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ESTUDO SOBRE OS ELEMENTOS AFRO-BRASILEIROS DO CANDOMBLÉ 
EM LETRA E MÚSICA DE VINÍCIUS DE MORAES E BADEN POWELL: 
OS “AFRO-SAMBAS”1 
 
Frank Michael Carlos Kuehn 
performancetheorie@gmail.com 
 
Resumo: O propósito deste estudo é enfocar a parte da obra de Vinícius de Moraes relacionada com 
temas e identidade afro-brasileiros do candomblé. No exemplo dos assim chamados afro-ambas, 
compostos em parceria com o violonista Baden Powell e lançados em disco em 1966, serão examinados 
alguns dos aspectos históricos, musicais e religiosos das faixas. Segundo Moraes, seu mergulho nas raízes 
místicas e mitológicas negras representou algo como “a busca pela própria alma” e, para alcançar seus 
objetivos, não poupou esforços. Ao representar uma recriação peculiar que fusionou o samba carioca com 
elementos religiosos do candomblé, Moraes idealizou “uma forma de sincretismo novo” em que a 
referência a toques, símbolos e entidades do candomblé é uma constante. Mentor e catalisador de toda 
uma geração de jovens músicos e compositores brasileiros, poesia e criatividade de Vinícius de Moraes 
transformaram o samba e projetaram a música popular brasileira como nunca antes para o mundo. Em 
suma, os afro-sambas ocupam uma posição de destaque na história da música popular brasileira. 
 
Palavras-chave: Vinícius de Moraes; Baden Powell; afro-samba; candomblé; música popular brasileira 
(MPB); (etno)musicologia. 
 
 
Study on the elements of Afro-Brazilian candomblé practice in music and lyrics 
written by Vinícius de Moraes and Baden Powell: the “afro-sambas” 
 
Abstract: The purpose of this study is to focus on the part of the work of Vinícius de Moraes that is 
related to issues and identity of Afro-Brazilian candomblé practice and meaning. In the example of the so-
called “afro-sambas”, written in partnership with Brazilian guitarist Baden Powell and released on LP in 
1966, we examine some of its historical, religious and other conceptual aspects. According to Moraes, his 
immersion into the mystical and mythological roots of black Afro-Brazilian culture represented 
something like “the search for his soul”, and to reach his goal, Moraes spared no efforts. Representing the 
fusion of urban samba from Rio de Janeiro with “points” and issues of candomblé from northeast state of 
Bahia, Moraes envisioned "a new form of syncretism", in which the reference to symbols and entities of 
candomblé is almost everywhere. As a mentor and catalyst for an entire generation of young Brazilian 
musicians and composers, poetry, musicality and creativity of Vinícius de Moraes transformed the samba 
and disseminated Brazilian popular music around the world. In short, the afro-samba deserve a very 
distinguished position in the cultural history of Brazil, with meanings beyond the merely musical. 
 
Keywords: Vinícius de Moraes; Baden Powell; afro-samba; candomblé; Brazilian Popular Music (MPB); 
(etno)musicology. 
 
 
 
1
 Estudo desenvolvido por ocasião do Seminário em Etnomusicologia “Música e ritual: a etnomusicologia 
do Candomblé”, ministrado durante o período 2001/2 pelo Prof. Dr. Gérard Béhague (1937-2005), 
University of Austin, Texas, EUA, nas dependências da Escola de Música da Universidade Federal do 
Rio de Janeiro (UFRJ). Preliminarmente, foi apresentado no 3º Colóquio de Pesquisa em Música do 
Departamento de Pós-Graduação da Escola de Música da UFRJ, também 2002, sendo publicado apenas 
parcialmente nos Anais do evento (Kuehn, 2002, p.94-103). Observação: A presente edição digital 
representa a versão completa revisada da edição impressa de 2002, a qual está substituindo. 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
2 
 
 
1. Apresentação do problema 
Em seus Estudos sobre a poesia popular do Brasil, datados de 1888, o filósofo, 
sociólogo e historiador brasileiro Sílvio Romero (1851-1914) já tinha alertado sobre a 
necessidade de se realizar estudos científicos sobre o negro e sua cultura no Brasil. 
Escreveu Romero (1977, p.34): “É uma vergonha para a ciência do Brasil que nada 
tenhamos consagrado de nossos trabalhos ao estudo das línguas e das religiões 
africanas”. Hoje, no entanto, mais de cem anos depois, sabemos que o elemento negro 
está presente em praticamente toda a cultura, bem como no DNA brasileiro, enquanto, 
socialmente, a situação do negro continua um tanto problemática. 
Todavia, em fins do século XIX, durante o assim chamado período nativista, já 
havia algumas incursões artísticas de cunho romântico com elementos do negro e do 
indígena brasileiro como tema de seu enredo. Dessa vertente faziam parte os 
compositores Carlos Gomes (1839-1896), com a ópera O Guarani (1870), entre 
algumas peças de inspiração negra para piano solo; Alberto Nepomuceno (1864-1920), 
com o Batuque da Série Brasileira (1897); e Alexandre Levy (1864-1892), com o 
Samba da Suíte Brasileira (1890), em suma, compositores precursores das vertentes 
nacionalistas e modernistas que os sucederam no século XX. 
Os primeiros estudos científicos foram empreendidos a partir do início do século 
XX por um grupo de intelectuais, cujas investigações giraram em torno da formação 
histórica étnico-racial, cultural e social do Brasil. Entre estes figuram o etnógrafo e 
sociólogo Nina Rodrigues (1862-1906), com O animismo fetichista dos negros da 
Bahia (1900) e Os africanos no Brasil (1932); o antropólogo, folclorista e médico Artur 
Ramos (1903-1949), com O folclore negro no Brasil (1935), As culturas negras do 
novo mundo (1937), A aculturação negra no Brasil (1942) e Introdução à antropologia 
brasileira (1947); o sociólogo Gilberto Freire (1900-1987), com Casa grande e senzala 
(1933), principalmente, dentre outras de sua vasta obra literária; o folclorista Renato 
Almeida (1895-1981), com História da música brasileira (1922) e Formação moderna 
do Brasil (1923); a folclorista, poetisa e musicóloga Oneida Alvarenga (1911-1984), 
com Cateretês do sul de Minas Gerais (1937); o antropólogo francês Roger Bastide 
(1898-1974), com Religiões africanas no Brasil (1960); e o sociólogo e historiador 
Aurélio Buarque de Holanda (1902-1982), com Raízes do Brasil (1936) e Visão do 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
3 
 
