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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
R369c
 
Ribeiro, Jorge Ponciano
Conceito de mundo e de pessoa em Gestalt-terapia [recurso
eletrônico] : revisitando o caminho / Jorge Ponciano Ribeiro. - 1. ed.
- São Paulo : Summus, 2011.
recurso digital
 
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
 
Inclui bibliogra�a
ISBN 978-85-323-1041-5 (recurso eletrônico)
 
1. Gestalt-terapia. 2. Psicologia. 3. Livros eletrônicos. I. Título.
 
15-27303
 
CDD: 616.89143
CDU: 159.964.32
 
       16/10/2015  16/10/2015
 
 
 
 
Compre em lugar de fotocopiar.
Cada real que você dá por um livro recompensa seus autores
e os convida a produzir mais sobre o tema;
incentiva seus editores a encomendar, traduzir e publicar
outras obras sobre o assunto;
e paga aos livreiros por estocar e levar até você livros
para a sua informação e o seu entretenimento.
Cada real que você dá pela fotocópia não autorizada de um livro
�nancia um crime
e ajuda a matar a produção intelectual de seu país.
CONCEITO DE MUNDO E DE PESSOA EM GESTALT-TERAPIA
Revisitando o caminho
Copyright © 2011 by Jorge Ponciano Ribeiro
Direitos desta edição reservados por Summus Editorial
 
Editora executiva: Soraia Bini Cury
Editora assistente: Salete Del Guerra
Assistente editorial: Leonardo Gonçalves
Projeto grá�co e diagramação: Crayon Editorial
Capa: Alberto Mateus
 
 
 
Summus Editorial
Departamento editorial
Rua Itapicuru, 613 – 7o andar
05006-000 – São Paulo – SP
Fone: (11) 3872-3322
Fax: (11) 3872-7476
http://www.summus.com.br
e-mail: summus@summus.com.br
Atendimento ao consumidor
Summus Editorial
Fone: (11) 3872-3322
Vendas por atacado
Fone: (11) 3873-8638
Fax: (11) 3872-7476
e-mail: vendas@summus.com.br
Versão digital criada pela Schäffer: www.studioschaffer.com
http://www.summus.com.br/
mailto:summus@summus.com.br
mailto:vendas@summus.com.br
http://www.studioschaffer.com/
A Giovanna, Gabriela e Guilherme, todo meu amor de avô,
com uma infinita esperança de que vocês se constituam em
pessoas inteiras, em um mundo em permanente mudança.
A Frederick Salomon Perls, o mestre.
Sumário
Prefácio
Apresentação
Introdução
1. A questão epistemológica
2. Conceitos de mundo e de pessoa
3. Fundamentação teórica do conceito de mundo
4. Teorias de base do conceito de mundo
PSICOLOGIA DA GESTALT
TEORIA DO CAMPO
TEORIA HOLÍSTICA
5. Fundamentação teórica do conceito de pessoa
6. Filosofias de base do conceito de pessoa
HUMANISMO
FENOMENOLOGIA
EXISTENCIALISMO
Conclusão
Posfácio
Bibliografia
É claro, a ciência jamais consegue alcançar sua meta. Em
qualquer momento de sua história existe e existirá sempre um
hiato entre seu ideal e suas realizações concretas. O sistema
nunca está completo, existem sempre fatos recém -descobertos
que se somam aos antigos e desafiam a unidade do sistema.
(Koffka, 1975, p. 18)
Em resumo: a aquisição do verdadeiro saber deve ajudar -nos a
reintegrar o nosso mundo, que foi fragmentado; deve ensinar -
nos a irrefutabilidade das relações objetivas, independentes de
nossos desejos e preconceitos; e deve indicar -nos nossa
verdadeira posição no mundo, fazendo -nos respeitar e
reverenciar as coisas animadas e inanimadas que nos cercam.
(Koffka, 1975, p. 21)
Mas toda a teoria que não se torne praxe e vida, isto é, que
não seja acompanhada por uma ação correspondente, é estéril.
(Nogare, 1994, p. 16)
Prefácio
Apresentar uma das obras de Jorge Ponciano Ribeiro – além de ser uma
deferência e uma honra – é tarefa de monta. Principalmente por conta da
história de Jorge na psicologia – com todas as suas contribuições –, na
Universidade de Brasília (UnB) como professor emérito, na minha formação
– como orientando no mestrado e como “discípulo” na formação de Gestalt,
lá pelo final dos anos 1990 – e, claro, na Gestalt -terapia, como um dos
protagonistas.
Há vinte e cinco anos, Jorge publicava um livro que teria dupla função:
seria um livro de referência para se fazer uma epistemologia da Gestalt -
terapia, o primeiro e um dos únicos nessa direção. Ainda hoje, mesmo a
abordagem gestáltica tendo crescido e se desenvolvido, tendo se organizado
em inúmeros núcleos e institutos espalhados pelo país, tendo adentrado
com autoridade o ambiente acadêmico – tanto como disciplina e como
compreensão clínica na graduação, como área de pesquisa na pós -graduação
– e se “recriado” em novas perspectivas e novas áreas de ação, seu livro
Gestalt -terapia: refazendo um caminho é uma referência na área.
Costumo apresentá -lo como um livro que “criou necessi dades”. Foi o
segundo livro publicado no Brasil sobre Gestalt -terapia (o primeiro, Gestalt
e grupos, é de autoria de érèse Tellegen), mas foi o primeiro que se propôs
a “pensar” um “fazer”, um fazer gestáltico. Estávamos, então, pensando uma
abordagem “nova”, neófita tanto no Brasil, com apenas poucos anos de
conhecimento, quanto no mundo, afinal era apenas uma abordagem
“balzaquiana”*.
Digo que o Gestalt -terapia: refazendo um caminho criou necessidades
porque, depois dele, convencionou -se indicá -lo quase como uma tradição
nas diversas apresentações da nova abordagem. Apresentávamos o livro – e
ainda o fazemos em muitas ocasiões – como uma abordagem que se
constituiria em três perfis, mais ou menos desenvolvidos em termos
epistemológicos, divididos em blocos (sendo que os dois primeiros
ganharam mais destaque): os pressupostos filosóficos, as teorias de fundo ou
de base, e os antecedentes pessoais. O que Jorge fez, à época, foi facilitar
nossa compreensão de como se organizava essa nova abordagem e como
poderíamos qualificá -la epistemologicamente, além de nos oferecer um
excelente ponto de partida para estudos mais aprofundados.
A partir daí, Jorge passou a não somente desenvolver a nova abordagem,
como a recriá -la, de diversas maneiras, em novos contextos, sob novas
perspectivas, seja desbravando o país com grupos de formação os mais
diversos (desde Brasília, passando pelo Mato Grosso do Sul, Maranhão,
Pará, Goiás, São Paulo e tantos outros locais), seja escrevendo e
reescrevendo a abordagem, com temas e proposições, ora inovadoras, ora
verdadeiramente novas, tornando -se o autor que mais publicou em Gestalt
no país. Ciclo do contato, grupos, terapia de curta duração, todos com
perspectivas revisionistas ou autênticas, são apenas alguns dos temas
trabalhados em suas obras.
Agora, Jorge nos prima com mais uma de suas reflexões. Este novo livro
traz já em seu título sua proposição: Conceito de mundo e de pessoa em
Gestalt -terapia: revisitando o caminho. É mais um presente aos leitores,
principalmente os iniciantes, que querem entrar um pouco mais nos
meandros dessa abordagem tão rica quanto complexa que é a Gestalt -
terapia. E ninguém melhor do que o Jorge para realizar tal empreitada, já
que é um sujeito de palavra fácil, um sujeito que fala para o sujeito – o outro
– sem os rebuscamentos clássicos da academia, e sem os melindres das
palavras. Como é um sujeito de palavra fácil, como é um sujeito de vasta
experiência e de conhecimento largo, Jorge faz deste novo livro uma nova
busca por facilitar compreen sões, simplificando olhares e falando “do” e
“para” o coração.
Para se compreender um fazer, é preciso saber de que lugar se está
falando, em qual lugar estamos nos colocando e colocando o outro a ser
compreendido, para, daí, podermos acessar uma teoria e utilizá -la com
sabedoria. Se não tomamos conhecimento desse “lugar”, arriscamo -nos a
um mau uso da técnica, a um exercício meramente experimental de seu
arcabouço e a uma consideração do nosso interlocutor de modo a
objetificá -lo. Para tanto, é preciso uma dupla reflexão: sobre nosso lugar e
sobre o lugar da teoria.
É nesse caminho que temos esta nova obra de Jorge. E ainda somos
primados com uma linguagem que só os poetas e os caminhantes – aqueles
que observam as paisagens e os caminhos – podem nos legar. E a figura de
Jorge consegue agregar os dois personagens. O livro de linguagem fácil nos
revela uma liberdade3. O mundo é formado de todos, que são forças sintéticas do universo e
que o conduzem teleologicamente.
4. O mundo é, portanto, uma gestalt, um todo, não absoluto, mas
indivisível, articulado e organizado.
5. Estamos falando do Mundo -cosmo não como um caos, mas como um
processo, como uma gestalt, o que significa que ele não vem do caos,
nem pode ser explicado por ele, não é fruto de uma mera combinação
cega de causas essencialmente desconexas.
6. O mundo é formado de subtodos, os quais não têm vida e
funcionamento próprios, pois um subtodo é determinado e regido por
leis intrínsecas a esse todo.
7. O mundo é fruto de uma organização com ordem e significado, regidos
pela relação quantidade -qualidade e não uma mera justaposição casual.
8. Se a ontogênese (o desenvolvimento de um indivíduo) é a recapitulação
da filogênese (o desenvolvimento da espécie) segue -se que sujeito e
mundo se constituem como sujeito -mundo em sua relação de
intrínseca reciprocidade, pois ambos são da mesma natureza, frutos de
mesma ordem e significado.
9. Esses pressupostos nos levam à conclusão do que Koa afirma: a
essência do mundo é a razão de sua existência.
Este último pensamento, além de ser de extrema riqueza, é de rara beleza.
A essência do mundo, diz Koa, é existir, é como se, nele, essência e existência
se confundissem, formando uma totalidade absoluta, sem nenhuma
precedência ontológica de uma sobre a outra. O mundo não “está” mundo, o
mundo “é” mundo, pois tem tudo de que necessita para ser mundo.
Isto é o que chamamos de conceito de mundo, isto é, ser do jeito que é
faz o mundo estar do jeito que está, em processo, e, estando a pessoa
humana incluída, natural e essencialmente nesse processo, recapitula em si o
mundo, enquanto uma configuração, uma organização concreta, viva em
processo. Os conceitos de mundo e de pessoa não podem, portanto, ser
pensados separadamente.
Minha caminhada através das teorias de base tem como objetivo a
formulação de um conceito de mundo que nos permita uma práxis que dará
vida e sentido ao procedimento psicoterapêutico.
A Aborgadem Gestáltica e a Gestalt -terapia não nasceram de um caos
teórico ou de teorias desencontradas e montadas artificialmente para terem
um sentido. Nasceram de uma complexa totalidade teórica, de partes que só
têm sentido a partir de um todo, de uma essência que dá existência ao nosso
agir, não só como psicoterapeuta mas, sobretudo, como pessoas.
A Gestalt -terapia nos apresenta um campo teórico, ainda pouco
explorado pelos gestaltistas, talvez pela vastidão de seus conceitos e pela
complexidade que encerra. Não é uma teoria de fácil apreensão e cujo
manejo exige do estudioso dedicação e perspicácia. Seus conceitos dão
início à compreensão de nossa visão de mundo, porque nos remetem à
experiência e à vivência do que é parte -todo, figura -fundo, aqui -agora. Tais
construtos nos encaminham à compreensão do que é uma gestalt, enquanto
totalidade organizada, articulada e indivisível. Remete -nos ao início de
minha caminhada na descrição do que é experiência de mundo, um mundo
como uma organização perfeita.
TEORIA DO CAMPO
Segundo Lewin (1965, p. xiii),
a construção fundamental é, naturalmente, a de “campo”. Todo o comportamento (incluindo
ação, pensamento, desejo, busca, valorização, realização etc.) é concebido como uma mudança
de algum estado de um campo em determinada unidade de tempo (dx/dt).
Estou tentando definir qual é meu conceito de mundo. Lewin deixa claro
que existe um mundo no qual estamos e existimos, e existe um “outro”
mundo pessoal, concreto, que se realiza em cada um de nós por meio de
nossas ações mais corriqueiras, e ele chama “espaço de vida”.
Na psicologia individual, o campo que o cientista deve considerar é o “espaço de vida” do
indivíduo. Seu espaço de vida se constitui da pessoa e do meio psicológico como ele existe para a
pessoa. (Lewin, 1965, p. xiii)
Não existem dois mundos, o Universo e nós, somos uma única e mesma
realidade em total interdependência, embora estejamos habituados a ver o
mundo como uma realidade independente e submissa à vontade do homem.
Ao definir um determinado campo, ou espaço de vida, é importante também caracterizá -lo de
modo que se possa tratar satisfatoriamente a interdependência de suas partes. Finalmente, há o
problema de especificar sua localização e profundidade no tempo.
Este princípio afirma que o espaço de vida se mantém através do tempo, é modificado por fatos,
e é um produto da história, mas só o sistema contemporâneo pode ter efeitos num determinado
momento. (Lewin, 1965, p. xvi)
Entendo que, em nossa proposta acadêmica, a teoria do campo de Kurt
Lewin aparece como figura, como algo que dá visibilidade ao holismo
smutsiano, através do qual a teoria do campo acontece, ao passo que a
psicologia da gestalt fecha esse suporte teórico, mostrando como a teoria
holística, utilizando o conceito de totalidade, se expressa, conceitualmente,
dando início à teoria da Gestalt -terapia como uma prática clínica.
Utilizando -nos do construto figura -fundo, podemos dizer que a teoria
holística é um fundo, um lugar teórico que expressa, por ela só, um conceito
básico de mundo onde tudo está em movimento, em evolução.
Dissemos, anteriormente, que essas três teorias são diferentes entre si,
embora apresentem uma analogicidade que nos permite usá -las como
referencial teórico epistemológico para fundamentar a prática clínica,
utilizando o que elas têm de semelhante e deixando a diferença entre elas
para reflexões posteriores, sobretudo na pesquisa, que poderá apontar não
só semelhanças, mas também diferenças entre elas como um lugar de
crescimento teó rico de nossa abordagem.
O mundo é um campo em ação. Nós somos um subcampo nesse campo
maior, vivendo em permanente troca, em permanente intrarrelação campo -
organismo -meio.
Somos afetados pelo mundo e o afetamos igualmente, no sentido de que
não somos realidades separadas, pois somos o mundo que pensa, sente, faz e
fala, ao passo que o mundo somos nós nos expressando por meio de todas
as variáveis não psicológicas e não humanas com quantidades que nos
afetam no tempo em que vivemos.
É certo que a teoria do campo dá ênfase à importância do fato de que qualquer acontecimento é
a resultante de uma multidão de fatores. O reconhecimento da necessidade de uma razoável
representação dessa multiplicidade de fatores interdependentes, é um passo em direção da Teoria
do Campo. Contudo, isso não é suficiente. Teoria do Campo é algo mais específico. (Lewin, 1965,
p. 50)
Chamo este dado processo de ambientalidade, que é o terceiro essencial
que, juntamente com animalidade e racionalidade, constitui a essência da
pessoa no mundo como um sujeito vivo, consciente e livre, e através do qual
a relação pessoa -meio ambiente se faz visível e em ação.
Dentro da nossa proposta de arquitetar um conceito de mundo usando
as teorias de base, a teoria holística se expressa, dentre elas, por meio da
impermanência das coisas, da interdependência de tudo e da
transcendência, que nos dá uma visão de tudo como um todo. A teoria do
campo, por sua vez, complementa essa visão enquanto impede um procurar
o sentido das coisas indiscriminadamente e nos conduz a um olhar crítico e
observável da realidade.
O que se denomina campo psicológico é, portanto, o espaço de vida consi derado dinamicamente,
isto é, a totalidade dos fatos coexistentes, e mutuamente interdependentes, compreendendo tanto a
pessoa como o meio. (Garcia -Roza, 1972, p. 156)
O espaço de vida compreende todas as variáveis psicológicas. Há, no entanto, outras variáveis
não psicológicas, que também fazem parte deste campo[...] As variáveis não psicológicas podem
ser sociais, biológicas ou físicas. (Garcia -Roza, 1972, p. 136)
As partes são, portanto, membros orgânicos do todo, sendo que suas propriedades são funções
da estrutura total e vice -versa. (Garcia -Roza, 1972, p. 54)
O conceito de mundo constituído pela Gestalt -terapia compreende o
comportamento humano como fruto da relação pessoa -organismo-meio, no
qual tudo está incluído, embora só e apenas, em um dado campo e em um
dado momento. Compreende ainda que nada é fixo, predeterminado, sendo
o campo um campo de forças em movimento.
Assim, embora aparentemente separadas e distintas, não existem partes
isoladas que tenham vida por si mesmas, porque toda a realidade é una e
todo ser nominado é uno, embora em ontológica relação com todos os
outros seres ou coisas no universo. Lewin nos lembra também que, apesar
da interdependência das coisas, sua temporalidade se realiza em um dado
espaço, pois todas as coisas têm ínsita algo que as mantém no tempo, ainda
que modificando -se constantemente. Um campo existe agora, ou seja,
mesmo que conseguíssemos manter “exatamente” a mesma aparência de
uma situação, apenas terminada essa, ela não seria mais a mesma, pois o
espaço de vida que inclui variáveis psicológicas e não psicológicas não seria
mais o mesmo.
Um espaço fase é algo definitivamente diferente do “espaço físico” tridimensional dentro do qual
os objetos físicos se movem. Do mesmo modo o espaço psicológico, ou espaço de vida ou campo
psicológico, no qual ocorrem a locomoção psicológica ou as mudanças estruturais, é algo
diferente daqueles diagramas onde as dimensões significam meras gradações de propriedades.
(Lewin, 1965, p. 50 -51)
Uma das afirmações básicas da teoria de campo psicológica pode ser formulada da seguinte
maneira: Qualquer comportamento ou qualquer outra mudança no campo psicológico depende
somente do campo psicológico naquele momento. (Lewin, 1965, p. 52)
A realidade é dinâmica, isto é, tudo está, nesse exato momento, em
permanente mudança através da impermanência do processo de ser, embora
seus dados sejam coexistentes e materialmente interdependentes. A
realidade deve ser vista como um todo, basea da no princípio da
transcendência, no qual a essência se revela como uma totalidade operante,
sendo que as partes são membros orgânicos do todo e as propriedades das
partes são função da estrutura total da realidade em questão.
Segundo Garcia -Roza (1972, p. 136), “para constituição deste campo, as
amizades, os objetivos conscientes e inconscientes, os sonhos, os medos, são
tão essenciais como qualquer ambiente físico”.
Já Lewin (1965, p. 32) afirma:
De acordo com a teoria de campo, o comportamento não depende nem do passado e nem do
futuro, mas do campo presente. Este campo presente tem uma determinada dimensão tempo.
Inclui o “passado psicológico”, o “presente psicológico” e o “futuro psicológico” que constituem
uma das dimensões do espaço de vida existindo num determinado momento.
Quando trabalhamos o conceito de mundo, impõe -se,
epistemologicamente, a questão: de qual lugar estamos falando? De um
mundo físico, geográfico; de um mundo organizado social, política e
economicamente; de um mundo contemplado a certa distância e do qual
tiramos nossas normas ou ao qual atribuímos normas e valores?
Estamos falando das relações entre mundo humano e o mundo não-
humano.
A teoria de campo dificilmente poderia ser considerada correta ou errada como se faz com uma
teoria no sentido comum do termo. A teoria de campo provavelmente se caracteriza melhor
como um método, isto é, um método de analisar relações causais e de criar construções
científicas. Este método de analisar relações causais pode ser expresso sob a forma de
determinadas afirmações gerais sobre a “natureza” das construções de mudança. Não é
necessário discutir aqui em que grau essas afirmações têm um caráter “analítico” (lógico, a
priori) e em que grau tem um caráter “empírico”. (Lewin, 1965, p. 51)
Não cabe aqui percorrer todos os principais conceitos da teoria do
campo para deles induzir um conceito de mundo. Deve ficar claro e
estabelecido que o conceito de mundo que decorre da teoria de campo
propõe o homem não como um ser solitário, isolado e/ou como o centro do
universo, mas, ao contrário, como uma pessoa concreta, cosmicamente
relacional, pois só por abstração é possível pensar o humano separado do
não-humano. Vivemos uma permanente, fluida e dinâmica relação campo -
organismo -meio.
O universo é um grande campo, uma gestalt perfeita, na qual os
fenômenos psicológicos e não psicológicos são vistos e funcionam como
totalidades organizadas indivisíveis, articuladas, ou seja, como configurações
plenas. E a pessoa é um campo do campo, ou seja, existe em inter e
intrarrelação com todos os possíveis microcampos existentes nesse campo
cósmico, universal.
A pessoa existe em movimento, é um ser em movimento, construindo o
caminho e sendo construído por ele.
Lewin (1965, p. 95) é extremamente pertinente quando afirma:
Uma mudança na estrutura cognitiva pode ocorrer em qualquer parte do espaço de vida do
indivíduo, incluindo seu futuro, presente ou passado psicológicos. Pode ocorrer no nível de
realidade ou no de irrealidade (nível de desejo e medo) de cada uma das secções do espaço de
vida.
Somos feitos de ontem, de hoje e de amanhã, somos feitos de tempo e de
espaço, não estando vedado ao ser humano se expressar como pessoa, gente,
sendo, simplesmente, livre. Realidade, irrealidade são formas humanas de
estar no universo, de constituir o espaço vital, porque foi o fato de o
universo se ter constituído sem fronteiras, sendo essencialmente um ser -
total -em -movimento, que lhe permitiu criar as maravilhas que hoje o
compõem, entre elas o ser humano, não sabendo se ele é o mais perfeito na
cadeia da evolução cósmica, mas sabendo que o ser humano é o único que
pode olhar para trás e ver sua programação já acontecida, olhar para frente e
se sentir parte -desse -grande -todo -em -evolução.
O mundo é um imenso campo, uma gestalt articulada, organizada,
indivisível movimentando -se em absoluta ordem onde a realidade acontece
harmoniosa e criadoramente.
O conceito de mundo que nasce da teoria do campo exige uma inclusão
total na situação, no aqui -agora, de tal modo que passado e futuro se
constituam como uma unidade no presente, único lugar cuja visibilidade
permite à pessoa humana se olhar e se reconhecer exatamente como ela é.
TEORIA HOLÍSTICA
Usando o construto figura-fundo, podemos dizer que a teoria holística
é um fundo, um lugar teórico, que expressa, por ela só, um conceito básico
de mundo em que tudo está em movimento, em evolução.
De acordo com Clarkson (1993, p. 4 -5),
O conceito de holismo é provavelmente a característica mais central da psicologia da gestalt e da
gestalt psicoterapia. [...] O holismo afirma que pessoas e coisas são regidas por três princípios.
São eles: 1) Tudo é um todo; 2) Tudo muda; 3) Tudo está relacionado a tudo.
Acrescento: Todo todo é um tudo e tudo que é um todo, é um.
Holismo (de holos = todo) é o termo usado aqui para expressar este fundamental fator operativo
na direção da criação de Todos no universo... Todos não são meras construções artificiais do
pensamento; eles indicam algo real no universo e Holismo é um real fator operativo, uma vera
causa. (Smuts, 1996, p. 86)
Holismo é uma específica tendência com uma característica definitiva e criativa de todos os
caracteres no universo, e assim gerador de resultados e de elucidações no que diz respeito ao
inteiro processo de desenvolvimento cósmico. (Smuts, 1996, p. 99)
e organism consiste, sobretudo, em uma descrição detalhada de um novo método, a assim
chamada abordagem organísmica holística. (Goldstein, 1995/2000, p. 18) [O grifo é nosso]
Toda reação é uma “reação gestáltica” de um todo, de uma configuração figura -fundo. Estes
fenômenos podem ser interpretados no sentido de que, enquanto um processo ocorre em uma
parte, o resto do organismo não pode tornar -se ativo de um modo oposto ao que acontece no
todo. (Goldstein, 1995/2000, p. 182)
Nosso conceito de mundo nasce não só de um pressuposto filosófico, de
uma lógica perceptiva do universo, mas, sobretudo, nasce da própria
estrutura do mundo. É do seu funcionamento que nasce nosso
funcionamento, pois nossa ontogênese recapitula a filogênese da espécie.
