua vivo e praticamente desconhecido da maior parte dos alagoanos, invisibilizado que foi no passado, por um discurso racista e discriminatório, e também no presente, pela exigência social e midiática de uma religião afro-brasileira adequada ao consumo das classes média e alta. BIBLIOGRAFIA CAMPOS, Zuleica Dantas Pereira. Os afro-umbandistas e a resistência na ditadura do Estado Novo. Saeculum – Revista de História. n. 8/9, Jan-Dez/2002-2003, Disponível em http://www.cchla.ufpb.br/saeculum/saeculum08_09_art04_campos.pdf, acesso em 07/05/2009 CAVALCANTI, Bruno César; ROGÉRIO, Janecléia Pereira. Mapeando o Xangô: notas sobre mobilidade espacial e dinâmica simbólica nos terreiros afro-brasileiros em Maceió. In: CAVALCANTI, Bruno César; ROCHA, Rachel; FERNANDES, Clara Suassuna (Orgs.). Religiões afro-brasileiras. Maceió: NEAB/Edufal: 2008, PP. 09-30 FERNANDES, Gonçalves Fernandes. Sincretismo religioso no Brasil. São Paulo: Ed. Guaíra, 1941 RAFAEL, Ulisses Neves. Xangô rezado baixo: um estudo da perseguição aos terreiros de Alagoas em 1912. 2004. 274 f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RIBEIRO, René. Cultos afro-brasileiros do Recife: um estudo de ajustamento social. 2 ed. Recife: IJNPS, 1978
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