 
paraíso (1958). De forma geral, a miscigenação brasileira foi tratada dentro de uma 
visão histórica idealizada (vide na figura do homem cordial) ou idílica (vide a sua 
pujança natural e tropical), uma visão em que as três raças formadoras do Brasil 
moderno convivem social e pacificamente sem maiores atritos ou problemas. Tais 
interpretações, contudo, não correspondiam à realidade e não se sustentaram com o 
tempo. Muito pelo contrário, sendo mitos, precisavam ser desmascarados. 
No tocante à arte popular, destacam-se os Estudos de folclore do compositor, 
pianista e regente Luciano Gallet (1893-1931); Os mitos africanos no Brasil (1937), 
Negros bantus (1947) e O quilombo dos Palmares (1947) do folclorista e historiador 
Edison Carneiro (1912-1972); Música de feitiçaria no Brasil e Ensaio sobre a música 
brasileira (1928) do folclorista, poeta e musicólogo Mário de Andrade (1893-1945); e 
Maracatus do Recife (1956) do compositor, regente e arranjador César Guerra-Peixe 
(1914-1993), um eminente pesquisador das raízes africanas na música brasileira e 
defensor das causas nacionais.A Semana de Arte Moderna de 1922 certamente representa um dos eventos de 
maior impacto histórico, em cujo desenvolvimento de novas linguagens artísticas 
também a cultura negra ganhou maior espaço. Segundo Mário de Andrade, os oito anos 
que se seguiram à “festa” da Semana da Arte Moderna foram “a maior orgia intelectual 
que a história artística registr[ou]”. Isto também vale para a música de concerto, pois a 
partir de 1922 muitos compositores brasileiros começaram a buscar inspiração nos mais 
diversos elementos afro-brasileiros, como em ritmos e temas religiosos do candomblé e 
da umbanda.2 Esta tendência foi mais intensa durante o período modernista brasileiro, 
principalmente entre os anos 1922 e 1950, mas que, por extensão de sentido, se 
desdobra ao longo de praticamente todo o Século Vinte. 
Existe mesmo uma grande variedadede compositores e obras a citar: Luciano Gallet 
(1893-1931), com a Suíte sobre temas negros brasileiros (Macumba, Acalanto e 
Jongo); Heitor Villa-Lobos (1887-1959), com Danças africanas para piano e orquestra, 
Bazzum para coro misto a cappella, Xangô e Estrela é lua nova das Canções típicas 
brasileiras; Lorenzo Fernandez (1897-1948), com o Batuque da Suíte para Orquestra e 
 
2
 Umbanda, uma união sincrética de elementos do candomblé, do catolicismo e do espiritismo de cunho 
kardecista. 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
4 
 
 
o Reisado do Pastoreio; Jaime Ovale (1894-1955), com os Três pontos de santo e 
Xangô – mencionados por Moraes na contracapa do LP dos afro-sambas como “uma 
experiência camerística muito bem sucedida e com temas negros do candomblé”; 
Camargo Guarnieri (1907-1993), com a Dança Negra para piano solo; Itiberê da Cunha 
(1846-1913), com Despertar do matuto, Acalanto ingênuo e Canção ritual de macumba 
da Série Brasileira; José Siqueira (1907-1985), com Macumba do pai José e Ogum 
(canções), Candomblé (oratório), Senzala (bailado) e Carnaval em Recife (peça para 
orquestra); Francisco Mignone (1897-1986), com Cântico do Obaluayé e Dona Janaína 
(canções), Batucajé e Babalorixá (poemas sinfônicos), Maracatu do Chico Rei e 
Congada da ópera O Contratador de Diamantes; e Radamés Gnattali (1906-1988), com 
o Jongo das Três Miniaturas para Orquestra. 
 
2. O aspecto religioso afro-brasileiro 
Os negros trazidos pelo comércio do tráfico negreiro ao Brasil vieram, em sua 
grande maioria, da região do Golfo de Benin, do sudoeste da Nigéria, e do norte de 
Togo. Outros vieram da região onde hoje se situam a Gana e a Angola. Daí, de acordo 
com a procedência, os idiomas, falados em sua terra de cativeiro foram basicamente o 
nagô na Bahia e o quimbundo com seus dialetos nos outros estados brasileiros. 
A exemplo de Cuba, onde recebeu o nome de “santeria”, também a música e os 
rituais religiosos introduzidos pelos africanos escravizados no Brasil têm sua origem em 
cosmogonias e práticas de magia oriundas da vida tribal africana. Os orixás – termo do 
iorubá que significa “divindade” – representam as divindades espirituais que se 
manifestam nos elementos da natureza (animismo). Por suas forças sobrenaturais, os 
orixás têm a função de intermediar entre os homens e o mundo sobrenatural, sendo que 
as cantigas e ritmos do candomblé – também chamados de “pontos” – as oferendas e as 
danças que acompanham o culto evocam a(s) divindade(s), à(s) qual/quais estão 
dedicado(s). 
Se os diferentes grupos étnicos se distinguiam pela linguagem, decorre que também 
na música e nos cultos deveria haver peculiaridades que os caracterizam ou diferenciam. 
De acordo com a sua distribuição geográfica e particularidades regionais, estes cultos 
afro-brasileiros receberem denominações diferentes: “candomblé” na Bahia, “xangô” 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
5 
 
 
em Recife e Alagoas, “tambor-de-mina” no Maranhão, “babacuê” no Pará, “batuque” no 
Rio Grande do Sul e “macumba” no Rio de Janeiro.3 Existe, contudo, certo consenso de 
que o candomblé baiano, em cujos locais se praticou ou ainda se pratica o nagô – como 
nas comunidades remanescentes dos quilombos, por exemplo – seja muito 
provavelmente a variante que melhor conservou as características originais africanas. É 
também muito comum o sincretismo religioso,4 em que os orixás são associados a 
santos católicos. Esta foi uma forma de o negro reagir ao domínio repressor do 
colonizador e da igreja católica romana. De qualquer forma, o fato de ambas as religiões 
venerarem imagens facilitou o desenvolvimento de uma forma genuinamente brasileira 
do sincretismo, pois a saída que o escravo encontrou para escapar das punições físicas 
severas foi disfarçar a sua crença para, num impulso de autopreservação, poder passá-la 
para as gerações futuras. 
 
3. Vinícius de Moraes 
Autor de uma obra de extraordinária eloquência poética, versatilidade e 
musicalidade, Marcus Vinícius da Cruz de Melo Moraes (1913-1980) também é 
chamado de “poeta da paixão” (Castello, 1997) ou, simplesmente, de “poetinha”. 
Depois de passar por Oxford, onde estudou Língua e Literatura Inglesa, Vinícius de 
Moraes entrou, em 1943, para o Itamaraty, em cuja missão diplomática chegou a 
cumprir diversas missões diplomáticas em Los Angeles, Paris, Montevidéu e Roma. 
Segundo a sua própria definição, foi “o branco mais preto do país”.5 Em verdade, a 
atração de Moraes pela cultura negra afro-brasileira já vinha de longa data, ou seja, 
exatamente de 1942, quando lhe tinha ocorrido a ideia de adaptar o drama grego do mito 
 