Somos síntese do Universo, nosso ser é sua históriaviva, presente e contada
em nossos corpos, somos o próprio universo, enquanto um ser vivo. Os
elementos de que é composto o Universo são os mesmos de nossa
constituição.
Buscamos, no entanto, nas ciências já constituídas, apoio epistemológico
para que nossos conceitos de mundo e de pessoa sejam ontologicamente
herdeiros da filogênese que constitui o Universo e a Pessoa Humana.
Assim, o conceito de mundo para a Gestalt -terapia nasce, inicialmente,
do holismo de Jam Fleming Smuts, que considera o mundo como um
grande todo, funcionando através de todos e se constituindo por meio de
uma interminável evolução de todos em todos. O mundo é um holograma
em que cada parte contém todas as outras, sendo cada parte, ou subtodos,
miniaturas do todo maior.
Esses princípios constituem a base operacional/teórica do conceito
gestáltico de mundo, pois contêm a sabedoria da evolução do cosmos. Não
fosse sua potencialidade em macro -operações, o Universo não teria a forma,
a configuração e a estrutura que hoje vemos e admiramos.
Quando dizemos Universo, não estamos olhando para algo fora de nós.
Nós somos o Universo, sua parte consciente. Somos, neste exato momento, o
Universo em evolução. Os elementos que o compõem são os mesmos elementos
de que somos compostos e, quando esses elementos sofrem alguma alteração, é
todo o Universo, humano e não-humano, que padece.
O efeito estufa, por exemplo, não está afetando somente a Terra -coisa,
mas, sobretudo, o Universo -pessoa, pois, por sermos a parte mais evoluída
do e no Universo, somos, também e talvez, os mais frágeis. O efeito estufa
não afeta apenas a Terra, afeta toda a natureza, todo o Universo, daí a
fragilidade de qualquer posição que queiramos assumir contrária ao
movimento do Cosmo.
Analisemos estes três princípios.
É
1. TUDO É UM TODO
Todos são dinâmicos, orgânicos, evolucionários, criativos... é muito importante reconhecer que o
todo não é algo adicional às partes: ele é as partes em uma organização estrutural e com mútuas
atividades que constituem o todo. (Goldstein, 1995/2000, p. 104)
O todo é uma síntese ou unidade de partes tão juntas que ele afeta as atividades e interações
daquelas partes, imprimindo nelas um caráter especial e as faz diferentes daquilo que elas tinham
sido antes, em uma combinação destituída de tal unidade ou síntese. (Smuts, 1996, p. 37)
Um todo quebrado na natureza orgânica se restaura por si mesmo ou é restaurado pelas partes
danificadas. As células das partes remanescentes se comprometem com a tarefa de restaurar as
partes danificadas. (Smuts, 1996, p. 80)
O homem é um ser se constituindo, a cada dia, é um ser sempre a
caminho, sempre em mudança. Dessa impermanência nasce no ser humano
uma profunda consciência de que ele é um ser de relação, um ser que não se
basta a si mesmo, de que ele se constitui por meio do outro, no mundo, em
um movimento perene de interdependência.
Vivendo a impermanência e a interdependência nasce, naturalmente, no
ser humano, um desejo ontológico de ser alguém, de se definir, de estar
pronto, de ser um todo. Ele pode se olhar e se ver como um indivíduo igual
a todos os outros para quem ele olha e que, de algum modo, constitui -o
como sendo o outro dele mesmo, de si mesmo.
Essa sensação, ainda que provisória, lhe dá a sensação de totalidade, de
ser um todo em funcionamento, em movimento, em ação que o transporta
para uma sensação profundamente humana, quase divina, de que ele é um
todo e, como ele, tudo é um todo. O ser humano olha à sua volta e vê que,
como ele, tudo tem uma singularidade que o distingue e que distingue todas as
coisas umas das outras, dando -lhes identidade. Assim, mais uma vez, brotará
nele a certeza de que, se tudo é um todo, todo todo é um tudo e que tudo que é
um todo é um. Essa é a metafísica do ser diferente que, paradoxalmente,
quando vivida, permite -nos uma sensação de profunda humildade cósmica
que, em sendo um, somos tantos, todos iguais.
Ou seja, as coisas não existem pela metade e, quando nominamos uma
coisa, ela nos chega, naquele momento, como uma configuração perfeita,
ainda que, ontologicamente, não contenha todos os elementos de sua
realidade possível. Tudo que é um todo contém tudo que, naquele momento,
lhe é possível ter para se fazer existente, para ser um todo diferente de todos.
Este terceiro princípio nos ensina um conceito de mundo que afirma que
tudo o que existe contém tudo que necessitamos para nos relacionarmos
com ele. Assim, aprendemos deste princípio que, embora tudo seja um todo,
não temos tudo que precisamos para estar no mundo e que as coisas
possuem, em si, a mesma limitação que se expressa em nós. De outro lado,
os princípios da impermanência, da interdependência e da transcendência
de todas as coisas nos convidam a uma constante atualização de nossas
potencialidades, educando -nos a cultivar uma amorosa reverência por todas
as coisas que nos cercam.
A consequência máxima desse princípio é a de que, ao mesmo tempo em
que cada ser, cada ente é um todo -tudo, a junção de todos os todos forma o
tudo absoluto, possível, o um metafísico.
Somos, então, parte integrante de um todo no qual todas as partes
convivem em inter e intrarrelação, fazendo de cada uma delas guardiã da
outra, cuidadora da outra, permitindo, nesse eterno, cuidadoso e amoroso
cuidar, constituir o todo -tudo -total.
Assim, a solidão é apenas uma opção possível, porque, no universo, nada é
solitário, sozinho, desligado e, se soubermos, podemos fazer de uma flor, de
uma montanha, de uma pessoa nosso silencioso e mágico companheiro.
2. TUDO MUDA
O mundo é constituído e composto de círculos e em ciclos. O círculo é uma
gestalt perfeita, porque, nele, parte e todo se confundem, produzindo uma
percepção perfeita. Nele, não se sabe onde a linha começa ou termina, sendo
uma sucessão ininterrupta, infinita de pontos. No círculo, essência e
existência se confundem; “que” e “como” se sobrepõem. Não importa seu
tamanho, nele estamos diante de uma fluidez, de um movimento ontológico
a ser seguido pela física do humano em permanente mudança, em
permanente processo do ajustamento criativo.
O mundo não -humano e o mundo humano acontecem em ciclos,
fenômenos que se sucedem em uma ordem determinada, em movimentos
cíclicos, e que se repetem, que se renovam, constituindo um modelo de
mudança e de permanência.
Tudo muda: é a lei da impermanência. Tudo muda ou nós nos mudamos
sempre. E sempre mudamos tudo. Somos movimento, estamos em movimento.
Somos o movimento visível de um mundo em permanente mudança. Damos
visibilidade à imanência do mundo.
O mundo, no entanto, segue seu caminho, não se desvia de si mesmo,
não se contraria, por isso digo que sempre muda para melhor, está sempre
em um permanente e cósmico ajustamento criativo, ainda quando não
conseguimos entender e, sobretudo, perceber as vantagens positivas de seus
efeitos, aparentemente, negativos: como ciclones, terremotos etc.
A mesma coisa acontece com o ser humano. As doenças e seus sintomas
(correspondentes às “doenças” da Terra, como terremoto, aquecimento
global) são sempre uma tentativa de ajustamento criativo, de autorregulação,
que não nos parecem claros no momento em que acontecem, mas que,
seguindo uma lei maior, terminarão por produzir uma equalização corpo -
meio -ambiente de efeitos positivos. Quando criamos doenças bio -psico -
sócio -espirituais, estamos criando as doenças do planeta, porque o planeta
não adoece sozinho, suas doenças são frutos das nossas.
Viver é um eterno convite à mudança, ao movimento, à transformação,
pois o movimento é o processo do mundo e do Universo como um todo.
Uma vez que o Universo é também vivo, faz -nos um constante apelo a que,
em uma sincronia cósmica de partes no todo e do todo, tenhamos nele o
mais fiel modelo de contato conosco, com o outro e com ele.
Basta olhar ao redor. Tudo está em permanente mudança, tudo está em
movimento, porque tudo é vivo. Precisamos re -aprender o conceito de vida, do
que é um ser vivo, aprender a re -olhar a natureza e entender que somos delae
pertencemos a ela. Precisamos aprender a perceber, a olhar pedras, vegetais e
animais como seres vivos em movimento, eternamente em estado de
provisoriedade.
Perdemos, há muito tempo, nossa ancestral dimensão do que significou
para o homem primitivo a ambientalidade, (pessoa -mundo = uma só
realidade), porque estamos mergulhados no espaço da animalidade ou na
lógica temporal da racionalidade.
Tudo muda. Estamos condenados à mutabilidade, à finitude. Não temos
segurança de nada. Nós -Universo, um ponto permanente, crítico de
interrogação. Respostas fixas, claras, não existem, existem caminhos,
probabilidades. A quantidade se perde no espaço, a qualidade se perde no
tempo, resta -nos a certeza de que o Universo sabe o que faz, o que quer e
para onde vai. A quantidade se perde no espaço, e o tempo, agora, é nossa
única segurança do espaço vivido.
3. TUDO ESTÁ RELACIONADO A TUDO
O organismo é, de fato, um pequeno universo vivo no qual a lei e a ordem reinam, e no qual cada
parte colabora com cada uma outra parte e se submete aos comuns propósitos do todo, como
uma regra da mais perfeita regularidade. (Smuts, 1926/1996, p. 83)
[...] Um organismo é fundamentalmente uma sociedade na qual inumeráveis membros
cooperam em mútua ajuda no espírito do mais desinteressado serviço e lealdade a cada um outro
membro. Cooperação e mútua ajuda estão impressos no rosto da natureza. (Smuts, 1996, p. 82)
Somos seres de relação. Nenhum gesto, nenhuma ação é, por si só,
isolada. Tudo repercute no universo. Todo ser, quando em relação, e estamos
sempre em relação, querendo ou não, afeta o outro ser. Vivemos em
multidão, somos uma multidão de partes em contato com tantas outras
multidões. Estamos em contato, das maneiras mais diversas, com os
minerais, com os vegetais, com os animais, com os oceanos, com as estrelas,
com o vento, com a luz, com o calor, com o frio, porque tudo é vivo, porque
tudo está em movimento. Estar em contato é estar em movimento, é
transformação, é um acontecimento em que todos se modificam.
A evolução do Universo só é possível porque tudo afeta tudo. Essa
evolução produz as mais diferentes reações, que se organizam no sentido de
uma teleologia que procura sempre a transcendência do ser com relação
àquele que o precedeu.
Enquanto o princípio de que “tudo muda” pode ser, de fato, pensado
como uma lei cósmica, fixa, no sentido de uma totalidade operacional que a
realidade encerra em si, de tal modo que nada escapa a esse princípio, o
princípio de que “tudo afeta tudo” traz para a cena humana do
comportamento a questão da responsabilidade, da liberdade, da ética da
ação, que encerra, ao mesmo tempo, a complexa questão da escolha.
Somos condenados a escolher, escolher é uma sina humana e, por isso,
somos também condenados a ser livres. Assim, temos de experimentar a
responsabilidade da experiência humana para não correr o risco de escolher
contra nós mesmos.
Está ficando claro para mim que, se tudo afeta tudo, independentemente
de nossa vontade, somos também seres sem escolha. Dentro dessa compreensão
de mundo, só nos resta ampliar nossa awareness cósmica, universal, para
aprendermos a escolher, quanto possível, a partir da consciência que brota de
uma visão de totalidade. A visão de totalidade é o que constitui,
essencialmente, o sentido das escolhas humanas e, assim, quanto possível, nos
livramos da sina de estarmos condenados a escolher.
O conceito de mundo, portanto, que nasce do princípio de que “tudo
afeta tudo” leva o ser humano a ampliar, cada vez mais, a consciência de sua
intrínseca relação com o mundo, de sua impermanência, do seu pertencer
ao Universo, bem como da interdependência que existe entre ele e o
Universo. Ninguém se salva sozinho nessa saga humana que estamos
experienciando, e, consequentemente, o ser humano deveria ter a convicção
de que não é dono do mundo, nem de ninguém. Ele é um guardião do
mundo, de tudo o que nele existe e com o qual está em permanente relação.
Perdemos a consciência de que tudo afeta tudo. Nosso imediatismo,
nosso egoísmo e nosso egotismo nos impedem de exercer uma
cumplicidade consciente pessoa -Universo para viver um sintomático:
“salve -se quem puder”. Esquecemos de que nenhuma salvação solitária tem
ganhos reais, porque a realidade é estruturalmente NÓS. Na verdade,
nenhum de nós é mais sábio, melhor ou mais competente do que “todos
nós”.
Nosso olhar está totalmente viciado, olhamos a realidade sempre a partir
de nossos referenciais, precisamos, entretanto, reaprender a olhar o
Universo. Precisamos aprender a ver as coisas a partir delas, do que elas nos
oferecem e não a partir do que esperamos delas, tirando delas ou pondo
nelas o que não lhes pertence. Uma coisa é aquilo que ela é, não podendo ser
diferente de sua própria essência, pois, enquanto tal, possui exatamente
aquilo de que necessita para existir. Como um todo nominado, se torna,
enquanto tal, singular e a única no universo com a qual podemos nos
relacionar formalmente e de maneira privilegiada. As coisas são, assim, um
universo se oferecendo a cada um de nós para serem re -descobertas.
A teoria holística é essencialmente mundana, no sentido de que ela fala
do imediato, não propõe horizontes inatingíveis, nos convida ao movimento
em uma permanente, imediata e responsável relação com o outro.
O conceito de mundo que nasce da teoria holística nos convoca para
uma percepção imediata do dado e nos adverte que nossas ações, quaisquer
que elas sejam, têm sempre uma dimensão cósmica.
O homem é baseado em ambos os universos: enquanto ele tem um pé plantado no plano
mecânico, seu outro pé está firmemente plantado no plano holístico com uma clara inclinação
em favor do último... Essencialmente ele é um ser espiritual e holístico, não, porém, de um tipo
mecânico com categoria mental e ética. (Smuts, 1996, p. 152)
A Evolução criativa sintetiza a partir das partes uma nova entidade, não apenas diferente delas,
mas realmente as transcendendo. Esta é a essência do todo. Ele está sempre transcendendo suas
partes, e sua característica não pode ser inferida das características de suas partes. (Smuts, 1996,
p. 341)
5. Fundamentação teórica do conceito de pessoa
Continuo na árdua tarefa de pensar ou de conceber um conceito de
mundo e de pessoa a partir das teorias e filosofias de base da Gestalt -terapia.
Proponho -me, agora e em primeiro lugar, pensar a partir das filosofias
de base o conceito de mundo, (porque é isso que vai ficando claro para
mim) embora o mundo, enquanto mundo, só se deixe conhecer pela mente
humana, apenas e enquanto percebido pela pessoa.
O mundo antecede à pessoa -sujeito, mulher e homem, que são,
aparentemente, o último momento do processo evolutivo do Universo. Há
bilhões de anos, o homem vem constituindo seu mundo interior através das
mais complexas e distintas variáveis com que se depara no seu cotidiano.
Constituído, ele próprio, em um nível inconsciente e arquetípico, o homem
esquece esse processo constituído. Ele internaliza um mundo já constituído,
torna -se dono desse mundo, e não apenas do planeta Terra, e fala dele como
se tivesse assistido ao primeiro momento da criação cósmica. Trata não
apenas a Terra, mas o Universo como sujeito e objeto de sua visão; uma
visão empobrecida no tempo pela própria complexidade em captar a
realidade como um todo.
Nossa proposta é que o homem esqueça tudo sobre o mundo, reaprenda a
olhar o Universo com o olhar de uma criança, sinta -se o mais ignorante de
todos os seres, deixe -se tomar por um sentimento de admiração sagrada, como
fazia o homem primitivo, e aprenda do Universo as primeiras lições sobre ele
mesmo.
Se o ser humano continuar a dizer para o Universo como ele, Universo,
tem de ser e se comportar, porque, na prática, é isso que está acontecendo,
estará se expressando com a arrogância da gota d’água dizendo para o
oceano como ele tem de se comportar, ou como o grão de areia dizendo para
o deserto o que ele é.
A minha ousadia é, como fiz com as teorias de base, utilizar as filosofias
de base paraos outros
seres, formando um campo de relação humano -mundano.
Estamos deixando de lado a definição de pessoa feita por Boécio:
“pessoa substância individual de natureza racional”, para ficarmos com
Tomás de Aquino que introduz o conceito de pessoa, como relação, ou a
pessoa, como subsistente, sendo relação em forma de substância,
entendendo -se aqui que
Pessoa, numa natureza qualquer, significa o que de distinto nessa natureza, como na natureza
humana, significa carne, os ossos e a alma que são os princípios que individualizam o homem.
(Abbagnano, 2000, p. 760)
Tomás de Aquino coloca o princípio da pessoa como indi víduo singular,
único, entretanto, sendo único e individualizado, traz no bojo de sua
definição a exigência da existência do outro, como algo necessário à
compreensão da realidade do outro, pois ninguém se singulariza sozinho.
Singularizar -se supõe, necessariamente, a existência presente do outro.
Dando um passo além, entendo o conceito de pessoa como um ser de
relação consigo mesmo, envolvendo um processo de se olhar em
profundidade para se reconhecer como um ente, um ser de existência em
íntima conexão com a existência do outro.
Pode -se imaginar esse processo, em uma visão clássica de constituição
de realidades, como uma sequência de dados, em que o anterior “gera” o
posterior. Assim, o conceito, ou melhor, a sensação de ser pessoa supõe e
exige uma instância em que se dá conta da condição de pessoa que se é: o
Eu. O eu toma posse de si mesmo por meio de um processo de consciência.
Uma cons ciên cia reflexa que se percebe e percebe o outro e, nesse
movimento, percebe -se como uma identidade pessoal, identidade de si
mesmo, em um processo de unidade, de unificação de todo o seu ser, ao
mesmo tempo enxergando -o no mundo. Neste ponto, é como se a pessoa,
que se é, existisse, de fato, em si e para si, ou seja, instala -se um duplo
processo na unidade da pessoa com ela mesma, uma unidade de
consistência, eu diria substancial, em que o eu se reconhece como temporal
e espacial. Enquanto temporal, ele se reconhece um ser de qualidade e, como
espacial, ele se reconhece como um ser de quantidade e, na junção tempo -
espaço, o eu se reconhece como continuidade de vida consciente.
O eu se percebe como experiência e vivência de ser pessoa em relação
profunda consigo mesmo. Ser pessoa, portanto, é essencialmente ser
consciência de si mesma, como uma totalidade em relação com outra
totalidade, o -si -mesmo -mundo. Ser pessoa é ser consciente dessa inter e intra- 
rrelação pessoa -mundo. Nem o mundo é mundo, nem a pessoa é pessoa, se
considerados abstratamente.
Ser pessoa é estar consciente de si mesma em permanente continuidade.
Supõe uma consciência em permanente movimento de contato eu -mundo,
de tal modo que a pessoa, mesmo mudando a todo instante, não perde a
consciência de ser ela mesma.
Pessoa é uma consciência que persiste, conscientemente, em ser,
simplesmente, sendo. É um ente que se reconhece sendo, a todo instante,
por não deixar de ser. É esse processo que a faz se reconhecer como
individualidade singular e, ao mesmo tempo, universal, em um processo
permanente de troca vivenciada, autoconsciente -cósmica.
Quanto mais a pessoa se individualiza mais ela se percebe como
pertencendo ao Universo e em íntima relação com ele.
A pessoa, portanto, constitui -se não apenas por meio da expe riência
vivenciada de ser uma consciência reflexa de si mesma, mas também por suas
relações de amor, de trabalho, de produção. São partes constitutivas da
experiência vivenciada e da consciência reflexa, a memória e a inteligência
emocionadas que, juntas, constituem o passado, o presente e o futuro, como
uma unidade de tempo -espaço, a qual permite à pessoa ser, aqui -agora, o que
ela é e se perceber como tal.
A pessoa, sob esse ponto de vista, é intersubjetividade e intencionalidade
através das quais ela se pauta como ser pensante, consciente e se coloca no
mundo, fenomenologicamente, como um ser de relação, um ser ético,
compromissado com o outro.
A essência, portanto, de ser pessoa é ser um ser de relação e em relação
permanente e consciente consigo e com o outro. A pessoa humana,
homem -mulher, mulher e homem exercem sua pessoalidade, vivendo em
relação, assim, pode -se dizer que o status social é parte das propriedades de
constituição do conceito de pessoa.
“O homem é pessoa, porque nos papéis que ele desempenha é,
essencialmente, definido por suas relações com o outro” e de outro lado “O
mundo, nada mais é do que correlação objetiva da pessoa, portanto cada
pessoa individualmente corresponde a um mundo individual”, daí que
Scheler (apud Abbagnono, p. 762, verbete Pessoa) nos lembra: “Pessoa é
relação com o mundo”.
O conceito de pessoa, portanto, nasce e decorre do conceito de mundo.
Primeiro o mundo existe, depois, a pessoa. O conceito de mundo, ou seja, a
compreensão do que é mundo permite à pessoa se perceber dentro de um
campo cósmico e, a partir daí, ela se localiza no mundo como um ser ético e
de ação. Sem um conceito de valor, de ética sobre o mundo, a pessoa não
tem nenhum referencial sobre o que é ser pessoa, porque o referencial não
pode partir dela própria.
É do contemplar o Universo, do olhar o cosmo, simplesmente como
cosmo, com seus mistérios e possibilidades, que nasce no ser humano a
sensação de pertencimento. É a partir dessa sensação que ele pode criar um
código de relação entre ele e o mundo, e entre ele e o outro no mundo. O
conceito de pessoa está, assim, estreitamente, ligado ao conceito de mundo.
6. Filosofias de base do conceito de pessoa
Deixo de lado as questões históricas, literárias a respeito do surgimento do
humanismo. É sabido que o mundo não muda por si mesmo, assim como
não mudamos o mundo de uma hora para outra. A constituição de uma
visão de mundo ou de pessoa necessita de décadas para que tenha um rosto
claro, definível.
O mundo da Idade Média, por exemplo, era um mundo sacral,
sacralizado, no qual tudo começava e terminava com a ideia de Deus. Uma
ideologia que foi surgindo ao longo dos séculos e permaneceu por séculos
dominando o mundo. Um Deus completamente descaracterizado,
dominado pela cultura, responsável por tudo. Os homens eram apenas os
executores de sua pretendida presença e vontade. Um Deus nada humano,
entregue à subjetividade e à intencionalidade do homem da época,
sobretudo do clero religioso, supostamente legítimo representante da sua
vontade e de sua presença imposta.
HUMANISMO
O humanismo tem suas raízes nos séculos XIII e XIV. Nasce,
aparentemente, como uma antidoutrina religiosa, uma antiteologia,
firmando -se nos séculos XV e XVI e se expandindo através da arte, da
literatura, da cultura clássica grego -romana. O dogmatismo religioso tinha
deformado o homem e o próprio Deus. Paradoxalmente, entretanto, o
humanismo, por caminhos completamente diversos, termina
reintroduzindo a ideia do homem e de Deus a partir de novos parâmetros,
sobretudo pela experiência de uma visão nova de liberdade que vai se
instalando, pouco a pouco, e constituindo uma ideologia da ação e de uma
ética circunstancial.
Deus deixa de ser o princípio regulador e único da sociedade, sobretudo
por se tratar de um deus nascido de uma lógica humana tendenciosa, muitas
vezes desrespeitosa da beleza, da harmonia, da genialidade da ciência,
enquanto predicados vistos como algo que roubava de Deus a primazia do
poder de governar os destinos do homem.