3
 O termo macumba se revela problemático ao remeter a diversos significados, entre outros, também aos 
de cunho pejorativo, dados pela maioria cristã. Desse modo, “macumba” pode designar desde “cultos 
afro-brasileiros e seus respectivos rituais” até “a designação leiga desses cultos quando supostamente 
praticam a magia negra” (Houaiss, 2001). Ou seja, dependendo do falante, “macumba” pode ter a 
conotação de “bruxaria” ou “feitiçaria” – “negra”, portanto, em sentido depreciativo. 
4
 “O sincretismo religioso consiste em se unir os pedaços das histórias míticas de duas tradições 
diferentes em um todo que permanece ordenado por um mesmo sistema” (Bastide apud Ortiz, 1980, 
p.100). Ou, como define Houaiss (2001): “Fusão de diferentes cultos ou doutrinas religiosas, com 
reinterpretação de seus elementos [...] síntese de elementos díspares, originários de diferentes visões do 
mundo ou de doutrinas filosóficas distintas.” 
5
 “Eu como exemplo / o capitão-do-mato Vinícius de Moraes / poeta e diplomata / o branco mais preto do 
país / na linha direta de Xangô, saravá, saravá!” (Samba da Bênção, de Vinícius de Moraes e Baden 
Powell). 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
6 
 
 
de Orfeu a ambiente social e topografia cariocas. A estreia de Orfeu da Conceição, no 
entanto, apenas ocorreu em 1956, no Teatro Municipal de Rio de Janeiro.6 As canções 
da peça foram compostas, em grande parte, por Vinícius de Moraes e seu na época 
ainda novíssimo parceiroAntonio Carlos Jobim (1927-1994). Naquele ano, Moraes 
estava com 43 anos, tendo já conquistado certo reconhecimento como poeta. Apesar 
disso, também lhe acompanhou certa fama em que, por vezes, se chocavam as imagens 
de poeta e de intelectual, de boêmio e de diplomata. Estando a serviço do Estado 
Brasileiro, figura e comportamento despojados de Moraes estavam transgredindo o 
protocolo e causar certo embaraço no meio diplomático brasileiro. 
Com a peça Orfeu da Conceição, Vinícius de Moraes “personalizou” o mito grego, 
dando-lhe uma feição brasileira. Ao mesmo tempo, como drama social e racial, o 
“universalizou” musicalmente. Apenas três anos depois da estreia, Orfeu da Conceição 
inspirou o diretor francês Marcel Camus para uma versão cinematográfica, intitulada de 
Orfeu Negro. Apesar da versão estereotipada e comercial, o filme foi aclamado 
internacionalmente e conseguiu a proeza de abocanhar, no mesmo ano de 1959, o 
Prêmio do Festival de Cinema de Cannes e o Oscar da categoria de Melhor Filme 
Estrangeiro. Nas décadas de 1960 e de 1970, o filme e as músicas A Felicidade e Se 
Todos Fossem Iguais a Você se tornariam sucessos duradouros que renderam a seus 
autores uma grande projeção para o exterior, impulsionando, desse modo, a 
disseminação internacional da Bossa Nova.7 Todavia, por ironia da história, tudo isso 
teve início quando Moraes: 
 
[A]companhava o autor de América Hispana [o escritor estadunidense Waldo Frank] em todas as 
incursões por favelas, macumbas [sic], clubes e festejos negros no Brasil que me sentia 
particularmente impregnado do espírito da raça [...] criou-se subitamente em nós um processo por 
associação caótica [...] como se o negro, o negro carioca fosse um negro em canga – um grego ainda 
despojado de cultura e do culto apolíneo à beleza, mas marcado pelo sentimento dionisíaco da vida 
(Caderno de Programa de Orfeu da Conçeição, 1956, apud Chediak, 1993). 
 
 
6
 Os cenários eram do arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012). 
7
 À parte do sucesso das canções da dupla Moraes e Jobim, vale lembrar que a música de maior sucesso a 
nível mundial foi a canção Manhã de Carnaval, de autoria de Luis Bonfá e Antonio Maria. 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
7 
 
 
Nesse relato há alguns pontos que chamam atenção. Antes de tudo, Moraes se 
revela um leitor atento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). Conhecido 
por sua crítica mordaz à cultura ocidental e ao cristianismo,8 o apolíneo e o dionisíaco 
constituíram para Nietzsche uma vez princípios primordiais que se complementaram na 
cultura grega da Antiguidade. Enquanto Apolo era a divindade da clareza, da forma, da 
harmonia, da beleza, da criação e da ordem, Dionísio era a divindade da vontade, da 
exuberância, da embriaguez e – da música. O culto a Dionísio consistia na assim 
chamada “festa do bode”, na qual as musas bacantes tinham uma função central. Em sua 
agitação orgíaca, as festividades do bode evocam associações com uma imagem 
arquetípica do carnaval. 
É, entretanto, particularmente interessante notar como Moraes se refere ao grego e 
ao negro, ou seja, ao elemento “apolíneo da beleza” e ao “dionisíaco da vida”, 
estabelecendo, de um lado, ainda que “por associação caótica”, um elo entre a filosofia 
estética de Nietzsche, como este a esboçou em sua obra inaugural de nome A origem da 
tragédia (1872 [1999]), e, de outro, a imagem do “negro carioca” (por que não o negro 
brasileiro?), como se este ainda “fosse um negro em canga” ou “um grego despojado de 
cultura”. Ou seja, o elemento negro estaria se entregando ao culto de Dionísio, diga-se 
ao lado vibrante e extático de celebrar a vida – no caso brasileiro representado, ainda 
que como clichê, pelo trinômio de samba, carnaval e futebol. 
O aspecto apolíneo, ao qual Moraes se refere, estaria nos elementos brancos, 
europeus. Suas marcas seriam a racionalidade, o cristianismo e as ciências modernas, ao 
passo que o elemento dionisíaco estaria na poesia, assim como no próprio empenho de 
Moraes em buscar o elemento negro como identidade complementar. Ainda que 
percebido como “obscuro”, o elemento dionisíaco representa o elemento afirmativo da 
vida. 
Todavia, face à associação de Moraes, não devemos incorrer numa interpretação 
equivocada que reduz a dualidade do conceito helênico a outro clichê – como, por 
exemplo, a dicotomia entre o “civilizador” (ou seja, de superioridade) e o “não 
civilizado” (de inferioridade) sugere. Nos anos 1930, Mário de Andrade já havia 
 
8
 Para Nietzsche, ao cultuar uma verdade artificial e pregar a submissão, o cristianismo levou a cultura 
ocidental a uma postura de abnegação da expressão vital humana. 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
8 
 
 
alertado com muita propriedade que: “Seria um engano imaginar que o primitivismo 
brasileiro de hoje é estético. Ele é social” (Andrade apud Neves, 1981, p.44). Resta 
saber se hoje em dia o postulado de Mario de Andrade ainda está em vigor ou não. 
Notamos na trajetória de Vinícius de Moraes uma nítida preferência por jovens 
músicos compositores, praticamente todos violonistas. Como mentor e catalisador de 
toda uma geração de grandes talentos, Moraes formava, nos anos de 1960 e 1970, o 
centro de uma rede artística e intelectual que revelou Antonio Carlos Jobim (n.1927), 
Baden Powell (n.1937), Carlos Lyra (n.1939), Edu Lobo (n.1943), Chico Buarque 
(n.1944), Toquinho (n.1946),9 e João Bosco (n.1946). Finalmente, só nos resta afirmar 
com Costa (2000): “Poesia e a musicalidade de Vinícius transformaram o samba, 
representando um divisor de águas na história da MPB”. 
 