O humanismo recoloca Deus e o homem em seus devidos lugares, bem
na linha da sentença de Cristo: “Dai a César o que é de César e a Deus o que
é de Deus”.
De certo modo, através do humanismo, o homem recupera sua origem,
sua natureza, seu destino mutilados por uma visão religiosa, dogmática e
autoritária do ser humano, visto como vítima de um eterno pecado a ser
punido e espiado.
Chamo a atenção, sobretudo, para duas correntes do humanismo que
restituem ao homem o direito de ser aquilo que ele é, sem intermediários.
O humanismo cristão que realça, sobretudo, o vigor do homem como pessoa, isto é, comoprincípio autônomo e individual de consciência e responsabilidade, aberto à plenitude do ser, é
ultimamente orientado para Deus [...] O humanismo moderno de Descartes, Kant, Hegel faz da
subjetividade do homem o ponto de partida, o centro de perspectiva e construção de toda a
realidade. (Nogare, 1994, p. 15 -6)
Eis aí uma síntese perfeita, em que a subjetividade, enquanto uma
consciência que se concebe como pessoa, como um fenômeno de
consciência, consagra o sujeito como senhor de si mesmo e, de algum modo,
acima do universal, como diria Kierkegaard ou acima da objetividade como
diria Hegel.
Não estou defendendo uma posição egoísta da pessoa humana, mas
estou apontando para um valor intransferível de que a pessoa humana é
única, é singular e deve ser respeitada dentro dessa visão.
Concebo o ser humano como aberto à plenitude de ser ele mesmo, de ser,
sendo sem limites impostos de fora, sujeito de uma consciência autônoma e
singular. Um ser não condenado a ser livre, mas tendo, na sua subjetividade, o
ponto de indiferença criativo que lhe permite ser senhor do caminho que ele
constrói, sendo o centro de toda uma constituição de si mesmo a partir de uma
perspectiva relacional, pessoa -mundo.
A abordagem gestáltica vê a pessoa como sendo do mundo, pertencendo
ao Universo, não como um ser isolado, mas formando com o mundo uma
única realidade, pessoa -mundo, uma intrarrelação cosmológica, vivendo em
sintonia relacional, sem que perca, cada uma, a sua singularidade
constitutiva.
Assim como o Universo tem o instinto para a perfeição, constituindo -se
teleologicamente na direção do positivo, do perfeito, do melhor resultado,
assim também a pessoa humana herdou esse gene cósmico para o positivo,
para o inteiro, para o integrado, para o perfeito, para a melhor organização.
Assim como o Universo, em seu processo evolutivo, apresenta
momentos incompreensíveis à mente humana, como morte, guerra,
cataclismos, também o ser humano herdou o gene da doença, da dor, da
morte.
A presença, entretanto, do “mal” cósmico e do “mal” humano escapam à
compreensibilidade da pessoa humana. Eles são fatores de autorregulação
cósmica, são instrumentos de autodefesa e de equilíbrio que fogem à nossa
compreensão. Daí a importância desses “males” serem entendidos não como
sintomas, mas como processos normais que escapam ao nosso controle, e de se
verem esses males como “partes” de um todo, como um campo em
funcionamento, em plena atividade teleológica.
Isso porque “no processo de organização, o que acontece a uma parte do
Todo é determinado por leis intrínsecas inerentes a um Todo” (Wertheimer,
1925 apud Koa, 1975 p. 691).
Abbagnano (2000, p. 519) apresenta quatro princípios que nos dão uma
base para uma melhor visão humanista de pessoa e que, por outro lado, nos
ajudam na construção de um conceito de mundo: 1) Reconhecimento da
totalidade do ser humano como ser formado de alma e corpo e destinado a
viver no mundo e a dominá -lo; 2) Reconhecimento da historicidade do ser
humano, de seus vínculos com o passado que, por um lado, servem para
uni -lo a esse passado e, por outro lado, para distingui -lo dele; 3)
Reconhecimento do valor humano das letras clássicas. É por esse aspecto
que o humanismo tem esse nome; 4) Reconhecimento da naturalidade do
ser humano, para quem o reconhecimento da natureza não é uma distração
imperdoável ou um pecado, mas um elemento indispensável da vida e do
sucesso.
Assim:
1. Reconhecimento da totalidade do ser humano como ser formado de
alma e corpo e destinado a viver no mundo e a dominá -lo.
Abbagnano nos apresenta uma síntese dos diversos humanismos e
podemos, a princípio, distinguir três afirmações fundamentais e discorrer
sobre elas, concordando ou não.
a. O homem é uma totalidade alma e corpo.
– Eu diria, em uma linguagem holística mais apropriada, que o homem é
uma totalidade corpo -alma, e não corpo e alma. Ele é uma gestalt, uma
totalidade articulada, organizada e indivisível, de tal modo que alma -
corpo formam uma unidade funcional, uma única realidade composta
de duas naturezas diversas, uma imaterial e outra material, ou, melhor
dizendo, o homem é uma substância material -imaterial, e é isto que lhe
permite ter um centro, um ponto a partir do qual nascem todas as suas
operações materiais e imateriais.
b. O homem está destinado a viver no mundo
– Na verdade, não se trata de um destino, como algo obrigatório. O
processo evolutivo é espontâneo, integrativo, criador, e nada surge neste
planeta ou no Universo por simples obra do acaso. Somos resultado de
um processo cósmico, fruto de milhões de variáveis, que não operam ao
acaso, e sujeitos a uma lei criadora de que as melhores possibilidades se
efetivem. Assim, não somos destinados a algo incontrolável, frutos e
vítimas de uma totalidade materialista, mas, ao contrário, pertencemos
ao Universo, somos criaturas suas, pensados amorosamente por ele.
Somos o que de melhor o Universo poderia produzir. Na verdade, falta -
nos essa visão de filiação, de que pertencemos a ele, pois não aparecemos
aqui por acaso, sendo agora obrigados a suportar estar neste
“planetinha” do Universo, a um alto custo e sem nenhum prazer e
vantagens.
c. Estamos destinados a viver neste mundo e a dominá -lo
– Dominar o Universo?! Mas como?! Somos a gota d’água do oceano,
somos o grão de areia do deserto, entretanto, se quisermos nos sentir um
pouco melhor, somos um pequenino planeta de uma galáxia de cem
milhões de estrelas.
A visão de dominar a Terra, o Universo, está presente na história da
humanidade, desde o Gênesis, como se não fôssemos filhos da Terra, mas
seus donos, seus senhores. É a partir dessa visão alucinatória e alucinante
que nasce no ser humano a ideia esquizofrênica de que ele está “dominando”
a Terra, sem se dar conta, ou não querendo se dar conta, de que, na verdade,
está destruindo a Terra e alterando as leis cósmicas do Universo. Diante
desse confronto, urge uma mudança de paradigma: passar de uma visão
antropocêntrica para uma visão cosmocêntrica. O homem como um atento
guardião do Universo e não como dominador ou dono da Terra e também,
pretensamente, do Universo.
O conceito gestáltico de pessoa ressalta três pontos: 1 - A pessoa humana
é uma totalidade harmoniosa, alma -corpo. 2 - A pessoa humana pertence ao
Universo como uma criação privilegiada dele. 3 - O Universo -Terra é o
centro do homem e compete a ele, como uma de suas partes, aparentemente
a mais inteligente do planeta, ser seu guardião e defensor.
2. Reconhecimento da historicidade do ser humano, de seus vínculos com o
passado que, por um lado, servem para uni -lo a esse passado e, por outro
lado, para distingui -lo dele.
Portanto, o homem não é só uma recapitulação da história do cosmo no tempo, mas também
uma miniatura da estrutura do Universo. Isso significa um estreito parentesco com a natureza.
Daí ser falsa a opinião do homem ocidental de considerar -se fora e acima do resto da criação,
como senhor e não como parte integrante. (Dalle Nogare, 1994, p. 231 -2).
O homem, miniatura da estrutura do Universo, concebido no seio da
mãe -Terra, vem sendo constituído há bilhões de anos e, nesse processo, ele
recapitula, aqui -agora, toda a história do Universo, como fruto de um
atuante processo coletivo ou através do processo de ipseidade. Desse
processo nasce, hoje, toda a conexão da pessoa com a facticidade de sua
relação pessoa -mundo. A autoimagem e a autoestima do ser humano não
começaram no dia de sua concepção, ao contrário, ele é herdeiro da
autoestima e da autoimagem do próprio Universo -Terra. A pessoa traz de
herança um self cósmico, matriz de sua personalidade, assim como ela
existe, hoje, em força, em compreensão e também em problemas, que são
traços cósmicos deixados em cada ser, em cada espécie por meio das
lembranças boas ou não da caminhada do cosmo até ela.
Somos, na verdade, uma unidade de têmporo -espacial, constituída de
passado -presente -futuro, vivendo, como figura, um imenso presente, que,
por sua vez, é feito de ontem, de hoje e de amanhã,feito de força, coragem,
medos e de expectativas do futuro, formando uma unidade que contém mais
qualidade que as quantidades que o presente possa nos ter dado.
3. Reconhecimento do valor humano das letras clássicas. É por esse aspecto
que o humanismo tem esse nome.
O humanismo antigo, grego -romano, ressaltava os valores da beleza, da
força, da harmonia, da virtude, do heroísmo, do gênio em oposição à
linguagem e a uma literatura na e da Idade Média, nas quais o homem,
enquanto pessoa, não aparece. Aparece, antes, um deus do qual a Idade
Média perdeu o senso de beleza, de estética, de perdão e instalou um deus
primitivo, terrível, acusador, insaciável, manipulado pelos adoradores
oficiais da época.
O humanismo retorna à cultura clássica, abandona uma visão sacral
imposta ao homem para cantar e decantar as belezas de ser homem e de ser
mulher. As artes e a literatura passam a ser canais de uma nova relação
homem -mundo, colocando o homem no centro das coisas e não mais Deus.
O conceito gestáltico de pessoa entende a relação mulher -homem como
elegante, inteligente, dona de si mesma, capaz de se organizar no mundo.
Vendo, entretanto, desvios e doenças, constrói mecanismos de
autorregulação organísmica, como tentativas de ajustamento criativo,
embora nem sempre saudáveis, mas sempre ajustamentos criativos,
afirmando, ao mesmo tempo, que a pessoa jamais perde por completo sua
capacidade de se autogerir, e que todo desequilíbrio é um equilíbrio instável
à espera de que a pessoa possa se reencontrar, de novo, de uma maneira
saudável, eficiente e real.
4. Reconhecimento da naturalidade do ser humano, para quem o
reconhecimento da natureza não é uma distração imperdoável ou um
pecado, mas um elemento indispensável da vida e do sucesso.
Submetida, ao longo dos anos, às mais diversas culturas, fruto de uma
visão religiosa de mundo, baseada no certo e no errado, na subjetividade e
na intencionalidade das pessoas, sobretudo daquelas que se sentiam ou se
sentem donas da moral, da ética e do próprio Deus, o ser humano perdeu a
simplicidade e a espontaneidade diante dos fatos mais originais e puros da
vida. Tudo virou normas, tudo tem de ter um jeito de ser, de funcionar e,
daí, nasce a normatização do sentir, do pensar, do fazer e do falar, que tem
redundado na desconstrução do que em nós existia de animalidade, como
dado original de nosso processo evolutivo.
Alguns grupos religiosos veem pecado em tudo e normatizam tudo em
nome de Deus, de um Deus desumano, carrasco, vingativo. Deus perdeu sua
função de criador do modo como Ele quis criar, para ser presa da
subjetividade de pessoas que, em nome d’Ele, veem o mundo como uma
casa do mal, do erro, do pecado.
Isto posto, o conceito gestáltico de pessoa foge a toda e qualquer
dicotomia, porque, enraizado no olhar fenomenológico que simplesmente
vê o visto, sem interpretar, encontra -se com a própria realidade a partir de
uma experiência e de uma vivência que integram pessoa -mundo a partir do
que de mais positivo a realidade contém.
Um dado é fruto de fatos, e os fatos são feitos de variáveis psicológicas e
não psicológicas que atuam no campo pessoa -organismo -meio,
independentemente da vontade da pessoa que o observa. O olhar pessoal,
embora condicionado por mil variáveis, emana de uma consciência
emocionada, fruto, por sua vez, de uma inteligência e de uma memória
emocionadas, nas quais razão e emoção se juntam a partir, possivelmente,
da relação pessoa -organismo -meio para constituir a realidade, enquanto
percebida. O sentido das coisas, entretanto, jamais está pronto, é sempre
uma construção pessoal.
FENOMENOLOGIA
Ela (fenomenologia) só acontece no compromisso vivo de alguém que a torna presente na
maneira como o dito ou o feito é re -dito ou re -feito. Ou seja, o inacabamento essencial da
Fenomenologia diz respeito ao apelo, à presença daquele que vai encarná -la. Sem este gesto de
compromisso pessoal ela não acontece, e, simultaneamente, é por ele que se torna habitável para
outros. (Martins e Dichtchekenian, 1984, p. 7)
A Fenomenologia é para nós uma atitude que se define aos poucos em sua realização e que
devemos sempre redefinir. Ela não se liga a nenhuma teoria acabada. A teoria é um certo sistema
de motivações nas quais uma é sustentada pela outra e uma fundamenta a outra. (Martins e
Dichtchekenian, 1984, p. 7)
“Que é Fenomenologia?”, pergunta Merleau -Ponty. “É o estudo das essências”, é uma “filosofia
que recoloca as essências na existência”; “uma filosofia para a qual não se pode compreender o
homem e o mundo senão a partir de sua facticidade”; é uma filosofia transcendental “que coloca
entre parênteses, para se compreendê -las, as afirmações da atitude natural”; mas é também a
filosofia para a qual o mundo é sempre “déjá vu” antes da reflexão. É, além disso, “a tentativa de
uma descrição direta de nossa experiência tal como é, sem levar em conta a sua gênese
psicológica e as explicações causais do cientista”. (von Zuben, 1984, p. 58)
Os principais temas da fenomenologia e sua articulação com a existência
são: a) o retorno às coisas mesmas; b) a redução fenomenológica; c) a
intencionalidade.
A unidade do mundo é por demais preliminar para poder ser possuída, por demais vivida para
ser sabida. Desaparece mal é reconhecida. É talvez por isso que uma fenomenologia da
percepção, que aspirasse a dar -nos a filosofia de nosso -estar -no -mundo, é algo tão difícil quanto
a busca do paraíso. A unidade do mundo a partir da qual se desdobram todas as atitudes é
apenas o horizonte de todas essas atitudes. (Ricoeur, P. apud Martins e Dichtchekenian, 1984, p.
58)
A Fenomenologia não é algo para ser contemplado, algo impessoal, alheio, que eu possa repetir
como um aprendizado. Ela só acontece no compromisso vivo de alguém que a torna presente na
maneira como o dito ou o feito é re -dito ou re -feito. (Martins e Dichtchekenian, 1984, p. 7)
A tarefa da Fenomenologia é revelar este mundo, vivido antes de ser significado, mundo onde
estamos, solo de nossos encontros com o outro, onde se descortinam nossa história, nossas
ações, nosso engajamento, nossas decisões. (von Zuben, 1984, p. 67)
É uma investigação daquilo que é genuinamente possível de ser descoberto e que está
potencialmente presente, mas nem sempre vista. (Martins e Dichtchekenian, 1984, p. 79)
Para o fenomenólogo, a crença na realidade, no real, deve ser posta em suspensão a fim de
permitir o surgimento pleno das coisas que se mostram em si mesmo. (Martins e
Dichtchekenian, 1984, p. 83)
A partir desses pensamentos, usar a fenomenologia como uma das
filosofias de base constitutivas de um conceito de pessoa em Gestalt -terapia
significa ver a fenomenologia como uma cultura, como um estado de
espírito ou como um estado aberto para o espírito. Significa ver a
fenomenologia como um ambiente silencioso, uma pedagoga do saber, uma
mesa posta na qual existe de tudo, mas da qual só se vai escolher algo após
um encontro pessoal, vivido, real com cada um desses objetos. A
fenomenologia simplesmente mostra, de -monstra o objeto, não leva
ninguém a uma escolha não feita, a uma conclusão não pensada e vivida.
A fenomenologia, ao mesmo tempo em que é um método, é uma
maneira de ser, uma maneira de se obter a realidade, um espaço de abertura
onde o ser se dá. Ela anuncia o cessar de um estado de clandestinidade,
revela um processar de um des -velamento, de uma des -ocultação, sendo
uma atitude que se define aos poucos. É algo que implica, ao mesmo tempo,
subjetividade e intersubjetividade, é reveladora das legítimas necessidades
humanas, revela nossa perene perplexidade perante o mundo. É um
constante ensaio por aprender a re -aprender a ler o cosmos, é algo que está
sempre em estado de aspiração. A fenomenologia é o retorno às coisas
mesmas, ela não anula o irrefletido, mas o manifesta, ela nos livra da
condenação ao sentido. É uma análise descritiva da existência, por isso, mais
que uma filosofia, é um jeito de estar no mundo e é um método de
treinamento para o trabalho.
Essas reflexões,aparentemente exaustivas, essas minidefi nições são
descrições de uma realidade fenomenológica pessoa -mundo exatamente
como ela acontece aqui -agora. Elas revelam um conceito implícito de pessoa
e de mundo, como um programa a ser vivido, a ser executado por cada um
de nós, após a compreensão e vivência emocional de cada uma das “regras”
que o Universo vive em cada um de nós.
Tento achar um caminho que deixe claro, em primeiro lugar para mim,
o “que” a fenomenologia tem que possa ser vista “como” um conceito de
pessoa e de mundo. Sei que para tanto é necessário um comprometimento
radical com o pensar fenomenológico, que emana de uma visão filosófica da
realidade e de um método que nasce dessa visão e a transcende.
Na verdade, falo de fenomenologia como uma ontologia, como um
conhecimento científico que surge, a posteriori, do conceito de existência e
da relação mundo -pessoa, mas que, aqui -agora, deixamos de lado, porque o
que nos interessa, agora, é o conceito de mundo e de pessoa que decorre, ao
nosso ver, do conceito de existência, enquanto fenômeno para nossa
consciência.
Existir é uma questão de ser -em -ação. A existência é algo que paira
acima de toda a realidade como um ente ontológico, mas que, quando se
reveste de realidade, torna -se ôntico, pensando nela como um jeito
específico, singular de responder à nossa presença na existência de cada um.
O método fenomenológico expressará a radicalidade que o pensar
filosoficamente a realidade nos confere. Ele emana de um jeito ordenado de
pensar teoricamente a realidade, ou seja, o método dá visibilidade à teoria
da qual ele emana. Se a teoria tem ou implica uma visão de realidade, ou
mais ainda, de mundo, o método que dela emana organizará a maneira
como esta realidade poderá ser vivida.
A fenomenologia, de modo diferente de outros pressupostos filosóficos,
produz em cada pessoa que se adentra a ela um jeito pessoal, singular de
lidar com a realidade. Ela não garante a previsibilidade da estrada, pois, se é
verdade que o caminho se faz caminhando, é mais verdade que o caminho
constrói o caminhante.
O método fenomenológico, respeitando a realidade do caminhante e
sem perder seu referencial com a teoria da qual emana, aponta as mil
possibilidades que a subjetividade do caminhante poderá escolher. Neste
sentido, se a filosofia nos faz vítima do sentido e da liberdade, o método
fenomenológico nos liberta da sina de ter de escolher um único caminho,
pois, quando se tem muitas opções pela frente, não estamos condenados ao
sentido, mas abertos para possíveis escolhas. Quando vemos as mil partes de
um todo e escolhemos uma, porque queremos escolher exatamente aquilo,
foi o todo -como -um -tudo que foi escolhido, porque não se pode pensar em
uma parte isolada do todo.
A fenomenologia exige uma vivência, um compromisso, é como uma
cartilha que alguém aprendeu a ler, não para dizer que sabe ler, mas para
colocá -la em prática.
Somos sentido em pessoa, embora, muitas vezes, percamos o sentido de
nós mesmos e, outras vezes, não consigamos acessá -lo. Nosso sentido não
nos é imposto, é constituído por nossas ações, escolhas, engajamentos em
projetos, nossos e dos outros. Muitas vezes, nosso próprio destino nos
escapa, porque estamos diante de verdadeiros mistérios, como a dor, a
morte, perdas de todos os tipos, tragédias, sem falar dos males coletivos que
afetam a pessoa humana, independentemente de sua vontade. Estamos
constantemente em busca do sentido das coisas, sentido que nasce de nossa
experiência humana, cinzelada também pela relação inter e intrapessoal que
estabelecemos com tudo o que faz sentido para nós.
Se a vida fosse um problema, talvez fosse mais fácil enfrentá -lo, mas a
vida não é um problema, é um mistério e, quando estamos no campo do
mistério, parece que nos restam poucas saídas, ou curvamo -nos diante de
sua magnitude ou trans cendemo -lo. Transcendência no sentido holístico da
existência, entendendo que tudo muda, que tudo afeta tudo e que nada é só,
que tudo é um todo e que o todo é um, que a vida é um dom coletivo, que
nossa vida pertence também ao Universo em cujo seio tudo faz sentido.
Damos sentido às coisas para, logo em seguida, tornarmo -nos vítimas
delas, de nós mesmos e de nossos pré -juízos. A fenomenologia nos propõe,
por isso mesmo, revelar o mundo antes de ele ser significado, que nos
coloquemos entre parênteses, que “esqueçamos” tudo o que sabemos de nós
e do outro, para olhar o dado como se o víssemos ou o vivêssemos pela
primeira vez, sem pré -juízo, passando da coisa -em -si para o em -si -da -coisa.
Nossa consciência se coloca na posição de que tudo se esconde à espera de
ser revelado, que nos coloquemos em estado de começo de conversa, sem
desejo e sem memória, à espera de que a realidade, ao ser vista e revista,
revele -se para nós ou nos revele aquilo que nossa subjetividade, já
contaminada, não consegue descobrir.
Segundo Martins e Dichtchekenian (1984, p. 75), “[...] o mundo é mais
bem compreendido a partir da ação do sujeito. Para se fazer uma descrição
do fenômeno é preciso que se inicie e se prossiga em um curto modo de
interrogar o fenômeno” pois a fenomenologia é “uma ciência genuína da
experiência”.
Como dito anteriormente, o mundo não é um problema e sim um
mistério, por isso existiriam duas atitudes que parecem ser respostas mais
adequadas para se lidar com o mundo: curvar -se diante da sua grandeza ou
transcendê -la. A fenomenologia, porém, nos aponta consistentemente uma
terceira via. A fenomenologia não é nem uma explicação, nem análise da
realidade, ela é uma investigação e uma descrição da experiência humana.
Para Martins (Martins e Dichtchekenian, 1984), a fenomenologia
É uma investigação daquilo que é genuinamente possível de ser descoberto e que está
potencialmente presente, mas nem sempre visto. (p. 71)
Está em jogo, então, um esquema de pensar radicalmente diferente daquilo que constitui a
evidência. Entretanto a evidência deve ser “intuível”, o que quer dizer que aquilo que é dado ou
aceito como evidência deve ser, de fato, possível de ser “experimentado” dentro dos limites e
relacionado com o humano que experiência. (p. 78)
A fenomenologia não lida com mistérios, lida com dados, com fatos,
com acontecimentos. Ela não propõe a essência pronta das ou de coisas, mas
afirma que essa essência deve ser encontrada através da experiência vivida,
aqui -agora, e, como tal, descrita pelo método da redução fenomenológica.
Ou seja, a regra para lidar com a evidência é que o dado seja potencialmente
“revelável”, “intuível” e, consequentemente, “experienciável”. Estamos no
mundo humano, no mundo do provável e, excepcionalmente, do possível,
desde que esse possível possa ser experienciado pela vivência humana. A
fenomenologia não promete nada, nem certezas, muito menos verdades, ela
é um convite a experienciar a vivência que humaniza.
Martins e Dichtchekenian (1984, p. 68) expressam isso de maneira
soberba, quando afirmam:
A unidade do mundo é por demais preliminar para poder ser possuí da, por demais vivida para
ser sabida. Desaparece mal é reconhecida. É talvez por isso que uma fenomenologia da
percepção que aspirasse a dar -nos a filosofia de nosso -estar -no -mundo, é algo tão difícil quanto a
busca do paraíso. A unidade do mundo a partir da qual se desdobram todas as atitudes é apenas
o horizonte de todas essas atitudes.
Estamos sempre engatinhando em um mundo em perene movimento,
não temos garantias, temos horizontes que se afastam, sempre que mais
próximos estamos deles. Os horizontes existem exatamente para que não
deixemos nunca de procurar, de caminhar na sua direção, e é a necessidade
humana de uma contínua ação que nos faz descobrir o que está
potencialmente presente neles e não vemos.
A fenomenologia exige de nós um estado de contínua prontidão para
nos encontrarmos com a realidade, a nossa e a do mundo. Fenomenologia é
respeito total pela capacidade de ir e vir, é uma mestra que nos ensina a ver e
a re -ver a realidade até que, em um duplo e recíproco processo,desvelemo -
nos um para o outro. A dificuldade para esse desvelamento não está na reali- 
dade, a qual está permanentemente disponível para ser acessada. É em nós
que moram o medo, a angústia do encontro com o novo, o que dificulta
nossa relação, sem defesa, com o outro.
A fenomenologia é, por si só, uma proposta, um modo de estar no
mundo, implicando um respeito total pelo modo de ser do outro. Ela é um
permanente convite a que o observador, de fato, veja, observe, descreva a
realidade a partir dela e não a partir de pressupostos já organizados. Por
isso, não existe uma postura fenomenológica pronta, como uma forma em
que a realidade deva enquadra -se, mas ela é uma atitude que se define em
ação. Está sempre pronta para se re -definir, partindo da convicção teórica de
que tudo está em movimento, em processo de mudança, que não existem
teorias prontas e, por isso, ela mesma não está ligada a nenhuma teoria
acabada.
As pessoas mudam e se mudam, o Universo muda e se muda, pois o
movimento é intrínseco à natureza das coisas. É através do movimento que
as potencialidades presentes nas coisas se atualizam, dando continuidade ao
processo evolutivo, ou seja, existe um inacabamento ontológico entre pessoa
e mundo e, embora eles devam ser vistos como pessoa -mundo, a pessoa é
apenas um dos aspectos do Universo, ela é apenas um momento no qual
eclode o lado racional do Universo.
No mundo fenomenológico, colocamos entre parênteses nosso
conhecimento anterior, para não enviesar o que está diante de nós e que
pede para ser descoberto através de nossa apreensão do objeto. Somos
movidos pelo apelo e pela presença. A existência é um dado, transforma -se
em fato quando apreendida pela nossa consciência, e se transforma em
acontecimento quando respondemos ao apelo de ser encontrada,
significada, vivida. Existência é disponibilidade para ser encontrada, mas é
preciso que queiramos encontrá -la, pois, sem esse apelo e sem essa presença,
dificilmente nos envolveremos com um compromisso vivo, atuante.
Ao mesmo tempo em que a fenomenologia, como uma ciência
encarnada no tempo -espaço, afirma que um conceito de mundo e de pessoa
só é possível através da percepção de sua facticidade, ela é também uma
postura transcendental, porque coloca entre parênteses o mundo das coisas
e das pessoas para poder compreendê -las, isto é:
[...] é preciso, originariamente, um espaço de abertura onde o Ser se dá, garantindo a todo ente
ser o que é, sem, contudo, identificar -se ou reduzir -se a nenhum deles... é preciso que o Ser se
desvele no aparecer dos entes particulares, sem deixar, porém, de constituir o horizonte
inesgotável de possibilidades de ser que não se limita aos contornos de nenhuma determinação
particular; é preciso um espaço de “encontro” possível entre o homem e o apresentar -se do Ser
nos entes. (Muchail, 1984, p. 13 -4).
Talvez quase todas as nossas reflexões possam ser resumidas em uma
frase: fenomenologia é “a tentativa de uma descrição direta de nossa
experiência tal como ela é, sem levar em conta a sua gênese psicológica e as
explicações causais do cientista” (von Zuben, 1984, p. 58).
Essa frase contém algumas afirmações fundamentais para consolidar
nosso conceito de pessoa e de mundo, que brotam do jeito fenomenológico
de compreender a realidade e que a Gestalt -terapia propõe como
experiência e vivência de mundo e de pessoa:
1. Descrição direta de nossa experiência por meio de um ver, de um
observar e de um descrever isentos de aprendizagens passadas ou,
digamos, de emoções passadas que criaram situações complexas e não
resolvidas. Ater -se ao que se vê, simplesmente, sem explicação, sem
interpretação. Simplesmente, o dado.
2. Sem levar em conta sua gênese psicológica. Observamos, olhamos o
passado com um profundo respeito e, às vezes, com reverência, mas
não fazemos dele a gênese do que acontece agora. Partimos do
princípio de que o aqui -agora tem nele tudo o que necessitamos para
nos aproximar da realidade e fazer dela uma leitura pertinente. A
unidade aqui -agora contém o passado, o presente e o futuro como uma
unidade psicológica, como diz Lewin.
3. Sem levar em conta as explicações causais do cientista. Não trabalhamos
com explicação, porque quem explica pensa que entende do que está
falando, que tem conhecimento e talvez certeza da totalidade
processual que precedeu e, finalmente, criou o objeto em questão.
Qualquer efeito provém de inúmeras variáveis, mas a causa que o gerou
não as contém todas, as variáveis não emanam só da causa, mas surgem
de variáveis ambientais que, aparentemente, nada têm a ver com o
efeito produzido.
Nogare (1994, p. 16) diz que “toda teoria que não se torne praxe e vida,
isto é, que não seja acompanhada por uma ação correspondente, é estéril”.
A fenomenologia é uma teoria para fora, que se dirige ao outro, que não
está encapsulada em si mesma. Ela é um instrumento de trabalho perfeito,
porque conduz a pessoa a sair de si mesma, a não se ver como centro e
princípio de razão do mundo fora dela. Ela conduz a uma postura de
humildade, de súplica diante das infinitas possibilidades que as coisas
possuem e das quais a pessoa não pode se abeirar, a não ser se deixando, ela
mesma, de fora do outro para, só então, encontrar -se com ele, na
simplicidade da observação experienciada e descritiva.
E assim, como diz von Zuben (1984), ficamos com “a perplexidade
diante do mundo e o anseio constante em reaprender a ver este mundo”.
A fenomenologia, portanto, implica um método radical de observação e
conhecimento da natureza humana e não -humana em que o saber se
constitui, a posteriori, pela descrição acurada do fenômeno que se deixa ser
intuído pela consciência, por um saber liberto de uma subjetividade
preexistente e potencialmente controladora, mas implicado no objeto,
enquanto tal e nascendo dele.
Ou seja:
Trata -se de descrever e não de explicar e nem de analisar [...] tudo o que sei do mundo, mesmo
devido à ciência, o sei a partir de minha visão pessoal ou de uma experiência do mundo sem a
qual o símbolo da ciência nada significaria. Todo universo da ciência é construído sobre o
mundo vivido [...] A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de ser que o mundo
percebido, pela simples razão de que ela é sua determinação ou sua explicação. (Merleau -Ponty,
1999, p. 5 -18)
Tenho dito que minha reflexão visa tecer considerações em torno da
ideia de um conceito de pessoa e de mundo, intuídas das teorias e filosofias
de base da Gestalt -terapia. Até o momento, apresentei a fenomenologia
como um sistema do qual decorre uma visão de realidade e do real a partir
deles e não a partir do sujeito que os observa. O sujeito não se inclui no
objeto observado, mas se abre para a observação da realidade que, ao ser
observada, vai, como numa dança dos sete véus, deixando cair um a um ante
os olhos atentos do observador, sem nenhum pudor, sem se negar a nada,
simplesmente se desnudando na razão em que os olhos do observador
podem suportar a radicalidade de sua nudez.
Estamos diante de uma visão liberal e liberada, sem nenhum
dogmatismo, único processo possível de respeitar a realidade do objeto
observado, porque ele não é coagido a se mostrar, nem coibido a não se
mostrar.
De algum modo, sem muitos detalhes ou distinções, uma vez que não
falamos de fenomenologias, tenho mostrado que a fenomenologia é um
método de acessar a realidade e temos falado de alguns de seus mais
importantes temas e de sua relação com a existência, entre eles: retorno às
coisas mesmas, redução feno menológica e intencionalidade, aos quais
retorno, ligeiramente, para, em seguida, fechar este item.
Esses três tópicos são fundamentais para a compreensão da natureza da
fenomenologia, porque, por meio deles, a fenomenologia e seu método
põem os pés no chão, soltam suas raízes, saem do abstrato e adquirem um
modo metodologicamente eficiente de olhar a pessoa e o mundo.
1. RETORNO ÀS COISAS MESMAS
Para von Zuben (1984, p. 61),
É retornar a um ponto de partida que seja verdadeiramente o primeiro, é voltarpoética de quem já percorreu longos caminhos, além
das trilhas do Caminho de Santiago de Compostela, as trilhas da psicologia
e da Gestalt -terapia.
Por isso que esta obra é necessária. Certamente causará espanto em uns
ou outros, por uma ou outra razão, mas igualmente ficará marcada como
aquela porta de entrada para o grande salão que é a Gestalt. Depois de
irrompermos da escadaria que nos leva até esta porta, ao abri -la,
deparamo -nos com um salão festivo e ricamente ornamentado, que nos
permite uma excepcional oportunidade de deleite com sua diversidade.
Creio que estamos conhecendo agora uma rara reflexão que poderá ser
início de uma longa jornada para os leitores, pois, depois de superadas estas
páginas, claramente se descortinarão novas necessidades.
Adriano Furtado Holanda
Doutor em Psicologia
Professor adjunto da Universidade Federal do Paraná
* Refiro -me, aqui, a alguns marcos históricos. No Brasil, consideramos os anos 1970 do século
passado como referência de chegada da Gestalt -terapia ao Brasil, com os trabalhos de Tellegen e Jean
Clark Juliano no Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas de São Paulo; com a
publicação do primeiro artigo no Boletim de Psicologia da Sociedade de Psicologia de São Paulo, bem
como os trabalhos desenvolvidos no Rio de Janeiro e no Paraná na mesma época. Já em relação à
Gestalt original, consideramos como referência a publicação, em 1951, do Gestalt -therapy, de Frederic
Perls, Paul Goodman e Ralph Hefferline.
Apresentação
Há 25 anos, em 1985, publiquei Gestalt -terapia: refazendo um caminho,
obra em que procurei lançar as bases teóricas e filosóficas de um modelo de
psicoterapia, que, hoje posso dizer, estava apenas começando. Foi o primeiro
livro de epistemologia gestáltica e penso que, ainda hoje, salvo maior
engano, não existe algo semelhante na literatura gestáltica mundial.
Eu era um iniciante na abordagem gestáltica, mas meu background de
psicanalista, de filósofo e de professor da Universidade de Brasília me
animaram a lançar as bases de uma teoria que dava, timidamente, seus
primeiros passos. Foram três anos de pesquisa, de estudos que redundaram
na publicação de Gestalt -terapia: refazendo um caminho que, agora, na sua
oitava edição, completa 25 anos, suas Bodas de Prata.
Os tempos passaram, a realidade brasileira mudou assim como nós,
gestaltistas. Não somos mais os mesmos. Crescemos, ficamos adultos. Temos
publicações que, sem dúvida alguma, são das melhores na comunidade
acadêmica internacional. Temos revistas e livros de excelente qualidade que
nada deixam a desejar, comparadas à literatura gestáltica mundial. Não
precisamos ter inveja de ninguém, nem dos Estados Unidos, de onde a
Gestalt -terapia emigrou para o mundo inteiro. Somos dezenas de institutos e
centros de formação, somos milhares de Gestalt -terapeutas esparramados
por todas as partes do Brasil.
Diz -se que o caminho se faz caminhando e eu acrescento: o caminho
constrói o caminhante. Caminhamos um longo e difícil caminho, pois além
da abordagem gestáltica ser complexa, a apreensão de sua realidade
teórico -prática demanda um empenho imenso para poder ser entendida e
usada clinicamente.
Não faltaram improvisações e, consequentemente, erros de perspectiva
que, ainda hoje, de algum modo, impedem -nos de criar a Sociedade
Brasileira da Abordagem Gestáltica, que será, no futuro, a Casa da
Abordagem e que deverá acolher todos aqueles que se empenharem no
aprofundamento e propagação de sua teoria e prática. Essa sociedade nos
dará uma identidade, um rosto que, olhado, poderá ser reconhecido e
confirmado.
Passaram -se 25 anos, e, de novo, estou eu a lançar sementes, não
sementes novas, mas sementes nascidas da safra teórica que o Brasil plantou
ao longo dos anos. Hoje, eu colho os frutos das sementes que já lancei e
ofereço -os à nossa comunidade.
A tese é: temos um amplo e complexo campo teórico,
epistemologicamente consolidado. Esse campo nos fornece as bases
conceituais para o desenvolvimento de nossa abordagem nas diversas áreas
que ela atinge e nas quais opera. Não temos uma teo ria de personalidade
constituída e nem precisamos dela, pois a abordagem gestáltica não é
essencialista, é existencialista. Sua essência é, simplesmente, existir, e sua
existência é, simplesmente, prestar uma contínua atenção à relação
homem -mundo, de onde nascem a sabedoria e as soluções do cotidiano.
Não estamos preocupados com o que É a pessoa, mas sim com o COMO
ela funciona. Gestalt é movimento, é processo de resgate do imediato. O
“que” as coisas são mora no passado, às vezes em um futuro imaginado. O
único modo de “surpreender” a realidade está no presente e é aí que a gestalt
das coisas pode ser captada e se fechar.
Para o observar e para o descrever dessa realidade, pessoa -mundo,
estamos mais que suficientemente embasados, no momento em que fizemos
da Psicologia da Gestalt, da Teoria do Campo, da Teoria Holística
Organísmica, do Humanismo, da Fenomenologia e do Existencialismo o
porto onde atracamos com segurança nossas observações e certezas
epistemológicas.
Esse imenso campo teórico é de tal modo harmonioso, inter e
intraligado que, como diz Gary Yontef (apud Clarkson, 1989 p. 26):
“Quando se trabalha bem com uma dessas teorias, estamos trabalhando
com todas elas”.
Estou, formalmente, tentando constituir um Conceito de Mundo e de
Pessoa a partir de teorias e de filosofias que dão sustentação crítica à
Gestalt -terapia, a qual não surgiu do acaso, ou de meras coincidências, sem
dono, sem lugar e sem mestres. Suas teorias e filosofias de base, embora não
tenham sido sistematizadas nem por Perls nem por seus cofundadores,
tiveram neles sua origem, seus preceptores, seus iniciadores.
Essas teorias, de modo às vezes claro, às vezes em simples referências,
permeiam os escritos do chamado “Grupo dos Sete”, embora devamos
afirmar que, na realidade, a Gestalt -terapia é fruto da reflexão de oito
pessoas, pois não podemos esquecer o importante papel que Laura Perls
exerceu na constituição da Gestalt -terapia. Embora seja difícil dizer quem é
quem e como cada um atuou na reflexão do surgimento da Gestalt -terapia,
não há dúvida de que ela é fruto de uma reflexão conjunta de pessoas de
uma determinada época e que viveram em um mundo concreto. Pessoas que
tinham uma noção de pessoa e de mundo e que, de algum modo,
imprimiram suas próprias concepções na nova forma de psicoterapia que
estava surgindo.
A Gestalt -terapia surge no pós -guerra, em um mundo que tinha perdido
seu rumo. Surge de pessoas que tinham sofrido, na carne, o desespero, a
solidão, a angústia, a náusea, a ânsia de liberdade e que tiveram de renunciar
aos próprios caminhos para caminhar o caminho que lhes era possível. O
conceito de mundo e de pessoa que esses homens e mulheres viveram tinha
uma cara, que se tornou horrível e da qual eles queriam se livrar a todo
custo.
É nesse horizonte e a partir dele que a Gestalt -terapia surge. O mundo
tinha perdido seu rumo e procurava, a todo custo, um novo rumo, uma
nova possibilidade de acreditar, de ter fé, de ter esperança no novo homem
que surgia.
A Gestalt -terapia nasce com essa cara, com um instinto teórico
autoecorregulador, procurando, sempre que necessário, atualizar um novo
ajustamento criativo para corresponder às demandas de um mundo pós -
moderno por meio do qual o futuro se tornasse provável. O passado “tinha
passado”, o futuro ainda não tinha chegado, embora estivesse delineado na
mente das pessoas e na nova estrutura do mundo que surgia.
A Gestalt -terapia surge, então, de um profundo processo de consciência
e de conscientização que aflorava no mundo, no coração e na mente das
pessoas. Veio como uma tentativa de resposta, embora não se soubesse
exatamente qual era a pergunta, mas veio centrada na tentativa de resgatar a
experiência imediata das pessoas, tentando dar uma luz, uma esperança a
um “aqui -agora” liberto da angústia do passado e das ilusões de um futuro
apenas possível pela incredulidade que morava, e com razão, no coração,-se para o mundo
prévio a todo conhecimento, é a volta ao mundo anterior, à reflexão, é volta ao irrefletido, ao
mundo do vivido, é a recuperação do nascimento do sentido.
É sair, vivencialmente da posição “eu sei” para a posição “eu não sei”. É
um voltar -se às coisas “matérias”, tais como aparecem antes de qualquer
deformação ou alteração produzida pela filosofia ou pelo saber científico ou
constituído, como diria Husserl.
Retorno às coisas mesmas significa não só que o campo da procura, da
pesquisa, da busca humana é ilimitado, mas também que os modos como
nossa consciência apreende o fenômeno passa, necessariamente, por nossa
subjetividade, incluindo todas as possibilidades de fenômenos. Não sabemos
nada, porque não sei até o que eu digo, não sei completamente a existência
da realidade. Estamos condenados à dúvida.
Esse desvelar do fenômeno tem mão dupla: de um lado, a pessoa, por
meio de sua fala, da palavra encarnada em seu corpo, que nasce dele por
meio da linguagem se experiencia como um fenômeno vivo para sua própria
consciência, como uma presença no seu corpo -pessoa, que é seu campo de
ação. De outro lado, o outro, que se des -oculta de um saber convencional,
produzido, pós -reflexivo, sai de uma postura de saber para uma postura de
entrega, de disponibilidade, de serviço em que ambos se re -encontram como
pessoas vivas e significativas um para o outro.
A isso se chama operacionalizar a intencionalidade, chama -se também ir
ao encontro da coisa mesma, ao âmago do não -saber -nada. O ir às coisas
mesmas, o retornar a um ponto de indiferença criativa nos convida a olhar
as coisas assim como elas são, e a nos voltarmos para o conhecimento da
realidade prévio a todo conhecimento. Convida -nos a não pensar, a
simplesmente ver, observar, descrever a realidade, como se dela não
soubéssemos nada, colocando de lado o mundo da ciência e ficando com o
mundo da intuição, da vivência, assim como ele acontece. Convida -nos a
viver o mundo por meio de uma ignorância sabida e até contemplada.
É uma proposta radical colocar -se entre parênteses, suspender todo o
conhecimento anterior e olhar as coisas a partir delas mesmas. Essa é uma
abertura essencial para nos aproximarmos da realidade humildemente,
permitindo que ela se constitua dentro de nós para além de uma nossa
subjetividade, que nos escraviza em nossa compreensão do mundo.
O que “eu” vejo e como vejo? Eis a questão. A ciência precisa ser
constituída sobre o vivido como uma norma básica do aprendizado humano
e não apenas sobre um raciocínio lógico que, uma vez constituído e aceito,
domina a liberdade de criação e de mudança do ser humano.
2. REDUÇÃO FENOMENOLÓGICA
De acordo com von Zuben (1984),
A “redução fenomenológica” é mostrar a necessidade de um elemento puro que possa servir de
ponto de partida para um pensamento radical, um fundamento absoluto do conhecimento [...].
(p. 63)
A redução é a única forma de reflexão que não anula o irrefletido, mas o manifesta [...] A
colocação entre parênteses do mundo operada pela redução que significa desvelamento e
surgimento do mundo enquanto tal. [...] (p. 61)
Merleau -Ponty, em Phénoménologie de la perception, diz que “o
verdadeiro transcendental é o mundo”.
O que vemos é infinitamente menor do que o que a realidade contém. É
como se olhássemos um deserto e víssemos apenas um grão de areia. É
verdade que o grão de areia contém o deserto, é verdade que a gota d’água é
da mesma natureza que o oceano, mas a análise da gota d’água fica
infinitamente aquém das possibilidades do oceano. Na verdade, quanto mais
analisamos a existência da gota d’água mais ela nos revela um mundo
enorme a ser descoberto. Neste sentido, o verdadeiro transcendental é o
mundo.
Em verdade, convivemos com dois movimentos básicos que terminam
por nos levar, aparentemente, a lugares opostos. De um lado, examinar,
analisar, existencialmente, na coisa -em -si, tudo o que encerra de
quantidades e, de outro lado, analisar, no em -si -da -coisa, tudo o que
encerram de qualidades. Ambas as posições nos levam a um lugar de
impotência, porque jamais se concluirá uma pesquisa de se saber o que é a -
coisa -em -si - mesma ou como ela, de fato, existe e se manifesta, o mesmo
podendo -se dizer do em -si -da coisa -mesma, pois não estou seguro de que
este ponto de partida, este ponto do irrefletido ou ainda não refletido, de
fato, exista para mim . Na verdade, faço de conta que ele não existe, pois até
para fazer esta epochê, preciso, de algum modo, saber diante de que dado,
de fato, me encontro.
Na verdade, o irrefletido, o lugar do não sabido não existem, pois tudo
de cuja existência se sabe é fruto de uma gênese ontológica, gnoseológica,
ínsita à sua própria natureza de coisa, isto é, tudo o que existe ou existirá,
existe porque podia ou pode existir. Estamos falando de uma essência
objetiva das coisas, o que torna possível sua existência na subjetividade da
pesssoa humana.
Não existe um fazer de conta cognitivo, uma ignorância sabida, um faz
de conta mental. O impossível não é possível, por isso não ocupa lugar
nenhum, nem mesmo o lugar do não pensado, do irrefletido. Existem, sim,
coisas a serem criadas (por exemplo, a máquina que levará o ser humano ao
espaço) que serão fruto de milhões de a priori, que é o modo como a ciência
se faz. Existem, ainda, coisas que a nossa percepção, seja de que forma for,
capta, e embora ainda não sejam fenômenos para a nossa consciência, já
existem, potencialmente, das formas mais diversas.
A lição básica da fenomenologia é e será o respeito pelas diferenças.
Somente respeitando o diferente, o ser humano será capaz de construir uma
verdadeira ciência, uma verdadeira ética, um verdadeiro comportar -se
humano. Esse é o ponto irrefletido, é o lugar do encontro com a ciência das
coisas. Descrever significa descobrir, cada vez mais, o lugar do diferente até
um momento em que, se fosse possível, não encontraríamos mais nenhuma
diferença entre nós e o objeto procurado ou entre dois objetos observados e
descritos. A partir daí, então, teríamos encontrado o igual das coisas
observadas, teríamos chegado hipoteticamente à sua essência, isto é, àquele
elemento puro que seria o ponto de partida para uma reflexão radical.
Tal isenção cognitiva com relação à coisa em observação é impossível.
Não temos como não pensar diante de um objeto observado, não obstante,
termos de suspender nosso juízo, ou passar diante da coisa sem ouvi -la,
escutá -la, senti -la. Não podemos fazer de conta que ela não existe, que
somos uma tábula rasa diante do objeto observado, mas podemos, como
método, não usar nada do que já sabemos para compreendê -la, não
atropelá -la e deixar, paciente e humildemente, que ela se revele a nós por
meio de nossa observação despojada de qualquer pré -juízo.
Não é sem razão que Merleau -Ponty (1999, p. 14) diz:
O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo, sou aberto ao mundo, me
comunico indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável.