4. A parceria entre Vinícius de Moraes e Baden Powell 
Na época do lançamento do disco, Vinícius de Moraes e Baden Powell já estavam 
compondo há alguns anos. Tudo indica que a parceria tenha se iniciado por volta de 
1962, ano que ficou conhecido como uma espécie de “clausura musical”, pois ambos 
teriam ficado trancados meses a fio no apartamento de Moraes para comporem os 
primeiros afro-sambas. 
Nas anedotas, esse período é geralmente lembrado como um dos mais inspirados da 
história da música popular brasileira. Diga-se de passagem, o apartamento estava 
situado no luxuoso condomínio do Parque Guinle, Laranjeiras, Rio de Janeiro, um 
projeto dos anos de 1950 do hoje lendário arquiteto modernista Lúcio Costa. De 
tamanho enorme e equipado com todo tipo e espaço de conforto, o apartamento tornou-
 
9
 O samba Na Tonga da Mironga do Kabuleté, composto em 1970 por Vinícius de Moraes e Toquinho, 
intriga principalmente por seu título-refrão que estaria “inteiramente em nagô” (Toquinho apud Chediak, 
1993). Apesar do tom descontraído e brincalhão da música, tinha para mim algo de misterioso. Decidi 
então procurar Toquinho por e-mail, que gentilmente retornou com a seguinte resposta: “Vamos falar um 
pouco sobre a canção ‘Na Tonga da Mironga’. Era uma época difícil, que dava vontade de mandar todo 
mundo para aquele lugar: ano 1970, ditadura, militares etc. Então, a Gesse, mulher de Vinícius, veio com 
essa expressão em nagô. Significado: ‘o último pentelho do saco’. Aproveitamos e fizemos a música, 
mandando tudo para ‘A Tonga da Mirongado Kabuletê’. E foi aquela brincadeira séria.” 
Com efeito, o relato de Toquinho revela uma forma (talvez peculiarmente brasileira?) de protesto popular 
que, durante a ditadura militar (1964-1985), conseguiu “resistir” e “driblar subversivamente” a censura, 
sem, contudo, apesar da repressão severa, perder o ânimo ao revestir-se de uma noção peculiar de humor. 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
9 
 
 
se famoso pelas muitas caixas de uísque escocês que a dupla lá teria consumido durante 
suas sessões (compositivas e compulsivas). 
Baden Powell de Aquino (1937-2000), por sua vez, pela dimensão musical e pela 
destreza instrumental que revelou tanto em termos de composição quanto de 
interpretação, enquadra-se na linhagem dos grandes violonistas brasileiros, como Sátiro 
Bilhar, Quincas Laranjeiras, João Pernambuco, Garoto e Bola Sete (Costa, 2000). 
Powell tinha estudado violão com o lendário violonista e professor Jayme Florence, 
o Meira (1909-1982), o mesmo que, nos anos de 1970, foi professor do violonista 
Rafael Rabello (1962-1995). Não demorou que Powell tinha desenvolvido no violão 
uma pegada de samba inconfundível, habilidade em que era capaz de reproduzir 
instrumentos de percussão tipicamente brasileiros, entre os quais principalmente a caixa, 
o repique, o berimbau e o tamborim. 
Powell afirma também ter estudado com o compositor, arranjador e saxofonista 
pernambucano Moacir Santos (1926-2006), o qual, nos anos de 1960, estava de 
passagem por Rio de Janeiro, de onde, anos depois, emigrou para os Estados Unidos: 
“Moacir me passava exercícios de composição em cima dos sete modos gregos, os 
modos litúrgicos do canto gregoriano. Foram esses exercícios que viriam a se tornar 
mais tarde os afro-sambas”, afirmou Powell (O Globo, Segundo Caderno, 24/03/2000). 
Vale, contudo, lembrar que, em outra entrevista, o violonista tinha afirmado a mesma 
pessoa ter sido o maestro Guerra-Peixe (cf. Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada, 
13/07/1999). De qualquer forma, trata-se aqui de uma afirmação, cuja veracidade não 
pôde comprovada.10 
Mais do que isso, chama atenção que no depoimento de Powell tinha surgido 
novamente “o grego”, desta vez, porém, em combinação com os “sete modos litúrgicos 
do canto gregoriano”. Considerando-se que, no âmbito da música popular, o emprego da 
terminologia costuma ser de muito maior liberdade, presume-se que Powell tenha se 
referido aos sete modos escalares Jônico, Dórico, Frígio, Lídio, Mixolídio, Eólio e 
 
10
 Ex-alunos de Guerra-Peixe, entre eles o sanfoneiro Sivuca e os professores Antônio Guerreiro e Maria 
Aparecida Ferreiro, desconhecem o fato de Powell ter estudado com Guerra-Peixe. Sivuca, além de ter 
sido amigo de Baden Powell, estudou com ele no fim dos anos de 1950; Guerreiro defendeu tese de 
mestrado sobre Guerra-Peixe; e Ferreiro foi monitora do maestro na Pró-Arte em meados dos anos 1960 
(vide Caiado, 2001). 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
10 
 
 
Lócrio, pois, ainda que compartilhem os nomes, os modos gregos e os modos 
gregorianos diferem em seu perfil. Além disso, os modos gregorianos são oito (e não 
sete). 
De qualquer forma, determinadas composições, em particular os assim chamados 
afro-sambas tinham destacado Baden Powell como compositor e instrumentista. Na 
contracapa do disco, Moraes (1966) conta “que a Bahia fez-lhe uma impressão enorme”. 
Powell teria ficado completamente fissurado ao escutar um disco de folclore baiano que 
Moraes tinha recebido de Carlos Coquejo, um amigo de Salvador, e que continha uma 
seleção de cantigas do candomblé, sambas-de-roda e cantos de capoeira, gravado in loco 
nos arredores de Salvador e em localidades do Recôncavo Baiano (Moraes, 1966; cf. 
Dreyfus, 2001, p.81-83). 
 
5. Os afro-sambas de Baden Powell e Vinícius de Moraes: o disco 
Ficha técnica: LP. Forma / Companhia Brasileira de Discos (CBD). Rio de Janeiro, 
1966. Arranjos e regência: César Guerra-Peixe. Participação do Quarteto em Cy 
(vocais). Produção e direção artística: Roberto Quartin e Wadi Gebara. Vocais: Vinícius 
de Moraes, Quarteto em Cy e coro misto. Sax-tenor: Pedro Luíz de Assis. Sax-barítono: 
Aurino Ferreira. Flauta: Nicolino Cópia. Violão: Baden Powell. Contrabaixo: Jorge 
Marinho. Bateria: Reisinho. Atabaque: Alfredo Bessa. Atabaque pequeno: Nelson Luiz. 
Bongô: Alexandre Martins. Pandeiro: Gilson de Freitas. Agogô: Mineirinho. Afoché: 
Adyr Raymundo. 
Todas as músicas são de autoria de Baden Powell e de Vinícius de Moraes, sendo 
gravadas nos dias 3, 4, 5 e 6 de janeiro de 1966, sob a supervisão direta de Roberto 
Quartin. 
 