Sujeito e mundo são apenas aspectos de uma única realidade. Não existe
mundo e sujeito. O sujeito expressa um aspecto, um modo humano de
“funcionar” o mundo, assim como a planta e o animal. Animal, vegetal,
pessoa humana são aspectos inter e intrarrelacionais de um funcionamento
pessoa -mundo. Não se sabe onde começa um e onde termina o outro. Na
verdade, o mundo, enquanto mundo, tem sido, na prática, o grande excluído
da intersubjetividade. Toda intersubjetividade passa pela relação pessoa -
mundo.
Yolanda Forghieri (1993, p.15) completa magistralmente esse
pensamento:
Toda intersubjetividade passa pela relação pessoa -mundo. A redução não é uma abstração
relativamente ao mundo e ao sujeito, mas uma mudança de atitude, da natural à fenomenológica,
que nos permite visualizar sujeito e mundo como fenômenos ou como constituintes de uma
totalidade, no seio da qual o mundo e o sujeito revelam -se, progressivamente, como
significações.
Assim: animalidade, racionalidade e ambientalidade são os constituintes
da totalidade cósmicae formam os essenciais da existência da essência ser
humano, pessoa, homem, mulher, através dos quais a essência ser -humano
adquire rosto e se faz significativa.
A redução fenomenológica é um instrumento especial de saúde, porque
o ter que colocar o mundo entre parênteses para que ele se desvele e surja
para o observador como mundo -enquanto -tal, exige humildade,
disponibilidade teórica e, sobretudo, vontade de perceber o outro como
outro e não como uma categoria criada pelo sujeito.
A redução é um convite a que se abra a consciência para o outro, mas,
sobretudo para si mesmo. É como um remédio ruim de tomar, mas que,
quando assimilado pelo organismo, conduz o corpo -pessoa a uma
autopercepção de toda a sua possibilidade, ou seja, faz com que a pessoa se
sinta ela própria, retornando ao em -si -da -coisa -de -si -mesma ou à sua
singularidade pré -reflexiva. Esse movimento, essa mudança interna de
paradigma podem significar também a possibilidade de uma cura
existencial, porque a redução, via consciência emocionada, retira -nos do
lugar do isso para o lugar do tu de nós mesmos.
Tal postura nos revela um mundo desconhecido, revela -nos beleza,
mistérios, risos que jamais imaginaríamos que a realidade possuísse. É uma
postura ecológica e holisticamente adequada que salvaguarda nosso respeito,
reverência e timidez diante da majestade e magnitude das coisas e nos
coloca diante do mundo e das pessoas em uma atitude de reverência,
encantamento e perene perplexidade.
3. INTENCIONALIDADE
O terceiro pé do tripé da fenomenologia é o conceito de intencionalidade,
que, por nos remeter diretamente à questão do sentido, ocupou sempre um
lugar importante em meu objetivo de descrever um conceito de mundo e de
pessoa.
Como diz Merleau -Ponty (1999, p. 14), “porque estamos no mundo,
estamos condenados ao sentido e não podemos fazer ou nada dizer que não
tenha um nome na história”. Ou seja, a intencionalidade procede de uma
relação dialética entre sujeito e objeto, nascendo daí o sentido que, em uma
perspectiva mais ampla, surge exatamente de nossa relação com os outros e
com o mundo.
Estamos em relação com o mundo ou, melhor dizendo, somos o outro
em relação ao mundo, mas essa relação não é algo abstrato ou ocasional,
sem sentido, do nada. Quando dizemos que a cons ciên cia é sempre
consciência de alguma coisa, estamos dizendo que ela não opera no nada,
no vazio, mas que é altamente significativa, enquanto produtora da palavra
plena, criadora de significado.
A consciência é sempre intencional, é operante, é constituinte de uma
abertura para o mundo através do corpo próprio, pessoa, que a sente como
uma consciência radicalmente encarnada. Falo de uma consciência que,
porque relativa, está voltada para o mundo em um processo de perenes
buscas e redescobertas da realidade que não cessa de ser apreendida por ela.
Estou falando de uma consciência encarnada entre subjetividade e
intencionalidade, como processos que a tornam operante, transformadora,
formadora e unificadora da relação sujeito e objeto, pessoa e mundo, aqui -
agora.
Merleau -Ponty (1999) diz:
A mais importante aquisição da fenomenologia é sem dúvida ter unido o extremo subjetivismo
ao extremo objetivismo em suas noções do mundo e da racionalidade. Racionalidade é medida
exatamente nas experiências onde ela se revela. [...] O inacabamento da fenomenologia e sua
marcha inicial não são o sinal de um fracasso, eles eram inevitáveis porque a fenomenologia tem
por tarefa revelar o mistério do mundo e o mistério da razão. (p. 17 -18)
Mas a fenomenologia é também uma filosofia que substitui as essências na existência e não pensa
que se possa compreender o homem e o mundo de outra forma senão a partir de sua
“facticidade”. (p. 5)
Em outras palavras, nada vai ao intelecto sem passar antes pelos sentidos
e essa unidade do mundo na consciência permite -nos saber que a produção
do intelecto não opera no vazio, mas procede de uma carnalidade que
organiza o mundo na consciência. O mundo precede a consciência. Temos
ou somos uma consciência consistente, com acesso direto às experiências
mentais e psíquicas, perceptivas da realidade não apenas no que ela tem de
singular, mas de totalidade, o que lhe permite transitar nos vários sistemas
do organismo humano. Consciência que percebe o objeto -fenômeno,
independentemente de sua natureza constitutiva.
Segundo Forghieri (1993, p. 15):
a intencionalidade é, existencialmente, o ato de atribuir um sentido, é ela que unifica consciência
e objeto, sujeito e mundo. Com a intencionalidade há o reconhecimento de que o mundo não é
pura exterioridade e o sujeito não é pura interioridade, mas a saída de si para um mundo que
tem uma significação para ele.
Com tal pensamento, a autora fecha uma gestalt que está sendo
construída desde a primeira página desta minha reflexão.
Pode -se criar, fazer ou sugerir uma concepção de mundo e de pessoa
simplesmente como produto da capacidade de nossa mente pensante a
partir de uma lógica possível, como um ensaio teórico independentemente
de toda uma cultura já existente e que tenta estabelecer parâmetros que
definam mundo e pessoa.
Ampliando o conceito de intencionalidade, dizemos que ela nasce do
terceiro princípio da teoria holística: “Tudo é um todo”. A intencionalidade
ou ato de atribuir um sentido é de mão dupla. É ela que finaliza o “duplo
errante” que vivemos nas nossas relações pelo fato de que nossas palavras
são o transporte ou o instrumento necessário da constituição da
intersubjetividade humana. Não ocorre, aqui, uma confluência cognitiva,
pois, nesse caso, os dois se encontrariam na busca do mesmo sentido que
está dentro deles, mas ocorre uma inclusão que, através da
intersubjetividade, torna a linguagem entre as pessoas possível de ser
compreendida e vivenciada.
Husserl afirma que a palavra é sempre significativa, e que, por isso, não
pode ser reduzida ao seu caráter físico, pois existe uma unidade entre o som
verbal e a intenção significativa. Eu diria que existe mais do que uma
intenção significativa, existe sim, nessa troca, uma intenção criativa,
geradora de mudança.
Por isso, intencionalidade, sem a palavra que se faz carne, é morta, perde
o sentido.
Se tudo afeta tudo, a intencionalidade, enquanto produtora do sentido, é
condição sine qua non para que o processo da comunicação humana (o
diálogo) tenha início de uma maneira que prometa ter meio e fim, porque é
ela que unifica, em um verdadeiro processo de inclusão, sujeito e mundo.
Porque estamos no mundo, diz Merleau -Ponty (1999, p. 14), “estamos
condenados ao sentido e não podemos fazer nada ou nada dizer que não
tenha um nome na história”. Ou seja, estamos condenados ao sentido uns
dos outros.
E continua:
O sentido surge de nossa relação com o mundo e com os outros. Este sentido é intrinsecamente
misturado com o não sentido, uma vez que a redução não é jamais completa, ou seja, em outras
palavras, não temos acesso real à essência na existência, ficamos sempre na periferia das coisas.
É função, entretanto, da intencionalidade retirar -nos da ambiguidade, da
ambivalência mental, dado que ela unifica consciência e objeto, pois ela é,
essencialmente, o ato de atribuir um sentido. Por meio do processo da
intencionalidade, damos sentido às coisas, vivemos uma intenção
significativa, ou seja, juntamos aquilo que Husserl chama de
intencionalidade de ato e intencionalidade operante. Olhamos com mais
clareza nosso cognitivo e nosso volitivo, nossa relação intrapessoal e o
mundo, passando a ter um melhor conhecimento da realidade mundana a
partir de nossa própria percepção com relação à objetividade e factualidade
do mundo.
Assim, a fenomenologia nos revela
[...] este mundo vivido antes de ser significado, mundo onde estamos, solo de nossos encontros
com o outro, onde se descortinam nossa história, nossas ações, nosso engajamento, nossas
decisões. (von Zuben, 1984, p. 67)
Isto posto, o retorno à coisa mesma, a redução fenomenológica e a
intencionalidade são instrumentos naturais de perceber, de aprendere de
solucionar problemas próprios do ser humano. Fazemos isso a todo instante
e o que a fenomenologia nos possibilita é teorizar nosso jeito de ser,
permitindo -nos uma visibilidade passiva e ativa do modo como ampliamos
nosso processo de consciência. Nosso pensar emocional nos conduz a esses
três pressupostos básicos, e eles, uma vez constituídos, remetem -nos ao
nosso modo de ser.
A fenomenologia é, assim, a mais pura de todas as posturas filosóficas, e
fundamenta, como nenhum outro conhecimento, nosso conceito de pessoa,
enquanto um apelo radical a que abandonemos toda e qualquer forma de
prévio saber e a que nos abramos para receber a realidade assim como ela é,
porque, só assim, será possível ver o impossível, olhar para o passado e para
o futuro e, não obstante, sentirmo -nos no presente.
EXISTENCIALISMO
O existencialismo se apresenta como filosofia da existência. Como, no
entanto, este livro não trata da filosofia em si, definirei a qual existência me
refiro e de que modo esse conceito nos ajuda a conceber um conceito de
pessoa na sua relação com a Gestalt -terapia. Não estou falando de pessoas,
nem de formas de existir, como se a existência fosse um universal ou uma
abstração, na qual o sujeito -indivíduo vai procurar seu lugar, como em um
imenso paradigma teórico. Não estou falando da existência, enquanto tal, ou
da existência que está dentro do sujeito, como um objeto possuído por
alguém.
A proposta aqui é continuar falando do conceito de pessoa a partir das
filosofias que embasam a Gestalt -terapia.
A “Existência” que aqui está implicada é o homem, que se torna o centro de atenção, encarado
como ser concreto nas suas circunstâncias, no seu viver, nas suas aspirações totais. (Ribeiro,
1985, p. 38)
Observo que, embora seja práxis, quando se diz “homem” inclui -se a
mulher, esse é um modo inadequado de lidar com a realidade, porque a
complexidade do conceito mulher não cabe, em definitivo, no conceito
homem. Como seria se todas as vezes que dizemos: “a mulher” estivéssemos
incluindo “o homem”?
Tentei, sempre que possível, substituir a palavra “o homem” por “a
pessoa”, todas as vezes em que generalizei algo sobre homens e mulheres.
Preferi usar “pessoa ou ser humano”, atento ao sentido que o conceito tinha
dentro do contexto.
O existencialismo considera a pessoa em ação, com seus sentimentos
concretos, suas angústias, dores e buscas, anseios e satisfações, ou seja, não
estamos falando da pessoa como uma ideia, mas como algo concreto,
existente, real, no aqui -agora.
A existência, portanto, é a pessoa no mundo, pessoa que se expressa
através de sua singularidade, seus sentidos e sua subjetividade. No que diz
respeito ao encontro entre pessoas, não há como ter acesso à existência de
alguém senão através de um encontro de subjetividades.
O conceito de subjetividade e de intersubjetividade nos transporta
naturalmente àquele de intencionalidade que é uma das características
fundamentais da consciência. Na prática, ter acesso à existência de uma
pessoa significa ter acesso ao sujeito enquanto tal, isto é, a um “[...]
indivíduo real, que é portador de determinações e que é capaz de propor
objetivos e praticar ações [...]” (Sujeito, 2009) porque as conhece e é fonte e
senhor de sua própria atividade.
Tentando visualizar o que estou dizendo, digo que a existência é a
pessoa, enquanto existente. Quando olhamos para uma pessoa, vemos a
existência acontecendo nela. A pessoa é a própria expressão de sua
existência, da sua e de mais ninguém. Existir é absolutamente singular,
individual, único. Existir é diferente de viver. As plantas, os animais vivem,
mas existir ou existência está reservada aos humanos, porque existir é criar
significados e expressá -los ao longo da vida, em ação, na subjetividade.
Assim, a existência de alguém não pode, no sentido estrito da palavra,
ser explicada por outra pessoa, pode talvez ser entendida por analogia à sua
própria existência. Existência encontra existência, ou seja, entra em relação
com o mundo do outro, está toda ela em relação com o outro. Quando duas
existências se encontram, nenhuma parte fica fora, pois um encontro
verdadeiro é um encontro de existências ou existencial e não um mero face a
face relacional.
Refiro -me à existência como a totalidade operante de cada ente, de cada
pessoa, como um modo singular e único que uma pessoa ocupa no mundo.
Homem -mulher é um ser se fazendo, sempre a caminho, caminhando entre
liberdade e responsabilidade, como um projeto se constituindo
permanentemente.
O homem é o único ser que tem a capacidade de cuidar do próprio ser, de se projetar e é neste
sentido que dizemos que ele é o único ser que existe permanentemente à procura de sua
essência, de seu completar -se, que, como um horizonte, é inatingível. Somos ontologicamente
mutantes. (Ribeiro, 1985, p. 37)
A essência do sentido da existência é que a existência se constitui
continuamente, porque a pessoa é um ser de opções, definindo o que
pretende ser por meio de uma perene sina: ter de escolher sempre, o que
levou Sartre a dizer que a pessoa é condenada a ser livre. Assim, a pessoa
nada mais é do que aquilo que ela decide ser, sua essência surge do seu
eterno caminhar, do seu eterno escolher. “O homem, criador de seu próprio
mundo, para diante do mistério que é ele mesmo. Ele é sua própria esfinge”
(Ribeiro, 1985, p. 38).
Para o existencialismo, as questões da individualidade e da singularidade
são fundamentais. A existência é própria, singular, única. Não se pode
comparar uma existência com outra, pois, apesar da identidade da palavra,
as existências são equívocas, umas com relação às outras. Perceber isso é
fundamental para se respeitar o outro, pois, no mundo da subjetividade,
constitutivo da existência, identidade é um conceito absolutamente
equívoco.
É importante lembrar que o existencialismo, como um todo, não é uma
teoria que “enche a bola” da pessoa humana, ao contrário, é uma teoria
pessimista, niilista e, até certo ponto, destrutiva da esperança de que a
existência, de fato, valha a pena.
Existir é uma mera possibilidade, tal a fragilidade humana diante do
real. Estamos sempre em uma estrada de três pistas, o possível, o provável, o
certo. Mesmo diante de certas evidências, é difícil saber em qual dessas
pistas estamos caminhando. Não é de estranhar, pois, que os principais
representantes do existencialismo pararam diante da noção de possível e, na
impossibilidade de falar objetivamente sobre ele, dividiram -se em três
grandes grupos, frutos, é claro, das dúvidas existenciais que surgiram no
percurso de suas próprias e singulares caminhadas:
a. A impossibilidade do possível. Representada por Kier kegaard,
Heidegger, Jaspers e Sartre.
b. A necessidade do possível. Defendida por pensadores como Lavelle, Lê
Senne, Marcel. Esta visão existencialista tem um caráter e, até certo
ponto, uma finalidade religiosa.
c. A possibilidade do possível. Diz respeito mais diretamente à corrente
italiana do existencialismo.
O primeiro grupo de autores possui um linguajar sobre a angústia, o
desespero, a náusea que caracterizam o existencialismo como uma “filosofia
negativa”, “filosofia da angústia”, “filosofia do fiasco”. Essa visão reflete apenas
uma das correntes e, ainda assim, apenas alguns de seus aspectos. E, embora,
em Sartre, o conceito de possibilidade se transforme em impossibilidade, ele
apresenta a questão do projeto como uma última possibilidade humana. Em
sua visão de existencialismo, “a possibilidade última da realidade humana, a
sua escolha originária, é o projeto fundamental em que se inserem todos os
atos e as volições de um ser humano” (Abbagnano, 2000, p. 404). Não
obstante o extremismo dessa visão de mundo, em que tudo corre o risco de
não dar certo, Sartre afirma que seu existencialismo é um humanismo.
O existencialismo não está preocupado com a existência em abstrato,
como um fenômeno ontológico, pois a existência de que se trata aqui é da
pessoa em ação, existindo, vivendo.
O homem, aqui -agora, é limitado e essa sensaçãode limitação cresce
conforme ele aspira a colocar em ato sua potencialidade existencial. Ele não
sabe de sua impotência, mas a vê e a sente ao se perceber em um universo
cujas variáveis são infinitamente complexas. Ele sabe que não pode
controlá -las, sente -se em um mar de dúvidas, no qual suas certezas quanto
ao êxito de suas ações soçobram, daí nascendo o desespero, a angústia, a
náusea, o sentir -se um ser para a morte, condenado a escolher, sem saber
jamais o resultado de suas escolhas e do uso de sua liberdade. Isso não
significa, porém, que ele está perdido e sem nenhuma possibilidade de
controle de sua ação, tornando -se vítima necessária de uma
imprevisibilidade que não lhe garante a esperança do sucesso.
Se a consciência é sempre consciência de alguma coisa, não estamos
necessariamente condenados ao fracasso, porque existirá sempre um lugar
do qual podemos partir para um horizonte mais claro e definido. Dá -se,
então, a possibilidade de uma profunda consciência de nós mesmos, ou seja,
não estamos, inevi tavelmente, condenados ao desespero, à náusea e à
angústia, porque esses desfechos são, paradoxalmente, sinalizações de nossa
força e de nossas possibilidades. Eles demarcam os limites da realidade do
agora e os da fantasia do amanhã e fazem um apelo a nossa humanidade, no
sentido de transcendê -los para uma vivência mais efetiva da realidade.
Angústia e náusea não têm o caráter da universalidade, não pertencem à
estrutura natural do ser humano, são emoções momentâneas que nos
colocam diante de nossos limites e acionam nossos controles, nossos
ajustamentos criativos, nossas autorregulações organísmicas no sentido de,
na dúvida, ultrapassar, porque é aí que mora o verdadeiro sentido de um
existencialismo humanista.
Estamos propondo sair da posição fatalista da impossibilidade do
possível, que é um lugar de morte, para a posição da necessidade do possível
e para a possibilidade do possível, que são lugares em que a convivência
humana pode encontrar algum tipo de resposta para suas questões
fundamentais.
Feitas essas considerações, retorno a Abbagnano para algumas
ponderações que julgo importantes, no sentido de que o autor faz uma
síntese interessante dos principais tipos de existencialismo: 1) O homem é
uma realidade finita e age por conta e risco próprios; 2) A liberdade do
homem é condicionada, finita e cheia de limitações que, a todo momento,
podem torná -la estéril e fazê -la reincidir no que já passou ou no que já foi
feito; 3) O homem está “lançado no mundo”, ou seja, entregue ao
determinismo do mundo, que pode tornar vãs ou impossíveis suas
iniciativas.
É Ó
1. O HOMEM É UMA REALIDADE FINITA E AGE POR CONTA E RISCO PRÓPRIOS
Essa afirmação traz no seu bojo uma espécie de negação de si mesma, ao
afirmar que o homem é finito, mas que não deveria ser assim, pois, em
sendo uma realidade finita, não se poderia esperar que não agisse por sua
conta e risco. Estamos falando de pessoas da Terra e não do céu, cuja
realidade acontece no mundo, e cujo projeto não pode ser levado com
posturas românticas ou abstratas. Por meio de sua liberdade, o homem se
torna, de algum modo, senhor de seu destino, porque sua responsabilidade o
resgata da ambiguidade a que está condenado: viver entre fantasia e
realidade.
Estamos afirmando que a pessoa está contida em uma realidade, que,
embora finita, ultrapassa sua capacidade de confronto, provocando um
profundo e angustiante senso de realidade, resgatada pela vivência
simultânea do agir a partir da sua subjetividade e intencionalidade,
geradoras de sua objetividade no mundo. Estamos falando do homem
existencial, isto é, uma pessoa de sentido e que está no mundo a partir do
significado vivido de sua relação concreta, real organismo -meio. Assim,
embora chamado a viver valores de inspiração divina, ele permanece na
terra e é na terra que ele se realiza e se liberta da escravidão de estar
condenado a escolher.
2. A LIBERDADE DO HOMEM É CONDICIONADA, FINITA E OBSTACULIZADA POR MUITAS
LIMITAÇÕES QUE, A TODO MOMENTO, PODEM TORNÁ -LA ESTÉRIL E FAZÊ -LA REINCIDIR NO
QUE JÁ FOI OU JÁ FOI FEITO
É assim a realidade humana e nada tem de extraordinário que o homem viva
o ordinário, sujeito a todas as variáveis psicológicas e não -psicológicas que
afetam seu sentir, seu pensar, seu fazer, seu falar.
Sartre diz que a liberdade do homem é sem limites, absoluta e
incondicionada, diz ainda que o homem é uma espécie de Deus, em sua
famosa frase: o homem é um “ser que projeta Deus”, embora, ao mesmo
tempo, diga que se trata de um Deus falido, que, se existe, não serve para
nada. A relação entre essas duas afirmações dá a impressão de que Sartre
não quis afirmar que o homem projeta Deus, mas sim que o homem é um
deus falido, podendo tudo e não podendo nada. No bojo desses
pensamentos, concluiríamos que as variáveis do meio ambiente e aquelas
que o controlam intimamente parecem fazer do ser humano um ser falido
ontologicamente, porque ele vive, permanentemente, a impossibilidade do
possível, que faz parte de sua própria natureza, no que ela tem de mais frágil,
isto é, ser constitutivamente frágil, o que não lhe permite experienciar a
liberdade e, consequentemente, a realidade como tal.
Não obstante toda a fragilidade humana e toda a complexidade do que
significa ser livre, o homem tem um poder extraordinário, criador, capaz de
produzir transformações que se assemelham a um novo nascimento.
Embora a liberdade não seja um princípio infinito, como afirmava o
romantismo, ela é a marca absoluta do que constitui a essência da natureza
humana. Indo mais além, no mundo da sacralidade, a liberdade é marca
absoluta da presença do Criador no ser humano, pois é por meio dela que
ele se aproxima Deus, dado que sendo Ele liberdade total e absoluta, dotou,
paradoxalmente, o ser humano do mais precioso de seus dons, de ser tão
livre que pode, inclusive, opor -se a Ele, optar contra Ele.
3. O HOMEM ESTÁ “LANÇADO NO MUNDO”, OU SEJA, ENTREGUE AO DETERMINISMO DO
MUNDO, QUE PODE TORNAR VÃS OU IMPOSSÍVEIS SUAS INICIATIVAS
Essa afirmação tem a mesma lógica: a universalização da des -graça humana
à qual o homem se encontra infalivelmente condenado. A pessoa não é
senhora de nada, muito menos de si mesma. É como alguém nadando
contra a correnteza de um rio. Poderá até vencer a subida por alguns metros,
mas seu destino é se cansar e, finalmente, abandonar -se à força da água. É a
lógica do desespero programado. Esse raciocínio procede como um dogma,
como algo sem exceção e, nesse caso, poder -se -ia até dizer que, a partir
desses argumentos, é o próprio sentido de existência que está em causa e não
mais o ser humano enquanto ser -aqui -aí. A existência humana é assim e
basta. É como se a existência fosse algo real, existindo por si mesma, só,
absoluta, viva, em ação, determinando, a priori, a condição de todos os
homens, inclusive daqueles que ainda vão nascer. É como a ideia do pecado
original, que doutrina que qualquer um que nasça é herdeiro dele, ainda que
não tenha participado da culpa original. Um desencontro total: não adianta
ser livre, se a liberdade conduz, infalivelmente, ao cansaço de uma luta em
vão.