Lado A 
1) Canto de Ossanha (Baden Powell / Vinícius de Moraes) samba 
2) Canto de Xangô (Baden Powell / Vinícius de Moraes) candomblé 
3) Bocoché (Baden Powell / Vinícius de Moraes) candomblé 
4) Canto de Iemanjá (Baden Powell / Vinícius de Moraes) candomblé 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
11 
 
 
 
Lado B 
5) Tempo de Amor (Baden Powell / Vinícius de Moraes) samba 
6) Canto do Caboclo Pedra Preta (Baden Powell / Vinícius de Moraes) samba 
7) Tristeza e Solidão (Baden Powell / Vinícius de Moraes) samba-
canção 
8) Lamento de Exu (Baden Powell / Vinícius de Moraes) balada 
 
O propósito central da análise que se segue é apontar os elementos sincréticos do 
samba e do candomblé na performance das faixas do disco e identificar o modo como 
estes se evidenciam poético e musicalmente. Para tal, apoiou-se na escuta do fonograma 
original como principal fonte para as conclusões. Da letra foram reproduzidos somente 
aqueles trechos que contêm referências diretas a elementos do candomblé, acrescidos da 
parte necessária para se garantir a compreensão do sentido e do (con)texto poético. 
 
5.1. Canto de Ossanha 
Tom: Ré menor. Compasso: binário. Ritmo: samba. Forma: A-B (refrão). Duração da 
faixa: 3:25. 
Ossanha, Ossãe ou Ossain – nome e grafia de cada divindade podem variar de 
acordo com a região e o falante – é o orixá da terra, da vegetação, das ervas e da 
medicina. As folhas das plantas medicinais são portadoras de axé, a energia cósmica ou 
força sagrada da natureza. Sendo evocado através das plantas e da magia do ritual 
religioso, Ossanha é o orixá portador do “axé”, ou seja, da força vital que permeia a 
natureza. 
Segundo a mitologia, existe uma forte rivalidade entre Ossanha e Xangô, de quem 
Ossanha tentou roubar Obá, uma de suas mulheres. Por isso, teve de enfrentar a ira de 
Xangô, o que lhe fez perder uma das pernas. Há também uma variante que atribui o 
motivo da rivalidade de ambos ao furto do fogo por Ossanha, que o teria dado aos 
homens (cf. www.mundodosorixas.com.br). Essa rivalidade transparece também no 
enredo da letra. Outrossim, explica o seu sentido, pois, à primeira vista, o texto parece 
um pouco obscuro ou confuso. Sendo sucedido pelo Canto de Xangô, essa rivalidade 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementosafro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
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também explica a ordenação das faixas, onde o Canto de Ossanha abre caminho para as 
outras “alas” do disco. 
O homem que diz “dou”, não dá, porque quem dá mesmo, não “diz” 
[...] Coitado do homem que cai no canto de Ossanha, traidor 
Coitado do homem que vai atrás de mandinga de amor 
[...] Amigo sinhô, saravá11 – Xangô me mandou lhe dizer 
Se é canto de Ossanha não vá, que muito vai se arrepender 
Pergunte pro seu orixá - amor só é bom se doer 
[...] amar (vai, vai) sofrer (vai, vai) chorar (vai, vai) dizer (vai, vai) 
 
A primeira parte da canção se desenvolve com base em uma linha cromática 
descendente no baixo. Esta linha de baixo constitui uma parte característica marcante da 
composição e não deve ser atribuída ao arranjo de Guerra-Peixe: 
Fá – Mi – Mi bemol – Ré. 
A linha de baixo é acompanhada por um encadeamento harmônico também 
cromático descendente: 
Dm/F – E7 – EbM7 – Dm. 
A parte “B” da canção cumpre a função de refrão e consiste de dois períodos de 
oito compassos cada. A modulação para o tom homônimo de Ré maior é repentina e 
contrasta fortemente com a primeira. Além dos improvisos da flauta transversa e do(s) 
saxofone(s), também o chocalho, o pandeiro e os demais instrumentos percussivos 
merecem destaque. 
No segundo período ocorre ainda outra modulação, desta vez para o tom maior uma 
terça menor acima (Fá maior). Tanto a linha melódica quanto a progressão harmônica 
de ambos os períodos são sequenciais, predominando, na harmonia, cadenciais do tipo 
IIm7-V7 e dominantes secundários. 
Percebemos que o arranjo de Guerra-Peixe é rico em contrapontos e contracantos 
em que as vozes, o naipe de sopros, o violão, o coro feminino e a percussão dialogam 
entre si. Canto de Ossanha certamente é o afro-samba mais conhecido, tanto no Brasil 
 
11
 Saudação – forma como os negros escravizados de nação banto pronunciavam a palavra portuguesa 
“salvar” ou “salve” (Houaiss, 2001). 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
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quanto no exterior. Em suma, com esta composição, Baden Powell tinha alcançado “o 
máximo de profundidade em sua carreira de compositor” (Moraes, 1966). 
 
5.2. Canto de Xangô 
Tom: Mi menor. Compasso: composto. Ritmo: inspirado em toques do candomblé. 
Forma: A-A-B-A. Duração da faixa: 6:29. 
O Canto de Xangô reverencia o antepassado mítico e fundador da nação nagô. De 
origem real, é o orixá do fogo, do raio e do trovão. É também o orixá da justiça, 
simbolizado pelo machado de dois gumes. Dotado de poderes extraordinários, Xangô 
corresponde, por analogia sincrética, ao lanceiro São Jorge. 
[...] 
Eu sou negro de cor, mas tudo é só amor [...] 
Xangô agodô, salve Xangô, meu rei Senhor 
Salve meu orixá [...] Xangô meu Senhor 
Saravá! Xangô agodô! 
[...] 
 
Composição e arranjo do Canto de Xangô parecem recriar um ambiente de terreiro. 
Nos ritos do candomblé, o agogô e os atabaques – distintos tanto em tamanho e afinação 
quanto em sua função – são indispensáveis para a realização do culto, fato que também 
esclarece porque estes instrumentos participam de praticamente todas as faixas do disco. 
O texto poético é simples, feito a um canto de louvor. Salvo algumas variações 
notáveis, o violão conduz a marcha harmônica e a linha de baixo com muita propriedade 
do início até o fim. 
A melodia é pentatônica, ricamente ornamentada por contracantos diafônicos, 
executadas pelo Quarteto em Cy e pela flauta transversa. Destacam-se, sobretudo, as 
variações rítmicas e a beleza embaladora do canto. Certamente não é por acaso que o 
Canto de Xangó é também a faixa mais longa do disco. 
 
5.3. Bocoché (Segredo) 
Tom: Ré maior. Compasso: composto. Ritmo: inspirado em toques do candomblé. 
Forma: A-A-B. Duração da faixa: 2:35. 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
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[...] 
Nhem-nhem-nhem [...] 
Menina bonita que foi para o mar (bis) 
Dorme meu bem que você também é Iemanjá 
[...] 
 
Nesta canção percebemos nitidamente que os elementos musicais que mais se 
destacam no candomblé estão na diversidade rítmica e percussiva, nesta faixa 
principalmente na performance do pandeiro, tocado à maneira do samba carioca, em 
combinação com o agogô, o afoxé e os atabaques oriundos dos terreiros baianos. 
Ainda que possua alguns trechos movimentados, como um todo, Bocoché bem se 
parece com uma cantiga de ninar. A temática gira em torno de uma certa “menina 
bonita”, do mar e de Iemanjá. Tendo como fundo uma história de amor, as referências 
são sobretudo simbólicas. Representando a água um elemento indispensável para a vida 
orgânica, o mar simboliza uma espécie de berço ou útero materno, onde tudo se origina 
e para onde tudo parece retornar. Com as palavras do poeta: “Onda que vai / onda que 
vem / é vida que vai / não volta ninguém”. 
O arranjo é notável no tocante à distribuição do canto entre o poeta e da(s) voz(es) 
feminina(s). O naipe de sopros e o fraseado homofônico remetem ocasionalmente ao 
jazz, em particular a timbre e modo de execução westcoast, um estilo da costa oeste dos 
EUA.12 Em suma, a simplicidade do arranjo e da ordenação dos instrumentos propicia 
momentos sublimes para o ouvinte. 
 
5.4. Canto de Iemanjá 
Tom: Ré menor. Compasso: composto. Ritmo: inspirado em toques do candomblé. 
Forma: A-A-B-A. Duração da faixa: 4:49. 
Nesta faixa, trata-se de uma cantilena que evoca a imagem de Iemanjá 
musicalmente. Sendo Iemanjá a mãe de todos os demais orixás, rege também a 
maternidade. Iemanjá é a orixá das águas salgadas (na África, também das águas doces). 
 
12
 Lembrando, em alguns trechos, os saxofonistas estadunidenses Zoot Sims e Gerry Mulligan, que 
formaram, nos anos de 1960, juntamente com Al Cohn e Lee Konitz, os Four Brothers. 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
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Muito popular em todo o Brasil, o culto a Iemanjá se separou dos terreiros, podendo ser 
facilmente encontrado em local e tempo distantes destes (como na virada do ano). 
Nas lendas, Iemanjá costuma seduzir e/ou confundir sua(s) vítima(s) através dos 
sentidos, arrastando-o(s) para as profundezas do mar. No sincretismo da umbanda, 
corresponde à imagem da Nossa Senhora (ou Virgem Maria). 
[...] 
Iemanjá, Iemanjá, Iemanjá, é dona Janaína que vem 
Iemanjá, Iemanjá, Iemanjá, é muita tristeza que vem 
[...] Se você quiser amar, se você quiser amor 
Vem comigo a Salvador, para ouvir Iemanjá 
A cantar 
[...] 
 
Arranjo e instrumentação suscitam a imagem mítica de uma sereia, cujo canto tem 
o poder de hipnotizar. Seu efeito pode ser comparado com o de um poderoso sonífero, 
capaz de vencer os mortais, como ocorre no épico de Homero. 
Ademais, destacam-se no arranjo de Guerra-Peixe: a nota pedal no grave, executada pelos saxofones; 
 e a riqueza rítmica da percussão, sobretudo do agogô, do sino e do 
berimbau. 
 
5.5. Tempo de Amor 
Tom: Dó menor. Compasso: binário. Ritmo: samba ligeiro. Forma: A-A-B-A. Duração 
da faixa: 4:29. 
Tendo “no samba a sua estrutura autenticamente negra” (Moraes, 1966), Tempo de 
Amor não tem nenhuma relação direta com o candomblé. Sem aqui poder tocar na 
questão da “autenticidade”, destacam-se, em Tempo de Amor, os seguintes elementos do 
samba especificamente carioca, como: 
 compasso binário; 
 destaque para a levada de samba no violão; executada com muita destreza, 
reproduz a marcação rítmica do tamborim; 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
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 modulação harmônica com bordões de samba-choro no violão; 
 canto diafônico (refrão), executado pelo solista e as vozes femininas; 
 marcação rítmica fortemente sincopada; 
 breques típicos do samba carioca; 
 batucada final (ou seja, tudo termina em samba). 
 
5.6. Canto do caboclo Pedra Preta 
Tom: Mi bemol. Compasso: binário. Ritmo: samba ligeiro. Duração da faixa: 4:35. 
Pedra Preta representa uma homenagem explicita ao caboclo ou indígena 
brasileiro. Também a viola está sendo homenageada. De tradição secular, a viola possui 
um timbre muito especial e pode ser encontrado em praticamente todo o interior do 
Brasil. 
[...] 
Pandeiro quando toca faz Pedra Preta chegar 
Viola quando toca faz Pedra Preta sambar 
[...] 
 
De acordo com a nota da contracapa, foi Powell que incentivou o poeta a compor 
esta canção. Talvez seja por essa razão que Moraes confere a Pedra Preta certa 
centralidade na contracapa do disco, onde se pode ler: 
 
Pedra Preta seria, ao mesmo tempo, o elemento perturbador do eterno casal em conflito, cujo 
conflito é a essência da vida em sua dinâmica. Só sei que me deixei completamente envolver pela 
sábia magia do candomblé baiano, e durante meses vivemos em contato com o seu grave e obscuro 
mundo (Moraes, 1966). 
 
Destacam-se a pegada de samba de Powell no violão, a grande versatilidade da 
seção rítmica e o arranjo contrastante de Guerra-Peixe. 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
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Na bateria, o estilo é de “jazz-samba”, ou seja, forma ou estilo de atuação em que o 
baterista mescla o ritmo de samba na base da bateria com um toque de jazz no prato de 
condução. O jazz-samba é uma criação do carioca Edison Machado nos anos de 1960. 
 
5.7. Tristeza e Solidão 
Tom: Ré menor / Mi menor. Ritmo: samba-canção. Duração da faixa: 4:35. 
Assim como no candomblé, também na umbanda “babalorixá” designa o pai-de-
santo, e “ialorixá”, a mãe-de-santo. É a eles que se dirigem os que precisam de ajuda 
espiritual. Dependendo do caso, esta é concedida sob a incumbência de se realizar 
oferendas – também “obrigações”ou “trabalhos” – ou outro tipo de contrapartida por 
parte do necessitado. 
[...] Ela não sabe quanta tristeza cabe numa solidão 
Eu sei que ela não pensa quanto a indiferença dói no coração 
[...] Sou da linha de umbanda, vou a um babalaô 
Para pedir ela voltar pra mim [...] 
Porque assim que vou morrer de dor 
[...] 
 