Tais afirmações precisam ser contextualizadas, porque, se tomadas ao pé
da letra, é como se disséssemos que existe a doença, e não o doente; que
existe a prisão, e não o prisioneiro; como algo tão estruturalmente
constituído, que passa a ser ontologicamente inviável: não estamos
condenados, somos condenados, a priori. Ou seja, seria a afirmação de que
doença e prisão existem, por si só, como determinantes da conduta humana,
e não como potencialidades que podem ou não condicionar o ser humano a
se olhar e a se re -examinar constantemente.
Estar lançado no mundo não significa estar entregue a um
determinismo cego que anula a liberdade humana. Estamos lançados no
mundo, sim, vivemos um movimento inteligente do mundo humano e do
mundo não-humano, como uma espécie de determinismo teleológico
dentro do qual o homem está incluído, não como escravo, mas como
partícipe de seu processo.Não existe um mundo geográfico e um mundo
humano, pois um está imbricado no outro, um sem o outro é mera
abstração, somos uma unidade cósmica, holística, e a existência é a
existência desse duplo pessoa -mundo.
A pessoa humana é uma manifestação, é uma explicitação do mistério e
da força do mundo presentes nele e, ao mesmo tempo em que estar incluído
no mundo limita sua liberdade, torna -o partícipe dessa força gigantesca que
movimenta o Universo, fazendo a liberdade humana, ainda que limitada,
infinitamente grande, como uma potencialidade eternamente disponível
para entrar em ação.
A existência sou eu e não uma palavra. A existência, aqui -agora, é fruto
da subjetividade e da intencionalidade de cada pessoa, nada está prescrito
ou proscrito ou garantido. A garantia é a convicção de que a realidade, se
vista como um todo, tem todas as informações de que necessitamos para
existir e, ao mesmo tempo, fornece -nos todas as condições para, a partir de
nossas limitações, transcendermos a níveis de maior contato e integração
com nossa natureza, enquanto tal.
Isto posto, o existencialismo aqui explicitado, em grande parte, por esses
três princípios, parece trabalhar com a impossibilidade do possível, pois
esses princípios partem do fato que as variáveis que regem a vida humana, a
partir dela própria e da sua relação de inclusão no meio ambiente, tornam
impossíveis a previsibilidade das coisas e dos acontecimentos, os quais se
colocam, na visão de outra linha de pensadores da existência, como conditio
sine non do sucesso humano.
O existencialismo, ao lidar com temas fundamentais da existência
humana, como a morte, a liberdade, o tempo, a singularidade, a angústia, o
desespero e o desamparo nos remete ao verdadeiro sentido de ser pessoa e
nos convoca a um permanente revisar do sentido de nossa existência e nos
permite, não obstante nossa contingência humana, sentirmo -nos viventes e
lutando pelo sentido humano de nós mesmos.
Para nós, gestaltistas, esses princípios, ao darem uma fisionomia ao
nosso jeito humano de ser, também dão visibilidade teórica ao nosso
conceito de pessoa, enquanto são uma exigência humana de se ter os pés no
chão, de não se viver no caos, de se ter no presente as respostas de que
necessitamos para lidar com o futuro e, além disso, exigem que cada pessoa
se sinta singular, dono de sua liberdade e de seus limites.
Conclusão
Terminar estas reflexões me remete a dois sentimentos: de alegria por
considerar este trabalho como algo que transcende meus trabalhos
anteriores; e de dúvidas, pelo inacabado natural que este tipo de reflexão
carrega consigo.
Gestalt é uma totalidade organizada, articulada, indivisível. Pois é..., falta
um pouco de cada um desses processos neste texto. Isso, entretanto, não me
aflige, pois considero que pertence à dinâmica da totalidade ficar inacabada,
exatamente para que não nos cansemos de procurá -la.
Uma das reflexões de que somos objeto de crítica é o fato de usarmos
um sistema de psicoterapia que não tem, dizem, na sua base, uma Teoria de
Personalidade que nos dê parâmetros para um psicodiagnóstico, e que,
portanto, falamos de uma psicopatologia isolada, a priori, desconectada um
contexto teórico existente.
Apesar de toda a reflexão que vem sendo feita no que diz respeito às bases
teóricas e filosóficas da Abordagem Gestáltica, essas bases têm sido como um
diamante bruto que, aos olhos de alguns ou de muitos talvez parecerá uma
pedra comum, mas que, lapidada, surge em toda a sua beleza, propriedade,
adequação e vigor teórico.
Foi isto que presumo ter tentado fazer: lapidar esse todo teórico, de tal
modo que agora cada uma de suas partes possa ser observada e admirada,
revertendo esse brilho ao TODO que é o lugar no qual o sentido de tudo
encontra seu real significado.
Meu Conceito de Mundo e de Pessoa já estava embutido nas teorias que
dão sustentação à Gestalt -terapia, mas eu precisava explicitá -lo de uma
maneira epistemologicamente correta e adequada, e espero que esse objetivo
tenha sido alcançado.
Embora o contexto teórico do pensamento heideggeriano seja diferente
do aqui tratado, acredito que posso terminar este meu projeto com seu
pensamento:
O pensamento preparador em questão não quer nem pode predizer um futuro. Procura apenas
ditar para o presente algo que há muito, exatamente no começo da Filosofia, já lhe foi dito, e que,
entretanto, não foi propriamente pensado. (Heidegger, 1972, p. 26)
Assim, projetos serão sempre inacabados, sujeitos às mais diversas
alterações, pois, na hora de terminar um texto, começa a aparecer o que já
estava contido na mente do autor, mas que, por alguma razão, foi ficando
para trás e para depois. Algumas dessas observações finais poderiam ter
aparecido já nas primeiras páginas, mas só agora surgem e se impõem para
não serem, de novo, deixadas para trás ou para depois.
Eis algumas, talvez até já presentes no texto.
As psicoterapias nascem de teorias de personalidade. As psicopatologias
nascem dos desvios de comportamento humano no que ele se opõe,
contradiz ou se choca com os conceitos previstos nas teorias de
personalidade. As psicoterapias visam lidar com o sintoma, o qual, por sua
vez, torna o cliente um desviante com relação à determinada teoria de
personalidade. A psicoterapia teria o efeito de sanar o sintoma ou seus
efeitos, de tal modo que o cliente, pós -terapia, ter-se-ia ajustado à teoria de
personalidade que ele teria infligido.
Estamos deixando este modelo clássico, ultrapassado, essencialista,
linear de uma determinada concepção de personalidade, para um modelo
processual, fenomenológico -existencial de conceber personalidade.
Neste sentido, a Gestalt -terapia mais do que uma Teoria de Personalidade
é uma “Teoria da Pessoa Humana e um Método de Psicoterapia”, trazendo no
seu bojo uma concepção do sujeito real, de pessoa -consciente -em -ação, de
saúde mais do que de doença, diferente, fluida, maleável, fruto de uma
totalidade integrada, que contempla a unidade pessoa -meio, a unidade
passado -presente -futuro e, sobretudo, a unidade essência -existência.
E agora, depois de tudo o que escrevi, quero terminar, de verdade,
salientando algo que talvez não tenha deixado claro e que é fundamental
para a continuação de um aprofundamento da abordagem gestáltica:
O fato de a Gestalt ter propriedades psicológicas específicas observáveis é de importância capital
em psicoterapia, porque fornece um critério autônomo de profundidade e realidade de
experiência. Não se faz necessário ter teorias de comportamento normal ou de “ajustamento à
realidade, a não ser para fazer explorações” (Perls, Hefferline e Goodman, 1997, p. 46) [Grifo
nosso]
Vocês viram... Não sou o único a falar, são nossos mestres que dizem
que não precisamos de uma teoria específica de personalidade, porque a
Gestalt tem propriedades psicológicas específicas e observáveis que lhe dão
um critério de ação autônomo para lidar com a experiência de maneira
profunda e real.
Assim, a Gestalt -terapia não nasce de uma teoria de personalidade, não
possui uma teoria de personalidade específica, porque ela é, por si mesma,
uma Teoria da Pessoa e um Método de Psicoterapia.
Então, vejamos:
Gestalt -terapia é uma teoria da pessoa, porque concebe o indivíduo na
sua totalidade, como um campo organismo -meio, a partir do qual a pessoa
pode se olhar holograficamente como em um movimento processual,
sempre à procura de sua melhor configuração.
Gestalt -terapia é uma teoria da pessoa, porque nasce de um conjunto
harmonioso de teorias que se interligam por vínculos ontológicos e
gnoseológicos que lhe permitem uma compreensão do sujeito como um
processo de atualização de potencialidades, vendo os danos deste lugar não
como psicopatológicos, mas como tentativas de lidar com o diferente, em
um permanente processo de ajustamento criativo.
Gestalt -terapia é uma teoria da pessoa de fundamentação inter e
transdisciplinar, movendo -se livremente nas diversas teorias que lhe dão
sustentação epistemológica, explicitando, a partir de cada umadelas,
diversos conceitos que a operacionalizam no seu aspecto clínico e
psicoterapêutico.
Gestalt -terapia é uma teoria da pessoa, não porque tem conceitos fixos,
pré -determinados, nascendo deles, mas porque, através de seu campo
teórico, ela entende o ser humano tal como ele é e o descreve a partir de
qualquer situação em que ele se encontra, colhendo, no seu aqui -agora, o
verdadeiro sentido de sua existência.
Gestalt -terapia é uma teoria da pessoa, fenomenológico -existencial,
porque acolhe no frescor do fenômeno, tal como ele se apresenta à
consciência, o sentido real da existência humana que o vivencia através de
sua experiência imediata com e na realidade.
Gestalt -terapia é uma teoria da pessoa, porque considera os bloqueios
do comportamento humano não como sintomas fixos, mas como
autorregulação organísmica, e como processos de ajustamento criativo a
uma melhor configuração.
Gestalt -terapia é uma teoria da pessoa, porque fornece dados teóricos e
práticos de como acompanhar o desenvolvimento e crescimento humanos
de maneira experiencial e didaticamente observável.
Gestalt -terapia é uma teoria da pessoa, porque gera uma concepção
clínica do sujeito e porque vê o comportamento do cliente, a estrutura de
sua personalidade, e o próprio cliente através dos vários instrumentos que a
operacionalizam, que são suas teo rias e filosofias de base que lhe dão
sustentação epistemológica.
Gestalt -terapia é uma teoria da pessoa, porque gera um Conceito de
Mundo e de Pessoa que fundamenta sua prática clínica ou sua forma de
psicoterapia especificada, de forma clara e eficiente.
Gestalt -terapia é uma Teoria da Pessoa, porque vê o comportamento
normal e não normal pela ótica das teorias e filosofias de base que a
fundamentam e que lhe permitem metodizar uma forma de psicoterapia
como um funcionamento que atende e responde às necessidades da pessoa
de perceber e de ver o lugar do bem -estar e da saúde como o lugar normal
da existência humana.
Esta minha caminhada muda alguma coisa? Talvez sim, talvez não. Ela já
existia, estava pronta no coração de cada teoria, talvez até no coração de
pessoas que, como eu, estão a indagar do horizonte alguma resposta. Eu
explicitei, do meu modo, uma semente, talvez tenha dado visibilidade a uma
árvore, ou talvez nada mais fiz que colher frutos de árvores que outros
plantaram.
Os Conceitos de Mundo e de Pessoa não são uma abstração teórica, ou
não deveriam ser. Eles nascem de teorias, crescem e se definem através do
pensamento. Impregnam nosso ser através da emoção, da contemplação do
máximo acontecimento que é ser mundo e ser pessoa. Transformam -se em
ação através da expe riên cia e da vivência de valores que nascem destas duas
realidades: Mundo e Pessoa, e se unificam como Mundo -Pessoa através da
ecologia profunda e da espiritualidade, sementeiras de uma ética cósmica,
única capaz de garantir a sustentabilidade da Pessoa Humana e do Planeta.
Posfácio
Merleau -Ponty (1999) conclui:
O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo, sou aberto ao mundo, me
comunico indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável.
Constituo um Conceito de Mundo e de Pessoa por indução, mas o
universal que daí resulta jamais será a totalidade do mundo pensado, porque
o mundo é o verdadeiro transcendental.
O mundo não é um problema, é um mistério, diante do qual o
observador para, humilde e refletido, à procura de algo que lhe dê o
princípio do caminho.
Quem sou eu para dizer que conheço o estado de começo do mundo e
de pessoa, mas, mesmo assim, propus -me um mapa, um esboço de
compreensão desse mistério: a relação mundo -pessoa, e passei minha
reflexão a você.
Quis fazer uma gestalt, uma totalidade, quanto possível organizada,
articulada, indivisível, de tal modo que, eu primeiro e depois você,
pudéssemos nos sentir no caminho e a caminho. Espero ter acertado a ponta
do fio da meada.
Na realidade, ao percorrer esse caminho, senti-me, muitas vezes, tão
perto e tão distante de mim mesmo, tão perto e tão distante do mundo, um
mundo pensado e um mundo vivido que, também, confundiam -se dentro
de mim, porque existe um deserto entre meu mundo vivido e meu mundo
pensado como conceito.
Existe também um deserto entre mim e eu mesmo. Sou um corpo -
pessoa, um corpo -sujeito, um corpo -próprio, que depara com a realidade do
outro, que, imediatamente, me faz face e que, portanto e inevitavelmente,
provoca em mim meu primeiro discurso: eu existo, logo eu penso e, a partir
deste ponto, tudo pode acontecer, menos negar a evidência do outro como
um ente, um existente. Não posso não perceber, percebo. Estou condenado a
perceber.
O outro me ensina a sair de mim mesmo e me evidencia uma realidade
maior e, a partir daí, vou colhendo, aqui e ali, características do outro.
Formo, então, uma gestalt, uma configuração a partir da qual, retornando ao
começo, começo a dar, de novo, os primeiros passos.
Este contexto me lembra a sensação de Perls, quando fala do princípio
de Heisenberg: “fatos observados se transformam ao serem observados” e
escreve (1969, p. 173):
Vazio fértil, fale através de mim,
Em estado de graça quero ver
Benção e verdade sobre mim,
Face a face com você.
Escreva páginas aos milhares,
Milhões de palavras no caminho,
Voe livre pelos ares,
Gaiola é para passarinho.
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	Ficha catalográfica
	Folha de rosto
	Créditos
	Sumário
	Prefácio
	Apresentação
	Introdução
	1. A questão epistemológica
	2. Conceitos de mundo e de pessoa
	3. Fundamentação teórica do conceito de mundo
	4. Teorias de base do conceito de mundo
	Psicologia da Gestalt
	Teoria do campo
	Teoria holística
	5. Fundamentação teórica do conceito de pessoa
	6. Filosofias de base do conceito de pessoa
	Humanismo
	Fenomenologia
	Existencialismo
	Conclusão
	Posfácio
	Bibliografiamais do que na mente, das pessoas.
De maneira vívida, os fundadores da Gestalt -terapia sabiam que ali
estava implícito um conceito de mundo e de pessoa, não só por meio de suas
teorias, mas de teorias que eles viviam e tinham experimentado na própria
carne.
Criaram, juntamente com a Gestalt -terapia, uma teoria libertadora do
homem e do mundo, criaram um método eficiente de percepção,
experiência e vivência da realidade, porque tinham, eles mesmos, escapado
de uma escravidão teórica experimentada e vivenciada e que os tinha
dominado na guerra e no pós -guerra. Abriram seus olhos, para que nós
pudéssemos ver através do olhar deles um novo mundo e uma nova pessoa.
O Grupo dos Sete era composto de pessoas muito diferentes entre si e foi
a vivência experimentada dessas diferenças que fez da Gestalt -terapia a
potencialidade humana que ela contém. O igual os uniu, convocou -os para
uma nova guerra, mas de paz, amor, contato, excitamento e crescimento
humano. Esse é o berço da Gestalt -terapia. Ela herda do Grupo dos Sete, por
meio das teorias que eles imprimiram ao conjunto de suas formulações, o
conceito de mundo e de pessoa que este livro tenta traduzir e passar para o
leitor. Dentre eles, e na própria constituição da Gestalt -terapia, Perls deixa
ainda escorrer nas suas entrelinhas aspectos importantes da psicanálise, da
teoria reichiana e do zen e do tantra budismo.
Assim, a Gestalt -terapia, além de emergir de um complexo campo
teórico, emerge também impregnada da experiência e vivência de seus
formuladores, mas, e principalmente, de seu principal fundador:
FREDERICK SALOMON PERLS.
Refaço, assim, neste livro, um caminho, percorrido há 25 anos, agora,
não mais como um neófito, mas como um estudioso amadurecido e
envelhecido nas lides acadêmicas. Apresento -o à comunidade gestáltica
como: Conceito de mundo e de pessoa em Gestalt -terapia: revisitando o
caminho.
Este livro é fruto de 50 anos de magistério superior e de uma caminhada
com colegas maravilhosos com os quais aprendi Gestalt -terapia. Agora
devolvo ao leitor, agradecido, parte do que eu sei, na esperança de ser útil à
nossa querida comunidade gestáltica.
É metafísico: “O caminho constrói o caminhante”, ao final da
caminhada, as bolhas nos pés e os machucados não desaparecem, deixam
suas cicatrizes, que, quando revistos, produzem uma imensa saudade do
caminho percorrido.
Brasília, 10 de fevereiro de 2011
Jorge Ponciano Ribeiro
Introdução
Em Boiçucanga, São Paulo, reuniu -se, pela primeira vez, um grupo de
quinze Gestalt -terapeutas “recém -formados” que, juntamente com outros
profissionais espalhados pelo Brasil afora e que também se intitulavam
Gestalt -terapeutas, levaram “a boa nova” pelo país inteiro.
Assim como uma “criança”, que nasceu de muitos pais e mães de
diferentes origens e lugares, nasceu a Gestalt -terapia no Brasil e foi se
espalhando, sem muita ordem e consistência teórica, levada, sem dúvida,
pela mente criativa, criadora, fértil e entusiasmada dos seus primeiros
expositores.
Essa evolução rápida pelo país afora não se deve apenas ao entusiasmo
dos pioneiros da Gestalt -terapia no país, mas também a uma percepção
clara, quase uma evidência teórica, de que ela trazia no seu bojo um germe
ou, mais que isso, uma consistência a ser explorada, mas que já estava ali
contida, esperando por especialistas que descobrissem toda a sua riqueza
teórica.
As informações chegavam de forma coerente, incoerente, contraditórias
muitas vezes, pois vinham de pessoas e de lugares diferentes. Isto não é uma
crítica, é um fato, um dado, um acontecimento e, se não fora assim, também
não teria se espalhado pelo país afora. Não nasceu pronta, não está pronta,
está em marcha, à procura de uma totalidade teórica que lhe dê mais
visibilidade e garantias epistemológicas.
A Gestalt -terapia e a Abordagem Gestáltica, entretanto, nunca vão estar
prontas, acabadas, “redondas”, porque, embora “Gestalt” signifique uma
totalidade organizada, indivisível, articulada, isto é, uma configuração;
jamais teremos uma teoria que contemple plenamente a configuração de
uma totalidade teórica, pois a totalidade é sempre relativa, por mais
totalidade que ela expresse, no aqui -agora, de um campo teórico.
Essa é a riqueza da Gestalt -terapia: nunca estar pronta, não ter uma cara
fixa, engessada em conceitos, mas ter uma estrutura processual que flua, sem,
no entanto, perder sua singularidade de ser Gestalt -terapia e do que isso
basicamente significa.
O livro Gestalt -terapia: refazendo um caminho foi a primeira tentativa de
dar um rosto, uma configuração teórica à Gestalt -terapia no Brasil. Esse
texto é uma tentativa de dar logicidade, compreensibilidade, universalidade,
repetibilidade à abordagem gestáltica e de criar uma intrarrelação de teorias
diversas, mas que tivessem, no bojo, um phylum, uma linha que lhe
permitisse ligar uma a outra, conduzindo a uma operacionalização teórica
do ponto de vista prático.
A Gestalt -terapia não nasce de uma salada teórica na qual cada teoria
nada, ou quase nada, tem a ver com as demais. A Gestalt -terapia nasce, sim,
de árvores teóricas já constituídas, cujos frutos têm as mesmas propriedades,
embora, quando, em contato com o organismo, funcionem de maneira
diferente, mas sempre na direção do desenvolvimento, do crescimento e da
maturação esperada.
Essas teorias são amplas, ricas, complexas, comprovam -se
epistemologicamente e delas podem nascer os mais variados sistemas, com
sustentabilidade teórica, sem, no entanto, confundirem -se com elas. As
teorias que deram origem à Gestalt -terapia são amplas e mais complexas que
os sistemas que delas nascem, pois, para ser mãe é preciso estar dotada de
muito mais do que aquilo de que um filho precisa para nascer, atualizando
toda potencialidade com que a natureza dotou o ser humano. A questão não
é só nascer, é crescer, desenvolvendo -se em toda a sua potencialidade.
Suas teorias e filosofias de base, por mais diversas que sejam, assim
como os órgãos do corpo humano, formam um todo absolutamente
funcional. Não se trata de uma “forçação de barra” de teorias diversas entre
si para gerar a base teórica de uma prática clínica coerente, pois, se isso
acontecesse, não teríamos um corpo, correríamos, sim, o risco de ter um
monstro teórico em um corpo disfuncional.
O corpo humano é como um holograma, isto é, cada um de seus órgãos é
uma perfeita miniatura do corpo total. Assim é também a Gestalt -terapia, que
compreende um campo teórico holográfico em que suas teorias, embora
diferentes umas das outras, estão ligadas por laços que lhes permitem se ver e
se apresentar como epistemologicamente viáveis e operacionais.
Assim como o coração não é o pulmão, a teoria do campo não é a
psicologia da gestalt, mas há entre elas um elo essencial, constitutivo, como
uma estrutura lógica, que lhes permite a existência de um jeito de ser e
funcionar que passa por uma intrarrelação funcional teórica, fruto não só da
sabedoria do organismo, mas, sobretudo, de uma funcionalidade operante,
com um holos que permite e produz uma ação conjunta e harmoniosa, cujos
laços não se veem todos, mas cujos efeitos podem ser vistos e sentidos.
Assim como o coração e o pulmão não são o corpo, mas o corpo é o
coração, é o pulmão, assim também a psicologia da gestalt e a teoria do
campo não são a Gestalt -terapia, mas a Gestalt -terapia é psicologia da
gestalt, é teoria do campo.
Estamos falando da gênese da psicodinamicidade teórica que existe, nesses
casos, entre o todo de cada uma das teorias e filosofias de base e sua parte, isto
é, a abordagem gestáltica que delas emana.
1. A questão epistemológica
UMA EXISTÊNCIA TEÓRICO -FUNCIONAL NASCE DE UMA MATRIZ TEÓRICA, JÁ CONSOLIDADA.
Ele (Lewin) acredita fortemente que a ciência é um empreendimento no qual
oprogresso se faz por aproximações sucessivas “à verdade” e por uma série
interminável de pequenas excursões no desconhecido. (Lewin, 1965, p. xi)
Entendo epistemologia (classicamente, chamada de criteriologia,
gnoseologia) como a ciência quecritica as outras ciências ou outros
conhecimentos já estabelecidos, dando -lhes credibilidade teórico -científica.
Para tanto, a epistemologia tem de estar constituída como uma totalidade de
conceitos, uma metaciência, uma ontologia conceitual, de tal modo que ela
se torne a medida que mede todo e qualquer conhecimento com relação a
sua lógica interna. A epistemologia é uma totalidade teórica, que mede toda
e qualquer ciência ou conhecimento estabelecido que se relacionam entre si
e com ela mesma, como uma parte que não só se harmoniza com essa
totalidade, mas com as partes dela.
Epistemologia é uma ciência de totalidade, de universalidade, é ela que
timbra o que dá visibilidade a qualquer uma de suas partes científicas e/ou
teóricas.