Tristeza e Solidão é uma espécie de balada em ritmo de samba-canção. De rara 
beleza, destacam-se sobretudo a harmonização das vozes femininas que, em alguns 
trechos, faz lembrar o timbre do lendário conjunto vocal Os Cariocas. 
A modulação do tom de Ré menor para Mi menor é contrastante e confere à 
performance da faixa um ganho considerável em termos de brilho e impulso dinâmico, 
entre outros. 
 
5.8. Lamento de Exu 
Tom: Mi menor. Compasso: binário / rubato. Ritmo: balada. Duração da faixa: 2:15. 
Relacionado diretamente aos ancestrais, Exu é o mais humano dos orixás. Seu 
nome significa “dono da força”. É o guardião das cidades, das casas, dos templos e das 
encruzilhadas. Por analogia sincrética, Exu corresponde a Santo Antônio ou a São 
Benedito. 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
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O Lamento de Exu é a faixa mais curta do disco. Destaque para a introdução em 
forma de “canto instrumental”. Árido e solitário, o lamento exala algo místico, 
melancólico. A melodia é exclusivamente pentatônica e lembra, em alguns trechos, ora 
uma modinha ora uma toada. 
O andamento é meio rastejante, com trechos em rubato, cujo efeito reforça o 
caráter lamentoso da faixa. 
 
6. Estendendo-se o conceito dos afro-sambas a outras composições da dupla 
Dos afro-sambas, compostos por Vinícius de Moraes e Baden Powell, apenas Canto 
de Ossanha, Berimbau e Samba da Bênção podem ser considerados relativamente bem 
conhecidos no Brasil e no exterior. 
Todavia, em razão das semelhanças poéticas e musicais que Samba da Bênção, 
Berimbau e Consolação possuem com as composições do disco, passemos também 
estes a considerar parte da categoria dos afro-sambas. 
 
6.1. Samba da Bênção 
O Samba da Benção representa uma espécie de “auto-retrato” ou “cartão de visita” 
de Vinícius de Moraes, ao mesmo tempo em que reverencia os nomes de uma série de 
epígonos da música popular brasileira. 
A interpretação é bem contida, porém não sem desenvolvimento dinâmico, em que 
se alternam recitação e canto. A pegada de samba-canção é simples, porém marcante, 
fluindo do início ao fim. 
É melhor ser alegre do que triste [...] 
Porque o samba nasceu lá na Bahia [...] 
E se hoje ele é branco na poesia 
Ele é negro demais no coração 
Eu como exemplo, o capitão do mato Vinícius de Moraes 
Poeta e diplomata, o branco mais preto do país 
Na linha direta de Xangô, saravá, saravá! 
À bênção, Senhora, a maior ialorixá da Bahia 
Terra de Caymmi e João Gilberto [..] 
À bênção, à bênção, Baden Powell, amigo novo, parceiro novo [...] 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
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O Brasil de todos os santos, inclusive o meu São Sebastião 
Saravá, saravá! [...] 
 
Observação: é muito provável que Moraes tenha se referido, com “a maior ialorixá 
da Bahia”, à lendária mãe de santo Maria Escolástica da Conceição Nazaré (1894-
1986), mais conhecida como Mãe Menininha do Gantois. 
 
6.2. Berimbau 
Esta composição homenageia a capoeira, a arte africana do corpo, da dança e da 
autodefesa, em cuja prática, sempre em roda, são entoadas cantigas, geralmente 
acompanhadas por tambores, pandeiros e berimbaus, ou simplesmente pelas palmas das 
mãos de seus participantes. De acordo com Sodré (1979), “a capoeira é uma das 
manifestações mais expressivas da cultura negra no Brasil”. 
Berimbau só não entrou no disco por já ter sido “demasiadamente conhecido” 
(Moraes, 1966). Isso, entretanto, muda pouco no fato de Berimbau ter sido sempre uma 
das músicas preferidas de Powell. Seja ao vivo ou no estúdio, Berimbau representava 
uma espécie de senha para o violonista e seus acompanhantesimprovisarem longamente 
com a seção rítmica, que podia variar entre a bateria, um bongô, atabaques (geralmente 
congas) ou outros instrumentos de percussão (como a cuíca). 
Quem é homem de bem não trai 
O amor que lhe quer seu bem [...] 
Capoeira me mandou dizer que já chegou, chegou para lutar 
Berimbau me confirmou, vai ter briga de amor 
Tristeza camará 
[...] 
 