Se duas teorias se opõem a respeito do mesmo objeto de conhecimento: ou
as duas estão erradas ou uma está certa e a outra errada, porque duas partes
em absoluta oposição entre si sobre o mesmo objeto não cabem, não podem ser
contidas em um mesmo todo chamado conhecimento ou teoria do
conhecimento ou criteriologia ou epistemologia. Seria uma contradictio in
termine que destruiria a própria possibilidade do conhecimento.
As teorias e filosofias de base da Gestalt -terapia têm de conter e ser
contidas nesse e por esse todo chamado epistemologia (ciência das ciências)
sob pena de não se justificarem, cientificamente, como uma proposta de
ação teórica. De maneira simples: tudo aquilo que os pesquisadores afirmam
constituir a ciência ou o conceito de ciên cia tem, obviamente, de decorrer
dessa totalidade epistêmica chamada ciência do conhecimento (gnosiologia)
ou epistemologia.
Epistemologia é uma matriz de conhecimento, é dela que nasce a
cientificidade de qualquer outro conhecimento, mas, assim como um filho
não herda a totalidade genética dos pais, assim uma ciência, um
conhecimento científico não herda toda a cientificidade que a epistemologia
espera. Uma ciência ou teoria científica não podem se opor à sua própria
matriz epistêmica, sob pena de não serem “filhas”, de não serem
reconhecidas pelas outras partes que a matriz contém, ou de serem
rejeitadas pela própria matriz.
Essa matriz é como um ser -conhecimento do qual tudo decorre,
adquirindo, no seu processo de constituição científica, suas próprias
características, herdadas, em primeiro lugar, desse ser -conhecimento, dessa
totalidade ontológica de conhecimento e, em segundo lugar, da relação que
esse saber incipiente estabelece com as outras partes científicas do todo, da
matriz, da qual procedem. Nenhum conhecimento pode, nesse caso, opor -se
a outro, porque isso implicaria a não existência do ser -total -conhecimento,
do qual o conhecimento emana para, em seguida, ir se constituindo como
fruto de sua própria caminhada teórica.
Essa proeza teórica, aparentemente paradoxal, pode ser conseguida por
meio de um “método de construção” que foi primeiramente desenvolvido na
matemática.
Considerar entidades geométricas qualitativamente diferentes (como cír culo, quadrado,
parábola) como produto de uma determinada combinação de certos “elementos de construção”
(tais como pontos e movimentos) foi desde os tempos dos gregos o segredo deste método. É, às
vezes, denominado método da “definição genética”. (Lewin, 1965, p. 37)
Dessa forma, nenhum conhecimento jamais estará pronto, mas evoluirá
na razão em que não perca as propriedades deste todo, desta matriz -mãe de
todo o conhecimento. Nenhum conhecimento está pronto. Todo
conhecimento é procura, é mudança, é fluidez na busca de se expressar, cada
vez mais, de maneira parecida com sua origem. Todo nascimento tem uma
origem. Se pudéssemos conceber algo que nasceu sem origem, ou seria a
totalidade absoluta, como Deus – no qual essência e existência se
confundem, fazendo dele o Um absoluto –, ou seria um monstro,
constituído de partes pretensamente ligadas umas às outras, mas sem jamais
constituir, de fato, um corpo concreto, funcional.
Assim, nenhuma ciência contém sua totalidade possível, nenhuma ciência
é perfeita. A natureza intrínseca da ciência é se parecer com a totalidade de
onde emana e conviver com as outras partes desse todo -conhecimento em
inteligência, fluidez e complexidade. Isto é o que se espera de qualquer
conhecimento científico; no mais, é a caminhada da ciência que a constrói e
não o contrário, ou seja, não é a ciência que constrói o caminho, é o caminho
que constrói a ciência.
É de grande importância metodológica conhecer a dimensão conceitual
de uma construção.
(1) Somente aquelas entidades que têm a mesma dimensão conceitual podem ser comparadas
nas suas magnitudes. (2) Tudo o que tem a mesma dimensão conceitual pode ser
quantitativamente comparado, sua magni tude é medida, em princípio, com o mesmo
instrumento (unidades da medida). (Lewin, 1965, p. 43)
Dentro dessa reflexão, podemos dizer que uma das riquezas da Gestalt -
terapia é não ter uma teoria de personalidade que a constitua, com o perigo
de engessá -la e de se tornar prisioneira dela. Somos e funcionamos como
uma postura fenomenológico -existencialista e não essencialista, tendo
constituído um campo teórico sólido, no qual suas partes convivem em inter
e intrarrelação teórica, formando um agir psicoterapêutico, visível e
coerente.
O principio é: as partes teóricas (tomando a noção de ser -todo -
conhecimento), ou as ciências que compõem um determinado campo teórico,
não só têm de estar em harmonia entre si e se intrarrelacionarem, mas
também não podem se opor à totalidade da qual emanam.
Estou em São Luiz do Maranhão, fazendo minha caminhada matinal na
praia e vejo um outdoor, no qual aparecem gatos e cachorros abandonados,
com a seguinte inscrição: “Ele vira a lata, porque você vira as costas. Adote”.
Estamos diante de uma metáfora que, por natureza, é sempre analógica,
não é nem idêntica nos termos comparados, nem equívoca nos termos em
questão, porque, em ambos os casos, a comparação não se completa por si
mesma. O leitor inteligente a completará, penetrando em seu sentido, o que
só é possível porque existe uma linha de pensamento entre os dois “vira”. Os
“vira” não se opõem um ao outro, antes, completam -se na mente do leitor, o
que torna a frase compreensível.
Em um campo teórico ou em uma matriz teórica, em que teo rias são
comparadas ou usadas como extensão para outros conhecimentos, as teorias
são analógicas, isto é, parte delas é idêntica e parte delas entre elas é
equívoca. É a parte idêntica entre elas que permite sua compreensibilidade e
aplicabilidade.
Estar epistemologicamente correto não significa que o campo ou a
matriz teórica de uma teoria ou procedimento coincidam totalmente com a
totalidade ontológica da qual ela decorre, porque é o que está excluído da
analogia que permite que um conhecimento avance e progrida. Estamos
falando da analogia entre subcampos, ou submatrizes de uma totalidade,
supostamente, completa.
Obviamente, o estado do desenvolvimento da psicologia não permite realizar um
relacionamento sistemático de cada construção com todas as outras por meio de um sistema de
equações quantitativas. Por outro lado, estou inclinado a pensar que a psicologia não está longe
de um nível onde um bom número de construções básicas podem ser relacionadas de maneira
precisa. (Lewin, 1965, p. 43)
Isso posto, podemos afirmar que o campo teórico, ou a matriz teórica, da
Gestalt -terapia é composto de filosofias e teorias de base ou de bases teórico -
filosóficas, assim constituído: (1) teorias de base: psicologia da Gestalt, teoria
de campo, teoria organísmica holística, teoria holística, (2) filosofias de base:
humanismo, fenomenologia, existencialismo, e, ainda, (3) antecedentes
teóricos pessoais vividos por seu fundador e que, de um modo às vezes
explícito, às vezes contido, outras vezes negado, estão presentes na Gestalt -
terapia: psicanálise, teoria reichiana, tantra e zen budismo.
Antes de prosseguir quero fazer uma importante distinção epistemológica:
Embora a Gestalt -terapia tenha na teoria organísmica holística de Kurt
Goldstein um de seusreferenciais, no presente contexto usarei
prioritariamente a teoria holística de Jam Fleming Smuts, por ser, em minha
opinião, mais ampla, mais abrangente e por pensar o mundo e a pessoa a
partir de um referencial evolucionista, ao passo que a teoria organísmica
holística trabalha, preferencialmente, com a questão do corpo humano como
um todo.
Esse universo teórico é vasto e complexo. A questão é como escolher
nele e dentro dele os conceitos teóricos que permitirão à Gestalt -terapia ter
um rosto, uma cara definida que possa, de fato, constituir seu primeiro
discurso, como diz E. Levinas.
Algumas considerações iniciais a partir da questão epistemológica posta:
1. Não estamos falando de essência teórica da Gestalt -terapia, mas de sua
existência teórica, de tal modo que a existência não se oponha à
essência da qual ela emana.
2. Estamos definindo um conceito de mundo e um conceito de pessoa, já
que somos pessoas do mundo e, portanto, pertencemos a ele.
3. O conceito de mundo da Gestalt -terapia emana das suas bases teóricas
e seu conceito de pessoa emana de suas filosofias de base.
4. Do conceito de mundo emana o que é a Gestalt -terapia e do conceito de
pessoa emana como a Gestalt -terapia funciona, como ela é.
5. O conceito de mundo da Gestalt -terapia, expresso no que ele é, emana
das teorias de base: psicologia da Gestalt, teoria de campo, teoria
organísmica e teoria holística.
6. O conceito de pessoa, expresso no como a Gestalt -terapia existe,
funciona, desenvolve -se e opera, emana das filosofias de base:
humanismo, existencialismo e fenomenologia.
7. Essas teorias e filosofias de base constituem a estrutura teórico -
funcional da Gestalt -terapia. Diríamos a “coisa -em -si” teórica da
Gestalt -terapia. O como funciona, entretanto, vai depender da
subjetividade, da compreensão do terapeuta, da sua relação com seu
cliente, aqui -agora. Ou seja, do “em -si -da -coisa” que passa pela
subjetividade de quem empreende conhecer uma teoria.
8. Nenhuma teoria positiva, natural, humana, cobre, por completo, o que
é conceito de mundo e o que é conceito de pessoa, porque a relação
mundo -pessoa passa por uma perene dualidade de considerar mundo e
pessoa como duas realidades estanques.
9. Essa compreensão se fará na Gestalt -terapia por meio do que
chamamos contato, que envolve presença, cuidado, encontro e inclusão
na relação terapeuta -cliente -mundo.
10. Cada uma dessas teorias e filosofias é autônoma, existe em si mesma,
foi constituída no tempo e pelo tempo, por meio de pensadores que,
lentamente, as constituíram e as construíram.
11. Cada uma dessas teorias tem a cara de seu fundador, o qual, por sua
vez, é parte de uma totalidade teórica em relação a um dado campo de
conhecimento, assim, esse fundador não poderia expressar uma
totalidade conceitual à qual ele naturalmente não teve acesso.
12. Toda teoria é ontologicamente incompleta, porque nenhuma teoria
capta o ser enquanto tal.
13. Assim, a junção, a intrarrelação dessas teorias que compõem o campo
teórico ou a matriz teórica da Gestalt -terapia são, necessariamente,
incompletas.
14. No entanto, se duas ou mais teorias se entendem a ponto de se dizerem
humanistas, existencialistas ou fenomenológicas, por exemplo, é
porque existe entre elas uma analogia conceitual que lhes permite, não
obstante suas diferenças, serem agrupadas no mesmo sistema teórico.
O diferente entre elas constitui sua originalidade, que termina por
distinguir uma da outra.
15. O campo teórico da Gestalt -terapia não está baseado no que de
diferente existe entre as teorias que a fundamentam, mas sim no que
elas têm de igual, de semelhante e que, juntas, permite ao Gestalt -
terapeuta agir com base no que de comum essas teorias possuem e que
as tornam parte de um grande campo teórico. O diferente é intuído por
aquele olhar de quem olha o igual entre as diversas teorias e descobre
nelas o diferente. É esse olhar que é usado para criar o que torna a
Gestalt -terapia diferente, quando comparada a outras posturas, em
ação.
16. Olhar esse igual, esse analógico que existe entre as diversas filosofias de
base e/ou entre as diversas teorias de base gera o que podemos chamar
de Gestalt clínica, com conceitos como contato, ajustamento criativo,
polaridade, autoeco rregulação organísmica e outros que são
verdadeiras reduções fenomenológicas e que nascem do igual -diferente
que existe entre todas as teorias que dão sustentação operacional e
fenomenológica à Gestalt -terapia.
Com tais considerações pretendo ter deixado claro a gênese
epistemológica da Gestalt -terapia, o que lhe garante sustentabi lidade teórica
e, consequentemente, um encaminhamento natural para um sistema de
psicoterapia, que responde às necessidades humanas de um relacionamento
saudável.
Como já mencionado, a Gestalt -terapia não tem uma teoria de
personalidade, embora possua um campo e/ou uma matriz teórica
compostos de teorias já consolidadas epistemologicamente, às quais a
Gestalt -terapia recorre para também se fazer entender e operar de maneira
coerente, eficaz e responsável.
A Gestalt -terapia busca, então, nessas teorias:
1. Sua compreensão de ciência e daquilo que lhe é característico. Eu diria
que a Gestalt -terapia adota a ideologia, a cultura científica dessas
diversas teorias.
2. Nesse contexto e dentro dele (e isso é fundamental do ponto de vista
epistemológico), a Gestalt -terapia incorpora das teorias e filosofias de
base conceitos que a caracterizam e lhe dão visibilidade teórica. Por
exemplo: da psicologia da Gestalt adota os conceitos de parte -todo,
aqui -agora, figura -fundo, campo, e outros, sem perder a perspectiva da
qual e na qual eles nascem, ou seja, de ser uma teoria da percepção, da
aprendizagem e de solução de problemas.
3. Ela procede do mesmo modo com as demais teorias, constituindo e
construindo um conjunto de conceitos que, pelo fato de nascerem de
teorias intrarrelacionadas e que têm uma alta analogicidade, também
participam dessa mesma lógica, constituindo -se como instrumento
científico, de pesquisa e de trabalho do Gestalt -terapeuta.
4. Assim como não existe humanismo, mas humanismos; fenomenologia,
mas fenomenologias; existencialismo, mas existencialismos, e essa
multiplicidade, longe de destruir sua essência, reforça sua existência.
Esses conceitos são também experienciados, vividos por cada terapeuta
a partir de sua visão de mundo, de pessoa e de sua relação com o
cliente no mundo. Não existe “a fenomenologia”, existem
fenomenólogos; assim também não existe “a Gestalt -terapia”, existem
gestaltistas. A existência de fenomenólogos e gestaltistas permite, por
meio de suas diferenças, fazer com que suas opções teóricas evoluam e
se adaptem ao mundo do mundo e ao mundo das pessoas, assim como
eles são, aqui -agora, e é a conditio sine qua non para que todo
conhecimento possa sair da abstração para a realidade das pessoas e do
mundo.
5. Assim como não existe uniformidade de visão teórica entre os
fenomenólogos, mas sim analogias, e isso não destrói a fenomenologia,
antes a faz evoluir, também não existe uniformidade entre os gestalt -
terapeutas na aplicação dos conceitos que emanam das teorias e
filosofias de base. E isso não destrói a Gestalt -terapia, antes, desenvolve
uma diferença saudável que a permite ser, aqui -agora, uma abordagem
em permanente crescimento.
6. A regra básica é: a utilização prática desses conceitos não pode se opor
à ideologia central básica, de cada uma dessas teorias. De uma maneira
analógica a esta questão do conceito ou ao fato de uma teoria não
poder se opor a um conjunto maior da mesma natureza teórica,
podemos afirmar que:
As partes são, portanto, membros orgânicos do todo, sendo que suas propriedades são funções
da estrutura total e vice -versa. (Garcia -Roza, 1972, p. 54)
A ideologia básica central de uma teoria é aquela que faz, que permite que
essa teoria seja reconhecida como tal e não confundida com outras.
Entretanto, Ênio Brito Pinto (2009, p. 12) dá um passo importantíssimo
quando afirma que:
A Gestalt-terapia é uma teoria de personalidade e de psicoterapia que vem sendo continuamente
desenvolvida por autores contemporâneos. Faz parte da chamada terceira força em psicologia, ou
corrente humanista, que emergiu como reação às visões psicanalíticas e comportamentalistas do
ser humano.
Deve ficar claro, pelas razões expostas por Ênio Brito, que a Gestalt -
terapia, sendo, como propõe ele, uma teoria da personalidade, não encampe
totalmente nenhuma outra teoria, porque as teorias que nos servem de base
já têm uma existência a priori, constituídas em si e servem a diversos
campos do saber. Voltaremos, oportunamente, à reflexão de ser a Gestalt -
terapia uma teoria de personalidade ou, como preferimos, ser uma teoria da
pessoa.
Segundo Garcia -Roza (1972, p. 20):
[...] essa teoria, no entanto, deve ser empírica e não especulativa, isto é, teoria e fatos devem estar
intimamente relacionados. Isto não significa que necessitamos de uma teoria perfeitamente
acabada para que o dado ganhe algum significado, mas pelo menos de um esboço teórico ao qual
ele possa ser referido.
2. Conceitos de mundo e de pessoa
Observando as ciências da Natureza, da Vida e da Mente, poderemos extrair de
cada uma delas um conceito específico e particularmente importante, ou seja: do
primeiro, quantidade; do segundo, ordem; e do terceiro, significado (sinn, em
alemão). Assim, nossa psicologia deve ter um lugar para todos esses conceitos.
Examinemo -los um por um. (Koffka, 1975, p. 25)
Nós temos que retornar à fluidez e plasticidade da natureza e experienciá -la para
podermos encontrar o conceito de realidade. (Smuts, 1996, p. 17)
A junção e a inseparável variação do Tempo e Espaço não é apenas muito
importante em si mesma, mas leva diretamente a uma concepção revolucionária de
que nenhum dos dois existe separadamente, mas que ambos formam o meio
Espaço -Tempo do real universo físico. (Smuts, 1996, p. 22)
O principal objetivo deste capítulo é, a partir de uma dedução teórica,
demonstrar operacionalmente a gênese de um conceito de mundo e de
pessoa a partir das teorias e filosofias de base que dão sustentação
epistemológica à abordagem gestáltica e à Gestalt -terapia. Não é nossa
intenção, entretanto, induzir uma teoria de personalidade a partir de uma
noção constituída de mundo e pessoa, mas, a partir de uma revisão das
teorias e filosofias de base da Gestalt -terapia, constituir um conceito de
mundo e de pessoa, cuja síntese talvez nos conduza a pensar não uma teoria
de personalidade, mas uma teoria da pessoa, mais coerente com uma visão
fenomenológico -existencial da complexa realidade humana, no mundo.
O “conceito de mundo” em Gestalt -terapia origina -se, prioritariamente,
da teoria holística, que é, de algum modo, operacionalizada pela psicologia
da Gestalt e pela teoria do campo. Todas essas teorias relacionam -se com
espacialidade e trabalham no mundo mensurável da materialidade.
O “conceito de pessoa” em Gestalt -terapia origina -se, prioritariamente,
do humanismo que, por natureza, relaciona -se com temporalidade, ou seja,
o mundo da não -matéria, operacionalizan do -se no existencialismo e na
fenomenologia. Teorias que também trabalham no mundo não mensurável
da qualidade.
Pensei muito em qual termo seria mais apropriado, “conceito” ou “visão”
de mundo e de pessoa. Qual conteúdo se aplicaria melhor à ideia que estou
desenvolvendo? Escolhi o construto “conceito” por diversas razões.
Segundo Abbagnano (2000, p. 164), conceito é, “em geral, todo processo
que torne possível a descrição, a classificação e a previsão dos objetos
cognoscíveis”. Os conceitos devem, pois, ser considerados idênticos às
essências que eles revelam, sendo, portanto, mais adequado falar de
conceitos do que de essências. Sob o aspecto subjetivo, a “visão das
essências” é um ato análogo ao perceber sensível. “Conceito” não tem outra
função senão revelar a substância das coisas, exprimindo um modo restrito,
imediato, quase matemático da realidade que ele expressa, é algo mais
objetivo. “Visão” expressa uma compreensão da realidade, como mais
ampla, diluída, passível de vários e diferentes entendimentos, sendo algo
mais subjetivo.
Os aspectos principais do conceito de “conceito”, ainda segundo
Abbagnano (2000, p. 166), são os seguintes:
A primeira função atribuída ao conceito é a de descrever os objetos da experiência para permitir
o seu reconhecimento.
A segunda função atribuída ao conceito é a econômica. A essa função vincula -se o caráter
classificador do conceito. Por isso, o homem foi levado a classificar os fatos nos conceitos.
A terceira função do conceito é organizar os dados da experiência de modo que se estabeleçam
entre eles conexões de natureza lógica. Um conceito, sobretudo, científico, via de regra, não se
limita a descrever e classificar os dados empíricos, mas possibilita a sua inferência dedutiva
(Duhem, La théorie physique, p. 163ss).
A quarta função do conceito, hoje considerada fundamental nas ciências físicas, é a previsão.
A junção de atemporalidade e imaterialidade, relacionadas ao conceito de
tempo, e a junção de espacialidade e materialidade, relacionadas ao conceito
de espaço, aproxima as teorias anteriormente propostas, dando -lhes unicidade,
logicidade e compreensibilidade. Transformam -se, assim, na fonte
epistemológica da qual emana, em Gestalt -terapia, o conceito de mundo e de
pessoa.
Poder -se -ia perguntar, a este ponto, a que teoria do campo ou a que
fenomenologia nós estamos nos referindo no contexto dessa nossa reflexão?
Essa questão já foi posta, pensamos também já respondida, tentarei, no
entanto, fazer uma reflexão, mais uma vez, conclusiva:
1. Nenhuma dessas teorias é vivida, ou comunicada, por seus fundadores,
por seus iniciadores de uma forma idêntica, exclusiva, e, embora, às
vezes, pareçam opostas entre si, sugerindo que uma desconhece
completamente a outra, todas mantêm um eixo teórico semelhante.
2. Não estamos falando de uma ontologia do conhecimento, clássica e já
estabelecida, mas da experiência e vivência que se entendem por
conceito de mundo e de pessoa.
3. É a diferença existente entre estas teorias propostas por seus próprios e
diferentes autores que as tornam iguais quanto ao seu valor
epistemológico, tornando -as interessantes, discutíveis e sempre se
deixando acrescentar de dados novos.
3. Fundamentação teórica do conceito de mundo
Quando se fala em conceito de mundo, abre -se diante de nós um
horizonte tão vasto e tão complexo, que, em um primeiro momento, não se
pode fazer outra coisa senão nos quedarmos em um movimento mais de
admiração do que da procura de uma lógica descritiva.
Parto, então, para definir “mundo”. Qual mundo? O mundo que se
desdobra à minha frente, ou aquele mundo que está acontecendo lá no outro
lado do mundo? O mundo do invisível, do mistério? O mundo humano ou o
mundo não -humano? O mundo das artes, da política, dos vegetais, dos
animais? O mundo da vida, do modo como ele acontece?
Parece impossível formular um conceito de mundo a partir do qual se
possa partir com segurança para algum outro lugar, pois estou pensando um
conceito de mundo que não seja uma abstração, e a partir do qual
formulemos algo que possa ser operacionalizado. Então, que mundo é esse
que estou procurando? Com certeza não falo do mundo das coisas invisíveis
ou não observáveis, também não falo do mundo somente das pessoas.
Falo de um mundo feito de pessoas e coisas, que estejam em íntima e
mútua relação, vivendo um único movimento, a mesma perspectiva, em
cumplicidade com um único e comum destino. Pessoas e coisas em um único
movimento, dando os mesmos passos, experienciando -se como partes um do
outro, em uma relação ontológica e cosmicamente produtora de significado:
mundo -pessoa.
Seria, já, um grande passo que pessoas e coisas se comprometessem, de
verdade, na procura de um real sentido de mundo, porque seria um começo
de caminhada rumo a uma experiência de sentido de comunidade. Embora
estejamos ainda no nível de indivíduos que se singularizam a partir de um
sentidovivido em sua relação com as coisas, tal experiência ainda não seria
suficiente para constituirmos um conceito de mundo, mas seria um início de
solução para a cotidianidade de um aqui -agora em busca de um sentido
coletivo de mundo.
O conceito de mundo deverá ser, necessariamente, abrangente, nada deve
ficar de fora, porque, quando o fora se torna regra, quem padece é a totalidade
ferida. Temos, então, de pensar em uma totalidade em ação, uma totalidade
viva.