6.3. Consolação 
A melodia principal deste afro-samba é exclusivamente pentatônica. Fortemente 
sincopada, chamada e refrão se desenvolvem ciclicamente: 
Melhor era tudo se acabar 
Melhor era tudo se acabar 
Se não tivesse o amor, se não tivesse essa dor [...] 
É que ninguém nunca teve mais, mais do que eu 
[...] 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
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7. Considerações finais 
O presente estudo demonstrou que a referência de Vinícius de Moraes a entidades e 
símbolos religiosos do candomblé é praticamente uma constante e, na verdade, se 
estende também a parcerias antes e depois do lançamento do disco dos afro-sambas. 
Com efeito, consideramos os afro-sambas o ponto mais alto da busca de Moraes por sua 
alma negra, iniciada em 1942, com a elaboração literária de Orfeu da Conceição. Ainda 
que não possuam nenhuma função religiosa, o poeta uniu elementos religiosos, oriundos 
do candomblé, a elementos do samba carioca, criando, desse modo, um novo gênero de 
música popular urbana, os afro-sambas. 
Muito semelhante ao projeto de Orfeu da Conceição, também os afro-sambas eram 
destinados a “carioquizar, dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro-
brasileiro, dando-lhe, ao mesmo tempo, também uma dimensão mais universal” 
(Moraes, 1966, grifo meu). Desse modo, Moraes estabeleceu – ainda que 
romanticamente – “um sincretismo novo” entre o terreiro, o morro e a elite social à qual 
ele mesmo pertencia. Nesse processo “fusionou” elementos regionais de um Brasil 
ainda periférico e no início da industrialização, ao mesmo tempo em que 
“universalizou”, através da sua índole generosa e afirmativa, o samba. 
De um lado, os afro-sambas nasceram da busca do poeta por sua identidade negra, 
enquanto, de outro, representam uma interpretação das raízes místicas e mitológicas da 
religiosidade afro-brasileira. Daí ocorre que, em sua dimensão estética, essencialmente 
urbana, o samba carioca foi sincretizado com toques e temas do candomblé. 
Outros indícios estão nos assim chamados “pontos” ou “toques” específicos de cada 
Orixá, cuja execução rítmica segue a orientação dada pelo arranjo de Guerra-Peixe, que 
aparentemente (não tive acesso á partitura do arranjo) sempre deixou espaço suficiente 
para que o agogô, o afoxé, o pandeiro e os atabaques, juntamente com o violão, o naipe 
de sopros, as vozes femininas do Quarteto em Cy e o “coro da amizade” pudessem 
contrastar com a voz de Moraes e dialogar harmonicamente. Apesar disso, percebemos 
também falhas técnicas na gravação e na execução do disco. Apesar de tudo, a gravação 
revela detalhes estéticos notáveis e uma grande riqueza criativa e imaginativa. Por isso, 
um projeto que se propusesse focalizar a participação especificamente de Guerra-Peixe 
certamente renderia outro estudo produtivo. 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
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“Feito com um máximo de liberdade criadora e um mínimo de interesse comercial”, 
o disco tinha como meta uma produção “sem modismos, nem sofisticações” (Morais, 
1966). Um ponto que pesava contra a execução na mídia e, portanto, também contra o 
sucesso comercial do disco estava na duração das faixas, “mais longas do que gostam os 
homens de rádio” (Moraes, 1966). Destarte, o disco representou um projeto ousado, 
talvez até arriscado para os padrões da época. Apesar disso, tudo indica que sua 
realização dependeu de esforços coletivos consideráveis. 
Para José Ramos Tinhorão, contudo, musicólogo, historiador e ferrenho adversário 
da “apropriação artificial e indevida” de elementos do jazz estadunidense por 
manifestações nacionais, “o afro-samba é uma coisa que não existe” (Tinhorão, s.d., 
p.26). Em resposta, argumentamos que o historiador parece ter sido apegado a um ideal 
de pureza caduco, pois as demandas de uma sociedade multicultural em um mundo 
globalizado fizeram com que o conceito de pureza se tornasse inócuo, sem sentido. 
Além disso, é notório que a música brasileira jamais poderia estar assentada numa 
suposta pureza e sim na miscigenação dos mais diversos elementos culturais e raciais. 
À parte do lado criativo e inovador do disco, ouvidos mais exigentes percebem 
também algumas falhas que, no entanto, estão longe de comprometer valor e 
importância do projeto como um todo. De qualquer forma, os defeitos do disco também 
comprovam que os produtores do disco preferiram valorizar mais o aspecto espontâneo 
da criação musical do que almejar uma gravação tecnicamente perfeita – algo que 
implicaria também na aceitação de um produto final mais “nivelado”, ou seja, menos 
verdadeiro e espontâneo. 
Finalmente, ao ver no negro brasileiro – principalmente no carioca – “um grego 
ainda despojado de cultura e do culto apolíneo à beleza, porém marcado pelo sentimento 
dionisíaco da vida”, entendemos que Moraes quis fundir sua concepção estética, 
fundamentalmente apolínea e europeia, com a alma negra, incorporando o elemento 
negro como algo generoso, existencial, dionisíaco – e muito brasileiro. 
 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
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8. Referências bibliográficas 
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Janeiro: Paracatu. 
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Rio de Janeiro: Escola de Música da UFRJ. Tese de Mestrado. 
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Bahia. 
CASTELLO, José. 1997. Vinícius de Moraes: o poeta da paixão. 2.ed. São Paulo: 
Companhia das Letras. 
CHEDIAK, Almir. 1993. Entrevistas e músicas cifradas. In: Songbook Vinícius de 
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DIAS, Rosa M. 1994. Nietzsche e a música. Rio de Janeiro: Imago. 
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patriarcal no Brasil. 45.ed. Rio de Janeiro: Record. 
HOUAISS. 2001. Dicionário da língua portuguesa. Edição eletrônica. Rio de Janeiro: 
Objetiva. 
KUEHN, Frank M. C. 2012 (2002). Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do 
candomblé nas letras e músicas de Vinícius de Moraes e seu parceiro Baden Powell: 
os "afro-sambas". In: Anais do 3º Colóquio de Pesquisa. Rio de Janeiro: 
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), p.94-103. A edição revisada e 
ampliada está disponível em: <https://unesp.academia.edu/fmc >. 
LAMAS, Dulce M. Reflexos da cultura africana no folclore musical brasileiro. In:Revista C.B.M. Rio de Janeiro: Conservatório Brasileiro de Música, s/d, p.24-32. 
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NIETZSCHE, Friedrich. 1999. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. 
Tradução e posfácio de J. Guinsburg. Rio de Janeiro: Companhia das Letras. 
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Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
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__________ . 1969. O samba agora vai... A farsa da música popular no exterior. Rio de 
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__________ . 1978. Pequena história da música popular brasileira: da modinha à 
canção de protesto. São Paulo: Círculo do Livro. 
 
Discografia 
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LP (mono). Rio de Janeiro: Forma / Companhia Brasileira de Discos (CBD). 
 
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http://www.omundodosorixas.hpg.ig.com.br/index.htm, último acesso fev. 2002. 
 
Bibliografia complementar 
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BASTIDE, Roger. 1985. As religiões africanas no Brasil. Tradução de M. E. Capellato 
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BÉHAGUE, Gerard. 1973. Bossa & bossas: recent changes in Brazilian urban popular 
music. In: Ethnomusicology, n.17/2, p.209-233. 
GUERRA-PEIXE, C.; VALENTE, W.; FRANÇA, E. N.; NOBRE, M.; COSTA, M. N. 
1985. A influência afro-brasileira na música do Brasil. 3º Congresso Afro-Brasileiro, 
Recife, set. 1982. In: Os afro-brasileiros. Recife: Fundação Joaquim Nabuco / 
Massangara. 
MARIZ, Vasco. 1950. Vida musical (1946-1950). Porto: Lello & Irmão, p.41-50 e 115-
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_______. 1954. Vida musical (1951-1983). Coleção Cadernos de cultura. Rio de 
Janeiro: Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura (MEC). 
_______. 1997. Vida musical (1984-1991). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 
PEIXOTO, Fernanda A. 2000. Diálogos brasileiros: uma análise da obra de Roger 
Bastide. São Paulo: EDUSP. 
TRAVASSOS, Elizabeth. 2000. Modernismo e música brasileira. Rio Janeiro: Jorge 
Zahar. 
VERGER, Pierre F. 1997. Os orixás. Deuses iorubás na África e no novo mundo. 
Tradução de Maria A. Nóbrega. 5a ed. Salvador: Corrupio. 
 
 
KUEHN, Frank M.C. Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de 
Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”. In: Anais. 3º Colóquio de Pesquisa em Música. 
Rio de Janeiro: PPGM/UFRJ, 2012 (2002), p.94-103. Disponível em: unesp dot academia dot edu/fmc. 
 
 
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9. Dados biográficos 
Frank Michael Carlos Kuehn é graduado em Educação Artística, com habilitação em 
Música, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É Mestre em Música pela mesma 
instituição e Doutor em Música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 
(UNIRIO). Publicou nas revistas Opus (2010), Per Musi (2012), Revista Brasileira de 
Música (2013) e El Oido Pensante (2013). Atualmente é bolsista do Conselho Nacional 
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e pesquisador pós-doutorado do 
Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista.

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