O jeito é sair do planeta Terra e ir buscar uma solução em uma
concepção mais ampla, a de Universo, de Cosmo. Nesse contexto, o mundo
não seria o nosso mundo, mas o mundo dos infinitos tempos e espaços que
nos circundam. Seríamos alçados a uma visão quase contemplativa e, assim,
não seríamos mais da Terra, mas do Cosmo, do Universo.
Falo do Universo como a totalidade das coisas existentes, do mundo
como uma estrutura em permanente funcionamento, com uma inteligência
interna à procura de uma finalização ordenada, criadora. O mundo feito de
subtotalidades, em absoluta harmonia cósmica e matemática, como uma
ordem imutável, não no sentido de um determinismo cósmico, mas como
uma força que se ordena sempre no sentido de uma finalização, cada vez
mais perfeita. O mundo como ordem e não como caos, como um sistema
ordenado em funcionamento. Ordenado, mas não determinado, porque, se
olharmos a multiplicidade criada, que está em funcionamento, no universo,
só nos resta dizer que o Universo, como um ente vivo, tem, na liberdade de
ação, sua mais alta definição.
O mundo do qual estou falando é o Universo como totalidade absoluta
e, nesse contexto, é o Universo que está em questão, não mais o planeta
Terra. Se víssemos o mundo dessa maneira, nossa relação cresceria
enormemente, seríamos, além de guardiões, amigos do nosso planeta,
guardiões da ordem do Universo que, agora, se constitui no que chamo de
conceito de mundo.
Pertencemos, de verdade, ao Universo, embora locados no planeta Terra.
Dado que estamos na Terra e somos da Terra, temos perdido a
perspectiva maior de que pertencemos ao Universo. Esse fato pode nos dar
uma sensação de alívio, de não estarmos sós, mas com milhões de outros
planetas como o nosso, tendo o mesmo objetivo.
O Universo, como uma mãe, olha -nos, guia -nos, protege -nos
silenciosamente, embora, de nossa parte, podemos querer ou não esse olhar,
essa direção, essa proteção. Como um ser livre, o Universo libera todos os
seres humanos e não humanos para experienciarem a vida livremente, por
entender, a partir de seu próprio processo, que não existe outro caminho,
outro método de evoluir e de crescer, a não ser por meio de uma liberdade
incondicionada.
Temos de nos deixar cuidar pelo Universo, pois ele nos oferece tudo o
que precisamos para viver; tal como a mãe Terra que oferece à semente tudo
o que ela precisa para frutificar. A diferença está em que a semente acolhe a
terra como uma doadora de vida, ela não se opõe a nada, sorve sôfrega todas
as possibilidades que a mãe Terra lhe oferece e põe à sua disposição. Ela não
discute, recebe e transforma.
A sabedoria inata da semente aponta -lhe o único caminho de
sobrevivência: incluir -se, de verdade, no outro. É por isso que o Universo,
enquanto universo, vive uma ordem e de uma ordem perfeita, embora na mais
absoluta e eficiente liberdade. Ele tem a capacidade de responder
adequadamente aos apelos de todos os seus seres, porque o sentido de ser está
em ser, escolhendo. Escolher de acordo com sua própria natureza é o princípio
de todo crescimento.
Escolher inteligentemente significa escolher na direção do projeto
inicial, nascer, crescer e dar frutos. Crescer, simplesmente, sendo. O
Universo é ordem em transcendência. O dasein do Universo é simplesmente
deixar -se acontecer, sendo o que se é, pois pedra é pedra, vegetal é vegetal,
animal é animal e, como tal, se deixam acontecer. E, nesse deixar -se
acontecer, a evolução acontece como um todo, o Universo transcende,
vencendo, a cada dia, sua marca anterior.
O Universo é, assim, uma totalidade operante constituída de
subsistemas, de subtotalidades, que funcionam em absoluta harmonia com o
todo. Ele não coloca a si mesmo condições de funcionamento, ele
simplesmente funciona por meio de um processo interno de ajustamentos
criativos e de autorregulação cósmica. O Universo funciona por meio de
uma força sintética que faz com que as partes das partes e as partes do todo
inter e intra ajam, produzindo o melhor que aquele momento pode conter.
Falo de uma totalidade absoluta, dominante e dominadora da parte, uma
totalidade em permanente funcionamento. O Universo funciona como uma
unidade -totalidade absoluta e não como um conjunto de partes, de coisas,
cada uma procurando a própria destinação.
No nosso conceito de mundo, de um lado, as coisas -não -humanas se
deixam acontecer, atualizando -se, sempre e constantemente, em suas
potencialidades. De outro lado, as coisas -humanas, ditas pessoas, têm o poder
de se opor e de contrariar o movimento do mundo e o seu próprio movimento
de transcender. Esses extremos nos levam ao dilema cósmico -humano -
existencial: a ideia equivocada de que podemos crescer e evoluir sem nos
preocuparmos com a natureza íntima de cada um de nós, do outro, da
pessoa -mundo.
Coisas e pessoas formam o mundo, mas, como as coisas não precisam
compreender seu processo evolutivo, elas simplesmente são e se entregam ao
seu próprio processo de crescimento. Os humanos, porém, param à beira da
estrada, tentando compreender e entender sua natureza e a natureza de tudo
que está à sua volta. E, nesse processo, desconstruímos todo o processo de
liberdade de sentido e de escolha ao qual estamos condenados, tanto mais
quanto não nos apercebemos da sabedoria interna e silenciosa das coisas em
nós e fora de nós, embora sempre em relação conosco.
Assim como nós somos um campo de força em ação, também o mundo
é um campo de força agindo como um todo, tendo em si partes que
podemos chamar de subcampos. Quando digo que o mundo é um campo,
não me refiro apenas ao campo de atividades ou de pesquisas científicas.
Digo que o mundo é um lugar, uma totalidade quase absoluta, como um
macro ente vivo, criador, gerador de novos campos. Este mundo está aberto
à evolução, à vida, como um viveiro de possibilidades e de onde tudo nasce,
recebendo um significado. É um ser vivo, dinâmico, cuja vida brota de seu
próprio processo de crescimento e de desenvolvimento, lugar da relação
criadora de sentido. É dessa relação continuada que o novo aparece,
tornando o possível mundano possibilidade. O mundo dá sentido ao ser
humano e não o contrário, porque ele é uma totalidade relacional ou um
campo humano de relações significativas.
É um vício cognitivo e cultural ver o mundo como o outro, o diferente, o
distante com o qual nada temos a ver, submetendo -o ao nosso capricho e ao
nosso poder, inclusive, de destruição, invertendo a realidade, como se o
Universo pertencesse a nós e não o contrário. Assim, vivemos uma total
inversão da ordem estabelecida, dado que pertencemos ao Universo, pois
somos obras dele, criaturas dele, porque, como ele, somos água, terra, fogo,
ar, mas insistimos em ignorar nossa dimensão humana de ambientalidade.
Que presunção, que falta de realidade, que esquizofrenia agirmos como
se o Universo nada tivesse a ver conosco ou nós com ele! Se não
assimilarmos o conceito de mundo, não assimilaremos o conceito de pessoa.
O maior contém o menor. O mundo não pode constituir sua própria noção
de mundo, pois ela passa, necessariamente, pela mente pensante do ser
humano e dela decorre. A pessoa, no entanto, inexiste sem o mundo. O
mundo é anterior à pessoa e, não obstante, em uma metafísica inversão de
conteúdo, ele passa a ser cognitivamente uma criação da pessoa, nascendo
daí todo o mal -entendido de uma relação dicotomizada, dualística, pessoa e
mundo, quando, na verdade, é pessoa -mundo, uma relação cosmicamente
intrínseca.
O todo menor reflete o maior, do qual ele, de algum modo, procede.
Trata -se de uma evidência cósmica.Nada é “ex -nihil”, nada procede do
nada, embora essa evidência passe despercebida para a maioria das pessoas.
Pertencemos constitucionalmente ao meio ambiente, somos feitos dele.
Ambientalidade (propriedade de pertencer ao meio ambiente) não é uma
intrusa na definição de pessoa humana, é um essencial que, como a
animalidade e a racionalidade, constitui a pessoa. Somos animais, racionais,
ambientais, uma trindade de naturezas na unidade de pessoa, em que
nenhum atributo antecede ao outro, ou é criador do outro, pois, são,
simplesmente, coexistentes.
O mundo é um conjunto de relações significativas por meio das quais os
seres se individualizam e se singularizam pela diferença. Essa diferença leva
todos os seres a conviverem em reciprocidade e em complementaridade,
dando sentido ao processo evolutivo do universo.
A sustentabilidade do mundo passa pela liberdade absoluta de que todos
os seres gozam de simplesmente se realizarem como são. Até mesmo quando
o homem faz opções que lhe são desfavoráveis, não faz outra coisa senão
usar de sua liberdade de fazer o que, naquele momento, lhe parece melhor.
O conceito de mundo é constituído por uma ínsita consciência cósmica de
que é na relação que o ser se constitui. Uma espécie de consciência em que a
diferença entre os seres acontece, criando a singularidade, que é o fundamento
do processo de permanente mudança que move e sustenta o mundo, o qual
estabelece uma correlação objetiva entre ele e a pessoa, constituindo -se cada
pessoa, individualmente, um mundo individual.
Como o mundo não se autodefine e, sendo nós seus naturais usuários,
temos a presunção e a pretensão de dizer quem ele é ou o que ele é. É como
se o mícron definisse a molécula, ou o grão de areia, o deserto, ou a estrela, a
abóboda celeste, mas, ao invertermos esse papel, teremos, no mínimo, a
dimensão de nossa pequenez diante da majestade do Universo. Se,
emocionalmente, postarmo -nos diante dele em uma atitude de silenciosa
admiração e gratidão, como seus filhos, estaremos tentando obedecer ao
grande mandamento da filiação cósmica e espiritual: “Honrarás pai e mãe”. É
isso que o Universo espera que façamos com ele.
O mundo antecede a pessoa. A pessoa sem o mundo, portanto, é uma mera
abstração. Não estamos, portanto, falando de mundo e pessoa, estamos falando
de mundo -e -pessoa, uma complexa relação, na qual um constitui o outro como
“sujeito e objeto”, ao mesmo tempo. Não estou falando de conceito de mundo
de um modo abstrato ou teórico, dado que a noção de mundo ou o mundo são
constituídos, a posteriori, pelas pessoas, ao intuírem a realidade mundana.
Esse é um caminho enviesado epistemologicamente, porque colocamos
o mundo -enquanto -mundo entre parênteses, para fazermos de conta que o
mundo não existe. A partir de uma postura vazia cognitivamente, criamos e
constituímos um conceito de mundo que, entretanto, nasce na e da mente
humana ao contemplá -lo. Não obstante ser o mundo uma realidade
mundana que precede, metafísica e cronologicamente, a qualquer raciocínio,
é ele pensado como se esse conceito tivesse brotado por ele mesmo, como
por um encanto intuitivo teórico.
Conceito de mundo e conceito de pessoa funcionam como uma Gestalt,
como uma relação figura -fundo, uma configuração a partir da qual,
dependendo do aqui -agora do sujeito pensante, ele parte ou do mundo ou da
pessoa para constituir a ideia sobre ele próprio e/ou sobre o mundo.
O conceito de mundo, portanto, não está pronto em si, como algo fixo,
algo escrito, como algo em uma tela que lemos e relemos sem a
possibilidade de modificar. O conceito de mundo é fluido, dinâmico,
mutável e varia de acordo com a mente teórica de quem o observa e sofre
sua influência.
As bases teóricas ou as teorias de base da Gestalt -terapia, como já citado,
são constituídas da psicologia da Gestalt, da teoria do campo de Lewin e da
teoria holística de Smuts. Consequentemente, sua visão de mundo, para ser
coerente, nasce necessariamente da junção harmoniosa dessas teorias, que,
apesar de serem diferentes entre si, têm algo, por analogia epistemológica,
que as colocam sob o mesmo patamar de compreensibilidade e de
aplicabilidade.
Usando o conceito de figura -fundo, no seu sentido comum de que a
necessidade maior aparece e cria o momento, digo que a teoria holística é a
figura de um todo cujo fundo é a teoria do campo e a psicologia da gestalt,
de tal modo que essas três teorias criam o mesmo tempo e o mesmo espaço
na experiência mundana e humana contemplada.
O conceito de mundo é um instrumento de trabalho por meio do qual
localizamos a pessoa no mundo e a partir do qual vemos esse homem como
funcional ou disfuncional, na medida em que ele se expressa, coerente ou
incoerentemente, na sua relação com essa matriz geradora de toda a atividade
humana, e da qual essa atividade recebe sentido.
O conceito de pessoa nasce e decorre, cósmica e ontologicamente, do
conceito de mundo. Primeiro o mundo existe, depois a pessoa. É o conceito de
mundo, ou seja, a compreensão do que é mundo que permite à pessoa se
perceber dentro de um campo cósmico e, a partir daí, se localizar no mundo
como um ser ético e de ação.
Sem um conceito de valor e de ética sobre o mundo, a pessoa não
experiencia nenhum referencial ético de seu agir, porque um referencial
pessoal não pode nascer, simplesmente, da própria pessoa.
É da contemplação do Universo, dos seus mistérios e possibilidades, do
olhar o cosmo simplesmente como cosmo, que nasce no ser humano a sensação
de pertencimento e é a partir daí que o homem cria um código de relação entre
ele e o mundo e entre ele e o outro, no mundo.
O conceito de mundo é, portanto, uma bússola que permite à pessoa se
localizar neste mundo e se programar na sua caminhada de um lugar a
outro. O conceito de pessoa nasce, assim, cronológica, cósmica e
ontologicamente, por uma questão de anterioridade têmporo -espacial, do
conceito de mundo.
4. Teorias de base do conceito de mundo
Se é verdade que o homem é o último e mais perfeito produto da evolução, segue -se
que ele é ligado organicamente não somente ao universo dos seres vivos, mas ao
universo todo. Ninguém, melhor do que Teilhard de Chardin expressou esse dado
científico: “O homem é profundamente radicado no Universo”.
[...] Tanto que Haeckel formulou a lei: a ontogênese (isto é, o desenvolvimento de
um indivíduo) é a recapitulação da filogênese (isto é, do desenvolvimento da
espécie).
[...] Portanto, o homem não é só uma recapitulação da história do Cosmo no tempo,
mas também uma miniatura da estrutura do Universo. Isso significa um estreito
parentesco com a natureza. Daí ser falsa a opinião do homem ocidental de
considerar -se fora e acima do resto da criação, como senhor e não como parte
integrante. (Nogare, 1994, p. 231 -2)
PSICOLOGIA DA GESTALT
A psicologia da gestalt forma um dos pés de um tripé teórico com que
pretendo expor o conceito de mundo, como pressuposto e fundamento para
a constituição de uma teoria da pessoa, a qual desemboca na
fundamentação de uma prática clínica em Gestalt -terapia.
Tenho uma profunda consciência, uma consciência emocionada até, do
que significa estar diante da imensidão da tarefa a que me propus.
Sinto -me, embora meu plano seja imensamente menor e menos
ambicioso, como Koa que, no prefácio de seu livro Princí pios de psicologia
da Gestalt (1975, p. 11), diz:
Eu queria pôr ordem na grande massa de fatos descobertos pela psicologia moderna,
formulando problemas definidos com precisão, mostrando suas inter relações, oferecendo
possíveis soluções e expondo as lacunas que essas soluções deixaram por preencher.
A ideia central é a de que tudo está em movimento, que nenhuma teoria
está pronta, mas é preciso avançar teoricamente, criar possibilidades de um
pensamento que gere conhecimento e prática de ação, que não seja “um
sistema acabado ou morto, mas um sistema em formação, um sistema em
crescimento”, como diz Koa.
Vejamos a seguir o significado de “gestalt”:
A palavra “gestalt” tem o significado de uma entidadeconcreta, individual e característica, que
existe como algo destacado e que tem uma forma ou configuração como um de seus atributos.
(Köhler, 1929 apud Koa, 1975, p. 142)
Portanto, uma gestalt é um produto de organização; a organização é o processo que leva a uma
gestalt. [...] A organização, como uma categoria é, diametralmente, oposta à mera justaposição
ou distribuição ao acaso. (Koa, 1975, p. 691)
No “processo de organização”, o que acontece a uma parte do Todo é determinado por leis
intrínsecas inerentes a um todo. (Wertheimer, 1925, p. 7 apud Koa, 1975, p. 11)
“Ele”, o termo “gestaltizado”, comporta, em sua conotação, a alternativa caos -cosmos; dizer que
um processo, ou o produto de um processo, é uma gestalt, significa que ele não pode ser
explicado pelo mero caos, a mera combinação cega de causas essencialmente desconexas; mas
que sua essência é a razão de sua existência, para usarmos a linguagem metafísica para uma ideia
que esteve presente inúmeras vezes neste livro, em noções tão livres de metafísica quanto
qualquer ciência pode estar. (Koa, 1975, p. 11)
Teoria que considera os fenômenos psicológicos como totalidades organizadas, indivisíveis,
articuladas, isto é, como configurações. (Houaiss, 2001, p. 1.449)
Assim sendo, vamos à procura de encontrar, sobretudo na formulação
de Koa, um conceito de mundo.
Como já disse, o mundo funciona como uma grande gestalt: o que
acontece a uma parte do todo é determinado por leis intrínsecas inerentes a
este todo.
Vemos o Universo como uma organização, uma categoria
diametralmente oposta a uma mera justaposição ou à distribuição de partes
ao acaso. É ordem, e não caos.
O mundo é um permanente processo se constituindo não a partir do
caos, mas a partir da ordem, da natureza, do significado interno e inteligente
que o todo tem sobre suas partes. Não é fruto, não é resultado de “uma mera
combinação cega de causas essencialmente desconexas, mas sua essência é a
razão de sua existência”. Ou seja, o Mundo é uma gestalt concreta,
individual, característica no sentido de que ele “é” mundo e não “está”
mundo; é vivo, inteligente, possui uma teleologia em curso, no sentido de
ser um processo evolutivo rumo a uma perfeição cada vez maior.
Tenho dito que nós, gestaltistas, estamos longe de ter usufruí do,
utilizado, intuído, ou outro verbo, das riquezas teóricas que a psicologia da
Gestalt pode nos oferecer, talvez pela aridez de seus conceitos, pela
complexidade de campos que abarca, pela extensão possível de seus
conteúdos a serem explorados. Estou, aqui, portanto, fazendo uma tentativa,
ainda que modesta, de entendê -la um pouco mais.
Dentro da concepção de conceito de mundo que exponho, entendo que
a teoria holística funciona como se fosse a alma, um quase invisível -visível
que nos dá um “como” de como conceber o mundo, este mundo que
construímos e continuamos a construir e do qual somos objetos e sujeitos ao
mesmo tempo. Não falo de um mundo abstrato, contemplado teoricamente,
mas deste mundo, deste campo, desta situação complexa na qual estamos
imersos e cuja alma procuramos entender.
A teoria do campo é, por sua vez, como se fosse o corpo; um corpo real,
visível, palpável, tocável. Ela nos dá os instrumentos para olhar o mundo.
Enquanto a teoria holística nos faz lidar com as qualidades do mundo, a
teoria do campo nos coloca em contato com suas quantidades. Lembrando
que quantidade não significa matéria ou materialidade em si, mas que toda
quantidade tem imersa em si, por sua própria natureza, a qualidade que lhe
dá existência, compreensibilidade e movimento.
A psicologia da gestalt pode ser apresentada como os pés e as mãos que
permitem à cabeça (a teoria holística) e ao tronco (teoria do campo) serem
um corpo vivo e em movimento. Mais do que visibilidade teórica, a
psicologia da gestalt dá mobilidade à teoria holística e à teoria do campo,
que, juntas, formam o corpo teórico do que estamos chamando conceito de
mundo em Gestalt -terapia.
Quando falamos de psicologia da gestalt, estamos falando de um mundo
teórico extremamente complexo, de cuja dimensão os gestaltistas ainda não
se deram conta, seja pela extensão de seus conceitos, seja pela dificuldade de
uma leitura de realidade a partir de seu campo teórico.
Koa percorreu e estudou vários lugares teóricos, dando -nos uma visão
quase completa de um mundo que, como ele disse, está longe de ter sido
descoberto por inteiro. Ele começou por uma longa exposição a respeito da
natureza da ciência. Depois, adentrou à questão do comportamento
humano, sobretudo, por meio da questão do ego, para fazer dos conceitos de
campo e de meio um de seus principais construtos, porque é aí que a
realidade e os dados se apresentam, e os fatos se concretizam. Da noção de
campo, e através dela, apresentou toda a questão do tempo e do espaço, que
podemos chamar de realidade presente aqui -agora. Aprofundou -se ainda
mais na questão do meio ambiente, discutindo a questão de figura -fundo.
Fez uma longa discussão sobre a noção e o funcionamento do conceito de
estrutura ligado ao conceito de figura -fundo. Adentrou na questão da
memória, da aprendizagem e da percepção espacial. Fez um longo estudo
sobre o todo e sua relação com suas partes e terminou apresentando uma
riquíssima discussão sobre sociedade e personalidade.
Por certo, não foi sua intenção falar ou defender uma posição a respeito
do que nós entendemos por conceito de mundo e de pessoa, mas não há
dúvida de que sua teoria apresenta todo um estudo, toda uma reflexão sobre
uma visão ou conceito de mundo que nasce dessa longa caminhada, que
permanece aberta para uma reflexão mais epistemológica, na qual a
subjetividade e a intencionalidade do leitor vão encontrar o que ele chamou
essência das coisas através das quais a existência toma forma.
Deve ficar claro para o leitor que estou, por meio de um raciocínio
dedutivo, de um silogismo, buscando na fala de Koa, nas citações,
anteriormente referidas, algo do qual ele não falou explicitamente, mas que
está contido em todo o seu texto, ou seja, uma visão clara da realidade como
organização que se manifesta na natureza, na vida, na mente, integradas pela
ordem e pelo significado presentes na quantidade e na qualidade, das quais
ele afirma, de algum modo, ser uma o outro lado da outra.
De um modo sintético, podemos dizer que são os seguintes os grandes
temas que surgem da psicologia da gestalt: O conceito de campo ligado à
questão do meio -comportamental na sua relação com o campo psicológico,
a questão do lugar do comportamento e o comportamento como parte da
experiência direta, o campo ambiental e sua relação com o meio geográfico e
que constituem alguns dos mais importantes sub temas, que usamos na
prática clínica:
1. Figura -fundo: Figura -fundo e estrutura; articulação entre figura e
fundo; sentido de fundo e de figura; diferenças funcionais entre figura e
fundo.
2. Espaço e tempo: Organização do espaço e do tempo; memória, tempo e
espaço; unidades temporais e campo.
3. Parte -todo: Parte -todo e a configuração; parte -todo e a experiência;
parte -todo e a percepção; parte -todo e os sistemas inter -relacionais;
parte -todo e o conceito de campo; o todo como estrutura;
subjetividade, intencionalidade e a questão do todo.
4. Percepção: O conceito de percepção, sua organização e propriedade no
mundo comportamental; a lei da pregnância; a organização do espaço;
a visão periférica.
5. Aprendizagem: Aprendizagem e processo; aprendizagem e aplicações; a
questão dos traços; aprendizagem e repetição.
6. Solução de problemas: A questão da comunicação; reconhecimento e
problemas; solução de problemas; intuição e inteligência; percepção,
pensamento e solução de problemas.
A análise cuidadosa e crítica desses pontos teóricos conduz a um
conceito de mundo que ouso resumir nos seguintes pontos:
1. Koa afirma que gestalt é uma entidade individual, caracterizada por
uma forma e por uma organização processual.
2. Uma gestalt é um todo organizado, articulado, indivisível, ou seja, uma
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	Sumário
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	Apresentação
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	1. A questão epistemológica
	2. Conceitos de mundo e de pessoa
	3. Fundamentação teórica do conceito de mundo
	4. Teorias de base do conceito de mundo
	Psicologia da Gestalt
	Teoria do campo
	Teoria holística
	5. Fundamentação teórica do conceito de pessoa
	6. Filosofias de base do conceito de pessoa
	Humanismo
	Fenomenologia
	Existencialismo
	Conclusão
	Posfácio
	Bibliografia

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